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Para que tudo não termine

como um "ca go de família":


aportes para o debate sobre
a violência domestica
So as to evoid ending up et a "family effetr":
contributfons to the debate on domeetie violem

estimo betreet
O artigo tematiza as relações entre This article explores the theme of
família e violência considerando que, the relations holding between family and
quando se trata de violência, as famí- violence. It takes into account the cen-
lias, ora como vítimas, ora como cul- tral role the family plays in the tragedies
padas, têm papel de destaque nos dra- of contemporary society both when
mas da sociedade contemporânea. A guilty of violence or when a victim to it.
partir da discussão de alguns dados Starting with a discussion of some data
sobre a violência no âmbito da família on violence in the family context and of
e do consenso existente sobre a ne- the existing consensus about the need
cessidade de realizar ações que con- to implement actions likely to reduce the
tenham o problema, debate-se os problem, the paper considers the
paradigmas que orientam a interpreta- paradigms informing the interpretation
ção do tema em pauta. Os eixos of the topic in question. The paradig-
paradigmáticos evidenciados são o da matic axes highlighted are those of
normatividade e estabilidade e do con- nonnativity and stability and those of
flito e transformação. A partir destes conflict and transformation. From these, Regina Célia Tamen Minto
se constrói como caminho de interpre- a new criticai interdisciplinary interface
tação o eixo interdisciplinar crítico. is constructed as a path to interpretation. Pós-doutora pela Università de Perugia,
Com esta discussão pretende-se for- This discussion afins to offer contri- Itália.
necer subsídios para o debate sobre os butions to the debate on processes of
processos de intervenção profissional professional intervention in the field of Doutora em Saúde Mental pela Unicamp.
na área da violência doméstica, mes- domestic violence. Even working from
mo trabalhando na perspectiva da de- the point of view of the defense of Coordenadora e pesquisadora do Núcleo
fesa das vítimas, são colocadas em victims, the study activates different de Estudos da Criança, Adolescente e
movimento diferentes formas de ana- forms of analyzing family-violence Família (NECAD/UFSC/ CNPq).
lisar as relações família e violência. relations.
Palavras- chave: família, violência, Key words: family, violence, Professora do Curso de Serviço Social e
interdisciplinaridade. interdisciplinarity. Coordenadora do Programa de Pós-
Graduação em Serviço Social — Mestrado
— /UFSC.
Fara que tudo não termine como um "caso de família": aportes para o debate sobre ...

