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Eis um livro que vem na hora certa:

Primeiro, por seu tema, um verdadeiro


"manual" para o vocacionado para mis-
sões, colocando-o diante de situações que
ofarão provar averdadeira existência desta
chamada;
Segundo, por seu escritor, pessoa intei-
ramente vinculada aeste "ide" do Senhor, e
que já experimentou na vida o antes, o
durante eodepois deste desafio;
Terceiro, por sua temática voltada para
oalcance do propósito em que estamos em-
penhados, como igrejas batistas, de fazer
missões em um mundo sem fronteiras.

É livro fundamental, principalmente pa-


ra os jovens que estão diante de indagações
sobre sua "chamada missionária" ou mes-
mo sobre o seu melhor preparo para "ir aos
campos", Ele revela caminhos. Aponta problemas. Não esconde dificuldades. Faz
vislumbrar as possíveis vitórias.

Sobretudo ensina que o poder de Deus se manifesta na vida daquele que se


entrega à obra do Senhor de forma sensata, dedicada econfiante.

- .,JUERP
Joed Venturini de Souza

Antes do ide
o que vocêprecisa saber
antes de irpara o campo missionário

à. JUERP-

Rio de Janeiro
© Joed Venturini de Souza, 2005

Todos os direitos de publicação reservados à


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da Convenção Batista Brasileira
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Nossa missão: "Viabilizar a cooperação entre as igrejas


batistas no cumprimento de sua missão como comunidade local"

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil)

250-266 de Souza, Joed Venturini


Joe-Ven
Antes do ide - O que você precisa saber antes de ir para o campo missionário
Joed Venturini de Souza. - Rio de Janeiro: JUERP, 2005
240p. 14x21cm

ISBN 85-350-0251-0

ide, Antes do - O que você precisa saber antes de ir para o campo missionário -
Missões - I. Título

CDD 250.266
Este livro é mais um resultado do convênio firmado entre a JUERP e a JMM
para a promoção da obra de missões mundiais pelas igrejas batistas do Brasil
Sumário

Apresentação 7

Agradecimentos 9

Introdução 11

I. Prepare-se, prepare-se, prepare-se! (Preparando-se para o campo) .15

2. Mas eu não sabia (Adaptação inicial ao campo) 33

3. O propósito da Missão (Definindo os objetivos do trabalho) ..47

4. Fecha tua porta! (Vida devocional no campo) 59

5. Eu te amo, querida! (Vida familiar no campo) 75

6. Febre e Cia. (A saúde no campo) 93

7. Fogo amigo (As relações entre missionários no campo) 111

8. Construindo pontes (Relação com o povo a alcançar) 131

9. Resistir ou atacar? (Batalha espiritual no campo) 147


10. Informando as bases
(Comunicação com as bases a partir do campo) 165

11. E agora? (Crises no campo) 181

12. Está na hora! (Razões para a saída do campo) 193

13. Sucesso ou fracasso? (Uma avaliação do trabalho realizado) ..... 207

Conclusão 223

Notas bibliográficas 231


Apresentação

Eis um livro que vem na hora certa. Não estava em nosso planejamento
editorial para este ano, mas quando chegou-nos às mãos resolvemos,
como toda editora moderna tem que fazer, atropelar no bom sentido, o
nosso programa de edição, e dinamicamente, colocar aquilo que veio ao
encontro de seu objetivo maior, em regime de prioridade.

Foi isto exatamente o que sentimos quando "Antes do ide" chegou à


JUERP. Vivendo o ano de "missões em um mundo sem fronteiras", para
o qual já lançamos o "livro do ano" e a "revista do ano", com um sem-
número de movimentos de despertamento missionário demarcado para
as nossas convenções, associações e igrejas durante todo o transcorrer
do ano, não poderíamos perder a oportunidade de juntar um livro como
este a toda esta temática.

Primeiro, pelo seu tema, um verdadeiro "manual" para o vocacionado


à obra de missões. Sim, o autor consegue com enorme propriedade, pois
viveu tudo isto, colocar no papel de maneira sistemática e coerente todo
o tipo de preocupação e de providências que deve inundar a mente do
vocacionado que se prepara para partir ao campo missionário, como
"marinheiro de primeira viagem".
Segundo, por seu escritor. O Pastor Joed Venturini de Souza mais
uma vez brinda o nosso público-leitor com um material de expressivo
valor quer pelos pontos que aborda objetivando dar ao novo missionário
todo um esquema de planejamento para cercar a sua primeira viagem ao
campo de toda a segurança e previdência possíveis, em todos os aspectos
sociais, familiares, de saúde, de relacionamentos, de cuidados gerais,
quer pelos conceitos e pensamentos que expõe para embasar tudo isto.
Seu conhecimento da literatura geral sobre o assunto e, especialmente,
sua experiência bíblica de tais conceitos, nos dão um panorama literário
dos mais valiosos nesse momento tão complexo por que passa a moderna
missiologia cristã em face de seus desafios.

Terceiro, pela entidade que encaminhou-nos o livro. A Junta de


Missões Mundiais da CBB está perfeitamente inserida no mundo de
hoje neste desafio que representa missionar a Palavra de Cristo em um
mundo sem fronteiras. Sua indicação para a publicação do livro já era,
para nós, antes mesmo da leitura, um fator positivo a apontar-nos sobre a
oportunidade deste lançamento.

"Antes do ide" em suas mãos, então. É livro fundamental para os jovens


que estão diante de dúvidas sobre o seu preparo para missões. Ele revela
caminhos. Aponta problemas. Não esconde as dificuldades. Mostra as
vitórias que poderão ser obtidas. Mas em todo ele, transparece a visão do
autor de que o poder de Deus se manifesta na vida daquele que se entrega
para a obra com dedicação, "de olhos fechados e mesmo sem saber para
onde irá", mas com a certeza de que poderá contar com a presença do Senhor
da obra em todos os momentos, mesmo, "antes de ir".

A JUERP se sente privilegiada mais uma vez em ser canal da inspiração


de missões para o povo batista do Brasil por meio da edição deste livro.
Nossa oração é para que o Senhor o use de forma positiva e crescente em
meio ao nosso público-leitor, especialmente aquele que foi chamado para
ser bênção entre os que não conhecem a pessoa de Cristo.

O Editor
Agradecimentos

cima de tudo agradeço ao Senhor da vida que me salvou, chamou-

A me e tem me permitido servir na sua seara. A ele todo o louvor e


adoração por qualquer vitória que tenhamos.

A meus pais, Pastor Francisco Antônio de Souza e Professora Márcia


Venturini de Souza, por terem me levado a Jesus em tenra idade e
me criado nos caminhos da Palavra de Deus; por terem me incluído em
seu ministério missionário e partilhado os momentos bons e maus; por
terem apoiado meu chamado missionário desde o início; por terem se
sacrificado para que eu pudesse estudar e me formar; por todo o apoio
espiritual e material em oração e amor. Eles estão por trás da maioria dos
conceitos deste trabalho.

À Junta de Missões Mundiais da Convenção Batista Brasileira e a seu


Secretário Executivo Pro Waldemiro Tymchak por "segurarem as cordas"
durante estes doze anos em que temos estado no "fundo do poço".

A todos os missionários com quem convivi e trabalhei de perto e que


acrescentaram algo à minha visão da obra como Lucy Gonçalves Guimarães,
Diné René Lata, Renato Cordeiro de Souza e Norman Harrell.
Aos colegas da missão WEC internacional que têm sido companheiros
no campo de batalha como Fred e Cindy Wieger e Metta Dunlop que
acrescentaram conceitos à nossa visão com suas vidas e obra como
David e Maggie Whitehorn e Thomas e Jutta Weinheimer.

Às colegas, Analita Dias dos Santos e Edna Ferreira Dias, que têm
rido e chorado conosco em Bafatá e visto a obra crescer. Elas têm sido
colegas e irmãs em mais de um sentido e abençoado nossa família e
trabalho grandemente.

De modo muito especial a Ida Helena, minha namorada já há 20


anos, minha esposa, amante, melhor amiga, companheira de cada luta e
baluarte nas horas dificeis. A ela devo a revisão do texto, a clarificação
de idéias e conceitos, o acréscimo de muitas ilustrações e a paciência nos
momentos de desânimo. Esta obra é tanto dela quanto minha.

OAutor
Introdução

medida que o avião começava a descer e uma voz em língua


estranha dava instruções que ele não podia entender, o coração
de João acelerou e ele começou novamente a suar frio.
Rapidamente vieram à sua mente as imagens das últimas semanas. A
despedida na igreja, em que se sentiu como um herói indo ao campo
de batalha. A despedida do emprego onde o fizeram se sentir um tolo
sentimentalista. A despedida da família em que as lágrimas da mãe
pareceram ter o condão de, pela primeira vez, lhe mostrar que talvez, só
talvez, as coisas não fossem tão fáceis quanto ele esperava.

Ao seu lado uma mulher obesa juntava as muitas bagagens de mão para
garantir que não esquecia nada enquanto a aeromoça em vão lhe explicava
que precisava ficar sentada até o avião descer. A aterrisagem foi mais como
uma queda controlada, mas ali estava, finalmente. João agradecia a Deus
por ter conseguido chegar inteiro ao campo missionário.

o aeroporto, se é que merecia tal nome, era uma pequena construção


para onde os passageiros literalmente corriam competindo para entrar
primeiro. Logo João entendeu o porquê. A fila dos passaportes era
enorme e o guarda fronteiriço olhava a todos com a atitude de quem
tinha todo o tempo do mundo. O jovem missionário olhava tudo com
curiosidade e ansiedade. Procurava no outro lado da linha um rosto
conhecido, mas não parecia conseguir encontrá-lo. Foi só quando estava
já perto do balcão de passaportes que divisou com alívio a face sorridente
do missionário veterano que o aguardava.
Antes do ide

A espera pela bagagem e a passagem na alfândega foram outras


aventuras dignas desse nome. Pegar a mala parecia um exercício de luta
livre contra todos os demais passageiros espremidos junto à pequena
esteira rolante. Na alfândega as palavras do colega, já com muitos anos
de campo, tiveram um efeito mágico tipo "Abre-te, Sésamo!", pois os
guardas sorriram e os deixaram passar. João olhava o missionário de
cabelos brancos com verdadeira reverência e pensava para si mesmo:
Um dia serei assim!

Os dias seguintes foram todos de excitação e magia. Tudo era tão


diferente! As línguas eram fascinantes, as cores exuberantes, as comidas
exóticas, as pessoas amáveis, as perspectivas incríveis. Era exatamente o que
ele sempre sonhara. Ou seria mesmo? As primeiras dúvidas vieram quando
foi roubado na feira local. Depois começou a notar que algumas pessoas
pareciam ter um ar de ressentimento para com os estrangeiros. Ao fim de I O
dias, passou bastante mal com diarréia e náuseas devido à mudança da água
e comida. Logo eram as dificuldades em conseguir o visto de permanência.
Será que não sabiam que ele era missionário? Fora convocado por Deus para
esse trabalho! Ele viera trazer o evangelho e seria instrumento de mudanças
radicais nesse país, pensava. Mas as autoridades não pareciam entender todo
o valor deste jovem talento cheio de ideais.

Quando as semanas viraram meses e os meses se aproximavam de


um ano, João estava de volta ao aeroporto. Seu ar já não era de atenta
curiosidade. Tinha falta de brilho nos olhos. Não acompanhava mais
as pessoas andando. Magro e cansado, com a pele num tom levemente
amarelado, estava fisicamente gasto pelas repetidas malárias e com a alma
gasta pelas sucessivas decepções. Afinal, fazer missões não era nem tão fácil,
nem tão divertido como lhe parecera. A promessa de conhecer novas terras
e novas culturas, enquanto espalhava as boas-novas, parecia-lhe agora um
. r,efrão distante de uma propaganda enganosa. A verdade era diferente.

A verdade que ele encontrara, à custa de bastante sofrimento, é


que fazer missões inclui trabalho duro, guerra espiritual do mais alto nível
e, em certos momentos, luta pela sobrevivência fisica e emocional. Ao
fim desses meses, ele percebera que as pessoas não estavam ansiosas por
ouvir o evangelho. A maioria o olhava e o olharia sempre como alguém
de um país rico que podia lhes ajudar financeiramente e os convertidos
nem sempre falavam a verdade sobre suas supostas "conversões". Os
colegas missionários não eram os santos que ele pintara no começo. Havia

12
Introdução

sinceridade entre eles, mas também invejas, competição e, por vezes, até
falsidade. A cultura local, que a princípio parecera tão rica e bonita, era na
verdade uma teia demoníaca de superstições e algemas espirituais contra
as quais era preciso lutar até o sangue. As paisagens belas e exóticas
escondiam malária, febre tifóide, amebíase e outras doenças; calor e
umidade que exauriam as forças e uma alimentação pobre e repetitiva.

Entrando no avião para regressar à sua casa, após menos de um ano


no campo onde pensara gastar a vida, João se sentia um fracasso. De
volta ao Brasil, não queria falar de missões. Sentia rancor para com a
igreja que a certa altura deixara de manter os compromissos financeiros.
Sentia amargura para com os líderes da missão que não tinham dado o
apoio pastoral que ele julgava merecer. Sentia até uma certa raiva surda e
não expressa de um Deus que o deixara na mão lá longe de casa quando
ele se sacrificara tanto para fazer a obra. Lutando para se readaptar à
terra natal, ele ainda sonha com paisagens e rostos de uma terra que um
dia quis evangelizar, mas dificilmente terá forças ou ânimo para pensar
novamente em missões.

******************

Esta história pode parecer radical, mas infelizmente não é. O nome


escolhido foi João, mas poderia ser Ronaldo, Francisco, Ricardo, Maria,
Joana, Valéria. O João de que falei é ficção, mas existem vários por aí para
confirmar os fatos. A sua terra de adoção pode ser na África, Ásia, América
do Sul, Europa. Tanto faz, as experiências é que são as mesmas.

Dizem que o Brasil tem se tornado nos últimos anos um verdadeiro


celeiro de missionários. Nós brasileiros temos nos orgulhado de.enviar um
número enorme de missionários. Mas temos, também, criado uma fama
pouco agradável em muitos lugares do mundo. A fama de que missionários
brasileiros ficam pouco tempo. A fama de que temos sustento precário e
estamos malpreparados em termos teológicos e acadêmicos. A fama de que
nossos trabalhos não têm continuidade.

É provável que esta fama não seja merecida, mas como já diziam os
antigos, "onde há fumaça, deve haver fogo". Com base numa pesquisa

I3
Antes do ide

aprofundada entre organizações mlsslOnárias brasileiras, Ted Limpic


refere que a percentagem de retorno dos missionários brasileiros no
primeiro ano de campo é de 7%1. As principais causas apresentadas nessa
pesquisa foram: falta de sustento, falta de compromisso, problemas com
os colegas, preparo inadequado e problemas de ordem pessoaF. Essa
excelente pesquisa nos dá uma boa visão do que está acontecendo, mas
certamente há mais.

Há aqueles que retornam e não são contabilizados. Há aqueles que


ficam no campo, mas na verdade o deixaram em seus corações, pois não
estão produzindo e apenas agüentam o tempo para terminar o período.
Há aqueles que ficam por falta de recursos para regressar. Há aqueles
que se dedicam a outras coisas que não à obra missionária e desta forma
deveriam ser contados com os que saem.

Nosso objetivo não é ser pessimista. No entanto, encarar a verdade é


necessário se queremos avançar. Se desejarmos ter uma força missionária
bem adaptada e que seja instrumento poderoso de evangelização,
precisamos enfrentar as questões, providenciar respostas e trabalhar
nas soluções encontradas. Temos que reconhecer com Sung-Sam Kang
que "missionários de longo prazo eficazes, produtivos, bem adaptados,
contentes e realizados são as pessoas essenciais que fazem o grosso do
trabalho missionário duradouro e resistente"3.

Nesta obra não pretendemos trabalhar as questões teóricas de


missões. Há excelentes livros nessa área que servem àqueles que querem
se dedicar à obra. Estarei citando vários deles nos próximos capítulos. O
alvo deste trabalho é fornecer uma ajuda prática àqueles no Brasil que
estão pensando em missões ou se preparando para o campo missionário,
em particular os campos no terceiro mundo onde estão os povos não-
alcançados.

Estou no campo missionário há quase 30 anos. Sou filho de missionário,


fui ovelha de missionários no campo, fui colega de missionários e sou
missionário há 12 anos. Vivenciei a vida de missões por vários ângulos.
Meu desejo é fornecer ajuda em assuntos que eu gostaria de ter ouvido
antes de ir para o campo. Analisar os erros e acertos que vi e que cometi
para auxiliar outros nessa senda dificil. Procurarei abordar os temas do
ponto de vista brasileiro. Minha oração é que de alguma forma possa
ajudar futuros missionários a terem sucesso na obra de missões.

14
Capítulo I
Prepare-se, prepare-se, prepare-se!

"Se você fracassar na preparação


está se preparando para fracassar"
Benjamim Franklin

"Qual de vós pretendendo construir uma torre não se


assenta primeiro para calcular as despesas e
verificar se tem os meios para a concluir?"
Lucas 14.28

uando David Livingstone se levantou para falar ao auditório


superlotado na Universidade de Cambridge, em 5 de dezembro
de 1857, deveria ter a noção da importância de suas palavras e
seu apelo final ficou famoso: "Eu imploro para que dirijam a vossa atenção
para a África; eu sei que em poucos anos minha vida será cortada naquela
terra que está hoje aberta; não deixem que se feche novamente. Eu volto à
África para tentar abrir uma senda para o comércio e o cristianismo; levem
adiante este trabalho que comecei, deixo-o com vocês!"

A verdade, porém, é que nem Livingstone podia imaginar o impacto


que seu discurso teria no continente africano nos 60 anos seguintes.
Começando com suas palavras e passando pela descoberta de sua morte
Antes do ide

às margens do Rio Molilamo em maio de 1873, a Europa se voltou para


a África e desencadeou uma autêntica corrida ao ouro que culminou com
a divisão do continente entre as potências da época.

Dos inúmeros episódios pitorescos desta corrida, ressaltamos a luta


pela bacia do Rio Congo. A morte de Livingstone, a Europa tinha já
muitos territórios na África. Assim, os portugueses estavam estabelecidos
em Angola, Moçambique, Guiné e Cabo Verde. Os ingleses tinham mão
forte no Egito e na África do Sul, enquanto a França se concentrara no
Senegal e regiões adjacentes. O mapa ampliado pelo famoso missionário
explorador prometia, no entanto, outras zonas onde as riquezas poderiam ser
incalculáveis. Talvez a mais misteriosa e cobiçada fosse a bacia do Congo.
Quem controlasse o comércio nesse rio e tivesse uma boa base estabelecida
na sua bacia poderia levar os tesouros escondidos do interior do continente.

Dois homens se dispuseram a levar a cabo essa obra hercúlea. Um


deles, financiado pelo ministério dos negócios estrangeiros da França,
chamava-se Pierre Savorgnan de Brazza, filho de um conde italiano.
Brazza se alistara na marinha francesa e se apaixonara pela África. O
explorador tinha um ar idealista e romântico que conquistou o público de
então. Sua ousadia arrojada e seus métodos suaves ganharam a aclamação
geral, uma vez conhecidas suas aventuras. Ele iniciou a corrida à bacia do
Congo com meses de atraso, mas escolheu um itinerário diferente de seu
adversário e que provou ser mais rápido.

Seu oponente era Henry Morton Stanley, filho de irlandeses. Ele fora
rejeitado na infância e criado num orfanato de onde fugira para embarcar
rumo aos Estados Unidos. Na América ele fez amizade com um rico
mercador inglês que o adotou, ajudou a completar sua educação e se tomou
o pai que nunca tivera. Stanley adotou o nome do seu remidor (à nascença ele
fora batizado John Rowlands) e veio a se tomar o jornalista correspondente
do New York Herald que, numa missão ousada, encontrou o desaparecido
Livingstone, num dos episódios mais conhecidos da vida do missionário. O
encontro com Livingstone mudou a vida de Stanley que passou a se dedicar
à África e à sua exploração. Ele ansiava pela aprovação inglesa, mas foi o rei
Leopoldo da Bélgica que o financiou na corrida pelo Congo.

No ano de 1879, com alguns meses de intervalo, as duas expedições


partiram. Stanley partiu primeiro, mas escolheu subir o Rio Congo, o que
significava enfrentar várias cataratas quase intransponíveis. Brazza foi pelo
norte através do Rio Ogowe. A grande diferença entre as duas expedições

16
Capítulo I -Prepare-se, prepare-se, prepare-se!

estava no nível de preparação delas. Enquanto Brazza caminhava rápido,


com um grupo com poucos mantimentos e soldados, Stanley avançava com
centenas de carregadores, barcos desmontáveis, material de construção e
toneladas de mantimentos para enfrentar as cataratas. Brazza chegou à
bacia do Congo pelo norte em agosto de 1880, quase um ano antes de
Stanley, mas estava exausto e sem mantimentos. Tudo que pôde deixar na
miserável estação, a que chamou Brazzaville (hoje capital da República do
Congo), foram duas cabanas de palha com alguns soldados senegaleses e
uma bandeira tricolor gasta. O próprio Brazza sobreviveu apenas porque
recebeu ajuda numa das estações intermediárias de Stanley.

A expedição financiada pelo rei da Bélgica só chegou à bacia muito


depois, mas quando o fez tinha várias estações construídas no caminho,
dispunha de barcos para explorar o rio e fazer tratados com os reis locais
além de material de construção para tomar Stanleyville uma estação modelo
(hoje Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, ex-Zaire).
Quando dois anos depois as potências européias se sentaram à mesa na
Conferência de Berlim, a pequenina Bélgica pôde reclamar uma fatia muito
maior do Congo do que a forte França. Tudo porque Stanley tinha realmente
se preparado para a missão que recebera. A preparação fizera a diferença.

Esta é apenas uma de centenas de histórias que confirmam a importância


da boa preparação no sucesso de qualquer missão. Seja na apresentação de
uma peça de natal, na tentativa de passar no vestibular ou na construção de
uma casa, a preparação será fator decisivo para a vitória. Quanto maior a
missão, maior deve ser a preparação. Quanto mais importante a tarefa, maior
deve ser a preocupação na fase de treinamento. Por isso nos alarma verificar
a citação do relatório Brierley por Margaretha Adiwardana, notando que o
treinamento inadequado está em 17° lugar entre as 26 causas de retomo
prematuro dos missionários, mas no Brasil é a causa número um I. Isso depõe
contra o nosso costume brasileiro de "fazer em cima do joelho". Tenho
ouvido, não poucas vezes, a idéia de que para ser missionário no terceiro
mundo não é preciso muita formação, basta carregar a Bíblia e saber pregar.
Há mesmo quem pense que aqueles que vão para missões nesses locais
remotos são os que não conseguiram se dar bem no Brasil.

A verdade é que para ser bem-sucedido em missões, como em qualquer


coisa na vida, é preciso preparação adequada. Quanto mais dificil e carente
o campo, mais será exigido do missionário e maiores serão as pressões
para o fracasso e a desistência. Talvez por isso nossos missionários "só
com a Bíblia" têm dificuldades em realizar um trabalho significativo e

17
Antes do ide

que permaneça. O pastor Edson Queirós comenta: "Creio que com todo o
empenho missionário da América latina, muitos têm se disposto à missão
por motivações errôneas: uns motivados por emoções, outros por um
espírito aventureiro, alguns por curiosidade, outros por desejo de ver o
reino de Deus se espalhar, mas sem a capacidade de executar a obra. Por
isso creio que os candidatos à obra missionária deveriam ser submetidos
a uma seleção forte e estrita"2. Neste capítulo pretendemos pensar
exatamente sobre essa seleção e a preparação para a missão. Trataremos
da preparação antes de ir para o campo em suas várias vertentes.

1. Convicção de chamada

Verificamos que a falta de chamado é a segunda causa de retomo


prematuro entre missionários dos Novos Povos Enviadores (o Brasil
entre eles) no já referido relatório. Conhecendo as dificuldades
enfrentadas nos campos missionários, principalmente no trabalho com
povos não-alcançados, fica evidente a importância da convicção de
chamada. Haverá momentos em que isso é tudo que o missionário terá
para se firmar. Essa convicção será sua tábua de salvação. Se não a tiver,
certamente afundará.

Gostaria de propor alguns pontos para ajudar na definição da chamada.


Reconheço que se trata de um assunto muito pessoal e como tal é dificil
ser 100% objetivo, mas há aspectos que podemos considerar.

1.1 - Em primeiro lugar, referiria à atividade na obra de Deus

Sempre me parece estranho quando alguém que não coopera na


igreja se sente chamado para missões. É como aquela velha idéia de que
salvamos certas pessoas dando a elas responsabilidades na igreja. Se o
indivíduo não mostra interesse em ministrar na sua comunidade, se não
mostra amor pelos perdidos entre seu próprio povo e família, como é que
vai ministrar numa terra distante, entre um povo estranho? Minha mãe
era muito sábia nesse aspecto. Quando lhe referia minha chamada para
missões, ela gentil, mas firmemente, lembrava-me que a missão começa
aqui e agora. Campo missionário não é lugar de se fazer turismo. Também
não é o jeito para se resolver a situação de um jovem problemático na
igreja. Se tiver problemas no Brasil, eles certamente tendem a aumentar
numa terra desconhecida sob o stress da adaptação cultural. Devemos
reconhecer que um chamado coerente é aquele que surge no coração

18
Capítulo I -Prepare-se, prepare-se, prepare-se!

de alguém que já está engajado na obra. Se o candidato está ativo na


sua igreja, este será o primeiro passo para confirmar a honestidade do
chamado e começar a preparação.

1.2 - Em segundo lugar, colocaria


a necessidade da submissão à autoridade

o trabalho missionário é feito, regra geral, sob a direção de uma


missão ou igreja. No campo raramente estaremos sozinhos. Normalmente
haverá equipes missionárias. A necessidade de trabalhar em grupo
e respeitar a autoridade é algo fundamental nesse contexto. Muitos
problemas seriam evitados se na fase de "chamada" fosse verificada a
capacidade do candidato de trabalhar em equipe e respeitar superiores.
Soldados insubmissos à frente de batalha só trazem problemas para si
mesmos e para o resto das tropas.

1.3 - Em terceiro, lembraria a disponibilidade para treinamento

Neste capítulo, em que falamos de preparação, parece redundância,


mas é preciso referi-lo. Jovens candidatos a missionários têm a tendência
de pensar que o mundo vai acabar se não forem para o campo amanhã. A
idéia de passar anos estudando ou treinando os apavora. Querem sair para
o campo dentro de, no máximo, um mês. Mas os anos de treinamento não
são de modo algum desperdício. Cada conhecimento adquirido pode se
mostrar vital na obra a desenvolver. Uma vez no campo, a oportunidade
de treinamento acabou. Portanto, a hora de se preparar é antes de seguir.
Precisamos começar a mudar a nossa maneira de pensar nessa área e
reconhecer como Bertil Ekstrom que: "Particularmente na América
Latina a tendência é enviar pessoas antes que estejam preparadas, em
vez de mantê-las esperando e treinando o tempo que for necessário"3.

1.4 - Por último, eu referiria à vida de comunhão

Nesta sociedade das coisas instantâneas há cada vez menos ênfase nas
disciplinas espirituais. A simples menção do tema traz arrepios na coluna
de muitos. Mas a vida de comunhão, que vem sobretudo da oração e
do estudo da Palavra, será fundamental na sobrevivência e eficiência
missionária. Deus falou no passado e fala hoje. Creio que o Espírito
sussurra mais do que grita. Para ouvi-lo é preciso tempo. Não se pode
buscar Deus esporadicamente e pensar que vamos entender sua voz. O
Senhor está mais preocupado com o nosso caráter do que com nosso

19
Antes do ide

serviço. Quando somos o que ele quer, mediante uma vida de comunhão
ativa, não temos dificuldade em saber os planos de Deus. O ser deve
preceder o fazer e o falar.

Ouvir Deus é um pouco como escutar uma emlssao de rádio


em ondas curtas. Não dá para sintonizar uma vez e esquecer. Há
necessidade constante de sintonia fina para não se perder o contato.
Um candidato a missões sem vida devocional está, possivelmente,
apenas sob o efeito de um apelo emocional. Desse modo, ele está longe
de preencher as necessidades de um futuro obreiro. Perguntei a certo
líder evangélico africano sobre o que ele achava importante para um
missionário antes de vir para o campo. Sua resposta foi: "Fé firme e
vida comprometida".

Neste ponto os pastores e líderes de juventude terão papel fundamental.


Orientar aqueles que aparecem com uma chamada é sua função. Questionar,
ajudar, aconselhar sim, mas fazê-lo de forma franca e honesta. Orientar não
temendo expor as falhas e apelando ao bom senso. Isso só por si já seria
decisivo na triagem dos muitos que surgem com chamada missionária.

2. Preparação acadêmica

Quando se fala de preparação logo se pensa em seminário ou Instituto


Bíblico. Certamente essa é uma das etapas importantes da preparação.
Hoje, felizmente, temos muitas escolas no Brasil que oferecem cursos
na área de missiologia ou teologia, com especialização em missões. A
missiologia como ciência cresceu muito. Temos muitos livros, apostilas
e fitas de treinamento, o que é bom. Há, no entanto, nessa abundância de
material, a necessidade de escolher bem para obter a melhor formação
possível. Não pretendo mencionar escolas, o que poderia se tornar
injusto. Vou apenas delinear princípios para uma boa escolha.

Em primeiro lugar, o candidato terá toda a vantagem se escolher


um curso de missões ou de missiologia em vez de um curso teológico
ou bíblico. As matérias abordadas têm muito mais a ver com o futuro
trabalho no campo e o aproveitamento será muito maior. Cursos com
professores conceituados ajudam, pois temos nomes sonantes nessa
área em nosso país, mas essa não deve ser a única fonte de referência.
Algumas questões úteis são: Algum dos professores foi missionário? Há
algum missionário treinado nesta escola que está fazendo um trabalho de

20
Capítulo I -Prepare-se, prepare-se, prepare-se!

valor? Tenho como contatar antigos alunos a fim de saber como avaliam
a formação que tiveram?

Lembro-me de meus tempos de vestibular. Sabia que queria fazer


medicina, mas onde? Estava em Portugal e só havia 5 faculdades a escolher.
A mais famosa era a de Coimbra, a maior era a Faculdade de Medicina de
Lisboa. Conversei com vários médicos e procurei obter informações sobre
a formação e o efeito prático da escola na vida médica. Queria uma escola
que não somente me desse um título, mas que me desse experiência e me
preparasse para o trabalho na prática. Após várias consultas fiquei admirado
de ver que a indicação caía sobre a Faculdade de Ciências Médicas de
Lisboa, por várias razões. Não era minha primeira e nem segunda escolha
a princípio, mas, depois das consultas, foi a que coloquei no topo das
preferências. Felizmente foi essa a faculdade que cursei e não me arrependo
em nada, pois as indicações recebidas se mostraram corretas e muito úteis.

Escolher uma escola que tem missionários como professores e tem


antigos alunos no campo é uma forma de garantir que vai receber não
apenas boa formação acadêmica, mas conhecimentos práticos que
poderão ser de valor inestimável no campo. Muita gente pode dar boas
aulas e seguir currículos, mas apenas aqueles que estiveram na frente de
batalha sabem na pele o que é que o missionário vive e sente. É desses
conhecimentos também que estamos atrás.

Outro fator importante na escolha da escola é o lado prático da


formação. A escola oferece oportunidades de estágio? Há alguma
ligação entre a escola e alguma instituição missionária? Há algum apoio
dado pela escola aos antigos alunos que agora estão no campo? Uma
escola que já prevê um tempo de experiência transcultural pode oferecer
vantagens em relação a outras.

Regra geral, o aluno se forma e segue para o campo sem que haja
qualquer ligação à sua escola. Mas essa ligação com os ex-alunos poderá
ser uma grande fonte de beneficio para a escola e o missionário. Seria
uma forma de fornecer apoio pastoral e técnico ao obreiro no campo e
receber informações da linha de frente que podem revolucionar a forma
de ensinar. Poderiam ser testadas teorias e confirmar regras numa
relação que beneficiaria a todos.

Ainda na área de formação acadêmica, seria muito útil se o candidato


fizesse algum curso de aprendizado de línguas como o curso de Lingüística

21
Antes do ide

e Missiologia da missão ALEM que pode ser feito em Brasília. Há outros


cursos do gênero que também fornecem bases para o aprendizado da
língua. Essas medidas facilitarão bastante o trabalho no campo.

3. Sustento financeiro

Constatamos, infelizmente, que "as agências brasileiras mencionam


a falta de sustento financeiro como a principal causa isolada de retorno
de missionários", cita Ted Limpic 4 • O Brasil é um país rico, mas uma
camada expressiva do povo evangélico não é. O Brasil é um país rico,
mas nem sempre a prioridade das igrejas está em missões. Quando as
dificuldades apertam, o primeiro corte é em missões, e lá se vai o sustento
do missionário. Logo, fica evidente que ter uma base segura de sustento
é parte importante da preparação para o campo.

Um fator decisivo aqui é que o candidato seja membro efetivo e


atuante de uma igreja. Isto se prende ao que dissemos sobre o chamado.
Fica muito mais fácil a igreja se comprometer de forma fiel e de longo
prazo com uma pessoa conhecida e ativa na igreja. Candidatos sem igreja
ou com pouca ligação às suas igrejas estarão em risco neste quesito
tão importante. Obter sustento prioritariamente entre aqueles que o
conhecem bem deveria ser um dos alvos do candidato. Fica mais difícil
parar de enviar oferta a um missionário que conheço pessoalmente e que
fez um bom trabalho onde vivo.

No contato com irmãos ligados a negócios e empresários, os candidatos


devem estar preparados para dar a eles boas razões para contribuir. Um
projeto bem organizado e estruturado vai certamente despertar mais interesse
que um simples "vamos ganhar almas para Jesus". Há muitas pessoas de
valor em nossas igrejas, homens de negócios e empresários de sucesso que
estão dispostos a investir em missões, mas são homens e mulheres que lidam
com um mundo de alvos e metas bem definidos. A mensagem pregada
habitualmente pelos missionários nas igrejas não vai sensibilizá-los. Uma
apresentação séria e bem preparada de um projeto missionário com "cabeça,
tronco e membros" vai ser bem mais interessante. Ter algum material escrito
para deixar com eles também. Elaborar um folder simples com a apresentação
do projeto e os alvos bem delineados pode fazer maravilhas.

Lembro-me de um empresário que me convidou a seu gabinete. Na


igreja em que o encontrara, estava vestido muito informalmente pelo

22
Capítulo I -Prepare-se, prepare-se, prepare-se!

que fiquei surpreendido com o luxo de seu escritório. Ele me recebeu


muito bem, mas estava claro que não me chamara para ouvir um sermão.
Ele era um homem ocupado, cheio de compromissos e negócios. Minha
função era convencê-lo de que valia a pena investir em missões e
particularmente no meu projeto. Felizmente tive boa orientação de um
amigo que me despertou para a necessidade de estar preparado para essas
ocasiões. Tinha um foi der com fotografias e até a planta do projeto. O
irmão ouviu minha exposição e no fim fez uma doação de mais de 50
mil reais, que permitiu a construção de uma escola com dez salas de
aulas e uma clínica com dois consultórios. Vale a pena estar preparado!
Nunca sabemos quando uma situação destas vai surgir. Falaremos sobre
a preparação do projeto missionário mais detalhadamente no capítulo 3.

Outro fator que pode ser decisivo na questão do sustento é a escolha da


agência missionária. Mais uma vez notamos que hoje o Brasil tem várias
agências enviadoras de missionários, bem como igrejas de grande porte
que o fazem de forma independente. Isso tem o seu lado positivo e revela a
força que nosso país tem para se tomar uma bênção para o mundo por meio
da evangelização. Todavia, como não poderia deixar de ser, há um lado
negativo nesse crescimento de agências missionárias. Nem todas estão
conseguindo sustentar missões e missionários como é desejável. Talvez
haja um pouco de triunfalismo em aumentar o número de missionários
sem dar condições aos que já estão no campo. Talvez fosse possível maior
cooperação a fim de que as brechas no sustento fossem colmatadas.

Para começar há que conhecer a política econômica da missão. Há


alguma regra na determinação do sustento missionário ou depende do
que este vai levantar? Caso dependa só do que vai ser levantado, qual é
a quantia necessária para a sobrevivência no campo escolhido? Deve se
notar que as necessidades variam bastante de campo para campo. Qual
a percentagem do levantado que fica com a missão? Há casos em que
o missionário levanta uma boa oferta, mas esquece que parte dela deve
servir à missão e seus gastos. Como será feito o envio? O campo em
vista tem estruturas bancárias que permitam ajuda rápida? Nos casos
em que não há como enviar verba rapidamente, o missionário precisa
estar provido para emergências. Se as igrejas que se comprometeram
com o missionário falharem a missão tem alguma forma de "segurar"
o missionário? Há alguma regra ou cláusula que tem como punição o
corte do sustento no campo? Este assunto não pode ser ignorado. Há
que haver clareza por parte da missão e o candidato deve perguntar
para ficar avisado. Como os outros missionários dessa missão que estão

23
Antes do ide

presentemente no campo encaram a questão do sustento? Há algum ex-


missionário dessa missão a quem se possa argüir nesse sentido?

Estas questões podem parecer levantar dúvidas sobre as organizações


missionárias e sua honestidade. Não é o caso. Estamos falando de missionários
que vão deixar suas terras. Irão viajar para lugares distantes, muitas vezes
com esposa e crianças pequenas e que poderão amanhã se descobrir em
graves apertos financeiros, sem terem a quem recorrer. Infelizmente já vi
situações de cortar o coração, por isso insisto que o candidato deve buscar
transparência num assunto tão básico. Um missionário que vive preocupado
com seu sustento dificilmente vai ter condições mentais e espirituais para se
dedicar de coração inteiro à obra. Vai se tomar um problema para os outros
missionários na sua região e um mau testemunho para os nacionais da terra,
crentes e descrentes. Por tudo isso, enfatizamos a necessidade do candidato
se preparar financeiramente para o campo.

4. Agência missionária

Já falamos sobre a escolha da agência enviadora do ponto de


vista do sustento, mas há outros aspectos a considerar nessa escolha.
Lembremos que desentendimento com a entidade enviadora é uma causa
de retomo prematuro, logo, a escolha da missão que vai representar é
algo decisivo.

Inicialmente se coloca a questão de ir ao campo por uma agência


missionária ou diretamente enviado pela igreja. Cresce a idéia de que o
ideal é ser enviado pelas igrejas. Mas essa posição tem suas desvantagens.
Se pode parecer mais próximo do modelo bíblico e oferecer um apoio
mais caloroso ao missionário por outro lado são poucas as igrejas que
têm condições de arcar sozinhas com os custos do envio e sustento de
missionários. Isso excluiria as milhares de igrejas de médio e pequeno
porte que ficariam de fora do esforço missionário. Esse desperdício
impensável é resolvido pela existência de organizações que permitem às
igrejas fazer missões em conjunto com suas co-irmãs em Cristo.

o problema da igreja que envia missionários independentes passa pela


dificuldade de dar apoio logístico. Será preciso todo um grupo de pessoas
trabalhando na sede no Brasil para permitir que o missionário opere no
campo. As igrejas têm essa noção? Até que ponto essas igrejas têm a
capacidade de apoiar equipes no campo com todos os custos que isso

24
Capítulo I -Prepare-se, prepare-se, prepare-se!

acarreta? E o regresso do missionário? Haverá meios para sua reintegração


na sociedade brasileira? Além do que, depender de uma só igreja tem se
mostrado perigoso do ponto de vista do sustento. Se mudar o pastor, muda
a filosofia da igreja e muitas vezes a primeira área a sofrer é missões. Com
todos os ventos de doutrina que sopram pelo Brasil, é relativamente comum
as igrejas mudarem suas ênfases e normalmente quem paga o preço dessas
mudanças é aquele que está longe no campo e nem sabe por que o salário
deixou de chegar. Não estamos com isso negando o valor e o esforço de
algumas igrejas que sozinhas estão fazendo um belo trabalho missionário,
apenas chamamos a atenção dos candidatos para os riscos dessa opção.

Tendo dito isso, passemos às questões pertinentes à escolha de uma


agência missionária. O candidato no Brasil tem várias opções. Alguns
detalhes a considerar serão os seguintes: linha denominacional, tipo
de liderança, qualidade das relações missão-missionário, projetos em
andamento e testemunho dos efetivos dessa agência.

A primeira questão é denominacional. Se o candidato tem fortes


convicções doutrinárias deveria buscar uma missão que trabalha nessa linha
de pensamento. Muitas missões se apresentam como interdenominacionais.
Mas qual é a verdadeira linha doutrinária dominante? Pode ser que o líder
no campo escolhido seja muito firme nessa questão apesar da missão não
o ser, logo, as possibilidades de problemas são grandes. Se a agência não
tiver cor doutrinária então com que denominação trabalha no campo? Se
vierem a fundar igrejas, de que tipos serão? Responder a isso pode facilitar a
compreensão da linha que é seguida e orientar o candidato a saber se vai se
sentir à vontade nesse meio. Sou totalmente a favor da cooperação das várias
denominações no campo missionário, mas sou também realista para saber
que nem sempre isso é possível e em alguns casos cria problemas dificeis
de serem ultrapassados. Creio por isso mesmo que o candidato deve saber
muito bem qual é a linha doutrinária da agência que pretende representar.

A segunda questão é o tipo de liderança que a missão usa. É liderança


hierarquizada? Há liberdade para o missionário direcionar sua atividade
ou deve seguir estritamente as orientações dos líderes? Há líderes
no campo que o candidato escolheu ou ele é pioneiro? A liderança é
acessível ou está ocupada demais para lidar com o candidato? Recordo-
me muito bem de ter escrito ao Pro Alcides Teles de Almeida quando
tinha 10 anos de idade me apresentando a ele como futuro missionário.
Eu era então filho de missionários nos Açores, ilhas portuguesas e Pro
Alcides era o Secretário Executivo da Junta de Missões Mundiais da

25
Antes do ide

Convenção Batista Brasileira. Pois ele me respondeu com uma bela


carta, bem pessoal, incentivando-me e abrindo as portas de sua missão
para mim. Para um garoto de 10 anos aquilo foi muito importante.

A relação que vai haver entre o missionário e a missão vai depender,


sobretudo, do tipo de liderança vigente. Se o candidato não sabe muito
bem o que pretende fazer no campo e está disposto a ser guiado na
escolha do trabalho, pode muito bem se adaptar a uma liderança forte e
autoritária que determina onde, como, quando e porque as coisas devem
acontecer. Se por outro lado é um indivíduo com uma visão clara e forte
do que pretende fazer, deve buscar uma liderança mais aberta ao diálogo
e que dê maior liberdade aos missionários nas suas escolhas e decisões.
Precisamos dos dois tipos de missionários e dos dois tipos de liderança.
Uma forma de medir o tipo de liderança vai ser por meio do diálogo
direto com esta. Também será útil o contato com missionários que estão
no campo e outros que já regressaram ao Brasil e serviram com essa
missão. Não é exagerado realçar essa questão visto que esta relação
missão-missionário pode facilitar a vida no campo ou torná-la mesmo
impossível.

Uma última sugestão na escolha da agência é o tipo de projetos


em que está envolvida. Há missões que são fortes em trabalhos muito
específicos. Se a agência está acostumada com o envio de médicos-
missionários e o candidato é professor de seminário talvez deva procurar
outra instituição onde seus dons e talentos sejam mais valorizados. Saber
que tipo de projetos a missão tem em andamento vai dar uma idéia se
o sonho do candidato será ou não bem recebido no seio desta. Ter uma
noção clara do que se espera do missionário no campo antes de partir vai
diminuir bastante as tensões iniciais.

Depois de escolhida a agência, será valioso que o missionário se


identifique e passe a ver a missão enviadora como sua família. Ele deve
se sentir parte dela e não ver a missão como um simples meio para chegar
ao campo. Desse modo sua lealdade será bem maior e os retornos por
parte da missão também.

5. Cuidados com a saúde

A preparação na área da saúde tem sido bastante negligenciada pelos


missionários. Parece haver uma certa idéia de que uma vez no campo a

26
Capítulo I -Prepare-se, prepare-se, prepare-se!

saúde vai se tornar de ferro por alguma ação especial do Senhor. Não
tenho dúvida de que Deus protege e pode curar. Todos conhecemos as
recomendações claras que foram dadas a Willian Carey no sentido de
desistir de sua missão à Índia, pois sua saúde não suportaria o clima. Ele
foi e viveu na Índia por décadas. Conheço uma candidata a missões que,
confrontada com crises epilépticas, orou ao Senhor de forma clara: "Se
devo ser missionária então me cure deste problema..." e dizendo isso
jogou fora a medicação e nunca mais teve nenhum ataque, embarcando
numa vida de mais de 30 anos de trabalho missionário valoroso.

Infelizmente conheço também casos de mlSSlOnanos que


negligenciaram essa questão e alguns por pouco não pagaram com a vida.
Um jovem que tinha epilepsia desde a infância simplesmente esqueceu a
medicação ao sair para o campo. Seu quadro se agravou, complicado por
uma crise de malária e esteve aos pés da morte. Outro, com problemas
cardíacos, deixou de tomar os medicamentos ao seguir para um país
onde o clima quente e úmido era particularmente difícil para seu estado.
Foi parar nos cuidados intensivos de um hospital numa cidade pobre do
terceiro mundo, uma experiência que jamais esquecerá.

O que queremos salientar aqui é que o candidato deve se preparar


no âmbito da saúde antes de seguir para o campo. Começando por um
bom check-up para excluir problemas até então desconhecidos. Se
tiver problemas crônicos como diabetes, hipertensão, alergias, asma
ou bronquite, insuficiência renal, reumatismo ou doenças ósseas,
Doenças hormonais e outras, deve consultar seu médico sobre as
implicações de ir morar num outro país. Se precisar de medicação em
base permanente, deve verificar se no seu país adotivo vai encontrar
esses medicamentos. Depender do envio de medicação do Brasil é
entrar por um caminho que tem muitos riscos. Primeiro porque é
difícil mandar remédios do Brasil e, segundo, porque em muitos
lugares o correio não é seguro.

O check-up deve incluir todos os membros da família, sem deixar de


fora as crianças. Elas têm maior poder de adaptação, mas são também
mais vulneráveis às mudanças de clima, alimentação e água. Verifique
a necessidade de vacinas obrigatórias para onde está indo. Em muitos
países não se pode entrar sem certas vacinas como a da febre amarela.
Peça informações na Embaixada do país para ter a certeza de não estar
esquecendo nada. Pretendemos desenvolver o tema saúde no campo de
forma mais completa no capítulo 6.

27
Antes do ide

6. Apoio pastoral

Eis outro tema que é fonte comum de reclamações dos missionários.


Quase todos que conheci, de um modo ou de outro, reclamavam da falta
de apoio pastoral. Creio que há passos a serem dados na preparação que
poderão ajudar a minorar esta dificuldade.

No Brasil estamos acostumados a ter uma igreja em cada esquina. A


concentração de evangélicos cresce a olhos vistos. Há programas de TV
evangélicos quase a todo instante. Há estações de rádio evangélicas com
música e pregação 24 horas por dia. Há muitos e bons livros, de autores
consagrados nas nossas livrarias e um crescente número de editoras
trabalhando especialmente para o público cristão. Há revistas e jornais
evangélicos sendo vendidos nas bancas de jornal. Há fitas K7 e de vídeo
com mensagens disponíveis de bons pregadores e de cultos de adoração
bem como uma inflação de cantores e grupos musicais de todos os
gêneros, do samba ao pagode, do sertanejo ao rock, todos evangélicos, ou
pelo menos assim se intitulam. Há congressos e retiros com palestrantes
famosos em lugares aprazíveis a cada fim de semana.

Com esta variedade de material à disposição, é difícil imaginarmos


que ao sair do Brasil o missionário vai viver em lugares onde a aridez
espiritual é total e assustadora. Há países inteiros onde não há um livro
cristão para comprar. Muitas vezes não haverá outra igreja para assistir e
o missionário é chamado a dar de si, até o ponto da exaustão, sem receber
nada em retorno no campo espiritual. É então que ele vai sentir a falta
de apoio espiritual, pois ao contrário do que corre em certos círculos,
os missionários são pessoas comuns, com suas fraquezas e falhas.
Missionário também desanima, também fica triste; missionário também
precisa de pastor e de ajuda espiritual. Eis algumas sugestões para o
candidato preparar uma boa retaguarda antes de seguir para o campo.

Um aspecto essencial, apesar de pouco visível, é a equipe de intercessão.


Trata-se da retaguarda espiritual daqueles irmãos e irmãs que suportam
verdadeiramente o trabalho em oração. Não estou falando daqueles que
oram esporadicamente por missões ou durante as campanhas. Não estou
falando daqueles que apenas oram por nós. É possível orar por alguém e
não estar intercedendo. Estou pensando naqueles que têm um verdadeiro
dom ou ministério de intercessão. Que se preocupam em orar fielmente
todos os dias e que são sensíveis à voz de Deus para interceder em
momentos de crise, que muitas vezes nem entendem.

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Capítulo I -Prepare-se, prepare-se, prepare-se!

Recordo-me de um momento particularmente dificil de nossa vida no


campo quando nosso primogênito, Gabriel, estava muito doente com uma
infecção intestinal. Com os limitados recursos à minha disposição tentei
tratar dele. O hospital da cidade não inspirava a menor confiança e sabia
que não podia contar com mais ninguém. Nessas horas ser pai e ser médico
é quase insuportável. Eu o via definhando diante de meus olhos e sentia
que escapava de minhas mãos. Então, numa noite em que o desespero já
começava a tomar conta, orei em agonia: "Senhor, tem misericórdia, tu sabes
que não tenho forças para isso, não estou preparado para perder Gabriel". Foi
um grito de angústia na noite africana e o Senhor ouviu. No dia seguinte, meu
filho começou a melhorar e hoje está aí rondando o computador enquanto
escrevo, querendo saber se vou ter tempo para ir jogar bola.

O importante dessa experiência foi o que descobri mais de um ano


depois, quando visitava uma querida igreja em Campos, Rio de Janeiro.
Uma de nossas intercessoras fora tocada pelo Espírito Santo para orar
especificamente pelo Gabriel certa noite. Não entendera por que, mas
respondera à pressão do Senhor. Orou e chorou em agonia sem entender
a razão, mas profundamente angustiada e clamando pela vida de Gabriel.
Orou e clamou até que sentiu paz para descansar. No dia seguinte ligou
para nossa missão, mas não conseguiu saber nada. Só depois de várias
semanas, recebeu uma carta falando sobre o sucedido. Quando visitei
a igreja, conversamos sobre o assunto, verificamos as datas e foi com
emoção que confirmamos que ela fora chamada a interceder exatamente
quando precisávamos. Experiências como esta têm se repetido várias
vezes, graças a Deus!

Sei que muito do que temos feito aqui na Guiné-Bissau foi resultado
da oração de nossos intercessores. Nas guerras é muito maior o número
de pessoas de apoio que o de soldados. Na primeira guerra do Golfo
havia nove pessoas no apoio para cada soldado na linha de frente 5. Fazer
missões é fazer guerra espiritual. Não vá para a batalha sem apoio.

Criar e manter um grupo de intercessão é parte importante da


preparação para a obra missionária. Descobrir os intercessores vai
depender de visitas às igrejas e atenção ao interesse das pessoas.
Intercessores são normalmente pessoas simples, dão pouco nas vistas,
mas são fiéis e conhecem a vida de oração. A manutenção desse grupo
de oração vai depender de cartas informativas regulares que são o
compromisso do missionário com o seu apoio. Não saia para o campo
sem um exército de oração na retaguarda.

29
Antes do ide

Um segundo aspecto do apoio pastoral, que pode ser preparado antes


da ida ao campo, é o despertamento de pessoas que possam ajudar com
o envio de material evangélico de caráter devocional. Podem ser livros,
revistas, K7's ou vídeos que tenham mensagens e alimento espiritual
para o missionário. Esse compromisso deve ser também regular a fim
de ser eficaz. Nos momentos de tristeza e sequidão é uma lufada de ar
fresco receber um livro novo ou uma boa revista que vai trazer palavras
de conforto e ânimo. Sei bem disso pela instrumentalidade de algumas
irmãs que fielmente me mandam revistas evangélicas que são um
bálsamo no meio das dificuldades.

Ainda nesse campo, mencionaria a necessidade de se ter um


conselheiro ou amigo a quem possamos escrever e abrir o coração.
Muitas vezes o missionário vai sentir coisas que dificilmente poderão ser
compartilhadas com pessoas no campo. Pode se dar o caso de se ter um
colega missionário mais experiente por perto que servirá de apoio mas, no
caso de isso não acontecer, pode ser útil ter um líder comprometido e sério
a quem se possa prestar contas e de quem se pode receber advertências,
exortações e palavras de apoio. Esse tipo de apoio deveria ser dado pela
agência enviadora, mas a verdade é que nem sempre isso vai ser possível.
As tarefas administrativas ocupam todo o tempo e o missionário sente uma
enorme falta de ter com quem se abrir. Para isso servirá esse apoio pastoral
e poderá ser decisivo em momentos de dificuldade.

Cabe aqui uma nota sobre a mudança do missionário. As agências


normalmente lhe dirão que leve só o essencial o que definirão como a
Bíblia e alguma roupa. Mas o obreiro precisa de material de trabalho. Se
tiver uma biblioteca, vai sentir grande falta de seus livros, pois estes são
um auxílio no trabalho e no apoio pastoral. Vai precisar de seus recursos
pessoais como instrumentos musicais, material para trabalho infantil,
apostilas de livros técnicos, caso seja profissional. Não vai ser fácil
trabalhar sem o seu material, por isso insista e leve-o. Seja razoável para
poupar nos gastos, mas lembre-se que, a maioria das coisas que consegue
no Brasil, você não vai encontrar no campo. Se seu objetivo é um trabalho
de longo prazo (pelo menos alguns anos), vai precisar desse material.

7. Atividades prévias no campo

Por último lugar, cito a necessidade de uma expenencia prevIa


de trabalho antes da ida ao campo. Muitas missões pedem ou mesmo

30
Capítulo I -Prepare-se, prepare-se, prepare-se!

exigem que o candidato tenha pelo menos alguns meses ou anos de


estágio missionário no Brasil. Trata-se de uma boa exigência, pois serve
para avaliar a capacidade de trabalho do obreiro, sua flexibilidade e
adaptação a situações novas, sua capacidade de trabalhar em equipe e
sua verdadeira convicção de chamada.

Muitos problemas no campo podem ser evitados se o candidato passar


por um trabalho no Brasil do mesmo tipo que pretende empreender no
campo missionário. Afinal, se nunca atuou nessa área em sua própria
terra, o que nos garante que vai conseguir fazê-lo num contexto cultural
diferente, sob inúmeras pressões novas?

É bom que o candidato entenda que esse trabalho é em primeiro lugar


uma proteção para ele. Vai permitir entender o que sente nesse tipo de
atividade, que crises enfrenta ou como as enfrenta e se tem mesmo a
certeza de que é isso que deseja fazer. Em alguns casos será o período
de descobrir e desenvolver dons e talentos que de outra forma poderiam
ficar ocultos. Não é perda de tempo. O campo é o mundo e a seara
começa no meu vizinho e se estende até os confins da terra.

Concluindo

Antes de ir ao campo missionário, confirme sua chamada verificando


seu grau de envolvimento no trabalho da igreja, sua disponibilidade
de aceitar liderança, sua vontade de procurar treinamento e sua vida
devocional. Pesquise as escolas que treinam para o trabalho missionário
e escolha a que lhe oferecer melhor relação teoria-prática. Analise bem
as Vá~Ü1S agências missionárias e procure então trabalhar com aquela
que está dentro de sua linha doutrinária, tem uma liderança próxima do
seu estilo e adota uma boa política de sustento. Angarie sustentadores
que lhe dêem segurança em termos de sustento no campo. Faça um
bom check-up médico para toda a família. Verifique como irá lidar com
qualquer doença crônica no novo campo. Procure intercessores que se
comprometam com você e seu trabalho, pessoas que possam lhe enviar
material devocional de valor em base regular e um conselheiro a quem
possa estar ligado enquanto estiver no campo.

No início de 200 I, participava do congresso missionário "Proclamai",


no Rio de Janeiro, quando fui abordado por um jovem bem vestido que
se dizia vocacionado para missões. Tinha um ar sério, compenetrado e

31
Antes do ide

inspirava confiança. Estava pensando em ir para a faculdade ou então


iniciar logo o seminário. A idéia de fazer um curso e ainda o seminário o
assustava um pouco. Mas o que mais me surpreendeu foi a forma como
colocou suas dúvidas. De um modo bem articulado e provavelmente
muito estudado, ele perguntou: Pastor, na sua opinião, quais as três
coisas que devo fazer antes de ir para o campo missionário?

Senti grande empatia com sua preocupação, mas não pude evitar
responder com um sorriso largo: as três coisas são: prepare-se, prepare-
se e prepare-se!

32
Capítulo II
~ sab"la... "
"Mas eu nao

"Fiz-me tudo para com todos com o fim de


por todos os meios salvar alguns"
1Coríntios 9.22

"O missionário não pode comunicar


sem levar em conta a cultura, pois a comunicação está
inexoravelmente ligada à cultura" I
David 1. Hesselgrave

culto tinha sido abençoado. O trabalho parecia estar avançando


muito bem. Meu pai planejara ter que alugar casa e começar
cultos em nossa sala de estar, mas quando chegamos como
pioneiros da obra batista à Ilha Terceira, nos Açores, já havia casa
alugada e um salão para os cultos e até uma família interessada. Tudo
porque o Senhor providenciara o necessário por intermédio de um grupo
de crentes americanos da base militar de Lajes. As coisas estavam indo
bem mais rápido do que o esperado. Um programa de rádio estava dando
a conhecer a mensagem e havia entusiasmo e alegria nos corações de
papai e mamãe. Mas no fim do culto veio a crise. A única família que
freqüentava era a de Sr. Manuel e dona Rosa e ela não viera. Quando
papai perguntou ao rude lavrador o porquê, ele respondeu com seu
sotaque ilhéu marcado e difícil de entender:
Antes do ide

- Ela não veio porque está aborrecida.

Logo em casa, podia se ver a preocupação no rosto de meus pais. O


que foi que aborrecera a dona Rosa? Não conseguiam se lembrar de nada
específico. Teriam passado por ela na vila sem a ver e ela ficara zangada?
Teriam esquecido alguma data importante para ela? Teria ela entendido
mal alguma coisa que disseram? Fora algum gesto, atitude ou maneira
de vestir? Por mais que dessem voltas à cabeça, não pareciam encontrar
algo que explicasse o aborrecimento da senhora. Seria ela daquele tipo
problemático que se aborrece com pouca coisa? Seria o marido que
interpretara mal a atitude dela e estava escondendo uma outra razão?
Para um casal chegado a pouco no campo, e ainda mais pioneiros, este
dilema aparentemente pequeno podia ser grave e paralisante. Eram os
primeiros convertidos. O que fazer?

Depois de pensar, conversar e orar, chegaram à conclusão que só


havia uma coisa a fazer. Confrontar a situação. Deveriam ir à senhora
e descobrir o que se passava. Era a atitude bíblica, andar na luz, saber o
que havia e, se preciso, desculpar-se. E foram.

Posso imaginar os pensamentos cruzando a cabeça deles em alta


velocidade e os receios que alimentavam no curto trajeto entre a vila
da Praia da Vitória e a freguesia da Casa da Ribeira, a apenas uns 5
km. Mas qual não foi a surpresa quando foram muito bem recebidos na
porta pelo casal de velhinhos. Estavam muito contentes com a visita do
"Senhor Pastor". Meus pais foram entrando e se acomodando na sala
apertada da casa com um forte cheiro de lenha queimada no ar.

- Ouvimos que a senhora estava aborrecida, irmã Rosa (tentou


mamãe).
-Ai, nem me fale (retrucou a boa senhora). São umas enxaquecas
que me dão volta e meia e fico muito aborrecida.

Meus pais se entreolharam. Acredito que deviam estar cheios de


vontade de cair na gargalhada. Então era isso? Na linguagem dos Açores
"aborrecido" queria dizer doente ou adoentado. Mas eles não sabiam...

E qualquer missionário terá várias histórias semelhantes a contar.


Mesmo num país irmão como Portugal, falando a mesma língua e com
costumes e culturas tão próximas, é possível acontecer algo assim, agora
imagine o que vai suceder numa cultura e língua completamente diversas

34
Capítulo 11- "Mas eu não sabia..."

da nossa? Por isso mesmo, nesta fase em que ainda estamos falando sobre
preparação, queremos abordar a preparação no campo. Há coisas a fazer
antes de ir para o campo, como vimos no capítulo anterior. Mas, quando
se chega ao campo missionário, há também aspectos importantes de
preparação antes de iniciarmos propriamente a obra de evangelização.

Os missionários brasileiros têm a fama de serem muito ativos.


São os que mais rapidamente se envolvem no trabalho e logo querem
mandar relatórios com números bonitos. Esse aspecto positivo de
nossa disponibilidade para o trabalho esconde, no entanto, alguns fatos
preocupantes para a obra missionária eficaz. Um deles diz respeito à
precipitação. Chegar e se envolver logo quer dizer que o missionário
não se deu tempo para adaptação cultural e estudo da língua. Talvez por
isso nossos obreiros têm a fama de não falar bem as línguas locais e
de organizar igrejas iguais às do Brasil. Outros deixam o trabalho pela
metade debaixo do efeito do choque cultural.

Creio que a razão principal desta pressa em começar o trabalho está


ligada ao contexto evangélico brasileiro. Por um lado temos um meio
evangélico muito desenvolvido e hiperativo no Brasil. O missionário,
muitas vezes, estava acostumado a um ritmo verdadeiramente alucinante
em sua cidade e igreja e ficar meio "parado" para estudar cultura e língua
não lhe parece correto. Por outro lado, as igrejas querem retorno de seu
investimento. Quantas igrejas e crentes no Brasil estão preparados para
ler uma carta do missionário que está há seis meses no campo falando de
seus progressos na língua e mais nada? No entanto, o estudo da língua
é prioritário e é trabalho duro. Se o missionário passar seu primeiro
ano exclusivamente nesse trabalho, fará bem. Só que para isso temos
que trabalhar a mentalidade das igrejas e começar a ensinar sobre as
questões concernentes ao alcance de povos com línguas e culturas muito
diferentes da nossa. Pastores e líderes de missões nas igrejas podem
ajudar a mudar essa forma de ver as coisas e dar o tempo necessário
aos nossos missionários para a preparação no campo. Vejamos alguns
aspectos dessa preparação.

1. Aprendizado da língua

Nunca será demais insistir na importância do aprendizado correto


das línguas nativas para uma boa comunicação do evangelho. Nós,
os evangélicos no Brasil, criticamos muitas vezes os missionários

35
Antes do ide

americanos por não falarem bem o português, esquecendo o quanto


nossa língua é dificil. Por outro lado, não valorizamos os missionários
que falam bem a língua de Camões. Quando, porém, é a nossa vez,
devo dizer que nem sempre temos dado um bom exemplo. Estamos
acostumados a enviar missionários para a América do Sul onde a língua
não é dificil e como temos a mania de que falamos espanhol, lá surgiu
um enorme contingente de missionários falando "portunhol". Houve, no
entanto, negligência no aprendizado das línguas nativas. Por exemplo,
no Paraguai qual a percentagem de missionários que se deu ao trabalho
de aprender o guarani? Mas aqueles que trabalharam lá sabem que essa é
a verdadeira língua do coração da maioria dos paraguaios.

