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Ministério da Saúde

Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa


Departamento de Apoio à Gestão Estratégica e Participativa

Caderno de Educação

em saúde

Brasília, DF
2013
2013 © Ministério da Saúde

É permitida a reprodução total ou parcial desde que citada a fonte.


Pode ser acessado pela Biblioteca Virtual em Saúde do Ministério da Saúde:
www.saude.gov.br/bvs

Caderno de Educação Popular e Saúde - Volume 2


Tiragem: 10.000 exemplares - 1a. edição

Elaboração, distribuição e informação:

Ministério da Saúde
Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa - SGEP
Departamento de Apoio à Gestão Participativa - DAGEP

Associação Brasileira de Saúde Coletiva - ABRASCO


GT de Educação Popular em Saúde

Coordenação Editorial: Colaboração:


Julio Alberto Wong Un Bernardo Amaral Vaz
Maria Rocineide Ferreira da Silva Carla Albuquerque
Osvaldo Peralta Bonetti Carla Moura Pereira Lima
Renata Pekelman Eymard Mourão Vasconcelos
Theresa Cristina de Albuquerque Siqueira Helena Maria S. Leal David
José Ivo dos Santos Pedrosa
Produção Editorial Maria Waldenez Oliveira
Aicó Culturas - www.aicoculturas.com Pedro José Carneiro Cruz
Projeto gráfico e editoração: Bernardo Vaz Simone Leite Batista
Pinturas: Gildásio Jardim Vanderleia Laodete Pulga
Revisão dos textos: Luis Eduardo Souza Vera Joana Bornstein
Ficha catalográfica: Gustavo Saldanha Vera Lúcia de Azevedo Dantas

B823c Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa.


Departamento de Apoio à Gestão Estratégica e Participativa.

Caderno de educação popular em saúde; volume 2 / Ministério da Saúde,


Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à
Gestão Estratégica e Participativa. – Brasília: Ministério da Saúde, 2013.
232 p. : il.

ISBN:

1. Educação popular. 2. Saúde. I. Título.

CDD: 362.1042
CDU: 614.07
A democracia é, como o saber, uma conquista de
todos. Toda a separação entre os que sabem e os que
não sabem, do mesmo modo que a separação entre
as elites e o povo, é apenas fruto de circunstâncias
históricas que podem e devem ser transformadas.
Paulo Freuire
5
2013. Ano de desafio. De construção. De materialização da
Política Nacional de Educação Popular em Saúde no SUS
“... Afagar a terra Luiz Odorico Monteiro de Andrade
Conhecer os desejos da terra
Secretário de Gestão Estratégica
Cio da terra, a propícia estação e Participativa do Ministério
E fecundar o chão” da Saúde
[Milton Nascimento e Chico Buarque]