ora como violenta, ora como proteto- tica, a promulgação do Estatuto da


Introduçllo
ra, a família vai se transformando cada Criança e do Adolescente-ECA, a
vez mais em objeto de intervenção de criação das delegacias de mulheres e
o fmal do século XX, um número cada vez maior de profis- de outros instrumentos.
a questão família e sionais das mais diferentes áreas.
violência ganhou am- A publicização da violência que
Esses profissionais, chamados a apre-
pla visibilidade no âmbito do debate so- ocorre no âmbito doméstico, obrigou-
sentar soluções para as situações de
bre os direitos humanos Entrou inclu- nos a entrar em contato com a triste
violência, nem sempre se dão conta
sive de modo definitivo para o circuito realidade de que a casa é, como sem-
que suas ações colocam em movimen-
da mídia. Tanto os jornais como a tele- pre foi, também um lugar de risco.
to determinadas formas de análises
visão têm colocado quotidianamente Sobre isso as estatísticas são claras.
sobre a relação família e violência Por exemplo, Em 1988, na região su-
matérias sobre problemas que até há construídas a partir de diferentes con-
pouco tempo (duas décadas pelo me- deste, a mais desenvolvida do país e
cepções de sociedade e de família.
nos) apareciam apenas de forma com características de uma socieda-
episódica. As imagens têm sido pródi- Pensando justamente nos proces- de moderna, 567.635.000 pessoas so-
gas em mostrar que, quando se trata sos de intervenção profissional com freram agressão física, sendo 55,23%
de violência, a família se faz presente famílias é que aceitamos o desafio homens e 44,77% mulheres. Das
em todas as cenas. Nós assistimos di- de trabalhar este tema através do de- agressões contra as mulheres 62,29%
ariamente inúmeros dramas familiares, bate de diferentes concepções que foram praticadas por parentes e pes-
de diferentes ângulos. Como por norteiam as ações profissionais rela- soas conhecidas e 48,31% das agres-
exemplo, o drama das famílias que vi- cionadas a situações familiares que sões sofridas pelos homens também
vem uma situação de seqüestro e o envolvem violência. Sem dúvida, tra- foram praticadas por parentes e co-
drama da família dos seqüestradores; ta-se de um assunto abrangente, com- nhecidos. Além disso, as mulheres
o drama das crianças abandonadas plexo e polêmico. Por isso, estamos entre o casamento e a idade madura
pelas suas famílias e o drama das fa- cientes que o caminho que percorre- (50 anos) são agredidas em casa, ge-
mílias com o desaparecimento de seus mos para o tratamento do mesmo é ralmente por parentes. Quando se tra-
filhos; o drama das mulheres, crianças um dentre os muitos possíveis e em ta de agressão física, a ameaça para
e adolescentes mal tratados por seus decorrência disso tem limites e pro- as mulheres não está na rua, mas na
pais e companheiros e o drama dos pais blemas. Apesar disso, esperamos própria casa e se caracteriza como
frente aos atos infracionais ou o suicí- poder contribuir para o debate, à me- um episódio inscrito em dinâmicas
dio de seus filhos; o drama daqueles dida que tentaremos dar visibilidade a próprias da vida privada. (SOARES
que passamhoras na frente de um pre- algumas leituras sobre a temática et al., 1996).
sídio em rebelião sem notícias de seus numa perspectiva interdisciplinar.
A movimentação em torno da
familiares e o drama das famílias dos defesa dos direitos de cidadania e o
agentes carcerários em mãos dos compromisso de intelectuais, juristas,
amotinados, o drama das famílias cujos A construção da violência operadores sociais, trabalhadores da
filhos morrem "pela pátria" e o drama domestica' como campo de saúde, com a questão desembocou na
das famílias vítimas da guerra. Dessa estruturação de uma área
forma, através de imagens dolorosas
conhecimento multidis- multidisciplinar de conhecimento e de
de situações sem limites aparentes, vai ciplinar e de intervenção intervenção social, a qual denomina-
se traçando o "mapa da barbárie e da social mos de violência doméstica. Seu ob-
crueldade". Comisso, esses problemas jeto é a violência que ocorre no âmbi-
vêm sendo introduzidos no imaginário to privado, decorrente da violação de
A tematização das relações entre
de nossa sociedade, provocando, sem direitos na relação entre os seus mem-
família e violência, na atualidade, teve
dúvida, reações positivas. bros. Não é por acaso que se tem tra-
como porta de entrada a intensa
A consciência coletiva é colocada mobilização da sociedade civil, espe- balhado com a noção de violência
frente a fenômenos que contrastam cialmente do movimento feminista na contra.
com uma ética, senão corrente, pelo década de 70 e do movimento em tor- Esta violência, segundo Barudy
menos desejada. Os discursos e as no da defesa dos direitos das crian- (1998), é construída através de
imagens solicitam uma reflexão sobre ças e dos adolescentes na década de interações ativas ou passivas. As
a questão e estimulam a crítica e a 80, que culminaram com conquistas interações ativas dão origem ao que
vigilância social. Assim, a família é no Brasil como: a inclusão do pará- o autor denomina de maltrato ativo ou
colocada cada vez mais na berlinda. grafo 8 do artigo 226 da Constituição violência por ação. Refere-se aos
Ora como culpada, ora como vítima, Federal que coíbe a violência domés- comportamentos e discursos que im-

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9 e, Regina Célia Tamaso Mioto