Voltamos pois ao princípio. Aprender bem a língua nativa é essencial.


Isso vai implicar, em muitos casos, a necessidade de se aprender mais de
uma língua. Por exemplo, no Senegal, país da costa ocidental africana, a
língua oficial é o francês. É preciso falar o francês para a comunicação
em geral e para o tratamento com as autoridades. Mas, se quiser ser mais
eficaz, o missionário além do francês vai ter que aprender a língua étnica
do grupo com o qual vai trabalhar que pode ser uolof, fula ou outra língua.
Um missionário de língua inglesa teria ainda mais dificuldade na Guiné-
Bissau. Aprende-se normalmente o português porque é a língua oficial.
Mas, ao chegar a Bissau, descobre que a língua das ruas é o crioulo. E
quando for trabalhar nas aldeias terá que aprender as línguas nativas.

o aprendizado da língua é trabalho cansativo e muitas vezes


frustrante. É dificil encontrar bons auxiliares porque as pessoas sabem
a sua língua, mas não sabem ensinar. Ao encontrar um auxiliar nessa
área é preciso cuidado com o aprendizado de palavras religiosas, se o
indivíduo não for crente. Poderá estar lhe dando palavras e conceitos de
sua religião. Atenção também à prática de pregar usando tradutores não-
crentes ou recém-convertidos. O risco de dizer o que não se quer e de ser
mal-entendido é enorme.

Muitas vezes não vai haver nenhum material escrito que ajude no
aprendizado da língua escolhida, nem dicionários ou mesmo gramáticas.
Há, no entanto, excelentes manuais ensinando técnicas de aprendizagem
de línguas que o obreiro deve levar para o campo. Uma vez no país, deve
procurar manuais das respectivas línguas, se existirem. Não se deve
esquecer de pedir ajuda a outras missões mais antigas no campo e aos
missionários experientes que poderão dar sugestões e emprestar material
útil para essa tarefa. Um obreiro consciente deve colocar a possibilidade

36
Capítulo 11 - "Mas eu não sabia..."

de passar seu primeiro ano exclusivamente dedicado ao aprendizado da


língua e cultura. O ideal seria começar a se engajar em algo mais apenas no
segundo ano, reservando, no entanto, ainda um bom tempo para a língua.
Mais uma vez, ressaltamos, o tempo de estudo não é desperdício. Saber as
línguas será fundamental para um trabalho completo e bem realizado.

Uma nota final. Está cientificamente estabelecido que é mais fácil


aprender uma língua se você já estudou outras. Logo, será interessante
que um candidato a missões aproveite, ainda no seu país, para estudar
uma língua estrangeira, mesmo que esta não seja diretamente útil para o
seu futuro campo. Será uma forma de criar hábitos e regras para o estudo
e também se preparar para essa dificil tarefa. Além do mais, estudar uma
língua como inglês ou espanhol é sempre útil para o futuro.

2. Escolha do grupo a evangelizar

Lembro-me de ter ficado bastante perplexo quando cheguei à Guiné


Bissau pela primeira vez. Era filho de missionário e já estava trabalhando
há alguns anos como médico e pastor, lera muitos livros sobre história
de missões e missiologia mas, apesar de tudo isso, minha idéia era que
deveria evangelizar os guineenses. Descobri de forma um tanto dolorosa
que não havia um povo guineense. Havia, sim, um leque enorme de
povos, raças e culturas muito distintas.

Os balantas são animistas, com sociedade horizontal e são ligados


à agricultura. Os fulas são muçulmanos, com estrutura social altamente
hierarquizada e são ligados à pecuária. Entre essas duas etnias há muitos
ressentimentos. Entre os mandingas a sociedade é patriarcal como entre
os demais muçulmanos, mas entre os bijagós há conceitos matriarcais
vincados. As diferenças levam também à dificuldade de convivência.
Povos rivais foram obrigados a ficar juntos devido a fronteiras criadas
pelos colonizadores. Mas os ódios e rivalidades estão presentes logo por
baixo da pele. Esse é o motivo de tantas guerras tribais no mundo. Fui
obrigado a entender isso só no campo e tive que buscar na presença do
Senhor uma definição quanto ao grupo étnico que deveria evangelizar.

Pode ser que o leitor candidato a missões já tenha uma etnia ou povo
em mente, mas também pode ser que, tal como eu fiz, julgue que é
só chegar e ir pregando. David Hesselgrave nota que "(...) a estratégia
sadia talvez dite que a abordagem inicial seja feita a membros de um

37
Antes do ide

só grupo (... )"2, ele chama a isso contatos evangelísticos seletivos. A


eficácia e mesmo a viabilidade da obra entre povos não-alcançados
passa pela evangelização de cada uma dessas etnias e esse trabalho
deve ser particularizado. Não posso aqui dizer como escolher uma etnia.
Essa obra é do Espírito Santo, mas queria que os futuros missionários
entendessem a necessidade de fazer um trabalho específico quanto a
etnias para poderem ser mais eficazes. Realmente a Palavra nos diz que
em Cristo não deve haver barreiras étnicas, mas esse passo só pode ser
dado depois da evangelização e do novo nascimento. Esperar que povos
rivais se juntem sob o mesmo teto para adoração é algo que precisa
esperar pela ação do Espírito Santo nos corações dos já convertidos.

3. Conhecimento da cultura

Evangelizar passa por comunicar o evangelho, e comunicação passa


por transmissão de uma mensagem que seja entendida. Essa comunicação
não será possível se o missionário não entender os costumes e a maneira
de pensar do povo da terra. Num dos livros preferidos dos estudantes de
missiologia, "Costumes e Culturas", lê-se na introdução: "Se quisermos
comunicar o evangelho para um povo cujo modo de vida é diferente do
nosso, precisamos estar em condições de analisar as razões de sua maneira
de pensar, agir e viver"3. Vem daí toda a preocupação da missiologia em falar
sobre contextualização, antropologia missionária e conhecimento da cultura.
Não pretendo aqui elaborar sobre isso, já que temos excelentes tratados que
falam sobre a matéria. Gostaria apenas de dar algumas sugestões para ajudar
no estudo da cultura e na aculturação do missionário.

3.1 - Convivência

É mais que óbvio que para se conhecer uma cultura precisamos


conviver com esse povo. Mas essa premissa é por vezes esquecida no
campo. A saudade da terra natal, a formação de grupos de missionários
da nossa terra, o acesso a canais de televisão por cabo, a internet, tudo
isso joga contra o corte do cordão umbilical do missionário à terra mãe.
Surgem verdadeiros clubes de obreiros de certa nacionalidade que
se reúnem com regularidade assustadora e gastam horas notando as
vantagens da sua terra sobre o campo que escolheram e os absurdos da
cultura local. Outros se perdem navegando e surfando por sites à caça de
informações da santa terrinha. Tudo isso dificulta a introdução em uma
cultura nova. Não queremos criticar o amor pátrio nem negar o valor de

38
Capítulo II - "Mas eu não sabia..."

nos encontrarmos com colegas da mesma nacionalidade, mas deve haver


bom senso se o objetivo é mergulhar numa nova cultura. Morar fora de
um complexo habitacional missionário e longe de outros estrangeiros é
útil. Reduzir o número de contatos com colegas pelo menos no período
inicial também. Gastar tempo convivendo com nacionais deve ser
prioridade como parte do trabalho de aculturação. Se for necessário,
pode-se até estabelecer um horário para tal, de modo a não desperdiçar o
tempo de forma improdutiva. Por exemplo, o missionário passa a manhã
trabalhando na língua, à tarde, testa seus conhecimentos e convive com
o povo investindo, sobretudo, em ouvir e procurar saber o que está
acontecendo, o porquê, qual o significado e suas razões.

3.2 - Material auxiliar

Os livros, revistas e jornais da terra são uma boa fonte de informação


cultural. Ler sobre a história do país, seus heróis e episódios famosos,
conhecer o significado das cores da bandeira nacional ou outros símbolos
da terra. Ler e aprender contos tradicionais e ditados do povo ajudam a
entrar na cosmovisão da terra e podem render pontos numa conversa
informal e até num discurso. Em muitos países existem tratados
antropológicos e sociológicos feitos nos tempos em que esses países eram
colônias da Europa. Esses trabalhos, apesar de um pouco ultrapassados,
podem dar uma boa introdução no conhecimento das culturas locais.
Também pode ser divertido e ilustrativo assistir a TV e ouvir a rádio local.
Por regra os programas nacionais nos parecerão monótonos e cansativos
mas, por trás deles, está a maneira de ver e a forma de avaliar a cultura
local. Lembremos que aquilo que para nós é óbvio pode não ser noutra
cultura. Na Guiné Bissau, por exemplo, entre algumas etnias, uma casa
suja de dejetos animais não é sinal de falta de higiene da dona da casa, mas
de riqueza do dono que mostra assim que tem muitos animais. Para um
Jula de meia idade, o grande sonho é fazer a peregrinação a Meca e depois
ficar o resto da vida sentado em casa recebendo visitas e sendo tratado com
um verdadeiro rei. São visões diferentes. Precisamos conhecê-las primeiro
e procurar entendê-las depois.

3.3 - Casa e vida familiar

O conhecimento da cultura vai passar por algumas mudanças nos


costumes do nosso lar. Pode ser que adotemos de algum modo parte da
dieta local, que mudemos um pouco o arranjo da casa, que passemos a
ver o tempo de maneira diferente. Lembro-me que, sendo eu uma pessoa

39
Antes do ide

muito orientada pelo tempo, desesperava-me com visitas que passavam


literalmente horas em minha casa sem ter nada especial a dizer ou a
fazer. Para mim era uma interrupção inaceitável de meu trabalho e me
estragava o dia. Lentamente fui entendendo que era a forma de ser da
cultura local e fui relaxando e aprendendo a aproveitar essas visitas.

Onde morar é uma questão crucial para muitos. Concordo com Phil
Parshall quando afirma que "cada família deve ser franca com o Senhor
neste assunto. Deve avaliar com oração as suas próprias necessidades
fisicas e emocionais. O alvo é viver o mais próximo possível do estilo
de vida do povo a ser alcançado sem que haja resultados adversos para
algum membro da família. O equilíbrio é uma palavra-chave"4.

Um jovem casal de missionários chegou a um país africano muito


pobre e foi levado diretamente do aeroporto para uma aldeia no interior
do país, sem água, luz nem alimentação habitual. O missionário veterano
que orientou esse procedimento tinha a melhor das intenções. O objetivo
era mergulhar o casal imediatamente na cultura a alcançar. Infelizmente
mergulhou o casal também numa profunda depressão que resultou na
perda de obreiros que poderiam ter sido muito úteis. Em poucos meses
o casal estava retornando ao seu país de origem. O equilíbrio a que
Parshall se referia vai ditar que uma família viva diferente de outra. Cada
um deve, com honestidade, procurar o seu meio-termo dentro do alvo
comum de viver próximo ao povo. Uns poderão se adaptar à vida na
aldeia, outros precisarão de casas mais ocidentalizadas. O importante é
estarem perto do povo e ministrarem eficazmente.

Pode ser que o missionário resolva adotar o estilo de vestimentas


da terra ou não. Isso vai depender do local e da cultura. Há ainda
lugares onde isso é muito importante, em outros nem tanto. Nos
tempos de Hudson Taylor, na China, vestir-se e cortar o cabelo como
os chineses, foi revolucionário no alcance deles para Jesus. Hoje,
porém, a globalização já mudou esse conceito em boa parte do mundo.
Devemos lembrar que dificilmente as roupas por si só nos tornarão
mais aceitáveis culturalmente. Já participei de reuniões em que o único
vestido à africana era um europeu, o que foi bastante estranho. A roupa
não define quem você é e nem se está ou não aculturado. Penetrar na
cosmovisão e entender por que vêem as coisas, como as vêem, é o
verdadeiro desafio e, uma vez tendo iniciado essa compreensão, o povo
perceberá independentemente da roupa que estiver vestindo, pois como
Paul Hiebert declara "o verdadeiro teste de identificação não é o que

40
Capítulo 11 - "Mas eu não sabia... "

fazemos nas situações formais e estruturadas. É como gastamos o nosso


tempo informal e os nossos pertences mais valiosos "5.

o que foi dito sobre as vestimentas vale também para a adoção de um


nome nativo. Muitos acham bonito e até romântico receber um nome
nativo. Em alguns casos é realmente significativo como na maneira
afetuosa que Mary Slessor era chamada de "Grande Mãe". Mas há
casos, como o de Stanley, que ficou conhecido entre os africanos como
Bula Matari, o "Quebrador de Rochas", nome que denunciava seu uso
de explosivos e sua falta de escrúpulos de atirar em nativos. Um nome
tribal deve ser uma coisa natural. Pode ser adotado se vier com o decorrer
da convivência e normalmente demora bastante para ser adquirido. Fica
muito estranho chegar e ir escolhendo um nome nativo e se apresentar
com ele. Soará artificial e não vai ajudar na verdadeira identificação.

4. Integração

Alguns têm sugerido fases de adaptação como Donald Larson que


destaca a fase de Aprendiz, essencialmente ligada à língua; a fase de
Comerciante, quando se dá uma maior troca de experiências e opiniões;
e a fase de Narrador de histórias em que o missionário conta e ouve
histórias que o ajudam na integração ao contexto cultural 6 • É útil
recordar que a forma como nos vemos vai ser diferente da maneira como
os nacionais nos verão. O missionário costuma ter bem presente a noção
daquilo que ele sacrificou para estar no campo missionário. Traz de sua
cultura evangélica uma idéia de heroísmo ligada à obra missionária.
Espera que os povos da terra entendam o quanto estão ganhando com
sua presença e o quanto ele abdicou para ser obreiro ali.

A visão da terra será invariavelmente outra. Independentemente de


o missionário ter ou não muitas posses, ele será visto como alguém
rico. Será conotado com os antigos colonizadores por um lado e com
os membros de organizações como Nações Unidas ou uma ONG,
organizações de ajuda humanitária. Seja como for, será visto como tendo
muito dinheiro. A maioria dos nacionais raciocina que se o missionário
saiu de sua terra rica e está ali numa terra tão pobre é porque tem alguma
vantagem financeira com isso. Não esqueçamos que muitas organizações
internacionais pagam excelentes salários a seus representantes em países
do terceiro mundo. Na África Ocidental, por exemplo, todos os brancos
são chamados de "Tubakos" que significa literalmente "calça verde" na

41
Antes do ide

línguafula. Tratava-se das calças dos uniformes das tropas coloniais que
dominaram essas terras. Dá para imaginar o que essa conotação faz pela
identificação dos missionários.

Aprender a lidar com isso nem sempre é fácil. Vai passar pela
capacidade do missionário se dar a conhecer. Não se pode presumir
que isso aconteça rapidamente. Serão precisos meses ou mesmo anos
para que as pessoas comecem a entender um pouco melhor as razões
verdadeiras do missionário. Paciência e perseverança são palavras-
chave. Lembremos que durante décadas os missionários na China eram
conhecidos como "Diabos estrangeiros". Mesmo assim foram capazes de
ganhar os corações de muitos para o Senhor de amor.

5. Choque cultural

E quando essa integração não ocorre? Como lidar com o famigerado


choque cultural? Não há uma resposta fácil, mas há caminhos a serem
trilhados para evitar as perdas causadas por esse choque. Um deles é
entender que o choque é inevitável. Julgar-se acima dele ou vacinado não
vai ajudar. Conhecer e encarar a verdade sempre são os melhores passos
do que tentar fugir ou contorná-la.

Entendamos que vai ser normal não compreendermos muito do que


vamos ver e isso vai causar stress. Eu me vi confrontado como médico
com pessoas que, em estado avançado de doenças graves, deixavam
centros urbanos onde havia tratamento e vinham para as aldeias onde não
havia possibilidade de salvá-las. Isso me provocava sentimentos adversos
e mesmo raiva. Não podia entender como podiam fazer algo que para
mim só poderia ser classificado como tolice ou verdadeiro suicídio. Hoje
entendo que tem a ver com a cosmovisão deles. Suas vidas estão sob o
controle dos Irãs (espíritos territoriais) que têm domínio limitado. Esses
espíritos controlam apenas zonas pequenas próximas às aldeias, mas
estão intimamente ligados às vidas das pessoas. Voltar à aldeia é uma
forma de se aproximar daquele que eles pensam poder salvá-los. Não
estão se suicidando como eu pensava, mas tentando escapar. A verdade é
que têm muito mais fé no Irã do que na medicina.

o missionário ocidental chega a uma região islâmica onde a poligamia


é a regra e se revolta. Para ele é uma prática errada e está essencialmente
ligada à sensualidade. Mas, no contexto oriental, a poligamia não tem tanto

42
Capítulo II - "Mas eu não sabia..."

a ver com sexo e sim com economia e status. Se o homem tem poder e
dinheiro, seria considerado falta de generosidade ter apenas uma mulher.
Inclusive, tendo em conta que no Islão é o homem que fica responsável
pela salvação da mulher, seria antiético e contra a religião um homem
rico não aproveitar a oportunidade de salvar várias mulheres. Por outro
lado, a questão econômica está sempre presente. Mais esposas significa
mais mão de obra e mais terras cultivadas, mais filhos e novamente mais
mão de obra. Trata-se de um investimento. E pensando bem, será que,
em certo sentido, não é melhor a forma de poligamia oriental, em que
o indivíduo assume a mulher e os filhos, do que a poligamia ocidental
em que ele tem casos, amantes e namoradas, filhos ilegítimos, mas
só assume a mulher oficial? Há em toda incompreensão cultural uma
certa hipocrisia que complica ainda mais as coisas. No Brasil há muitos
polígamos não assumidos...

Mas se nós não vamos entender muita coisa deles, também eles não
entenderão muitas coisas nossas. Lembro-me da expressão de espanto
de um africano em visita à nossa casa ao olhar para uma embalagem de
adoçante. Tentamos explicar que era uma substância que adoçava sem
engordar. Para o nacional em causa não fazia sentido. Qual a utilidade de
uma coisa que adoça e não engorda? Não são eles adeptos de mulheres
mais fortes? Não é a gordura sinal de beleza e prosperidade? Não vêm
as mulheres deles ao consultório pedir medicamentos para ganhar peso?
Por que alguém gastaria dinheiro numa substância que adoça e não
engorda? Ele simplesmente não entendia...

Essa falta de entendimento mútuo vai afetar o trabalho e muitas vezes


a evangelização. Quando se fez a tradução do evangelho para um dialeto
africano inicialmente a palavra monte foi traduzida por "formigueiro".
É que naquelq região tudo é planície e eles não conhecem montes. O
missionário julgava ter entendido, mas na verdade a palavra tinha outro
significado. Imagine o que pensaram quando leram que Jesus e seus
discípulos subiram no formigueiro para a transfiguração... ou, sentou-se
nele para ensinar... Ora, estas histórias que podem até ser engraçadas
quando se referem a outros, perdem muito a graça quando os sujeitos
somos nós. É aí que entra o choque.

Há várias descrições do choque cultural. Normalmente fala-se de


várias fases. Inicialmente há o período do Turista. Tudo é divertido
e colorido. Há muita curiosidade e tudo parece uma grande e alegre
aventura. Mas o missionário não é turista. Logo vai ter que encarar a vida

43
Antes do ide

e vão acontecer episódios como os narrados acima e ele entra na fase que
chamaria de Avestruz. Tenta se esconder, recua frente à cultura local, fica
desorientado sem saber o que se espera dele. Normalmente é nessa fase
que começa o afastamento e isolamento do missionário. Procura ficar
mais e mais tempo em lugares que lembrem sua cultura e costumes. A
tendência é fechar-se e começar a fazer comparações entre a sua terra e os
costumes locais. Se esta fase não for vencida, o missionário acabará num
período de autodestruição. Os sentimentos hostis vão crescer, o medo e a
desilusão também. Vai ter receio de contatar o povo ou, pior ainda, pode
ficar com raiva por sentir que de alguma maneira eles têm culpa por seu
fracasso. Estes casos mais agudos costumam terminar em rejeição do
trabalho e fuga do campo. Mas, de volta à sua terra, o indivíduo se sentirá
frustrado e fracassado.

A fase de avestruz, no entanto, pode ser vencida se o missionário


entender o que está acontecendo e se permitir alguns erros. Ser honesto
ao enfrentar seus sentimentos é importante. Sobretudo não aceitar cair no
isolamento. Esta fase necessita da ajuda de missionários mais experientes
e deve ser encarada com normalidade para dar lugar à fase de criança
em que se vai iniciar a aprendizagem. Exatamente como uma criança,
vão cometer erros, mas também irão progredir rumo à desejada fase de
integração em que o indivíduo pode ser considerado bicultural.

Cada missionário terá um "timing" diferente de adaptação. Uns


parecem vencer mais depressa, outros precisam de mais tempo. Não
fique se comparando. Faça seu "trabalho de casa", procure avançar na
aprendizagem cultural e lembre-se que é parte da preparação para o
trabalho. Não inicie o trabalho propriamente dito enquanto não perceber
que já entende razoavelmente a cultura a que vai ministrar.

6. Trabalho evangélico nacional

Outro aspecto da preparação que se faz já no campo missionário é


uma pesquisa cuidadosa do trabalho evangélico que já existe na terra.
Essa pesquisa vai nos dar uma noção mais ampla do que nós mesmos
poderemos fazer. Pode parecer desnecessária, pois o missionário pode
pensar: "Eu sei o que quero e vou fazer diferente de todos os demais".
Esta, aliás, parece ser uma doença dos missionários recém-chegados ao
campo. Lembra-me os alunos num curso de medicina. No primeiro ano
é só vaidade. Gostam de andar com o estetoscópio no pescoço e querem

44
Capítulo 11 - "Mas eu não sabia... "

ser chamados de doutores e usar termos técnicos de anatomia. No sexto


ano estão morrendo de medo porque sabem que dentro de poucos meses
terão os doentes à sua frente e já entenderam a dificuldade da tarefa.
Assim também, missionários recém-chegados têm a tendência de achar
que vão revolucionar a evangelização do país e estão cheios de idéias e
entusiasmo. Seja como for, seria bom primeiro conhecer os trabalhos já
existentes.

Visitar as igrejas e os projetos missionários no país é muito inspirador


e instrutivo. Saber dos veteranos quais foram as maiores dificuldades,
quais são as maiores necessidades do campo no seu conceito, o que
verificaram que dá certo e o que já sabem que não funciona. Não quer
dizer que vamos imitar A ou B, mas uma avaliação séria nos ajudará a
cortar certas etapas e avançar mais rápido depois. Os missionários com
mais tempo de campo têm uma visão bem mais ampla do que o povo
precisa e do que pode ser feito. Permitir que abram nossos horizontes
vale a pena.

Conhecer igrejas dirigidas por nacionais também é muito interessante.


Normalmente os missionários gostam de ver essas formas diferentes de
culto e adoração, aprendem cânticos novos e, muitas vezes, se dão a
liberdades que não teriam em seus países. Mas o objetivo dessas visitas
é estudar formas e conteúdo. O que fazem? Como fazem? Por que fazem
desse modo? Isso me ensina algo sobre a melhor maneira de comunicar
a este povo? Que tipo de liderança a igreja nacional adotou? Pode ser que
precisemos mudar nosso estilo de liderar para algo mais compatível com
a forma de ser do povo. Por exemplo, a etnia em causa pode ter liderança
partilhada e se mostrar avessa a líderes fortes ou, pelo contrário, pode
apreciar exatamente um líder que impõe regras e decisões. Veja, tome
nota, analise e deixe que isso faça parte de suas futuras decisões quanto
ao tipo de trabalho que vai desenvolver.

Que tipos de projetos missionários existem no país? Algum deles é do


gênero que estamos pensando em implantar? Nesse caso, que problemas
enfrentam? Como foi que começaram? Que implicações há em termos
legais e autorização governamental? Há lugares em que os governos são
abertos a quase todo tipo de ministério missionário. Em outros lugares,
porém, há inúmeros entraves. Conhecê-los antes de decidir o que vai
fazer é importante para evitar dores de cabeça. Verifique que tipo de
impacto evangelístico esse projeto está tendo. Devemos manter sempre
em mente que somos missionários e não uma forma disfarçada de ONG

45
Antes do ide

(Organização não-governamental). Não temos como alvo apenas fazer


trabalho social, mas levar a salvação. Saber de um projeto já implantado,
se tem resultados práticos em termos de conquistar almas, será, portanto,
decisivo antes de formularmos nossos próprios projetos.

Concluindo

Uma vez no campo missionário, lembre-se de que precisa de tempo


para se aculturar antes de começar a ministrar. Separe tempo significativo
para o estudo da língua. Procure conhecer a cultura local por meio de
convívio com o povo e pesquisa em materiais auxiliares. Defina em
oração qual grupo étnico vai evangelizar de modo a ser mais eficaz em
seu trabalho e visite os trabalhos existentes tanto missionários quanto
nacionais. Analise os seus erros, acertos e aprenda com eles tendo em
vista a definição de sua estratégia missionária.

Estava numa aldeia fiila fazendo uma visita de cortesia quando um


homem se aproximou do grupo onde eu estava e mostrou uma galinha.
Olhei e sorri sem fazer comentários. Passados uns minutos mostrou-
me novamente a galinha. Desta vez sorri e comentei que estava bem
gordinha. Quando passados mais uns minutos, ele trouxe a galinha
novamente, fiquei um tanto contrariado e procurei ignorá-lo. Neste
momento um dos meus amigos fitlas comentou que a galinha em causa
seria o nosso almoço e, como hóspede de honra, era esperado que eu
agradecesse e valorizasse a galinha publicamente para que pudessem
passar ao ato de prepará-la. Minha dificuldade em fazer o esperado
estava na verdade atrasando a refeição. Mas eu não sabia...

46
Capítulo III
O propósito da missão
"O homem sem um propósito é como um barco sem leme"
Thomas Carlyle

"Não fui desobediente à visão celestial"


Atos 26.19

uando o papa Júlio II encomendou a Michelangelo a pintura do


teto da capela Sistina, ele tentou esquivar-se afirmando que não
era pintor e sim escultor. Sugeriu Rafael para a obra, mas o papa
tanto insistiu que ele cedeu. Na verdade, a situação financeira do pintor
era precária e Júlio II não era propriamente o tipo de homem a quem se
dizia não. Seja como for, quatro anos depois estava pronta aquela que é
considerada pelos especialistas a maior obra de pintura da história da arte.

A imensidade da obra até hoje maravilha todos que a vêem. O trabalho


árduo deixou Michelangelo envelhecido antes da hora. Ao terminar esse
trabalho tinha apenas 37 anos, mas estava cansado e emaciado. Seus
olhos não podiam mais suportar a luz do sol e diz-se que só conseguia ler
deitado e segurando o livro por cima da cabeça, pois fora nessa posição
que trabalhara os quatro anos sobre os andaimes na Capela Sistina.
Antes do ide

o que pouco se comenta, porém, é que antes de iniciar a pintura


Michelangelo mediu e mapeou todo o teto em sua convexidade tão
complexa. O papa apenas lhe pedira que pintasse os apóstolos, mas o
grande artista imediatamente visualizou no teto uma pintura muito mais
completa que viria a ter 343 figuras em tamanho maior que o normal. Para
colocá-las no seu lugar, ele fez primeiro esboços de cada figura, usando
modelos vivos e foi, então, reproduzindo-os no teto uma a uma até que
a obra estivesse pronta para pintar. Inicialmente trabalhou com alguns
ajudantes, mas as diferenças de estilo eram tão marcantes que acabou
dispensando todos e trabalhando dia após dia sozinho. A principal razão
que levou Michelangelo a obter sucesso em tão árdua e monumental
tarefa foi porque desde o início teve uma visão clara do que queria, um
propósito firme em mente e se manteve fiel a ele até o fim.

Todos os grandes homens da História atingiram feitos significativos


porque tiveram uma visão clara de seus objetivos. A definição de seus
propósitos os levou adiante na senda do sucesso. Henry Ford sonhou
que cada família americana teria seu próprio carro numa época em que o
automóvel era um artigo de luxo. Foi sua empresa que criou o primeiro
carro popular chegando a produzir, já em 1911, cerca de 500 mil unidades
a um custo de apenas 360 dólares cada.

Joseph Lister foi um médico inglês que sonhou com cirurgias seguras
numa época em que mais de 50% dos operados morria de infecção
hospitalar. Contra tudo e todos desenvolveu os princípios de assepsia que
se usam até hoje e que tornaram as cirurgias seguras em nossos dias.

O marroquino Ibn Batuta, após uma peregrinação a Meca, teve o sonho


de "viajar por toda a Terra" em plena Idade Média, quando a maioria das
viagens era feita a pé ou a cavalo e acarretavam riscos consideráveis.
Levou 28 anos viajando por todo o mundo conhecido sendo até hoje
considerado como um dos maiores viajantes de todos os tempos, tendo
percorrido o equivalente a três voltas ao mundo. O livro de memórias de
suas viagens é um documento histórico altamente apreciado.

Em missões não foi diferente. Livingstone teve o propósito claro de


abrir o interior da África ao comércio e ao cristianismo e, desse modo,
acabar com o famigerado tráfico de escravos. Ele desvendou os segredos
do continente negro, colocou nos mapas vários rios e lagos, sendo assim
o primeiro homem branco a percorrer a África, do Oceano Índico ao
Atlântico. O famoso trio de Serampore composto por Carey, Marshman

48
Capítulo III - O propósíto da míssão

e Ward, pioneiros batistas na Índia, ficou conhecido por seu esforço na


pesquisa acadêmica das línguas, cultura e religião hindu, com o intuito
de formar estratégias missionárias de sucesso. Hudson Taylor tinha uma
visão clara de seus propósitos ao criar a Missão do Interior da China.
Sua organização foi uma das mais bem sucedidas na história de missões
abrindo o interior da China para a evangelização.

Agora imagine um homem que traz malas e bagagens para a rodoviária.


Ele vem carregado de tal maneira que mal pode andar. Atrás dele vem a
esposa e três filhos pequenos. Tudo indica que vão encetar longa viagem.
Mas, quando alguém o pára para tentar saber aonde vai, o sujeito responde
com um ar meio perdido: "Não sei".

Ora, embarcar sem saber o destino é loucura, todos reconhecem.


Querer fazer missões sem um propósito claro, também. Não admira que
a literatura esteja cheia de opiniões concordantes. O famoso estadista
e primeiro-ministro da Inglaterra, Benjamim Disraeli, dizia que "o
segredo do sucesso é constância e propósito". T.T. Munger declarou
que: "Não há caminho de sucesso que não passe por um propósito claro
e forte". Os professores da Universidade de Wisconsin, Ramon Aldag
e Buck Joseph, referem que "os verdadeiros líderes desde Gandhi a
Lee Iacocca e Madre Teresa conduziram os seguidores apoiados numa
visão estratégica, tinham uma missão clara, cultivaram valores fortes,
moldaram comportamentos específicos, conquistaram objetivos amplos
e formularam estratégias para atingir tudo isso" I .

Esta verdade, como não podia deixar de ser, está também nas Escrituras
porque toda a verdade provém de Deus. Assim, desde o início vemos que
Deus criou o mundo com um propósito. Depois criou o homem com
um propósito e deu ao homem uma visão clara de sua missão. O plano
da salvação também estava estabelecido desde tempos imemoráveis.
Podemos notar com facilidade que o padrão na Palavra é que Deus dá
propósitos bem definidos a seus servos. Noé deveria construir uma arca
para escapar do dilúvio. Abraão deveria ir para Canaã a fim de iniciar um
novo povo. Moisés deveria libertar o povo do Egito e guiá-los até a terra
prometida. Josué deveria derrotar os povos cananitas e instalar o povo na
terra. O Senhor chamava e dava a visão. Não havia dúvida quanto ao que
deveriam fazer.

Jesus sabia qual era sua missão de forma clara. Ele a declarou no
início do ministério citando Isaías: "evangelizar os pobres, proclamar

49
Antes do ide

libertação aos cativos e restauração de vista aos cegos, para pôr em


liberdade os oprimidos e apregoar o ano aceitável do Senhor" (Lucas
4.18 e 19). O Mestre deixou claro aos discípulos seu propósito de ir à cruz
(Mateus 16.21) e combateu aqueles que quiseram tirá-lo desse caminho
(João 18.11). Ele tinha a noção perfeita da missão cumprida (João 17.4
e 19.30) e deixou instruções claras aos discípulos que incluíam o que
fazer (testemunhar, pregar, ensinar, batizar, curar, expulsar demônios,
falar novas línguas), quando fazer (e recebereis virtude ao descer sobre
vós o Espírito Santo) e onde fazer (Jerusalém, Judéia, Samaria e até os
confins da terra).

O maior exemplo de obra missionária depois de Jesus, o apóstolo


Paulo, também nos deixou o mesmo exemplo de propósito claro e
estratégia missionária. Donald MacGravan em "Bridges of God" e David
Hesselgrave em "Plantar Igrejas" concordam que Paulo tinha "um plano
de ação deliberado, bem formulado, devidamente executado, baseado na
observação e na experiência (...) desenvolvido sob a orientação do Espírito
Santo e sujeito à sua orientação e controle"2. E Hesselgrave passa a
trabalhar exatamente o "ciclo paulino" em seu excelente livro sobre como
Plantar Igrejas. Do mesmo modo Larry Pate afirma que "assim como em
qualquer outro empreendimento importante a evangelização dos grupos
étnicos não-alcançados requer um planejamento efetivo de estratégias"3.
Fica pois bastante claro que, antes de iniciar a obra, o missionário deve
definir seus propósitos ou sua visão. Mas o que é isso?

Nas palavras de um dos maiores especialistas em treinamento de


líderes, John Haggai, "uma visão é uma imagem clara de algo que o líder
quer que seu grupo seja ou faça"4. Parafraseando, diríamos, que visão é
uma imagem clara daquilo que o missionário quer que seu trabalho seja. A
visão ou o propósito é uma declaração clara, suscinta, mas abrangente do
que o missionário pretende com seu trabalho. Vejamos alguns exemplos
de propósitos declarados: o Pastor Rick Warren cita que a declaração de
propósitos de sua igreja é:

"Trazer pessoas para Jesus e torná-las membros de sua família.


desenvolver nelas maturidade de acordo com a semelhança de
Cristo e equipá-las para seus ministérios e para a missão de suas
vidas no mundo a fim de glorificar o nome de Deus "5.

O ministério de Vigilância da Igreja Batista Central de Fortaleza


define seus propósitos como:

50
Capítulo III - O propósito da missão

"servir e proteger os interesses e propriedades da Igreja


Batista Central e, através de uma presença bem visível, cuidar
dos carros dos membros e visitantes, proporcionando-lhes um
maior bem-estar em nossa igreja "6.

Nosso propósito ao iniciar o trabalho missionário em Bafatá era:

"Organizar uma igreja com a maioria de crentes das etnias


lula e mandinga (não-alcançados) que possam dirigir o trabalho
(autoliderança) e sustentar as suas próprias atividades (auto-
sustento). Utilizar ministérios paralelos (escola, clínica e rádio)
para auxiliar esse objetivo central."

"O propósito claro não define somente o que devemos mas também o
que não devemos fazer" diz Rick Warren7 • Ter um propósito vai facilitar
e orientar o trabalho missionário. Vai dar uma base para avaliar se
estamos ou não avançando. Vai dar uma visão de futuro ao trabalho por
mais árduo que seja.

Certo viajante passava perto do local onde estava se construindo um


grande templo e viu alguns homens carregando pedras. Chegou-se ao
primeiro e perguntou: O que está fazendo amigo? O homem o olhou com
rancor e disse entre dentes: "Ora, não vê que estou carregando pedra?"
O viajante afastou-se e foi repetir a pergunta a outro homem. Este parou,
deu um grande suspiro e disse: "Olha, amigo, estou sustentando a
família". Mais encorajado o visitante foi ainda a um terceiro carregador
com a impertinente pergunta. Este último argüido sorriu e com gestos
largos respondeu: "Estou construindo a mais bela catedral da Europa".
Como podemos ver, até carregar pedra fica mais fácil com um propósito
claro em mente.

Passemos então à execução. O obreiro munido destes conhecimentos vai


procurar definir o que pretende fazemo campo. Qual é a sua visão? Passamos
a dar alguns pontos que uma definição de propósitos deve respeitar.

1. Visão divina

"Qualquer visão de valor vem de Deus" diz John Haggai e acrescenta


que "Deus só vai dar seu auxílio e poder para as coisas que estão na sua
vontade"8. "Se não houver comissão divina não pode haver trabalho

51
Antes do ide

divino", escrevia Watchman Nee 9 • Devemos pois estar convictos de que


nossa visão não é só fruto de algum sonho de grandeza, mas algo que
o Senhor colocou em nosso coração. Podemos nos perguntar: Está de
acordo com as Escrituras? Jesus assinaria em baixo? Tenho paz quando
oro sobre este assunto? Outros crentes maduros com quem compartilhei
essa visão me deram uma palavra favorável? Fazer missões passa
essencialmente por buscar estar no centro da vontade de Deus, logo,
qualquer propósito terá que passar nesse crivo.

2. Escrita

A declaração de propósito deve ser feita por escrito pois o ato de


escrever ajuda a visualizar melhor e permitirá manter a visão sempre bem
presente. "Escrever torna o homem preciso", dizia Lord Bacon, logo,
registrar a visão no papel vai ajudar muito na definição. A declaração
de propósitos deve ser simples e prática. Não são dez páginas de um
programa elaborado. Neste primeiro tempo o que se quer é algo simples
e prático, podendo, mais tarde passar para algo mais elaborado.

3. Realizável

É importante que o propósito seja realista, deve estar dentro daquilo


que é possível fazer nas circunstâncias. Por exemplo, imagine que seu
propósito é evangelizar toda a cidade com a distribuição de folhetos de
casa em casa. No entanto, 80% da população é analfabeta e não fala
a língua em que os folhetos estão escritos. Ou resolve abrir um curso
de informática numa localidade em que nem sequer há eletricidade.
Logo, é importante verificar antecipadamente se seu propósito é viável.
Daí que enfatizamos a necessidade de ter um tempo de adaptação ao
país e à cultura antes de definir seus propósitos. Metas preparadas no
Brasil dificilmente estarão adaptadas à realidade que vamos enfrentar e
corremos o grande risco de não serem realizáveis.

4. Dependente de seus próprios meios

Outra questão fundamental é definir propósitos que dependam de


seus próprios recursos humanos e financeiros. Se você define uma
visão que vai depender em grande parte do desempenho de outros,

52
Capítulo III - O propósito da missão

está entrando num caminho difícil, pois não tem como controlar a
execução do plano. Se o propósito depende de extensas verbas que
você ainda espera angariar pode ser que tenha dissabores. Comece
por algo que depende de você e concentre-se em seus pontos fortes.
Quais são seus dons? Que talentos tem? Quais foram suas experiências
prévias? De quantos membros consta a equipe missionária? O que
podem fazer bem juntos? Será mais fácil definir propósitos que têm
a ver com seus pontos fortes, pois será muito mais natural ter vitória
nessa área.

5. Flexível e adaptável

Sua visão deve ser flexível para permitir adaptações e mudanças no


percurso. Não seja rígido demais ou excluirá possíveis mudanças que
podem vir a ser essenciais. Certa feita, sonhamos com um curso noturno
de alfabetização de adultos voltado especialmente para mulheres. Estava
dentro de nosso propósito já definido. Tínhamos os recursos humanos,
pois minha esposa é especializada em alfabetização de adultos, e os
recursos locais, pois tínhamos salas vazias em nossa missão no período
noturno. Havia viabilidade, pois o governo incentivava esse tipo de
curso e cerca de 90% das mulheres da região eram analfabetas. Porém,
não deu certo. As mulheres não tinham persistência e mostravam pouco
interesse. Na verdade elas não viam grande utilidade para a leitura. Em
seu dia-a-dia não tinham grandes oportunidades para a utilização desta
nova habilidade.

Entretanto, percebemos que havia um número expressivo de homens


e de jovens interessado em aprender inglês, pelo que passamos a ter um
curso noturno de inglês ministrado por Analita, outra colega da equipe,
formada na Inglaterra. Esse curso teve bastante sucesso e vários homens
acabaram ouvindo o evangelho. Ser flexível é fundamental. Mantenha
a mente aberta a possíveis modificações que vão ajudar no objetivo de
alcançar a visão. Lembre-se que "o cérebro é como um pára-quedas, só
funciona quando aberto", como dizia Sir James Dewar.

6. Avaliável

Sua visão deve ser também passível de avaliação. Um dos objetivos


de se ter uma definição de propósitos é exatamente poder avaliar se

53
Antes do ide

estamos conseguindo o que pretendíamos. "Quem se esquece de seus


erros está condenado a repeti-los", escreve o Juiz Federal Willian
Douglas lO • Se você não sabe para onde vai então só irá conseguir chegar
a lugar nenhum, mas se tem um destino pode medir o progresso. Estou
mais perto ou não? Estou ainda na direção certa? Perdi o rumo? Para isso
serve a visão. Permite manter o foco.

o que queremos fazer? Como diz Rick Warren, mais uma vez "o
segredo de ser eficiente é saber e fazer o que realmente deve ser feito e
não se preocupar com o que não pode ser feito"". Periodicamente será
preciso parar e avaliar o progresso. Pitágoras, um dos pais da filosofia
grega, dizia: "não adormeça sem rever as transações do dia", e Jeremy
Taylor, um conhecido autor inglês do século 17, afirmava: "Examine a
si mesmo como se estivesse examinando seu pior inimigo e assim será o
melhor amigo de si mesmo".

Portanto, escreva uma definição de propósitos que lhe permita


avaliações contínuas e estabeleça tempo para fazer essas avaliações
sempre procurando manter o foco em mente. Em nosso projeto escolar
na Guiné, muitas vezes tivemos que recordar que o objetivo era a
evangelização. Sem esses períodos de avaliação a tendência é se deixar
levar pelo trabalho e por vezes derivar do alvo principal. Avalie e
mantenha o foco.

7. Metas

o passo seguinte à formulação de seus propósitos é o estabelecimento


de metas. O propósito é o porto final, as metas são as escalas. "Metas
são necessárias não apenas para nos motivar. Elas são essenciais para
nos manter vivos"'2, escrevia Robert Schueller. Ninguém que estabeleça
como propósito correr a maratona de Nova York principiará correndo 42
km no primeiro dia, pois, nesse caso, morrerá e não chegará a cumprir o
que se propunha. Vai começar correndo alguns quilômetros por dia, vai
mudar a dieta, vai buscar a orientação de um treinador e passo a passo
vai estabelecendo metas até poder correr a maratona. Se seu propósito
é ler a Bíblia toda tem um excelente propósito mas, certamente, não o
pretende fazer num só dia. No entanto, pode ler 3 capítulos por dia e 5 a
cada domingo e assim vai chegar ao fim do ano com a Bíblia toda lida.
Ter metas passíveis de avaliação é uma forma de se manter a caminho do
alvo proposto.

54
Capítulo III - O propósito da missão

Também no seu trabalho missionário deve haver metas secundárias


ao propósito principal. Voltando ao nosso exemplo em Bafatá, queríamos
ter uma igreja de crentes de certa etnia, auto-sustentável e autoliderada.
Isso passava por metas secundárias como: batizar 5 a 10 pessoas por ano;
fundar uma congregação em 3 anos; organizar a igreja em 5 anos; treinar
os convertidos para ministrar logo após a organização da congregação;
transferir paulatinamente cargos de liderança aos nacionais num período
de 3 a 5 anos. Essas metas levavam ao propósito, mas eram de curta
duração. Cumpri-las nos dava prazer e sensação de trabalho realizado.
Ajudava a focar no essencial e permitia avaliar com periodicidade se
estávamos atingindo os alvos ou não.

Certo homem fugiu da Coréia do Norte para o Sul. Entrevistado por


um jornalista da BBC, ele relatou como passou 20 anos literalmente
debaixo da terra cavando túneis para o exército norte-coreano. Quando
o jornalista quis saber como ele conseguiu sobreviver em tal atividade
ele disse que trabalhava porque acreditava que estava de algum modo
ajudando a futura reunificação das Coréias. Quando o jornalista insistiu,
o homem contou que, para se manter lúcido, procurava avançar 5
metros por dia na escavação. Ele tinha um propósito e também metas
secundárias. Até debaixo da terra fica mais fácil trabalhar quando se
têm alvos!

8. Ação

Muito bem. Você já tem uma declaração de propósitos e estabeleceu


suas metas. Agora arregace as mangas e mãos à obra. "Sonhos são
gratuitos. Transformá-los em realidade tem um preço"l3, disse E. 1.
Gibs. O melhor propósito do mundo não vai sair do papel se não houver
dedicação ao trabalho e entusiasmo. Fernando Pessoa incentivava: "Sê
todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes". Lembre que o
Sr. "Eu Gostaria" nunca fez nada, o Sr. "Eu tentarei" fez grandes coisas,
mas o Sr. "Eu farei" fez autênticos milagres.

O General Booth fundou o Exército de Salvação e teve uma influência


marcante em milhares de vidas. Era conhecido por seu entusiasmo. Certa
feita, embarcava num navio para a Índia e um grande grupo de jovens
da sua organização foi se despedir dele tocando tamboretes e fazendo
bastante barulho. Estava no mesmo navio o escritor Inglês Rudiard
Kipling que desaprovou tamanho barulho e comentou com o general

55
Antes do ide

sua opinião. a homem de Deus sorriu e respondeu: "Meu jovem, se eu


soubesse que ficando de cabeça para baixo e tocando tamborete com os
pés ajudaria a salvar alguém, eu aprenderia a fazê-lo na mesma hora". É
esse o tipo de ânimo que faz grandes homens. John Wesley pregou cerca
de 42 mil sermões durante sua vida e aos 83 anos reclamava que já não
podia manter o ritmo de antes.

Com sabedoria, disposição para trabalhar e discernimento do céu


podemos ser instrumentos de mudanças ao nosso redor. Sempre amei
essa oração que já vi em quadros de muitos lares: "Senhor, dá-me forças
para transformar as coisas que posso transformar; serenidade para aceitar
as que não posso mudar e sabedoria para distinguir umas das outras.
Amém!"

9. Perseverança

Quando Thomas Edison testava vanos materiais para a produção


da lâmpada elétrica, a maioria das pessoas julgava suas tentativas uma
perda de tempo. Afinal, ele estima que foram necessárias cerca de dez
mil tentativas para obter o resultado desejado. Mas ele persistiu com
tenacidade e mais tarde escreveu: "Nossa maior fraqueza está em desistir.
a caminho mais certo para vencer é tentar mais uma vez". Concordamos
com o grande imperador Napoleão Bonaparte quando disse que "a vitória
pertence ao mais perseverante".

a campo missionário tem a capacidade de nos testar até o limite. As


lutas serão tantas que a idéia da desistência vai surgir muitas vezes. Creio
que será falta de honestidade um missionário dizer que nunca pensou em
desistir. A questão aqui, tal como no problema da tentação, não é o ser
tentado, mas o cair. a pensamento de desistência virá, mas o missionário
vai perseverar porque sabe que tem um propósito dado por Deus. A hora
de sair é só quando atingimos o alvo, vimos a visão completa. Então
o Senhor nos dará outra visão e, tais como Simeão, poderemos orar,
sentindo que chegou a hora de partir.

No entanto, ao longo dos próximos capítulos, estaremos abordando


muitos temas que têm a ver com a desistência e a perseverança.
Minha oração é que o estudo desses temas o ajude a estar mais
preparado para as lutas do campo e mais capaz de perseverar diante
das dificuldades.

56
Capítulo III - O propósito da missão

Concluindo

Antes de IniCiar seu trabalho mISSlOnano procure definir seus


propósitos. Busque uma imagem clara do que pretende que seu trabalho
alcance. Busque essa visão no Senhor. Coloque essa visão por escrito
e que ela seja realizável, dependendo de seu próprios dons e recursos,
flexível e avaliável. Estabeleça metas secundárias em direção ao
cumprimento do propósito. Depois passe à ação com todo entusiasmo e
persevere até ver sua visão cumprida.

Quando nossos propósitos vêm de Deus, muitas vezes alcançarão


muito mais do que pretendíamos a princípio. Mary Jones era uma garota
galesa de 9 anos. Vivia numa pequena aldeia que nem sequer tinha escola.
Mas um dia ela teve um sonho que se tornou em um propósito claro:
"Ter uma Bíblia". Algo tão simples para nós hoje era então praticamente
impossível. Livros eram objetos de luxo que apenas os ricos podiam ter.
A família de Mary era pobre, mas ela não desistiu. Quando foi aberta uma
escola na igreja da aldeia, ela foi uma das primeiras alunas a aprender a
ler e a ter o privilégio de ler o texto sagrado no culto dominical. Durante
6 longos anos ela trabalhou em várias atividades diferentes juntando
seu dinheiro (perseverando em suas metas). Finalmente, com a ajuda de
algumas pessoas da igreja, ela juntou o necessário e fez a viagem até a
cidade onde poderia comprar a desejada Bíblia. Conseguiu seu intento
e regressou para casa com o prêmio de seu esforço. Seu testemunho foi
tão marcante que os homens responsáveis pela publicação das Bíblias
resolveram fundar uma Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira,
dedicada a editar Bíblias para o maior número de pessoas, no maior
número de línguas. Mas tudo começou com uma menina perseverante
com um propósito divino e um Deus que tem todo o poder.

57
Capítulo IV
"Pecha tua porta "
"Aquele que foge de Deus pela manhã,
dificilmente o encontrará no resto do dia"
John Bunyan

"Se não fores conosco, não nos envies"


Êxodo 33.15

m dos lugares mais deslumbrantes que conheci em toda a vida é o


jardim da cidade de Angra do Heroísmo na Ilha Terceira, Açores,
Portugal. Um local paradisíaco com vários andares de jardim
cuidadosamente tratado por uma equipe de jardineiros dedicada. Cada
canteiro parece mais bonito que o anterior. Para qualquer lado que se olhe
é possível encontrar pequenos recantos com suaves cascatas, árvores que
fazem sombra gostosa no calor do dia, escadas rústicas que levam a novas
descobertas. Por todo o lado há bancos. Clássicos bancos portugueses
de jardim, pintados de verde e sempre restaurados para suportar a
grande umidade das ilhas. São um convite a sentar-se e aproveitar toda a
exuberância que a mãe natureza despejou em um só lugar.

Gostava de passear no jardim nos intervalos das aulas ou enquanto


esperava que meus pais terminassem as gravações no Rádio Clube de
Antes do ide

Angra. Havia um lugar em particular que me chamava muito a atenção e


onde sentava para ler. Logo à entrada do jardim à direita, no fim daquela
alameda. Lá estava ela. Uma árvore simplesmente linda. Nem sei seu
nome ou tipo. Só me lembro que era linda, do gênero chorão cujos ramos
enormes e cheios de folhas pareciam cair como cascata sobre quem se
sentasse embaixo. A sombra era perfeita e a frescura que se desfrutava
por baixo dela era extremamente aprazível. Era também uma das maiores
árvores do jardim. Só uma outra no lado oposto do jardim rivalizava em
tamanho. Mas a outra era menos bela. Altiva e com ramos retos, ela não
me chamava a atenção.

Os Açores são ilhas que ficam no meio do Oceano Atlântico e


anualmente enfrentam tempestades e ciclones bastante violentos. Foi
um desses que me revelou algo marcante sobre as árvores e as pessoas.
Durante toda a noite os ventos fustigaram a ilha soprando a mais de 130
quilômetros por hora. A todo momento parecia que a casa ia levantar vôo.
No outro dia pela manhã podia ver os sinais de destruição, sobretudo na
vegetação. Foi por isso, com certa ansiedade, que fui ao jardim à procura
de minha árvore favorita. E meus receios provaram estar certos. Ali
estava ela, caída no chão, totalmente destruída.

Minha desolação era quase tão grande como se tivesse perdido


alguém conhecido. Um dos jardineiros que estava por perto pareceu
entender minha consternação e me chamou a atenção:

- Veja as raízes (disse ele apontando para a árvore tombada). Veja


como são pouco profundas. Este tipo de árvore investe demasiado nos
ramos. Ficam muito bonitas, mas sem raízes profundas não podem
resistir às tempestades.

Lá do outro lado do jardim estava a outra árvore. Não era tão bonita.
Não chamava tanto a atenção. Não era a favorita das pessoas. Mas tinha
raízes profundas e o máximo que a tempestade pôde fazer foi lhe tirar
algumas folhas.

Mais tarde entendi que essa verdade se aplicava às pessoas também.


Já falamos neste livro sobre a preparação para o trabalho e falamos
sobre a necessidade de um propósito definido e alvos estabelecidos.
Mas quando tivermos nossos grandes ideais prontos e nossas vontades
afinadas, como é que vamos ficar de pé? A resposta vem do jardim de
Angra. Ficarão de pé aqueles que tiverem as raízes mais fundas. Serão

60
Capítulo IV - "Fecha tua porta!"

bem-sucedidos aqueles que estiverem bem alicerçados. E a raiz de que


queremos falar, o alicerce para a obra missionária, é a vida devocional
do missionário.

Pode parecer estranho querer falar de vida devocional num livro


dedicado a pessoas que estão se preparando para a obra de missões. Ora,
não são os candidatos a missões justamente os melhores dentre nós? Não
são esses os que deixaram de lado o mundo e os ganhos materiais? Não são
eles que escolheram a vida de sacrificio em prol da salvação dos perdidos?
Não serão eles os continuadores do rol de heróis e mártires do passado?

A verdade dura, porém, é que como Eugene Peterson comenta com


profundo realismo: "Não conheço outra profissão em que seja tão fácil fingir
como a nossa"l. Peterson está falando do trabalho pastoral, mas creio que
podemos perfeitamente aplicá-lo à obra missionária quando fala:

"Existem três atividades pastorais tão básicas, tão críticas,


que determinam a forma de todas as outras: oração, leitura da
Bíblia e orientação espiritual. Além de básicas, essas tarefas são
silenciosas, não chamam a atenção, de modo que, muitas vezes,
são negligenciadas. No trabalho pastoral, tão cheio de urgências,
ninguém nos incita a nos apegarmos a elas. É possível satisfazer
aqueles que julgam nossa competência ou pagam nosso salário sem
sermos diligentes ou habilidosos nelas. Já que quase ninguémpercebe
se cumprimos esses três atos no ministério e só ocasionalmente nos
perguntam se os executamos, é comum nos descuidarmos."2

Se esta afirmação é verdadeira e pertinente para a obra pastoral, então


é verdadeira e pertinente ainda mais para a obra missionária. A razão por
que tal assunto é de tamanha importância é dupla. Por um lado por causa
das raízes. Sem uma vida devocional forte os missionários simplesmente
não terão como suportar as tempestades que virão. Precisamos aprender
com Melanchton que dizia que "os problemas e a perplexidade me levam
à oração e a oração leva embora os problemas e a perplexidade"3.

A segunda razão é que sem vida devocional não teremos poder


espiritual para o trabalho e nem testemunho digno do Senhor, como
entendia o Padre Antônio Vieira que clamava já no século XVII: "Sabeis
cristãos por que se faz hoje tão pouco fruto com tantas pregações? É
porque as palavras dos pregadores são palavras, mas não são as palavras
de Deus (...) pregam palavras de Deus mas não A Palavra de Deus"4.

61
Antes do ide

Temos que reconhecer que as atividades e lutas do campo, aliadas a


uma mentalidade moderna avessa às disciplinas espirituais, criaram uma
geração de obreiros que conhece pouco dos segredos dos grandes do
passado. Torna-se, pois, necessário e mesmo indispensável meditar um
pouco sobre a importância dessas disciplinas.

1. Oração

Devemos começar por esta atividade que é tão falada e tão pouco
praticada - a oração. E falamos aqui da oração particular. Jesus nos
ensinou que "quando você orar, vá para seu quarto, feche a porta e ore
a seu Pai que está em secreto" (Mateus 6.6 - NVI). O Mestre chamava
a um contato íntimo e reservado, quando, fechando a porta, deixamos de
fora o mundo, suas interrupções e preocupações. Um ato secreto, pois só
nesse secretismo temos a coragem de ser totalmente abertos e conversar
com o Pai sobre tudo que nos aflige. Sabemos da necessidade desse
tempo de oração, sabemos até que é fatal espiritualmente passarmos
sem ele. Mas, mesmo assim, quantos dias se passam sem que separemos
tempo efetivo para essa devoção?

Num estudo feito entre pastores de vários países descobriu-se que um


pastor na Austrália ora em média 23 minutos por dia, um pastor na Nova
Zelândia ora em média 30 minutos por dia, um Japonês ora 40 minutos
e um coreano, cerca de 90 minutos 5• Quanto tempo será que os pastores
oram em média no Brasil? Talvez tenha sido um alívio não sermos
incluídos nesta pesquisa...

Uma das razões para isso é que nos tornamos auto-suficientes. Se


for verdade que devemos firmar propósitos e estabelecer estratégias,
também devemos saber que tudo isso sem oração será fútil e vazio. O
missionário na Índia, Stanley Jones, já percebia nosso dilema há mais
de 100 anos quando enfatizava que "o ensino do Novo Testamento é
que devemos ser suplicantes e não auto-suficientes. Esse fato é um
grande choque para a vaidade contemporânea"6. Estamos treinados
para fazer as coisas acontecerem. Temos capacidade até para perseverar
em atividades e programações, mas pouco treino e pouca habilidade de
perseverar em oração.

Declaramos que entregamos a Deus nosso coração, mas isso não


significa nada de concreto. Mas o tempo, a imaginação, a mente, os

62
Capítulo IV - "Fecha tua porta!"

sentimentos, a vontade, o corpo, esses continuam sob o nosso controle


pessoal. Afirmamos nosso amor e mesmo paixão pelo Senhor, mas
fugimos de tempo com ele. Procure se lembrar da última vez que esteve
apaixonado e me responda: quando estava apaixonado se contentava
em estar com a pessoa amada apenas em reuniões públicas? Creio que
não. Não era justamente o momento íntimo o mais desejado? E por
quê? Porque era na intimidade que melhor expressávamos nosso amor e
ouvíamos do amor do ser amado.

Se quisermos sentir a presença real de Deus em nossa vida temos que


ter um genuíno desejo de o encontrar. A.W.Tozer afirmava que "desejo
intenso tem que estar presente ou não haverá manifestação de Cristo a
seu povo. Ele espera para ser desejado"7. E por que não o temos buscado
então? Será porque intimidade com Deus exige pureza pessoal? Será que,
como o povo de Israel no deserto, estamos assustados com os trovões e
relâmpagos e não queremos pagar o preço da proximidade com o Senhor?
Será que nos julgamos perto o bastante? Na verdade, "a presumida
familiaridade tem levado ao desconhecimento, o desconhecimento ao
desdém e o desdém a uma profunda ignorância"s, como escreve Dallas
Willard.

o missionário que quer ser bem-sucedido e ama o Senhor da obra


deve saber que a prioridade número um de sua vida e ministério é o
tempo de comunhão. Quanto mais trabalho tiver mais precisará de tempo
com o Senhor para, na definição de Willard, "conversar com Deus sobre
o que estamos fazendo juntos"9. Mas como ter um período frutífero de
oração? T~nho descoberto em conversas com inúmeros jovens que muito
se fala sobre a necessidade de orar, mas relativamente pouco é dito sobre
como fazê-lo. Afinal, todos temos como os discípulos um pedido nos
lábios "ensina-nos a orar". Eis algumas sugestões práticas.

A melhor hora para se ter um tempo de devoção é a manhã.


Podemos tentar variar e improvisar, mas não há como escapar. Os
exemplos bíblicos são extensos. Procure uma boa concordância e
veja a palavra madrugada. São muitos os casos de servos de Deus
se levantando cedo para orar. Como sempre, o exemplo supremo foi
Jesus. Se ele precisava levantar cedo para orar, o que diremos de
nossa necessidade de fazer o mesmo? Colocar o despertador para
30 minutos mais cedo pode ser um princípio. Se formos fiéis, logo
descobriremos que o prazer do tempo com Deus excederá em muito a
dificuldade de levantar.

63
Antes do ide

Use algum tipo de sistema para iniciar seus devocionais. Pode ser um
livro de meditações que vai ajudá-lo a focalizar verdades bíblicas diárias.
Pode ser uma leitura sistemática da Bíblia. O grande Jorge Müller contava
que de manhã cedo começava pela leitura da Palavra e cada trecho lido o
levava a um ou mais assuntos de oração. Quando terminava de orar por
aquilo, lia mais um pouco e assim sucessivamente. Outros gostam de
usar a oração do "Pai Nosso". O pastor Larry Lea, por exemplo, sugere
essa oração como um circuito com os seguintes passos 10:

- Iniciar com adoração e gratidão concentrando-se no que é o


Senhor;
- Consagração pessoal à vontade de Deus, o que o Senhor deseja;
- Consagração da família, amigos e ministérios à vontade do
Senhor;
- Petição específica, o que o Senhor faz;
- Perdão de meus agressores, predisposição para perdoar neste novo dia;
- Proteção espiritual pessoal, para família e ministério;
- Adoração e entrega do dia.

Ou você pode seguir a sugestão de Bruce Wilkinson e fazer da


oração de Jabez, em ICrônicas 4.10, sua oração diária por bênçãos,
maiores oportunidades, unção especial e proteção significativa". Muitos
desenvolvem diários de oração com as referências a pedidos e respostas
devidamente anotadas com as respectivas datas.

Seja qual for a forma, o importante é que comecemos o dia na


presença de Deus em oração sincera. "Em oração é melhor ter coração
sem palavras do que palavras sem coração", dizia John Bunyan.
Certamente porque, muitas vezes, nesse momento individual e secreto de
oração, iremos abrir o coração e ouvir nossos lábios pronunciar palavras
semelhantes àquelas dos salmos chamados difíceis. Vemos nos Salmos
12,13,37,69,74,88 e 109 palavras de verdadeiro desespero mescladas com
confiança. O Senhor está atento àqueles que o buscam com sinceridade.
Esse tempo de comunhão será a base de nosso ministério.

Evitemos a todo o custo deixar passar um dia sem nosso tempo


devocional. Certo pianista contava que se deixasse de treinar um dia ele
notaria; se deixasse de treinar dois dias seus amigos notariam; mas se
deixasse de treinar três dias até o seu público o notaria. Imagine agora
o efeito na vida espiritual. Que nunca seja preciso vir do público a
referência de que não estamos passando tempo com Deus.

64
Capítulo IV - "Fecha tua porta!"

2. Meditação bíblica

"A Bíblia é para nós o que a estrela foi para os magos; mas se
passarmos todo o nosso tempo só olhando para ela, observando seus
contornos e admirando seu esplendor, sem deixar que nos leve a Cristo,
a sua utilidade será perdida para nós", escrevia Thomas Adams l2 • Aqui
também entramos em território sensível. Qual a necessidade de se falar
em leitura da Bíblia num livro dedicado a futuros missionários? Muita!
Porque temos aprendido a usar a Bíblia como um manual de estudos e
uma fonte de sermões, mas não como nossa fonte de alimento espiritual.
Ficamos tão preocupados em tirar lições e esboços que não chegamos a
nos alimentar. Pregamos e ensinamos, mas aquilo que transmitimos não
foi provado por nós. Como uma cozinheira que prepara um belo prato
sem saber se tem ou não sal suficiente ou se carregou demais em algum
condimento.