Nas palavras em poesia de Milton Nascimento e Chico Buar-


que momento de “fecundar o chão”, de fazer o movimento na terra,
misturando sabores e cores, saberes e práticas, culturas e vivências.
Como diz Clarice Lispector “... meu enleio vem de que um tapete
é feito de tantos fios que não posso me resignar a seguir um fio só;
meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas histó-
rias’’. Complementaria com o óbvio, uma história escrita por muita
gente, demasiadamente humana!
Assim é o caminhar da Educação Popular em Saúde, constitu-
ído por um conjunto de práticas e saberes populares e tradicionais
que, segundo a Política Nacional de Educação Popular em Saúde
(PNEP-SUS), apresentam-se como um caminho capaz de contri-
buir com metodologias, tecnologias e saberes para a constituição de
novos sentidos e práticas no âmbito do SUS.
A institucionalização da Educação Popular em Saúde, na ges-
tão federal do SUS, começa a ser gestada ainda no primeiro ano
do Governo Lula, em 2003. Naquela época, foi vinculada à Secre-
taria da Gestão da Educação e do Trabalho em Saúde, e, em 2005,
foi incorporada à Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa
(SGEP), fortalecendo sua dimensão estratégica para a promoção
da democracia e da participação social na construção do SUS. Na
SGEP, desde 2009, foi instituído um espaço de diálogo, articu-
lação e formulação compartilhada entre o Ministério da Saúde e
coletivos e movimentos populares2. Trata-se do Comitê Nacional
de Educação Popular em Saúde que se dedicou a formulação da
PNEP-SUS e atualmente está comprometido com as estratégias
para sua implementação.
Falar sobre democracia e participação social pressupõe o ato de
compartilhamento do poder, troca e construção compartilhada de sa-
beres, estabelecimento de relações solidárias entre gestores, trabalha-
dores e usuários do SUS tendo como objetivo sua efetivação. Fazer do
SUS uma realidade vivida e não só assegurada em lei, requer o prota-
gonismo de sujeitos dotados da capacidade de compreender o mundo
e a si mesmos e de atuarem sobre ele, com autonomia e consciência.
Paulo Freire, em atos de compartilhamento, afirma que a
8 “conscientização é um compromisso histórico”, implicando o enga-
jamento de homens que “assumam o papel de sujeitos que fazem e
refazem o mundo” 1.
É com essa perspectiva que a Educação Popular em Saúde vem
sendo construída. De 2003 até os dias atuais, ganhou espaços dos mais
diversos, instalando-se no dia a dia dos serviços, nos processos de for-
mação, na gestão cotidiana do SUS, fortalecendo-se em muitos movi-
mentos sociais populares, nas ruas e nas praças, no campo e na cidade,
constituindo-se como uma práxis em construção.
2013, ano da institucionalização da Política Nacional de Edu-
cação Popular em Saúde no SUS, fato que, além de representar mais
uma conquista, espelha o desafio de ampliação do seu exercício junto
aos gestores e trabalhadores da saúde e a sociedade como um todo.
O exercício da PNEP-SUS não está descolado do cotidiano da
organização da gestão e da atenção. Muito pelo contrário, é ideia-
-força potente para a promoção de atos que contribuam para a ga-
rantia da integralidade, ampliando e diversificando as práticas em
saúde por incorporar os modos populares e tradicionais do cuidado,
além de fortalecer a atenção básica como ordenadora das redes re-
gionalizadas de atenção à saúde.
É ferramenta estratégica por apoiar os processos de redução
das desigualdades regionais e das iniqüidades sociais, além de for-
2.
FREIRE, P. Conscientização: talecer as construções em prol das diversidades culturais e das pos-
teoria e prática da libertação: sibilidades de estar e ser no mundo. Potencializa a ampliação da
uma introdução ao pensamento
participação social e da gestão compartilhada, extremamente ne-
de Paulo Freire. 3. ed. São Paulo:
Moraes, 1980. 102 p. cessária nas relações entre os gestores e destes com os trabalhadores

Caderno de Educação Popular em Saúde


e usuários do SUS. É orientadora no processo de qualificação da
formação e fixação dos profissionais de saúde.
A PNEP-SUS em tempos de regionalização, segundo Decreto
No. 7508, qualifica e confere maior potencialidade aos processos
construtivos de enfrentamento dos desafios hoje colocados para o
SUS.
Nada mais oportuno é o fato do Ministério da Saúde, por meio
de sua Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, que conta
com a Coordenação Geral de Apoio à Educação Popular e à Mobi-
lização Social, estar publicando o II Caderno de Educação Popular
em Saúde como expressão viva do seu compromisso em dialogar
sobre novas formas e caminhos de fazer, pensar e sentir a saúde. 9
O II Caderno de Educação Popular em Saúde está constituí-
do por nove seções, denominadas trilhas: Construindo Caminhos;
Nossas Fontes; Pequena Enciclopédia de Fazeres; Outras Palavras;
Diálogo com a Experiência; Reflexões e Vivências; Entre Sementes
e Raízes e Indicações de Leituras. São trilhas instigantes que pro-
porcionarão ao leitor e aos fazedores e pensadores do SUS novos
aprendizados.
Ao se debruçar sobre o II Caderno de Educação Popular em
Saúde, você certamente se sentirá inspirado por palavras que se fa-
zem ou se fizeram em atos e, somente por terem sido vividas são
palavras demasiadamente humanas! Por isso, nosso sentimento ao
publicar o II Caderno de Educação Popular em Saúde é o de An-
tônio Cícero em seu poema Guardar:

“Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.


Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la,
isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é,
velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela
ou ser por ela ...” (Antonio Cícero)

A todos uma ótima leitura. Melhor dizendo, uma boa vivência!

Apresentação
Caderno de Educação

Apresentação
2013. Ano de desafio. De construção.
De materialização da Política Nacional de Educação Popular em Saúde no SUS ................................ 7
Luiz Odorico Monteiro de Andrade

1. Construindo caminhos
A Educação Popular em Saúde na Gestão Participativa do SUS:
construindo uma política........................................................................................................................ 16
Osvaldo Peralta Bonetti, Reginaldo Alves das Chagas, Theresa C. A. Siqueira
ANEPS: caminhos na construção do inédito viável na gestão participativa do SUS.......................... 25
José Ivo dos Santos Pedrosa, Maria Cecília Tavares Leite, Simone Maria Leite Batista, Vera Lúcia de A. Dantas