plicam o uso da força física, sexual e/ mentos delinqüentes, dentre outros sin- tir de duas grandes correntes teóri-
ou psicológica, que, por sua freqüên- tomas. A esses dados, outros vão sen- cas. Uma ancorada no eixo da
cia e intensidade, geram danos. do relacionados como àqueles referen- normatividade \estabilidade e outra no
As interações passivas, que cons- tes aos agressores e à realidade das eixo do conflito \transformação.
tituem a negligência ou violência por famílias. Quanto a isso, por exemplo,
omissão, referem-se à omissão de in- Soares (1996) nos diz que de um total
de 168 agressões cometidas contra O eixo da norrnatividade/
tervenções ou de discursos necessá-
rios para assegurar o bem-estar de mulheres por seus maridos ou compa- estabilidade
membros em situação de dependên- nheiros, em 140 os agressores estavam
em estado de embriaguês. A pesquisa A primeira tem ancoragem no
cia (particularmente crianças). Para
sobre o perfil dos adolescentes, auto- pensamento de Durkhein. Trabalha
o autor a distinção entre maltrato
res de atos infracionais no estado de com a idéia de que a sociedade é um
ativo e passivo permite distinguir
Santa Catarina, apontou que parcela todo integrado e o consenso ideológi-
dois mundos de relações que redun-
razoável desses atos é cometida sob o co-moral é um pressuposto da exis-
darão em "carreiras" diferentes para
efeito de drogas (33,16%), e 44, 39% tência social do homem. Por isso toda
as vítimas.
dos adolescentes têm algum familiar a análise caminha em direção de tra-
(pai ou irmão) que usa ou usou drogas. tar a violência como expressão de
Nesse percentual não foi incluído o ál- comportamentos individuais não cor-
As pesquisas nesta área
cool que é mais usual (VIEIRA, 1999). respondentes às normas vigentes na
sociedade, vinculados às diferentes
têm demonstrado que a Estas informações têm colocado posições sociais. O seu aparecimen-
a sociedade em estado de alerta, e nos to é decorrente de defeitos no pro-
violência, seja ela ativa possibilitam pensar que as relações cesso de integração social dos indiví-
entre família e violência não podem duos ou de uma ausência de controle
ou passiva, produz sérios ficar restritas aos atos cometidos en- sobre os indivíduos.
tre os membros da família, envolvem
agravos à saúde, também a violência que seus mem- Nessa perspectiva tem lugar toda
bros cometem contra si mesmos (sui- a teoria de Parsons que evidencia a
à vida escolar e cídio, abuso de drogas) e os atos co- importância causal das normas, valo-
metidos por seus membros em outros res e expectativas para a conserva-
ao exercício do trabalho. espaços sociais. Tudo isso vai reba- ção da sociedade. Tal evidência se
ter novamente na família. exprime através da concepção dos
quatro sistemas sociais, a saber: ex-
A título de ilustração, pesquisa so- Porém, se existe consenso na pectativa e desempenho de papéis;
bre agressividade de adolescentes em constatação dos fatos e na afirmação organização dos papéis em comuni-
escolas do Rio Grande do Sul apon- de que alguma coisa deve ser feita, dade; estruturação de direitos e de-
tou para a estreita relação entre es- este consenso se esvai, especialmen- veres; adesão aos valores. Nesse con-
ses comportamentos e a presença de te quando discutimos o que fazer e o texto o sistema social é definido como
castigos físicos na história desses ado- como fazer. Pois nesse momento, di- algo especificamente relacional, o
lescentes. ferentes interpretações sobre o fenô- cultural como o conjunto de símbolos
meno são colocadas em movimento e e significados, radicados num siste-
Em se tratando de crianças e ado-
condicionam respostas muito diferen- ma normativo. Ou seja, em códigos
lescentes, tais atos causam um duplo
tes. Então, quais seriam estas inter- que gerariam comportamentos apro-
dano. Duplo porque a violência
pretações? priados de "sujeitos competentes".
impetrada atinge seres humanos em
desenvolvimento, cujas características Em outros termos é a predominância
são a dependência e a vulnerabilidade, da visão de violência como expres-
e comprometem o futuro adulto que a Os caminhos para a inter- são de delinqüência. (COZZI;
criança e o adolescente irão se tornar. prataçlio do fenómeno NIGRIS, 1996).
(FERREIRA; SCHRAMM, 2000). A visão institucional de família
Tais comprometimentos têm sido Tendo como referência os traba- está calcada basicamente na concep-
exaustivamente descritos na literatura, lhos de Seppilli&Guaitini (1974), de ção de que a família seria um
destacando que crianças maltratadas Cozzi&Nigris (1996), a violência ou microssistema que apenas reproduz os
por seus pais tendem a se tomar pais os atos violentos nas sociedades ca- fundamentos do macrossistema soci-
maltratantes, a apresentar comporta- pitalistas podem ser analisados a par- al. A visão funcional estaria vincula-