Precisamos por isso mesmo aprender a ler a Bíblia. Olhá-la como


nossa principal fonte de direção. Precisamos fugir do erro que Tozer
denunciava quando escrevia que "agora lemos o livro, como memórias
do que Deus disse quando ele estava, por um breve período de tempo,
falando"13. Não admira que vejamos tantos jovens e outros não tão jovens
assim em nossas igrejas reclamando que não conseguem conhecer a
vontade de Deus. Concordo com alguém que disse que o Senhor já
revelou 90% de sua vontade nas páginas da Bíblia. Se quisermos viver
dentro de sua vontade, precisamos lê-la e praticá-la e logo saberemos o
que fazer. Por outro lado, por que o Senhor se daria ao trabalho de nos
revelar os I O % que faltam se não cumprimos os 90% revelados?

Meu apelo é que vejamos a Bíblia essencialmente como nossa fonte


de alimento espiritual. Busquemos suas páginas diariamente com fome
de saber a vontade do Senhor para aquele dia. Indaguemos, ao ler,
quais as respostas que o Senhor tem para nossas questões atuais. Assim
fazendo, iremos tirar também muitas lições, estudos e sermões que serão
muito mais eficazes, pois serão a Palavra que já nos falou. Lembremos
que a Bíblia não nos foi dada para informação, mas para transformação.

3. Jejum

Eis outra disciplina religiosa que, apesar de fazer parte de todas as


grandes religiões do mundo, tem sido muito negligenciada por largos setores

65
Antes do ide

da igreja evangélica. Em certos meios, a simples menção do jejum desperta


olhares desconfiados e suspeitas de fanatismo. Mas a Palavra está repleta de
referências ao jejum. Muitos daqueles que consideramos grandes homens
de Deus do passado nos são mostrados jejuando nas páginas sagradas como
Moisés, Josué, Davi, Daniel, Esdras, Neemias, Paulo. O Senhor Jesus nunca
colocou em causa a prática do jejum. Suas palavras foram muito naturais
pois ensinava "quando jejuarem..." Logo, esperava que seus discípulos
jejuassem. Mas nós somos discípulos numa civilização ocidental que vive
da satisfação de seus desejos e vê com muita dificuldade o jejum.

O poder dessa prática, porém, não é desprezado pelas outras grandes


religiões do mundo. Budistas e hindus respeitam seus homens santos
por suas abstinências. No islamismo um mês inteiro é dedicado ao
jejum comunitário. Pergunte a qualquer missionário que ministre entre
muçulmanos e ele lhe dirá como a opressão espiritual cresce durante
o Ramadã. Por que será que justamente nós, aqueles que detemos o
evangelho de boas novas, é que desprezamos tal poder? Seria parte
da estratégia do inimigo para nos tirar força? Se conheço uma arma
poderosa que meu inimigo detém, mas consigo convencê-lo de sua
inutilidade, estou em vantagem.

Há que redescobrir, e de forma urgente, a importância do jejum. Creio


que os missionários deverão estar na vanguarda dessa redescoberta, pois,
de uma maneira bem prática, se beneficiarão dessa disciplina.

A prática do jejum em nosso meio é matéria de discussão. Segundo


o pastor Mahesh Chavda l4 , conhecido conferencista internacional e
autoridade nessa área do jejum, as razões para jejuarmos são inúmeras:

- É obediência à Palavra de Deus;


- Serve para nos humilhar perante o Senhor;
- Serve para obter vitória sobre as tentações;
- Serve para nos purificar do pecado;
- Serve para nos quebrantar diante de Deus e nos fortalecer nele;
- Serve para obter suporte na execução da obra;
- É de utilidade inestimável em tempos de crise;
- Ajuda a obter direção e respostas do Senhor;
- Auxilia no crescimento do entendimento espiritual e revelação divina;

Tal como na oração e leitura da Bíblia, também no jejum o beneficiado


sou eu. O Senhor não precisa do meu jejum. Ele não precisa da minha

66
Capítulo IV - "Fecha tua porta!"

oração. Quem se beneficia da oração sou eu, pois minha fé cresce ao


ver as respostas e ao receber conforto. Igualmente quem se beneficia do
jejum sou eu, que me sinto humilhado e quebrantado, pois "Deus se opõe
aos orgulhosos mas concede graça aos humildes" (Tiago 4.6b - NVI).

o jejum pode ser praticado de forma regular (semanal, mensal,


trimestral) ou em momentos em que se busca resposta do Senhor. Pode
ser de um só dia ou de mais dias. Podemos beber suco de frutas, leite ou
só beber água. Pode ser individual ou coletivo. Para maiores orientações
nessa área mencionaria o livro de Mahesh Chavda: "O poder secreto do
jejum e da oração", da editora Dynamus.

4. Adoração

Outro aspecto da vida devocional que temos negligenciado é a


adoração. Sabemos e referimos até com freqüência que "o Senhor habita
no meio dos louvores do seu povo". Mas parece que limitamos essa
verdade às celebrações dominicais e não a aplicamos à nossa vida diária.
Creio que esse também é um ponto da vida devocional que o missionário
deve desenvolver para que suas raízes estejam firmes e seu fruto seja
permanente.

Analisando a questão da adoração, vemos que adorar está ligado a


exaltar, enaltecer, louvar. Tudo isso poderia ser dito resumidamente de
forma simples em "falar bem". Adorar Deus seria falar bem de Deus.
Logo, o contrário seria falar mal dele ou de suas obras. O que nos leva à
conclusão que o contrário de adorar pode muito bem ser murmurar. Por
isso o Senhor é tão avesso à murmuração e o povo de Israel foi castigado
tantas vezes no deserto. Murmurar traz conseqüências. O Senhor habita
no meio dos louvores, porém no meio das murmurações há dor e
amargura, como quando alguém é picado por uma cobra. Foi isso que o
Senhor quis que o povo entendesse no famoso episódio da serpente no
deserto.

Vivendo há 8 anos na África, já vi muita gente picada por cobras.


Mesmo nos casos menos graves o sofrimento é grande. A pessoa
sofre pela dor local, pela dor que se espalha pelo corpo, mas sofre
psicologicamente com o medo do que vai se suceder. Até hoje não vi
ninguém se manter otimista após ter sido picado por uma serpente. A
pessoa mordida sempre irá imaginar o pior cenário possível. Assim é o

67
Antes do ide

murmurador. Não percebe que sua murmuração só vai lhe acrescentar


mais dor. Vai lhe trazer pessimismo e, em última análise, é uma ofensa a
Deus. É uma reclamação dirigida a ele dizendo que de alguma maneira
ele tem falhado em sua direção do mundo. A murmuração, qual doença,
vai tomando conta do paciente. Qual hábito pernicioso vai dominando.
Uma pessoa picada por cobra venenosa ao fim de algumas horas muda
até a cor da pele antes de morrer. O murmurador fica tão dominado por
sua murmuração que muda sua personalidade e se torna uma pessoa
desagradável e anti-social.

Creio que os missionários correm riscos acrescidos de serem picados


por essa serpente da murmuração. O diabo sabe que um missionário
murmurador entristece a sua própria alma, enfraquece a família, tira as
condições de trabalho com os colegas, prejudica os crentes nacionais e dá
mau testemunho aos descrentes. O trabalho missionário não pode florescer
quando feito por um murmurador, porque a presença de Deus não se fará
sentir. Posso dizer com tristeza que sei disso por experiência própria.

Sei o que é viver em condições dificeis, sem eletricidade, água


corrente, correio, locais de lazer ou mesmo simples lojas para fazer
compras. As coisas são feias à sua volta, a corrupção desgasta, a pobreza
oprime e aos poucos vamos ficando tão negativos que só sabemos
reclamar. Vivi esse erro e me deixei levar a ponto de quase não saber
mais como retornar. Sei o que é chegar a ponto de não saber mesmo onde
estava a alegria da salvação. Estava onde o inimigo me queria, quando,
pela graça de Deus, percebi o rumo que levava em tempo de retornar ao
caminho certo.

O caminho certo é o da adoração. O prazer no Senhor. Em seu livro


sobre os salmos, C.S. Lewis desenvolve exatamente a idéia de que o ponto
central da adoração é o prazer no Senhor. "Todo prazer espontaneamente
flui em adoração", diz ele. E continua "nós temos alegria em louvar o
que nos dá prazer, porque o louvor não apenas expressa mas completa
esse prazer; é a sua consumação"15. E faz todo sentido. Nós louvamos ou
falamos bem naturalmente daquilo que nos dá prazer. Seja o louvor de
um prato de lasanha ou uma pizza, o louvor de um filme preferido, uma
peça musical apreciada ou mesmo uma jogada de futebol mais vistosa.
Aquilo que nos dá prazer recebe louvor com entusiasmo natural e esse
louvor não é forçado ou exigido. É dado com total satisfação pessoal,
pois, como Lewis nota, temos uma autêntica consumação no ato de
louvar o que nos dá prazer.

68
Capítulo IV - "Fecha tua porta!"

Precisamos aprender a ter prazer no Senhor. A ver sua mão de


providência nas pequenas e grandes coisas do dia-a-dia. Precisamos
de óculos especiais que nos capacitem a ver como Deus é e a ter alegria
nele. Então nosso louvor fluirá e sentiremos clara e distintamente sua
presença, pois ele habita no meio desses louvores e tem prazer de se
manifestar àqueles que assim o louvam. Aprender que "a primeira
coisa e a mais básica à qual devo dedicar-me a cada dia, é estar
com a alma alegre no Senhor", escrevia Watchman Nee l6 • E isso vai
influenciar o nosso trabalho de uma forma única, pois "Deus prefere
adoradores a trabalhadores; de fato os únicos trabalhadores aceitáveis
são aqueles que aprenderam a esquecida arte da adoração", como
referia A. W. Tozer.

Adoremos, pois, ao Senhor. Lancemos a ele palavras de gratidão e


louvor pelo que vemos e ouvimos pelo que sentimos e somos. Em vez
de reclamarmos, vamos nos concentrar em adorar. Vamos ouvir música
de adoração em casa para nos lembrarmos de como é bom cantar
louvores ao Senhor. Cada um tem seus cantores e conjuntos preferidos.
Deixe que sua casa seja um local de adoração. O inimigo não vai gostar
de tal ambiente e nós vamos sentir a diferença. Pessoalmente aprecio
muito um cantor americano chamado Carman. Trata-se de um artista
de raro talento para a música e interpretação. Seus shows são cultos
evangelísticos com músicas explícitas e não apenas referências veladas
a Jesus. Ele concentra seus poemas em evangelização e adoração, mas
também têm muitas letras de batalha espiritual que trazem ânimo e
entusiasmo, lembrando o crente de sua vitória certa sobre as trevas.
Gosto de ouvir Carman quando preciso de forças, pois me ajuda
espiritualmente. Cada missionário deveria tornar sua vida e seu lar um
verdadeiro local de adoração.

5. Contrição

Por último, nesta avaliação da vida devocional, quero tocar numa área
delicada e muito pessoal, mas que precisa ser mencionada. Uso o termo
contrição aqui para falar de auto-análise, introspecção com vista a uma
vida de santidade diante de Deus. Falo aqui daquele "examine-se cada
um a si mesmo" que é tão pouco popular.

No século XVII, o escritor puritano Richard Baxter escrevia aos


pastores da época dizendo que:

69
Antes do ide

"somos exortados a olhar para nós mesmos para não suceder


estarmos vazios da divina graça que estamos oferecendo a outros (..)
para não suceder que convivamos com os mesmos pecados contra os
quais pregamos (..) para que não estejamos despreparados para as
grandes tarefas que nos incumbimos de levar a cabo (..) para não
virmos a ser exemplo de doutrina contraditória "/7.

Baxter passa então a referir que devemos ter esse cuidado de nos
avaliarmos por dentro porque somos mais visados pelo inimigo,
somos mais visados pelos homens, crentes e descrentes, e porque as
conseqüências de nossa queda são mais graves. Faz lembrar o sol. Brilha
todos os dias e ninguém se lembra dele. Mas num dia raro em que haja
eclipse, o mundo inteiro quer vê-lo. Precisamos desenvolver o hábito da
contrição perante Deus para não corrermos o grave risco de desenvolver
pecados secretos que vão destruir nossa vida e ministérios.

No clássico da língua inglesa, "O retrato de Dorian Gray", o autor


Oscar Wilde conta a história de um jovem aristocrata de rara beleza
chamado Dorian, que é retratado num belo quadro por um pintor
amigo, Basil Hallward. O quadro fica tão perfeito que Dorian o inveja
pois percebe que vai envelhecer e perder o viço da juventude, mas o
quadro permanecerá belo. Formula então um desejo de que o quadro
envelheça e ele não, sem saber que seu desejo se torna realidade. As
semanas se passam. Marcado por uma desilusão de amor, Dorian
age com crueldade com uma moça o que a leva ao suicídio. No dia
seguinte, ao olhar o quadro, o moço percebe que a expressão se alterou
e surgiu no canto dos lábios um leve ar de desdém e malícia que antes
não existia.

A partir daí a história se desenrola. Dorian vai se afundando num


mundo de pecado e maldade desgraçando a vida de inúmeras pessoas.
O jovem se transforma numa pessoa repugnante e cruel, mas mantém o
mesmo ar angelical de sempre. É o quadro escondido num quarto secreto
que envelhece e mostra todas as marcas de seu pecado.

Um obreiro que não pratique a auto-avaliação corre o risco de cair


num ciclo semelhante. Sua alma se torna uma espécie de retrato de
Dorian Gray escondido nos recantos do coração enquanto na superficie
está tudo bem. É a vida dupla, as fantasias não reveladas, os pecados
de estimação nunca confessados e lá de vez em quando ficamos
surpreendidos com a queda brusca de um líder ou um missionário sem

70
Capítulo IV - "Fecha tua porta!"

saber que foi apenas o fim desse percurso de auto-engano, falta de


contrição e temor de Deus.

o caminho para se evitar essa situação é encarar a verdade. Somos falhos,


temos fraquezas, precisamos viver diante de Deus numa busca pennanente
de santidade. Ter uma vida devocional será essencial para esse processo
de contrição. Encarar a verdade é dar os nomes certos às atitudes certas.
Orgulho é orgulho e não autoconsciência; maledicência é maledicência e não
comentário; munnuração é munnuração e não realismo; malícia é malícia e
não prova de masculinidade, e tantas outras situações.

Temos que parar de falar de problemas e encarar nossos pecados.


"A razão pela qual problemas são mais convenientes que pecados é que
não precisamos fazer nada com os problemas (...) pecados requerem
arrependimento, confissão e perdão", escreve Robert Louis Cole l8 •

A alma contrita perante Deus é aquela que se abre ao Senhor em base


regular para receber a obra perscrutadora do Espírito Santo. Esse é o
objetivo das disciplinas espirituais como enfatiza bem Richard Exley:
"Essa disciplina não torna uma pessoa espiritualmente forte por si
mesma; antes, ela lhe revela o poder transformador do Espírito Santo. A
disciplina é como um caminho que leva a pessoa à presença de Deus. E
é a presença manifesta do Espírito na vida da pessoa que a conforma à
imagem do seu Senhor e lhe dá poder para vencer a tentação"19.

As disciplinas espirituais provarão ser a melhor defesa de nossa vida


e ministérios. Quanto mais nos achegamos ao Senhor por meio da oração
e meditação da palavra e adoração mais o pecado vai parecer sem graça,
e como John Piper bem notou, "a única maneira de evitarmos o pecado
em base regular é desenvolvendo um forte desprazer por ele"20 .

Pode-se, porém, dar o caso de um obreiro se ver enredado em um


ciclo de pecado - arrependimento, pecado - do qual não consegue sair
sozinho. Nesse caso vai precisar da ajuda de alguém maduro para vencer
essa fortaleza do inimigo em sua vida. Se for esse o caso, o mais dificil
vai ser vencer a vergonha. O inimigo fará de tudo para evitar que o seu
prisioneiro dê tal passo. Devemos lembrar que vergonha é ficar no pecado
e viver na hipocrisia. Pedir ajuda não é vergonha. Todos precisam dela
num ou noutro momento. Releia o início do livro de Oséias e veja como
o amor de Deus é incondicional. Ele pode odiar o que estamos fazendo,
mas nos ama profundamente e está pronto a perdoar e restaurar.

71
Antes do ide

Depois será preciso ser prudente na escolha da pessoa a quem


compartilharemos a situação. Ore por isso e peça ao Senhor uma pessoa
madura e preparada para o ajudar. Deve ser do mesmo sexo, com vida
espiritual comprovada, moral ilibada, com experiência na área de
aconselhamento e que seja discreta. O processo pode ser um pouco
demorado. Não se precipite e deixe que Deus o livre completamente
para a obra.

Concluindo

Para ter raízes fortes que lhe permitam ser frutífero no Senhor e
enfrentar as tempestades, desenvolva uma vida devocional ativa e intensa.
Diariamente amanheça com oração e meditação da Palavra abrindo-se à
voz e orientação de Deus. Pratique a adoração em base permanente e fuja
da murmuração. Seja honesto diante de Deus lidando com cada pecado
que surja sem lhe mudar o nome, mas buscando libertação por meio do
arrependimento e abandono e, se preciso for, procure ajuda espiritual
madura para o acompanhar nesse processo.

Na África Ocidental o clima é dividido em duas e não em quatro


estações. Não sabemos o que é inverno ou verão. Temos o tempo
seco e o tempo das chuvas. De outubro em diante as chuvas param
e durante meses não cai nenhuma gota de água do céu. Inicialmente
tudo vai bem, mas, com o passar dos meses, as coisas vão se
complicando. A água nos poços vai ficando cada vez mais baixa, a
vegetação seca e murcha e toda a paisagem adquire uma cor amarela-
tostada que não é muito agradável. Dia após dia o sol brilha num céu
intensamente azul só ocasionalmente tapado por uma tempestade de
areia. Mas como já diz o provérbio árabe, "se só há solo resultado
será um deserto".

Em maio a situação é terrível. O calor torna-se quase insuportável.


De manhã cedo, às 7:30, a temperatura já atinge os 35 graus. Os poços
secam na sua maioria, os rios estão muito baixos e a terra, de tão seca
que fica, começa a rachar. Os animais ficam magros e fracos e as pessoas
passam grandes períodos do dia escondidas dentro de casa tentando
suportar o calor e esperando ansiosamente pelas chuvas. Tudo está em
suspense na terra. O trabalho, a agricultura, os pescadores e caçadores, os
criadores de gado e os donos de hortas. A vida está suspensa por um fio.
Se a chuva não vier, será a morte certa.

72
Capítulo IV - "Fecha tua porta!"

Então, numa tarde quente e abafada, se vê ao longe o céu ficando


escuro. A princípio pensamos que é mais uma daquelas detestáveis
tempestades de areia. Reparamos melhor e notamos que é um céu de cor
diferente. Pode haver esperança. Depois de uma ou duas horas em que as
nuvens vão se acumulando em ritmo acelerado, começamos a sentir um
vento fresco que já não sentíamos há meses. Logo o rugido do temporal
enche o ar e a inquietação começa a ser difícil de disfarçar.

Quando finalmente os céus se abrem e a água tão ansiada começa a


cair não há como evitar sair às ruas para comemorar. Todos querem um
pouquinho dessa dádiva gratuita de Deus e, qual multidão em dia de
liquidação, afluem às ruas em euforia. "A chuva chegou!", é o grito das
crianças entusiasmadas e os adultos parecem até esquecer sua idade e
também dançam sob a chuvada forte.

Passado um mês a terra parece outra. Por todo o lado as sementes, já


há muito tempo perdidas debaixo do chão, começam a brotar. Os rios se
enchem, os poços voltam a ter vida, os campos podem ser trabalhados,
os animais têm o que comer, os pescadores pegam mais peixes, os
caçadores acham mais caça. A vida volta. A vida que dependia da água
que agora chegou.

Na vida e trabalho mlSSlOnano a vida também depende da água


da devoção diária. Não deixe sua alma padecer numa sequidão
desnecessária. O rio do Senhor está aí ao seu alcance. Mergulhe nele,
beba dele, viva nele.

73
Capítulo V
"Eu te amo, querida!"
"Uma família feliz é como um céu antecipado"
Sir John Bowring

"As muitas águas não poderiam apagar o amor,


nem os rios afogá-lo"
Cântico dos Cânticos 7.7a

notícia vinha na primeira pagma do jornal. Um prédio


centenário ruíra no bairro de Alfama na zona histórica de
Lisboa. Duas pessoas eram dadas como desaparecidas. As obras
de remoção dos escombros estavam sendo dificultadas pelo fato de as
ruas serem estreitas e de dificil acesso. O prédio em causa fora dado
como condenado a mais de um ano, mas alguns aposentados teimavam
em permanecer em seu interior apesar das enormes rachaduras que se
podiam ver claramente. Eram dois desses velhinhos que provavelmente
tinham ficado debaixo dos escombros.

O bairro de Alfama é dos mais tradicionais de Lisboa. Fica na parte


velha da cidade, numa região rica em história. Se as pedras de seus
calçamentos pudessem falar, contariam histórias de reis e princesas, de
revoluções e revoltas, de soldados a cavalo e até de tempos mais distantes
Antes do ide

em que mouros com espadas sarracenas passavam em direção ao castelo


conhecido hoje como de São Jorge. Ali, nesse bairro tão antigo estão
as raízes do fado, essa canção triste, mas encantadora que parece como
nenhuma outra retratar a alma lusitana. Um prédio que cai em Alfama é
uma parte do coração de Lisboa que se perde.

Ouvi um engenheiro falar então sobre os principais motivos da queda


daquele edificio. Era evidente que a casa estava velha demais, gasta
demais, e que já não podia suportar a passagem do tempo. Mas o que
foi enfatizado pelo profissional foi outro aspecto. Aquelas casas foram
construídas numa época em que o trânsito era constituído por pedestres,
carruagens, carroças, cavalos e burros. Seus alicerces eram muito bons
para esse tipo de agressão. Se as ruas de Alfama tivessem continuado
a ser freqüentadas apenas por esse tipo de veículo, provavelmente o
edificio em causa ainda estaria de pé. Mas a cidade evoluiu e a ciência
também. As ruas foram ficando cheias de outro tipo de transportes.
Vieram os carros, caminhões e outros veículos pesados e os alicerces não
tinham sido idealizados para tal agressão, pelo que ruíram.

Vejo aqui uma metáfora para as famílias dos missionários nos campos
de atividade. Muitas vezes ouvimos de casamentos que fracassam, de
filhos que se revoltam, de problemas familiares graves que se levantam
e ficamos admirados. Não são eles missionários? Não são servos
mais dedicados e consagrados? A família não parecia tão ajustada e o
casamento tão certinho aqui no Brasil? Pois é! Parecia e talvez até fosse
mesmo. Era uma família e um casamento bem estruturado e alicerçado,
mas para os tipos de agressões que encontravam no Brasil. No campo
missionário as agressões são outras, as dificuldades são diferentes e, de
repente, como o prédio de Alfama, a família e o casamento caem. Os
alicerces não estavam preparados para estes novos embates.

Não pretendo ser conselheiro matrimonial e nem mestre em educação


de filhos, mas quero compartilhar as dificuldades das famílias no campo
missionário sob o ponto de vista de um marido e pai missionário
que já foi também filho de missionários. Creio que tem havido pouca
atenção às necessidades das famílias nos campos em geral. Tem sido
referido que problemas no casamento contribuem muito para o retorno
de missionários dos campos, como refere Ted Limpic no relatório já
citado'. Em outros casos pode até acontecer que a família não retorne,
mas simplesmente se desintegra no campo e mais tarde isso vai deixar
profundos ressentimentos em todos os elementos. Há ainda o fator

76
Capítulo V - "Eu te amo, querida!"

educação dos filhos que é uma causa importante de retorno dos campos
mais isolados e dificeis. Precisamos repensar as famílias missionárias
para o bem destas e da obra.

1. Casamento

Creio que provavelmente o maior problema matrimonial dos


missionários advém de uma falta de chamada ou preparação missionária
por parte da esposa. Hoje há algumas agências missionárias que exigem
que a esposa também tenha uma chamada missionária e se prepare junto
com o marido. Isso é bom, mas pode não resolver todo o problema.
Infelizmente, vários são os casos em que as esposas se sacrificam pelo
sonho dos maridos e até apresentam uma "chamada" para que estes
possam seguir para o campo. É preciso honestidade e transparência. Os
passos que sugerimos no capítulo I para confirmação de uma chamada
real podem ajudar nessa verificação.

É essencial que o casal tenha preparo para a obra. Mesmo que a


esposa vá desempenhar essencialmente funções domésticas, a verdade
é que o campo vai exigir da família o que não exigia no Brasil. A
esposa vai precisar estar preparada para o que vier. Além do que, será
muito maior a comunhão do casal se ambos têm uma visão conjunta
e trabalham juntos para um mesmo objetivo. Há riscos enormes de o
marido se engajar na obra e a esposa só na vida familiar. É assim no
Brasil e será pior no campo.

Antes de sair para o campo é preciso que o casamento esteja realmente


bem. Certa vez, ouvi de um casal que estava com problemas conjugais,
mas se preparava para seguir ao campo missionário que, quando se
apresentou a possibilidade de que eles deveriam primeiro tratar seus
problemas conjugais e só então seguirem para a obra, um respeitado
pastor, avançado em anos, comentou que isso era desnecessário.
Segundo ele "os problemas no campo iriam fortalecer o casamento
e unir mais o casal". Respeito e admiro esse reverendo pastor, mas
creio que neste ponto está sinceramente equivocado. As dificuldades
do campo não aproximam os casais. Antes servem para criar tensões
que eles desconheciam e levam ao esgotamento da relação. O inimigo
da obra e dos casamentos é o mesmo e não vai poupar armas contra a
estabilidade das famílias. Muitos missionários poderão atestar comigo
das dificuldades que um casamento passa no campo.

77
Antes do ide

Para que os casamentos possam enfrentar bem todas as lutas que


surgem nos campos é necessário que a vida familiar seja uma das
prioridades do dia-a-dia. Concordo com David Pollock quando afirma
categoricamente que "sacrificar a família pelo ministério não está de
acordo com a instrução da Escritura"z. Lemos dos grandes missionários
do passado que sacrificaram tudo, inclusive a família. Mas estariam
certos nesse ponto? Não vejo base bíblica para isso. O apóstolo Paulo
deixou claro que os obreiros deveriam ser bons homens de família antes
de serem escolhidos para servir na obra (lTimóteo 3.1-7) e ele mesmo
defendia o direito de ter também uma companheira na causa como Pedro
e outros apóstolos (I Coríntios 9.5).

Fui criado venerando David Livingstone e sou hoje médico-


missionário na África em boa parte por causa da admiração por seu
trabalho, mas ninguém pode ficar indiferente à carta que sua sogra lhe
enviou, e chegou até nós, em que se refere ao tratamento que ele dava à
família: "ó Livingstone, o que você está pensando? (00') O mundo inteiro
condena ainda a crueldade da coisa (do abandono dos filhos e esposa)
para não mencionar a indignidade da mesma"3. Enquanto o marido se
tornava um dos exploradores mais famosos de todos os tempos, a esposa
e filhos viviam à beira da miséria na Inglaterra e corriam até boatos de
que a esposa se entregara ao alcoolism04 •

Muitos outros testemunhos temos do passado que seguem nessa linha,


mas julgamos que citar esse é suficiente. Se hoje queremos ver a obra
feita de forma eficaz e igrejas crescendo de forma saudável nos campos,
então precisamos reconhecer que os missionários devem dedicar tempo
às suas famílias. Devem fazer delas prioridade e desse modo serão mais
eficientes no trabalho e deixarão um rastro mais digno do nome do
cristianismo. Eis então algumas idéias a considerar.

1.1 - A responsabilidade dos maridos

Os maridos precisam saber que suas esposas estarão sob forte


pressão no campo missionário. A responsabilidade de ser esposa,
mãe, dona de casa e missionária numa terra desconhecida é tremenda.
Ele, o marido, pode se dar tempo para a aprendizagem da língua, mas
a esposa terá que mergulhar logo na cultura local para fazer compras
e providenciar para a família. As lutas para cuidar dos filhos e da casa
ficarão sobretudo sobre ela e fazer isso num lugar que não dispõe dos
recursos que ela conhecia no Brasil pode ser bastante estressante. O

78
Capítulo V - "Eu te amo, querida!"

marido deve saber que vai precisar ter paciência e ajudar mais em
casa e com as crianças do que fazia antes, se quiser ser um bom
companheiro.

1.2 - A compreensão das esposas

As esposas devem saber que a responsabilidade pelos resultados


do trabalho estará quase que inteiramente sobre os ombros do marido.
Nossa sociedade no Brasil ainda é muito machista. Os missionários são
sempre apresentados como: "O Pastor fulano e a família". Esse peso de
se sentir pressionado a mostrar serviço pode ser sufocante. Muitas vezes
o marido era um excelente obreiro no Brasil e se vê bastante limitado no
campo missionário. A compreensão da esposa será fundamental para que
ele ultrapasse os momentos dificeis.

1.3 - Tempo de convivência

Nada substitui o tempo de convivência num casamento. Passar tempo


denota valorização. Só gastamos tempo com o que é importante. Se um
marido não tem tempo para a esposa, que idéia lhe dá de sua importância?
Tempo aqui é o chamado tempo de qualidade. Tempo dedicado ao
casamento. Tempo para conversar juntos, sonhar juntos, discutir o futuro,
tempo para namorar. Esse tempo não deve ser ocasional, mas periódico e,
se preciso, deve se estabelecer dia e hora, pois de outra forma os dias vão
passando e sempre haverá algo a fazer. Nem sempre as pessoas na cultura
em que vamos ministrar entenderão isso. Uma alternativa é mostrar que
esse tempo separado para a família é um compromisso que temos. Certa
missionária me contou que simplesmente dizia às pessoas que em tal
noite não poderia assumir compromissos pois teria uma reunião. Era uma
reunião com o marido!

1.4 - O fator comunicação

A comunicação é outro fator que todos reconhecem como fundamental


no casamento. Comunicar, realmente comunicar, é essencial. Deve haver
lugar para se abrir o coração e deve haver tempo para se ouvir. Quantos
pastores missionários têm tempo para ouvir uma porção de pessoas, mas
não dispõe de tempo para ouvir a esposa? Talvez por isso Dallas Willard
comenta que "a maioria das famílias seria mais feliz e sadia se os seus
membros tratassem uns aos outros com o respeito que dispensaríamos a
um completo estranho"5.

79
Antes do ide

Mas comunicação é também falar. No casamento deve haver lugar


para palavras de afirmação, valorização, elogios e incentivo. Algumas
pessoas murcham sem palavras de apoio. Todos precisamos dessas
palavras. Outros valorizam mais o toque físico que serve igualmente
como valorizador. Saber se comunicar com seu cônjuge precisa ser uma
arte bem desenvolvida. Será importante descobrir qual é sua "linguagem
de amor" como o afirma Gary Chapman em seu livro "As cinco
linguagens do amor", livro que recomendamos vivamente 6 .

1.5 - Usando a criatividade

Se não pode fazer o que fazia no Brasil, pois o campo mlSSlOnano


tem suas restrições, então inove. O campo não é tão romântico como
nossa terra. Há tantas coisas que podíamos fazer em nossa cidade que
não é possível no campo missionário, logo, vai ser preciso imaginação.
Num filme muito interessante chamado "Instinto" um psicólogo iniciante
tenta desvendar o mistério de um antropólogo famoso. Esse antropólogo
estudava gorilas na selva africana e a certa altura desapareceu indo viver
entre os animais. Mais tarde, comete um crime para proteger os gorilas
e ao ser preso se fecha num mundo de silêncio. As entrevistas se dão
numa prisão de máxima segurança e o psicólogo não se sente à vontade.
Reclama com seu orientador que o ambiente de trabalho que achou não
é o habitual. O orientador lhe responde: "Então, não seja o psicólogo
habitual! "

O que queremos enfatizar é que em matéria de romantismo e


relacionamento conjugal ser criativo faz diferença! "Se você fizer o que
sempre fez, receberá o que sempre recebeu", escreveu Verne Hill. Um
casamento não pode viver só de romantismo, mas precisa também dele.
Nos países de terceiro mundo o calor é um fator comum e a falta de luz
elétrica também. Ora, calor e romantismo não se dão muito bem. Vai ser
preciso criatividade para driblar essas questões. Mas, um gesto de amor
nesse ambiente pode lhe valer mais do que imagina e lembre-se daquele
provérbio chinês: "O amor é como a lua, se não cresce, míngua".

1.6 - Definição dos papéis

Deve haver uma definição clara de papéis no ministério. Muitas vezes


parece haver uma pressuposição de que o marido vai tratar do ministério e
a esposa dos filhos e da casa. Pode até ser que isso seja assim, mas antes
é preciso haver abertura para que os papéis sejam definidos. Medir o grau

80
Capítulo V - "Eu te amo, querida!"

de satisfação de cada um com seu papel é importante porque assim que a


insatisfação se instalar o casamento vai começar a descer a ladeira. Quais
serão então as responsabilidades de cada um? Quem vai fazer o que e
quando? Quando é que vão ter tempo para estudar a língua? Quem vai ficar
com as crianças enquanto o outro estuda ou ministra? Nos casos em que
a esposa tem um ministério definido será preciso que o marido abra espaço
em sua agenda para permitir a esposa ministrar. Isso quer dizer que ele terá
que ficar em casa e cuidar das crianças ou preparar uma refeição. A esposa
não o respeitará menos por isso, antes, pelo contrário, ela vai apreciar a
liberdade para ministrar e o cuidado do companheiro em atender à família.
As crianças também se beneficiarão com o pai mais presente e o trabalho
missionário vai sair ganhando. Mas tudo isso só será possível se houver
abertura para se conversar e definir os papéis de cada um.

1. 7 - Decisões participativas

Intimamente ligado ao ponto anterior está a participação conjunta na


tomada de_decisões. Certamente isso vai depender dos temperamentos do
marido e da esposa, do tipo de casal que formam, do tipo de casamento
que têm e do tipo de ministério que exercem. Mas seja como for, o fato de
pensarem juntos nas questões e tomarem as decisões por consentimento
mútuo vai ajudar bastante a fortalecer o casamento. O outro lado é
também verdade. Uma esposa que fica de fora da tomada de decisões
vai se sentir insegura, desajustada, pouco importante e até desnecessária.
Certamente não é isso que o marido quer ver em sua companheira. Então
compartilhe e tome decisões em conjunto.

1.8 - Alicerçando o casamento

A base do casamento é sempre importante quando falamos em


sobrevivência do amor e da relação. Muito se fala e se escreve sobre
a necessidade de romantismo no relacionamento. Certamente isso é
verdade. Precisamos valorizar esse lado e procurar dar ao casamento
esse toque. Para isso há muitos livros com sugestões mais ou menos
viáveis. Mas, se o romance for a base do casamento, então certamente
os riscos serão enormes. Podemos estar apaixonados durante bastante
tempo, mas não todo o tempo. Podemos ter ocasiões para o romantismo,
mas não conseguiremos fazê-lo sempre. Se a base for essa, então mais
cedo ou mais tarde as rachaduras começarão a ser bem visíveis. A única
base sólida o suficiente para qualquer casamento, e em especial para um
casamento num campo missionário, é o Senhor. Estabeleça sua vida

81
Antes do ide

conjugal em Deus e terá certeza de futuro. Qualquer outro alicerce vai


se provar areIa.

Separe então tempo para comunhão em conjunto numa base diária.


Leitura bíblica, o compartilhar de verdades espirituais, oração em
conjunto um pelo outro e pela família e ministério. Isso é mais que uma
sugestão; é uma necessidade fundamental. Só em Deus poderemos ter as
forças para vencer as lutas que certamente surgirão no campo.

Como disse no princípio, não pretendo ser conselheiro matrimonial


e nem dar neste breve capítulo as bases para um casamento feliz. Há
muitos livros bons para isso e ler sobre como o manter no Senhor é uma
das tarefas para quem quer ser bem-sucedido no matrimônio. No entanto,
considero estes temas importantes no contexto do trabalho missionário
e devem ser tidos em conta por aquele que está indo para um campo
missionário com a família.

2. Filhos

Nos últimos anos tem havido um despertamento para a problemática


dos filhos de missionários. Infelizmente vai mais no sentido da
preocupação com seus estudos do que qualquer outra coisa. Ainda há
relativamente pouco na área de auxílio aos filhos de missionários, seja
diretamente a eles, seja indiretamente na forma de ajuda aos pais em sua
criação. O que sempre ouvimos é que as crianças se adaptam com maior
facilidade e aprendem melhor a língua da terra e isso parece resolver
todos os problemas. Já os adolescentes têm grande dificuldade de mudar.
Ir para um campo missionário transcultural com filhos adolescentes é,
via de regra, contra-indicado. A experiência mostra que a taxa de retorno
é bem maior e as marcas que ficam são profundas.

Sabemos que as crianças se preocupam bem menos com os problemas


da vida e que têm grande facilidade de adaptação. Isto, porém, não exclui
os sentimentos conflitantes que sofrem quando chegam a um novo lugar
do qual nada conhecem e que representa uma mudança por vezes radical
da forma de vida.

Quando fui para as ilhas dos Açores em Portugal tinha 8 anos de


idade. A cultura não era assim tão diferente e a língua era a mesma.
No entanto, minhas primeiras experiências na escola foram muito

82
Capítulo V - "Eu te amo, querida!"

dificeis. Era tímido e fechado. Tinha o cabelo bastante loiro, o que era
contrastante com as crianças do local. Logo de cara, chamei a professora,
como era comum no Brasil... "Tia!" Foi uma gargalhada geral na classe.
Em Portugal só se chama de "Senhora Professora". A gozação foi geral
e no recreio ganhei o apelido de "tia" para meu horror e desgosto. Voltar
à escola nos dias seguintes foi uma tortura. Todos riam de meu sotaque
e a professora brigava dizendo que eu não "sabia falar direito" e ainda
tinha o maldito apelido. Isso tudo numa cultura próxima à nossa, agora
imagine uma criança num contexto totalmente diferente.

o filho de missionário também passa por seu próprio choque cultural.


Quanto maior a idade, pior será. A criança terá naturalmente medo e
dúvida, para não falar da saudade de casa, dos familiares e amigos.
Os pais sabem que estão ali por um chamado maior e para uma tarefa
valiosa, mas os pequeninos não entendem porque deixaram sua escola,
amigos e os carinhos da vovó para irem a um lugar desconhecido. O risco
da perda de identidade é maior para as crianças do que para os pais, até
porque estão ainda numa fase de formação dessa identidade.

Aqueles que são criados num campo missionário serão de certa


forma cidadãos do mundo, o que tem seu lado bom, mas também suas
desvantagens. Normalmente serão mais abertos e desenvolvidos em
termos de conhecimentos globais. Terão mais facilidade de se adaptarem
a circunstâncias dificeis e culturas diversas e terão mais facilidade com
línguas. Mas também terão pouca ligação com sua cultura materna e
deixarão de ter pátria em certo sentido. Durante grande parte de minha
vida lutei com isso. Em Portugal eu era brasileiro e fui sempre tratado
como estrangeiro, inclusive sofrendo discriminação nos estudos. No
Brasil, porém, que era a minha terra, acabava sendo chamado de
"português" por causa de meu sotaque diferente e minha maneira de ser
mais recatada. Aprendi a viver com isso e até a tirar partido de minhas
diferenças, mas nem todos os filhos de missionários conseguem fazê-lo.

Hoje já temos no Brasil uma segunda geração indo para os campos


de missões. Eu e minha irmã somos missionários e em nossa missão há
outros filhos de missionários que estão no campo. Isso é maravilhoso e
uma grande bênção. Mas nem todas as histórias tiveram este final feliz.
Há casos de rebeldia, fuga de casa, abandono da igreja e tudo o mais que
acontece também no Brasil com filhos de crentes e de pastor. Enfrentar
essa realidade é nosso dever. Chamar a atenção para aspectos da vida
familiar que podem ajudar a minimizar estas crises é nosso objetivo.

83
Antes do ide

Queremos que os futuros missionários deixem o Brasil com armas


para lutar contra essas dificuldades. Vejamos então alguns aspectos
importantes para os filhos dos missionários nos campos.

2.1 - Tempo de qualidade

Todo mundo sabe que filhos precisam de tempo por parte dos pais.
Mas se todo mundo sabe parece que também é verdade que quase todo
mundo ignora. A tendência cada vez maior de nossa sociedade é ter
filhos para satisfazer a sociedade e a família ou projetar-se de alguma
forma no futuro. As crianças vão para creches quando ainda têm poucos
meses, aos 3 ou 4 anos vão para a escola. Em casa, a TV e o computador
substituem os pais na maioria do tempo. Não admira que estejamos
criando verdadeiros monstrinhos sem respeito e sem valores claros.
Quando as dificuldades surgem é muitas vezes tarde demais.

Nesse ponto os filhos de missionários têm muitas vantagens. É o caso


das famílias que vão para lugares em que não há essas comodidades
do mundo moderno, nem TV, nem computador, e isso "obriga" os
pais a gastarem mais tempo com eles. "Santa limitação." Lembro de
ser entrevistado por uma jornalista da revista Manchete que estava
horrorizada com o fato de estarmos criando nosso filho Gabriel num
lugar sem eletricidade e TV Segundo ela, nosso garoto estava "perdendo"
muito. Eu a questionei então: "Perdendo o quê? Talvez a violência e o
sexo livre da TV, os riscos de ser assaltado ou abordado por um passador
de droga na escola, o medo de ser raptado, ou as cenas de falta de respeito
que abundam em nossos estabelecimentos de ensino?"

No entanto, a verdade permanece. Precisamos dar tempo a nossos


filhos. Tempo de qualidade. Tempo para sentar no chão e brincar, tempo
para conversar "abobrinha", tempo para ouvir suas lutas e dificuldades.
Nada substitui a presença e o tempo concentrado dos pais. Isso é
ministério. Nosso Deus é Jeová. O Deus que exigia sacrificios de crianças
era Moloque, como lembra certo autor. Nosso Deus não pede sacrificios de
nossas crianças, mas consagração, e para isso é preciso tempo com eles.

2.2 - Tempo de falar e tempo de ouvir

Novamente temos que bater em teclas muito usadas mas nem por
isso respeitadas. Precisamos de falar e ouvir nossos filhos. Crianças em
campos missionários passam por experiências diferentes. Elas precisam

84
Capítulo V - "Eu te amo, querida!"

de pais que estejam dispostos a ouvir o que pensam. Elas percebem o que
está acontecendo à família e ao ministério. Ouvir suas opiniões por vezes
nos assusta, pois sua compreensão é bastante diferente da realidade.
Precisam de ajuda para realmente entender o que está se passando. Por
outro lado suas percepções podem ser também auxílio aos pais. Podem
estar bem mais avançados na contextualização e dar contribuições
inestimáveis aos pais em suas conversas.

Em certa ocasião estávamos fazendo a vedação de nossa quadra


esportiva na escola que construímos. A idéia era cercá-la com um
rolo grande de rede metalizada. No entanto, o vendedor nos enganara,
e a quantidade de rede não foi o suficiente. O local onde tínhamos
comprado a rede era na capital a mais de 150 km e não dava para
ir trocar. Ali estávamos, três homens adultos frustrados sem saber o
que fazer. Gabriel, nosso filho, então com 7 anos, brincava por perto
e achegou-se a nós. Com as mãos na cintura e um ar muito sério
sugeriu que utilizássemos nas extremidades da cerca "quirintins" que
são tapumes feitos de bambu muito comuns na região. As laterais da
vedação ficariam então com a rede metalizada. E foi a solução. Por
sinal ficou bem mais bonito e também mais contextualizado. Vale a
pena ouvir as crianças.

Ao falarmos precisamos valorizá-los, incentivá-los, dar-lhes apoio


e estímulo. As crianças precisam de quatro vezes mais elogios do que
críticas. Precisam de abraços e carinho fisico que transmitam apreciação
e amor. Os pais devem se auto-avaliar periodicamente a fim de ver se
estão dando suficiente carinho fisico e palavras de apreço a seus filhos.

2.3 - Participação no ministério

As crianças em famílias missionárias devem ser, tanto quanto


possível, incluídas no_ministério. Deixá-las de fora vai passar a idéia de
que não são importantes para os pais. Afinal, o ministério é a vida dos
pais. Se os filhos não fazem parte dele, estão ficando de fora da coisa
mais importante na vida dos pais. Essa inclusão deve começar antes de
irem ao campo. Se você tem uma chamada missionária, então comece a
falar com seus filhos sobre isso. Leia para eles biografias missionárias.
Leia sobre povos não-alcançados. Livros como "Você pode mudar o
mundo" de Daphne Spragget e Jill Johnstone 7 servem para abrir os
horizontes de seus filhos para a obra missionária e facilitar sua mudança
para uma terra diferente.

85
Antes do ide

Uma vez no campo, procure conversar com as crianças sobre o que


está acontecendo. Isso é claro, vai depender de sua idade e compreensão,
mas não os deixe de fora. Incentive suas participações nas atividades em
que estiver envolvido. Leve-os com você, sempre que possível. Aos filhos
maiores, juniores ou adolescentes, dê oportunidades de ministrar. Louvo a
Deus porque meus pais me incluíram em seus ministérios. Desde cedo eu
e minha irmã Lília ajudávamos nas saídas evangelísticas. Aprendemos a
contar histórias e ajudar nas classes de EBD infantis desde os 9 anos. A partir
da adolescência, fazíamos parte de reuniões para as decisões da família em
relação ao futuro. Quando lutas maiores surgiam, mamãe tinha a preocupação
de verificar nossos sentimentos e explicar o que estava acontecendo de seu
ponto de vista. Tudo isso nos fez sentir parte do ministério. Não éramos
apenas os filhos dos missionários. Éramos uma família missionária e sei que
isso foi fundamental para que hoje estejamos no campo.

2.4 - Cultivar e recordar as origens

As famílias missionárias certamente lrao receber influências da


cultura circundante, mas um princípio que parece ser defendido pela
grande maioria dos missionários com quem contatamos é que a família
deve manter a cultura materna. Isso quer dizer que em sua casa você vai
falar a língua de casa, ou seja, o português da sua região do Brasil, vai
enfeitar a casa com símbolos do Brasil, vai usar música brasileira, vai
lembrar festas brasileiras e festejar as festas mais tradicionais como se
faz com sua família no Brasil. Isso permite à criança saber qual é a sua
cultura e mais tarde quando voltar ao Brasil facilitará a re-introdução na
cultura nacional brasileira.

Lembro sempre com especial prazer que no dia 7 de setembro nós


sempre fazíamos um piquenique enquanto vivíamos nos Açores. O local
escolhido tinha o insuspeito nome de "Monte Brasil". Levávamos tudo
para uma boa refeição e muitas vezes a bandeira do Brasil para cantar o
hino nacional. Era um dia nosso, em que papai e mamãe ficavam conosco
e não pensávamos em igreja ou ministério. Ajudava-nos a saber quem
éramos. Os nacionais a quem você estiver ministrando não o desprezarão
por isso. Nossa experiência é que isso vai, inclusive, aproximá-los, pois
todos no mundo respeitam alguém que ama a sua terra.

Mantenha também uma boa fonte de informações sobre a família no


Brasil. Ter retratos pela casa, falar dos tios, primos e avós. Contar histórias
famosas da família e episódios importantes da vida dos ancestrais. Estas

86
Capítulo V - "Eu te amo, querida!"

coisas ajudarão a criança a conhecer melhor sua família e a se relacionar


quando estiver no Brasil de férias ou definitivamente.

2.5 - A educação dos filhos

A questão dos estudos das crianças é incontornável. Trata-se de uma


grande causa de regresso de missionários à sua terra, principalmente
quando se fala de países muito pobres do terceiro mundo e regiões
remotas onde estão muitos dos povos não-alcançados. Não é possível
dar uma solução definitiva a esse problema, até porque, cada caso é um
caso e cada família deve encontrar sua solução. Queremos, no entanto,
chamar a atenção neste ponto para que os pais pensem nele antes de
seguir ao campo evitando desgostos e perdas de tempo e dinheiro.
Algumas informações são por vezes o suficiente. Vejamos algumas
possibilidades de estudo para os filhos dos missionários:

Escola Pública Nacional- Em alguns países é uma opção viável, pois


há sistemas de ensino razoáveis. No entanto, por regra, o missionário deve
saber que o ensino público nos países pobres é fraco e pode limitar as
possibilidades futuras das crianças. A idéia de um reforço pode ser solução.
As escolas públicas podem mais facilmente levar a criança a um choque
cultural. Há costumes por vezes conflitantes com nossos princípios, como,
por exemplo, o hábito muito difundido dos castigos físicos; professores
baterem nos alunos é considerado normal em muitos países. É preciso
informar-se antes de inscrever as crianças. Por outro lado, o ensino público
facilita a adaptação das crianças e acelera o aprendizado da língua.
Também pode trazer uma aproximação à cultura local, pois os nacionais
verão que você está usando a mesma escola que eles.

Escola Particular Nacional- Em muitas cidades maiores de países


do terceiro mundo há escolas particulares feitas para servir os filhos de
diplomatas ou trabalhadores de empresas estrangeiras. Normalmente
são escolas que usam como língua de estudo o inglês ou o francês. Seu
nível costuma ser melhor, o que facilitaria o futuro das crianças. O custo
varia e pode ser bastante alto. O aprendizado de outra língua, a princípio,
pode ser difícil, mas terá suas vantagens mais tarde. As crianças nessas
escolas estarão passando por experiências próximas das dos seus filhos,
o que pode ser uma ajuda. É uma opção interessante caso exista essa
possibilidade. Atenção, porém, ao currículo porque pode limitar as
hipóteses futuras e obrigar você a providenciar estudo posterior em
países como Inglaterra ou França, o que é bastante dificil.

87
Antes do ide

Escola Missionária - Em alguns países foram criadas escolas para


filhos de missionários. Em regra, são para as crianças dos obreiros
daquela Missão. No entanto, tem havido abertura para outros filhos
de missionários de fora da missão proprietária. Os preços também
variam e podem ser altos para alguns missionários. As vantagens estão
no nível de ensino e ambiente cristão mais protegido. Há problemas,
no entanto. As crianças terão que aprender outra língua e vão estudar
num sistema estrangeiro, que pode dificultar mais tarde a integração
no Brasil. Estas escolas costumam ser internatos, o que significa que a
criança ficará fora do ambiente familiar. É de considerar também que os
pais não estarão disponíveis para ajudarem nas crises de relacionamento
e de adaptação, as crianças podem se sentir abandonados à sua própria
sorte principalmente se forem pequenas. Dependendo de onde os pais
morarem, vão gastar muito tempo em viagens para ir ver os filhos e
buscá-los. Certas famílias se dão bem com este sistema, outras não. É
uma possibilidade a se pensar.

Escola em casa - Esta opção tem sido usada principalmente por aqueles
que estão em áreas remotas, sem acesso a nenhuma escola, mas começa
a ser mais difundida mesmo em lugares onde há acesso a alguma escola.
Permite a utilização da língua materna e de um currículo do Brasil, mas
exige muito tempo dos pais ou de pelo menos um deles (em geral a mãe).
Exige também que um dos pais tenha formação no magistério, pois, caso
não tenha, o método não é indicado. Este método cria também dificuldades
na disciplina dos horários e na avaliação. São problemas que podem ser
ultrapassados, mas será preciso muita força de vontade e disciplina para
consegui-lo. Deve haver muita convicção e preparo para optar por esta
solução. É sempre bom recordar que, mesmo optando por ministrar
o ensino em casa, os filhos precisarão ter momentos de socialização
com outras crianças. Muitas atitudes não podem ser aprendidas sem a
convivência com outras crianças de sua idade.

2.6 - Cultivando o lado espiritual

Por vezes estamos tão envolvidos no ministério que esquecemos


de ministrar a nossos próprios filhos. E eles precisam muito dessa
ministração e de uma forma muito especial no campo missionário. Não
deixar os filhos de fora dos cultos é essencial. Eles precisam aprender
a amar a igreja. Ter um tempo separado só para eles para ministrar a
suas necessidades também é importante. Isso pode acontecer no culto
doméstico, por exemplo. Mesmo que seja só um culto doméstico

88
Capítulo V - "Eu te amo, querida!"

semanal, será importante. Ou então na hora de os colocar para dormir.


Não mandá-los simplesmente para a cama, mas estar com eles, cantar,
contar uma história, orar abençoando sua noite com um toque físico
significativo. Eles sentirão a diferença de tal maneira que não mais
dispensarão este tempo de comunhão.

Quando nosso filho era bem pequeno nós o colocávamos na cama


com um corinho que diz: "Eu não me sinto só, só, só, porque comigo está
o Anjo de Jeová, se acampa ao meu redor e me protegerá". Muitas vezes
julguei que não fazia a mínima diferença para ele de tão pequeno que era.
Mas o costume pegou. Em 1998, quando saímos de Bafatá por causa da
guerra, a tensão no carro era grande. Estávamos em família, Ida grávida
de nossa filha Rebeca, e junto conosco estavam Analita e Edna, nossas
colegas de campo. Entramos no Senegal receosos, pois ninguém sabia
bem o francês para nos comunicarmos e todos os soldados pareciam
agressivos e mal-intencionados. O calor foi apertando ao longo do dia
e a certa altura fomos apanhados por uma tempestade de areia. Não se
via nenhuma casa por perto e a estrada parecia estar no meio do deserto.
Orávamos para que o carro não parasse, pois, caso isso acontecesse,
não saberíamos o que fazer. Foi então que Gabriel acordou de um sono
prolongado e logo começou a cantar: "Eu não me sinto só..." Logo
sentimos as lágrimas vindo aos nossos olhos e todos entenderam. Foi um
recado de Deus no meio da angústia. Ensina o menino e ele será bênção
para tua vida.

3. Orçamento familiar

Este pode parecer, à primeira vista, um tema um tanto deslocado num


livro sobre futuros missionários, mas a prática tem mostrado que um
orçamento familiar balanceado nem sempre é fácil de se conseguir e uma
falta de equilíbrio nas finanças tem ocasionado situações embaraçosas e
difíceis de contornar nos campos missionários.

Primeiramente devemos lembrar que nos países para onde o


missionário vai a moeda não é a brasileira. Muito provavelmente, ele vai
ter que trabalhar com três moedas. Vai pensar em reais, pois sua cabeça
ainda está no Brasil, vai receber dólares, pois é a moeda internacional e
vai ter que comprar em moeda local que é a que se usa no país. Equilibrar
tudo isso pode ser complicado. Ainda mais porque os produtos que
comprará podem não ser os mesmos a que estava acostumado e, no

89
Antes do ide

princípio, certamente vai ser bastante enganado nas compras, pois os


comerciantes locais são capazes de identificar um "branco" novo a
quilômetros de distância.

Por cima disso tudo, há o agravante de que muitas vezes o missionário


tem que lidar com verbas de vários meses de uma só vez. Devido às
dificuldades de transferência, ele pode receber a cada três meses ou a
cada seis meses e nesses casos tem que equilibrar o orçamento de vários
meses para não gastar tudo de uma vez e ficar no aperto. Por isso tudo é
que muitos acabam se dando mal e as famílias primeiro, e o ministério
depois, sofrem bastante. Logo, é preciso tratar desse assunto com
seriedade e procurar soluções. Se o missionário tem colegas no campo
para onde está indo, então eles vão ser uma grande ajuda. Apesar de ser
o primeiro de minha Missão na Guiné-Bissau, tive a ajuda valiosa de
colegas das missões Kairós e Jocum que me ajudaram nessa adaptação.

Talvez uma das primeiras questões seja o aluguel. Se você se prende


com um aluguel alto demais vai ter problemas orçamentais logo de cara.
Verifique qual é a média dos aluguéis e veja uma casa que esteja dentro
de suas possibilidades. Não vá aceitando logo a primeira casa e nem o
primeiro preço. Tenha paciência e encontrará o que precisa e o que lhe
servirá melhor. Se não têm colegas no campo e vai iniciar um trabalho,
será melhor que o marido vá na frente sozinho e providencie casa e
sustento antes do resto da família seguir. Ter que escolher casa e decidir
outras questões com a pressão de instalar logo a família pode levar a
decisões precipitadas.

Uma vez resolvida a questão do aluguel, veja o quanto lhe resta de


salário e faça uma divisão razoável. É natural que nos primeiros meses
tenha que fazer ajustes. A alimentação vai levar perto de 40% do salário.
Verifique se tem contas a pagar tipo luz, água e telefone e não se aventure
muito nos primeiros meses enquanto não souber quanto é que tudo vai
custar. Transporte e escola das crianças também são itens importantes e
que devem ser prioridades.

É muito importante preparar um orçamento. Não confie em sua


capacidade de gastar pouco. Coloque na ponta do papel. Quanto recebe?
Estas são as entradas. Quanto vai de aluguel? E de alimentação? Contas?
Transporte? Escola? Dízimo? Aulas de língua? Precisa dar alguma
contribuição à sua missão? Que outros gastos poderá ter em base
regular?

90
Capítulo V - "Eu te amo, querida!"

Colocar no papel é sua forma de controlar. Se receber vários meses


de salário de uma vez, então use só o referente ao mesmo em curso. Isto
é sagrado. Se entrar na verba dos meses seguintes pode saber que vai
ter dificuldades no fim. O preferível é guardar nos primeiros meses e, se
houver saldo, então fazer algum gasto extra. Esteja atento às oscilações
do câmbio que podem prejudicar muito o missionário. Por vezes há que
guardar um pouco mais para uma emergência ou mudança cambial.
Avalie este assunto com a seriedade que ele merece e lembre-se de que é
a vida de sua família e a estabilidade de seu trabalho que estão em jogo.

Concluindo

Uma vida familiar feliz e equilibrada é fator essencial para o sucesso


do trabalho missionário. No casal, a chamada para o ministério deve ser
comum e o casamento deve estar bem. Tanto o marido quanto a esposa
devem estar atentos às dificuldades que o campo missionário trará para
o outro. Devem gastar tempo de qualidade juntos e investir numa boa
comunicação sendo criativos no amor. Deve haver uma definição clara
de papéis na família e ministério, as decisões devem ser participativas e
o casamento tem que estar alicerçado em Deus.

Os filhos vão precisar de tempo de qualidade. Precisam ser ouvidos


e devemos incentivá-los e incluí-los no ministério. É bom manter em
casa um ambiente cultural próximo de nossa terra. Dar toda a atenção
à educação das crianças optando pela melhor solução em cada caso e
criando os pequeninos nos caminhos de Deus. Será também valioso
procurar manter um orçamento familiar equilibrado e ajustado à
realidade.

Quando Conrado III da Swabia iniciou seu reinado na dinastia


Hohenstaufen na Alemanha, nem todos os nobres o aceitaram. O Duque
Henrique da Bavária foi particularmente firme em sua rejeição. Combates
tiveram início e o exército dos Hohenstaufen cercou as tropas bávaras na
cidade de Weinsberg. Durante meses a situação dos moradores foi se
deteriorando. Inicialmente ainda havia comida em abundância, mas aos
poucos tudo foi se tornando escasso e a fome foi se aproximando.

Quando a cidade percebeu que já não dava para suportar mais a fome,
e antes que se tornasse insuportável a vida, foi tentada uma nova ronda
de negociações com os invasores. Dariam eles alguma condição para a

91
Antes do ide

rendição? Havia algum pagamento possível para se verem livres? O que


diziam os inimigos?

A resposta veio até rápido. As mulheres e crianças podiam deixar a


cidade com tudo aquilo que pudessem carregar. Era uma maneira suave
de fazer as coisas para aquela época. Mas, com a fome rondando, elas
não teriam muita força para carregar as coisas mais valiosas, pensavam os
sitiadores. Logo, na cidade se discutia o que as mulheres poderiam levar.
Cada família fazia contas dos seus bens mais valiosos e a discussão era
acirrada. Do lado de fora se aguardava a hora marcada para a saída das
mulheres. Finalmente as portas se abriram e os soldados que cercavam a
cidade se quedaram mudos em assombro. As mulheres da cidade saíram
com as crianças pelas mãos e nas costas carregavam os seus maridos ... A
mensagem era clara. Para as mulheres de Weinsberg o bem mais valioso
era a família. Magnífico exemplo e importante lição. Nossas famílias são
tesouros que Deus nos deu. Valorizemos as nossas famílias e vivamos
bem na presença do Senhor.

92
Capítulo VI
Febre e Cia.
"Acaso não sabem que o corpo de vocês é o santuário do
Espírito Santo que habita em vocês, que lhes foi dado por Deus
e que vocês não são de si mesmos?"
1Coríntios 6.19

"Metade dos problemas espirituais que homens e mulheres


sofrem advêm de um mórbido estado de saúde"
Henry Ward Beecher

Dr. Robert Steffen do Centro de Vacinação do Instituto de


Medicina Preventiva e Social da Universidade de Zurique fez um
estudo com 10.524 viajantes a regiões tropicais. Esses viajantes
ficaram em média 15 dias nos países visitados. A pesquisa revelou que
cerca de 65% deles sentiram-se mal a ponto de precisar de medicação,
50% tiveram a chamada "diarréia do viajante", 15% tiveram problemas
de saúde considerados sérios e 3% tiveram que perder vários dias de
trabalho quando do regresso para casa I.

A maioria desses viajantes ficou nas cidades, hospedada em bons


hotéis, com acesso à boa fonte de alimentação e à água potável. Eles
na sua maioria não visitaram as regiões rurais e nem ficaram expostos
à alimentação nativa. Se mesmo assim, em apenas 15 dias, um número
Antes do ide

tão grande deles mostrou problemas de saúde, o que podemos dizer dos
missionários que estão indo cada vez em maior número para as regiões
inóspitas da "Janela 10/40"7

A ênfase no alcance de povos ainda não-alcançados tem levado a que


cada vez mais os missionários se desloquem para regiões rurais de países
muito pobres e se exponham a todo tipo de problemas de saúde que não
conheciam em suas terras. Urge chamar a atenção para a necessidade de
prevenção ativa na área da saúde.

Muitos obreiros chegam aos campos totalmente despreparados


para o que vão encontrar e os resultados desse despreparo se traduzem
em graves problemas de saúde com perda de tempo e capacidade de
trabalho, regresso prematuro ao país de origem e, mesmo em alguns
casos, fatalidades.

Neste capítulo pretendemos dar orientação na área da saúde para


que possamos evitar tais situações. Este tema é uma adaptação de nossa
tese de Pós-Graduação em Clínica de Medicina Tropical no Instituto de
Medicina Tropical da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade
Nova de Lisboa.

1. Distribuição mundial dos problemas de saúde

Vejamos, para começar, os principais problemas que os missionários


irão encontrar nos países em que vão trabalhar. Os dados são da OMS
(Organização Mundial da Saúde? Usaremos as seguintes abreviaturas:

- Doenças transmitidas por insetos: DTI


- Doenças transmitidas por alimentos e água: DTAA

África:

Africa do Norte (Argélia, Egito, Líbia, Marrocos e Tunísia)

DTI - Não apresentam, regra geral, perigo para o missionário sendo


registrados poucos casos entre os residentes.
DTAA - São comuns na região desinterias e outras doenças diarréicas
como hepatite A, febre tifóide e paratifóide, brucelose e giardíase. A
cólera é pouco comum.

94
Capítulo VI - Febre e Cia.

Outros - Há schistosomíase no delta do Nilo. Raiva, picadas de


escorpião e cobra são freqüentes. O calor é intenso.