2. Nossas fontes
Introdução ............................................................................................................................................ 33
Eymard Mourão Vasconcelos
A crise da interpretação é nossa: procurando entender a fala das classes subalternas.......................... 34
Victor Vincent Valla
Leituras de artigo de Fiori, com a intenção de despertar outras leituras ............................................ 49
Maria Waldenez de Oliveira e Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva
Conscientização e educação.................................................................................................................. 55
Ernani Maria Fiori
Círculos de Cultura: problematização da realidade e protagonismo popular ..................................... 73
Vera Lúcia Dantas e Angela Maria Bessa Linhare
em saúde - volume 2

3. Diálogo com a experiência


Dialogismo e arte na gestão em saúde: a perspectiva popular nas cirandas da vida em fortaleza........ 81
Vera Lúcia Dantas e Angela Maria Bessa Linhares
Dialogando com a experiência das Cirandas da Vida em Fortaleza-CE: novas reflexões................ 103
José Ivo dos Santos Pedrosa
Construindo zonas de indeterminação............................................................................................... 109
Dênis Roberto da Silva Petuco

4. Pequena enciclopédia de fazeres


Construção coletiva em educação popular: oficinas de culinária terapêutica..................................... 119
Nara Veras Guimarães
A Educação Popular em Saúde como referencial para as nossas práticas na saúde........................... 123
Vanderléia Daron

5. Reflexões e vivências
Educação popular na formação do agente comunitário de saúde...................................................... 151
Vera Joana Bornstein, Márcia Raposo Lopes, Helena Maria S. Leal David
Diálogo com práticas populares de saúde na formação profissional.................................................. 157
Maria Waldenez de Oliveira, Aida Victoria Garcia Montrone, Aline Guerra Aquilante, Fábio Gonçalves Pinto
Formação profissional e educação popular a partir de uma experiência
curricular em graduação em enfermagem........................................................................................... 165
Helena Maria S. Leal David, Sonia Acioli

»
6. Outras palavras
Aprendendo - e ajudando - a olhar o mar:
das muitas saúdes, culturas e artes na educação popular.................................................................... 179
Julio Alberto Wong-Un
De cenopoesia e dialogicidade: da reinvenção da linguagem ao reinvento do humano.................... 191
Ray Lima
“O cotidiano de Dona Chica na luta contra a tuberculose”
e a possibilidade de aprender com ludicidade.................................................................................... 194
F. Josenildo Nascimento, Mayana A.. Dantas, Ana Paula Brilhante, Ma. Rocineide F. da Silva, Ma. Vilma N. de Lima
Cha(mamé)lé cultural: poesia gauchesca............................................................................................ 196
Maria Helena Zanela

7. Entre sementes e raízes


Extensão popular de fitoterapia: realidade em Sergipe....................................................................... 199
Simone Ma. Leite, Karen E. F. Bezerra, Maria Cecília T.Leite, Tulani C. S. Santos, Vitor Araújo Neto.
Diálogo com os cuidadores sobre práticas de cuidados populares...................................................... 205
Suely Corrêa
Receitas de sucos ................................................................................................................................ 208
Glaudy Celma Sousa Santana, Josefa de Lourdes S. Pacheco

Prêmio Victor Valla


≠ Uma ação de reconhecimento e fortalecimento da EPS no SUS ..................................................... 216
Esdras Daniel dos Santos Pereira, Osvaldo Peralta Bonetti, Julio Alberto Wong Un
A Revolta do Mangue por Rogério Dias

Sugestões de leitura........................................................................................................ 219


∏ Eymard Mourão Vasconcellos
Construindo caminhos
Fontes nas quais todos e todas nós bebemos e
continuaremos bebendo a cada momento novo do nosso
aprendizado, das nossas descobertas. Fragmentos poéticos,
melodias, escritos traçados com leveza e criatividade.
Outras palavras, outras maneiras de dizer o que a teoria
científica procura fundamentar, talvez um tanto distraídas
e mais encantadoras. Apenas, outras palavras...
A Educação Popular em Saúde na Gestão
Participativa do SUS: construindo uma política