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da à família, pensada através de um dos delinqüentes crônicos indivíduos não constituem uma ten-
modelo (família nuclear), constituído têm a tendência de serem pas- dência natural, mas a conseqüência
de quatro status-papéis típicos (mari- sivos, deixam passar um de processos de controle promovidos
do-pai; mulher-mãe; filho-homem; fi- grande número de erros [...] pelas classes hegemônicas aos quais
lha-mulher) e das suas relações es- são inconstantes. (CUSSON, se opõem classes ou grupos portado-
truturais que são forjadas de forma a 1996, p.378, 380). res de outros "desenhos" de ordem
serem funcionais à estabilidade inter- social. Dessa forma, os atos de vio-
na e às relações de adaptação com a A inter-relação estabelecida nes- lência não podem ser explicados como
sociedade (DONATI, 1989). ses estudos, calcada no papel uma inadequação de uma casual ine-
institucional ou funcional da família e ficácia dos processos de integração
Com isso, as famílias são coloca-
dos atos de violência como compor- social. Mas ao contrário, a falência
das na base dos comportamentos vi-
tamentos individuais, parece, por um dos processos de integração social, se
olentos, à medida que não desempe-
lado, ter desfocado uma discussão da explicam a partir das contradições
nha ou falha no desempenho de seu
família no contexto de uma socieda- próprias da estrutura econômica, so-
papel institucional de agência de so-
cialização. Sobre isso, os trabalhos, de em transformação. Por outro lado, cial e cultural e da emergência de
fortalecido, direta ou indiretamente, formas diversas ou antagônicas de
acerca de grupos, que apresentam
unia visão da família como produtora consciência social.
comportamentos violentos, têm sido
pródigos em referências. Os estudos de comportamentos patológicos ou Em se tratando da associação en-
sobre delinqüência juvenil da Escola mesmo de uma família patológica. tre violência e família os posiciona-
de Chicago, preponderante nos Esta- Esta idéia estaria embutida, por exem- mentos são muito diferentes. Enquanto
dos Unidos nas décadas de 50 \ 60, te- plo, na categoria de "famílias o eixo da normatividade/estabilidade,
riam como hipótese central que a de- desestruturadas", largamente utiliza- ao centrar a análise dos atos de vio-
linqüência é resultado do afrouxamen- do tanto na literatura como nos rela- lência nas condutas individuais devi-
to dos vínculos que une o adolescente tórios técnicos de serviços. Geralmen- do a problemas no processo de
à sociedade, ou seja, ausência de te, essa categoria tem servido para integração e controle social, coloca a
integração e controle, especialmente designar aquelas famílias que falham família no centro do processo de pro-
primário (CUSSON, 1996). As pes- nas suas funções institucionais, de dução da violência. Ao passo que a
quisas sobre uso abusivo de drogas socialização, cuidado e proteção de vertente orientada pela base do con-
também têm revelado estreita relação seus membros. flito e da transformação coloca a ge-
com processos de desinserimento fa- ração dos comportamentos violentos
miliar e social, isso sem entrar parti- como decorrentes da própria estru-
cularmente na área da criminalidade. O eixo do conflito e da tura social. Isso nos remete à discus-
Esse tipo de análise é facilmente iden- transformação são do que os autores como Chauí,
tificado através das descrições que se Minayo, Baronti e outros têm deno-
fazem das famílias de sujeitos com A segunda corrente teórica, do minado de violência estrutural.
comportamento patológicos. Por conflito/transformação, parte do prin-
cípio que o consenso ideológico-mo- Nessa perspectiva, Baronti (1978),
exemplo, Fréchette e Le Blanc, em
ral não é algo dado a priori e nem a partir de seu estudo sobre a função
1987 descreveram as famílias de jo-
existe enquanto totalidade. Ele é o do estereótipo do criminoso em diver-
vens delinqüentes reincidentes, con-
resultado dos processos de luta e sos períodos da história italiana, con-
siderando uma grande base empírica,
manutenção do poder que envolvem sidera a violência como um subsistema
nos seguintes termos:
necessariamente a imposição de con- social, e ela se revela de diferentes
cepções sobre o bem e o mal, o nor- formas no mundo social que a quali-
Reina nestas famílias um es-
mal e patológico. Dessa forma a vio- fica. A definição da violência, nas
tado generalizado de negli-
lência é pensada como um processo suas mais diversas manifestações e
gências, os pais não estabe-
radicado nos conflitos e nas contradi- implicações, embora realizada de for-
lecem uma disciplina clara e ma contextualizada é condicionada
se mostram mais ou menos in- ções dos sistemas sociais, e é enten-
dida não mais como relacionada aos historicamente e defmida através das
teressados ao ir e vir da evo- relações de produção e dos modelos
comportamentos não funcionais em
lução de seus filhos; os ou- de comportamento econômico, social
relação às normas, mas como
tros membros da família são e interpessoal.
disfuncionais em relação ao funcio-
pouco ligados entre si e namento do sistema social. Portanto, O autor postula que o subsistema
pouco preocupados com o como afirmam Busoni e Falteri da violência ocupa um lugar central
destino comum [...]. Os pais (1980), os processos de integração dos no contexto da sociedade e é cons-