Africa Sub-Saariana (Angola, Benin, Burkina Faso, Burundi,


Camarões, Cabo Verde, Comores, Congo, Costa do Marfim, Djibouti,
Eritréia, Etiópia, Gabão, Gana, Gâmbia, Guiné, Guiné-Bissau, Guiné-
Equatorial, Kenia, Libéria, Madagascar, Malawi, Mali, Mauritânia,
Mauricias, Moçambique, Niger, Nigéria, Uganda, República Centro
Africana, Reunião, Ruanda, São Tomé e Príncipe, Senegal, Seycheles, Serra
Leoa, Somália, Sudão, Tanzânia, Tchade, Togo, Zâmbia, Zimbabwe)

DTI - Causas importante de doença e morte são malária, filárias,


oncocercose, leishmaniose, trypanosomiase, febres recorrentes, tifo,
febres virais, febre amarela.
DTAA - Também são muito freqüentes como parasitoses intestinais,
giardíase, amebíase, febre tifóide, hepatite A e E, cólera e hidatidose.
Outras - Poliomielite, hepatite B, aids, febres hemorrágicas (lassa,
ebola, marburg), meningite, picadas de cobras e animais com raiva.
Calor intenso e umidade alta.

Africa Austral (África do Sul, Botswana, Lesotho, Namíbia e


Swazilândia)

DTI - Há malária em certas zonas e trypanosomiase na Namíbia e


Botswana bem como algumas febres virais.
DTAA - Comum em certas regiões a amebíase, febre tifóide e
hepatite A.
Outros - Hepatite B, schistosomíase na África do Sul, Namíbia e
Botswana.

Américas:

América Central (Belize, Costa Rica, EI Salvador, Guatemala,


Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Antigua e Barbados, Antilhas
holandesas, Aruba, Bahamas, Caimões, Cuba, República Dominicana,
Granada, Guadalupe, Haiti, Ilhas Virgens, Jamaica, Martinica,
Monserrate, Porto Rico, Santa Lúcia, São Vicente, Trinidade e Tobago)

DTI - Na parte continental há malária, leishmaniose, filariase e


doença de chagas. Nas Caraíbas só há malária e filariose no Haiti.

95
Antes do ide

DTAA - É comum a amebíase, febre tifóide, hepatite A e cólera no


Continente. Nas ilhas há amebíase e hepatites.
Outros - No continente a raiva é freqüente. Nas ilhas a schistosomíase
é comum. Há muitas cobras em toda a região.

América do Sul Tropical (Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador,


Guiana, Guiana Francesa, Paraguai, Peru, Suriname e Venezuela)

DTI - São importantes no meio rural. Há malária, leishmaniose, febre


amarela, filarioses, oncocercose, dengue, encefalites virais e doença de
chagas.
DTAA - Comum em vastas regiões sobretudo rurais. Amebíase,
parasitas intestinais, hepatite A, brucelose e certos casos de cólera.
Outros - Hepatite B e D são fortes na bacia do Amazonas.
Schistosomíase no Suriname e Venezuela. Perigo de raiva e picada de
cobra nas regiões rurais.

América do Sul Temperada (Argentina, Chile e Uruguai)

DTI - Doença de chagas, alguns casos de malária e leishmaniose no


Norte da Argentina.
DTAA - Parasitas intestinais, febre tifóide e hepatite A.
Outros - Raiva em regiões urbanas e suburbanas.

Ásia:

Extremo Oriente (China, Hong-Kong, Japão, Macau, Mongólia,


Coréias)

DTI - Malária só na China. Filária e leishmaniose sobretudo na


China. Febres virais no Japão e Coréia.
DTAA - Doenças diarréicas comuns, hepatite A e brucelose.
Outros - Hepatite B, poliomielite e schistosomíase na China.

Sudeste Asiático (Brunei, Cambodja, Indonésia, Malásia, Myammar,


Filipinas, Laos, Singapura, Tailândia e Vietnam)

DTI - Muito comum na região a malária e filarioses. Há regiões com


dengue e febres virais.
DTAA - Doenças diarréicas, hepatite A, amebíases, febre tifóide e
parasitas.

96
Capítulo VI - Febre e Cia.

Outros - Hepatite B, aids e poliomielite em toda a região, schistosomíase


nas Filipinas e Indonésia. Perigo de raiva e picadas de cobra.

Asia Central (Afeganistão, Armênia, Azerbeijão, Bangladesh, Butão,


Georgia, Índia, Irão, Kazaquistão, Kirgiquistão, Nepal, Ouzbequistão,
Paquistão, Sri Lanka, Tadjaquistão e Turkmenistão)

DTI - Malária, filária, leishmaniose visceral, febres recorrentes,


dengue e febres virais.
DTAA - Cólera, febre tifóide, amebíase, parasitoses, hepatite A e E,
giárdia, brucelose e hidatidose.
Outros - Hepatite B, aids, poliomielite, meningite, raiva e picadas de
cobra. Calor intenso.

Oriente Médio (Arábia Saudita, Bahrain, Chipre, Emirados Árabes, Iraque,


Israel, Jordânia, Koweit, Líbano, Oman, Qatar, Síria, Turquia e Yemen)

DTI - Malária em poucas regiões rurais, Leishmania rara.


DTAA - Risco de febre tifóide, hepatite A, brucelose, parasitas e
hidatidose
Outros - Hepatite B, schistosomas em certas zonas. Calor intenso.

2. Cuidados antes da viagem ao campo missionário

Já fizemos referência a estes cuidados no capítulo 1, pelo que fazemos


apenas uma revisão. Antes de seguir para o campo o missionário e a
família devem fazer consulta médica e um check-up completo para
despistar problemas de saúde que estejam escondidos. Deve haver
todo o cuidado na avaliação de doenças crônicas e da sua respectiva
medicação, pois o obreiro deve estar preparado para um agravamento
dessas situações no país de trabalho. Devem ser tomadas as vacinas
necessárias para a entrada no país em vista. Toda medicação de uso
familiar e profilática a que faremos referência deve ser adquirida antes
da saída do Brasil.

3. Cuidados para a viagem

Com os novos campos escolhidos sendo cada vez mais isolados e de


dificil acesso, a viagem ao campo pode ser por si só uma aventura que

97
Antes do ide

vai durar dias. Estar avisado e preparado será importante para não chegar
ao campo já estressado. Saber antecipadamente da possibilidade de
gastar horas em filas de bagagem e passaporte pode por si só amenizar
a espera.

Algumas pessoas sofrem do chamado "Mal de viagem" que é causado


por perturbação do equilíbrio com náuseas, vômitos e mal-estar em geral.
É mais comum em viagens marítimas, mas pode acontecer em aviões. Há
medicamentos que ajudam, como Dramine cujo único efeito secundário
é sonolência, o que no caso das crianças pode ser uma vantagem, já
que enfrentar várias horas de vôo num local apertado com crianças
hiperativas pode ser uma verdadeira tortura. Esses medicamentos devem
ser tomados, geralmente, uma hora antes da viagem. Quem sofre desse
mal de viagem deve evitar leitura e alimentação pesada antes e durante a
viagem, bem como perfumes fortes.

A pressão sentida nos ouvidos, como um estalar, pode ser


particularmente dificil para crianças pequenas e de colo. Pode ser
amenizada por mastigação de chiclete nos adultos e a utilização da
mamadeira com algum líquido para os pequeninos na decolagem e
aterrissagem.

Será útil andar um pouco durante a viagem para evitar inchaço nos
pés, principalmente nos vôos mais longos. Beber líquidos auxilia na
sensação de secura da boca causada pela atmosfera seca da cabine. Ter à
mão alguma coisa para distrair as crianças, como pequenos brinquedos
ou livros de colorir, pode "salvar" uma mãe aflita.

4. Cuidados básicos com a saúde no campo missionário

Tomar precauções para que a família goze de boa saúde é algo


importante para o sucesso do trabalho missionário. Um obreiro com
problemas de saúde ou com familiares doentes terá dificuldade em se
concentrar no trabalho. Ficar doente numa terra desconhecida, com
médicos que não falam a nossa língua e em hospitais com aspecto
degradado, pode ser uma experiência bastante assustadora. Alguns
princípios são bastante úteis para que a família tenha boa saúde.

A alimentação certamente vai sofrer modificações no campo


missionário. Um obreiro adaptado vai introduzir na sua dieta alimentos

98
Capítulo VI - Febre e Cia.

comuns na terra onde trabalha. No entanto, com a globalização, é cada


vez mais comum encontrar produtos da terra natal mesmo bastante longe
de casa. A família deve adotar um estilo intermediário. O importante é
que a alimentação seja balanceada e nutritiva, providenciando tudo o
que o corpo precisa. Um suplemento vitamínico pode ser utilizado onde
houver alimentos pobres em vitaminas e for dificil o acesso a frutas e
legumes frescos.

No trabalho missionário muitas vezes não vai haver possibilidade de


escolher o que comer. Em quase todas as culturas do mundo rejeitar um
oferecimento de comida é ofensa grave. Por outro lado, aceitá-lo pode
abrir portas importantes para evangelização, pois aproxima as pessoas.
Deve haver sensibilidade para não ofender. No entanto, em situações
sob nosso controle, como por exemplo em restaurantes, deve-se evitar
alimentos crus e ter muito cuidado com saladas e cremes. As frutas
devem ser sempre descascadas. Lembre-se que em países tropicais a
alimentação é uma fonte comum de doenças.

A água para o consumo familiar é outro cuidado importante. Em


muitos lugares não vai haver água canalizada ou esta será de baixa
qualidade. Usar água de um poço comunitário poderá ser a única opção.
Logo, todo cuidado para ter uma água segura será necessário. Doenças
como amebíase, desinteria, hepatite A, febre tifóide e gastroenterites
podem ser transmitidas por água contaminada.

Tratar a água com cloro é uma opção, mas nem sempre garantida,
até porque o sabor é desagradável. Ferver por 5 minutos seria melhor,
mas dá muito trabalho e consome bastante gás ou lenha. O uso de filtros
é uma saída bastante razoável. No entanto, deve-se lembrar de lavar as
velas com freqüência e trocá-las com assiduidade. Em muitos lugares
não vai haver velas disponíveis para utilização nos filtros pelo que
devem ser levadas do Brasil ou arranjar quem os envie com regularidade.
Bebidas como chá e café, ou bebidas engarrafadas e enlatadas são, regra
geral, seguras. Mesmo nos restaurantes é bom evitar o gelo se não houver
garantia de sua procedência.

Os insetos são outra fonte de doenças que abundam nas regiões


tropicais. Para o missionário é impossível evitar ser picado. Pode-se
fazer uso de repelentes, mas com o tempo o obreiro se cansa e esquece.
Sair ao entardecer nem sempre pode ser evitado por causa do trabalho
evangelístico. Em casa, porém, é possível ter um pouco mais de cuidado.

99
Antes do ide

Colocar telas nas janelas c ter portas de tela nos acessos principais à casa
reduzem bastante a entrada de insetos. Em alguns casos, será preciso
usar mosquiteiro nas camas, de preferência impregnados de inseticida.
O uso de mosquiteiros impregnados tem reduzido o número de casos
de malária em famílias que os usam corretamente. Um estudo da OMS
mostrou uma redução de 25% da mortalidade por malária com o uso
desses mosquiteiros impregnados. Usar inseticidas nos quartos à noite,
antes de deitar, sobretudo no tempo das chuvas em que os insetos são
mais abundantes, também ajuda. É bom ter à mão pomada antialérgica,
sobretudo para as crianças que fazem lesões, por vezes grandes, ao
coçarem as picadas.

A vida animal em certas regiões missionárias é também abundante.


Cada região terá suas particularidades, mas é preciso ter atenção especial
a cobras e escorpiões, cujas picadas podem ser fatais. No interior, ao
andar pelo mato, deve-se usar botas e calças prevenindo-se de ataque de
cobras. Em zona rural e em casas nativas, tenha cuidado com os sapatos
de manhã para ter a certeza de que não há nenhum visitante indesejado
dentro.

Atenção a cães que estejam agindo de forma estranha. A raiva é um


problema grave em certas regiões. Se mordido, trate da ferida logo e
procure auxílio médico imediato. Recorde-se que a raiva tem tratamento
se as vacinas forem tomadas logo após a mordida suspeita. Qualquer
demora pode ser fatal. Em caso de mordida, procure que o animal seja
mantido em cativeiro para observação. Em muitos lugares eles são logo
sacrificados, o que é contraproducente pois elimina a possibilidade de
diagnóstico.

O descanso é outro fator importante numa boa saúde. Os missionários


muitas vezes desprezam os alertas de seu próprio corpo e abusam dele
não lhe dando o repouso necessário. Há muitas regiões onde a sesta após
o almoço é obrigatória. Se for o caso da sua região então não discuta. O
povo que vive ali há séculos sabe por que faz assim. Escute sua sabedoria
e adapte-se. Não deixe de tirar pelo menos um dia na semana para relaxar
com a família e se distrair. Investir em lazer trás bom retorno, pois
missionário também é gente e precisa disso. Missionário cansado rende
menos. Não se sinta culpado por tirar um dia para descansar. Você será
mais eficaz nos outros seis. Não deixe de tirar um mês de férias por ano.
Novamente, não é opção, é necessidade sua e da família. E ao tirar férias,
saia do local de trabalho, senão, não vai descansar nada. Muito do stress

100
Capítulo VI - Febre e Cia.

missionário é falta de descanso. Quando era garoto e ficava nervoso,


minha mãe sempre dizia: "Joed vá dormir!" Eu lhe digo o mesmo.

Outro aspecto bastante desprezado, mas que tem peso na saúde


do missionário, é a adaptação ao calor e umidade. O obreiro deve se
lembrar que, em muitos casos, o sol que vai enfrentar é mais forte que
o da sua terra e os riscos de insolação, queimaduras e desidratação são
maiores, principalmente nas crianças. Evitar esforços fisicos exagerados,
sobretudo na fase inicial de chegada, é necessário. Evitar o sol nas horas
mais quentes também. O uso de chapéu e óculos de sol não é luxo, mas
precaução, bem como a utilização de filtros solares, sobretudo naqueles
que têm pele muito clara. Procure beber bastante líquido. Atenção a
possíveis irritações da pele e infecções fúngicas, que devem ser tratadas
logo no começo para evitar complicações. Use de preferência roupas
claras, folgadas, leves e de algodão.

Estes dois últimos fatores mencionados, descanso e calor, estão


intimamente ligados a um quadro clínico que muitos missionários
desenvolvem que é a síndrome de fadiga crônica. Trata-se de uma
situação em que o indivíduo sente-se constantemente cansado e sem
forças. Há aspectos clínicos associados como uma possível anemia, falta
de repouso, má alimentação, exagero de atividades em tempo de calor
forte ou um desequilíbrio de uma doença crônica. Estes fatores devem
ser pesquisados e tratados. Há, porém, fatores espirituais; nessa situação
e nesse caso demora mais para ser tratada. O missionário não deve negar
o quadro, mas reconhecê-lo e tratá-lo.

Aqueles que sofrem de doenças crônicas devem estar preparados para


complicações, pois o clima e o stress normalmente levam a recrudescimento
dos sintomas. Há necessidade de uma adaptação mais demorada e cuidadosa
para esses. São os casos de doentes do coração e hipertensos que precisam
ter atenção à hidratação correta e ao repouso obrigatório.

Os diabéticos vão precisar tomar cuidado extra com a alimentação e


aprender a viver nesse novo contexto, pois o organismo vai se comportar
de forma diferente do que fazia em sua terra. Doentes com úlcera,
gastrite ou colite ulcerosa devem ter atenção ao stress e à alimentação,
pois podem despertar crises. Lembrem-se que as comidas exóticas
normalmente são ricas em ingredientes picantes que são inimigos mortais
de suas doenças. Os que sofrem de asma ou bronquite podem melhorar
com o calor, mas pioram com a poeira e o tempo seco. Doentes com

101
Antes do ide

cálculos renais precisam evitar desidratação que pode desencadear crises


dolorosas. Problemas reumáticos melhoram em clima tropical, mas as
deslocações por estradas dificeis trazem complicações. Todo doente que
faz medicação habitual deve levá-la em sua bagagem para os primeiros
dois meses e procurar logo saber onde pode ser adquirida no campo.

A decisão de ter filhos no campo missionário é algo a ser considerado


com muito carinho. Saber se há condições de acompanhamento é
prioridade. Vai ser possível fazer o parto no local onde vivem ou será
preciso regressar ao país de origem? Nos casos anteriores de gravidez,
esta correu sem problemas ou houve complicações? Muitos campos têm
condições precárias e a grávida deve lembrar que, num clima tropical,
vai haver agravamento de muitos sintomas. Se em partos anteriores
houve hipertensão ou diabetes, as probabilidades indicam que nos
trópicos vai ser pior. Caso a decisão seja positiva deve-se tcr o cuidado
de ter todas as vacinas em dia antes de engravidar e fazer a profilaxia da
malária durante toda a gestação. Caso a opção seja ter o filho no Brasil,
então deveria esperar até a criança fazcr seis meses e poder tomar a
vacina da febre amarela.

As crianças normalmente se adaptam mais fácil e rapidamente que


os pais, o que não quer dizer que não sejam também mais susceptíveis
a doenças. Particular atenção deve ser dada à vacinação, porquc muitas
doenças como sarampo, poliomielite e difteria ainda são bastante
comuns em certas áreas. Cuidado com a desidratação, sobretudo devido
à hiperatividade das crianças. O sol pode ser problema para elas. Neste
caso os pais devem ter atenção dobrada com chapéus e filtros solares,
pois elas mesmas não vão tomar estes cuidados. O mesmo se pode dizer
quanto ao perigo de mordidas de cobras e outros animais selvagens.

Todavia, mesmo com todos os cuidados, não vai ser possível evitar, de
forma cabal, o surgimento de problemas de saúde no campo. Passamos a
falar de alguns dos principais e de sua prevenção e tratamento.

5. Principais problemas de saúde

5.1 - Malária

Esta é de longe a doença tropical mais grave, representando um


dos maiores desafios à OMS. Anualmente são registrados entre 200 e

102
Capítulo VI - Febre e Cia.

400 milhões de crises palúdicas com cerca de 2 milhões de mortos 3 • A


malária afeta diretamente mais de 1 bilhão de pessoas no planeta em
todos os continentes. Só na África Sub-Saariana morrem diariamente
três mil crianças de malária. Muitas das regiões onde estão os povos
não-alcançados são zonas de grande incidência de malária. Creio, sem
qualquer sombra de dúvida, que a malária é a responsável número I por
dias de trabalho perdidos de missionários e, infelizmente, por algumas
fatalidades.

A malária é causada por quatro espécies de plasmodium transmitidos


pela picada do mosquito fêmea do Anopheles. Proliferam no figado e
depois no sangue, dando crises febris muito características. Inicialmente
há fortes dores de cabeça e nas articulações. Esta fase é acompanhada
por mal-estar e aumento de temperatura. Apesar da febre, o doente tem
violentos arrepios de frio que o fazem tremer. Logo vem uma fase de
calor intenso com grande sudorese e sono exausto. As crises se repetem
em geral com intervalos de 24 horas. As complicações podem ser
várias que vão de fraqueza e anemia até a malária cerebral que tem alta
mortalidade.

Profilaxia da malária - A prevenção se dá em duas áreas. A


primeira é relacionada ao mosquito. São os cuidados a que nos referimos
em relação aos insetos. Para o missionário, porém, não há como evitar
ser picado. A segunda defesa, então, diz respeito ao parasita e à profilaxia
química. Já que não há ainda uma vacina, a profilaxia é a maior arma
ao nosso alcance para procurar evitar a malária. Os medicamentos mais
usados e as doses sã04 :

- Cloroquina 300 mg de base, uma vez por semana.


- Cloroquina 300 mg de base, uma vez por semana + Proguanil 100
mg uma vez por dia.
- Mefioquina 250 mg, uma vez por semana.

A profilaxia depende da região do mundo. A orientação da OMS é


a seguintes: Na região chamada de A, que são Oriente Médio, América
Central e norte da China, deve-se verificar se é preciso fazer profilaxia,
pois muitas vezes pode ser dispensada. Se for preciso, deve-se usar só
a cloroquina. A região B, que são Ásia Central e a Indonésia, deve-se
usar também a cloroquina. Na região C, que são África e América do Sul
na região Amazônica, deve-se usar cloroquina e proguanil. No Sudeste
Asiático recomenda-se mefioquina.

103
Antes do ide

A grande questão aqui é se o missionário deve ou não fazer profilaxia


depois dos primeiros seis meses de campo. Há missões que têm muitas
décadas de experiência nessa área e recomendam que sim. Em alguns
casos, o missionário é mesmo levado a assinar um documento que
atesta sua disposição de fazer a profilaxia. Tenho verificado que o uso
de daraprim (pirimetamina) 100 mg uma vez por semana associado à
c1oroquina 300 mg de base uma vez por semana é bastante eficaz e com
poucos efeitos colaterais. Conheço casos de pessoas há mais de 30 anos
nesse processo sem problemas e com poucos episódios de malária. A não
utilização da profilaxia deixa o missionário e sua família susceptíveis a
uma doença potencialmente grave.

Uma das alegações dos antagonistas desta orientação é que a


c1oroquina tem muitos efeitos secundários e mascara as possíveis
crises tornando inútil a sua utilização no tratamento. A bibliografia
médica, porém, não concorda com essa posição. A cloroquina nas
doses aqui referidas praticamente não dá reações adversas. Pode haver
mal-estar gástrico temporário, tontura ou prurido (coceira) em alguns
casos. As vantagens por outro lado são enormes. Também é falso
que a utilização desse medicamento na profilaxia tira sua validade
para o tratamento. Tratei casos de crise palúdica de pacientes que
faziam profilaxia com cloroquina e usei o mesmo medicamento com
remissão total dos sintomas.

Deve ficar claro que nenhuma profilaxia evitará a malária de forma


completa. Sempre haverá o risco de doença, mas essa será mais suave
e a recuperação será mais rápida, pelo que aconselho vivamente sua
utilização. Em oito anos vivendo numa região de alta incidência, minha
família completa fez profilaxia. Nesse período todo, só tivemos quatro
crises palúdicas, sendo uma para cada elemento da família. Vale a pena se
tratar! A profilaxia deve ser iniciada 15 dias antes da viagem ao campo.
Em período de férias, o missionário deve fazer a profilaxia ainda um mês
após a saída do campo. Se tiver algum sintoma febril no tempo de férias,
deve alertar os médicos de que vive numa região de malária, pois estes
dificilmente se lembrarão de perguntar.

Tratamento da malária - Se tiver crises palúdicas no campo, pode


tratar com: 10 comprimidos de c1oroquina de 250 mg; 4 comprimidos
da dose inicial, seguidos de 2 comprimidos passadas 8 horas; mais 2
comprimidos 24 horas e 48 horas depois (para adultos com peso acima
de 50 quilos).

104
Capítulo VI - Febre e Cía.

Para o tratamento das crianças, a cloroquina em xarope deve ser


ministrada em IOmg por quilo de peso na primeira dose, seguidas de 5
mg por quilo de peso 8, 24 e 48 horas depois da primeira dose.

Em adultos recomendamos, como opção à cloroquina, o fansidar,


que são 3 comprimidos de dose única. Como outro tratamento, temos a
mefloquina 15 mg de base por quilo de peso em dose única. Há outros
medicamentos, mas devem ser usados sob orientação médica.

5.2 - Febre amarela

Outra doença provocada por picada de inseto com altos riscos à saúde
é a febre amarela. Existem duas formas da doença, uma urbana e outra
selvática. Ambas são problemas graves em extensas áreas do globo.
Felizmente neste caso já temos uma vacina bastante eficaz que é mesmo
obrigatória para a entrada em muitos países. Logo, toda a família deve
ser vacinada. Crianças podem receber a vacina a partir dos seis meses,
no entanto, imunodeficientes e grávidas não podem tomá-la, bem como
pessoas com alergia a ovolbumina.

A vacina deve ser tomada num centro reconhecido pela OMS e deve-
se exigir o certificado internacional que será obrigatório para se tirar o
visto em muitas embaixadas. A vacina passa a ser válida dez dias depois
de tomada e é eficaz por dez anos quando deve ser repetida. Crê-se que
após a segunda dose a validade é vitalícia.

5.3 - Diarréias

Um dos sintomas mais comuns das doenças causadas por alimentos é


a diarréia e, em geral, causa desconforto e perda de força para o trabalho.
Na chegada ao campo há a famosa "diarréia do viajante" que surge em
geral uns dez dias após o desembarque e que é inócua, sendo provocada
pela mudança na alimentação e água. Mais tarde, porém, poderão surgir
outros casos mais complicados aos quais é preciso estar atento.

Assim, uma diarréia líquida, abundante e com aspecto de água de


arroz pode ser cólera. Se vier acompanhada de cólicas muito fortes e
tiver sangue e muco deve ser amebíase. Se o cheiro é forte e o aspecto
gorduroso pode ser giárdia. Se há febre persistente e diarréia alternada
com obstipação pode ser febre tifóide. Diarréia com mal-estar, dor no
lado direito da barriga e olhos amarelados pode ser uma hepatite A.

105
Antes do ide

Não dizemos isso para que o missionário se automedique. Trata-se de


uma forma de alertar para os diferentes problemas que pode enfrentar.
Medicamentos que param a diarréia, como o Imodium (Loperamida) ,
devem ser usados com muito cuidado, pois em muitas situações são
contra-indicados e podem agravar o estado do doente. O máximo que
podemos fazer é ter todo o cuidado com a alimentação e, sobretudo,
com a água que bebemos em casa. Se houver condições logísticas e
financeiras, o uso de água mineral pode ser uma solução excelente.

5.4 - Doenças exóticas

Sob este título falaremos de situações pouco conhecidas no Ocidente,


mas muito comuns no terceiro mundo e que o missionário deve ter mais
atenção. Em especial referimos às doenças transmitidas por picada de
mosquito e mosca.

A trypanosomiase africana ou doença do sono ainda existe em certas


regiões e é prevenida pelo conhecimento das zonas de ação da mosca Tse
Tse e os cuidados para evitar ser picado. A trypanosomiase americana
ou doença de chagas é causada pela picada de insetos conhecidos como
barbeiros. Mais uma vez conhecer seu habitat e evitar a picada é o
segredo da prevenção.

A leishmaniose é uma doença mundial que causa desde pequenas


lesões cutâneas a formas viscerais graves conhecidas por kala-azar. É
transmitida por picada de mosca. As filariases também são transmitidas
por picadas de mosca e mosquito e causam doença nos vasos linfáticos
(elefantíase), nos tecidos conjuntivos e nos olhos (cegueira do rio). Nestes
dois casos o missionário deve procurar conhecer o risco associado à sua
região de trabalho e consultar o médico caso haja alguma picada com
reação fora do normal. Os médicos da sua zona são conhecedores dessas
doenças e fazem excelentes diagnósticos.

As schistosomoses dão doença intestinal ou urinária e são adquiridas


nos banhos em rios infectados. Novamente o conhecimento e prevenção
são o segredo da boa saúde.

O missionário poderá também entrar em contato com doenças


transmissíveis e de fama macabra. Saber reagir e mostrar amor a esses
doentes pode fazer muita diferença em nosso ministério. São os casos da
tuberculose, lepra, aids e peste. Nenhuma dessas doenças vai passar com

106
Capítulo VI - Febre e Cía.

facilidade de um doente para o missionário. Ter cuidado nos contatos é


útil, mas sempre mostrando carinho e respeito e nunca aversão ou medo.
Tive um doente leproso que perdera o nariz, parte das orelhas e os dedos
das mãos. Ele vinha regularmente à consulta não porque precisasse, mas
porque eu o tratava bem e com respeito e, sobretudo, porque tocava nele,
o que deveria ser raro em sua vida.

6. Hospitalização e transfusões de sangue

Haverá casos de doenças em que o missionário precisará ser


hospitalizado. Em muitos países do terceiro mundo as condições são
realmente dificeis e precárias. O maior cuidado deve ser tomado para
evitar uma infecção hospitalar que pode ser mais grave que a doença.
Caso seja possível, leve os medicamentos e alimentação de casa para o
internado de forma a garantir qualidade e prazo de validade da medicação.
Respeite os médicos nacionais. Eles podem ter limitações, mas muitas
vezes fazem milagres com os poucos recursos de que dispõem, além do
que conhecem melhor as doenças da terra. No caso de um missionário
ser internado e havendo embaixada ou consulado por perto este deve
ser informado. Em alguns casos a embaixada tem médicos contatados e
conhecidos que dão maiores garantias.

Receber uma transfusão de sangue no campo missionário é algo que


deve ser evitado a todo custo. Transfusões de urgência são raras. Deve
haver absoluta certeza da sua necessidade, porque os riscos em relação à
hepatite B, aids e sífilis são muito altos. Caso não haja alternativa, deve
haver todo o cuidado para assegurar que o sangue foi testado para essas
três doenças antes da transfusão.

7. Farmácia familiar

Estar preparado para as situações do dia-a-dia exige uma boa farmácia


familiar, sobretudo, para aqueles que estão ministrando em zonas rurais
onde não há acesso a farmácias. Os missionários em cidades podem ter
menos preocupação com este ponto. Eis os itens que consideramos úteis
para a família missionária:

Medicamentos: Os que são tomados habitualmente em quantidade


razoável para não virem a faltar:

107
Antes do ide

- Antimaláricos (para profilaxia e tratamento, cloroquina e fansidar);


- Antidiarréicos (imodium e leveduras);
- Sais de rehidratação oral;
- Antibióticos de largo espectro (Bactrim, Amoxicilina em xarope e
cápsulas)
- Antialérgicos (Em pomada, colírio e comprimidos);
- Antipiréticos (Paracetamol e Aspirina em xarope, supositórios e
comprimidos);
- Antiinflamatórios (Brufen e Voltaren em pomada e comprimidos);
- Antiemético (Primperam em gotas e comprimidos);
- Antiácido e enzimas digestivas e antiespasmódico (Buscopan);
- Pomada antibiótica e antifúngica;

Artigos farmacêuticos:

- Termômetro (não use a mão para medir temperatura);


- Repelentes de inseto;
- Seringas e agulhas descartáveis;
- Filtros solares;
- Algodão e compressas para primeiros socorros;
- Água oxigenada;
- Betadine ou outro desinfetante para pele.

Aconselho vivamente que os missionários tenham à mão uma cópia


do livro "Onde não há médico", de David Werner das Edições Paulinas 6 •
Trata-se de um livro muito bem escrito, com conselhos bastante práticos
para leigos. Sobretudo para aqueles que vivem em zonas rurais de países
do terceiro mundo este livro poderá ser uma ajuda inestimável em
inúmeras situações.

8. Cuidando de outros

Em muitas regiões do mundo o estrangeiro é conotado com a


medicina, ou seja, as pessoas da terra o vêem como médico ou alguém
que conhece de medicação, independentemente de ser ou não alguém
que trabalha nessa área. O missionário se verá invariavelmente em
necessidade de prestar cuidados de saúde e isso poderá ser mesmo parte
importante de seu ministério. Gostaria de chamar a atenção para alguns
aspectos dessa provável situação.

lOS
Capítulo VI - Febre e Cia.

Em primeiro lugar, se você não é médico ou enfermeira deixe


isso claro. Não tente assumir uma coisa que não é, pois pode vir a
ter dissabores. Dê a ajuda que estiver ao seu alcance sem ultrapassar
seus conhecimentos e oriente a pessoa a um profissional da área.
Em segundo lugar, lembre-se do poder da oração. Não é preciso ser
médico para orar por um doente. Seja com imposição de mãos ou
não, seja ungindo com óleo ou não, faça uso desse poder e confie no
Senhor. Vai se surpreender, afinal, nós podemos tratar os doentes,
mas quem os cura é Deus. Por último, mostre empatia com o doente.
As pessoas no terceiro mundo convivem com a morte muito de
perto. Ser sensível e mostrar simpatia não custa nada e mais uma
vez aproxima as pessoas.

Concluindo

Antes de ir para o campo missionário prepare-se com consulta médica


e um check-up completo. Use medicação para a viagem, se necessário.
Tome as medidas para que ela corra bem. No campo, esteja atento à
alimentação, água, insetos, animais selvagens, calor e umidade. Repouse
o necessário. Se sofre de alguma doença crônica, saiba que pode haver
complicações e a adaptação deverá ser mais lenta e gradual. Planeje
muito bem uma possível gravidez. Atenção especial às crianças, pois
são mais susceptíveis a problemas de saúde. Conheça quais as doenças
mais comuns em sua região e tome as precauções para evitá-las. Tenha a
farmácia familiar sempre preparada.

No início de 1999 estava em Dakar, no Senegal, com o objetivo


de regressar a Bafatá, na Guiné-Bissau, de onde saíra havia 6
meses por causa do início de uma guerra civil. No exato dia em
que cheguei a Dakar, as notícias deram conta de que os rebeldes
tinham tomado Bafatá. Fiquei muito desanimado, mas mesmo assim
estava determinado a ir. As autoridades senegalesas não estavam
facilitando e eu não conseguia sequer autorização para sair de
Dakar. Em meio a esta luta, encontrei um pastor guineense. Falei-
lhe de meu desejo de chegar a Bafatá e de minha insistência com as
autoridades. A resposta dele até hoje ecoa em meu coração. Com
voz mansa e muito cuidado ele disse:

"Nós precisamos muito dos missionários na Guiné. Mas vamos


precisar de vocês vivos quando a guerra terminar".

109
Antes do ide

- Isso não é bem assim - retorquiu o comandante da Marinha. Só


foi possível a vossa chegada porque nós vos demos o necessário apoio
e transporte. Se não fosse isso ainda estariam na vossa base a discutir
táticas.

- Não vejo para que tanta discussão - interveio o general principal


do Exército. Todo mundo sabe que somos nós, as forças terrestres, que
vamos efetivamente ocupar o terreno. O trabalho principal é sempre
nosso pelo que não vejo necessidade de maiores debates.

- E o que seria de vocês se não tivessem apoio aéreo? - reclamou


o comandante da Força Aérea. Qual é a divisão terrestre que resiste
sem apoio aéreo? Quem é que vos dá cobertura? Quem é que arrasa as
trincheiras adversárias antes de vocês pisarem na terra?

- Sim - concordou o General, mas vocês o fazem confortavelmente


a milhares de metros de altitude enquanto os meus homens vão ter que
lutar cara a cara com o inimigo.

- Os seus homens - ripostou o chefe do comando aéreo são um bando


de trogloditas com pouca formação. Eu tenho a elite desta força militar,
as verdadeiras cabeças.

- Que precisam dos nossos porta-aviões para estar aqui - lembrou o


comandante da Marinha.

- Gostaria de recordar - tentou o fuzileiro - que os primeiros a


penetrar em território hostil fomos nós. Isso deve valer alguma coisa.

- A guerra nem começou direito e já querem medalhas? - nu o


General.

E assim por diante foi a reunião. Trocas de acusações e falta de


entendimento. Parecia que nenhum deles conseguia se lembrar que,
afinal, estavam todos do mesmo lado e seria muito melhor se pudessem
concordar. Mas infelizmente não puderam. E cada um deixou aquele
encontro com suas próprias idéias e estratégias.

O resultado foi trágico. A Marinha avançou sobre uma região portuária


importante, mas ninguém pôde fazer uso de suas vitórias. A Força Aérea
bombardeou muitas posições inimigas, mas longe de onde o Exército

112
Capítulo VII - Fogo amigo

precisava e acabou mesmo atingindo algumas unidades amigas. O Exército


teve avanços e recuos, mas não chegou a tomar muito território porque sem
as linhas de manutenção da Marinha e sem os apoios aéreos não podiam
fazer mais. E os fuzileiros acabaram cercados pelo inimigo numa posição
insustentável perdendo muitos homens e o terreno conquistado.

Este não é o relato de uma guerra do golfo que não deu certo. É
o relato das atividades no campo missionário. Temos enviado forças
em número e em capacidade bastante razoáveis, mas a total falta de
coordenação e unidade nos têm impedido de ser mais eficazes. Stott
refere que "a nossa desunião continua sendo um grande empecilho
para o nosso evangelismo"'. Não somente a falta de estratégias comuns
tem prejudicado a obra e levado muitos ao desânimo, como temos tido
também muitas baixas por "fogo amigo". Durante a recente guerra pela
derrubada do regime de Saddan Hussein, os americanos e britânicos
tiveram muitas baixas por fogo amigo. São situações em que tropas
amigas acertam por engano os seus próprios soldados ou aliados. Pode
ser fogo amigo, mas é fatal. Desejamos por isso abordar as relações no
campo com os demais companheiros missionários.

1. Relacionamentos entre missionários de agências diferentes

No Brasil temos hoje tantos grupos diferentes que se intitulam


evangélicos que é praticamente impossível conhecermos todos. Parece que
a cada semana surge uma nova igreja com um nome sonante e pomposo e
vamos nos dividindo até o ponto da exaustão. Esse não é um bom princípio.
A Palavra advoga a união e Jesus disse claramente "que eles sejam levados
à plena unidade para que o mundo saiba que tu me enviaste..." (João 17.23-
NVI). Não admira pois que tenhamos tanta dificuldade em convencer o
mundo pois o que vêem em nós, é tudo, menos união.

Não estou defendendo aqui um ecumenismo ingênuo e fácil. Não é


um tipo qualquer de unidade ou nas palavras de John Stott:

"(..) não é uma unidade que se busque a qualquer preço, mesmo


que para isso se comprometam verdades fundamentais; nem é uma
unidade nos mínimos detalhes. que implique afastar-se de qualquer
um que deixe de pôr um ponto num "i·' ou cortar todo o "t" do
mesmo jeito que nós . É uma unidade no evangelho, nas coisas
essenciais do evangelho "2.

113
Antes do ide

Se no Brasil já não faz sentido tantas divisões, nos campos


missionários menos ainda. Os povos não-alcançados aos quais queremos
falar nos verão como sendo membros todos da mesma religião. Nossa
falta de unidade só serve para distanciá-los mais ainda do evangelho. Sua
conclusão lógica será: "se não conseguem se entender entre si, o que é
que podem nos trazer de novo?" Divisões eles já conhecem. Convivem
com divisões étnicas, culturais, religiosas e sociais. Em muitos casos
essas divisões têm representado violência terrível. Como esperamos
ter sucesso em apresentar-lhes o evangelho, se vamos acrescentar outra
divisão? Já terão que deixar sua religião e muitos serão tidos como
traidores de sua etnia e cultura. Que tenham pelo menos a visão de que
na igreja de Jesus somos uma grande família.

Talvez mais trágico ainda é que estas divisões se devem na maioria


dos casos a meros preconceitos. O dicionário define preconceito
como "conceito formado antecipadamente e sem fundamento sério
ou razoável" e Voltaire o chamava de "a razão dos tolos". Temos sido
levados por idéias preconcebidas e sem fundamento, julgando os outros
e colocando rótulos sem buscarmos conhecer a verdade sobre eles. E
quantas surpresas agradáveis teríamos se pudéssemos ultrapassar esses
rótulos e essas barreiras auto-estabelecidas! Descobriríamos irmãos em
Cristo que pensam em grande parte como nós e veríamos que o que nos
divide é bem menor do que aquilo que nos une.

Minha sugestão é que aprendamos a respeitar as diferenças. Vamos


nos concentrar naquilo que é essencial. Vamos orar juntos e deixar o
Espírito nos dar aquela paz que advém da comunhão com os irmãos.
Nossa experiência em Bafatá tem sido abençoada no sentido em que
semanalmente nos reunimos para orar com os colegas que trabalham
na região. Somos do Brasil, Estados Unidos, Irlanda e Austrália. Somos
presbiterianos, metodistas, batistas e assembleianos. Temos ministérios
bem diferentes. Temos visões diferentes. Temos linhas doutrinárias
diferentes. Nossas culturas são diferentes. Mas sentamos na mesma
sala, compartilhamos nossas dificuldades, falamos de nossos anseios
e expectativas e oramos uns pelos outros. Quantas bênçãos, quanta
motivação temos recebido em tais encontros e sabe o que acontece?
Acabamos descobrindo que todas aquelas diferenças de que falei nem
fazem assim tanta diferença.

Uma palavra também sobre a convlvencia com colegas de outras


nacionalidades. Isso é hoje bastante comum nos campos. Muitas vezes

114
Capítulo VII - Fogo amigo

surge choque cultural nessa convivência. É até um fato natural. No


entanto, verificamos que há mais paciência e tolerância para enfrentar
os costumes diferentes da terra do que para lidar com as diferenças
culturais dos colegas missionários. Novamente, isso soa incoerente. Por
que temos mais paciência com pagãos descrentes do que com irmãos e
companheiros de luta? Devemos pois aprender a relaxar e até "curtir"
essas diferenças. Em muitos casos vão acrescentar valores muito bonitos
a nossos próprios costumes.

Temos perdido muito em nos isolarmos dos demais colegas e missões.


Vamos dar o primeiro passo em direção aos outros. Tenho descoberto que
muitas vezes só é preciso alguém ter a coragem de dar esse primeiro
passo e tudo se encaixará. Vamos ousar crer que a Palavra se aplica a nós
nisso também. Juntemos nossos joelhos e deixemos que o Espírito Santo
faça o resto em Cristo e junte nossos corações.

2. Relações entre missionários da mesma agência

Muito do que foi falado no ponto anterior se aplica aqui,


principalmente quando se trata de colegas dentro da mesma missão que
não estão trabalhando juntos. O que quero desenvolver aqui é a relação
dentro das equipes missionárias, porque é aqui que tem havido muitos
problemas e vários casos de "fogo amigo". Dificuldades de relação entre
colegas no campo têm sido responsáveis por muitos dissabores, muitas
preocupações nas agências enviadoras e muita correspondência. Esta
situação lembra um pouco a da entrada no Seminário. O seminarista
de primeiro ano vem cheio de boas intenções e ideais. Ele acredita que
o Seminário é uma espécie de antecâmara do céu. Ali só vai encontrar
gente consagrada e espiritual. Tudo vai ser partilhado em total harmonia,
só se vai pensar na Bíblia dia e noite e dali ele sairá mais perto do ideal
de santidade que sempre quis alcançar.

Passadas algumas semanas a decepção é tanta que alguns deixam


o Seminário. E no campo missionário se dá o mesmo. Os "gigantes
espirituais", que seria suposto estarem no campo, são, afinal de contas,
gente de carne e osso, com problemas, temperamentos por vezes
dificeis de lidar, idiossincrasias próprias e até manias esquisitas. E todas
essas particularidades tendem a tomar aspectos mais graves no campo
missionário, pois as pressões e o stress acentuam quaisquer dificuldades.
Não admira, pois, que haja conflitos e por vezes abandono do campo.

115
Antes do ide

Vamos por isso sugerir alguns princípios para a vida em equipe no


campo missionário.

3. Os 10 mandamentos da equipe que funciona

3.1 - Terás um compromisso sério com Deus, com a equipe e com


os propósitos - Uma equipe para ser equipe precisa estar comprometida.
Isso implica assumir uma responsabilidade, um dever. O compromisso
é um acordo do tipo mais forte. Não precisa ser escrito, mas tem a
ver com caráter e honestidade. A equipe necessita de um alto nível de
compromisso para poder funcionar bem.

David Kornfield sugere que o compromisso deve ser em três níveis 3 .


Em primeiro lugar, compromisso com Deus. Como já falamos no
capítulo sobre vida devocional, nosso primeiro compromisso é com o
Senhor e sem essa dedicação nada vai dar certo. A certa altura, o famoso
compositor e maestro Arturo Toscanini ensaiava uma peça de Beethoven
com uma conhecida orquestra. Procurando dar aos músicos um melhor
entendimento de suas responsabilidades, ele declarou: "Cavalheiros, eu
não sou nada, vós não sois nada, Beethoven é tudo". Isso é compromisso.
Nós não somos nada. Sem ele nada podemos fazer. Nosso primeiro
compromisso individual e coletivo é com o Senhor.

Mas tem que haver compromisso com a equipe. Um pouco como o


famoso lema dos Mosqueteiros imortalizado por Alexandre Dumas: "Um
por todos e todos por um". O compromisso com a equipe significa que não
agirei sozinho, não tomarei decisões sem consultar os outros, não farei
coisas que prejudiquem os demais, respeitarei o fato de que funcionamos
e trabalhamos em equipe. Um indivíduo que deseja estar numa equipe,
mas que não liga para os demais, certamente vai desestabilizar o trabalho e
contribuir para conflitos e falhas. Numa equipe missionária não pode haver
"prima-donas". Todos somos servos, todos estamos ali para trabalhar e ser
úteis. Compromisso com a equipe significa que muitas vezes abdicarei de
coisas que considero meu direito pelo bem do grupo.

Em terceiro lugar, é preciso também compromisso com a visão. Se


há um propósito no trabalho da equipe vai ser preciso compromisso com
esse alvo. Todos vão trabalhar para o mesmo lado. Não é um "cabo de
guerra" em que cada um puxa para o seu lado, a ver quem ganha. É um
time que conhece onde está o gol e caminha para lá de forma decidida

116
Capítulo VII - Fogo amigo

e animada. O propósito é o foco do grupo. É o que vai ajudar a definir


as atividades e as coisas que se vão deixar de fazer. Para que a equipe
funcione todos devem procurar ter o mesmo grau de envolvimento com
os objetivos traçados.

3.2 - Colocarás as pessoas certas nas tarefas certas - Creio que


a grande maioria dos brasileiros curtiu intensamente a vitória na Copa
do Mundo de futebol de 2002. Todos apreciamos os gols e as jogadas
vistosas. Mas a verdade é que se houve vitória e conquista foi porque
cada jogador foi colocado no lugar certo. Imagine o Ronaldo no gol, o
Marcos no ataque e o Roque Júnior na organização de jogo. Certamente as
coisas teriam sido diferentes porque o Marcos é muito bom, mas no gol,
pegando as bolas; o Roque Júnior é ótimo cortando passes e marcando os
atacantes e a função do Ronaldo é driblar e marcar gols. Qualquer equipe
que queira funcionar deve colocar as pessoas certas nas tarefas certas.
Essa é uma das responsabilidades importantes da liderança.

No campo missionário isso vai estar ligado principalmente a dons,


talentos e experiência prévia. Cada membro do grupo deve contribuir
com aquilo que pode fazer bem, dentro de seu tempo disponível. Uma
missionária que seja mãe e tenha que cuidar do lar e dos filhos terá
menos tempo que outros. Um obreiro solteiro com formação superior e
muito tempo livre vai poder fazer mais. Conhecer dons e ministérios será
essencial. Cada um será útil na sua área. Juntamente contribuirão para
que o propósito seja atingido.

Colocar as pessoas com os dons certos nos ministérios certos vai


trazer muito mais satisfação ao trabalho. Quantos têm se esgotado porque
são forçados a fazer o que não gostam ou não está dentro de seu perfil.
Nesse caso o trabalho se torna penoso, enfadonho e acaba esgotando. Por
outro lado, fazer aquilo que gostamos, e para o que somos dotados, traz
realização pessoal e entusiasmo. Permite fixar as expectativas. A pessoa
fica sabendo bem o que se espera dela e isso facilita bastante as coisas.
Permite também atribuir responsabilidades e assumir erros. Evita o
desenvolvimento do espírito de inveja e competição. Se há compromisso
com a equipe e a visão, e se sei o que se espera de mim, não há motivos
para ficar com inveja de outros ou entrar em disputas sem sentido.

3.3 - Respeitarás a autoridade - Para que uma equipe funcione


é preciso haver um líder. Se há liderança, vai ser preciso respeitá-la.
Vivemos num mundo em que a autoridade é cada vez mais relativa.

117
Antes do ide

Muitos jovens são criados sem os dois pais em casa e não chegam a
aprender os conceitos de autoridade em casa. Quando se tornam adultos
estão acostumados a fazer tudo o que lhes agrada e no campo missionário
não querem se submeter à autoridade estabelecida. Isso vai criar rupturas
na equipe e conflitos que muitas vezes paralisam a obra.

Uma primeira coisa a lembrar sobre este assunto é que toda


autoridade vem de Deus. "Rebelar-se contra a autoridade representativa
de Deus é o mesmo que se rebelar contra Deus", escreve Watchman
Nee 4 . Se Paulo ensinava as igrejas que deveriam se sujeitar à autoridade
romana que era pagã e corrupta, que diremos da autoridade de nossas
lideranças missionárias? O princípio da rebeldia é de Satanás. Ele é o
rebelde. O mundo aprecia essa imagem porque jaz no maligno. O mundo
imortalizou figuras como James Dean por serem rebeldes, mas a Palavra
sempre valoriza e dignifica o princípio da obediência. Casos de rebeldia
como os de Nadabe e Abiú, Miriã e Arão, Coré, Datã e Abirão, Saul,
Ananias e Safira, e outros, foram castigados severamente pelo Senhor.

Do outro lado temos o exemplo clássico de Davi que não ousou


levantar a mão contra o ungido do Senhor. Para ele o fato de Saul ser um
mau rei e o estar perseguindo não foi suficiente para aceitar a rebeldia.
Que grande exemplo! Obedeceu ao princípio bíblico até o limite. Ora,
esta obediência por vezes é muito custosa.

Certa ocasião estava trabalhando como pastor auxiliar numa igreja. O


pastor principal estava demasiado ocupado para dar atenção aos crentes
além de que morava muito longe. A cada mês os irmãos se apegavam
mais a nós. Nesse momento surgiu uma crise com um indivíduo possesso
numa das famílias da igreja. A situação chegou a ponto de rotura. Recebi
um telefonema de uma líder da igreja pronta a tomar o meu lado e levar a
igreja a me colocar como pastor. Na verdade, o pastor principal estava em
falta, havia várias situações em que mostrara má vontade para comigo,
eu sabia que estava mais bem preparado para o trabalho do que ele, mas
aceitar as insinuações vindas naquele momento seria seguir o princípio
da rebeldia. Firmemente disse não. O pastor era o outro e era a sua
orientação que deveríamos seguir. No fim desta situação todos saímos
fortalecidos e o Senhor abençoou a igreja com várias conversões.

A questão da autoridade tem, então, dois lados. Um deles é o do líder.


Há muitos livros excelentes sobre liderança em nossas livrarias. Sugiro
a um candidato ao campo que tenha pelo menos um ou dois à mão para

118
Capítulo VII - Fogo amigo

o caso de assumir uma liderança. Os psicólogos norte-americanos John


French e Bertram Raven descreveram cinco bases para o poder: O poder
legitimado, que é o aceito pela maioria que acha normal a pessoa em
causa dar ordens; o poder da recompensa, que é o caso de se aceitar a
liderança porque o outro pode oferecer resultados desejados; o poder
forçado, que é baseado no medo da punição; o poder referencial, que
deriva do sentimento de identidade que uma pessoa tem por outra; e
o poder de especialista, que aparece quando acreditamos que a outra
pessoa tem os conhecimentos necessários 5 •

Devemos procurar a autoridade legitimada. O líder precisa, de uma


forma especial, respeitar estes 10 mandamentos da equipe que funciona.
Ele tem responsabilidades acrescidas. Mas cuidado, pois, com a
preocupação demasiada com a ordem. Alguns acham que liderar é manter
a ordem. Lembre-se que no cemitério há ordem, mas não há vida. Numa
ditadura também há ordem, mas não há liberdade. Estabeleça ordem,
mas não afogue a vida nem a liberdade. Jim Kouzes e Barry Posner,
autores de "The Leadership Challenge" entrevistaram 20 mil pessoas,
em quatro continentes, para identificar as características que elas mais
procuravam e admiravam em um líder. Foram identificadas apenas
quatro características por mais de 50% dos entrevistados: competência
(63%), inspiração (68%), visão de futuro (75%) e honestidade (88%).
Estes dados dão a entender que a honestidade pode ser o ingrediente
principal para uma liderança bem sucedida6•

O outro lado da questão é o dos liderados. Quando estamos no lado


de cá, temos a tendência de pensar que é fácil liderar. Mas não é! A
responsabilidade do líder é um peso enorme que precisa ser respeitado.
Procure ser franco com ele quando tiver críticas. Seja honesto no desejo
de achar soluções. Entenda que nem sempre é possível agradar a todos.
Lembre-se que a rebeldia só traz tristeza e paralisia no trabalho. Entrar
por esse caminho é sempre desastroso. Para o bem da equipe e de você
mesmo seja obediente e fiel à liderança. Se tiver convicção de Deus
noutro sentido então deixe a equipe antes de provocar roturas.

3.4 - Procurarás comunicar eficazmente - Comunicação parece


fácil, afinal o que pode ser mais simples que passar minha mensagem?
Mas, se é tão fácil, então por que há tantos mal-entendidos? Quantas
vezes você já falou uma coisa que lhe parecia clara e simples e depois
descobriu que a pessoa a quem falou entendeu o contrário? E quantas
vezes entendemos uma coisa e depois a pessoa nos diz que não era nada

119
Antes do ide

disso que falou? Por que será que isso acontece tanto? Talvez porque a
comunicação não seja tão fácil assim.

Um dos problemas é que normalmente desconhecemos o contexto


que envolve a comunicação. É o velho problema de interpretar a palavra
fora de seu contexto. "A maioria dos enganos vem, não de definições
erradas, mas de contextos esquecidos. Por que com tanta freqüência não
entendemos os outros? Não é por não entender a linguagem, é porque não
conhecemos o contexto", escreve Eugene Peterson 7 • Procurar conhecer
o que está atrás das palavras nem sempre é fácil, mas é o segredo para a
melhor comunicação.

Para que a equipe funcione bem, precisamos nos comunicar. Mais


danos já foram causados por falta de comunicação do que qualquer
outra coisa. Algo pequeno e insignificante tende a crescer e quando
vamos tratar do problema já saiu totalmente de proporção. Mas tudo
começou porque a mensagem não passou corretamente. Então atenção
à comunicação:

o Seja claro no que diz, nada de ambigüidades ou ironias, fale da

forma mais direta possível não esquecendo o princípio do amor.


o Seja específico. Muitas coisas de uma vez podem complicar.

Certamente algo será esquecido. Fale o importante e deixe o resto.


o Escolha o momento certo e o lugar certo para falar o que precisa.

Às vezes até falamos de forma clara e específica, mas escolhemos um


lugar e uma hora em que nosso interlocutor não vai poder dar a atenção
necessária e a mensagem vai se perder.
o Seja sensível ao outro e escolha bem o momento.

o Seja coerente. Se falar assim hoje não mude de conversa amanhã,

pois isso traz confusão, dúvida e falta de confiança.

Uma boa comunicação facilitará o trabalho da equipe em 100%.


Já que falamos de comunicação seja cuidadoso na preparação das
reuniões. Uma equipe certamente precisará de reuniões para tratar de
suas atividades. Reuniões podcm ser uma bênção para o trabalho ou
uma perda de tempo. Tudo depende de como lidamos com elas. Fazer
reuniões toda hora é contraproducente. Deixe as reuniões para quando
há realmente algo a discutir. Planeje bem a reunião. Que ela tenha um
propósito. O que queremos desta reunião? Por que a fizemos? Deixe que
todos se expressem, mas limite o tempo de modo a haver concentração
de idéias. E que no fim haja uma conclusão definida. Há poucas coisas

120
Capítulo VII - Fogo amigo

piores para o moral do grupo do que uma reunião inconclusiva. Uma


equipe bem-sucedida é aquela onde os membros se comunicam com
clareza e fazem reuniões produtivas.

3.5 - Ouvirás duas vezes - Parece que este tema ainda está dentro do
anterior, mas é tão importante que precisa ser realçado, afinal alguém já
disse que "ouvir diminui a distância entre as pessoas". Ouvir é mesmo
tão importante que hoje existem profissões cuja principal função é ouvir,
e as pessoas despendem muito dinheiro para que estranhos as ouçam.

Sempre me recordo de senhoras de idade que iam ao meu consultório


em Lisboa para falar. Entravam, sentavam e falavam. Contavam a vida,
as mazelas, as peripécias dos filhos e netos, as brigas com o marido ou
as mudanças da vizinha. Elas falavam e eu ouvia. Na maioria das vezes
nem tinham nenhuma queixa médica. Iam ali para que passasse as receitas
dos mesmos remédios de sempre, mas ao saírem me cumprimentavam:
"Ai, Senhor doutor, que bem que me fez esta consulta, até já me sinto
melhor!" E eu não fizera nada, apenas ouvira. No entanto, quando avisei
que estava me mudando para a Guiné, muitas dessas senhoras ficaram
penalizadas. Iam perder o ouvido amigo.

Para que uma equipe funcione no campo missionário, e na vida, os


seus elementos precisam aprender a ouvir uns aos outros. Isso reduzirá
em muito os conflitos. Ouvir é uma arte, mas todos podemos desenvolvê-
la. Dietrich Bonhoeffer dizia que "o primeiro serviço que se deve aos
outros na comunhão consiste em ouvi-los". Sendo assim, quando alguém
estiver falando tenha o cuidado de:

I) Não julgar. Sua função é tentar entender o outro e não criar juízos.
Lembre-se que "da mesma forma que julgarem, vocês serão julgados"
(Mateus 7.2 - NVI).
2) Não condene. "A condenação sempre implica algum grau de
hipocrisia e de distanciamento daquele que condenamos (00') Só em
casos extremamente raros a pessoa condenada reagirá mudando a sua
conduta", escreve Dallas Willard8 •
3) Não se precipite nas conclusões pois "na vida real as respostas
rápidas quase sempre estão erradas", comenta a advogada Jo-Ellan
Dimitrius9 •
4) Não fique preparando uma resposta. Todos já experimentamos
a sensação irritante de estar falando e perceber que o outro estava
matutando numa resposta em vez de nos ouvir.

121
Antes do ide

5) Mostre atenção total e irrestrita. Tenha paciência e mostre interesse.


Estimule a pessoa de forma positiva a se expressar.
6) Procure parafrasear para garantir que está entendendo bem. Este
processo mostra interesse e ajuda a tornar claras as idéias.
7) Esteja atento à linguagem corporal. Gestos, posições, olhar,
colocação da cabeça, tom de voz, tudo ajuda a entender melhor o que
está sendo dito.

Aqui também devemos seguir a regra de ouro do Mestre: "Como


vocês querem que os outros lhes façam, façam também vocês a eles"
(Lucas 6.31 - NVI). Todos amamos aqueles que nos ouvem com
paciência. Aprenda a ouvir e ganhará ouvidos.

3.6 - Resolverás os conflitos - Mesmo na melhor equipe surgirão


conflitos. Somos humanos, pecadores, falhos, logo é inevitável que haja
problemas. Devemos por isso encarar os conflitos com naturalidade. Ficar
desesperados diante de problemas não vai resolver nada. Reconheça que
faz parte da vida e parta para a resolução. Tenha em conta, inclusive,
que conflitos são muitas vezes momentos importantes de virada e
que a equipe pode se beneficiar. Um grupo de trabalho que, de forma
eficiente, resolve seus conflitos será mais unido e mais forte do que um
que nunca teve problemas. Uma situação dificil pode nos levar a uma
fase de maior compromisso e entendimento se houver maturidade na
sua resolução. Lembre-se também de que Deus chamou você para esse
campo, mas também chamou a outra pessoa com quem há este conflito
presentemente. Como Deus não erra, então deve haver valor em ambos e
também espaço para os dois. Tendo dito isto, vejamos o que não fazer e
o que fazer diante de um conflito.

a) O que não fazer:

1) Não fuja ou negue. Negar o conflito não o fará desaparecer. Fugir


dele, procurando agir como se nada estivesse acontecendo, também não.
Isso só vai dar tempo para que as posições se tornem mais endurecidas e
fique mais dificil resolver a questão.
2) Não protele. Ficar adiando a resolução também não ajuda. Os
conflitos têm a tendência de paralisar a obra, tirar o ânimo e as condições
dos envolvidos. Quanto mais tempo se protelar mais prejuízo haverá para
a obra e as pessoas.
3) Não se precipite em soluções superficiais. Procurar resolver uma
fratura exposta com um ban-aid certamente não vai dar certo. Minimizar

122
Capítulo VII - Fogo amigo

e resolver superficialmente uma questão vai deixar as raízes do problema


intocadas e mais cedo ou mais tarde ele vai retornar pior do que antes.
4) Procure não tomar partido e ficar atribuindo culpas. Não ataque
as pessoas e sim os problemas. Mesmo que haja culpados na questão,
os ataques apenas servirão para entrincheirar o visado. Saber quem é o
culpado nem sempre é a solução. Minha mãe sempre dizia "quando um
não quer, dois não brigam". Se há conflito, então há culpa partilhada.

b) O que fazer então?

I) Não se resolvem conflitos sem confrontos. É preciso haver abertura


e busca sincera de verdade. Deve haver oportunidade para todos falarem.
As partes deverão procurar ouvir de verdade o outro lado. O objetivo é a
busca de um consenso. Stott escreve que "( ...) a essência da conciliação
está em persuadir cada um dos lados a ouvir o outro lado".
2) Qual é realmente a questão? Muitas vezes a definição do problema
por si só prova ser a solução, porque o que havia era má comunicação.
Procure reunir toda a informação sobre o assunto. Em muitos casos, a
explicação clara do que está em jogo é o bastante para que as partes se
entendam.
3) Se você é o errado, então peça perdão. Uma palavra de
reconhecimento de seus próprios erros faz maravilhas numa relação. Se
o outro é o errado, esteja pronto a perdoar e a andar a segunda milha.
4) Estabeleça conclusões que os dois lados aceitem como razoáveis.
Uma vez decidido, aja de acordo com o compromisso. Vire a página e
avance sem ficar repisando o sucedido.

Temos, no entanto, que reconhecer que há conflitos que não se


resolvem. É o outro lado da frase de sabedoria de mamãe. "Quando
um não quer, dois não se reconciliam". Nesses casos, é preciso definir
quem está faltando com a equipe. Quem está se desviando do propósito.
Por vezes, para que possa haver avanço, é preciso deixar um elemento
seguir seu caminho. É triste, procuramos evitar, mas há casos em que é
inevitável.

3.7 - Serás paciente e tolerante - Sendo os missionários gente de


carne e osso como já enfatizamos, fique certo que haverá dias em que a
"coisa complica". Todos têm seus dias maus, dias de mau humor, dias
maldormidos, dias de má vontade. Todos erram, todos se cansam, todos
falam o que não deviam falar, todos se precipitam e ficam chateados.
Hoje sou eu, amanhã é você, depois de amanhã, o outro. E quando isso

123
Antes do ide

acontece está na hora de tcr paciência e ser tolerante. Temos que deixar
de lado a hipocrisia que se escandaliza com facilidade e a intransigência
que quer exigir dos outros o que não pede de si mesmo. A paciência
numa hora dessa pode fazer toda a diferença. Afinal, "cabeças quentes e
corações frios nunca resolveram nada", segundo Billy Graham.

Dizem que Edwin Stanton era extremamente crítico de Abraham Lincoln.


Chegou a chamá-lo de palhaço. Quando uma expedição partiu à procura de
um gorila para um zoológico americano, Stanton teria dito que era perda
de tempo pois poderia achar um em Springfield, Ilinois, a terra de Lincoln.
No entanto, quando Lincoln se tomou presidente e a guerra civil estourou,
ele convocou Stanton para Secretário de Guerra reconhecendo seu talento.
Era a paciência em ação. Quando, por fim, Lincoln foi assassinado, ouviram
Stantom dizer com lágrimas nos olhos junto ao cadáver: "Aqui jaz o maior
estadista que o mundo já conheceu". A paciência ganhara.