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tituído basicamente por três tipos. O O caminho da perspectiva mesmos conflitos e às mesmas ins-
primeiro refere-se à violência implí- tâncias, sem serem tocadas pelos pro-
cita nas próprias relações de pro-
interdisciplinar crítica
cessos históricos, sociais e culturais.
dução sob a lei da acumulação ca- A respeito disso, são interessantes os
pitalista, através da qual se mantém Essa perspectiva se constrói, cal- estudos sobre o papel desempenhado
a hierarquia de privilégios e de se- cada no eixo teórico do conflito e da pela realidade histórica na organiza-
gurança e para as quais se rende transformação, considerando a vio- ção do psiquismo. Segundo Violante
positiva a exploração, a desocupa- lência como um processo radicado (1997), os acontecimentos, bem como
ção, os riscos no trabalho e os pro- nos conflitos e nas contradições dos os discursos e as injunções que fo-
cessos migratórios. Porém, esses sistemas sociais, porém não perden- ram impostos aos pais durante a in-
fenômenos são vistos como conse- do de vista a perspectiva cultural e fância, inclusive a posição de excluí-
qüências necessárias para a conti- psicológica. do, explorado, de vítima que a socie-
nuidade do processo de desenvolvi- dade impõe ao casal ou à criança, são
mento e correspondentes aos níveis Como nos assinala Seppillli (1974,
tão importantes quanto os que atingi-
de progresso de cada sociedade, e, 1996) as condutas violentas, que se ins-
ram o corpo da criança.
portanto "naturais". Em poucas pa- tauram no espaço doméstico, têm sua
lavras seria a violência econômica, base nos conflitos vividos pelas famílias
que não aparece no momento em decorrentes de modelos culturais (va-
que se realiza, mas se explicita atra- lores, normas, papéis) reciprocamente Algumas pesquisas,
vés de seus efeitos. contraditórios enquanto matrizes de res-
postas alternativas a uma mesma situa- que ao estudarem
O segundo tipo de violência,
ção. A produção de situações dessa
identificada como atual, corresponde
natureza seria originada na vivência de comportamentos ou
à manifestação dos conflitos e \ ou re-
campos de experiências ou pólos
ações das classes subalternas em re-
hegemônicos diversos, ao longo de seu
relações violentas se
lação às condições dominantes, que
curso de vida, condicionados pela pró-
são expressos de formas individuais interessaram pela
ou coletivas. Enquanto o primeiro tipo pria organização econômica e social da
distribuição dos recursos. Essas
se define como violência econômica, construção da dinâmica
a violência atual pode ser definida vivências estariam particularmente re-
como extra-econômica. O terceiro lacionadas aos processos de mobilida- da g famílias através de
tipo de violência é definido como vio- de social em senso estrito (mudança de
lência de esbarramento, ou seja, atra- classe, de profissão), aos processos de suas histórias, puderam
vés de ações seletivas evidencia a mobilidade territorial (processos migra-
atenção social sobre alguns fenôme- tórios) e às rápidas transformações do estabelecer associações
nos de conflito como a razão mesmo contexto sociocultural das famílias e dos
da desordem e da violência. Assim se indivíduos. Todas essas vivências, me- significativas entre os
canaliza os conflitos, de forma confu- diadas pela ordem psíquica, expressam
sa em modelos explicativos. Dentre de formas particulares conflitos que têm processos migratórios,
esses canais, estaria aquele constitu- profundas raízes nas contradições so-
ído pelas formas de absorção e ciais e culturais. os processos familiares
desativação dos conflitos no âmbito De acordo com o autor, os fenô-
de situações particulares onde a vio- e as condutas
menos relacionados a normalidade\
lência é mais tolerada, ou seja, a vio- patologia merecem abordagens
lência doméstica. auto-destrutivas.
metodológicas integradas (cultural,
Pela análise contundente de social, psíquica), para não se incorrer
Baronti (1988) a família seria um es- no risco do reducionismo. Ou seja, As histórias das famílias estuda.
paço de manifestação da chamada transpor para o campo exclusivamente das evidenciaram uma trajetória de
violência estrutural e, mais que isso, econômico fenômenos de natureza crises decorrentes de sucessivas ava-
ela teria um papel importante no pro- psíquica, ou questões sociais para o liações negativas de suas condições
cesso de absorção e desativação dos campo exclusivamente psíquico. Isso de vida e de constantes tentativas de
conflitos sociais. Sob essa ótica tam- poderia significar trabalhar na pers- mudanças que acabavam redundan-
bém poderia ser explicado o pectiva de um naturalismo psicológi- do em novas crises. As histórias
direcionamento do interesse social co, no qual a psique é posta como sem- explicitavam claramente a exposição
sobre essa questão. pre igual, ou seja, relacionada aos da família a campos de experiências

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contraditórios que não lhe permitiam ções. Esses grupos, vão ao longo do lações família e violência, aliada à
organizar o próprio processo de tempo, elaborando uma produção ide- idéia que a forma de interpretação
integração e assim se iniciava uma ológica acerca da cultura familiar, adotada pelos profissionais que traba-
história de sintomas (alcoolismo, vio- esta entendida como um sistema de lham essas questões estão na base de
lência conjugal, negligência e maus crenças, comportamentos e padrões todo percurso interventivo, levam-nos
tratos a crianças e adolescentes, atos de interação, que estão na base da a uma conclusão sob a forma de duas
infracionais). (BRANDÃO, 1997; perpetuação da violência. rápidas observações:
MIOTO, 1994; SOARES et al. 1996).
Tendo em conta as contribuições A primeira concerne ao fato que
Outros estudos sobre as dinâmi- trazidas, especialmente pela vertente a violência doméstica é um fenôme-
cas familiares têm demonstrado que de análise que contempla a noção de no multicondicionado, em cuja dinâ-
os acontecimentos próprios do curso conflito e transformação, podemos mica estão articulados aspectos soci-
de vida das famílias — como nasci- dizer que aos atos de violência que se ais, econômicos, políticos, psicológi-
mentos, mortes, envelhecimento, ca- manifestam nas famílias, ou são pra- cos, culturais que não podem ser tra-
samentos, separações — e as deman- ticados por seus membros em outros tados de forma isolada e nem com-
das individuais de seus membros pro- espaços e contra si mesmos, expres- plementar. Por isso o processo de in-
duzem contínuas transformações no sam conflitos instaurados numa dinâ- tervenção profissional, nesse campo,
caráter dos vínculos familiares, na na- mica familiar construída através de pressupõe reconhecer a complexida-
tureza das competências, nas atribui- uma história repartida e ambivalente de do objeto de trabalho numa pers-
ções de autoridade e de poder, nas em relação a campos de experiênci- pectiva de totalidade e o terreno con-
formas de inserção dos grupos fami- as diversos numa sociedade extrema- traditório sobre o qual as ações pro-
liares na sociedade. Por isso, os mo- mente contraditória e desigual. fissionais se desenvolvem.
mentos de transição provocados pe-
Nesse contexto a família não con-
las vicissitudes da vida familiar tam-
segue se articular como espaço de
bém colocam as famílias em situação Na maioria das vezes
mediação entre os indivíduos e o con-
de vulnerabilidade, que pode ser mai-
texto social e, portanto, as diversas
or ou menor dependendo das condi-
formas de violência, nela expressas, OS profissionais, quando
ções sociais e da qualidade de vida
extrapolam os processos de defini-
(MIOTO, 1997).
ção de culpados e doentes dentro chamados a intervir,
Barudy (1998) ao analisar famíli- desse pequeno espaço. Extrapolam
as que maltratam suas crianças afir- também o exercício do controle des- deparam-se com
ma que o maltrato aparece de duas sas situações (seja através do siste-
formas: como expressão de crises no ma legal, seja através de técnicas Situações que contêm
ciclo vital ou como organizador das psicossociais) tendo em vista apenas
relações familiares (maltrato a supressão das condutas violentas grande carga de sadismo
transgeracional). No caso das crises ou da "patologia familiar", calcada na
familiares, o maltrato aparece à me- "culpa do infrator". e monstruosidade.
dida que a tensão intrafamiliar au-
Nesse sentido Barudy (1998, p. 33)
menta, em momentos de transição por
afirma que num contexto de pobreza,
acontecimentos internos ou externos, Encontram-se de frente com su-
querer detectar as crianças maltrata-
e o contexto social não oferece re- jeitos determinados, que são os da
das pelos seus pais sem esforços para
cursos materiais ou psicossociais que família, e com as "provas materiais"
melhorar as condições de vida das fa-
permitam manejar a crise. Assim a da violência cometida. Nesse momen-
mílias, só serve para aplacar a consci-
tensão aumenta e com ela o perigo to, tanto o Estado como a Sociedade
ência daqueles que são responsáveis
para os seus membros mais frágeis. estão fora e, mais que isso, exigem
pelas injustiças estruturais, ao mesmo
Aumenta ainda mais em relação àque- soluções. Assim se constrói o palco
tempo que mistifica os conflitos soci-
las crianças que têm maiores exigên- para a família, e em nome da defesa
ais que facilitam essa violência.
cias de cuidados (portadores de ne- dos direitos das vítimas da violência
cessidades especiais). familiar, o cerco vai se fechando pe-
O estudo de histórias de adultos rigosamente ao seu redor. Dessa for-
Considerações finais ma, vai se construindo o estereótipo
implicados em maus-tratos permite,
segundo o autor, detectar um conjun- da família violadora de direitos e so-
to de circunstancias familiares e so- A discussão efetuada, a partir das bre ela recai toda ordem de sanções.
ciais presentes em duas ou três gera- interpretações colocadas sobre as re- Dentro desse palco é que os profissi-