Numa equipe missionária que quer funcionar, é preciso que esteja


presente o princípio da inclusão. Em vez de excluir, de criticar, de colocar
de lado, inclua, seja tolerante, traga para dentro. Certa missionária esteve
36 anos no campo missionário com um nível de convivência excelente
com todos os colegas. Quando lhe perguntaram como conseguiu, ela
respondeu que duas coisas eram essenciais, vida devocional e senso de
humor. Desenvolva seu senso de humor e verá que fica bem mais fácil
conviver bem com os outros e seus defeitos.

3.8 - Intercederás por teus colegas - A advogada Jo-Ellan Dimitrius,


que esteve envolvida no caso 0.1. Simpson entre outros, desenvolveu
a arte de conhecer bem as pessoas para escolher os jurados de seus
julgamentos. Ela reflete com sabedoria que "é muito mais fácil mudar o
modo como você pensa sobre uma pessoa do que o modo como a pessoa
pensa"IO. Acrescento a essa verdade que a melhor maneira de mudar sua
forma de pensar sobre os outros é começar a orar por eles.

Quantas vezes temos visto esse princípio funcionar na igreja e em


nossa vida. Temos dificuldade em nos relacionar com alguém. Então
começamos a orar com interesse genuíno por essa pessoa e o Espírito
vai mudando nosso coração. Quando intercedemos por alguém tempo
suficiente e com persistência é impossível não começar a amar essa
pessoa. Daí o valor desse princípio no trabalho das equipes missionárias
já que, como escreveu Charles Brent, "a oração intercessória pode ser
definida como amar o próximo, de joelhos"ll.

124
Capítulo VII - Fogo amigo

Aprender a orar pelos outros nem sempre é fácil. Inicialmente teremos


que nos disciplinar para isso. Teremos que escrever nomes e colocar isso
como alvo específico de oração. Mas à medida que o fazemos as bênçãos irão
fluir. A intercessão é parte essencial de nosso chamado sacerdotal. É o tipo
mais valioso de oração, pois ultrapassa as barreiras do egoísmo e do interesse
próprio para alcançar outros. Deixa de lado os problemas pessoais e se volta
para os problemas dos outros. E nos surpreendemos ao descobrir que, enquanto
estamos orando pelas dificuldades dos outros, o Senhor trata das nossas.

Se um grupo de trabalho de missionários deseja estar unido e forte na


presença do Senhor, então os seus elementos precisam aprender a gastar
tempo orando uns pelos outros em seus momentos devocionais. Este será
um elemento fortificador da equipe e do trabalho que transbordará para a
igreja e, possivelmente, para outros grupos missionários.

3.9 - Partilharás experiências boas e más - A vida no campo


missionário não é só trabalho. Há momentos em que os missionários
precisam parar e descansar. Há outros momentos em que devem procurar
algum tipo saudável de lazer. Partilhar esses momentos é importante para
fortalecer os laços na equipe missionária.

Convidar os outros para uma refeição especial, um futebol no fim de


semana, jogar algum jogo de salão ou ao ar livre, fazer um piquenique,
visitar algum lugar turístico juntos, ir à praia, caso seja possível, passear
de canoa no rio etc. serão momentos de alegre relax e também de
convívio. Rir juntos é muito útil para fortalecer laços.

Os momentos de lazer permitem baixar defesas e revelar traços da


personalidade que por vezes ficam escondidos no ambiente de trabalho.
Você vai descobrir que um colega é excelente contador de piadas, ou bom
de bola, ou que a colega faz bolos deliciosos ou sabe costurar muito bem.
Isso tudo aumenta o contato, derruba barreiras, torna as pessoas mais
humanas e pode criar ligações que tornarão mais fácil a resolução de
problemas no futuro ou até o surgimento de novas estratégias de trabalho.

Mas nem só de momentos alegres se faz a vida missionária. Há


ocasiões em que as lágrimas irão rolar e aí também o partilhar de
experiências será fundamental. Nessas horas de tristeza não se afaste.
Chegue junto, esteja perto. Temos a tendência de achar que, como
obreiros do Senhor, temos sempre que ter uma palavra certa para todas
as ocasiões. Mas muitas vezes o que precisamos é de seguir o conselho

125
Antes do ide

de Paulo e apenas "chorar com os que choram". Partilhar lágrimas une


como poucas coisas na vida.

Certa mulher aproximou-se de uma conhecida para lhe falar da morte


de uma amiga comum. A mulher que recebeu a notícia não pareceu muito
tocada ao que a outra se revoltou um pouco:

- Mas vocês eram tão amigas!


- O que leva você a pensar isso? - indagou a visada.
- Ora - explicou a primeira - ainda na semana passada, vi vocês duas
rindo juntas.
- E verdade - reconheceu a outra. Rimos juntas algumas vezes. Mas
você nos viu chorando juntas alguma vez?

Eis então um segredo de união - chorar juntos. Não se preocupe tanto


com o que falar. Apenas esteja lá e chore junto.

3.10 - Abençoarás - O último mandamento da equipe que funciona está


ligado novamente à comunicação e ao poder das palavras. Temos lido na
Escritura sobre a importância da palavra falada. Tiago referia que "de uma só
boca procede bênção e maldição. Meus irmãos não é conveniente que estas
coisas sejam assim" (3.10). Salomão alertava que "como maçãs de ouro em
salvas de prata, assim é a palavra dita a seu tempo" (Provérbios 25.11). Todos
nós já sofremos com palavras duras e nos alegramos com elogios.

Algo que pode ser fatal para uma equipe são calúnias ou ofensas. A
calúnia dificilmente se resolve. Como a história de certo bom homem que
se encontrava moribundo. Ele fora cruelmente caluniado por um suposto
amigo. Este, arrependido, veio visitá-lo no leito de morte pedindo perdão.

- Eu te perdôo - disse o doente. Mas queria que fizesses uma coisa


por mim.
- Tudo que pedires - respondeu o outro, ansioso para se sentir
perdoado.
- Vai a um galinheiro e enche um saco grande com penas de galinha
e depois volta aqui.

O homem achou o pedido estranho, mas como não se deve negar nada
a um moribundo, ele foi e fez tudo conforme requisitado.

- Aqui estão as penas de galinha que pediste - disse ao voltar.

126
Capítulo VII - Fogo amigo

- Agora vai á torre da igreja - replicou o doente - e quando o vento


bater solta as penas todas ao vento.

Lá se foi o outro cheio de dúvidas. Julgava que a doença prejudicara


o juízo do amigo, mas novamente fez como requisitado.

- Fiz conforme você mandou - disse ao voltar.


- Então, só quero mais uma coisa - disse o moribundo num suspiro.
Vai novamente e recolhe todas as penas.

E o pobre amigo teve que reconhecer que era impossível. Porque na


verdade a calúnia é como aquelas penas de galinha ao vento. Não dá para
saber aonde foram e muito menos recolhê-las. Portanto, cuidado com o
que vai falar. Antes de contar seja o que for, pergunte-se: É verdade? Vai
ser útil de algum modo? Vai edificar? Pode se dizer que contar será prova
de amor? Se fosse eu o sujeito, gostaria que contassem? Se não passar
neste teste, então fique quieto. O mesmo se pode dizer das ofensas. São
sempre pessoais e deixam marcas como cicatrizes feias. Nunca ofenda se
deseja que a equipe sobreviva. Se por acaso o fizer, então se arrependa,
humilhe-se, peça perdão e faça a devida retribuição.

O lado positivo, porém, é bem mais bonito. Aprender a ser uma


bênção vai mudar sua vida. Inicialmente vai ser preciso um esforço
consciente, mas depois que tiver sentido o gostinho, você vai querer
continuar porque a maravilha é essa: ao ser uma bênção, você será o
mais abençoado. Eis algumas sugestões práticas:

- Elogie com sinceridade. Todo mundo gosta de elogio. Mesmo que


não seja seu hábito, procure aprender a ver as coisas boas e a referi-las.
No campo missionário o feedback do povo muitas vezes não existe.
Mas dentro da equipe missionária pode haver essa resposta positiva que
anima tanto.
- Incentive de forma clara. Dê motivação, transmita ânimo em suas
conversas. Já estamos cercados por coisas demais que nos desanimam.
Seja um catalisador, um encorajador dentro da família e da equipe, e vai
acabar recebendo incentivo também.
- Dê aprovação pública. Elogiar em particular é bom, mas não
deixe de aprovar diante dos outros. Como é bom sentirmos que os
outros elementos de nosso grupo respeitam e valorizam o que fazemos.
Reconhecer que o trabalho avançou devido à participação de todos é algo
que fortalece o espírito de grupo de forma evidente.

127
Antes do ide

- Fale posItivamente sobre o futuro. Não precisa ser um profeta


para dar uma palavra sobre o futuro de alguém. As crianças gostam
que falemos de seu futuro coisas do tipo: "Vai ser um belo professor"
ou "Será um líder forte". Por que não fazer o mesmo com os colegas?
Quando vemos que algo está dando certo e distinguimos um dom ou
talento em alguém podemos referir isso em relação ao futuro e dessa
forma abençoar.
- Se deseja aprender mais sobre essa arte de abençoar, recomendo o
livro "A dádiva da bênção na família", de Gary Smalley e John Trent da
United Press l2 •

Nunca esquecerei aquele domingo. Era dia dos pais, tinha apenas 21
anos e fora convidado para pregar na Igreja Batista do Rocha. A igreja
do Pastor José dos Reis Pereira. Ele era um dos grandes pastores da
denominação. Uma verdadeira lenda viva. Crescera admirando-o e ter
a chance de pregar em seu púlpito era uma tremenda responsabilidade.
Tremia quando subi a plataforma. Falei pouco, uns 20 minutos e foi
bastante simples. Contei experiências e fiz aplicação. No fim do culto
sentia um alívio enorme. Foi então que aconteceu. Estávamos na fila de
cumprimentos e o Pro Reis me disse de forma bem audível:

- Bem contado e bem aplicado. Você ainda será um grande pregador.

Senti-me nas nuvens. Ele, em duas frases, deu um elogio, reconheceu-


me publicamente e me deu uma palavra positiva sobre o futuro.
Passaram-se muitos anos, mas jamais me esquecerei. Isso mesmo,
aprenda a abençoar e será lembrado. Aprenda a abençoar e sua equipe
toda lucrará.

Concluindo

Para que a relação entre mlssoes seja melhor, temos que vencer
preconceitos e aprender que nas coisas fundamentais devemos manter a
verdade, nas supérfluas, permitir liberdade mas, sobretudo, não esquecer
a caridade. Nas relações dentro das equipes missionárias lembremos de
estar comprometidos com Deus, com a equipe e com a missão. Vamos
colocar as pessoas certas nos lugares certos, respeitando a autoridade,
comunicando eficazmente e ouvindo mais que falando. Vamos resolver
os conflitos de forma eficaz, aprender a interceder pelos outros, ser

128
Capítulo VII - Fogo amigo

pacientes e tolerantes, partilhando experiências alegres e tristes e,


sobretudo, sendo uma bênção para os demais por meio de palavras e
atitudes.

Conta-se que certo mosteiro fora construído por um santo homem de


Deus. Muitos afluíram a ele em busca dos ensinamentos do reverendo
padre, mas quando esse morreu, o mosteiro entrou em decadência
rápida. Os monges se tornaram relapsos e preguiçosos. Logo começaram
discussões e lutas internas pela liderança. Ninguém se submetia a
ninguém e nenhum dos internos queria fazer os trabalhos mais humildes
essenciais à sobrevivência do convento. Aos poucos, as próprias
instalações começaram a mostrar os sinais do desinteresse e os monges
foram deixando aquele local, antes tão vivo e abençoado. Parecia o fim
do mosteiro.

Certa noite, porém, em meio a uma terrível tempestade, um estranho


veio bater a porta pedindo abrigo. Os monges o receberam quase por
obrigação e lhe indicaram um lugar para dormir. O estranho, porém,
tinha uma aura de santidade tão marcante que logo conquistou os
atribulados padres e um a um foram procurá-lo para contar a história
do mosteiro e pedir ajuda espiritual. Convenceram-no a ficar com eles
alguns dias e por fim lhe pediram que ficasse como seu líder maior. O
estranho respondeu:

- Não posso ficar. Meus deveres me levam adiante. Tampouco posso


resolver vossas disputas e problemas. Posso, porém, vos dizer que entre
vós há um monge que é um verdadeiro santo de Deus.

No dia seguinte o homem se foi, deixando o mosteiro perplexo. Um


deles era um santo de Deus... O homem assim o dissera. Mas quem? Seria
o Benedito? Seria o Antônio ou o Francisco? Seria eu? Eram as perguntas
que passavam pelas cabeças de todos. Um a um foram mudando sua
atitude para com os outros. Afinal, podia ser que o irmão em causa fosse
o tal santo de Deus. Ou que o monge propriamente dito fosse o tal santo e
logo deveria dar exemplo. Desse modo os trabalhos humildes voltaram a
ser feitos sem reclamação. As estruturas foram concertadas e em poucas
semanas aquela casa voltou a ser o palácio espiritual que fora antes.
Afinal, todos pensavam... um de nós é um santo de Deus!

129
Capítulo VIII
Construindo pontes
"A única forma de ter amigos é sendo amigo"
Ralph Waldo Emerson

"Eis que eu vos envio como ovelhas para o meio


de lobos;sede portanto prudentes como as serpentes
e símplices como as pombas"
Mateus 10.16

u já tinha visto acontecer com certa freqüência. Eu até imaginara


que um dia, mais cedo ou mais tarde, pudesse acontecer comigo.
Mas a verdade é que não estava preparado quando finalmente
aconteceu. Era cedo ainda, pela manhã, o sol brilhava forte e estava
quente, mas eu suava frio quando aquele africano simpático segurou
meus dedos e saímos de mãos dadas até a esquina para conversar.
Ele .segurava firme e eu não sabia onde enfiar a minha cara. Ele agia
com naturalidade. Para mim, todas as pessoas na rua estavam olhando
maliciosamente para nós. Meu senso de vergonha era tão grande que
nem me lembro do que foi que conversamos. Meu único desejo é que
acabasse logo para que ele soltasse minha mão.

o que aconteceu naquela manhã, longe de ser algo feio de que devia me
envergonhar, era algo bonito e deveria ter me sentido contente. É muito
natural ver homens de mãos dadas no interior da Guiné-Bissau. Trata-se
Antes do ide

de um sinal de amizade. Um amigo pega a mão do outro para significar


que tem algo a conversar. É uma maneira de reivindicar privacidade com
seu colega. Enquanto conversam ou andam de mãos dadas, a atenção é
só para sua conversa. O fato de aquele homem ter segurado minha mão
era um forte sinal de que me considerava seu amigo, o que era muito
bom, principalmente no contexto em que eu vivia. Mas, minhas próprias
convicções culturais me impediram de aproveitar esse momento. Foram
precisos mais uns dois anos até que me visse tomando a iniciativa de
fazer aquilo e segurar a mão de um amigo para conversar melhor. Hoje já
não vejo problema. Já construí essa ponte.

Na vida missionária o obreiro vai ser chamado a construir pontes de


relacionamentos todos os dias. É curioso porque a palavra diz que somos
embaixadores de Cristo, somos profetas no sentido de que anunciamos
a Palavra, mas somos também sacerdotes. A palavra sacerdote em latim
é pontifex, ou seja, construtor de pontes. É isso que o missionário dcve
ser. Em grande medida, esse é seu trabalho, e o seu sucesso ou fracasso
vai depender em grande parte de sua capacidade de estabelecer esses
relacionamentos. O que não quer dizer que seja fácil. As barreiras
culturais vão criar desentendimentos e momentos bastante delicados para
não dizer desagradáveis. Mas, se não aprender a vencê-los, o missionário
nunca passará do estágio de turista.

Se quisermos eficazmente transmitir o evangelho a um povo,


precisamos saber onde este povo está, pois "evangelização é o processo
de levar o evangelho onde eles estão e não onde gostaríamos que eles
estivessem", como escreveu Vincent Donovan'. Antes de pregar, é
preciso conhecer o povo. Saber o que crêem, porque crêem assim como
reagem às situações da vida e por que reagem assim. Não apenas ver
seus costumes e modos diferentes, mas entender o que esses costumes
revelam sobre sua cosmovisão. A maneira como vêem a vida e identificam
as prioridades está no fundo de sua forma de ser. Não vamos descobrir
isso nas primeiras semanas e nem nos primeiros meses, o que quer dizer
que inicialmente seremos como crianças no meio deste povo.

Você já viu uma criança pregando? Por que será que isso não
é comum? Porque a criança não tem maturidade para pregar. Suas
palavras não teriam valor nem profundidade e os adultos nem sequer
a ouviriam. Ora, os missionários recém-chegados a uma nova cultura
são como crianças. Não sabem ainda as coisas mais elementares, como
podem então pregar e esperar ter bons resultados? Provavelmente

132
Capítulo VIII - Construindo pontes

irão ofender mais do que evangelizar ou então poderão simplesmente


passar a idéia de frivolidade, o que é grave na maioria das culturas
do mundo. Quem fala de coisas que não conhece é um tolo e os tolos
não merecem atenção.

Precisamos saber disso para fugir da pressa de ver resultados. Nada


substitui o tempo de conhecimento de uma nova cultura. Não é brincadeira.
É trabalho duro. Vai exigir muito do missionário. Exige atenção e muito
discernimento. Ouvido e olhos sempre alertas. Exige humildade e respeito
pelo que vê, mesmo que pareça muito estranho. Exige contenção e
paciência, pois conclusões precipitadas e julgamentos rápidos podem pôr
em causa todo um trabalho prévio. Vai exigir a percepção de que o nosso
mundo e cultura não são obrigatoriamente os certos.

Pensemos então nas nossas relações com os nacionais na terra que


Deus nos deu como campo missionário. Pensaremos inicialmente nas
relações com os não-crentes.

1. Relações com descrentes

O objetivo do missionário é ganhar pessoas para Jesus, logo, vai ter


que se relacionar com descrentes. Sua primeira preocupação é ser um
aprendiz. Ele está aprendendo a língua, os conceitos da cultura, tudo
enfim. Até a forma de cumprimentar ou agradecer serão diferentes. Ser
humilde e fazer perguntas, são atitudes que agradam a todo mundo.
Todos parecem gostar de alguém que pergunta com verdadeiro interesse
sobre nossos costumes e cultura. Aproveite essa vantagem e aprenda o
máximo que puder. Confronte o que ouvir de uma pessoa com outra e vá
notando as diferenças e os princípios comuns. Note que há diferenças
quanto à classe social, raça, etnia e grau de educação. Vá tomando notas,
pois isso vai ajudar mais tarde. Aproveite temas como música, esporte,
família, trabalho e cultura. São bons tópicos de discussão e permitem
criar amizades.

O missionário é um servo. Esse é um princípio bastante repetido. Mas


devemos entender que há uma diferença entre ser servo e ser subserviente.
Algumas pessoas rapidamente entendem nossa disponibilidade para
ajudar e tentam tirar partido disso. Devemos procurar estar atentos e não
alimentar esse tipo de atitude. Ajudamos, servimos, apoiamos, mas não
somos escravos dos caprichos de ninguém.

133
Antes do ide

Outro problema relacionado e de difícil solução é a questão da ajuda


financeira. A maioria dos missionários vai para países pobres. Nesses
campos o obreiro é visto como uma pessoa rica. Não interessa se você vive
numa casa como a do povo e veste o mesmo tipo de roupa. Sempre o verão
como uma pessoa que tem dinheiro. E será normal que no meio da pobreza
surjam muitos pedidos de ajuda, sobretudo de ajuda financeira. A questão
é bastante complicada. Quando devemos dar? E quando devemos recusar?
Os missionários com quem conversei sobre isso reconhecem que não há
respostas fáceis para esta situação. Devemos avaliar cada caso e procurar agir
com justiça e sabedoria. Em certos casos é preciso orar por discernimento.
Haja de acordo com a orientação do Espírito Santo, mas saiba de duas
coisas, primeiro, você nunca vai poder resolver os problemas de todo mundo
e segundo, não espere gratidão pois raramente virá, até porque, em muitos
casos, consideram a ajuda uma obrigação do missionário.

Desde o princípio pode acontecer que o missionário se relacione


com algumas pessoas em termos de prestação de serviços. É o caso de
mulheres para limpar a casa ou lavar a roupa, ou ainda guarda noturno,
quando é preciso. Procure saber o que as leis trabalhistas dizem. Não
parta do princípio de que nos países pobres ninguém se preocupa com
isso. Existem leis e você como estrangeiro estará mais susceptível se
não as levar em conta. Verifique se há seguros ou previdência social a
ser paga. Ande dentro da lei. Faça desse modo com tudo o que precisar.
Sejam construções, abertura de projetos ou legalização da missão. Veja o
que é exigido pela lei e cumpra. Assine contratos, exija recibos, pague o
que a lei exigir. Fuja de atalhos.

Nós, brasileiros, temos a tendência de querer dar um jeitinho para tudo.


Atenção! Missionário é embaixador de Cristo. Não pode viver de jeitinhos.
Cláudio de Moura Castro escreveu na revista Veja que " ... glorificamos a
improvisação. Mas nos esquecemos de que só improvisa certo quemjá fez
benfeito muitas vezes. O jeitinho brasileiro é, na maior parte das vezes,
pura ignorância de que há uma forma certa e melhor de fazer"2. Agora,
se já é ruim viver de jeitinho no Brasil, imagine o missionário num país
estrangeiro. Deixemos de lado qualquer vestígio de preguiça e andemos de
acordo com a lei. Ignorância não é desculpa que a lei aceite. Se não sabe,
então deveria saber. Logo, procure, pergunte, informe-se e cumpra.

As relações com os membros do governo devem ser cordiais e


prudentes. Lembremos que em alguns dos países onde os missionários
vivem e trabalham é relativamente fácil ter acesso a membros do

134
Capítulo VIII - Construindo pontes

governo. Em meu tempo de África conheci pessoalmente vanos


ministros, secretários de estado e governadores. Isso é bom no sentido
de que pode facilitar muitas das atividades da missão. Mas, devemos
lembrar, também, que os governos em países do terceiro mundo nem
sempre são estáveis. Um ministro de hoje pode ser um homem procurado
pela lei amanhã. O governo deste mês pode ser derrubado no próximo
mês. Relações muito estreitas com elementos da classe política podem
ter um preço alto para o missionário. Portanto, discrição e prudência.

Praticamente o mesmo se pode dizer em relação a forças policiais e


militares. Deve haver respeito à autoridade e disponibilidade para atender
a solicitações sem, no entanto, estreitar demais os laços para os casos de
problemas políticos surgirem. Conhecer a polícia e militares pode, no
entanto, ser importante num momento de crise em que seja preciso, por
exemplo, sair do país. Muitos são os relatos de obreiros que escaparam
em situações de guerra e distúrbios violentos devido a uma boa relação
com forças policiais ou militares.

2. Comunicando a Palavra

Finalmente, o obreiro vai começar a pregar. Os princípios da boa


pregação dizem que devemos partir do conhecido para o desconhecido.
Iniciar onde o povo está. Partir de princípios que eles aceitam e que
são ponte para o evangelho. Don Richardson desenvolve a tese de que
"Melquisedeque é um símbolo ou tipo da revelação geral de Deus à
humanidade; Abraão, por sua vez, representa a revelação especial de Deus
á humanidade, baseada na sua aliança e registrada no cânon. A revelação
geral de Deus é superior à sua revelação especial de duas maneiras: ela é
mais antiga e influencia cem por cento da humanidade"3.

Richardson passa, então, em revista as religiões de vanas etnias


dos mais diversos lugares do mundo, mostrando como esses povos já
detinham conceitos em suas culturas que revelavam o Deus verdadeiro e
eram paralelos a verdades bíblicas, servindo de ponte para o anúncio do
evangelho. Provavelmente Richardson foi despertado para esse conceito
por meio de sua extraordinária experiência entre os sawi da Nova Guiné
onde, após muitas frustrações iniciais, descobriu um meio de anunciar
Jesus por meio de um costume do próprio povo. Mas ele não é o único
que pensa assim. Vincent Donovan, que evangelizou o dificil povo
masai da África Oriental, escreveu que "o evangelho deve ser levado às

135
Antes do ide

nações onde já reside a possibilidade de salvação (...) Deus habilita um


povo, qualquer povo, a alcançar a salvação através de sua cultura, seus
costumes e tradições tribais"4 .

Esta compreensão pode ser alannante e até paralisante. Afinal, não


podemos simplesmente pregar a mensagem "tão boa" que tínhamos pregado
lá no Rio de Janeiro ou em Salvador, mas temos que literalmente entender
que nem sequer sabemos como pregar. Precisamos chegar à humilhante
conclusão de que somos ignorantes quanto à transmissão do evangelho a
este povo. Enquanto não entrarmos em sua cultura e começannos a entender
seus costumes e em quais deles Deus já deixou sementes de fé e caminhos a
serem percorridos para a salvação, não devemos nos precipitar. A Palavra de
Deus diz que "há tempo de estar calado e tempo de falar" (Eclesiastes 3. 7b) e
os primeiros tempos de um missionário no campo são decididamente tempo
de estar calado, de ouvir, de aprender.

Eventualmente, porém, os convertidos vão aparecer. Quando os


convertidos surgirem devemos ter cuidado com o entusiasmo. É natural
ficarmos contentes e muitas vezes vamos, inclusive, ficar surpreendidos,
pois os resultados podem vir antes do que esperávamos. Atenção para
não confundir bons modos com conversão. O tipo de apelo evangelístico
que costumamos fazer em nossa cultura é desconhecido e inapropriado
em outras culturas. Esses povos reagem simplesmente com aquilo que
consideram boa educação e o missionário pensa que se converteram.
É o caso do pregador que fez uma visita ao Japão e viu multidões se
convertendo. Mudou-se para lá de tão entusiasmado só para descobrir
que as supostas conversões eram apenas a forma educada de agradecerem
sua presença. Já na África, um grande número de etnias tem o costume
de responder positivamente àquilo que entendem que o interlocutor quer
ouvir. Você os convida a aceitar a Jesus e eles respondem o que sabem que
você quer ouvir. Você vai para casa entusiasmado com as "conversões" e
eles vão procurar o feiticeiro para um novo amuleto.

Sendo, assim, é preciso dar tempo antes de anunciar as "conversões".


Verifique se passados alguns dias a pessoa ainda fala como inicialmente.
Procure por sinais de novo nascimento, mudança de vida. Veja se o
convertido tem testemunhado ou mostra vergonha de Jesus. Espere pelos
problemas que certamente surgirão, se houve conversão, e veja como é
que o novo convertido reage. Resista à tentação de escrever artigos e tirar
fotos para jornal de pessoas que ainda não tiveram tempo de confirmar
sua fé. Isso evitará bastante constrangimento. Infelizmente, hoje, como

136
Capítulo VIII - Construindo pontes

antigamente, ainda surgem muitos "crentes de arroz". Aqueles que se


convertem apenas por interesse financeiro.

Por outro lado, nem todas as conversões são inicialmente a Jesus.


Um líder africano que entrevistamos contou-nos sua interessante teoria
de que as pessoas passam em regra por duas conversões. Inicialmente
a pessoa se converte ao missionário. Ela ainda não conhece Jesus.
Não entende bem o que é evangelho. Mas conheceu e admirou o
missionário. Reconhece que ele é uma boa pessoa e quer se identificar
com ele. Sabe que para se aproximar mais terá que se "converter" então
diz as palavras certas e passa ao círculo mais íntimo do obreiro. Aqui
todo o cuidado é necessário. Esta pessoa está no caminho, mas ainda
não chegou. Para ela, Jesus e cristianismo são o que o missionário diz
e faz. Um testemunho coerente nesta fase, por parte do missionário,
poderá ganhar de vez essa pessoa.

Então, numa segunda fase, a pessoa entende quem é Jesus e como


os homens de Sicar disseram: "Já agora, não é pelo que disseste que
nós cremos; mas porque nós mesmos temos ouvido e sabemos que este
é verdadeiramente o Salvador do mundo" (João 4.42). Mas, para chegar
a esta segunda fase, é preciso que a pessoa não tenha sido afastada pelo
testemunho incoerente ou deficitário do missionário. A responsabilidade de
quem toma o nome de Jesus é grande. Oremos por capacitação do alto.

3. Relações com a liderança evangélica nacional

Nosso tempo de estudo no Seminário ou Instituto Bíblico nos preparou


para ser missionários atuantes e dominantes. A idéia que recebemos é, na
maioria das vezes, de que nós somos os conhecedores, os que têm a
tradição, o ensino e vamos aos campos para comandar, ensinar e dizer
como é que as coisas devem ser. Talvez durante séculos tenha sido assim.
O contexto colonial favorecia essa maneira de pensar até meados do
século XX, mas os tempos mudaram, e mudaram radicalmente.

Hoje, quando o missionário chega ao campo, com raríssimas


exceções, vai encontrar igrejas nacionais estabelecidas e liderança
nacional operante. Esses líderes foram muitas vezes treinados em escolas
na Europa, Estados Unidos ou mesmo no Brasil. Têm boa formação e
estão decididamente no comando. São eles que mandam e estabelecem
as regras. Para alguns missionários é um tanto chocante descobrir que,

137
Antes do ide

afinal, estão no campo e não podem fazer o que pensavam, mas têm que
estar sob a orientação e mesmo direção de líderes locais.

Mais uma vez essa pode ser uma experiência humilhante ou não. Na
verdade, é assim que as coisas devem ser. O trabalho tem que ser dirigido
é pelos nacionais. Isso revela que houve progresso nesse campo, estamos
numa fase mais avançada. Isso não quer dizer que o missionário não é
bem-vindo, apenas que já não é o líder ou o mestre e, sim, o cooperador.
Se houver esse entendimento tudo ficará mais fácil e as relações podcrão
se estabelecer de uma forma cordial e produtiva para os dois lados.

Um fator essencial nessa relação é o respeito pela liderança nacional.


Respeito e reconhecimento. Muitos desses líderes lutaram toda a vida
contra circunstâncias advcrsas, que nem podemos imaginar, para chegar
ondc estão. Merecem nossa admiração e a valorização de seus méritos.
Devemos aprender com eles, pois sua visão do que o povo é, e o que
o povo precisa pode ser de grande ajuda na definição de nossos alvos.
Estejamos atentos, pois podemos correr o risco de tcntar dar ao povo
o que não prccisam ou fazer o que não é necessário. Durante a guerra
na Guiné-Bissau uma organização européia mandou dinheiro e pcssoal
para fazer furos de água para os acampamentos de refugiados. Só que
gastaram tcmpo e pessoal à toa porque não havia campos de refugiados
no país. Os refugiados simplesmente hospedaram-se com parentes
e amigos nas aldeias do interior. Antes de fazer gastos deveriam tcr
pcrguntado às pessoas no local quais eram as necessidades.

Do outro lado dessa experiência houve um missionário que ao chegar


a um campo novo na África Ocidental tinha um formulário para os
pastores nacionais. Logo nos primeiros meses, ele saiu entrevistando
vários líderes locais colhendo ensinamentos e conselhos. Isso de partida
o tornou conhecido da liderança nacional, abriu portas para amizades,
mostrou humildade e vontade de aprender e lhe deu conceitos e idéias
que sozinho teria levado anos a adquirir. Eis uma boa sugestão, para os
casos em que isso seja possível.

A outra face da questão do respeito é aquele que nós esperamos


receber. Em muitos casos o missionário é alguém conhecido em sua
terra, respeitado, com créditos estabelecidos. Ele deixou muito para estar
no campo, fez sacrifícios, perdeu promoções, abdicou de salário melhor.
Espera que o povo local, sobretudo os crentes nacionais, o valorizem
por tal, o respeitem. Acontece que a posição do missionário em seu país

138
Capítulo VIII - Construindo pontes

não se transfere para o campo instantaneamente. As pessoas no campo


missionário não sabem quem ele era em seu país, e não estão interessadas
em descobrir. Para ter o mesmo respeito e consideração que desfrutava
antes, o missionário vai precisar lutar por isso. Vai ter que merecer tudo
de novo. Isso leva tempo. Não dá para apressar o processo; vai exigir
muita convivência, vitória sobre adversidades, humildade e sofrimento
conjunto. Eventualmente, se o missionário persistir e mostrar seu valor,
ele vai ser reconhecido e respeitado. Mas não espere isso no começo.

Em meu primeiro dia na Guiné-Bissau tive uma experiência terrível.


Fizera um pré-acordo de aluguel de uma casa em Bissau com um crente
local que não conhecia. Tudo fora tratado por telefone. Quando no local,
porém, percebi dois fatos constrangedores. Primeiro, que a casa era cara
demais e poderia conseguir melhor e mais barato. Segundo, que o crente
em causa, o dono da casa, era um dos líderes evangélicos nacionais mais
respeitados no país. Foi com grande relutância que fui lhe dizer que não ia
ficar com sua casa. Ele, compreensivelmente, ficou muito zangado. Para
ele eu falhara com minha palavra e sendo assim não tinha condições de ser
missionário. Em sua ira ele disse que eu não seria nada em seu país.

Foi um momento critico. Eu treinara toda a minha vida para ser


missionário na África. Vivera esse sonho desde os seis anos de idade. Lutara
para estudar medicina e teologia ao mesmo tempo. Formara-me e trabalhara
muito. Abdicara de um salário seis vezes maior do que o de missionário.
Fizera pós-graduação em Medicina Tropical para melhor servir no campo.
Eu era um médico missionário altamente preparado segundo meu próprio
conceito. Mas para aquele prezado irmão eu era apenas umjovem assustado
que falhara com sua palavra e que dizia que queria ser missionário.

o interessante disso tudo é que, passados meses, foi exatamente esse irmão
a primeira pessoa que me convidou para pregar na Guiné. Desenvolvemos
uma boa amizade e ele chegou a me prestar homenagem com suas palavras
de apreço pelo trabalho que estávamos realizando em Bafatá, terra que ele
conhecia bem, pois ali trabalhara em sua juventude. Moral da experiência
- ganhar respeito leva tempo. Saiba disso, lute por isso.

4. Relacionamento com os convertidos

Como devemos nos relacionar com os crentes nacionais, em especial os


que vão estar diretamente ligados a nós? Como lidar com aqueles que se

139
Antes do ide

converterem em nosso ministério e outros que se juntarão a nosso trabalho?


Christian Schwarz apresentou os resultados de uma pesquisa que durou dez
anos e abrangeu mais de mil igrejas em trinta e dois países do mundo. Por
essa pesquisa, concluiu que os líderes das igrejas que crescem são os mais
orientados para relacionamentos, os mais preocupados com as pessoas, mais
direcionados para o trabalho em parceria; aqueles que concentram esforços
em capacitar outras pessoas para o ministérios.

4.1 - Capacite os crentes - Eis aí um princIpIO a adotar - A


capacitação de pessoas. Como escreve o rabino judeu David Baron,
especialista em gerência: "Liderança não significa tanto o exercício do
poder em si, quanto a capacitação de outras pessoas"6.

Permita-me colocar essa questão na perspectiva do sucesso. O


treinamento de pessoas não é uma opção na obra missionária. Se você
quer que seu trabalho tenha futuro, então tem que treinar. Eles serão
o futuro do seu trabalho. Harvey Firestone disse que "apenas quando
desenvolvemos outras pessoas é que somos permanentemente bem-
sucedidos"7. Ou seja, aquilo que você faz é apenas temporário, aquilo
que você dá permanece, mas aqueles que você capacita podem torná-
lo imortal. Dê uma olhada nas pessoas que o rodeiam. Estão sendo
desenvolvidas por você? John Maxwell é um dos maiores mestres
mundiais na área de sucesso, ele diz que "aprendi uma lição muito
importante com o passar dos anos; as pessoas que estão mais próximas
de mim determinam meu nível de sucesso e fracasso. Quanto melhores
eles forem, melhor eu serei (...) minha intenção em desenvolver líderes
tinha sido a de ajudá-los a melhorarem a si mesmos, mas descobri que eu
mesmo estava me beneficiando disso"8.

Então treine, desenvolva, capacite desde o InJCIO. Era o que Jesus


fazia. Desde o princípio ele tinha 12 discípulos e não 12 convertidos.
Esse é um processo que começa com o discipulado do novo convertido
e vai prosseguir até quando você puder dar. Nunca podemos esquecer,
porém, que "o exemplo é sempre mais eficaz que o preceito", como disse
Samuel Johnson 9 • Nossa função não é só passar conceitos ou habilidades,
mas transmitir a visão, a alma da missão. "O professor medíocre conta;
o bom professor explica; o grande professor demonstra; o professor
excepcional inspira", disse Willian Arthur Ward 10 •

Inspire com sua vida, com suas orações, com seu apoio e amor. Dê
espaço para a criatividade. Não queremos robôs que fazem só o que

140
Capítulo VIII - Construindo pontes

mandamos e dizemos e, sim, obreiros cheios do Espírito Santo que


amam a obra e a desenvolvem com paixão. George Patton sugeriu:
"Nunca conte às pessoas como fazer algo. Diga-lhes o que fazer
- a engenhosidade delas o surpreenderá"ll . Ou como já ouvi também,
coloque-os no caminho certo e saia da frente.

4.2 - Selecione com cuidado os autóctones - Este tema de treinamento


está intimamente ligado ao dos missionários autóctones. O princípio de
que o nacional pode fazer mais do que o missionário é verdadeiro e
bastante útil ao crescimento da obra. O autóctone já eonhece a língua local
e a domina de um modo que o missionário nunca fará. Conhece a cultura
por dentro. Ele não é visto como alguém de fora, um intruso, mas é um do
povo. Seu testemunho pessoal será provavelmente uma arma evangelística
mais poderosa que muitos sermões. No entanto, o princípio dos autóctones
tem também seus problemas e não são poucas as desilusões. Creio que
acima de tudo está o conselho que o apóstolo Paulo já dava há dois
milênios "a ninguém imponhas precipitadamente as mãos" (I Timóteo
5.22a). Tem havido precipitação da parte de missionários e missões em
consagrar autóctones e nem sempre pelas melhores razões. O mesmo rigor
que deve haver na seleção de missionários para ir aos campos deveria
estar presente na escolha e indicação de autóctones. Recordemos que as
culturas são diferentes e nem sempre podemos saber o que está por trás da
disponibilidade de alguém para ser obreiro local.

Um dos casos mais conhecidos e dramáticos desta questão é o de


Karl Gutzlaff. Desse missionário alemão do início do século XIX foi
dito por Stephen Neil que podia ser "diversamente julgado como um
santo, um excêntrico, um visionário, um verdadeiro pioneiro ou um
fanático iludido"'2. A grande idéia de Gutzlaff era exatamente o uso de
autóctones para alcançar o interior da China. Ele chegou a ter mais de
trezentos obreiros chineses que traziam seus relatórios de evangelização
das 18 províncias do interior. Gutzlaff era um missionário energético e
dedicado. Dominava bem a difícil língua e vestia-se como chinês, décadas
antes de Hudson Taylor estabelecer isso como regra para a Missão do
Interior da China. O sucesso do trabalho de Gutzlaff parecia ser total e sem
precedentes. No entanto, tudo ruiu quando se descobriu que quase todos os
seus autóctones eram criminosos viciados em ópio e que não tinham ido
muito além de Hong Kong sendo seus relatórios puro embuste. O pior de
tudo é que ficou a impressão de que o próprio Gutzlaffteria uma idéia do
que estava acontecendo mas ignorou os sinais e seguiu em frente.

141
Antes do ide

Infelizmente histórias dessas aparecem e com bastante freqüência. Isso


não invalida o princípio do trabalho autóctone. Deve, no entanto, nos despertar
no sentido de uma cuidadosa seleção de obreiros e um sistema de prestações
de contas que permita maior fidelidade. O apóstolo Paulo enfatizava nessa
seleção os princípios morais e a vida de testemunho acima da formação
(I Timóteo 3.1-7). Não é que Paulo desconhecesse ou desvalorizasse a
formação, pois ele mesmo era fariseu treinado e ex-discípulo de Gamaliel.
Mas para a igreja cristã o apóstolo reconhecia a integridade como mais
valiosa que a formação. Assim devemos nós também fazer.

O que deve ser então pedido dos autóctones? Ou, colocando a questão
de outro modo, o que devemos ter o cuidado de passar adiante no
desenvolvimento dos obreiros nacionais? Devemos priorizar o essencial
e o bíblico. Devemos ter o cuidado de não exportar nossa própria forma
de fazer as coisas. O modo de fazer as coisas na igreja brasileira não é
necessariamente o certo para o campo onde estamos. Vincent Donovan
lembra que "construímos uma poderosa instituição a partir de umas
poucas referências"13. E é verdade que criamos organizações, diretorias,
comissões e muitas vezes não sabemos viver e funcionar sem elas. Nossa
tendência natural é levar para o campo o nosso modo de fazer as coisas.
Isso vai desvirtuar o trabalho e exigir o que é desnecessário para as
igrejas e para os nacionais.

Por exemplo, gostamos de construir templos como os de nossa terra,


levar a liturgia de nossas igrejas e orientar a liderança para que seja como
a que conhecemos. Mas nossas construções podem assustar mais do que
agradar. Também podem estar totalmente fora do contexto; nossa liturgia
pode perfeitamente inviabilizar o louvor e nossa forma de liderança
ser contrária à cultura. Se o povo só conhece uma liderança partilhada
pelos anciãos da aldeia, introduzir uma liderança onde um pastor manda
sozinho vai trazer problemas quer queiramos ou não.

Igualmente não se deve pedir de um obreiro autóctone que seja


um mestre em gerência ou administração, um teólogo ou professor de
Seminário. O que ele tem que saber fazer é comunicar o evangelho
fielmente a seu povo de modo a levá-los a Cristo, ensinar e aconselhar os
convertidos para o crescimento espiritual, abençoar e edificar a igreja e
treinar outros nessas tarefas. E isso já é muito.

Lembremos novamente que isso tudo deve ser feito dentro da


cultura local. É impressionante verificar que esse conceito de evangelho

142
Capítulo VIII - Construindo pontes

supracultural é tão antigo quanto a igreja de Jesus. Na epístola de Diogneto


dos primórdios da igreja lemos que: "(...) não é um país o que caracteriza
os cristãos, nem seu idioma, nem seus costumes (...) habitam cidades tanto
gregas como bárbaras, cada um tal como lhe coube em sorte, seguindo os
costumes da região em relação a vestuário e alimentação e no geral em
coisas externas. Mesmo assim manifestam esplêndida e abertamente o
caráter paradoxal de sua própria condição (...) toda terra estrangeira é sua
terra nativa, e toda terra nativa é para eles uma terra estrangeira"14.

Somos então ensinados que em cada cultura há aspectos bons, maus


e neutros. Os bons se relacionam com princípios bíblicos. Os maus são
anticristãos. Os neutros são indiferentes. Citando exemplos: quase todas
as culturas orientais têm um respeito pelos idosos que há muito se perdeu
no ocidente. Isso é bom, é bíblico. Deve então ser valorizado e enfatizado
nas igrejas. Por outro lado, a feitiçaria é parte importante da vida diária na
África e Ásia. A feitiçaria é anticristã e como tal tem que ser combatida
como mal que é. A forma de vestir por sua vez, é neutra. Nem está a favor
nem contra a Bíblia. Logo, deve haver liberdade nos trajes.

4.3 - Esteja atento à cristianização dos costumes - O respeito


à cultura nas relações do missionário com os crentes nacionais passa
também pela cristianização de costumes que permitam essa adaptação.
Há aspectos práticos que precisam apenas de pequenos ajustes para
servir à igreja e que por serem nativos terão grande valor no contexto
local. Como referia o relatório de Willowbank da Comissão de Lausanne
para evangelização: "Velhos costumes podem revestir-se de um novo
simbolismo, velhas danças podem celebrar novas bênçãos e velhas
técnicas ou processos servir a novos propósitos"15.

As culturas muçulmanas têm, por exemplo, a festa de Id al-Kabir (a


Grande Festa) que comemora o sacrificio de um carneiro por Abraão
no dia em que Deus poupou seu filho. É uma festa islâmica, mas o
evento é bíblico e o carneiro aponta para Jesus e seu sacrificio por nós.
Trata-se de uma grande celebração que todo muçulmano aguarda com
expectativa. Privar os crentes que vêm do islamismo desta festa é tirar
deles uma celebração importante e deixá-los ainda mais no ostracismo,
pois todos ao redor estarão comemorando. Pensando nisso, nossa igreja
decidiu fazer esta festa. Temos o cuidado de orar agradecendo por Jesus
e reconhecendo que o carneiro sacrificado nesse dia nada significa para
nossa salvação. No fim da festa temos um culto em que recordamos o
acontecimento bíblico celebrado nesse dia e seu significado em relação a

143
Antes do ide

Jesus e nossa salvação. Tem sido ocasião extraordinária de testemunhar


para nossos amigos muçulmanos.

Cada missionário terá que descobrir na sua cultura e contexto que


costumes podem ser "cristianizados". A festa que acabei de descrever
pode muito bem ser eristianizável na cultura em que eu vivo e não
cristianizável em outro contexto muçulmano. Creio que aqui ninguém
deve ser dogmático. Cada caso é um caso e deve ser estudado com
oração, humildade e busca de discernimento.

Deve haver o cuidado de não tirar algum costume sem providenciar


um substituto. Por exemplo, as culturas africanas quase todas têm a
circuncisão como algo especial. Em alguns casos os meninos e jovens
passam meses no mato antes de serem circuncidados. É um tempo de
mudança, de entrada na vida adulta. Trata-se de uma das fases mais
importantes da vida em muitas etnias. Há, no entanto, muito ocultismo
envolvido nessas cerimônias e verdadeiras invocações demoníacas. Isso
tem levado muitos missionários a combater esse costume. O problema é
que tirando essa tradição, os jovens ficam sem o tempo de treinamento
para a vida adulta onde aprendiam muito sobre as relações na sociedade, a
caça, a pesca, o trabalho agrícola e muitas outras coisas importantes para
quem vai passar a ser considerado um adulto. Simplesmente combater as
cerimônias e não providenciar um substituto vai criar um vácuo perigoso
que pode vir a se voltar contra a igreja e prejudicar o testemunho nessa
cultura. Os jovens que não passarem pela circuncisão serão rejeitados
pela comunidade, nunca atingirão o estado de adultos e ninguém lhes
dará a filha para casarem. Como fazer então? Há que buscar entre os
próprios crentes nacionais maduros em Cristo uma solução. Eles serão
os mais indicados para sugerir as alternativas viáveis.

4.4 - Atenção ao risco do sincretismo - Ainda nesse assunto, e


como não podia deixar de ser, há um perigo que surge nessa busca
de eontextualização nas relações com os crentes nacionais. O risco
se chama sincretismo. O dicionário define sincretismo como "mistura
mais ou menos confusa de doutrinas diferentes recebidas sem espírito
crítico e, por conseguinte, que não constitui um sistema coerente"16. Há
hoje milhares de grupos com nome de cristão e que têm apenas meros
vestígios de evangelho num mar de práticas nativas simplesmente
adotadas ao sabor do gosto de um ou outro líder. Desde pequenas seitas
sem expressão até movimentos nacionais tem surgido nessa mistura em
que a cultura vale mais que a Bíblia.

144
Capítulo VIII - Construindo pontes

Os missionários são chamados à clareza e fidelidade nesse aspecto.


Devemos respeitar a cultura e buscar a contextualização, mas nunca em
detrimento da Bíblia. Um cristão é antes de tudo mais um seguidor de
Jesus e o que a Bíblia diz tem que valer mais do que os costumes locais
por mais importantes que sejam. Se houver confronto entre cultura e
Bíblia, o crente fica com a Palavra de Deus. É dever do missionário, com
discernimento e espírito humilde, deixar claros os princípios a serem
seguidos e não abrir mão do que é biblicamente essencial.

Concluindo

Nossas relações com o povo a alcançar devem ser baseadas na atitude


do aprendiz e do servo. Devemos dar tempo para realmente conhecer
a cultura e a cosmovisão deste povo. Pautar as relações profissionais
pelas leis do país e ter cuidado nas relações com autoridades e militares,
respeitando, mas mantendo certa distância. Devemos buscar uma
pregação contextualizada e dar tempo aos novos convertidos para
confirmarem suas decisões. Treinar os crentes sob nossa orientação,
capacitando-os para o trabalho de acordo com seus dons. Não
precipitarmos na imposição de mãos ou atribuição de responsabilidades.
Respeitar e aprender com a liderança nacional. Reconhecer e valorizar os
aspectos bons da cultura; combater com discernimento os aspectos maus;
cristianizar os aspectos neutros passíveis de serem usados como pontes
para a cultura local.

Abdulah é um homem da etnia mandinga que se converteu do islamismo


a Jesus num país da África Ocidental. Durante anos ele procurou se integrar
à igreja evangélica mais próxima. Era uma igreja onde predominava uma
etnia vinda do animismo para Cristo. Essa etnia tem uma bela forma de
adorar própria de sua cultura, com tambores e danças que tornam o culto
uma experiência eletrizante, mas, para alguém que viera de um contexto
muçulmano, era tudo muito diferente. Abdulah sentia dificuldade em
apreciar aquele tipo de adoração. Quando tentava trazer amigos muçulmanos
aos cultos, era ainda pior porque esses se escandalizavam com a forma das
pessoas dançarem num lugar que era chamado de igreja. Assim ele deixou
de levar visitantes e foi tentando se acostumar.

Um dia ele descobriu uma outra igreja cristã. O templo era redondo
conforme os membros tinham decidido construir, dando ao local um ar
bem africano. O teto era de palha, como a maioria das casas. Na entrada

145
Antes do ide

ele teve que tirar os sapatos, o que indicava a qualquer muçulmano que
aquele era um local de culto. Na adoração os cânticos eram em tons
menores mais parecidos com a música de sua etnia e não se usavam
tambores, apenas violão ou teclado ocasionalmente. O tempo de cânticos
era limitado, pois a ênfase era dada na pregação da Palavra e oração. Ele
saiu dali muito contente. Encontrara um lugar onde podia se sentir bem
na adoração e onde poderia levar seus amigos muçulmanos que estava
evangelizando. Hoje ele é membro dessa igreja.

Não pretendo dizer que essa igreja seja um exemplo perfeito de


contextualização. Estão certamente aprendendo. Mas a verdade que deve
ressaltar da experiência de Abdulah é que pequenos detalhes, pequenos
cuidados, podem fazer muita diferença no alcance de uma pessoa para
Jesus dentro de sua cultura. Sejamos humildes e pacientes. Oremos por
discernimento, sabedoria e aprendamos a alcançar os povos onde eles
estão e trazê-los para onde Jesus os quer.

146
Capítulo IX
Resistir ou atacar?
"Portanto, tomai toda a armadura de Deus para
que possais resistir no dia mal e depois de terdes
vencido tudo, permanecer inabaláveis"
Efésios 6.13

"Não há território neutro no universo; cada milímetro, cada


milionésimo de segundo é disputado por Deus e por Satanás"
C.S. Lewis

le estava bem preparado. Pelo menos era o que pensava. Tivera


boa formação acadêmica numa escola famosa, tivera treinamento
extenso e proveitoso e seu ardor missionário era enorme e
contagiante. Chegou à aldeia na África Tropical com a família pronto
para ministrar a um povo não-alcançado. Estava certo de que aquele era
o campo que Deus lhe dera e sentia-se cheio de esperança e de vontade.
Podia visionar o dia em que a maioria das pessoas daquele lugar estaria
louvando Deus em ritmos alegres. Tremia de antecipação e expectativa.
Certamente veriam grandes coisas.

o trabalho diário era árduo. O simples viver na aldeia era tarefa dura.
Pegar água no poço, arranjar o que comer, suportar o calor, a sujeira, os
mosquitos, ver os doentes, enterrar os mortos, dar aulas às crianças em
casa. Mas havia alegria e boa vontade e, inclusive, bastante bom humor.
Antes do ide

Já iam aprendendo a língua aos poucos e fazendo amigos. Na verdade


nada fazia prever os dias de pesadelo que estavam para chegar.

Depois de alguns meses na aldeia o missionário já se sentia seguro


para compartilhar o evangelho. Mas por mais que se esforçasse não havia
resultados. Ele sabia que a mensagem era clara. Estava contextualizada e
simples. O povo ouvia educadamente, fazia perguntas e parecia, inclusive,
bastante interessado mas, na hora de tomar uma decisão, deixava sempre
para depois. E os dias viraram semanas e os meses trouxeram profunda
frustração. O obreiro podia ver o poder do feiticeiro sobre o povo. Todos
usavam amuletos no pescoço, na cintura, nos pulsos. O homem de Deus
sentia-se impotente e então resolveu tomar uma providência. A solução
do problema da aldeia, pensava ele, estava em desafiar o feiticeiro e o
poder das trevas.

De forma ousada e direta o missionário enfrentou o sacerdote local.


Este, com ar insolente, o avisou de que aquela aldeia era centro das
atividades dos espíritos regionais e que estes eram poderosos e não
permitiriam uma nova religião por ali. O obreiro desprezou os espíritos
publicamente e desafiou-os a fazer-lhe mal. O feiticeiro riu e aceitou o
desafio. A sorte estava lançada.

As semanas seguintes foram de autêntica tortura. A família


missionária sofreu vários problemas de saúde e angústia constante. Seu
poço secou e o povo afastava-se deles com medo do que os espíritos
poderiam fazer. De noite não conseguiam dormir, de dia não tinham
ânimo para trabalhar. O missionário tentava reagir desesperadamente,
mas após várias semanas já não tinha forças e entrou em tal confusão
mental que teve que ser retirado da aldeia e mesmo na capital do país não
se recuperou facilmente. Aquela batalha fora perdida.

Esta história não é de ninguém em particular e de muitos em seus


pormenores. As verdades deste relato estão na experiência de inúmeros
missionários. Os livros, porém, não gostam de falar destas coisas.
Não é agradável ou edificante ficar contando de derrotas ou sequer
reconhecendo que elas podem acontecer. Somos de Jesus, Ele é Senhor,
logo a vitória é nossa. Certo? Em tese, sim; biblicamente, sim; mas
na prática muitas vezes não se materializa. Por isso Thomas B. White
escreve que "missionários demais têm sido enviados para situações
destas sem treinamento nas artes da guerra espiritual para retornar do
campo abatidos e derrotados"l .

148
Capítulo IX - Resistir ou atacar?

Imagine ir para um país em que a febre amarela é predominante e


não estar vacinado. Ou então saber que há um leão rondando a casa e
sair sem estar armado. Ou ainda deixar a residência num dia de temporal
sem sequer levar um guarda-chuva. Em todos esses casos diríamos que
houve imprudência ou mesmo loucura. Imagine agora ir para o campo
missionário, bem no meio de território desconhecido em posse do
inimigo e não estar bem preparado para a batalha? Será derrota certa!

Muito se tem falado sobre guerra espiritual nos últimos anos. Tornou-
se verdadeira moda no meio evangélico. Os livros sobre o assunto
enchem as prateleiras de nossas livrarias e cada um parece ter as respostas
certas para a questão da batalha espiritual. Acontece que na maioria
desses livros não se fala sobre derrotas ou lutas perdidas. Parece que
todos os aconselhados são sempre libertos, todos os casamentos acabam
sendo salvos, todos os doentes são curados milagrosamente e todos os
problemas são resolvidos. O leitor fica então com um gosto amargo na
boca porque seu "currículo" não é tão bom assim. Será que o de alguém
chega a ser? Na vida real sabemos que nem todos os doentes são curados,
nem todos os casamentos são salvos e nem todos os endemoninhados
querem ser libertos.

Não podemos ignorar a batalha espiritual, mas também não devemos


banalizá-la e fazer parecer que basta algumas palavras "mágicas" bem
aplicadas ou fórmulas infalíveis e seremos vitoriosos. No dia-a-dia "não
é a atividade de alguns endemoninhados furiosos que causa a ineficiência
da igreja, mas as mentiras de Satanás e sua intrusão enganadora na vida
dos crentes normais"2, como lembra Neil Anderson. Precisamos colocar
os pés no chão e saber que esta luta é real e terrível e não se ganha com
facilidade. Mais uma vez, não existem atalhos para a vitória. Não há
fórmulas que resultem sempre. O caminho da vitória é estreito, exige
persistência e devoção. Notemos alguns de seus detalhes.

1. Batalha pessoal

1.1 - Libertação Pessoal - Temos que começar pelo princlplO e


esse é a libertação do próprio missionário. Esse conceito pode parecer
estranho, mas é prático e essencial. Vivemos em um mundo mal. Muitos
daqueles que hoje sentem o chamado para o campo vieram do mundo.
Estiveram envolvidos no catolicismo, espiritismo, religiões orientais,
Nova Era, drogas, rock pesado ou mesmo seitas claramente satânicas.

149
Antes do ide

Infelizmente nem sempre há uma preocupação de verificar se houve


uma libertação total. Muitos continuam carregando as conseqüências de
pactos, cerimônias e atividades malignas do passado. Podem não sentir
uma interferência maior enquanto levam uma vida "normal" mas, a partir
do momento em que se dispõe a servir ao Senhor, poderão sofrer os
ataques do inimigo de forma redobrada.

Gilberto Pickering, doutor em lingüística e missionário aos índios


apurinãs, afirma por isso mesmo que "das pessoas que Deus chama
para missões transculturais Satanás derruba a maioria por aqui: nunca
chegam ao campo. Dos poucos, relativamente, que alcançam o campo
missionário, a metade é tirada do páreo dentro de quatro anos e voltam
derrotados a seus países de origem e nunca mais"3 .

Sejamos francos. O fato de um jovem se apresentar para a obra de


missões não garante uma libertação imediata. Será fundamental que
ele trate de sua situação espiritual antes de seguir para o campo. Para
isso deve procurar ajuda especializada de quem conhece bem a área de
libertação. Trata-se de um processo e pode demorar, mas deve ser feito.
Creio que deveria ser mesmo uma preocupação das agências enviadoras.
Existem bons formulários espirituais que podem ajudar nesse processo.
Podemos encontrá-los, por exemplo, no livro "Quebrando Correntes"
de Neil Anderson 4 ou na obra "Saindo do Cativeiro" do Pastor Alcione
Emerich 5• Este passo não pode ser deixado de lado, pois é a base de toda
a vitória do cristão.

1.2 - Vida devocional- Repetimos aqui este ponto por causa de sua
importância. Uma vida de comunhão íntima com Deus é fundamental
para a vitória. A vida e o trabalho no campo missionário podem ser
tão absorventes que não sobra tempo para a vida devocional. E aí
reside o problema. Não "sobrar" tempo. Porque devoção não pode
ser sobra, tem que ser essência. A tendência de achar que "estamos na
obra", e isso basta, leva-nos para longe de Deus e então somos presas
fáceis do inimigo. Nunca será demais repetir que manter uma vida
de comunhão será fundamental para a vida e sucesso missionário.
Aqui poderíamos relembrar o que já foi dito no capítulo 4 sobre
leitura bíblica, oração, jejum, adoração e contrição. Cada um desses
pontos são armas que Deus colocou à nossa disposição. Esta batalha
é a mais dura que existe. Não podemos nos dar ao luxo de desprezar
nenhuma das armas que recebemos. Temos que conhecê-las e usá-las
ao máximo de seu potencial.

150
Capítulo IX - Resistir ou atacar?

1.3 - Intercessão- Esta é outra arma básica. Já referimos à importância


da intercessão para a vida do missionário. Reafirmamos aqui seu valor
na batalha espiritual. Ter pessoas sérias e comprometidas que orem por
nós será muito importante nessa batalha contra o inimigo. Muitas vezes
nem chegaremos, a saber, que a vitória veio por intermédio da oração de
outros e não necessariamente por algo que fizemos ou dissemos.

Nas nossas primeiras noites em Bafatá fomos "agraciados" com a


visita do Kankuran. O Kankuran é uma figura mítica da vida do povo
fula e está ligada à cerimônia de circuncisão. Trata-se de um feiticeiro
que se veste totalmente de palha e sai de madrugada com duas espadas
para assustar e de certo modo demarcar seu território. Acontece que
exatamente naquelas primeiras noites em Bafatá trovejou fortemente. Em
plena madrugada éramos acordados no meio da mais completa escuridão
(a cidade não tem eletricidade) ouvindo o rugido da tempestade e os
gritos alucinados do Kankuran que batia furiosamente as suas espadas
uma de encontro à outra provocando um som assustador.

Nós desconhecíamos essa tradição e não sabíamos o que era aquilo.


Apenas percebíamos que era medonho e sentíamos a opressão descendo
sobre nós como manto negro e sufocante. Naqueles dias tanto Analita,
nossa colega, quanto eu, chegamos a ter a visão de um ser espiritual
que qual polvo negro descia sobre nós e queria nos sufocar. Era a forma
do diabo nos dar "boas-vindas" e estava tendo o efeito desejado. Até
que uma noite resistimos em oração de uma maneira mais contundente
e finalmente conseguimos descanso. Julgamos que fossem as nossas
orações apenas que tinham tido resultado mas, mais tarde, encontramos
uma colega que morava em outro lado do país e que fora despertada
seguidas vezes de madrugada com orientação de orar por nós. Sua
intercessão fora fundamental na vitória sobre as trevas.

Por isso não temos medo de repetir que todo missionário deve procurar
angariar um apoio em intercessão antes de seguir para o campo e manter
esse grupo bem informado para serem mais efetivos. A intercessão pode
fazer muita diferença.

1.4 - Posição em Cristo - Há uma idéia mais ou menos difundida de


que para se ter vitória na batalha espiritual é preciso ser um gigante na
fé. Se isso fosse verdade temo que poucos poderiam ter qualquer vitória.
Na verdade se a vitória dependesse de nós esta guerra já estaria perdida.
Mas graças a Deus a vitória nem sequer está em questão, pois já foi

151
Antes do ide

conquistada por Jesus na cruz. Temos, porém, que entender quem somos
em Cristo para melhor podermos lidar com as mentiras do inimigo.
Sua estratégia vai passar por tentar nos incutir medo e dúvida sobre
nossa chamada e estado espiritual. Se ele puder nos fazer duvidar de
nossa posição estaremos em situação complicada, porque, como lembra
Neil Anderson, "todos nós vivemos de acordo com a concepção que
formulamos de nossa própria identidade. Na verdade ninguém consegue
comportar-se coerentemente de um modo que seja incoerente com a
imagem que faz de si próprio"6.

É verdade que "Deus confiou sua reputação a pessoas comuns"7 como


o coloca em sua forma habitualmente desconcertante Philip Yancey, mas
essas "pessoas comuns" foram tornadas especiais também pelo sangue
de Jesus. Devemos tomar tempo para entender nossa identidade em
Jesus a fim de reagirmos coerentemente com aquilo que a Palavra diz de
nós. Lembremos que vitória espiritual não é uma questão de força, mas
de autoridade. Um motorista num caminhão tem muito mais força que
um homem comum mas, se esse homem estiver usando um uniforme da
polícia (sinal de autoridade), o motorista do caminhão terá que obedecer
ao seu comando. O motorista do caminhão continuará sendo mais forte,
mas tem que se sujeitar à autoridade quer queira ou não. Se, porém, o
policial tiver dúvidas de sua autoridade e resolver olhar para a força do
veículo, então certamente vai recuar e deixar aquele passar.