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102 Regina Célia Tamaso Mioto

onais desenvolvem suas ações, colo- . Comportamento suicida no em Serviço Social e Política Social
cando em movimento determinada adolescente: aspectos psicossociais. - O trabalho do assistente social e as
concepção sobre as relações entre In: LEVISKY, D. (Org.). Adoles- políticas sociais. Brasília, UNB, 2000.
família e violência (MIOTO, 2001). cência e Violência. Artes Médicas, SEPPILLI, T. Antropologia medica:
A segunda observação refere-se Porto Alegre, 1997. fondamenti per una estrategia. Rivista
ao fato que a intervenção profissional COZZI, D.; NIGRIS, D. Gesti di cura. Italiana di antropologia medica, 1-
pautada na idéia de totalidade e con- ORRIS-Colibri, Milano-IT, 1996. 2, Italia, 1996.
tradição requer o desenvolvimento da
CUSSON, M. Devianza. In: Boudon, SEPPILLI, T.; GUAITINI A. G.
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gicamente a dialética do singular-uni-
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versal-particular (PONTES, 2000).
Antropologia Culturale della
Assim, não basta nomear e saber da DONATI, P. ; DI NICOLA, P.
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existência dos elementos implicados Lineamenti di sociologia della famiglia.
Perugia-IT, 1974.
na construção do fenômeno e nem In: Nuova Italia Scientifica, Roma,
apenas as teorias explicativas que lhe 1989. . Società Italiana per il
dão sustentação. É necessário um Progresso delle Scienze, Napoli. La
. Famiglia, soggetti e politiche
conhecimento profundo do objeto so- aculturazione come problema
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bre o qual se trabalha, para que se metodologico, 1954. Atti della XLV
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possa captar todas as inter-relações Riunione.
possíveis entre as diferentes dimen- FERREIRA, A. L.; SCHRAMM, F.
SGRITA, G.B. Infanzia, maternità,
sões e a forma como elas se articu- Implicações éticas da violência do-
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1 Neste trabalho será considerado
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KATÁLYSIS v. 6 n. 1 jan./Jun. 2003 Florianópolis SC 96-103


Para que tudo não termine como um "caso de família": aportes para o debate sobre ...

longo e que se acham unidas (ou


não) por laços consangüíneos.
Esse núcleo tem como tarefa
central o cuidado e a proteção de
seus membros, e se encontra
dialeticamente articulado com a
estrutura social na qual está
inserido.

Regina Célia Tamaso Mioto


mioto@cse.ufsc.br

Programa de Pós-Graduação em Ser-


viço Social — Mestrado
Centro Sócio-Econômico
Universidade Federal de Santa
Catarina — UFSC
Telefone: 48 3316514

KATÁLYSIS v. 6 n. 1 fan.lJun. 2003 Florianópolis SC 96-103

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