Satanás é mais forte que nós. Nunca o venceremos na base da força,


da ira, da raiva ou da sabedoria e esperteza. A vitória vem por sermos
de Jesus. É a autoridade de Cristo que nos foi delegada que faz o diabo
recuar. Não depende de sermos bonitos ou feios, diplomados ou incultos,
experientes ou recém-chegados, depende, sim, da Palavra de Deus
infalível e da vitória de Jesus que foi completa. Depende de estarmos
vivendo na dependência do Espírito Santo. Satanás sabe isso. Tudo fará
para que não entendamos essa verdade ou deixemos de vivê-Ia, aí reside
sua única possibilidade de vitória. Oremos, então, para entender bem
nossa posição em Cristo e vivermos vitoriosamente.

1.5. Nome e sangue de Jesus - Já falamos sobre o fato de a vitória


ser de Jesus e passar a ser nossa por delegação. Temos a verdade bíblica
de que o nome de Jesus está sobre todo nome (Filipenses 2.9,10) e que
a vitória vem pelo poder do sangue de Jesus (Apocalipse 12. I I). Essas
verdades são irrevogáveis mas, infelizmente, têm sido usadas como
uma espécie de fórmula mágica. Alguns parecem pensar que o fato de

152
Capítulo IX - Resístir ou atacar?

afirmarem algo "no nome de Jesus" faz com que Deus tenha a obrigação
de agir de acordo com o falado. Esse engano é antigo. Já os filhos de
Ceva caíram nele com conseqüências desastrosas (Atos 19.13-17).
Outros têm cometido erro semelhante em nossos dias julgando parecer
espirituais, mas negando na prática a sua espiritualidade e trazendo,
inclusive, vergonha ao evangelho.

Lembremo-nos por um instante da autoridade do guarda de trânsito.


Não é qualquer um que pode simplesmente vestir a farda e sair por aí
apitando. Há requisitos para que esse alguém receba essa autoridade e
a use com legitimidade. Não se pode viver de qualquer maneira e então
na hora do aperto gritar o nome de Jesus e pensar que tudo ficará bem. A
vida do crente será testemunho de sua legitimidade em usar o nome do
Senhor.

Devemos usar o nome de Deus com temor e tremor. Uma vida


devocional genuína é meio caminho para sabermos quando é apropriado
usar esse nome santo. Usar a autoridade que nos foi dada é algo que se
faz com total dependência de Deus. Todos desprezamos um guarda ou
outra autoridade que usa sua posição de forma desonesta apenas para
ganhar vantagens. Quanto mais desprezível e digno de julgamento serão
aqueles que pensarem poder usar a autoridade do nome e do sangue de
Jesus sem discernimento. "Muitos naquele dia hão de dizer-me: Senhor,
Senhor... em teu nome não expelimos demônios?.. então lhes direi
explicitamente: nunca vos conheci! Apartai-vos de mim os que praticais
a iniqüidade" (Mateus 7.22,23). Sejamos pois cuidadosos no emprego
da autoridade que nos foi concedida. Nosso Deus não é Baal. Ele não
se agrada de fórmulas infalíveis e passes de magia. Ele se agrada de
corações contritos e submissos.

1.6 - Ataques pessoais do inimigo - Antes de podermos lutar e


vencer o inimigo ministerialmente teremos, pois, que aprender a ter
vitórias pessoais. Um crente em pecado pode ser envergonhado pelo
inimigo de forma terrível. O diabo vai levantar dúvidas quanto à chamada
e ministério. Vai tentar nos dizer que estamos enganados no campo e que
o melhor é desistir. Vai questionar, se possível, até a nossa conversão e
a fidelidade de Deus. Só o uso da armadura de Deus e a confiança na
verdade da Palavra pode nos sustentar nesses momentos.

Uma das áreas que o inimigo mais ataca na vida dos missionários é
o casamento e afamília. Ele sabe que um casamento desajustado tira as

153
Antes do ide

condições de trabalho do obreiro. É, pois, preciso estar atento e discernir


as situações por vezes muito sutis em que o adversário vai se infiltrar e
trazer ressentimentos, dúvidas, acusações e brigas para afastar o casal.
Uma vida de oração individual, e também como casal, será importante
para identificar e ultrapassar esses obstáculos. Assuma autoridade
sobre seu casamento. Deus criou o casamento e isso é suficiente para
o inimigo o odiar. Um casal missionário ajustado em amor e comunhão
será um instrumento poderoso de ministração, por isso também será alvo
preferencial de satanás. Defendamos nosso amor.

Os filhos, principalmente os pequenos, são alvos fáceis para o


inimigo. A proteção deles está sob nossa responsabilidade. Já falamos
sobre a importância da família e dos filhos. Queremos apenas realçar
que os ataques malignos contra as crianças têm se tornado mais
e mais sutis. A TV, a internet, os videogames e outros meios de
comunicação têm sido instrumentos privilegiados do inimigo para
ter acesso a nossos filhos. Todo o cuidado é necessário em relação
ao que nossos filhos estão "consumindo". Livros como "A Sedução
de Nossos Filhos"8 e "Proteção Espiritual para seus Filhos"9, ambos
de Neil Anderson, trazem conselhos e orientações importantes nessa
área delicada.

Uma área de ataque muito comum do inimigo aos missionários é o


orgulho. Num filme bastante popular há uma representação de satanás
dizendo que este é seu pecado favorito. Um missionário orgulhoso é
uma contradição mas, infelizmente, acontece. Principalmente quando
acontecem bons resultados no ministério, há uma tendência para se
aceitar o orgulho como natural. John Dawson lembra que "o fato de Deus
haver nos usado para conquistarmos uma vitória foi apenas manifestação
da sua graça e não evidência de que nós possuímos alguma capacidade
especial"lO. Ter presente que orgulho é pecado, ajuda. Outra forma de
esfriar a vaidade é ler sobre missionários do passado. Leia sobre homens
como Wesley, Spurgeon e outros e sentirá seu orgulho murchando. Mas,
sobretudo, viva perto do Senhor. Orgulho e vida devocional genuína se
excluem mutuamente.

Outra área de ataque comum em missões é a apatia e a displicência.


Infelizmente há situações em que o obreiro se acomoda. "Empurra com
a barriga" . Sente a frustração, repara nas falhas, vive o choque cultural,
mas em vez de lutar e resolver as questões, se fecha em si mesmo e passa
a vegetar no campo. Faz o trabalho de forma vazia e passa a idéia de

154
Capítulo IX - Resistir ou atacar?

que é possível fazer o trabalho de Deus assim. O alerta bíblico é claro:


"Maldito aquele que fizer a obra do Senhor relaxadamente" (Jr 48.10).
Não podemos dar vitória a satanás nesse campo. Se as coisas não vão
bem, temos que lidar com elas e nunca deixar que a apatia nos vença.
Lembre-se, displicência traz maldição.

Ainda nessa área de luta pessoal, o diabo gosta muito de levar o


missionário à amargura e maledicência. Quando as situações vão se
acumulando, a terra e o povo vão nos cansando e não vemos o progresso
que queríamos, a tendência para ficar amargurados e maldizer o local é
grande. Acontece no Brasil e acontecerá no campo. Mas a Palavra não
muda e diz que o caluniador é o diabo. Falar mal da terra, das condições
e do povo é caluniar. Como Diz John Dawson: "Não façamos coro com
o diabo, o acusador de nossa cidade"!!. A amargura, como já dissemos,
é o contrário do louvor. Se a amargura encher nosso coração, vai tirar
as condições de ministração, vai aumentar os efeitos do choque cultural
até o ponto de nos levar ao mau testemunho. Então estejamos atentos.
Amargura e calúnia são pecados. Não deixemos o inimigo nos encher
com elas. Respondamos com louvor e gratidão no Senhor.

Por último, sem querer ser exaustivo, preciso ainda dizer que "a
maior vantagem que satanás tem sobre nós, os filhos de Deus, é o fato
de que ele é persistente, enquanto nós somos muito instáveis", como
escreve Dean Sherman l2 • Devemos saber, e nunca esquecer, que a luta
é constante. O diabo não precisa dormir, não precisa de férias e não
respeita feriados. Estar em guerra contra ele é estar sempre em guerra.
Pode parecer exaustivo, mas é a verdade. Só no Senhor podemos ter a
alma renovada diariamente para essa luta. Nele temos um lugar seguro,
de descanso e refrigério. Nele podemos estar sempre em luta e ser sempre
vitoriosos. Mas apenas no Senhor. Por isso precisamos tanto dessa vida
devocional diária de que tanto falamos.

2. Batalha ministerial

2.1 - Libertando outros - O missionário terá que enfrentar situações


em que será preciso libertar pessoas do domínio maligno direto. Num
caso de manifestação demoníaca, temos que agir e não fugir. Uma fuga
nessas circunstâncias vai desonrar o nome do evangelho e prejudicar
talvez irremediavelmente o trabalho. Lembremos, como escreve Gilberto
Pickering, que "expulsar demônios não é dom, é ordem"l3.

155
Antes do ide

Essa libertação, porém, não passa só por confrontos violentos.


"Temos erradamente considerado libertação das pessoas como produto
de um choque entre poderes em vez de um encontro com a verdade
(...) não é o poder em si que liberta, é a verdade (João 8.32)"14, escreve
Neil Anderson. Quando lutamos com um demônio sem que a pessoa
dominada seja envolvida nessa luta o resultado é que, muitas vezes,
a pessoa dominada cria uma forte dependência de nós. Ela fica presa
a nosso apoio e nos chama a cada vez que surgem novos problemas.
Isso não é libertação e acabará exaurindo o missionário. Lembro de
uma mulher em Guimarães, norte de Portugal, que era dominada por
vários espíritos. Ela desejava se ver livre do incômodo dos demônios
mas, quando estes saíam, ela relutava em aceitar Jesus por causa do
contexto fortemente católico da região. Ela estava constantemente
chamando os missionários e tirando-os de seu trabalho bem como
atrapalhando seu descanso. A certa altura, percebi mesmo que essa
era a intenção dos espíritos. Ela não queria ser realmente livre.

Essa verdade é um tanto surpreendente, mas há possessos que não


querem ser livres. Eles odeiam o mal-estar e os aspectos negativos
da possessão, mas apreciam o poder que recebem, a influência que
exercem nas outras pessoas, o medo que impõem, e até o lucro que
obtêm. Nesses casos não há como ajudar. São pessoas que estão mal,
mas querem ficar assim. Gastar tempo com essas pessoas será, em
grande parte, um desperdício. Ore por elas e espere que haja sinais de
um desejo genuíno de libertação. Sem compromisso com Cristo não
há libertação.

Naqueles casos em que há vontade real de ser liberto, devemos então


assumir autoridade sobre o espírito mau impedindo que interfira com a
mente e vontade do endemoninhado e levar a própria pessoa a entender o
poder de Jesus e a recebê-lo como seu Salvador e Senhor. Desse modo a
pessoa conhecerá a verdade e a verdade a libertará como Jesus prometeu
e esta liberdade será definitiva. Este processo exige uma avaliação
completa do passado da pessoa. Há que fechar todas as portas que foram
abertas. Os formulários e livros sugeridos para a libertação pessoal do
missionário são indicados aqui também.

Alguns conselhos úteis nessas situações são:

1) Não agir sozinho, mas ter sempre apoio espiritual de outros crentes
maduros.

156
Capítulo IX - Resístír ou atacar?

2) Não atuar em pessoa do sexo oposto para evitar constrangimento.


A libertação deve ser dirigida por alguém do mesmo sexo.
3) Não reprimir fisicamente o possesso. Usar a autoridade de Jesus
para manter o espírito quieto.
4) Não aceitar o "show" do maligno, mas agir com calma e
tranqüilidade. Não retribuir o "show" com gritos e pulos, os espíritos
ouvem muito bem.
5) Não dialogar com o inimigo. Ele é mentiroso e suas "revelações"
são, regra geral, inválidas.
6) Nunca, em quaisquer circunstâncias, seguir as instruções dadas
pelo maligno.
7) Guiar a pessoa à verdade da Bíblia e à fé em Jesus.
8) Fazer um inquérito espiritual exaustivo e sem pressa de modo a que
sejam quebradas todas as alianças passadas e fechadas todas as portas de
entrada do mal.
9) Deve haver confissão de pecados de forma específica e perdão de
pessoas nominalmente.
I O) Iniciar um processo de discipulado e envolvimento na igreja local
imediatamente.

Lembrando que muitos campos missionários são palco privilegiado


de ocultismo, o missionário deveria passar por estes pontos com cada
crente antes do batismo para não ter "surpresas" mais tarde. Isso
independentemente de o novo crente parecer ou não ter problemas
espirituais.

2.2 - Libertando aldeias, cidades e regiões - Dentro da "moda"


que se tornou o assunto batalha espiritual, surgiu um tipo de ministração
que lida com espíritos territoriais na libertação de cidades inteiras e
até regiões ou países. Nomes como Carlos Annacondia, Ed Silvoso
ou C. Peter Wagner se tornaram símbolos desse método evangelístico
que Silvoso chama de "evangelismo de oração". Este conceito fala de
mapeamento espiritual que seria a arte de decifrar quais os espíritos maus
que estão no controle de cidades e regiões. Depois viria então a "oração
de guerra" que expulsa esses poderes espirituais e dá, assim, acesso a que
milhares de pessoas se convertam.

Outro aspecto desse ministério são as chamadas "caminhadas de


oração" pelas cidades e a declaração de senhorio de Jesus sobre as
regiões. Há livros com explicações cuidadosas destes princípios e bases
bíblicas nem sempre convincentes. Os defensores deste método querem

157
Antes do ide

nos fazer crer que esta é uma forma revolucionária de ganhar terreno
para o reino de Deus e muitos têm procurado aplicar esses princípios. Por
vezes parece haver certo resultado, mas raramente se ouvem de números
sequer próximos dos relatados por Silvoso.

Não negamos o valor de alguns desses princlplOs, mas temos


que refletir antes de aceitar. Sabemos que qualquer verdade para ser
verdade tem que ser de Deus. Sendo de Deus, a verdade é então eterna.
Nosso Deus, segundo a Bíblia, é Deus de amor. Ora, um Deus de amor,
possuidor de uma verdade eterna tão poderosa para sua igreja, certamente
não a guardaria apenas para uns poucos. Mais ainda, sendo essa verdade
eterna e sendo Deus amoroso deveria haver explicação clara destes
princípios na Palavra revelada. Mas não é esse o caso. Jesus nos mandou
fazer discípulos e não libertar países ou cidades. Não o vemos fazendo
isso em seu ministério ou dizendo aos discípulos para fazê-lo. Paulo não
fala disso em suas cartas pastorais como seria de esperar. O trabalho é
muito mais individual do que estratégico.

A verdade sobre os espíritos ma!ls não é segredo nenhum. Qualquer


habitante do interior da Africa ou Asia pode nos dizer que os espíritos
são territoriais, estão organizados hierarquicamente e são especializados.
Eles sempre souberam isso. É uma realidade cotidiana há séculos, só o
Ocidente parece ter perdido essa noção. A questão em causa aqui não é
essa. A questão é se devemos ou não agir de forma direta contra esses
espíritos territoriais.

A aplicação prática desses princípios nos campos missionários deve


ser feita de forma cuidadosa porque há casos em que os resultados são
os citados no início deste capítulo. Outras situações também surgem
como a de uma missionária consagrada que luta há anos com aldeias
muçulmanas. Nessas aldeias há santuários animistas também e locais
sagrados dedicados aos espíritos. Essa mulher de Deus tem orado e
jejuado especificamente contra esses espíritos, tem ousado desafiá-
los publicamente, tem até chegado a ponto de ultrapassar barreiras
impensáveis como tocar na árvore sagrada da aldeia. Isso deveria
ter resultado em sua morte, mas nada aconteceu. No entanto, seu
testemunho de amor e compaixão é forte. Foi bem visível em seus anos
de luta que contra ela os espíritos nada puderam. Mas, mesmo assim,
não houve resultados evangelísticos. Um dos anciãos da aldeia lhe disse:
"Você pode vir aqui por mil anos e mesmo assim não verá nenhum
convertido".

158
Capítulo IX - Resistir ou atacar?

N outro caso o missionário presbiteriano Paul Long, atuando


no Congo, conta como quis pregar em certa aldeia e foi alertado
pelo feiticeiro de que ali não poderia falar. Ele riu dele e foi em
frente chamando o povo para o culto apenas para descobrir que não
conseguia articular palavras. Ficara incapacitado de abrir a boca.
"Aqui é terreno do diabo", explicou o feiticeiro. A derrota só não foi
completa porque havia ali um terreno onde antes houvera uma igreja
e fora consagrado a Deus. Lá o missionário pôde falar e conquistar
o povo. Paul Long conclui: "Nunca invada o território do diabo
enquanto para isso não receber ordens claras da parte do Senhor; e
saia do território quando a batalha estiver fora de seu alcance. Não
subestime a oposição"15 .

Eis um conselho prudente e útil. Devemos saber que o poder de Deus


é infinito e o diabo está derrotado, mas o mundo ainda jaz no maligno e o
inimigo tem o direito de estar onde está e dominar o que domina. Durante
séculos tem sido reverenciado pelo povo local com sacrifícios animais
e por vezes humanos. É por isso que se fala em fortalezas espirituais.
Sabemos, dos livros de história, que fortalezas não se tomam de forma
rápida. Tirando um caso sobrenatural como o de Jericó, a regra diz que as
fortalezas têm que ser cercadas e isso dura tempo. Por vezes demoravam
anos até que se descobria uma brecha na fortaleza. Por vezes os sitiadores
desistiam. Fortalezas são assim.

Lembremos também que a história da igreja nos conta claramente


sobre a luta espiritual ao longo dos séculos. E interessante notar que
antes das vitórias houve mártires. Gostamos de citar o nome de Jesus,
mas esquecemos que Jesus morreu, morte de cruz e, então, Deus lhe deu
nome que é sobre todo nome. Gostamos de citar Apocalipse 12.11 que
fala da vitória no sangue do Cordeiro, mas esquecemos que esse texto se
refere a pessoas que deram suas vidas por Jesus. Essa parte da batalha
também é real. Guerra tem feridos e tem baixas. Faz parte da verdade de
qualquer guerra. Mas essa parte não é popular. Estamos dispostos a levar
a vitória do reino de Deus adiante mesmo que para isso tenhamos que ser
os mártires de nosso campo?

Deus é soberano. Ele sabe tudo. Como alguém disse bem: "Ele
sabe o que está depois da curva". Gostamos de falar de métodos de
guerra espiritual que derrubam potestades e libertam milhares. Isso é
avivamento. Nem todos podem ver avivamentos. Será que nós estaríamos
preparados se um avivamento viesse? O que aconteceria se as barreiras

159
Antes do ide

caíssem em seu campo? Milhares se convertendo diariamente. Daríamos


conta do trabalho? Seríamos capazes de aproveitar todas as chances ou
acabaríamos perdendo as oportunidades? Felizmente o Senhor sabe tudo.
Ele tem seu tempo. Quando chega o tempo dele, tudo está pronto; tudo
está no lugar. Então ore por avivamento e prepare-se.

Tenha a certeza de que está agindo na orientação de Deus antes de


desafiar o inimigo. Não o subestime. Busque entender sua região. Faça
"mapeamento espiritual" se for o caso, pois o ajudará a entender o que
o povo está passando. "Eles cultuam os demônios por necessidade, não
por gosto, ignorando um poder benéfico maior capaz de libertá-los", nota
Gilberto Pickering '6 .

No entanto, "mais importante do que discernir a natureza dos


principados e potestades que dominam a cidade, é identificar seu
potencial de redenção. Os principados exercem seu poder tentando
perverter esse potencial"17, escreve John Dawson. O diabo usa o
potencial de redenção das pessoas e cidades para o mal. Imagine o que
uma cidade poderosa financeiramente como São Paulo faria para Jesus?
Ou o que um homem talentoso como Jô Soares seria para o Mestre? Não
devemos apenas verificar o mal, mas levar a igreja a agir contrariando
esse mal específico na região. Por exemplo, em nossa cidade de Bafatá,
onde atuamos há sete anos, é possível identificar claramente espíritos de
orgulho, por ser a segunda capital do país, de rebeldia, por ser sempre
sede da oposição aos governos, e tribalismo com divisões étnicas muito
marcadas a ponto da violência. Logo, a nossa igreja deverá mostrar
de forma clara um espírito humilde, obediente e submisso a Deus e de
unidade das tribos em Cristo.

Não avance pessoalmente ou como igreja contra os poderes locais a


não ser que tenha percebido isso claramente da parte do Senhor e, nesse
caso, só depois de muita preparação em jejum e oração. Lembre-se de
que o contra-ataque será feroz. Será preciso persistência. Esta luta não
é de um round; é permanente. Se não tem estrutura para um combate
longo, não se envolva com o que não pode suportar.

2.3 - Discernimento - Talvez o dom mais necessário aos missionários


na batalha espiritual seja o dom de discernimento que Thomas B. White
descreve como "a capacidade de julgar a fonte de poder presente, se
humana, satânica ou Divina"18. O discernimento espiritual será importante
para entender o que está acontecendo, para perceber as intenções de

160
Capítulo IX - Resistir ou atacar?

pessoas que se aproximam, para antecipar medidas defensivas contra


as ofensivas do inimigo, para decifrar a origem de visões e sonhos.
Haverá casos de pessoas que querem dar nas vistas e defendem que têm
superioridade espiritual agindo de modo afetado e vaidoso, mas é tudo
na sua própria força. Há, no entanto, situações em que o inimigo infiltra
pessoas em posições-chave nas nossas igrejas e desse modo mina a base
de todo o trabalho.

Aprender a ver como Deus vê os corações é um dom espiritual,


que deve ser buscado e desenvolvido. Não se precipite em afirmar que
algo é de Deus para não se descobrir exaltando o diabo. Também não se
precipite em dizer que não é de Deus para não acabar lutando contra o
Espírito Santo. Aplique os testes do tempo e do fruto do Espírito para
avaliar as pessoas. Ore para que o Senhor traga luz para sua igreja para
que tudo se torne mais claro.

2.4 - Misticismo - Outro tema que se encaixa na batalha espiritual é


o do misticismo. Vivemos numa época em que muitas pessoas reclamam
poderes especiais. Falam de seus ministérios como sendo diretamente
de Deus como se os demais não fossem. Apresentam como base de
suas reivindicações, visões e revelações espirituais sobrenaturais.
Falam do Senhor como se fosse um colega íntimo e usam expressões
como "O Senhor me falou" ou "Deus me mostrou" como se isso fosse
corriqueiro. Em regra não têm definições doutrinárias muito claras e
tendem a misturar conceitos. "Um místico, na definição do conhecido
teólogo Charles Hodge, é alguém que declara ver ou conhecer o que está
escondido a outros homens, seja esse conhecimento obtido por intuição
imediata ou por revelação interior"'9.

Deus de fato tem acesso à alma humana e pode, de forma


sobrenatural e imediata, revelar verdades objetivas à mente humana,
sendo que vemos isso acontecendo com certa freqüência nos tempos
dos profetas do Antigo Testamento. No entanto, na era da graça, os
apóstolos nos chamam a buscar a Palavra revelada e não a viver de
visões interiores. Desde os tempos da igreja primitiva que havia
esse tipo de místicos e as cartas apostólicas alertam para eles como
1 e 2Timóteo, 2João e Judas. Depender de revelações interiores é
perigoso porque, como Hodge afirma, "não há critério pelo qual
um homem possa testar esses impulsos internos ou revelações e
determinar quais são do Espírito de Deus e quais são do seu próprio
coração ou de Satanás que aparece e age como anjo de luz (...) muitos

161
Antes do ide

homens que estão sob a influência de um espírito mau honestamente


crêem ser inspirados"20.

Não podemos depender de experiências, nossas ou de outros. Sem


a revelação escrita os homens seriam ignorantes das coisas de Deus.
A Bíblia deve ser nossa fonte de orientação e nossa base doutrinária e
ética. Qualquer revelação que nos seja trazida deve passar pelo crivo da
Palavra.

A vida do "profeta" também deve ser avaliada para sabermos se é


alguém humilde e de vida santa ou alguém que mostra sinais de orgulho e
vaidade. Não devemos guiar nosso ministério ou traçar nossos objetivos
baseados em supostas visões ou profecias sobrenaturais.

Missões é assunto muito sério e a luta é muito real para seguirmos


simples impulsos interiores, sejam nossos ou de outros. Fujamos de
ficar tentando experiências místicas sobrenaturais. Não é esse o método
que Deus privilegia no seu contato conosco. Seja fiel em sua vida
devocional, mantenha uma vida de oração regular, busque conselho de
homens e mulheres de Deus experientes, leia bons livros evangélicos,
freqüente uma igreja sadia doutrinariamente e certamente o Senhor lhe
dará segurança nas decisões.

Concluindo

A obra missionária é batalha espiritual. Os missionários não devem


ir para os campos sem preparo nessa área. Esse preparo começa com
o cuidado do próprio obreiro estar verdadeiramente livre de quaisquer
alianças malignas passadas. Antes da batalha ser ministerial, ela é
pessoal. É preciso valorizar a vida devocional, ter intercessores fiéis,
conhecer nossa posição em Cristo e não depender de fórmulas fáceis
para os embates com o inimigo. Ministerialmente o missionário deve se
concentrar na libertação de pessoas por meio de um encontro dessas com
a verdade da Palavra de Deus e a pessoa de Jesus. Nunca enfrentar as
forças espirituais territoriais a não ser sob direta orientação de Deus com
uma busca constante por discernimento e uma atitude cuidadosa diante
de sinais de misticismo.

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Capítulo IX - Resistir ou atacar?

Minha igreja em Lisboa não estava preparada. Eu não estava


preparado quando aconteceu. Creio que foi a primeira vez que uma
pessoa manifestou a presença de um espírito mau em pleno culto naquela
igreja. A esmagadora maioria dos crentes não sabia bem o que fazer. Os
poucos que reagiram também não tinham experiência. Até o pastor, um
missionário americano, demorou a entender que aquilo era pra valer.
Mas era mesmo pra valer e aqueles de nós que nos envolvemos sentimos
na pele a fúria do inimigo.

o moço em quem o espírito se manifestou, vou chamá-lo Eduardo,


tinha a tia e os avós na igreja. Sua história familiar constava de muito
envolvimento com espiritismo de várias formas. Vez após vez, o espírito
tomava conta dele e então aquele garoto franzino de uns 45 quilos podia
com um só braço se livrar do pastor de quase 2 metros e uns 120 quilos. O
espírito falava inglês fluentemente, quando o pobre garoto era aluno fraco
na escola. A verdade é que lutamos e apanhamos. Fomos despertados
para a realidade da batalha de uma forma drástica e vimos o quanto
estávamos despreparados. Concentramo-nos na libertação imediata.
Uma vez expulso o demônio, orávamos para que não retornasse. No fim
de seu tempo conosco, Eduardo continuava dominado.

Naquele mesmo ano a família de Eduardo emigrou para a África


do Sul. Pensamos que seria terrível para suas chances de libertação.
Felizmente estávamos enganados. As notícias que chegaram eram
boas. A família fora morar perto de uma crente dedicada. Poucos meses
depois Eduardo estava liberto. Uma sensação de frustração me enchia o
coração ao pensar nele. Por que não tínhamos tido vitória? Afinal, nós
estávamos teoricamente mais perto dele e mais preparados para lidar
com seu problema do que uma pessoa do outro lado do mundo. Por que
as coisas tinham ocorrido daquele jeito? Mais tarde, com os relatos de
tudo que aconteceu na África do Sul, pude perceber a resposta. Aquela
irmã lá do sul concentrara sua atenção no Eduardo e na sua família,
enquanto nós tínhamos concentrado a atenção no maligno. O que tinha
nos faltado era o amor e a paciência de lidar com a pessoa e levá-la no
caminho da salvação. Na preocupação de ter vitória, tínhamos tentado
saber tudo sobre o inimigo e deixado de lado a pessoa que precisava
de libertação.

163
Antes do ide

Nossa luta é real. A vitória é de Jesus e não está em questão. Aquilo


que os dominados pelo inimigo mais precisam é de um cuidado amoroso
que os veja como estão, mas ouse também sonhar como serão nas mãos
de Deus. Concentremo-nos no Senhor e em amar os oprimidos, porque,
afinal, ele veio libertar os cativos.

164
Capítulo X
Informando as bases

"Chegando ali, reuniram a igreja e relataram


tudo o que Deus tinha feito por meio deles e como
abrira a porta da fé aos gentios"
Atos 14.27

"Nós nos julgamos mestres quando somos na verdade


apenas mordomos e nos esquecemos que a cada um de nós
será dito um dia: Presta contas da tua mordomia"
Joseph Horne

ra uma excelente oportunidade. Fora convidado para pregar


num evento evangelístico especial. Várias igrejas da Ilha do
Governador, no Rio de Janeiro, se reuniam para esse esforço. O
local da reunião era o teatro da escola mais conhecida da região. Obter
permissão para usar o local fora uma autêntica batalha espiritual. Tudo
estava organizado com cuidado e carinho e a expectativa era imensa. E é
claro, a expectativa quanto ao pregador também. Afinal era o missionário
da África que ia falar e todo mundo sabe que os missionários são pessoas
excepcionalmente santas e dotadas.

A reunião devia ser evangelística. O auditório seria predominantemente


de jovens. Sentia-me seguro. Tivera bastante experiência com esse tipo
de auditório nos meus tempos de aluno de faculdade em Lisboa. Sabia
Antes do ide

falar a jovens. Estava, inclusive, animado com a oportunidade porque


nas "férias" normalmente só somos chamados a falar de missões e poder
pregar um sermão diferente era um verdadeiro alívio. Sendo assim,
preparei minha mensagem e esperei o dia.

Na noite do evento dava para sentir a tensão no ar. Tudo estava bem
organizado. Cada pessoa sabia o que fazer, desde os introdutores aos
conselheiros e músicos. Chegamos um pouco antes da hora e oramos com
o grupo de louvor. A ansiedade e animação enchiam os corações e me
deixei contagiar. Tudo começou de forma excelente. Os instrumentistas
eram bons, as músicas foram bem escolhidas e o grupo vocal convidado
era excelente.

Minha hora chegou e subi ao púlpito um pouco nervoso. Algo


parecia não estar bem certo, mas não sabia dizer o quê. Comecei como
habitualmente. Uma ilustração para abrir o interesse, um tema que deveria
captar a atenção, desenvolvimento rápido para não cansar, e histórias
para manter e facilitar a compreensão. Mas o auditório parecia não estar
comigo. Seria a distância do púlpito? Seria meu cansaço fisico, já evidente
depois de uma maratona de pregações? Seria minha linguagem? Fiz um
esforço para ir até o fim, mesmo sentindo que perdera o público. No fim,
fiz um apelo fraco. Fechei os olhos e orei fervorosamente por um milagre.
Mas não aconteceu. Demorei mais um pouco para não passar a vergonha
de não ver ninguém se levantando e com alívio vi duas mãos salvadoras
se levantando e subindo à plataforma. Logo tudo estava terminado e eu
frustrado me afundava na poltrona ao lado de minha esposa.

À noite tive dificuldade em dormir. Sentia-me derrotado e envergonhado.


Seria apenas um orgulho ferido? Não fora a mensagem boa? Não fora o que
me pediram? Precisei de vários dias para ir entendendo o que acontecera
naquela noite. Eis um diagnóstico razoável:

- A mensagem fora boa, mas a linguagem não. Estava acostumado a


pregar a jovens em Portugal. No Rio de Janeiro, a linguagem era outra e
eu usara expressões e termos inadequados. Falhara na linguagem.
- A mensagem fora boa, mas o auditório era na sua maioria de crentes.
A reunião deveria ser evangelística, mas a maioria dos presentes já era
membro de igreja, daí que não se identificassem com a mensagem e nem
atendessem ao apelo. Falhara no conhecimento do auditório.
- A mensagem era boa mas, depois de sete anos pregando sermões
evangelísticos a mulçumanos, minha linha de pensamento estava ligada

166
Capítulo X - Informando as bases

a eles e não consegui fazer a transição para o contexto brasileiro. Falhara


na contextualização.
- A mensagem era boa, mas estava demasiado confiante em minha
própria experiência. Se estivesse mais dependente do Espírito, teria
notado que o ambiente era de crentes, que todos sabiam cantar os coros
e as músicas, e conheciam a banda. Minha auto-suficiência bloqueou a
ação do Senhor. Falhei na dependência.

Não me orgulho deste episódio. Mas faz parte de um arsenal de


experiências que vamos acumulando e que serve para nos orientar. A
vida do missionário é de evangelização e alcance de povos não-salvos,
mas é também de comunicação com suas bases e prestação de contas a
quem o envia. Neste particular, o missionário é um comunicador, um
profissional da Palavra e se não aprender a usá-la de forma razoável,
poderá ter resultados negativos para o seu trabalho. John Haggai escreve
mesmo que "a habilidade de se comunicar bem, oralmente ou por escrito,
é provavelmente, o predicado mais valioso de um líder"l.

Todo missionário vai experimentar o interesse das igrejas em ouvi-lo,


o que quer dizer que serão muitas as oportunidades para falar a auditórios
grandes e pequenos. Estar preparado para essas oportunidades é imperioso.
Tenho ouvido vários relatos sobre palestras missionárias que, em vez de
inspirar, trouxeram revolta e descrédito à obra de missões. Precisamos de
missionários capazes de inspirar nosso povo para que o Brasil cumpra seu
papel de enviador na grande tarefa de evangelizar o mundo. Eis, então,
alguns pontos importantes para uma palestra missionária.

1. Mensagem ou testemunho missionário

Pouco importa se vamos falar a um congresso de milhares de pessoas


ou a uma pequena igreja do interior. A responsabilidade será sempre
grande e o obreiro deve estar preparado do mesmo jeito. E o primeiro
requisito para que seja bem-sucedido em sua preleção é conhecer bem o
auditório. Foi um de meus erros no exemplo citado. Quem são as pessoas
à sua frente? Que tipo de igreja? É uma igreja envolvida com missões ou
uma que pouco sabe sobre a obra? O pastor enfatiza o campo missionário
ou foi quase obrigado a recebê-lo para falar? É uma igreja com muitos
profissionais liberais ou estudantes universitários, ou a maioria dos
membros é da classe trabalhadora? Trata-se de um culto especial de
missões ou é um culto normal em que você foi encaixado?

167
Antes do ide

Tudo isso faz parte do conhecimento do seu auditório. Tudo isso vai
ajudar a adaptar a sua mensagem e o tipo de ênfase que vai dar. É possível
obter informações olhando o prédio da igreja, o tipo de bancos que usa,
as instalações de educação religiosa. Faça perguntas ao pastor da igreja
ou aos crentes: Qual é o envolvimento da igreja com missões? Sustenta
algum missionário? Como foi a última visita de um missionário? Como
correu essa visita? Como está a igreja? Quais são seus pontos fortes? O
que é realmente importante para essa igreja? Estas e outras perguntas não
demoram muito tempo para serem feitas e lhe darão recursos importantes
para conhecer o auditório que vai ouvi-lo. Uma vez conhecido o auditório,
você poderá de forma mais clara definir o que vai ser sua intervenção.
Se precisar, mude seu sermão ou palestra, mas sempre respeite o tipo de
auditório que tem se quiser realmente comunicar bem.

Em segundo lugar, saiba bem qual é seu objetivo nesta pregação e


trabalhe para atingi-lo. O que quer que os crentes sintam no final do culto?
Ou mais importante ainda, o que quer que eles sintam no dia seguinte em
relação a missões? Se seu alvo é causar boa impressão, isso não é difícil.
Se seu objetivo é que tenham pena de você, mais fácil ainda. Mas será
que estes alvos o ajudarão? Ajudarão a obra missionária? A oportunidade
que temos de falar a igrejas pode ser única. As pessoas que vão ouvir
podem não ter outra oportunidade de ouvir. O objetivo do missionário
deveria ser ousado. Deveríamos procurar passar o ardor missionário que
um dia nos atingiu e nos levou até o campo missionário.

Algumas vezes os missionários em suas palestras dão a entender que


o único objetivo que têm em mente é a obtenção de verbas. Se esse é seu
objetivo, provavelmente vai falhar. Pode conseguir uma boa oferta nesse
dia, mas será fruto de mentes e corações constrangidos. Eles podem
dar na hora, mas não vão se comprometer numa base permanente. Mas
missões não são feitas com ofertas esporádicas e, sim, com crentes
comprometidos. Trabalhe mais fundo sem se preocupar tanto com
as ofertas. Se as pessoas se comprometerem com missões, as ofertas
também fluirão.

Devemos estar conscientes do estado espiritual da grande maioria


dos crentes de nossas igrejas. Eles não têm um envolvimento sério com
Jesus e a igreja. Levam uma vida cristã pobre e fragilizada. A mensagem
missionária é de apelo ao compromisso cristão seja no Brasil ou noutro
lugar. Devemos ousar ser bênção para a vida dessas pessoas. Agentes de
transformação no campo missionário, mas também na nossa terra. Ousar

168
Capítulo X - Informando as bases

ser instrumento do Espírito Santo para o chamado de vidas à consagração,


ao ministério, à intercessão, a uma contribuição generosa e regular.

Ao falar devemos dar o nosso melhor. Afinal, esta igreja ainda não
ouviu nosso testemunho. Quantas vezes o missionário já repetiu o mesmo
testemunho e se sente cansado e desmotivado. Acaba repetindo tudo de forma
mecânica e transmite falta de fervor. O auditório não sabe quantas vezes ele
já contou o mesmo testemunho e vai se desiludir. Devemos pedir, ao Senhor,
forças para dar a cada oportunidade o mesmo calor da primeira vez. Certa vez
estava me preparando para falar àquela que seria a quinta igreja no mesmo
domingo e meu rosto mostrava claramente os sinais de exaustão. Sentei-me no
meu lugar na plataforma clamando a Deus por forças para continuar. Graças a
Deus, o pastor dessa igreja era um missionário americano que entendia minha
sensação e em sua oração disse tudo o que eu estava sentindo e pediu forças a
Deus para mim. Foi um bálsamo. Mas mesmo que não tenhamos esse tipo de
apoio, lembremos de pedir a Deus forças para dar sempre o máximo.

Seja claro, interessante e use bem as ilustrações. As pessoas gostam de


ouvir missionários porque esperam ouvir histórias diferentes e exóticas. Na
verdade, temos muita coisa para contar e devemos procurar tomar nossas
palestras interessantes por meio do uso de experiências e fatos do nosso
campo missionário. Mas lembre-se que as ilustrações são apenas as janelas
da mensagem. A função delas é lançar luz sobre o assunto e não substituir
a mensagem. Por vezes o obreiro fica contando histórias engraçadas umas
atrás das outras, diverte bastante a congregação, mas no fim foi tudo o
que ficou, uma noite divertida. Pretendemos mais do que isso ao falar de
missões e por isso temos que usar bem as ilustrações. Se compararmos a
mensagem a uma casa, o propósito da mensagem é o alicerce, a introdução
a porta de entrada, as ilustrações as janelas, o desenvolvimento as paredes,
e o teto é a aplicação. Coloque cada coisa no seu lugar.

1.1- Nunca se esqueça da aplicação - Se você sabe qual é o objetivo


de sua mensagem, então não terá dificuldade em aplicar. Se, por outro
lado, sua palavra é tão concentrada no campo missionário, tão distante
da realidade brasileira que não pode ser aplicada, então vai ter pouco ou
nenhum impacto na vida daqueles que o ouvem. Trabalhe a mensagem
com vistas à aplicação. Moody já falava que "a Bíblia não foi dada para
informação, mas para transformação".

A aplicação é a parte importante da mensagem que ultrapassa a


barreira que surge nas mentes dos presentes e diz: "O que tenho a ver

169
Antes do ide

com isso?" Na aplicação, respondemos a esta questão explicando qual


a relação da pessoa com o assunto, qual a vantagem que terá em se
envolver (e há vantagens múltiplas) e como pode se engajar. Deixar de
aplicar será permitir que grande parte do auditório assista apenas do lado
de fora sem se incluir no assunto. Será deixar que as pessoas saiam sem
saber o que fazer com o recebido.

Em seu livro "As sete leis do aprendizado", Bruce Wilkinson reflete


sobre seus achados neste ponto da aplicação. Descobriu que todos os
grandes pregadores do passado como Moody, Finney, Spurgeon, Wesley
e outros tinham mais de 50% de aplicação em suas mensagens e por
vezes atingiam a marca de 70% de aplicação. Verificou o mesmo nas
cartas de Paulo, sendo que a carta de Tiago tem 80% de aplicação e o
Sermão do Monte cerca de 65 %2. A lição é clara. Se quisermos causar
impacto, nossas mensagens têm que ser aplicáveis. Se não o forem,
estaremos desperdiçando tempo e oportunidades.

1.2 - Procure cumprir o horário - Quando minha família saiu do


Brasil para o campo missionário, minha irmã Lilia Rita tinha apenas
4 anos. Em nosso primeiro domingo em Portugal, tivemos que ir a
quatro igrejas com cultos longos. Para uma criança pequena era uma
verdadeira tortura, pois não havia culto infantil. Na saída da última
igreja ela perguntou à minha mãe com ar pesaroso: "Mãe, isso é que é ser
missionário?" Ela já estava cansada. Estava achando que ser missionário
é assistir a uma porção de cultos longos. E muitos missionários parecem
pensar que é essa sua função - cansar os auditórios. Parecem achar que
o fato de serem obreiros em terras distantes lhes dá o direito de falarem
até a exaustão. Não se preocupam com horário e falam por vezes bem
mais de uma hora. Ouvi certa criança apavorada perguntar ao pai a meu
respeito: "É missionário? Que nem o outro que falou 2 horas?"

Devemos respeitar as regras do bom senso. Se a reunião é especial e


temos mais tempo então vamos usá-lo, mas num culto normal devemos
usar os habituais 30 minutos de modo a não cansar. Dar a idéia de que
missões é algo cansativo não vai ajudar nossa obra. Deixar a congregação
com "gostinho de quero mais" é preferível a esgotá-la.

1.3 - Busque a dependência do Espírito Santo - Temos a tendência


de confiar em nossa experiência quando vamos pregar pela vigésima vez a
mesma mensagem e sabemos que é boa. Então descobrimos que, por alguma
razão, o sennão saiu frouxo e sem efeito. Faltava fogo! Como na ilustração

170
Capítulo X - Informando as bases

de Tozer em que um grupo fez um altar perfeito com pedras escolhidas,


cortou a lenha e a assentou direitinho, trouxe o bezerro cevado e o colocou
para o holocausto e então se sentou a discutir o altar, o arranjo das pedras e
a beleza de tudo. Passada cerca de uma hora, foram para casa contentes da
vida. Ficara faltando algo. Faltara o fogo do céu para queimar a oferta3•

Temos muitas vezes a tendência de ficar admirando nossos belos altares


e esquecemos de buscar o fogo do céu que o tornará valioso a Deus e eficaz
entre o seu povo. Logo, temos que aprender a depender de Deus. A única
palavra que vai fazer efeito é a Palavra de Deus. A nossa não vai fazer
nada. Então, no ara de construir seu altar, não se esqueça do fogo.

Após o culto e no contato com as pessoas, seja pessoal. Atenda as


pessoas de forma gentil e calorosa. Seja sincero e real. A verdade é que
as pessoas nas igrejas admiram os missionários. Suas idéias muitas vezes
estão longe da verdade sobre os missionários mas, de qualquer maneira,
eles querem conhecer e contatar o missionário. Querem tocar nele, saber
que é de carne e osso. Esse contato é muitas vezes mais importante do
que tudo o que você disse no púlpito.

Durante o congresso missionário "Proclamai" em 2001 do Rio Centro,


fui abordado por uma adolescente simpática. Ela estava nervosa ao falar
comigo, por isso sentamos num canto de um corredor movimentado e
procurei lhe dar atenção. Com voz meio embargada e titubeante, ela me
contou que me ouvira no Congresso Nacional de Adolescentes em 1999.
Era vocacionada para missões e a mensagem a tocara muito, mas no fim do
culto quando tentou falar comigo eu fora distante, desinteressado e mesmo
um tanto rude. As palavras dela me desarmaram. Senti na sua expressão
dolorida todo o peso que aquela entrevista infeliz tivera. Ela carregara
aquela mágoa por dois anos e, só por insistência de seu pastor, viera falar
comigo. Pedi perdão a ela, sem tentar me explicar. E oramos juntos. Senti
que ela se foi bastante aliviada e eu fiquei com mais uma grande lição.

Na verdade me lembrava daquele Congresso de Adolescentes. Fora


convocado em cima da hora. Tivera que ir sozinho, sem a família. Estava
ansioso porque meu campo missionário estava em Guerra e não sabia
se ia poder regressar. Não tivera tempo para descansar antes do culto da
noite. Mas nada disso justificava o fato de não ter sido atencioso com a
moça naquela noite. A mensagem fora boa, mas o que ficara no coração
dela fora minha atitude. Lembre-se, o que faz e diz depois do púlpito
pode ser mais importante do que o que se passou na plataforma.

171
Antes do ide

Neste ponto ainda devo referir alguns aspectos negativos que devemos
evitar a todo custo ao fazer uma palestra missionária. Primeiro e muito
importante: Não fale mal do seu campo missionário. Todos sabemos que
o missionário vive em condições difíceis. Muitas vezes o país ou a região
onde habitamos é deveras complicada. Pode ser que o povo seja terrível
e cheio de defeitos, mas na hora de falar de missões não fale mal de sua
terra de trabalho ou do povo. As razões são múltiplas: não vai ajudar na
sua palestra, vai desabonar seu caráter, vai dar uma imagem negativa de
seu trabalho e pode ofender algum nacional presente.

Certa vez fui ouvir um missionário de língua inglesa que estava


trabalhando numa cidade brasileira. A palestra era em Lisboa. O indivíduo
simplesmente arrasou o Brasil e os brasileiros de forma total. No fim da
palestra dele eu estava indignado. Não me interessava se ele falara a verdade
sobre o Brasil ou nosso povo (e muita coisa era verdade), não me interessava
se ele estava fazendo um bom trabalho nas favelas (e parece que até estava)
e nem queria saber de seus apelos finais. Só queria que a reunião acabasse
para lhe dizer umas coisas pouco agradáveis. Estava ferido em meu orgulho
pátrio. Agora imagine os outros. Seja quem for, seja qual for a realidade de
seu país, se ele ouvir falar mal de sua terra estando no estrangeiro, certamente
vai se defender. Tome o propósito de falar sempre como se um nacional de
sua terra de trabalho estivesse presente. Esta regra ajuda bastante. Tenho
seguido e já me deu gratas alegrias. Não é preciso falar mal da terra para
valorizar seu trabalho. Seja fiel e Deus o abençoará.

Neste ponto também é importante falar sobre a necessidade de ser


verdadeiro. Pode parecer desnecessário dizer isso, mas a experiência
mostra que muitos obreiros têm a tendência de inflacionar seus resultados
a fim de causar mais impacto. Todo o cuidado é pouco. Infelizmente tem
havido, por parte de muitos, pouca transparência nos relatos sobre a obra.
Ouvem-se histórias mirabolantes de conversões às dezenas e centenas.
Outras vezes parece haver necessidade de denegrir o trabalho de outras
agências para valorizar o nosso. Isto tudo depõe contra a obra no geral e
vai acabar sendo negativo para quem fala também. Tendo isso em conta,
seja honesto ao contar o que está acontecendo. Não conte a mais nem a
menos. Lembre-se que nestes tempos de globalização e. internet é fácil
saber se um relatório missionário é verdade ou não. É fácil encontrar
alguém que já esteve nesse campo e pode confirmar ou desmentir.
Inclusive, é fácil viajar para o campo e verificar a veracidade dos relatos.
A verdade é nosso compromisso primeiro como cristãos e, segundo,
como obreiros.

172
Capítulo X - Informando as bases

Diga a verdade toda, mas seja positivo. Há obreiros que dão tanta
ênfase no lado negativo da vida missionária que o público sai pensando:
"Que coitado!" Ora, isso não é verdade. Não é verdade porque se você está
no campo é porque quer, logo, não é um coitado, pois escolheu esta vida.
Não é verdade porque, por maior que sejam suas dificuldades, seu trabalho
é glorioso e Deus o recompensará. Conte as dificuldades, mas não pare aí.
Conte as dificuldades, mas não faça delas o assunto central de sua palavra.
Seja positivo, conte o lado das bênçãos, trabalhe as vitórias.

1.4 - Evite passar a imagem de santo ou de obreiro especial- O


missionário é um crente que aceitou a chamada e está no campo. Não
é melhor do que os outros por causa disso. No entanto, esta parece ser
a convicção de alguns nas igrejas e alguns obreiros parecem gostar e,
até mesmo, alimentam essa visão. Se aceitarmos a noção geral de que
os missionários são melhores e mais espirituais que os outros, vamos
acabar acreditando nisso, o que vai ser muito prejudicial para nós e para
a obra. Qualquer servo de Deus, para ser verdadeiramente útil, tem que
buscar a humildade. Lembremos as palavras de Provérbios: "Não te
estribes no teu próprio entendimento... não sejas sábio aos teus próprios
olhos" (3.5b e 7a). Até do mundo secular vem a lição de que vaidade é
loucura como nas palavras deste soneto de Florbela Espanca4 :

Sonho que sou a poetisa eleita,


Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!
Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!

Sonho que sou alguém cá neste mundo...


Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a terra anda curvada!

E quando mais do céu eu vou sonhando,


E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho... e não sou nada!

O nosso Mestre afirmou categoricamente que sem ele nada podemos


fazer. Sem ele nada somos. Lembrando isso e deixando de lado vaidades

173
Antes do ide

tolas, podemos ser bem mais úteis ao trabalho e fazer uma promoção da
obra de missões que engrandeça o Rei da obra.

2. Comunicação escrita

o missionário é enviado por igrejas ou mlssoes, e se espera que


dê relatórios e informação de seu trabalho. Esse princípio é bíblico e
foi estabelecido por Paulo no livro de Atos, logo na primeira viagem
missionária. O apóstolo, apesar de sua posição, tinha o cuidado de
informar a igreja de Antioquia de suas atividades. Não por que fosse
dependente financeiramente dessa igreja, mas por uma questão de
princípios. Uma questão espiritual. Afinal, a prestação de contas
ajuda mais a quem presta do que a quem recebe. Somos abençoados
na prestação de contas, pois nos ajuda na avaliação do trabalho e no
manter do foco principal. Sem prestação de contas, podemos derivar por
caminhos diversos e deixar os alvos a que nos propomos.

No entanto, muitos são os missionários que se mostram arredios a esta


necessária comunicação. Reclamam de falta de tempo ou de escassez de
informações. Talvez haja as duas coisas ou talvez haja também falta
de preparação ou orientação na prestação de contas. Não é matéria de
Seminário, mas deveria ser. Aprender a fazer cartas, relatórios e artigos
deveria ser currículo para os missionários. Eis, então, algumas sugestões
nessa área para quem quer se comunicar melhor.

2.1 - Carta de oração - Esta é aquela carta que deve ser enviada
periodicamente para as igrejas e intercessores. Há missões que
estabelecem a periodicidade, outras não. Pode se dar o caso de o
missionário nem sequer ter uma obrigatoriedade de fazer isto. Nesse
ultimo caso, aconselharia a que estabelecesse um prazo para si mesmo,
pois esta carta é fundamental para manter o interesse das bases de apoio
e intercessão.

Os principais objetivos de uma carta de oração são informar e


motivar. Precisamos dar a conhecer o andamento do trabalho, vitórias e
lutas, casos e experiências. As pessoas no nosso país não têm idéia do que
estamos enfrentando se não lhes contarmos. Muitas vezes o contexto de
nossa vida será tão diferente do que deixamos que é dificil de entender.
Para isso servem as cartas e as informações.

174
Capítulo X - Informando as bases

Estas informações serão também fundamentais para quem está


intercedendo. Se desejarmos que as pessoas orem de forma específica
para melhor nos ajudarem, então temos que dar informações específicas,
contar os fatos, datas, nomes de pessoas e ocasiões especiais. Nosso
exército de intercessão precisa orar de forma bem definida para ser
mais eficaz. Estas orações só são possíveis quando damos a eles estas
informações.

Mas as cartas de oração servem também de motivação. Na maioria


dos casos, estas cartas vão para aquelas pessoas e igrejas que ajudam
contribuindo para o nosso trabalho. Enquanto estávamos perto delas e
falávamos do futuro trabalho, o seu ânimo era grande. Mas depois que
se passaram vários meses ou anos que deixamos o Brasil, como é que
vão ter interesse de continuar contribuindo se não souberem o que está
acontecendo? Tenho ouvido missionários reclamando que as pessoas
não são fiéis nas contribuições e logo desistem de sustentar numa base
regular. Mas, quando argüidos sobre sua regularidade no envio das cartas
de oração, descobrimos que a falta de fidelidade foi bilateral.

Se você tem um investimento certamente vai querer saber como


ele está indo. Não vai simplesmente colocar seu dinheiro e esquecer.
Com missões se dá um pouco disso também. As pessoas têm boa
vontade, contribuem e até se sacrificam, mas temos que lhes dar razões
para continuarem fazendo isso. Aqui entra a carta de oração com sua
motivação, seu agradecimento, seu fortalecimento dos laços entre
contribuinte e missionário.

Sugerimos aqui um esboço geral para as cartas de oração que são


escritas de forma regular:

I) Saudações e palavras de gratidão inicial. Use um texto bíblico


apropriado ao assunto principal da carta. Seja cordial e pessoal em
relação a igrejas bem conhecidas suas.
2) Informações sobre o campo. Aqui seja específico, conte alguma
experiência marcante, fale de nomes de pessoas que precisam de oração,
cite localidades que precisam de intercessão, conte sobre eventos que
estão marcados para o futuro próximo e precisam de oração. Não se
preocupe tanto com números. Informe e motive.
3) Informações familiares. As pessoas querem saber do campo,
mas também de você e a família. Como vai a família? Como estão
as crianças? Têm tido problemas de saúde? Vão enfrentando bem a

175
Antes do ide

adaptação? Alguém da família precisa de oração específica? Estas


informações aproximam o missionário e o tornam mais humano. Não
deixe de comunicá-las.
4) Deixe pedidos de oração específicos. Pode ir colocando ao longo
da carta ou fazê-lo num parágrafo à parte, mas deixe claro sobre o que é
preciso orar.
5) Nas palavras finais seja positivo. Abençoe com suas afirmações.
Mostre gratidão pelo apoio recebido. Dê razões para que continuem
orando e contribuindo com alegria.

As cartas de oração não são opção; são dever e responsabilidade.


Devemos isso àqueles que nos suportam. O tempo gasto na sua
elaboração, longe de ser desperdício, pode ser parte importante de nosso
ministério. Ao escrever para seus colaboradores, o missionário está
sendo fonte de bênção para suas vidas. Use essa oportunidade e torne as
cartas de oração um ministério.

2.2 - Cartas a colaboradores especiais - Este é um caso particular


de crentes que contribuíram de uma forma especial e específica para seu
ministério. E o caso de empresários ou irmãos de posses que ajudaram de
forma substancial para um projeto de construção ou outro. Estes irmãos
merecem uma prestação de contas na medida de seu apoio. Devemos
respeitar a sua oferta mantendo esses irmãos informados de como foi
utilizada essa oferta. Isso pode ser feito com cartas regulares, prestação
de contas por escrito, se for o caso, fotografias dos projetos em que se
envolveram, relatos de como seu dinheiro foi aplicado na causa de Deus.

No capítulo 1 contamos de um irmão que nos deu uma oferta muito


alta para nosso projeto em Bafatá. Esse irmão recebeu de nossa parte
cartas a cada três meses contando da evolução das obras da escola e
clínica que ele ajudou a construir. Enviamos fotos das obras em curso,
depois das casas terminadas e quando começaram a ser usadas pelas
crianças e doentes. Isso sem fazer nenhum pedido adicional de verba ou
outro apoio, apenas a prestação de contas e os resultados da oferta. Trata-
se de uma maneira de valorizar o apoio recebido. Reflete honestidade da
parte do obreiro e dá ao contribuinte ânimo para repetir esse tipo de ajuda
mais tarde com outros projetos nossos ou de outros missionários. Hoje,
cada vez mais, achamos pessoas dispostas a investir em projetos em vez
de instituições. Manter esses irmãos informados sobre a utilização de
suas ofertas será a melhor maneira de mostrar respeito por eles e mantê-
los envolvidos na obra.

176
Capítulo X - Informando as bases

2.3 - Cartas gerais - Sobre este título pretendemos falar das respostas
que temos que dar às inúmeras cartas recebidas do Brasil. Aqui também
haverá diferenças. Há missionários que recebem pouca correspondência
e não têm muita dificuldade nessa área. Há, porém, casos em que os
missionários recebem dezenas de cartas, principalmente por ocasião de
seus aniversários ou gincanas nas igrejas. Todo mundo parece que quer
ter uma resposta e poder dizer que se corresponde com tal missionário,
em tal lugar. A internet também facilita bastante levando o obreiro a ficar
sobrecarregado de trabalho para responder a tantas solicitações. Como
fazer?

Para começar, deveria ser feita uma triagem do que é mais importante.
Há correspondência que não parece esperar resposta. Há contactos
que são formais e não exigem um atendimento imediato. Há, porém,
aqueles que necessitam de resposta. O missionário deve se lembrar que
nesses casos ele não está falando por si só. Uma falta de resposta ou
uma resposta negativa irá refletir em todo o interesse dessa pessoa por
missões. Vivemos num mundo com muitas solicitações. Há centenas de
concorrentes pela atenção dos jovens e se um deles mostra interesse em
missões, e nós não valorizamos, podemos estar perdendo para sempre
um possível obreiro.

Por outro lado, se houver um pouco de disciplina, nem é assim


tão dificil dar as respostas certas. No caso da internet, muitas vezes a
solicitação é curta e a resposta também será. Nos casos em que a pessoa
pede uma porção de informações, podemos dar uma resposta inicial e
deixar para um segundo tempo a resposta mais completa. De qualquer
forma, lembre-se que o importante é manter o interesse.

Discernimento é outra palavra-chave. Podemos ser contatados por


gente meramente curiosa. Noutros casos, porém, haverá um interesse
mais profundo e sério. Deixar de responder a este segundo caso é grave.
Recordo de um irmão que me mandou carta falando de seu interesse
no trabalho na Guiné. Respondi com os dados que me pediu e esqueci
completamente daquela correspondência. Passados anos, encontrei-o
numa conferência na Guiné. Ele me contou que escreveu para muitos
missionários naquele tempo, mas somente nós tínhamos respondido.
Hoje ele está trabalhando exatamente dentro da área que lhe indiquei.
Nós não podemos saber o que o Espírito vai fazer nos corações, mas
temos que estar atentos a casos semelhantes a este e pedir sabedoria para
ser uma bênção.

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Antes do ide

3. Artigos missionários

Hoje temos uma profusão de jornais e revistas evangélicas. Logo,


é também normal que surjam mais oportunidades para os missionários
escreverem artigos falando de seus trabalhos ou tocando assuntos
do universo de missões. Aqui também precisamos ter em conta a
importância que esses artigos podem ter na vida daqueles que irão
ler. Quando estávamos nos Açores, Portugal, minha mãe, a professora
Márcia Venturini de Souza, escreveu uma série de artigos sobre as ilhas
açoreanas e as oportunidades de evangelização das mesmas. Até hoje,
cerca de 20 anos depois, ainda encontramos pessoas que foram tocadas
para missões por esses artigos, inclusive missionários que estão no
campo açoreano e em outros campos, e tudo por causa daqueles artigos.
Ao escrever um artigo, tenha em conta os seguintes itens:

3.1 - Propósito - Sobre o que será o artigo? Pode ser que você
simplesmente vá contar uma experiência, mas tenha um objetivo em
mente. Essa experiência é para quê? Despertar vocações? Mostrar a
dificuldade do campo? Levantar intercessores? Pedir ofertas? Saiba o
que deseja com o artigo. Se lhe deram um tema, então seja fiel a ele. Se
for livre, então use de sabedoria e aproveite a oportunidade, mas não
deixe de saber o que deseja despertar nos leitores.

3.2 - Ilustre bem - Use as experiências de forma eficaz. Ao contar


um episódio dê datas, explique o local dando coordenadas claras sobre
onde tudo se passou, diga quem são as pessoas envolvidas e o que
realmente aconteceu. Situar bem o acontecimento no tempo e no espaço
transmite honestidade e transparência e dá ao relato mais eficácia. Se
for necessário, mude os nomes para não causar embaraços ou provocar
perseguição. Lembre-se que seu artigo pode chegar às mãos das pessoas
no seu campo missionário.

3.3 - Seja verdadeiro, mas cuidadoso - Atenção às críticas. Mais uma


vez, alertamos para a necessidade de se ter cuidado sobre o que falamos.
Temos visto casos em que artigos trazem dissabores aos missionários
porque não usaram de discernimento e contaram situações que levaram a
conflitos no campo missionário. Há casos extremos em que um material
publicado impossibilitou o missionário de regressar ao campo, pois entrava
em considerações políticas sobre o regime vigente em seu país de trabalho.
Seja verdadeiro, mas não fale mal. Seja honesto, mas preocupe-se em
edificar com a verdade. Sensacionalismo não fica bem à obra missionária.

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Capítulo X - Informando as bases

3.4 - Escreva bem - Use bem a língua. Escreva em frases e parágrafos


curtos. Se fizer citações, dê os créditos. Leia bons livros e revistas para
adquirir hábitos de boa redação. Ler é fundamental para quem quer usar
bem a sua língua e escrever corretamente.

3.5 - Introduza e conclua bem - Começar e terminar bem é


essencial. Inicie de forma dinâmica e que capte a atenção com uma
frase forte ou uma ilustração que cative. As primeiras linhas são
muito importantes. Desenvolva em razão de seu propósito. Conclua
de forma aplicativa, ou seja, conclua sugerindo ação. Pode ser que
sugira oração, intercessão, dedicação de vida, reflexão sobre missões,
oferta, envolvimento no trabalho local ou em algum projeto. Seja qual
for o alvo, não desperdice o artigo concluindo sem uma aplicação.
Inspire, motive e leve à ação.

Concluindo

o missionário deve ser um bom comunicador. Desenvolva essa arte


lendo e treinando sobre o assunto. Ao fazer um sermão missionário,
procure conhecer o auditório, tenha um propósito definido para a
mensagem, dê seu melhor a cada oportunidade, use bem as ilustrações e
faça uma boa aplicação de modo a levar a congregação à ação. Dependa
do Espírito Santo ao falar e respeite os horários. Nunca fale mal de
seu campo missionário, seja verdadeiro em seu relato e procure falar
das dificuldades sendo, no entanto, positivo. Fuja da vaidade. Escreva
cartas de oração com regularidade para informar e inspirar as igrejas
e intercessores. Preste contas detalhadas a colaboradores especiais.
Respeite aqueles que lhe escrevem procurando sempre que possível
responder. Escreva artigos missionários com propósitos claros e que
levem os leitores ao envolvimento com a obra.

Henrique V é considerado pelos historiadores um dos grandes reis


que a Inglaterra conheceu e um de seus melhores estrategistas de guerra.
Ele era corajoso, decidido, organizado e sonhador. Conseguiu por um
breve período unificar os reinos da Inglaterra e França sob seu poder e
recebeu homenagem dos príncipes alemães que pensavam em fazer dele
Imperador. Foi amado pelo povo, idolatrado por poetas e reverenciado
pelas suas tropas. Seus nobres o consideravam um irmão e, se não tivesse
morrido tão cedo e inesperadamente aos 35 anos, poderia ter mudado o
rumo da história da Europa.

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Antes do ide

No entanto, a vida de Henrique V está ligada de forma inseparável


a um episódio chave, que foi o momento decisivo de sua carreira. Em
agosto de 1415, ele desembarcara na França com 11 mil soldados
decidido a tomar o trono. Teve vitórias fáceis e tomou a importante
cidade de Harfleur. Entretanto, as chuvas fortes de outono e a disenteria
começaram a maltratar seu exército que andou em acampamentos
improvisados por mais de dois meses. Cansados e doentes foram, enfim,
confrontados por um exército francês bem armado, em Azincourt, perto
de Crécy, em 25 de outubro do mesmo ano.

A situação era crítica. Os franceses estavam desesperados por uma


vitória, pois internamente o país encontrava-se dividido e à beira do caos
total, já que o rei Carlos VI era um homem fraco e com longos períodos
de insanidade. O exército francês liderado pelo Delfim, herdeiro do trono,
excedia os ingleses numa proporção de 4 para 1, estava descansado, bem
armado e tinha uma poderosa cavalaria. Os soldados ingleses estavam
doentes, exaustos, sujos e maltrapilhos, sem cavalaria decente e em grande
desvantagem numérica. Poderia ser o fim, mas foi então que Henrique
juntou as suas tropas e fez um discurso que Shakespeare imortalizou em
uma de suas peças. Com palavras de ânimo e encorajamento, ele despertou
a honra de seus homens para a batalha.

No fim do dia havia mais de dez mil franceses mortos, entre os quais
muitos nobres, enquanto os ingleses perdiam apenas mil e seiscentos
homens (menos de dez por cento, segundo Shakespeare) e somente
um nobre de valor, que pedira a honra de liderar o ataque. Tudo porque
um homem conhecia o poder da palavra e usara a comunicação para
inspirar, motivar e levar os seus à ação. Nunca desprezemos o valor da
comunicação.

180
Capítulo XI
E agora?
"O Senhor é a minha rocha, a minha fortaleza, o meu libertador;
o meu Deus é o meu rochedo, em quem me refugio. Ele é o meu
escudo e o poder que me salva, a minha torre alta"
Salmo 18.2

"Podemos ver estrelas estando no fundo de um poço que não


perceberíamos no topo de um monte. Do mesmo modo muitas
lições são aprendidas na adversidade que o homem
próspero nunca sonhou"
Spurgeon

passagem de ano fora admirável e cheia de esperança. Estávamos


entrando num novo ano e numa nova década. Era agora 1 de
janeiro de 1980 e a Igreja da Praia da Vitória, a segunda Igreja
Batista no arquipélago dos Açores em Portugal, decidira construir seu
templo. Seria o primeiro templo não católico naquelas ilhas antes fechadas
ao evangelho. A expectativa era grande e o culto de vigília fora alegre e
de vitória.

Como habitualmente no primeiro de janeiro, acordamos tarde. Tivemos


visitas para o almoço. Um casal que fora fruto do trabalho de meus pais.
Converteram-se com eles, namoraram sob sua orientação e papai fizera o
Antes do ide

casamento. Agora eles viviam no continente e Heitor era o líder nacional


dos Embaixadores do Rei. Estar com eles era bastante gratificante, pois
significava o lado frutífero da obra, o lado que deu certo.

o almoço passou com conversas animadas e algumas piadas. Era


feriado e no início da tarde a tradição açoreana diz que as pessoas devem
sair com suas roupas de domingo e visitar os vizinhos e amigos. As ruas
começavam a encher de pessoas e haveria missa nas igrejas católicas. O
ar estava quente, na verdade estava mesmo abafado, o que não é comum
em pleno período de inverno, mas todos estavam contentes com este
intervalo nos dias de frio.

Passava das três e meia da tarde. Na cozinha mamãe lavava a


louça e na sala papai e vovô batiam papo com o casal visitante. Eu e
minha irmã perambulávamos entre os dois cômodos. Por volta das 3:
45 minha mãe chegou na sala muito pálida e disse: "Estamos tendo um
terremoto". Houve silêncio total e logo percebemos um ligeiro tremor.
Então, ouvimos um barulho terrível que parecia vindo do interior da
terra. Tudo que podíamos imaginar era que um avião errara o rumo
da base aérea americana a poucos quilômetros de nossa casa e estava
caindo na nossa rua.

Dizem que foram apenas uns trinta e poucos segundos, mas para
nós aqueles momentos pareceram horas. O prédio de apartamentos de
apenas três andares tremia como se fosse um brinquedo nas mãos de
uma criança raivosa. Tinha a certeza que era o fim. Estávamos no meio
de algo aterrador e íamos morrer. Ninguém teve capacidade de reação.
Apenas meu avô se deslocou para debaixo do arco na entrada da sala
que era um local realmente mais seguro. Tão misteriosamente como
começara, o terremoto terminou e papai calmamente entoou o coro do
hino "Vencendo vem Jesus". Depois, com voz firme, ele fez uma oração
de louvor e gratidão por nossa vida. Só então saímos de casa.

Os dias seguintes seriam de avaliação dos estragos. Nossa ilha


fora atingida por um terremoto de mais de 7 na escala de Richter, o
que implicava grande destruição. Algumas aldeias foram totalmente
arrasadas. Outras sofreram um pouco menos. Mais de 60% das
habitações da ilha foram destruídas. As imagens que vimos percorrendo a
ilha, atrás do bulldozer que abria a estrada, lembravam os documentários
da Segunda Guerra Mundial. Tudo destruído. Multidões se deslocando
de um lado para outro nas estradas com apenas umas poucas trouxas de

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Capítulo XI - E agora?

roupa. Podíamos ver o interior das casas, muitas delas com os enfeites de
Natal ainda no lugar ou as mesas postas para a refeição.

Se o terremoto tivesse ocorrido durante a noite poderia ter matado


mais da metade da população. Felizmente, na hora em que se deu, o
número de mortos foi pouco mais de cinqüenta. Os desabrigados, no
entanto, eram milhares. Logo surgiriam campos de refugiados em várias
localidades. As pessoas foram abrigadas em tendas, mas o inverno estava
sendo rigoroso, o que tornava muito dificil sobreviver. A chuva, a lama
e o frio tornavam os acampamentos zonas perigosas e a mortalidade foi
alta, sobretudo entre crianças e idosos. Foram precisos anos para que a
Ilha Terceira e as demais atingidas pelo terremoto se recuperassem.

Nossa família foi envolvida completamente por esta catástrofe sem


qualquer aviso prévio e sem saber o que fazer ou como reagir. Uma
crise dessas muda todos os planos missionários, traz medo, ansiedade
e cria problemas logísticos e até de sobrevivência. Crentes ficaram
desabrigados e sem recursos mas, felizmente, e em alguns casos
milagrosamente, nenhum morreu. A construção do templo teve que ser
adiada. Estratégias precisaram sem modificadas e grande parte do tempo
foi consumido para lidar com a crise.

As crises abrem também oportunidades para ministração e para


crescimento individual e como igreja. Vimos que o terremoto foi um
alerta divino que trouxe muitas pessoas à igreja. Foi o ano com maior
número de visitantes em nossos cultos. Por causa da ministração aos
refugiados, muitas pessoas foram alcançadas que, de outra forma, não
teriam ouvido. O testemunho de fé dos crentes e missionários serviu
de incentivo forte para muita gente. Quando eventualmente pudemos
construir o templo, os materiais de construção estavam muito mais
baratos devido a incentivos do governo para a reconstrução das ilhas.
Mas tudo isso envolveu dor, sofrimento e muitas lágrimas.

Cada vez mais, a igreja brasileira está enviando missionários para


regiões de risco. Há uns 30 anos a maioria de nossa força missionária
brasileira estava na América do Sul, perto de uma fronteira com o Brasil
e com acesso relativamente fácil ao nosso território. Hoje, pensamos em
janela 10/40 e povos não-alcançados. Acontece que esses povos estão
em regiões do mundo em que as crises são muito mais freqüentes. Enviar
missionários para esses campos, sem qualquer preparação ou orientação
sobre possíveis dificuldades, é correr riscos desnecessários. As crises

183
Antes do ide

vão acontecer, quer façamos ou não previsão. Um obreiro informado e


preparado terá maiores chances de se sair bem no meio delas, ministrar à
sua volta, permanecer ou regressar ao campo após a crise.

Quando falamos de crise estamos refletindo sobre uma variedade


grande de situações, nomeadamente:

• doenças graves;
• assaltos violentos;
• ataque sexual e violações;
• rapto e assassinato;
• revoltas civis e guerras;
• catástrofes naturais como terremotos, enchentes,
furacões, epidemias ou secas;
• acidentes de aviação e outros;
• morte do missionário.

Alguns pensam que seria bom não pensar nessas coisas. Afinal,
somos missionários e o Senhor mandará seus anjos para nos proteger. Não
tenho dúvida da ação dos anjos em nosso favor. Também não questiono a
capacidade do Senhor de livrar milagrosamente ou não os seus enviados.
A questão é que, apesar disso tudo, as coisas desagradáveis também
acontecem com missionários. Anualmente lemos de raptos, assassinatos,
assaltos, violações, catástrofes naturais, acidentes e guerras onde
missionários foram vítimas. Coisas ruins acontecem a pessoas boas. Isto
é um fato da vida. Coisas ruins acontecem a missionários. Isso também é
um fato. Estar ciente e preparado para lidar com as crises é o verdadeiro
caminho para a solução.

Gostaria de sugerir alguns pontos de prevenção a crises e ação durante


as mesmas. Devo muito deste capítulo ao Plano de Contingência da
Missão WEC Internacional na Guiné-Bissau e ao colega alemão Thomas
Weinheimer. Enfrentamos crises juntos e conversamos muito sobre estes
delicados assuntos.

1. Prevenção para as crises

Pensando em todas aquelas possibilidades que mencionamos, eis


uma lista de coisas a fazer em qualquer contexto para estar preparado no
surgimento de uma crise:

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Capítulo XI - E agora?

1.1 - Informação à Embaixada - O missionário deve estar inscrito


na Embaixada do Brasil no seu país de trabalho. Deve procurar manter
os dados atualizados em sua ficha na Embaixada. Coisas como novo
endereço, novo telefone ou meio de contacto devem ser sempre mantidos
atualizados para qualquer emergência.

1.2 - Documentos separados - Todos os documentos importantes


bem como bens valiosos devem estar guardados em um só lugar. No
meio de uma crise não há tempo para sair procurando documentação.
Esta lista inclui documentos pessoais e os relativos ao trabalho como
títulos de propriedade de veículos ou terrenos e documentação da missão
ou igreja. Perder esses documentos pode significar perder casa, terrenos
ou veículos. Durante a Guerra na Guiné-Bissau, a casa de nossa missão
foi ocupada por militares. Só a conseguimos reaver porque tínhamos
toda a documentação conosco.

1.3 - Combustível estocado - Tenha sempre uns 20 a 40 litros de


combustível em estoque. Numa crise de guerra ou catástrofe natural é
das primeiras coisas que desaparecem do mercado e você pode ficar na
mão. Esta reserva deve ser guardada em segurança e só dispor dela se
realmente for preciso.

1.4 - Rádio - Ter um meio de ouvir notícias pode ser crucial numa
crise. Para se saber o que está acontecendo no país, muitas vezes vai ser
preciso ouvir rádios internacionais como a BBC de Londres, a RFI de
Paris ou a Voz da América. Ter um bom rádio de ondas curtas ou FM (se
for o caso de ter emissões em FM na sua região) é importante. Habitue-se
a ouvir essas rádios. Normalmente têm emissões também em português
em alguns horários.

1.5 - Comida estocada - Pode parecer tolice ficar com comida


guardada, mas muitos têm se alegrado de o ter feito em meio a
dificuldades. Guarde, então, alimentos não-perecíveis suficientes
para umas duas semanas. Devem ficar bem conservados e separados
para uma eventualidade. Verifique os prazos de validade para fazer
as reposições necessárias. Estes alimentos poderão ser salvadores
de vidas.

1.6 - Farmácia familiar - A farmácia, a que nos referimos para a


família no capítulo sobre a saúde, deve ser mantida atualizada, pois,
numa situação de crise, vai precisar e pode não ter onde achar. Servirá

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Antes do ide

para crises mais ligeiras como doenças familiares, mas pode vir a ser
fundamental numa crise maior também.

1.7 - Dinheiro de reserva - Cada mlSSlOnano deveria fazer suas


contas para definir uma verba de reserva a ter em separado para uma
situação de crise. Temos a tendência de descansar no fato de que hoje com
a internet e as transações bancárias rápidas podemos confiar nas nossas
missões. Porém, em muitos países pobres as condições são bem diferentes
e receber verbas pode ser bastante complicado. Quando houve a guerra
na Guiné Bissau, estávamos sem eletricidade, sem água, sem telefone. O
único banco do país estava na capital aonde era impossível chegar. Se não
fosse uma verba previamente separada, teríamos ficado numa situação
muito dificil. Separe, então, uma quantia que entenda lhe servir para uma
evacuação de emergência e procure a todo custo não utilizar essa verba.

1.8 - Mochila ou saco de viagem - Na eventualidade de precisar


fugir a pé, o missionário vai descobrir que suas belas malas de viagem
são de todo inapropriadas para caminhadas longas. Recomenda-se, pois,
que o obreiro tenha uma boa mochila ou um saco de viagem que permita
transportar as coisas essenciais de forma mais confortável. Uma mochila
para 20 ou 30 quilos deve ser suficiente.

1.9 - Relação com missionários - Numa hora de crise vai ser


importante ter a quem recorrer para ajuda ou simples discussão do
que fazer. Se você não estiver sozinho numa ilha (que era o nosso caso
nos Açores), então deve procurar manter boas relações com os demais
missionários de sua região. Em especial, referimos às missões com maior
organização e que estão mais bem preparadas para lidar com crises.
Muitos missionários independentes têm sido socorridos por missões
internacionais em momentos de calamidade. Nesse caso, deixe seus
dados de contacto com a liderança dessa missão e converse francamente
sobre a possibilidade de uma crise no campo. Muito provavelmente vai
achá-los bastante prontos a cooperar.

1.10 - Relação com nacionais - O missionário deve procurar manter


boas relações com as autoridades nacionais e pessoas em posições-chave
como polícia, militares, médicos, advogados e governantes. Isso deve ser
feito independentemente de uma crise. No entanto, essas boas relações
poderão ser muito importantes nas horas dificeis. Muitos são os relatos
de missionários salvos em horas de crise por amigos que tinham em
lugares de destaque.

186
Capítulo XI - E agora?

2. O que fazer numa crise

Na eventualidade de uma crise, há também alguns cuidados que


devem ser mantidos para uma melhor resolução da situação:

2.1 - Não se precipite - Como todo mundo sabe, a precipitação é


má conselheira. Agir rápido raramente será agir bem. Manter a calma é
essencial para que se consiga vencer uma crise. O missionário deve ter em
mente que muito raramente terá que tomar uma decisão de um momento
para o outro. Por regra, há tempo para pensar e calcular a melhor linha de
ação, mantenha a calma e ore. No meio de todas as crises, o verdadeiro
baluarte é o Senhor. Seja qual for o problema, ele é Soberano e vai estar
no controle. Busque o Senhor e entregue a ele a situação. Procure a paz
do Espírito para suas decisões de modo a minorar a dor e o sofrimento
do que está passando.

2.2 - Contate a liderança - Antes de tomar decisões, procure contatar


a sua liderança. Pode ser a liderança nacional da sua missão, se houver, ou
a liderança no Brasil, se for possível. Conte a eles o que está acontecendo
de forma detalhada e completa para permitir uma melhor visão do caso.
Procure obedecer as orientações recebidas o melhor que puder e lembre-se
que sua liderança tem responsabilidade sobre você. Contate a embaixada,
se for caso disso, e veja se eles têm algum procedimento para a situação
que você está enfrentando. Siga suas orientações se verificar que é o mais
viável. Caso você seja o único de sua missão ou igreja, procure um colega
de outra missão que tenha experiência e possa ajudá-lo nessa crise. Procure
não tomar as decisões sozinho, a não ser que seja estritamente necessário.

2.3 - Saco de viagem - Caso conclua que uma evacuação vai ser
preciso, prepare uma mochila ou saco de viagem com os seguintes itens:

- documentos (passaportes, cartões de identidade, documentos de


vacinação, carteira de motorista, certidões de nascimento e casamento,
diplomas, documentos da missão, livro de telefones, cartas e fotos
importantes);
- artigos valiosos (caso tenha, deve levar laptop, máquina fotográfica,
câmera de vídeo);
- dinheiro (leve em dólares e na moeda do país, em notas pequenas e
não junte tudo no mesmo lugar);
- roupas e higiene pessoal (sapatos, roupas leves se for verão, agasalhos
se for frio, chapéu para o sol, toalha, papel higiênico, sabonete, escova e

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Antes do ide

creme dental, guarda-chuva que pode ser também guarda-sol, roupa íntima
sobressalente);
- medicamentos (se possível, leve toda a farmácia familiar, ou pelo
menos um kit de primeiros socorros, remédio para dor e febre, medicamentos
que toma habitualmente, protetor solar, repelente de insetos, tesoura,
bandagens);
- comida e água (comida instantânea, bolachas e chocolates, água
limpa, tabletes de purificação de água, talheres essenciais, abridor de
latas, fósforos, copos de plástico);
- outros (Bíblia, rádio, pilhas, velas, lanternas, caneta, bloco de notas,
faca de mato, agulha e linha).

2.4 - Obedecer à autoridade - Caso sua missão dê ordem de sair,


então saia. Se entender que o Senhor está lhe dizendo que deve ficar,
torne isso claro para a missão. Envie um documento assinado assumindo
as responsabilidades por seu ato e procure informar os familiares
de sua decisão. Nestes casos, o missionário que fica deve pensar na
responsabilidade da missão. Se algo acontecer com ele, a missão
certamente será responsabilizada. As medidas sugeridas são para ajudar
a missão caso algo dê errado na decisão do missionário de ficar.

2.5 - Mídia e autoridades - Numa situação de crise, é preciso muito


cuidado com a mídia. Há uma verdadeira corrida por parte dos jornalistas
a notícias sensacionais. O missionário pode se ver no meio de uma situação
em que é valorizado pelos jornais, revistas e até TV e isso pode lhe custar
caro. Atenção ao que vai dizer. Se pretender voltar ao seu campo depois da
crise passada, deve ter todo o cuidado no que vai dizer. Lembre-se que a
mídia é, muitas vezes, culpada de distorcer o que é dito. Isto, infelizmente,
vale até para a mídia chamada evangélica. Um missionário saído de uma
crise deveria evitar a todo custo falar aos órgãos de comunicação social.
Referi-los à Missão é uma alternativa. Já no caso de autoridades locais, é
preciso que haja total cooperação'. Criar dificuldades às autoridades locais
pode impedir o missionário de regressar ao campo mais tarde e prejudicar a
igreja que fica. No entanto, é preciso também ter cuidado com declarações
à polícia e autoridades. Oração e discernimento serão necessários em
quaisquer declarações.

2.6 - Preparação da igreja local - No caso em que a crise exija a


saída do missionário, quando possível, a preocupação de preparar a igreja
local e dar algum tipo de apoio antes da partida deve haver. É preciso ter
em conta que essa partida poderá ser bastante traumatizante para a igreja

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Capítulo XI - E agora?

que vai ficar. Dar bases espirituais e esperança será importante. Deixar
as portas abertas, também.

2.7 - Confie no Senhor - Queremos repetir que em qualquer crise


Deus continua soberano. Fazer planos e procurar estar preparado
para crises não vai contra isso e de modo algum pode substituí-lo.
Manter a mente no Senhor será a única forma de sobreviver em muitas
circunstâncias. A missionária Helen Rosenveare é um marco na história
das missões médicas na África. No entanto, em 1964 durante a guerra
civil no Congo, ela foi raptada pelos rebeldes e violentada várias vezes.
O que a salvou de um colapso total foi sua fé. Uma biografia diz que
"seu nível de maturidade espiritual deu-lhe completa segurança de que
não falhara com Deus, nem havia perdido de forma alguma qualquer
suposta pureza por causa do estupro"!. Foi essa maturidade que lhe
permitiu, inclusive, ministrar no meio de tanta dor. Como canta o músico
Michael Card, "A fé fecha a boca de leões e dá razão a cicatrizes e
lágrimas"2. Nunca esqueçamos a soberania do Senhor e nossa necessária
dependência dele.

3. Responsabilidades dos enviadores

Cabe aqui uma palavra para com as missões ou igrejas enviadoras. Há


necessidade urgente de que os enviadores estejam preparados para lidar
com as crises. Enviar missionários e não estar minimamente preparado
para enfrentar situações dificeis é faltar com o respeito à vida do obreiro
e colocar em risco o trabalho e as igrejas no campo. Os enviadores devem
ter em conta a periculosidade dos campos para onde estão enviando
seus obreiros e tomar as devidas medidas preventivas para os casos de
calamidade.

Deve haver humildade para reconhecer que, por vezes, não temos os
conhecimentos e a experiência necessária a estas situações. Pedir auxílio
nessa área a uma missão mais antiga e com mais tempo de trabalho não
é vergonha e pode facilitar bastante as coisas. Preparar e editar um plano
de contingência para as urgências é importante de maneira a lidar com
os problemas assim que surgem.

De preferência, a missão deveria ter uma comissão de crise que


esteja sempre disponível para lidar com as situações emergentes do
campo. Os membros desse time estariam acessíveis as 24 horas dos

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Antes do ide

7 dias da semana, pois as crises não escolhem dia e ocorrem também


em feriados, fins de semana e fora do horário comercial. Os contatos
dessa comissão estariam à mão dos missionários para os necessários
primeiros socorros e informações. Eis algumas responsabilidades dessa
comissão:

- Preparar um plano de emergência para os missionários da missão


e ter a certeza de que esses estão bem informados sobre o que fazer em
casos de crise.
- Ter todos os dados dos missionários sempre disponíveis na sede para
qualquer eventualidade. Esses dados incluem os familiares a contatar em
caso de crise e cópias das documentações do obreiro.
- Fazer reuniões periódicas para avaliar a situação de cada campo
numa previsão de possíveis situações de crise.
- Manter contato com o ministério de Negócios Estrangeiros para
evacuações de emergência.
- Ter uma lista de profissionais que possam ser necessários para
auxiliar o missionário como médicos de várias especialidades, advogados,
psicólogos, pastores e conselheiros.
- Estar à frente de quaisquer negociações que sejam necessárias para
resolver a crise.
- Lidar com a mídia e autoridades em relação às crises enfrentadas
pelos missionários.
- Coletar e guardar material que possa ser útil em situações de crise
como artigos, livros ou planos de emergência de outras missões.

Concluindo

Tendo em conta os campos dificeis em que os missionários do Brasil


estão se envolvendo é preciso estar aberto à possibilidade de crises no
campo missionário como guerras, catástrofes naturais ou crises pessoais
como assaltos, doença, rapto, acidentes ou mesmo morte. Prepare-se
para as crises tendo a Embaixada sempre informada de seu paradeiro,
juntando documentos e bens valiosos num só lugar, tendo reserva de
combustível, alimentação e dinheiro, mantendo um bom rádio e mochilas
para viagem. Mantenha boas relações com outros missionários e com os
nacionais. Em situação de crise, mantenha a calma, contate a liderança
da missão, prepare a mochila de viagem para uma possível evacuação,
obedeça às autoridades, tenha cuidado com os da mídia e lembre-se
sempre de que o Senhor é Deus, ele é Soberano.

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Capítulo XI - E agora?

No dia 7 de junho de 1998 estávamos num clima de festa em nossa


missão na cidade de Bafatá, Guiné-Bissau. Tínhamos um projeto para
uma rádio regional. Durante cerca de um ano e meio trabalhamos
duramente para ver esse sonho tornado realidade. Primeiro foi a luta
para obter a licença da rádio junto ao governo. Depois a construção da
casa, que trouxe meses de trabalho árduo. Finalmente a construção do
mastro de cinqüenta metros para a antena. Apenas um técnico no país
inteiro tinha capacidade para montar tal mastro. Esperamos quase dois
meses para conseguir trazê-lo a Bafatá. Finalmente ele viera e fizera o
trabalho. Ali estava o mastro pronto. Nossa alegria era grande. Além
disso, estávamos em ano de férias e dentro de um mês viajaríamos ao
Brasil. Tudo parecia perfeito.

Naquele fim de tarde, ouvimos que houvera um incidente na capital


com troca de tiros e alguns mortos. Pensamos que era coisa local e nem
nos preocupamos. No dia seguinte já se falava em revolta militar e antes
do fim da semana já havia soldados de países vizinhos em confronto
dentro de nossas fronteiras. Refugiados começavam a chegar com
histórias tristes de fome e doenças. Era uma guerra civil. Como poderia
ser? Estávamos indo tão bem. E agora? O que fazer?

Ao contatar nossa missão, enquanto ainda havia telefone, recebemos


carta branca para agir como nos parecesse melhor. A Embaixada não tinha
nenhuma ajuda disponível. Éramos os únicos de nossa Missão no país.
Foram dias dificeis. Minha esposa estava grávida, nosso primeiro filho
estava com apenas 4 anos e eu tinha duas colegas solteiras sob minha
responsabilidade. Tinha também um trabalho emergente, na verdade
embrionário. Eram apenas 5 convertidos ex-muçulmanos batizados, uma
pequena escola com 70 alunos e o consultório médico. O que fazer? Não
dava para ficar. Mas o trabalho conseguiria sobreviver se o deixássemos
nessa fase inicial?

Usamos verbas de nossos projetos para comprar e distribuir cerca


de quatro toneladas de arroz entre os refugiados. Doamos todos os
medicamentos que estavam em nosso consultório, atendendo mais
de 300 refugiados em uma semana. Preparamos os crentes para nossa
saída e oramos muito. Separamos documentos, estocamos combustível
e doamos quase toda a comida que havia em casa. Quando já não
havia condições de permanecer, ouvimos na BBC que os missionários
deveriam deixar o país. Fizemos um culto de despedida, realizamos a
ceia do Senhor e oramos por um regresso rápido. Saímos dias depois.

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A viagem foi dura, 13 horas de viagem, sem descanso. O sul do


Senegal é, em boa parte, deserto. O calor era intenso e a água, escassa.
Havia barreiras militares a cada 40 quilômetros e exigiam todo tipo de
documentação. Sabíamos que ninguém nos esperava em Dakar, pois
nossos colegas tinham passado por sua própria crise há menos de um
ano com um acidente de carro em que perderam a vida três missionárias.
Foi uma verba reservada para a compra de um carro, que nunca foi
comprado, que nos salvou, permitindo chegar a Dakar e pagar as viagens
até Lisboa. Em Portugal, já podíamos receber auxílio da Missão.

Hoje, olhando para trás, vemos que o Senhor teve muita misericórdia.
Não estávamos preparados e ele nos guiou e poupou apesar de todas as
dificuldades. Ficou também a lição de que é preciso outro tipo de atitude
se quisermos enfrentar de forma mais positiva e produtiva as crises que
surgem na obra missionária e que estão fora do nosso controle. Por isso,
prepare-se e não terá que ficar perguntando: E agora?

192
Capítulo XII
Está na hora!
"A sucessão é uma das principais
responsabilidades da liderança"
Max Dupre

"E promovendo-lhes em cada igreja a eleição


de presbíteros, depois de orar com jejuns,
os encomendou ao Senhor em quem haviam crido...
e dali navegaram para Antioquia onde tinham sido
recomendados à graça de Deus para a obra
que haviam já cumprido"
Atos 14.23,26

ndrânico estava consternado. Seu coração ficara confuso com


as notícias que recebera e, como sempre fazia quando estava
nesse estado de espírito, subiu ao topo do monte de onde podia
descortinar toda a cidade. Abaixo de seus pés se espraiava Corinto em dois
planos distintos com seus templos majestosos, o mercado movimentado,
o grande teatro e os magníficos banhos públicos. Dali podia ver os
contornos das muralhas e adivinhava a passagem do Diolkos, a linha de
trilhos de madeira que permitiam a barcos de pequeno calibre passarem o
istmo entre o golfo de Corinto e o golfo Sarânico em terra seca. Nas ruas
repletas de gente se viam muitos gregos mas também soldados romanos
Antes do ide

veteranos, mercadores fenícios e frígios, marinheiros do Oriente e


adivinhavam-se filósofos, artistas e escravos num emaranhado digno da
capital romana da Acaia.

Pouco depois de ter chegado ao local, Andrônico viu seus amigos


Nícias e Policrates se aproximarem. Mandara chamá-los pois o assunto
era urgente. Cumprimentaram-se e quedaram em silêncio alguns minutos
diante do quadro que era a cidade a seus pés. Por fim, num suspiro que
revelava toda sua inquietação, Andrônico revelou:

- Paulo vai deixar Corinto. Vai deixar a igreja.


Seus dois interlocutores se entreolharam com incredulidade e
abanaram as cabeças como que para espantar essa idéia desagradável.
- Tens plena certeza do que dizes? - insistiu Nícias.
- Total, reafirmou Andrônico. Acabo de vir da casa de Cloé e a
questão está decidida. Paulo partirá em questão de dias e levará consigo
Tito, Timóteo, Áqüila e Priscila.

A enormidade da notícia parecia afundar Nícias que procurou uma pedra


saliente no muro próximo para sentar de modo a melhor abarcar os eventos.
Policrates permaneceu calado como que mais conciliado com a informação.
Andrônico continuava agitado e falava quase que para si mesmo.

- Não sei como pode faze-lo. Ele deve saber que a igreja vai sofrer
muito. Pode mesmo ruir. Como sobreviveremos sem o apóstolo? Ele é
nosso mestre, nossa base, nosso alicerce.
- A igreja não está fundada em Paulo, refletiu Policrates tentando
manter a calma. Não foi em Paulo que cremos, foi em Jesus. Não foi
Paulo que morreu por nossos pecados e ressuscitou. Se cremos que Jesus
é o Cristo, então essa é a nossa base com ou sem Paulo.

Nícias olhou o amigo e franziu o sobrolho.


- Tu já estavas informado disso tudo? - argüiu com ar de ofendido.
- Não, reclamou o outro inocente. Apenas comento o que sinto.
- Mas deves reconhecer que Paulo é o nosso mestre, continuou
Nícias. Ele começou a igreja, ele nos ensinou e instruiu. Não há quem
possa falar como ele, não há outro igual, não é possível substituí-lo.
- A questão não é essa, replicou Policrates. Não podemos substituí-
lo e nem devemos querer fazer tal coisa. Outros terão que assumir as
responsabilidades. Serão diferentes, mas têm o mesmo Senhor e o
mesmo Espírito Santo. Paulo nos falou sobre os dons do Espírito. Ele

194
Capítulo XII - Está na hora!

tem muitos dons, mas não é o único que os tem. Outros também serão
bênção para a igreja.
- Outros quem? - quis saber Andrônico.
- Não sei exatamente, disse Policrates. Talvez Crispo, ele está com
Paulo desde o início. Talvez Estefanas. Toda sua família é da igreja. Ou
talvez Tício Justo em cuja casa a igreja começou.

Os outros se quedaram de novo em silêncio. A saída de Paulo era sem


dúvida um problema, mas começavam a ver uma luz no fundo do túnel.
- Corinto é dificil, reclamou Nícias apontando para cima onde se
erguia o famoso templo de Afrodite com suas mil prostitutas cultuais. O
trabalho aqui é muito complicado.
- Por isso mesmo o apóstolo ficou conosco mais de um ano, replicou
Policrates sério. Estava conversando com Timóteo há dias e ele me contou
que raramente Paulo fica mais de três meses em algum lugar. As igrejas de
Filipos, Tessalônica e Beréia tiveram muito menos de sua presença e estão
firmes. Todos os lugares são dificeis, cada um da sua maneira.
- Mas nossa igreja é nova, imatura ainda. Temos vários crentes que
sabem muito pouco e precisam de ajuda, insistiu novamente Nícias.
- E para isso temos aqueles que já atingiram a maturidade, defendeu
Policrates. Sempre haverá gente nova e inexperiente. A igreja nunca será
perfeita. Se esse fosse o critério para a hora da saída, então o apóstolo
ainda estaria na primeira igreja que plantou e nunca teria chegado a nós.
Temos que estar preparados para ficar de pé sozinhos.

Novo silêncio reinou entre eles. O fato parecia inexorável e aos


poucos ia entrando em seus corações. Havia que erguer a cabeça e parar
de lamentar.
- Quando será a partida? - quis saber Policrates.
- Breve, disse Andrônico. Parece que vão para a Síria passando por Éfeso.
O apóstolo quer chegar a Jerusalém e Antioquia que é sua igreja de base.
- Preparemos então uma boa despedida, sugeriu Policrates, e
louvemos ao Senhor pelo que fez por meio de seu servo entre nós.

Este diálogo imaginado fala de um ponto da obra missionária pouco


debatido, mas de grande importância. Nomeadamente a hora de sair.
Vincent Donovan escreve que "havia algo de definitivamente temporário
sobre o tempo de trabalho missionário de Paulo em um lugar. Há algo
de fatalmente permanente no nosso"!. Hesselgrave concorda, quando
diz que "Paulo não acreditava que sua presença fisica era crítica para o
sucesso das novas congregações em tomar posição a favor da verdade

195
Antes do ide

e em avançar em Cristo"2. Por isso cremos que o diálogo na introdução


deste capítulo não é de todo improvável. O apóstolo ficava pouco tempo
em cada lugar. Sua visão era clara. Procurava implantar a igreja, instruir
os crentes, definir liderança e passar adiante. Paulo era um missionário e
missionário não é árvore. Árvores nascem, crescem e morrem no mesmo
lugar. Missionários fazem seu trabalho e seguem adiante.

Pode parecer estranho falar de saída do campo num livro que pretende
preparar candidatos antes de irem para o campo. Alguém pode objetar:
"Falar de saída antes de chegar?" Mas é exatamente aí que reside nossa
tese. Se o candidato tiver uma visão clara de sua tarefa, então deve
também planejar a saída. "A estratégia sadia para a plantação de igrejas
transculturalmente deve incluir planos para a retirada e a nova alocução
do obreiro pioneiro. Na maioria dos casos, é quase tão importante que
os pioneiros saibam quando e como deixar uma obra nova, como saber
quando e como empreendê-la no início", escreve Hesselgrave 3 •

Há essencialmente duas formas de sair do campo. Uma é a indesejável


e pode ser chamada de retorno prematuro. É a saída antes da hora, antes
de ter realizado o trabalho, antes de ter visto a visão cumprida. É a saída
forçada por acontecimentos que normalmente estavam fora do domínio
do missionário. De certa forma, falamos sobre esse tipo de saída até aqui
em todos os capítulos deste livro procurando maneiras de evitá-la.

Há, no entanto, uma outra forma de sair. É a saída na hora certa.


Quando é certo sair, é bom e até imperativo sair. É desse tipo de saída
que pretendemos falar aqui. Antes de mais nada, reconhecemos que este
conceito de saída exige que se responda a uma questão: O que é trabalho
missionário? Se falamos de missões como algo realizável e terminável,
então precisamos definir os termos.

1. Trabalho missionário

Esta é uma questão delicada. Há muita gente trabalhando em missões,


mas quantos poderão responder claramente a esta questão? No entanto,
trabalhar em algo que não podemos definir, pode trazer confusão e
certamente torna o trabalhador propenso a sentimentos de frustração.

O Mestre nos deu ordens claras de anunciar o evangelho, fazer discípulos


e sermos testemunhas. Em certo sentido esse é o trabalho de missões. Mas

196
Capítulo XII - Está na hora!

aquele que foi considerado o primeiro missionário deixou um padrão de


formação de igrejas bastante definido. Logo, defendemos com David
Hesselgrave que "a missão primária de Paulo era cumprida quando o
evangelho era pregado, os homens eram convertidos, e igrejas estabelecidas"4.
Concordamos que "proporcionalmente, uma ênfase grande demais tem sido
dada à multiplicação dos convertidos e uma ênfase totalmente insuficiente à
multiplicação das congregações"5. Larry Pate define que "ganhar um povo
de cada vez quer dizer estabelecer igrejas em meio à sociedade de cada etnia
e esta é a única forma eficaz de ganhar o mundo para Cristo"6.

Aí está a definição: A obra missionária é a de implantar igrejas em


cada etnia.

Tudo o que for feito nesse sentido será entendido como missões.
Sendo assim, evangelização pode ser missões se contribuir para a igreja.
Do mesmo modo projetos sociais serão válidos, desde que não percam
de vista que estão a serviço do estabelecimento de igrejas e não subsistem
por si só. Ganhar pessoas e multiplicar convertidos sem uma igreja onde
possam ser inseridos é, em grande parte, improdutivo. E, infelizmente,
temos visto esse princípio vigorar na prática em muitos campos.

Concluímos que a obra missionária é acabável. Uma vez estabelecida


a igreja e treinados os líderes, o missionário pode seguir adiante para
novo campo. Era isso que Paulo fazia e esse foi em boa parte o segredo
de seu sucesso. Neste particular a obra do missionário é bem diferente
do trabalho de um pastor. O trabalho pastoral por definição é inacabável.
Enquanto houver ovelhas, haverá trabalho. O missionário, no entanto,
pode ver seu trabalho como terminável. Surge então nova questão: Por
que tantos missionários ficam no campo?

1.1 - As razões para não sair - Antigamente a noção do trabalho


missionário era de "uma vida, um campo". Esperava-se que o missionário
ficasse a vida toda num campo e só saísse dali para a aposentadoria ou
morte. Hoje queremos ser mais dinâmicos e temos um desafio de alcançar
o mundo. Temos falado de povos não-alcançados e da possibilidade de os
alcançar dentro de uma geração. Para isso temos que olhar mais a obra
como terminável. Há, todavia, alguns que relutam em sair de seus campos.
Por quê? Eis algumas respostas:

a) Dependência financeira do campo - Há situações em que o trabalho


missionário está fundamentado sobre verbas que chegam ao campo por

197
Antes do ide

intermédio do missionário. Sua saída acarretaria o fim dessas verbas e isso


poderia ser fatal para o trabalho. Nessas circunstâncias, o missionário
sente-se "obrigado" a continuar, pois sabe que sua saída seria a morte do
trabalho. A solução dessa situação é não criar esse tipo de dependência,
mas procurar o auto-sustento como meta desde o princípio.

b) Incapacidade de delegar responsabilidade - É o caso em que


o missionário faz sempre todo o trabalho. Ele "chuta, defende, apita,
marca no placar e ainda solta os foguetes". Não houve preocupação
em treinar nacionais para o trabalho e muito menos delegação de
autoridade ou responsabilidade. Nesses casos também, a saída
do missionário seria o fim da obra, pois não houve treinamento e
ninguém tem condições de assumir. Logo, o missionário vai ficando e
se eternizando no trabalho.

c) Medo de regressar - Há casos em que a situação do missionário


no campo é relativamente estável. Ele tem um sustento garantido e é
reconhecido em sua terra como um herói. Regressar seria perder esse
estatuto. Em alguns casos, o obreiro está a tanto tempo no campo que seu
país lhe mete mais medo que o campo onde vive. Pior ainda é o medo
da insegurança financeira, pois, certas vezes, o regresso pode ser uma
grande incógnita. O missionário não sabe como vai se sustentar e teme
ficar desempregado num país que ele já não conhece muito bem.

d) Medo das instituições - Aqui o medo se concentra no que


as instituições irão dizer. As igrejas podem não entender a saída do
missionário. A agência enviadora pode não ter mais interesse nele, uma
vez fora do campo. O missionário pode até ter como se sustentar, mas
teme as conseqüências sociais e de reputação, caso deixe o trabalho
missionário onde está.

e) Coração pastoral- Uma causa relativamente comum para não sair


é o coração pastoral do obreiro. Como vimos, o trabalho pastoral nunca
termina. O missionário chegou àquele campo como verdadeiro pioneiro.
Fez o trabalho inicial como evangelista e foi vendo os frutos. Batizou,
treinou, integrou, dirigiu e, a certa altura, a igreja estava estabelecida e
pronta para avançar sozinha. Mas aí, o coração pastoral do missionário
tomou conta e ele passou a pastorear a igreja. De certa forma é bastante
natural, mas na prática quer dizer que houve uma abdicação da obra
missionária. Não podemos aqui classificar isto de certo ou errado, apenas
verificar que acontece.

198
Capítulo XII - Está na hora!

2. Princípios para uma saída saudável

Tendo, então, concluído que há momentos em que a saída do missionário


é boa e até recomendável; tendo concluído que o trabalho missionário
é acabável e que em várias ocasiões permanecer pode ser prejudicial,
vejamos alguns princípios que podem ajudar no planejamento de uma saída
saudável.

2.1 - Planejamento a longo prazo - Falar de planejamento a longo


prazo num capítulo sobre saída pode novamente soar contraditório. Na
verdade, porém, é planejando o trabalho a longo prazo que se pode
pensar em saída. Se o missionário simplesmente faz o trabalho dia a dia
sem metas e sem propósitos definidos, vai ser dificil entender quando
chegou o momento de sair. Sem um planejamento não há como definir
se os alvos foram ou não-alcançados. Se, porém, houver metas claras, é
possível perceber o fim de uma etapa e o momento da partida saudável.

o missionário não deveria pensar em seu trabalho como algo que


se fará rapidamente. Fora os casos de trabalho de curto prazo, em
que o obreiro vai por apenas alguns meses, o missionário entre povos
não-alcançados deve pensar a longo prazo. Só o aprender a língua e
a cultura vão tomar provavelmente todo seu primeiro período. Um
segundo período será preciso para ver alguns resultados. Se falarmos
em implantação de igreja e treinamento de líderes, então temos que falar
em pelo menos três períodos, o que abarca 9 a 12 anos para um trabalho
entre não alcançados. Haverá casos em que poderá ser mais rápido,
outros poderão ser mais lentos. De qualquer forma pensar em algo que
leva 10 anos é diferente de um trabalho de 2 ou 3 anos.

Planejar a longo prazo ajuda o missionário a relaxar um pouco. O


sentido de urgência, que muitas vezes toma o missionário, se torna menos
premente se ele pensa em algo que vai levar uns 10 anos a construir. Por
outro lado permite ajustar a vida familiar, estudo das crianças e estruturas
a construir. Devemos reconhecer que o trabalho transcultural com povos
não-alcançados é demorado e só será feito realmente por missionários
que estejam dispostos a pagar o preço do longo prazo.

Planejando assim, será possível pensar em saída. A meta de ter uma


igreja com líderes locais capazes de levar a obra adiante é bem definida e
alcançável. Uma vez chegando a esse patamar, o missionário deve organizar
sua saída de forma suave e tranqüila. E a hora de dar a vez aos autóctones.

199
Antes do ide

2.2 - Passar o bastão - Tem se comparado o trabalho missionário a


provas de atletismo. Quem o faz sempre realça que fazer missões está
muito mais para maratona do que para 100 metros. Há, porém, uma
outra prova atlética que é diferente das demais em vários aspectos e
que me parece melhor para exemplificar a obra de missões. Trata-se do
revezamento 4x400 metros.

Nessa prova participam equipes e não atletas solitários. Missões é


feita em equipe, dificilmente será realizada por indivíduos isolados. No
revezamento há vários atletas que não chegam a ver a meta. Eles correm,
mas não vêem o fim da prova. Em missões, segundo Paulo, "Eu plantei,
Apolo regou, mas o crescimento veio de Deus" (lCo 3.6). Ou seja,
revezamento. Um planta, outro vem mais tarde e rega, outro ainda será o
que vai colher. Pode ser que o que plantou não veja a obra até o fim, mas
não foi menos que o que colheu. Ele foi fundamental no resultado final.

No revezamento, as obrigações do atleta são duas, primeiro correr


o melhor que puder na sua vez à volta do estádio e segundo, passar
o bastão nas melhores condições possíveis ao próximo corredor. Em
missões devemos dar o nosso melhor na graça de Deus. Dar todo nosso
ardor, conhecimento e capacidade nas mãos de Deus parafazer a obra e,
quando o tempo chegar, passar o bastão o melhor possível ao próximo.
Essa visão ajuda a enfrentar a saída com menos dramatismo. Não é um
abandono da obra, se for feito com consciência de missão cumprida e
sem deixar cair o bastão. Outros correrão depois de nós. Talvez melhor,
talvez não, certamente de maneira diferente, mas com a bênção do
Senhor da obra o trabalho há de frutificar.

2.3 - Passando o bastão para um colega - Em muitos casos a saída


implicará deixar o trabalho nas mãos de outro missionário. Como proceder
nesse caso? A regra de Jesus é sempre válida: "Aquilo que quereis que os
outros vos façam, fazei-lhes vós também". Como gostaríamos de receber
um trabalho? O que gostaríamos de ver? Então façamos o possível para
deixá-lo assim nas mãos de outros. Alguns pontos importantes serão:

- Entregar documentação completa referente à obra de modo a facilitar


a vida do colega que vem e que pode não conhecer os contornos da obra;
- Deixar todas as contas saldadas e claramente identificadas com
relatório financeiro específico para que não fiquem dúvidas. Isso inclui
contas pessoais e contas referentes ao trabalho;

200
Capítulo XII - Está na hora!

- Deixar informação referente a crentes em disciplina ou que tenham


alguma situação pendente. Há casos em que essas pessoas tentam se
aproveitar de um novo obreiro que desconhece seu passado. Essas
informações podem prevenir desastres futuros;
- Procurar deixar boas condições logísticas para o colega. Em campos
do terceiro mundo a vida é dura. Por vezes o missionário levou anos a
criar estruturas que lhe permitem viver melhor como poço ou furo de
água, gerador para luz ou placas solares etc. Deixar estas estruturas à
disposição de quem vem, pode facilitar bastante a vida e a integração;
- Não esperar que o novo obreiro seja igual a nós. O trabalho não
precisa de outro igual, mas de um obreiro consagrado e nas mãos de Deus.
Lembre do quanto Josué era diferente de Moisés. Certamente haveria no
povo homens mais parecidos com Moisés. Josué era totalmente diferente.
Mas era também uma nova etapa da obra e os requisitos para a obra eram
outros. Não busque semelhança, apenas fidelidade;
- Não interferir no trabalho depois que passou o bastão. Nas corridas de
revezamento seria considerado louco o atleta que depois de passar o bastão
continuasse correndo e tentando corrigir o colega. Também em missões é
assim. Sair é sair. Então saia e deixe o novo corredor fazer a sua parte.

2.4 - Passando o bastão a um autóctone - Por vezes aprendemos


lições importantes no modo como os filhos do mundo fazem seus
negócios. Foi Jesus que ensinou na parábola do administrador infiel: "E o
senhor elogiou o administrador infiel porque os filhos do mundo são mais
hábeis na sua própria geração do que os filhos da luz" (Lucas 16.8 ). Uma
lição dessas nos vem da maneira como dois diretores de empresa deixaram
suas empresas.

São dois gigantes mundiais. A Ford Motor Company e a Coca-Cola


Company. Henry Ford era um líder forte e visionário. Fez em sua vida coisas
grandiosas, mas não sabia delegar autoridade. Na verdade, seus biógrafos
contam que sabotava novos valores que surgiam na empresa. Parece que
os via como concorrência numa espécie de "Síndrome de Herodes". Como
esse rei da Antigüidade, Ford acabava eliminando possíveis colaboradores.
Quando seu filho tomou a liderança, ele não lhe deu espaço de manobra.
No momento da morte de seu filho, quando o neto Henry Ford II assumiu a
companhia, eles tinham perdas calculadas em 1 milhão de dólares por ano.
Ford não soube sair bem, porque não sabia delegar autoridade.

O cubano Roberto Goizueta tornou-se presidente da Coca-Cola


em 1981. Ele fora escolha pessoal do patriarca da companhia Robert

201
Antes do ide

Woodruff. Quando assumiu a presidência, a empresa valia 4 bilhões de


dólares. Sob seu comando subiu esse valor para 150 bilhões de dólares.
Não admira que fosse considerado um dos maiores homens de negócio
do mundo. No entanto, ainda em plena força física, foi-lhe diagnosticado
um câncer do pulmão e seis semanas depois estava morto. As ações da
Coca-Cola, porém, não sofreram nada e a empresa continuou crescendo.
A razão disso é que anos antes de adoecer, Goizueta já escolhera e
treinara Doug Ivester para sua sucessão 7 •

Herschel Hobbs escreveu que "toda pessoa que funda um movimento


destinado a passar no teste do tempo tem que se empenhar seriamente na tarefa
de ensinar àqueles que virão depois dele"8. Goizueta fez isso, Ford não. Suas
empresas sentiram a diferença. Na obra missionária é assim também. Larry
Pate realça que "ao estabelecer uma nova igreja, o evangelista transcultural
não deve deixar de estimular os crentes a assumir toda a responsabilidade que
possam para com a obra de Deus'''!. Logo, é importante que o missionário
treine e delegue autoridade. Essa é a forma bíblica de a obra crescer e faz parte
essencial da preparação para a saída do missionário.

Será interessante notar aqui que Jesus apenas ficou três anos em ministério
público, mas desde o princípio esse ministério passou pelo treinamento de
seus discípulos de forma intensiva. Mais ainda, Jesus delegou autoridade a
esses discípulos com pouco mais de um ano de treinamento. Poderíamos
mesmo discutir qual era o estado espiritual dos discípulos quando Jesus os
enviou a pregar. Saberiam eles bem quem era Jesus? Poderíamos considerá-
los crentes? Sabemos que o Espírito ainda não descera, mas mesmo assim
foram enviados. Diz-se que só os líderes fortes têm coragem para delegar.
Jesus era o líder perfeito; ele treinou e delegou.

Paulo era um missionário dinâmico. Em seu ministério plantou dezenas


de igrejas e alcançou regiões extensas. Mas não o fez sozinho. Ele treinava
jovens como Timóteo e Tito e delegava aos presbíteros escolhidos pelas
igrejas recém-formadas a responsabilidade de continuar a obra. Se ele
fosse missionário de uma de nossas missões de hoje provavelmente teria
problemas com isso. Diriam que era loucura deixar tão cedo a obra e
delegar tão depressa. Não queremos entrar em discussões pormenorizadas
desse ponto, mas devemos reconhecer que esse era o procedimento do
apóstolo e temos muito que aprender com ele.

Já falamos em capítulo anterior sobre o treinamento de obreiros


autóctones e o que se deve esperar deles. Queria apenas realçar que

202
Capítulo XII - Está na hora!

treinamento não é clonagem. Ou seja, não devemos pretender que os


obreiros nacionais sejam iguais a nós. Eles serão necessariamente diferentes
e isso é bom. Na verdade são interessantes e mesmo impressionantes os
conceitos e percepções que os nacionais terão da obra e da Palavra. Sua
maneira de ver é outra. Sua cosmovisão não é a nossa. Eles estão bem mais
próximos da cultura local do que nós. Sua forma de comunicar será mais
natural e sua forma de dirigir tenderá a ser mais contextualizada. Sendo
assim, a obra tem muito a ganhar com eles. A idéia de que a obra perde
com a saída do missionário só é verdade se há dependência financeira e se
deixou de dar treinamento.

Passar o bastão então vai implicar duas possibilidades. A mais comum


é a passagem seguida da saída do campo. Nesse caso, como no caso de
se passar o trabalho a um colega de missão, é necessário confiar e cortar
o cordão umbilical. Ficar em constante contato com o campo e tentar
resolver os problemas que surgem lá de longe não é bom. Há situações
em que o obreiro deixa fisicamente o campo, mas o coração fica lá. Isso é
natural e até bonito, mas não deve permitir que haja interferência na obra.
O novo líder tem que ter liberdade de tomar suas decisões e até de errar.
É um pouco como um filho que casa. Não dá para ir com ele na lua-de-
mel para corrigir os erros. Um pai que interfere demais acaba se tornando
prejudicial. O missionário que sai deve orar pela obra, estar disponível a
ajudar quando solicitado, mas deve evitar intervir demasiadamente. Aqui
novamente o exemplo de Paulo é decisivo. Ele deixava a igreja e confiava
nos novos líderes. Após sua saída mantinha um coração preocupado e
um espírito de oração pelas igrejas que fundara. Eram como filhos que
deixara. Quando solicitado ou em face de problemas graves, escrevia
cartas de exortação. Recebia também ajuda dessas igrejas em forma de
pessoas e bens. Visitava para edificação mútua e intervinha apenas em
casos extremos de necessidade urgente. Sigamos esse exemplo.

A outra possibilidade para o missionário que passa o bastão é ficar


num papel secundário de apoio. Stott faz referência a isso quando
escreve que "alguns missionários impedem que a igreja nacional se
torne independente. Mas, uma vez estabelecida a identidade da igreja,
os missionários estrangeiros serão bem recebidos como hóspedes,
para trabalharem sob a liderança nativa, para oferecer suas habilidades
especiais e para demonstrar a natureza internacional da igreja"lo. Essa
possibilidade existe, mas deve ficar claro que é dificil, especialmente para
o pioneiro, ficar e ocupar posição secundária. Será necessário um caráter
muito especial para fazer isso e não creio que seja para a maioria.

203
Antes do ide

Lembremos, enfim, que a passagem do bastão é algo que deve ser


natural, sem dramatismos e até com alegria. É sinal de crescimento, é
sinal de vitalidade. Afinal, como diz Hesselgrave: "O teste crítico da obra
do plantador de igrejas é a capacidade da igreja fundada de sobreviver à
sua partida e continuar o ministério" I'.

2.5 - Ano sabático - Uma outra forma de saída que deve ser
considerada aqui é a saída estratégica. Creio que o conceito de ano
sabático tem a ver com o conceito de retirada estratégica nas batalhas.
Muitas vezes batalhas importantes foram ganhas porque um general
soube retirar-se estrategicamente e reagrupar para a vitória. Na Bíblia
vemos que o ano sabático deveria permitir que a terra tivesse descanso,
o que mais tarde resultaria em maior produção (Levítico 25.4). A idéia
é descansar para não exaurir a terra. Descansar antes de esgotar os
recursos. Esse é o conceito para o missionário também.

Quando pensamos em campos onde estão os povos não alcançados,


estamos falando de condições de vida bastante difíceis. Um ano nesses
campos equivale a dois em outros lugares. A simples sobrevivência é
difícil, a tensão política é grande, o choque cultural é forte e os resultados
tendem a ser escassos. Tudo isso exaure o missionário. Normalmente
suas "férias" são uma correria de visitas a igrejas para testemunhar e
ver familiares e amigos. Não é incomum que volte mais cansado do que
quando saiu de férias. É nesse contexto que o planejamento de um ano
sabático pode ser muito importante e proveitoso tanto para o missionário
quanto para sua família.

Esse período que pode ser de um ano mais ou menos, será para descanso,
mas também, e sobretudo, para reforço da visão, refrigério espiritual,
reciclagem intelectual. Se o missionário é profissional de alguma área,
é provável que precise de reciclagem como será o caso de professores,
enfermeiras, médicos, engenheiros e outros profissionais. Fazer um curso
ou ampliar conhecimentos poderá ajudar. Tudo com moderação e com o
objetivo de dar ao missionário mais força e vontade no regresso ao campo.
Esse período deve ser negociado com a missão ou a igreja sustentadora.
Há que fazer preparativos sobre onde ficar, onde as crianças vão estudar, se
houver crianças, e que cursos ou reciclagens fazer. Esta saída "estratégica"
pode ser muito útil e, em muitos casos, salvadora porque vai permitir ao
missionário continuar na obra. Infelizmente muitos têm aberto mão dessa
estratégia e diminuído seu tempo de serviço no campo. Trata-se de um
conceito a ter em conta com muito carinho.

204
Capítulo XII - Está na hora!

Concluindo

A obra de missões é terminável. Trata-se de um trabalho que tem


por objetivo a instituição de comunidades que possam se autodirigir. O
missionário deve ter como prioridade a plantação de igrejas autóctones e
esse trabalho é acabável. Uma vez terminado, o obreiro deve seguir em
frente. Para que isso aconteça é preciso que se planeje o auto-sustento da
obra e se treine liderança capaz de dar continuidade à obra. A passagem
do testemunho poderá ser feita para outro missionário mas, talvez,
preferencialmente para obreiros autóctones e então o missionário seguirá
para outro campo, para um novo ciclo de plantação de igrejas.

Era uma vez uma comunidade à beira-mar. Viviam com grande


dificuldade. A fome e a morte eram companheiras diárias. Não conheciam
as riquezas do mar e nem sabiam como tirar partido dele. Ouviam histórias
antigas sobre isso, mas ninguém ousava tomar uma decisão, até porque não
sabiam como proceder. Deixavam a vida correr desse modo entregues a um
destino cruel.

Um dia chegou a essa comunidade um estranho. Era diferente em


quase tudo. Estabeleceu-se entre eles e começou a aprender sua língua.
Tinha costumes esquisitos e tudo nele inspirava cuidado. Mas era
simpático e tinha boa vontade. E à medida que aprendia a língua, ia lhes
falando sobre o mar e suas riquezas. Relatava verdadeiras maravilhas
sobre o que o mar escondia e como era possível viver dele. Falava de
uma nova vida que estava acessível àquela comunidade se ao menos
experimentasse.

Certa manhã, depois que o estranho já morava ali fazia um bom


tempo, derrubou uma árvore do mato e começou a fazer uma canoa.
Todos acharam aquilo estranho ou ridículo. Alguns, porém, foram ver
o que ele fazia e com paciência o estrangeiro lhes mostrou o que estava
preparando e lhes contou como fazê-lo. Depois de pronta colocou a
canoa na água e partiu. Desapareceu no horizonte e todos pensavam
que nunca mais o veriam, mas voltou no fim da tarde com o barquinho
cheio de peixes. Foi um alvoroço total. Quando o estranho os convidou a
comer de sua pescaria a maioria recusou. Apenas uns poucos aceitaram e
afirmaram que o peixe era delicioso.

A história foi se repetindo. O estranho saía, pescava, voltava,


cozinhava os peixes e os mais chegados a ele comiam. Aos poucos

205
Antes do ide

ia ficando claro que os que comiam dos peixes estavam mais fortes e
dispostos, não ficavam doentes e pareciam mais espertos. Finalmente
um deles encheu-se de coragem e embarcou com o estranho. Voltou
entusiasmado falando das maravilhas do mar e outros resolveram sair
com o estrangeiro.

Passados meses várias canoas saíam ao mar. O estranho ensinara a arte


de construir canoas e treinara os nativos na pescaria. Cada vez havia mais
peixe e a comunidade ia sendo transformada. As doenças diminuíram, as
crianças agora brincavam com mais alegria e até os anciãos sentiam as
forças renovadas.

Numa tarde, tão misteriosamente como chegara, o estranho partiu.


Houve tristeza na comunidade. Já o consideravam um deles. Haviam
aprendido tanto e vivido por tantas situações.

Houve algum choro e muita lamentação, mas à medida que os dias


passavam a fome apertou e as canoas se fizeram ao mar sem o estranho,
que agora já não podia ir com eles. Foram, pescaram, e voltaram com
o precioso alimento. A comunidade nunca mais seria a mesma. Tinham
descoberto vida no mar e agora sabiam como tirar partido disso. Tinham
sido treinados a fazer canoas e a pescar e cozinhar os peixes. Mesmo
sem a presença do estranho, a pescaria continuou e descobriram até que
alguns deles eram melhores pescadores que o estranho.

Os anos se passaram e a comunidade cresceu. O núcleo de pescadores


também se desenvolveu. À noite, à volta da fogueira, os velhos contavam
às crianças a história de um estranho que viera até eles um dia e lhes
ensinara a pescar. Ele trouxera vida à aldeia e nunca seria esquecido.

206
Capítulo XIII
Sucesso ou fracasso?

"Irmãos, quanto a mim, não julgo havê -lo alcançado;


mas uma coisa faço: esquecendo das coisas que
para trás ficam e avançando para as que estão diante
de mim prossigo para o alvo, para o prêmio da
soberana vocação de Deus em Cristo Jesus"
Filipenses 3.13,14

"Sucesso é conhecer o propósito de sua vida, crescer para


alcançar seu potencial e lançar sementes que beneficiem outros"
John Maxwell

le deixou a convivência com os colegas da missão e abandonou a


própria vida em sociedade. Foi para a selva próxima e construiu
uma tosca cabana passando a viver como um recluso. Meramente
sobrevivia passando horas a fio sentado, com o olhar vazio cheio de
pensamentos negros como um dia sem sol. Chegou a ponto de abrir uma
sepultura para si mesmo e velar ao lado desta com idéias de morte. Estava
tão desolado espiritualmente que chegou a declarar: "Deus é para mim
o Grande Desconhecido, creio nele, mas não consigo encontrá-lo"'. Foi
Antes do ide

dito dele que "até o fim de sua vida oscilou entre a serena confiança cristã
e uma mórbida introspecção acompanhada de um estado depressivo que
quase atingia o desespero"2.

o parágrafo anterior não descreve um mlSSlOnano fracassado e


derrotado mas, sim, um dos mais famosos de todos os tempos, conhecido
de todos os estudantes de missões - Adoniran Judson. Na verdade, muitas
histórias como essa surgem nos anais da História das Missões. Hudson
Taylor, por exemplo, escreveu a certa altura: "Eu odiava a mim mesmo,
odiava meu pecado, todavia não tinha forças contra ele"3. Os biógrafos
de Taylor reconhecem que ele só não teve um colapso total nessa altura
porque Deus providenciou o apoio oportuno de um amigo fiel.

Lottie Moon, a "Santa Padroeira das Missões Batistas do Sul", como


lhe chamam alguns, caiu em depressão tão grande que deixou de comer
e foi essa abstinência que a levou à morte. Gladys Aylward, que foi
imortalizada no cinema por Ingrid Bergman, teve a certa altura períodos
de desorientação mental tão grande que saía de casa e não conseguia
achar o caminho de volta.

Nada do que acabamos de relatar desabona do trabalho gigantesco


e valioso feito por esses obreiros. Nenhuma de suas dificuldades fez
com que deixassem de ser conhecidos como missionários de sucesso e
marcos na História de Missões. Saber de suas lutas, no entanto, nos ajuda
a entender que missionários são homens e mulheres de carne e osso;
também desanimam, sentem raiva e se deprimem. Esse reconhecimento
é importante para aqueles que estão seguindo para o campo e um dia
poderão passar por todas essas dificuldades e sentimentos.

Quando garoto, no culto doméstico em nosso lar, mamãe lia trechos do


livro "Heróis e mártires da obra missionária", de João Vareto. Nesses relatos
os homens de Deus eram sempre seres supra-humanos, cheios de virtudes e
dotados de perseverança sem limite. Eram heróis, vencedores, sem defeitos,
só qualidades. Bem mais tarde ganhei de um pastor amigo o livro " ... Até os
confins da terra", de Ruth A. Tucker. Corri a ler o que ela contava sobre meu
herói favorito - David Livingstone. Qual não foi minha surpresa ao notar
que havia várias críticas duras ao meu campeão, principalmente referentes
à vida familiar. Fiquei indignado. Abri outras partes do livro que falavam de
missionários conhecidos e tornei a encontrar os tais trechos críticos. Fechei
o livro e o coloquei de lado. Pensava comigo: "Quem é esta autora que ousa
denegrir a vida destes santos homens de Deus?"

208
Capítulo XIIl- Sucesso ou fracasso?

Foram precisos mais uns anos e algumas decepções no campo para


reabrir Ruth Tucker e descobrir que seu livro não é só um relato fiel da
vida dos missionários, mas um verdadeiro auxílio àqueles que estão no
campo hoje. Descobri nos erros de meus heróis que eles eram humanos
também e o que eu estava sentindo não me desqualificava para a obra,
mas me colocava em boa companhia.

Vivemos num mundo de constantes comparações e terrível competição.


Somos sujeitos à avaliação contínua e a expectativa é alta. Se não conseguimos
produzir no campo o mesmo nível de resultados que se vê no Brasil, logo vêm
as cobranças e criticas. Mas a verdade é que os campos missionários não são o
Brasil. Os resultados dificilmente serão os esperados, as desilusões se seguirão
e as lutas serão ainda mais avassaladoras. O missionário, como ser humano
que é, se cansa, se desanima e então se julga um fracasso. Muitos têm deixado
o campo sob o peso de uma derrota mal explicada. Uma sensação de vergonha
enche seus corações e nem sabem muito bem como começar a entender o que
aconteceu. Voltam ao Brasil tristes e desamparados e abandonam qualquer
idéia de regressar a missões, por vezes deixando até de freqüentar uma igreja.
Muito disso tudo passa por uma compreensão errada do que é sucesso e do que
é fracasso no campo missionário.

Temos criado um sistema de valores que avalia mlssoes como os


demais aspectos da vida, com base em números. Essa avaliação do trabalho
missionário perde de vista que cada contexto tem suas particularidades e é
verdadeiramente impossível comparar dois trabalhos missionários. De um
campo para outro muda tudo; a cultura, a dificuldade do povo, a preparação
daquela etnia para a recepção da Palavra, a preparação do missionário,
as estratégias usadas, os dons e talentos pessoais das pessoas e o próprio
ambiente vivido na época em análise. Tudo isso e muito mais influencia os
resultados. Avaliar secamente os números só traz frustrações e injustiças.

Por outro lado, a avaliação numérica não é aquela que a Bíblia nos diz
que o Senhor fará. Nas parábolas sobre o trabalho dos servos o Senhor
avaliou resultados numéricos diferentes com a mesma aprovação (Mateus
25.14-30) e igualmente. Ele valorizou tempos diferentes de trabalho com o
mesmo prêmio (Mateus 20.1-16). O Senhor tinha um método de avaliação
diferente do nosso. Talvez por isso David Wilkerson escreva que:

"Quando comparecermos perante o trono do juízo, não seremos


julgados pelo número de curas que realizamos, ou por quantos
demônios expulsamos, ou pelo número de orações que vimos

209
Antes do ide

respondidas ou por quantas grandes obras realizamos. Seremos


julgados com base em nossa dependência e obediência à Palavra e
à vontade de Deus "4 .

Precisamos também entender que o sucesso não está ligado a um


momento ou a uma ocasião. Para nós a palavra sucesso lembra sempre
a vitória num jogo ou o primeiro lugar numa corrida. Mas o sucesso é
muito mais do que isso. Não se mede numa hora ou num momento. "A
realização de seu destino não vem num momento, num mês ou mesmo
num ano, mas durante uma vida toda", disse Casey Treat. Em particular,
o sucesso de um trabalho missionário raramente pode ser avaliado
durante o tempo em que o missionário está no campo.

o autor e palestrante sobre liderança e sucesso, John Maxwell, define


sucesso como "conhecer o propósito de sua vida, crescer 'para alcançar
seu potencial e lançar sementes que beneficiem outros"5. E por isso que
Adoniran Judson e Hudson Taylor são considerados missionários de
sucesso apesar de seus momentos de depressão. Não pararam ali, não
se deixaram dominar pelos resultados negativos de alguns anos, não se
prenderam ao que algumas pessoas comentavam, mas avançaram para o
alvo e acabaram ficando conhecidos como bem-sucedidos.

1. Mitos em relação ao sucesso e ao fracasso

Creio que há alguns mitos comuns que levam os missionários ao que


pode ser considerado como fracasso. Vejamos então:

Mito 1 - Os mais contextualizados são mais bem-sucedidos. Criou-


se a idéia, principalmente depois que a missiologia despontou em toda a
sua força, que a contextualização é o segredo final da obra missionária.
Tudo se resume a estar ou não bem contextualizado. Ninguém pode negar
a necessidade da contextualização na obra missionária. Gastamos muitas
páginas falando exatamente sobre esse tema. É evidente que nem sequer
se pode pregar de forma eficaz no campo missionário sem um certo grau
de contextualização. No entanto, considerar a aculturação como uma
espécie de "pó mágico" missionário é simplificar demais.

Se olharmos, por exemplo, o islamismo, veremos uma religião que


aonde vai impõe nova cultura, nova língua, novo vestuário, novo tipo de
construções e uma série de regras muitas vezes contrárias à cultura local.

210
Capítulo XIII - Sucesso ou fracasso?

No entanto, cresce mais que o cristianismo. Quando Don McCurry argüiu


um lider muçulmano sobre o que seria o reino de Deus, este respondeu:
"Suponho que significa a imposição da lei islâmica no mundo inteiro"6.
Os muçulmanos não se preocupam em contextualizar sua mensagem,
mas crescem.

Também há um número de seitas cristãs e evangélicas que exportam


modelos de atuação idênticos aos do Brasil e têm tido sucesso numérico
significativo. Seus obreiros falam, vestem e dirigem cultos iguais aos do Brasil.
Nem sequer se dão ao trabalho de aprender a língua local, mas crescem.

Por outro lado, a pressão para a aculturação tem levado a muito


sincretismo sob as mais variadas formas. Na África, por exemplo, os
grupos "cristãos", que são uma verdadeira miscelânea de evangelho e
cultura local, já se contam às centenas. Estão bem aculturados, mas serão
evangelho? Temos que pensar seriamente nesta questão e reconhecer
que a contextualização precisa ser feita, mas com um carinho muito
especial e que nem sempre será o mais adaptado que vai ser mais
bem-sucedido. A pressão nesse ponto tem levado alguns ao desânimo
e sensação de fracasso que poderiam muito bem ter sido evitados. Há
diferenças individuais quanto à adaptação cultural. Para um indivíduo
é mais fácil de que para outro. Precisamos ensinar a importância da
contextualização sem, no entanto, chegar a ponto de negar o valor do
trabalho de um obreiro que não tem exatamente a capacidade de viver
igual a um nacional. É bom lembrar que alguns dos mais bem-sucedidos
missionários do passado seriam reprovados por nossos conceitos atuais
de aculturação.

Mito 2 - Os mais espirituais são mais bem-sucedidos. Este também


é um mito comum na obra. Somos levados a crer que o que tem maior
número de convertidos é o que passa maior tempo de joelhos. Estamos
ainda muito presos a fatores externos quando pensamos assim. O
missionário se vê logo confrontado com sua falta de espiritualidade se seu
trabalho não cresce. Mas a verdade dos fatos mostra que muitos dos mais
espirituais foram exatamente aqueles que trabalharam entre os povos mais
dificeis e tiveram menos resultados. De certa forma, a vida com Deus e
sua maior espiritualidade acabou sendo fruto das adversidades e não do
sucesso.

Não queremos dizer com isso que não importa o tempo que passamos
em oração, apenas que generalizar e tirar conclusões rápidas só serve

211
Antes do ide

para criar mais falta de compreensão. Tenho conhecido mlSSlOnanos


de vida exemplar, de comunhão íntima com Deus e que têm poucos
resultados numéricos para mostrar. Suas vidas, no entanto, têm sido de
fidelidade mesmo em terreno árido. Não creio que o Senhor os considere
fracassados.

Mito 3 - Os que têm mais apoio financeiro são mais bem-sucedidos.


Novamente aqui a idéia é generalizada. Se a agência missionária é "rica"
e o missionário dispõe de verbas para extensas obras sociais então
certamente será mais bem-sucedido. Logo, o missionário "pobre" terá
que se contentar com as migalhas. Novamente também as evidências dão
conta da falácia do mito. As obras sociais são úteis e uma forma valiosa
de ministrar no terceiro mundo, mas não são por si só sinal de sucesso.
Muito tem sido feito nessa área sem resultados práticos em termos de
conversões. Pode até ser agradável dar números bonitos em termos de
atendimento social, mas isso não significa eficácia evangelizadora. Ter
uma atividade nesse campo ajuda o missionário a se sentir útil e a ter
um trabalho para o orientar, mas não vai necessariamente trazer gente
a Jesus. O obreiro que não dispõe de uma base forte para esse tipo de
ministério não precisa se sentir inferior e nem julgar seu trabalho menos
valioso e pode, inclusive, descobrir que tem sido mais eficaz em termos
de alcançar pessoas para Cristo.

Depois de todas as contas feitas chegamos à conclusão de que os


únicos fatores realmente decisivos na obra de missões são a ação do
Espírito Santo e o amor do missionário pelo povo ao qual ministra. Nada
pode substituir esses dois fatores e sua ausência é certamente fatal à obra.
Reconhecer os mitos como tais, ajuda a fugir de frustrações desnecessárias.
Mas há também erros comuns que levam à sensação de fracasso.

2. Erros comuns que levam à sensação de fracasso

Erro 1 - Não planejar. Conforme vimos no capítulo 3, um propósito


claro é fundamental para uma obra missionária direcionada. O missionário
que deixa de planejar está flertando com o fracasso. A falta de alvos e
objetivos definidos pode levá-lo facilmente a uma sensação de inutilidade
e desamparo. Mais rapidamente ele vai ser levado a questionar sua
chamada e resultados. Trabalhar a esmo sem um plano, uma meta, um
caminho a percorrer deixa a obra sem bases e o missionário sem um ponto
de referência para atestar sua eficácia.

212
Capítulo XIII - Sucesso ou fracasso?

Pense na formulação dos planos como um mapa para cruzar uma


grande distância. Sem ele, como é que você vai saber se andou muito
ou pouco? Como vai saber se ainda está na direção certa? Dois viajantes
podem andar a mesma distância num dia, mas o que tem o mapa senta no
fim do dia e verifica que avançou bem, logo, fica satisfeito, o outro, sem
mapa, sente apenas a exaustão e a dúvida apertando seu coração. Então,
planeje e fuja do fracasso.

Ao planejar pense em longo prazo. Fazer missões é maratona e não


corrida de 100 metros. Pensando em longo prazo, você se permite mais
tempo para fazer as coisas, as cobranças são menores e as possibilidades
de se sentir fracassando irão diminuir.

Erro 2 - Expectativas altas demais. Na Copa de Futebol de 1998


na França os jogadores da seleção da Croácia voltaram para casa como
heróis e foram recebidos nas ruas de sua capital com verdadeira euforia.
Tinham ficado em terceiro lugar. Por sua vez, os jogadores da seleção
brasileira voltaram para casa quase escondidos como ladrões, no entanto,
o Brasil ficara em segundo lugar. Por que a diferença? Expectativas altas
demais por parte do Brasil. Queríamos o título e qualquer outro resultado
seria visto como fracasso.

Muitos missionários planejam e traçam metas, mas colocam os alvos


tão acima das possibilidades que estão planejando para o fracasso. Por
isso defendemos que os propósitos só devem ser traçados depois de um
bom período de adaptação ao campo e conhecimento efetivo da realidade
a enfrentar. Buscar sabedoria para colocar metas realistas é o caminho
para não se estressar demasiadamente.

Erro 3 - Acumulação de tarefas. Eis uma receita certa para o fracasso


ou a sensação do mesmo: metas irrealistas e tarefas demais. Todo mundo
sabe que realizar muitas atividades ao mesmo tempo acarreta stress.
Ninguém consegue fazer tudo e, ainda por cima, bem feito. O missionário
precisa aprender a delegar. Em Êxodo 18 temos o relato da sabedoria
de letro, que já conhecia esta verdade naquele tempo. O que ele disse a
Moisés poderia ser parafraseado como: "Você tem tarefas demais, está a
caminho do stress e do fracasso, delegue já!"

A resposta para o missionário é a mesma que foi dada a Moisés no


deserto - Delegue já! Gaste tempo na formação e treinamento e logo que
for possível passe à frente responsabilidades. Não fique preso às atividades

213
Antes do ide

julgando que ninguém pode fazer tão bem quanto você. No princípio isso
pode até ser verdade, mas lembre-se que você também não começou no
nível que está hoje. Alguém confiou em você e lhe deu a oportunidade.
Estabeleça prioridades. Faça apenas o que realmente só você pode fazer.
Aprenda a delegar ou, se não, prepare-se para naufragar.

Erro 4 - Adiamentos constantes. Por vezes há planejamento e até


delegação, mas na hora da ação surgem os adiamentos. O obreiro sente
medo, preguiça ou falta de ânimo e assim as coisas vão se adiando e
ficando por fazer. Sem diligência não se faz nada. Protelar não faz os
problemas desaparecerem e nem os torna menores. Adiar não faz as
tarefas mais fáceis nem as torna mais leves. O que tens a fazer faze-o hoje
e conforme as tuas forças. Ficar adiando é pedir problemas. Se esperarmos
a vontade chegar, certamente faremos muito pouco na vida. Certo escravo
grego nos tempos antigos foi argüido sobre sua vida e respondeu: "Às
vezes faço aquilo que quero, no resto do tempo faço o que devo". Ele
certamente não ficava adiando e também não lutava com o fracasso.

Creio sinceramente no valor da preparação que evita a derrota. Sei


que estes mitos e erros comuns citados acima podem dar uma ajuda
na prevenção de situações potencialmente desastrosas. No entanto,
reconheço também que por mais que saibamos, por mais que preparemos,
não há como evitar crises que surgem no trabalho missionário e nos
levam a sentimentos conflitantes e de derrota. Analisemos, então, alguns
desses sentimentos.

3. Sentimentos em relação ao fracasso

Sentimento 1 - Ira. Quando as coisas começam a correr mal e os


nossos direitos parecem ser desrespeitados, uma reação natural é a ira. Nós
nos iramos numa proporção direta com o que julgamos ser a violação de
nossos direitos. No campo missionário isso tem a tendência de acontecer
muitas vezes. A cultura é outra, os pressupostos são outros, as pessoas têm
outros valores. Isso vai invariavelmente invadir nosso espaço.

O problema da ira é sério e deve ser enfrentado. Um missionário


irado dificilmente vai conseguir ministrar. Nós queremos ver certos
horários cumpridos e o povo nem sequer tem relógio; nós pensamos
que a privacidade de nosso lar é sagrada e as pessoas da terra vêm em
qualquer número e a qualquer hora e vão entrando; nós julgamos que

214
Capítulo XIII - Sucesso ou fracasso?

nossa posição na sociedade é digna de respeito e o povo valoriza mais o


feiticeiro do que você. Tudo isso e muito mais vai violando nosso senso
de valores e provoca ira. Os chineses têm um provérbio que diz: "O
fogo que você prepara para seu inimigo vai te queimar mais do que a
ele". Isso é o que se passa com a ira. As pessoas a quem ministramos
não entendem os motivos de nossa ira e o fato de nos irarmos tira nossa
capacidade de ser bênção. Emerson alertava que "um homem faz com
que seus inferiores lhe fiquem superiores pela raiva"? A verdade é que a
ira pode ser justa, mas a nossa raramente o é! Nós nos iramos em geral
por egoísmo ou impaciência. Nossa ira é exigente (eu quero isso e tem
que ser agora), é vingativa (me bateu, então leva) e controladora (é assim
que tem que ser).

Reconhecer que nossa ira está sendo injusta é meio caminho para a
vitória. Thomas Jefferson escreveu: "Quando zangado conte até dez antes
de falar" e meu avô acrescentou: "Quando muito zangado, conte até cem
e não diga nada". É um bom princípio. Algo que parece insuportável num
momento pode se mostrar uma tolice no dia seguinte. A única ira justa é
a que se levanta contra o pecado e não contra o pecador. A vingança é de
Deus. Alguém reparou bem que "ficar com raiva é vingar as faltas dos
outros em você mesmo".

Se este é um problema que você enfrenta, então sugiro que escreva a


seguinte frase e a coloque num lugar bem visível: "As principais causas de
ira são egoísmo e impaciência". Medite nisso. Ore sobre isso. Expresse
seus sentimentos a Deus e busque o controle do Espírito Santo. Comece
o dia em oração colocando diante do Senhor situações que possam levá-
lo à ira e pedindo antecipadamente a presença do Espírito para vencer.
Quando zangado, questione se sua ira é justa ou não. Entregue a Deus e
ore por paciência.

Sentimento 2 - Medo. Quando as situações se sucedem em roda viva e


nos intimidam, pode acontecer que o medo aproveite um espaço e se instale
em nossos corações. Há campos missionários que são realmente assustadores.
Pessoas agressivas, rostos com cicatrizes de rituais estranhos, religiões que
nos vêem como inimigos, indivíduos querendo tirar vantagens de nós, ruas
e bairros degradados e sujos, costumes desconhecidos e amedrontadores.
Pode ser que uma doença estranha esteja tomando conta de seu filho ou seu
cônjuge, e você sente o medo de perder wn ser querido rondando a porta. Em
outras situações serão as crises de que falamos no capítulo anterior que nos
levam ao medo e terror. Não vale a pena nesses momentos dizer que o medo

215
Antes do ide

é tolice. É um sentimento real, forte e que pode até paralisar o trabalho e a


vida se não lidarmos com ele frontalmente.

Reconhecer é sempre o passo inicial nesses sentimentos conflitantes.


Negar o medo ou fingir que não é assim tão mal não vai resolver nada.
Orar e expressar ao Senhor nosso medo é a atitude certa de um servo de
Jesus. Quantos servos do passado não fizeram exatamente isso? Elias
fugiu de medo de Jezabel; Davi correu de Saul; Jonas de Nínive e os
discípulos gritaram em meio à tempestade no mar. A certa altura, porém,
todos eles reconheceram seu medo e o entregaram a Deus. Elias voltou
e terminou seu ministério; Davi chegou a rei de Israel; Jonas pregou em
Nínive e os discípulos seguiram falando de Jesus e seu poder.

O único segredo para vencer o medo é estar firmemente no Senhor. O


inimigo vai procurar que o próprio medo nos afaste de Deus. Ele vai nos
dizer que orar e ler a Bíblia não vai adiantar. Mas o diabo sabe que "só
o temor de Deus pode nos livrar do temor dos homens"8, como escreveu
John Whiterspoon no meio da perseguição. Quem se curva diante de
Deus não se dobra diante de homens ou circunstâncias.

Sentimento 3 - Desilusão. Missões exigem contato com pessoas.


Contato com pessoas exige que se deposite confiança. Depositar confiança
nos outros é sempre um risco que traz consigo a possibilidade de sermos
decepcionados. Creio que todo missionário que ficou tempo suficiente no
campo sabe o que é ser traído e enganado. Tenho ouvido experiências de
cortar o coração e eu mesmo passei pela dor de confiar e amar alguém
por anos e então descobrir que era tudo um grande embuste. Fora usado,
enganado, roubado e acabei com uma sensação terrível de vazio, um
amargo de boca, uma falta de coragem de confiar novamente.

Talvez essa seja a principal conseqüência das desilusões - a falta


de capacidade de confiar novamente. Se um obreiro não pode confiar
nos que o cercam, então como vai trabalhar? Shakespeare dramatiza
o momento em que o rei Henrique V desmascara uma traição terrível
e a certa altura o monarca diz a um dos traidores que fora seu grande
amigo: "O teu pecado lançou dúvidas sobre o melhor dos homens". É
exatamente esse o problema. O erro de um nos leva a duvidar de todos.

Infelizmente desilusões são comuns nos campos missionários. Elas


vêem por uma mistura de ingenuidade, falta de discernimento e artimanhas

216
Capítulo XIII - Sucesso ou fracasso?

do inimigo. O missionário tem que tomar uma decisão. Pode deixar que
o amargo dessa experiência o deixe sem condições de trabalhar ou pode
vencer a situação, perdoar e seguir em frente para novos horizontes.
William Barclay conta a história de um homem durante a segunda guerra
mundial na Alemanha que foi preso e torturado pelos nazistas, mas
resistiu bravamente. Finalmente libertado, ele se suicidou passadas poucas
semanas. Descobrira que fora seu próprio filho quem o traíra. A traição de
um ente chegado o quebrara mais que as torturas do inimigo. 9 E quando
isso acontece, só o perdão pode libertar.

Todos sabemos que perdoar é mais que um sentimento; é uma


decisão. Bernard Meltzer lembra que "quando você perdoa não muda o
passado, mas certamente transforma o futuro"lo . Muitas vezes é preciso
chorar e expressar a amargura em oração até que o Espírito Santo faça
jorrar em nossos corações o refrigério do perdão. Guardar rancor é ficar
preso. Ao manter a pessoa que nos magoou presa na falta de perdão,
esquecemos que o guarda dessa prisão somos nós e que esse trabalho de
guarda prisional é permanente.

Por outro lado, o deixar ir custa. Perdoar é sempre custoso, implica


sofrer o dano. Mas liberta. Traz novidade de coração e a possibilidade
de prosseguir. Se você se sentir destroçado, pense no que Eugene O'Neil
disse: "O homem nasce quebrado. A vida toda ele vai sendo consertado.
A graça de Deus é a cola"!!. Deixe a graça restaurar seus pedaços e siga
inteiro diante de Deus. Para perdoar entre com a vontade, que Deus
entrará com o poder.

Sentimento 4 - Desânimo. Um parente próximo da desilusão, e de


certa forma filho dos sentimentos anteriores, é o desânimo. Esta sensação
de falta de forças para continuarmos, de achar que não vale a pena tentar
mais. O desânimo vem da falta de esperança, da perda de horizontes, da
exaustão física e emocional. O coração deixa de estar na obra e então
nos sentimos presos. Na verdade você só se sente preso num trabalho se
seu coração não estiver nele. Mas, o que se verifica, é que a esmagadora
maioria dos casos de desânimo vem mesmo é de um amor próprio
desencantado por uma mistura de autopiedade e expectativas irrealistas.
É uma distorção da verdade.

Certa aldeia alemã, perto de uma montanha famosa, vivia sob o medo
de um gigante que habitava numa gruta no cume do monte. Geração após
geração se passavam as histórias sobre o terrível monstro. Não era visível

217

. .
dificilmente pode ser avaliado durante o tempo em que o obreiro está no
campo. Mesmo que ele tenha a fortuna de presenciar um avivamento ou
um movimento popular para Jesus, a grande questão é o que acontece
depois que ele sai. Coloquei esta questão a vários missionários: Como
é que sabemos se um ministério foi bem-sucedido? Uma missionária
respondeu: "Se passados dez anos o trabalho continua crescendo". Essa
é uma boa percepção. Afinal, se aquilo que pensamos ter realizado se
desmancha com nossa saída, qual era a verdade de nosso "sucesso"?

219
Antes do ide

sempre. Só em certas ocasiões. Era invariavelmente no nascer ou no pôr-


do-sol e quando havia neblina no topo da montanha. Nessas circunstâncias
qualquer que subisse o monte o veria altivo e medonho, pronto a destroçar
os curiosos. Até o dia em que um jovem cientista resolveu desvendar o
mistério. Esperou as condições ideais para visionar o gigante e subiu a
montanha sozinho. Todos na aldeia esperavam que fosse devorado, mas o
jovem voltou com a solução do enigma. Na verdade o que acontecia era
que, nas circunstâncias descritas, a pessoa que subisse a montanha via a
~lUl nrónrl::l lm~O'pm rp-Aptlr1~ rlp f()nn~ !lrrlnl1firH :lr1<:l 1"11"\ tA1""\r\ rlr\ "t'Y'Ir\1"'If.o G ............

Antes do ide

Já citamos num capítulo anterior a história de Karl Gutzlaff. A certa


altura ele era tido como o paradigma do sucesso missionário com milhares
de batizados e centenas de obreiros nacionais no interior da China, um
campo tão dificil. Era o sonho de todo missionário. O test~munho
perfeito. Só que menos de um ano após sua saída da China não sobrava
nada de seu sucesso. Era falso. Era só teoria. Do outro lado, muitos têm
trabalhado com poucos resultados aparentes, mas a obra continua mesmo
após sua morte e se desenvolve como no caso de Adoniran Judson. Ele
viu poucos frutos de tanto trabalho e sofrimento, mas apenas uma década
depois de sua morte já havia mais de dez mil crentes entre a etnia karen.

Quando meus pais pregavam pelas ondas da Rádio Clube de Angra,


nos Açores, muitas vezes havia uma sensação de vazio e a pergunta surgia:
Será que resulta? Em certa altura havia centenas de pessoas escrevendo
para o programa e muitas centenas de Bíblias e Novos Testamentos foram
distribuídos pessoalmente ou pelo correio. Mas onde estavam os resultados
visíveis? O tempo passou, até que puderam visitar a família Menezes na
canada da bezerra (trilha estreita de terra batida) na Vila Nova. O Sr.
Manuel Menezes recebera uma Bíblia pelo correio e confrontara o padre
local sobre as práticas católicas à luz das Escrituras. Como não obteve
resposta, ele deixou a igreja romana e se converteu. A igreja era longe demais
e praticamente não havia transporte público aos domingos. Ele não tinha
como assistir aos cultos. Passou então a reunir a esposa, filhas e netos na
sala de sua casa na hora dos programas de rádio. Liam o texto da mensagem,
ouviam a pregação e cantavam junto com o programa. Era o culto deles.
Quando meus pais chegaram a eles a congregação já estava formada.

A família Menezes ficou fiel a Jesus. Sofreram perseguições terríveis.


Quando iniciamos os cultos em sua casa o nosso carro chegou a ser
apedrejado. Mas eles ficaram fiéis. O Sr. Manuel e sua esposa Dona
Virgínia já estão com o Senhor, mas suas filhas e netos, já casados,
estão até hoje na Igreja da Praia da Vitória como prova de que a obra
missionária é assim. Somos chamados à fidelidade e a um compromisso
de comunhão diária. Deixemos o sucesso com o Senhor da obra. Se a
obra for dele, ficará de pé e prosperará.

Concluindo

Neste mundo de avaliações constantes, e por vezes dolorosas,


somos levados a pensar na obra de missões em termos de sucesso e

220
Capítulo XIII - Sucesso ou fracasso?

fracasso. Devemos estar atentos para não nos prendermos a preconceitos


errados. Devemos buscar a contextualização e a vida de comunhão
e, se possível, ter uma boa base de trabalho social, mas nada disso é
garantia de resultados visíveis volumosos. Devemos evitar trabalhar sem
planejamento, colocar alvos altos demais, tentar fazer tudo sozinhos sem
delegar ou ficar adiando o que deve ser feito. Quando os números não
aparecerem e as situações forem dificeis podem aparecer sentimentos
como ira, medo, desilusão e desânimo. É preciso reconhecer esses
sentimentos, expressá-los em oração, questionar sua veracidade e razão
de ser e entregar a Deus. Por vezes é preciso tempo para sarar e recuperar
a visão. Nunca esqueçamos que a obra é de Deus e o sucesso da missão
só se mede a longo prazo.

o grande historiador português Alexandre Herculano nos conta, em


sua obra "Lendas e Narrativas", a história da construção do Mosteiro
da Batalha. Quando os portugueses venceram de forma surpreendente
a batalha de Aljubarrota contra Castela foi decidida a construção desse
monumento - o Mosteiro de Santa Maria da Vitória mais conhecido como
da Batalha. Inicialmente a obra foi colocada sob o comando do Mestre
Afonso Domingues, cavaleiro que se destacara contra os castelhanos.
Mas ele ficara velho e cego e a obra fora transferida para um arquiteto
irlandês de nome David Ouguet que conquistara a amizade da rainha.

o mosteiro era magnífico e o traçado original de Afonso Domingues


fora seguido quase na íntegra, no entanto, no culminar do trabalho,
havia uma abóbada particularmente dificil de construir. Era a abóbada
do recinto conhecido como Sala do Capítulo e seria a grande maravilha
da construção, pois se ergueria em enorme vão sobre o ar. Acontece que
David Ouguet não seguiu as linhas do arquiteto original e menos de vinte
e quatro horas após a retirada das escoras a abóbada ruíra com estrondo.

o irlandês, procurando fugir às responsabilidades, se fez de louco e


endemoninhado e o rei D. João I se viu na contingência de entregar a
obra nas mãos do mestre cego D. Afonso Domingues. O velho guerreiro,
então, dirigiu a obra com afinco total e devoção febril. Tendo terminado
a mesma mandou que se tirassem as escoras e sentou-se sobre uma pedra
bem no meio do recinto. Fizera um voto de que ficaria ali em jejum
completo durante três dias para dessa forma confirmar com o risco de
sua vida a segurança da obra. E os dias se passaram e a abóbada nem
deu sinal de se mexer. Por fim, Frei Lourenço Lampreia, dominicano
responsável pelo convento, foi acudir o ancião. Porém, o jejum forçado

221
Antes do ide

e o trabalho árduo o tinham esgotado e o leal cavaleiro morreu. Suas


últimas palavras foram: "A abóbada não caiu... a abóbada não cairá."

Sejamos fiéis ao nosso chamado e visão, e ao compromisso de


andar com o Senhor diariamente. Deixemos que ele nos use como seus
instrumentos na edificação da missão. Sendo a obra do Senhor poderemos
nós também dizer: "Ela não caiu... ela não cairá".

222
Conclusão

ra 26 de junho de 2002 e a manhã estava quente. O antigo cinema


de Bafatá estava superlotado. Na cidade sem eletricidade, um
negociante esperto com alguns recursos conseguira um gerador e
uma parabólica que lhe permitia transmitir os jogos da Copa do Mundo.
Estava faturando uma boa quantia com a febre africana pelo futebol e
nesse dia a renda seria excelente pois era a semi -final.

No meio daquela massa humana de africanos, havia uns poucos


"descoloridos". Eram os missionários brasileiros na cidade. Ali
estávamos eu, meu filho Gabriel, minha esposa Ida, minha filha Rebeca,
nossas colegas Analita e Edna e os companheiros da missão kairós.
Nossas camisas amarelas não deixavam dúvidas de quem éramos. Mas,
naquela manhã, nem se deu muito pela diferença.

o primeiro tempo foi nervoso. A Turquia parecia dominar o Brasil


e os nossos craques não davam conta do recado. Sentíamos a falta
de Ronaldinho Gaúcho. Cada vez que ele era mostrado no banco de
reservas o público aplaudia. Era o primeiro sinal de identificação. Início
do segundo tempo, quatro minutos e Ronaldo arranca num lance que não
Antes do ide

parecia dar em nada, mas o chute sai e a platéia explode. Literalmente!


Centenas de africanos pularam como se fossem um só homem. Todos nos
abraçávamos e gritávamos gol e o nome do craque. A alegria era pura
eletricidade e enchia o ar.

Fim de jogo. Estávamos classificados para a final e as pessoas


passavam por nós e sorriam contentes. Vários de nossos amigos vieram
nos cumprimentar e os comentários eram invariavelmente: "Ganhamos!"
ou ainda "Domingo a taça é nossa!" E nós sorríamos de volta envolvidos
por tanto calor humano.

o que quero que se note é a forma como as pessoas nos saldaram.


Reparou bem? Notou a utilização da primeira pessoa do plural? Eles
eram africanos e nós brasileiros. Eles eram negros de várias etnias
da costa ocidental da África e nós brancos descendentes de raças
colonizadoras. Mas, naquele momento, eles disseram "nós". Isso porque
o Brasil é assim. É África, Europa, Ásia e América. Tudo junto, tudo
misturado e bem servido.

Eis a boa nova para a igreja brasileira. O nosso povo tem uma aceitação
nos países de terceiro mundo que europeus e norte-americanos não têm.
Nós somos vistos como irmãos de sofrimento que também passamos
pelas dores da colonização, que também vivemos a escravatura, que
também sabemos o que é pobreza. Essa identificação com o Brasil por
parte do terceiro mundo é uma porta para as missões brasileiras.

Depois de 11 de setembro e depois da Guerra do Iraque, fica cada vez


mais dificil para norte-americanos e europeus serem bem recebidos em
muitos países. Mas nós temos as portas abertas. Saberemos aproveitar
as oportunidades? Creio que sim. Espero que sim. Oro que sim. E, para
bem usarmos essa abertura, quero terminar sugerindo três cuidados para
as missões do Brasil em especial no terceiro mundo.

Sugestões finais às missões dos novos países enviadores

1. Atenção à preparação

Devemos entender de uma vez por todas que missões é trabalho duro
e que para fazê-lo bem precisamos de gente preparada. Quanto mais

224
Conclusão

preparados os obreiros, melhor trabalho poderão fazer, mais oportunidades


terão, maior número de portas poderão aproveitar na sua passagem. A idéia
de que para países pobres do terceiro mundo basta mandar alguém com a
Bíblia deve ser enterrada, pois só traz problemas.

Phillip Elkins, presidente de um Centro de Treinamento Missionário


nos Estados Unidos, refere que é muitas vezes arguído sobre o tipo de
treinamento que os jovens devem ter. Ele diz que responde com uma
pergunta: "Que tipo de missionário você quer ser?'" Eis uma questão de
grande relevância.

Se ouvirmos um jovem de 18 anos dizendo que quer ser médico e


trabalhar com cirurgia cardio-toráxica entendemos e aceitamos como
natural que passe os próximos 10 anos em estudo e treinamento. Se um
jovem de 20 anos nos diz que pretende competir nas Olimpíadas com
possibilidade de conseguir medalha então achamos perfeitamente natural
que ele passe anos em treinamento muito intenso. Porque será que quando
um jovem se apresenta para ir fazer missões transculturais, que é um dos
trabalhos mais dificeis que existem no mundo, nós achamos normal que
siga para o campo com apenas uns 6 meses ou um ano de curso?

Cada vez mais, os países fechados ao evangelho vão exigir formação


para permitir a entrada em seu território e para conceder vistos de
permanência. Cada vez mais vemos os líderes evangélicos desses países
com formação na Europa e Estados Unidos. Eles lutaram muito para obter
essa formação e não estão dispostos a valorizar gente sem preparação,
mesmo que venham de terras supostamente mais ricas. Querem obreiros
de nível e que possam fazer diferença.

Temos que alertar os nossos jovens que missões não é uma saída para
aqueles que não conseguiram lugar no Brasil ou estão tendo dificuldade em
entrar na faculdade ou querem conhecer o mundo. Não devemos permitir
que a fama de nossos missionários passe a ser a de que não possuem
formação e pouco sabem fazer. Devemos incentivar os melhores a ir. Se
missões é parte da guerra espiritual então as "tropas" para esse ministério
devem ser de elite. Quando Deus deu, ele deu o seu melhor, ele deu a
si mesmo. Por que é que na santa senda de missões vamos agir de forma
diferente?

Com gente preparada e convicta a igreja de Jesus no Brasil pode fazer


muito pela propagação do evangelho. Minha oração é exatamente que

225
Antes do ide

saibamos ocupar nosso lugar na seara e aproveitar essa abertura que o


Senhor nos deu.

2. Contextualização cuidadosa

Quando entrevistamos missionários da Europa e Estados Unidos


sobre qual a principal virtude dos missionários brasileiros, a maioria
enfatiza a nossa facilidade de comunicação. Todos reconhecem que somos
mais alegres e comunicativos. Todos vêem isso como uma virtude, pois
com muito maior facilidade nos aproximamos da população e fazemos
amigos. O problema é que confundimos isso com contextualização, o
que não é verdade.

Durante as últimas décadas temos criticado muito a atuação dos


missionários que trouxeram o evangelho para o Brasil. Chega a parecer
moda falar mal de sua falta de aculturação. Ficamos zangados pelo
modo como nos deram um cristianismo à sua medida, sem qualquer
contextualização e passamos a falar de nossa própria capacidade de
acomodação a outras culturas. Mas será que nós temos saído melhor nas
oportunidades que temos tido de ministrar a outras raças?

o fato de termos maior facilidade de comunicação e aproximação das


pessoas nos deu a falsa impressão que somos os melhores missionários.
Somos o resultado de uma grande mistura de raças e convivemos desde
cedo com culturas diversas e isso nos faz pensar que estamos aculturados.
Então eu chego na África, visto um traje tradicional, sento-me no chão
com um tambor para louvar a Deus e me convenço de que estou bem
contextualizado. Ainda penso com meus botões: "Por que será que o
professor de Missões falava disto tudo como sendo dificil?"

Acontece que aquele traje tradicional pode ser particular de uma etnia
e excluir todas as outras, limitando bastante meu trabalho. Pode ser que
essa roupa seja o traje usual dos jovens, o que me exclui da pregação aos
adultos e coloca desde o início uma tremenda barreira à evangelização.
Pode ser que naquela cultura só tenham permissão para tocar o tambor
aqueles que têm acesso aos espíritos. Assim estarei dando a impressão
de que sou uma espécie de feiticeiro, o que vai tornar minha pregação
algo muito confuso. Ou ainda, a etnia para qual estou ministrando pode
ser islamizada. Nesse caso, usar o tambor na adoração será considerado
blasfêmia e eu ficarei marcado como um homem sem seriedade.

226
Conclusão

Naverdade não existem fórmulas rápidas e fáceis para a contextualização.


Ela requer tempo e humildade. Os missionários brasileiros precisam saber
disso, as agências enviadoras brasileiras precisam saber disso, as igrejas
brasileiras precisam aprender isso e urgentemente.

Quando Napoleão invadiu a Rússia, o homem escolhido para liderar


os exércitos imperiais russos foi o marechal de campo Kutuzov. Sua
estratégia desesperou a população e mais da metade de seus oficiais.
Avaliando que não tinha condições de enfrentar Napoleão frente a frente
em batalha aberta, ele foi recuando e atraindo os franceses cada vez
mais para dentro da Rússia. Chegou ao extremo de evacuar Moscou e
entregá-la ao Imperador Corso. Mas no fim, a vitória foi dele. Napoleão
medira mal as conseqüências e seu exército não pôde suportar os rigores
do inverno. Quando os franceses se retiraram, as tropas russas seguiram
em perseguição e lhes infligiram pesadas baixas. Por fim, Kutuzov foi
considerado herói nacional. Dizem, no entanto, que nos tempos dificeis,
era possível ouvi-lo caminhando pelo seu quarto e repetindo para si
mesmo: "Tempo e paciência, paciência e tempo..."

Eis aí um bom princípio para nós brasileiros na contextualização.


Precisamos ter mais paciência e nos dar mais tempo de modo a que nossa
aculturação seja verdadeira e eficaz e nos permita levar o evangelho de
forma mais clara às populações as quais ministramos.

3. Ministério social

Durante séculos as mlssoes investiram pesado no lado social.


Foram milhares de escolas e clínicas, hospitais e orfanatos por todo o
mundo. Nomes sonantes em Missões como Albert Schweitzer ou Amy
Carmichael eram paradigmas desse tipo de ministério. Durante muito
tempo mesmo, o trabalho missionário era visto de tal forma interligado
ao social que nem sequer se julgava missões algo que não incluísse o
social. No entanto, as missões dos países europeus e dos Estados Unidos
têm repensado suas estratégias. Chegaram à conclusão de que, muitas
vezes, esses trabalhos sociais não foram produtivos em termos de
evangelização e desviaram os missionários de um trabalho mais eficaz
no alcance das populações para Jesus. Vincent Donovan, missionário
entre os masai, chegou mesmo a escrever que "levar a liberdade, ou
conhecimento, ou saúde ou prosperidade a um povo de modo a que se
tornem cristãos é uma perversão do trabalho missionário"2.

227
Antes do ide

Então entramos nós, as missões novas, com novo ânimo e respostas


rápidas aos problemas do mundo. Defendemos o social com unhas e
dentes e o apresentamos muitas vezes como a verdadeira solução. Temos
dificuldade em entender por que essas missões antigas estão deixando o
social e achamos que é falta de amor e sensibilidade à obra. Será? Não
seria mais humilde e até cristão procurarmos saber as razões que levam
missões centenárias a corrigir estratégias? Não poderíamos poupar
etapas sabendo de antemão o que eles levaram séculos a descobrir?

o trabalho social pode ajudar o missionário a fazer contato com as


populações, o torna útil à sociedade, permite atacar alguns dos maiores
problemas do povo a alcançar, nos dá metas palpáveis e resultados
numéricos volumosos que impressionam. Mas também despende muito
tempo, energia e dinheiro, pode desgastar as relações com o povo, quando
se descobre que não podemos resolver todos os problemas e desvia os
missionários da meta real de levar o evangelho. Muitas centenas de
obreiros envolvidos em missões sociais descobriram, passados os anos,
que trabalharam muito, mas na verdade evangelizaram pouco e viram
poucos convertidos.

Devemos ter em conta que programas sociais envolvem quantias


elevadas por um prazo médio e longo e o Brasil não nos dá estabilidade
econômica para isso. Devemos também lembrar que para manter uma
atividade desse gênero, sem se desviar dos alvos evangelísticos, é
preciso uma grande concentração e constantes avaliações dos resultados.
Podemos e devemos nos envolver com o social. Podemos e devemos
servir à população num espírito evangelístico. Mas precisamos manter
claras as prioridades e objetivos de qualquer atividade ou correremos o
risco de sermos apenas mais uma Organização Não-Governamental.

É notório para todos aqueles que já trabalharam em missões por


tempo suficiente, que o evangelho traz verdadeiro desenvolvimento.
O evangelho' tem transformado regiões e, porque não dizer, países.
Aonde a igreja chega tudo vai acabar melhorando com o tempo. Mas
isso é conseqüência e não causa. Isso é resultado da ação do evangelho
e não o objetivo do mesmo. Evangelização não é um sistema escolar ou
um programa de saúde ou uma meta de desenvolvimento econômico.
Corremos o risco de, esquecendo isso, levar às pessoas a melhor
educação, melhor saúde e até prosperidade, mas deixá-las ainda perdidos.
Irão para a eternidade mais educados, mais saudáveis e prósperos, mas
ainda sem salvação.

228
Conclusão

A solução deste dilema não é complicada. Mantenhamos as prioridades e


ajudemos o povo. Sejamos professores, médicos, enfermeiros, engenheiros,
advogados, instrutores, mas com um alvo claro de levar as pessoas a Jesus,
avaliando sempre a nossa atuação social pelo resultado evangelístico prático.
Se tiver que haver opção em termos de continuidade de uma tarefa, que essa
escolha seja feita baseada no alcance evangelístico verificado. Desse modo
evitaremos ser apenas mais uma agência humanitária.

Andava eu pelos corredores da Gastroenterologia do Hospital


Pulido Valente em Lisboa esperando o chamado da banca examinadora
para aquele que seria meu último exame do curso de Medicina. A cada
passo no corredor escuro me lembrava dos seis anos de estudo árduo,
dos testes incontáveis, das mais de cinqüenta provas orais. Despendi
muito tempo e muito trabalho. Muito treino e muitas avaliações. Mas
antes que aquele dia terminasse, o Professor Catedrático de Medicina
UI me entregaria a caderneta escolar totalmente preenchida e me
cumprimentaria com um sonoro: "Parabéns, Doutor Joed". Soava
ainda um pouco estranho, como num sonho, mas era real. Agora eu
era médico e toda a luta dos anos de estudo pareciam ter valido a pena
porque eu receberia a autorização para clinicar. As pessoas colocariam
sua saúde em minhas mãos. A vida de muitos pacientes dependeria de
meu treino e meus conhecimentos.

"Estamos no negócio de salvar vidas", diz o personagem de uma série


de televisão em que médicos socorristas atuam num hospital central.
Na medicina, nosso "negócio" é salvar corpos. Em missões, nosso
"negócio" é salvar almas. Se o médico precisa de treino, então muito
mais o missionário. Se a ação do médico pode ser crucial para o futuro de
alguém, muito mais o missionário, cuja atuação influencia a eternidade
de etnias inteiras. Sim, nosso "negócio" é salvar vidas.

Durante estas páginas tentamos compartilhar princípios e verdades


que aprendemos ao longo de 30 anos como filho de missionário e como
missionário pioneiro entre povos não-alcançados. São informações que
considero essenciais para a preparação antecipada rumo ao campo.
Também sugerimos, em alguns capítulos, livros complementares para
o estudo do assunto em pauta. Espero que esta leitura não desanime o
candidato a missões antes, pelo contrário, desperte-o para um ardor ainda
maior e o conduza a uma preparação mais completa. Nosso desejo é ver
uma força missionária brasileira fazendo a diferença nos campos para
Jesus.

229
Antes do ide

Amy Carmichael, missionária na Índia, teve um sonho no qual via


uma multidão de pessoas cegas caminhando em direção a um abismo.
Havia umas poucas pessoas com visão tentando evitar que os cegos
caíssem, mas eram manifestamente poucos. No entanto, não muito
longe estavam grupos de pessoas com boa visão sentadas sob a sombra
frondosa de árvores bonitas saboreando deliciosos piqueniques, ouvindo
música e conversando animadamente. Esse sonho reflete bastante a igreja
moderna. A percentagem de pessoas que se dizem crentes realmente
engajados na obra é menor que 20%. A percentagem em missões é
ainda bem menor. Dos que estão nos campos, apenas 10% estão entre
os povos não-alcançados. Precisamos mudar esse quadro com urgência.
É bom termos um meio evangélico forte, igrejas poderosas, música de
qualidade, programas bem elaborados, instituições e estruturas que nos
servem bem. Isso, porém, não muda a realidade de bilhões de cegos que
estão caminhando para o abismo. A responsabilidade pela sua salvação
está sobre a igreja de Jesus.

"Livra os que estão sendo levados para a morte e salva os que


cambaleiam para serem mortos" (Provérbios 24.11). Foi o que fez
Oscar Schindler imortalizado no cinema por Spielberg, ou ainda o que
fez Aristides de Souza Mendes, cônsul geral de Portugal em Bordeaux.
Percebendo a certa altura o risco que os judeus corriam de ser deportados
e mortos pelos nazistas, Aristides Mendes chegou a trabalhar 24 horas
por dia passando vistos ajudeus para entrarem em Portugal. Só entre 17 e
19 de junho de 1940 ele e seus colaboradores emitiram 30 mil vistos 3 • Ele
salvou a vida de muitos milhares e por isso acabou sendo reconhecido
como herói tanto em Israel como em Portugal.

Um dia chegaremos à presença de Deus diante das hastes angelicais.


Nesse dia haverá também uma lista de nomes. Aqueles que você e eu
ajudamos a salvar do inferno. Por mais árdua que seja a preparação, por
mais dura que seja a tarefa, tudo será pequeno se naquele dia pudermos
ouvir dos lábios do Senhor: "Muito bem servo bom e fiel; foste fiel no
pouco, sobre o muito te colocarei, entra no gozo do teu Senhor" (Mateus
25.21). Que eu e você possamos ouvir o mesmo nesse dia. Amém!

230
Notas bibliográficas

Introdução

I TAYLOR, Willian, D. (Editor). Valioso demais para que se perca.

Curitiba: Descoberta Editora, 1998, p. 132.


2 Ibid. p.133.
3 Ibid. p. 243.

Capítulo I

I TAYLOR, William, D. (Editor). Valioso Demais para que se perca.

Curitiba: Descoberta Editora, 1998, p. 176.


2 STEUERNAGEN, Valdir, R. (Org). A Missão da Igreja. Belo Horizonte:

Missão Editora, 1994, p. 123.


3 TAYLOR, William, D. (Editor). Valioso Demais para que se Perca.

Curitiba: Descoberta Editora, 1998, p.156.


4 Ibid. p. 133.

5 Ibid. p. 262.
Antes do ide

Capítulo 11

I HESSELGRAVE, David, 1. Plantar igrejas: Um guia para Missões

Nacionais e Transculturais. São Paulo: Vida Nova, 1995.


2 Ibid. p. 120.

3 NIDA, E. A. Costumes e Culturas - Uma Introdução à Antropologia

Missionária. São Paulo: Vida Nova, 1992, p.l.


4 WINTER, Ralph e HAWTHORNE, Steven. Missões Transculturais

- Uma Perspectiva Cultural. São Paulo: Mundo Cristão, 1987, p. 578.


5 Ibid. p. 466.

Capítulo IH

I ALDAG, Ramon. 1. Liderança e Visão: 25 Lições para promover

a motivação. São Paulo: Publifolha 2002 - Pocket MBA. New Tork


Times, p. 102.
2 HESSELGRAVE, David. 1. Plantar igrejas - Um guia para Missões
Nacionais e Transculturais. São Paulo: Vida Nova, 1995, p. 37.
3 PATE, Larry. D. Missiologia - A Missão Transcultural da Igreja. São

Paulo: Editora Vida, 1994.


4 HAGGAI, John. Seja um Líder de Verdade. Belo Horizonte: Editora
Betânia, 1998, p. 31.
5 WARREN, Rick. Uma Igreja com Propósitos. São Paulo: Editora

Vida. 1997,p. 132.


6 Igreja Viva - Uma Rede de Missões. Fortaleza: Editora Kerigma, 1996,

p.45.
7 WARREN, Rick. Uma Igreja com Propósitos. São Paulo: Editora Vida,

1997, p. 107.
8 HAGGAI, John. Seja um Líder. Belo Horizonte: Editora Betânia, 1998,

p.34.
9 NEE, Watchman. A Vida Normal da Igreja Cristã. Campinas: Editora

Cristã Unida, 1996, p.13.


10 DOUGLAS, William. Tudo que você precisa saber sobre passar em

provas e concursos e nunca teve a quem perguntar. 7" ed. Rio de Janeiro:
Impetus, 2000, p.127.
11 WARREN, Rick. Uma Igreja Com Propósitos. São Paulo: Editora

Vida, 1997, p. 108.

232
Notas bibliográficas

12 DOUGLAS, William. Tudo que você precisa saber sobre passar em

provas e concursos e nunca teve a quem perguntar. 7a ed. Rio de janeiro:


Impetus, 2000, p. 49.
13 Ibid. p. 56.

Capítulo IV

I PETERSEN, Eugene. H. Um pastor segundo o coração de Deus. Rio


de Janeiro: Textus, 2000, p. 5.
2 Ibid. p. 3.

3 The New Dictionary ofThoughts. New York: Standard Book, 1971.

4 VIEIRA, Padre Antonio. Sermões Escolhidos. Lisboa: Biblioteca

Ulysseia de autores Portugueses, 1984, p. 65.


5 WAGNER, Peter. C. Escudo de Oração. Mogi das Cruzes: Unilit,
1996, p. 80.
a
6 JONES, E. Stanley. O Cristo de Todos os Caminhos. 4 . ed. São

Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1985, p. 161.


7 TOZER, A.W. The Pursuit ofGod. Harrisburg: Christian Publications

Inc.1948,p.17.
8 WILLARD, Dallas. A Conspiração Divina. São Paulo: Mundo Cristão,

2001, p.l3.
9 Ibid . p. 269.

10 LEA, Larry. Nem uma Hora? São Paulo: Editora Vida.

11 WILKINSON, Bruce. A Oração de Jabez. São Paulo: Mundo Cristão,

2001.
12 The New Dictionary ofThoughts. New York: Standard Book, 1971.

13 TOZER, A.W. The Pursuit ofGod. Harrisburg, Christian Publications

Inc. 1948, p. 82.


14 CHAVDA, Mahesh. O Poder secreto do jejum e da oração. Belo

Horizonte: Dynamus. 2000.


15 LEWIS, C.S. Refletions on the Psalms. Glasgow: Harper Publishers,

1998, p. 80 e 81.
16 NEE, Watchman. Lições para o viver cristão. São Paulo: Árvore da

Vida, 1999,p. 143.


a
17 BAXTER, Richard. O Pastor Aprovado. 2 ed. São Paulo: Publicações

Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 51 a 56.

233
Antes do ide

18 WILKINSON, Bruce H. Editor Geral. Vitória sobre a tentação. São


Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 199.
19 EXLEY, Richard. Os sete estágios da tentação. São Paulo: Editora

Vida, 1998, p. 55.


20 PIPER, John. Desiring God - Meditations of a Christian Hedonist.

Sisters, Oregon, Multinomah Books, 1996, p.ll.

Capítulo V

1 TAYLOR, William. D. Editor. Valioso demais para que se perca.

Curitiba: Descoberta Editora, 1998, p. 133.


2 Ibid. P .297.

3 TUCKER, Ruth. A. Até os Confins da Terra ... São Paulo: Vida Nova,

1989, p. 158.
4 Ibid. p. 159.

5WILLARD, Dallas. A Conspiração Divina. São Paulo: Mundo Cristão,


2001, p. 245.
6 CHAPMAN, Gary. As Cinco Linguagens do Amor. São Paulo: Mundo

Cristão, 1997.
7 SPRAGGET, Daphne e JOHNSTONE, JilI. Você Pode Mudar o Mundo.

Rio de Janeiro: CPAD, 1998.

Capítulo VI

1 The Journal ofInfectious Diseases. Volume 156, nol, junho de 1987.


2 Voyages Internationaux et Santé - Vacination exigés e conseils - OMS,
1991.
a
3 Harrison Medicina Interna - Compêndio. 14 • ed. Rio de Janeiro:

MacGraw - Hill, 1999, p.597.


4 WARREN, Kenneth e MAHMOUD, Adel. Tropical and Geographical

Medicine. 2a • ed. New York: MacGraw - Hill, 1990, p. 257.


5 Voyages internationaux et Santé - Vacinations exigés e conseils - OMS,

1991.
6 WERNER, David. Onde não há médico. São Paulo: Edições Paulinas,

1989.

234
Notas bibliográficas

Capítulo VII

I STOTT, John. A Verdade do Evangelho. São Paulo: ABU Editora,


2000, p.131.
2 Ibid. p.131.

3 KORNFIELD, David. Desenvolvendo dons espirituais e equipes de


ministério. São Paulo: Sepal, 1998, p. 202, 203.
4 NEE, Watchman. Autoridade Espiritual. São Paulo: Editora Vida,

1998, p. 23.
5 ALDAG, Ramon 1. Liderança e Visão - 25 princípios para promover

a motivação. São Paulo: Pub1ifo1ha, 2002 - Pocket MBA, New York


Times, p. 35,36.
6 Ibid . p. 55.

7 PETERSEN, Eugene. Um pastor segundo o coração de Deus. Rio de

Janeiro: Textus, 2000, p.114.


8 WILLARD, Dallas. A Conspiração Divina. São Paulo: Mundo Cristão,

1998, p. 249.
9 DIMITRIUS, Jo-Ellan. Decifrar Pessoas - Como entender e prever o

comportamento humano. São Paulo: Alegro, 2000, p. 7.


10 Ibid . p. 23.

II HUGHES, Se1win. Pocket Encourager for Leaders. Surrey, Crusade

for World Reviva1, 2001, p. 10.


12 SMALLEY. Gary e TRENT, John. A Dádiva da Bênção na Família.

Campinas: United Press, 1997.

Capítulo VIII

I DONOVAN, Vincent 1. Christianity Rediscovered - An Epistle from

the Masai. 63 ed. Londres: SCM Press Ltd. 1989, prefácio VI.
2 CASTRO, Cláudio de Moura. Revista Veja, 26 de março de 2003, p. 20.
3 RICHARDSON, Don. O Fator Melquisedeque - O testemunho de Deus

nas culturas do mundo. São Paulo: Vida Nova, 1989, p. 26.


4 DONOVAN, Vincent 1. Christianity Rediscovered -As Epistlefrom the

Masai. 63 ed. Londres: SCM Press Ltd. 1989, p. 30.


5 SCHWARZ, Christian A. O Desenvolvimento Natural da Igreja.
Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 1996, p. 22.

235
Antes do ide

6 BARON, David. As Leis de Moisés para a Gerência. Rio de Janeiro:


Record, 2002, p. 112.
7 MAXWELL, John. A Jornada do Sucesso. São Paulo: Mundo Cristão,

2000, p. 217.
8 Ibid. p. 206, 207.

9 WAGONER, Kathy. Ao Mestre Com Carinho - 365 Reflexões sobre a

arte de Ensinar. São Paulo: Publifolha, 2002, p. 94.


10 Ibid . p. 104.

11 lbid . p.345.

12 NEIL, Stephen. História das Missões. São Paulo: Vida Nova, 1989,

p.293.
13 DONOVAN, Vincent 1. Christianity Rediscovered - An Epistle from

the Masai. 63 ed. Londres: SCM Press Ltd. 1989, p.148.


14 BARCLAY, William. Santiago, / e /I Pedro - El Nuevo Testamento

comentado por Willian Barclay. Buenos Aires: Ediciones La Aurora,


1987, p.194.
15 WINTER, Ralph D. e HAWTHORNE, Steven C. Missões
Transculturais - Uma Perspectiva Cultural. São Paulo: Mundo Cristão,
1987, p. 651.
3
16 Dicionário da Língua Portuguesa. 6 ed. Porto: Porto Editor.

Capítulo IX

1 WHITE, Thomas B. The Believer s Guide to Spiritual Warfare. Ann

Arbor, Michigan: Servant Publications, 1990, p. 36.


2 ANDERSON, Neil T . Quebrando Corrente. São Paulo: Mundo Cristão,

1994, p. 24.
3 PICKERING, Gilberto. Guerra Espiritual- Estratégias Missionárias

de Cristo. Rio de Janeiro: CPAD, 1987, p. 89.


4 ANDERSON, Neil T. Quebrando Correntes. (São Paulo: Mundo
Cristão, 994.
5 EMERICH, Alcione. Saindo do Cativeiro - Como ajudar pessoas a se
libertarem de alianças do passado. Rio de Janeiro: Danprewan Editora,
2002.
6 ANDERSON, Neil T. Quebrando Correntes. São Paulo: Mundo
Cristão, 1994, p. 46.

236
Notas bibliográficas

7 YANCEY, Phillip. Decepcionado com Deus. São Paulo: Mundo


Cristão,1997,p.142.
8 ANDERSON, Neil T. e RUSSO, Steve. A Sedução dos Nossos Filhos.

Belo Horizonte: Editora Betânia, 2000.


9 ANDERSON, Neil T., VANDER HOOK, Pete & Sue. Proteção

Espiritual para Seus Filhos. São Paulo: Editora e Publicadora


Quadrangular, 1996.
10 DAWSON, John. Reconquiste sua Cidade para Deus. Venda Nova:

Editora Betânia, 1995,


p.95.
11 Ibid. p.146.

12 SHERMAN, Dean. Batalha espiritual para todo cristão. Venda Nova:

Editora Betânia, 1993, p. 36.


13 PICKERING, Gilberto. Guerra Espiritual- Estratégias Missionárias

de Cristo. Rio de Janeiro: CPAD, 1987, p. 130.


14 ANDERSON, Neil. T. Quebrando Correntes. São Paulo: Mundo

Cristão, 1994, p. 215.


15 WAGNER, C. Peter. Espíritos Territoriais. Mogi das Cruzes: Unilit,

1995, p. 176.
16 PICKERING, Gilberto. Guerra Espiritual- Estratégias Missionárias

de Cristo. Rio de Janeiro: CPAD, 1987, p. 88.


17 DAWSON, John. Reconquiste sua cidade para Deus. Venda Nova:
Editora Betânia, 1995, p. 37.
18 WHITE, Thomas B. The Believer s Guide to Spiritual Warfare. Ann

Arbor, Michigan: Servant Publications, 1990, p. 96.


19 HODGE, Charles. Systematic Theology. Grand Rapids, Michigan:

Baker Books House, 1988, p. 64.


20 Ibid. p. 70.

Capítulo X

1 HAGGAI, John. Seja Um Líder. Belo Horizonte: Editora Betânia, 1998,

p.129.
2 WILKINSON, Bruce. As 7 Leis do Aprendizado. Venda Nova: Editora

Betânia, 1992, p. 113 a 116.


3 Ibid. p.121.

237
Antes do ide

4ESPANCA, Florbela. Sonetos. Rio de Janeiro: BCD União de Editores


S.A. 1998, p. 38.

Capítulo XI

I TUCKER, Ruth A. Até os Confins da Terra ... São Paulo: Vida Nova,
1989. p. 276.
2 CARD, Michael. Soul Anchor. Myrrh Records, 2000. Faixa 4.

Capítulo XII

I DONOVAN, Vincent 1. Christianity Rediscovered - An Epistle form the

Masai. 6a ed. Londres: SCM Press Ltd. 1989, p. 36.


2 HESSELGRAVE, David 1. Plantar igreja - Um Guia para Missões
Nacionais e Transculturais. São Paulo: Vida Nova. 1995, p. 282.
3 Ibid. p. 277.

4 Ibid. p.19.

5 Ibid. p. 21.

6 PATE, Larry. Missiologia - A Missão Transcultural da Igreja. São

Paulo: Editora Vida, 1994, p. 49.


7 MAXWELL, John. As 21 Irrefutáveis Leis da Liderança. São Paulo:

Mundo Cristão, 1999, p. 228.


8 HOBBS, Herschel H. Who is This? Nashville: Broadrnan Press, 1952, p. 53.

9 PATE, Larry. Missiologia - a Missão Transcultural da Igreja. São

Paulo: Editora Vida, 1994, p. 92.


la STOTT, lohn. A Mensagem de Atos. São Paulo: ABU Editora, 1994,
p.266.
11 HESSELGRAVE, David 1. Plantar Igrejas - Um guia para Missões

Nacionais e Transculturais. São Paulo: Vida Nova, 1995, p. 303.

Capítulo XIII

ITUCKER, Ruth A. Até os Confins da Terra ... São Paulo: Vida Nova,
1989, p. 136.

238
Notas bibliográficas

2 NEIL, Stephen. História de Missões. São Paulo: Vida Nova, 1989, p.


302.
3 TUCKER, Ruth A. Até os confines da Terra... São Paulo: Vida Nova,

1989, p. 192.
4 WILKERSON, David. David Wilkerson exorta a igreja. São Paulo:

Editora Vida, 1994, p. 87.


5 MAXWELL, John. A Jornada do Sucesso. São Paulo: Mundo Cristão,
2000, p. 23.
6 MAC'CURRY, Don. Esperança para os muçulmanos. Curitiba:

Descoberta Editora, 1999, p.161.


7 The New Dictionary ofThoughts. New York: Standar Books, 1971.

K Ibid.

9 BARCLAY, William. The Daily Study Bible - The Gospel of Mark.

Edimburgh: The Saint Abdrew Press, 1984, p. 312.


10 HUGHES, Selwin. Pocket Encourager jàr Leaders. Surrey: Crusade

for World Revival, 200 I, P I.


11 Ibid. p. 38.

12 SANTOS, Ivênio. Santidade ao seu Alcance. Belo Horizonte: Editora

Redenção,2001,p.91.
13 HUGHES, Selwin. Pocket Encourager for Leaders. Surrey: Crusade

for World Revival, 2001, p. 35.


14 Ibid . p. 46.

15 DIMITRIUS, Jo-Ellan. Decifrar Pessoas - Como entender e prever o

comportamento humano. São Paulo: Alegro, 2000, p. 7.


16 HUGHES, Selwin. Pocket Encourager for Leaders. Surrey: Crusade

for World Revival, 200 I, p.l1.

Conclusão

I WINTER, Ralph D. E HAWTHORNE, Steven C. Missões Transculturais

- Uma Perspectiva Estratégica. São Paulo: Mundo Cristão, 1987, p. 984.


2 DONOVAN, Vincente. Christianity Rediscoverd - An Epistle from the

Masai. 6a ed. Londres: SCM Press Ltd. 1989.


3 BARON, David. As Leis de Moisés para a Gerência. Rio de Janeiro:

Record, 2002, p. 226.

239
Este livro foi impresso em fevereiro de 2005,
composto na tipologia Times New Romam 11/13.
Os fotolitos foram feitos por Arte Sette Marketing e Editorial.
O papel do miolo é Offset 75gr/m 2 e o da capa Cartão supremo 250gr/m 2

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