A publicação do II Caderno de Educação Popular em Saúde


(...) devo usar toda acontece em um momento especial da caminhada da EPS. Neste
possibilidade que tenha para ano de 2013, o Ministério da Saúde, por meio da Secretaria de
não apenas falar de minha Gestão Estratégica e Participativa (SGEP), concentra esforços para
utopia, mas participar de a implementação da Política Nacional de Educação Popular em
práticas com ela coerentes. Saúde no SUS (PNEP-SUS-SUS) pactuada em maio na Comissão
(Paulo Freire) Intergestores Tripartite.
A Educação Popular em Saúde (EPS), enquanto campo teó-
Osvaldo Peralta Bonetti
rico-metodológico e prática social, tem apresentado desafios à po-
Técnico E.specializado da Sec.
de Gestão Estratégia e Partici- lítica pública de saúde para o avanço da democracia participativa,
pativa / Ministério da Saúde. afirmando o Sistema Único de Saúde (SUS) como garantidor do
Reginaldo Alves das Chagas
acesso às ações de saúde e essencialmente constituído por valores
promotores de relações mais humanizadas.
Coordenador de Educação Po-
pular em Saúde e Mobilização Ao analisar o percurso histórico da EPS é impossível não me-
Social da SGEP/MS (2011/12). morarmos que muitos caminhos foram percorridos por intelectuais
Theresa C. A. Siqueira
orgânicos na área da saúde, como Paulo Freire e Victor Valla, bem
como pelos movimentos sociais populares que fazem parte da tra-
Consultora Técnica da Coord.
Geral de Apoio à Educação Po- jetória de conquista que nos proporciona a vivência deste momento
pular em Saúde e à Mobilização atual de formulação de uma Política de EPS no âmbito do SUS.
Social da SGEP/MS (2011/12).
Refletirmos sobre a PNEP-SUS nos provoca a importância de
resgatarmos o processo de institucionalização da EPS na gestão fe-
deral. O ano de 2003 destaca-se como aquele em que inaugurou essa
aproximação, quando ocorre a conquista do Governo Lula e a Rede de
Educação Popular em Saúde apresenta uma carta de intenções ao cha-
mado grupo de transição do governo que estava estruturando a nova
proposta política do MS. Acolhida a proposta, a EPS esteve articulada
inicialmente à Política de Educação Permanente para o SUS, coorde-
nada pela Secretaria de Gestão da Educação e do Trabalho em Saú-
de (SGETS), tendo papel de contribuir com trole social por meio dos Conselhos e das
a qualificação da participação popular e com Conferências de Saúde.
a formação para o trabalho em saúde. Nes- Como referido anteriormente, na atu-
se período constitui-se a ANEPS como um alidade o MS encontra-se comprometi-
inovador espaço de interlocução e construção do com a formulação e implementação da
compartilhada entre a gestão e os atores que PNEP-SUS-SUS, que tem sido construída
se movimentam, historicamente, no campo de forma participativa e apresenta como um
da EPS. de seus canais de diálogo o Comitê Nacional
A inserção da EPS na Secretaria de de Educação Popular em Saúde (CNEPS)2.
Gestão Estratégica e Participativa, ocorrida Desde 2009, sensibilizada pela demanda de
em 2005, promove mudanças significativas qualificar a interlocução com os coletivos
no campo institucional, fortalecendo sua e movimentos de EPS, bem como pela de 17
identidade com a democratização do Siste- fortalecer o apoio e a visibilidade das prá-
ma de Saúde por meio da participação e do ticas e movimentos de EPS no contexto do
controle social. Concomitante a este fato, a SUS para o desenvolvimento de uma ges-
SGEP encontrava-se em reformulação es- tão participativa de fato, a SGEP instituiu
trutural e iniciava-se o processo de formu- o CNEPS. Este Comitê reúne um coletivo
lação da ParticipaSUS (Política de Gestão de 28 membros titulares e seus respectivos
Participativa do SUS). suplentes, sendo essas representações da so-
A vivência nos mostra hoje, que a in- ciedade civil, 13 movimentos populares e 2
serção da EPS neste contexto, comparti-
lhando seu referencial teórico-metodológi- Negra, Política Nacional de Saúde Integral da
co e aproximando suas práticas, contribuiu População LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis e Transexuais), Política Nacional de Saúde
em muito para a construção e formulação
Integral das Populações do Campo e da Floresta.
da ParticipaSUS, adensando este campo
2
Representações da Sociedade Civil no CNEPS:
e promovendo um certo “alargamento” do
Articulação Nacional de Educação Popular e
conceito de participação e controle social, Saúde (ANEPS); Rede de Educação Popular e
trazendo à cena saberes e práticas ainda in- Saúde (REDEPOP); Articulação Nacional de
visíveis nos espaços oficialmente instituídos Extensão Popular (ANEPOP); Grupo de Trabalho
de Educação Popular em Saúde da ABRASCO;
de participação popular no SUS.
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST);
Na SGEP, foi instituída a Coordena- Confederação Nacional dos Trabalhadores na
ção Geral de Apoio à Educação Popular e à Agricultura (CONTAG); Movimento Popular de
Mobilização Social, integrando o Departa- Saúde (MOPS); Movimento de Reintegração das
Pessoas Atingidas pela Hanseníase (MORHAN);
mento de Gestão Participativa, responsável
Movimento de Mulheres Camponesas (MMC);
também por fomentar políticas de promo- Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e
ção da equidade em saúde1 e apoio ao con- Saúde; Central de Movimentos Populares (CMP);
Confederação Nacional dos Agentes Comunitários
1
Política Nacional de Saúde Integral da População de Saúde; Rede Nacional de Parteiras Tradicionais.

Construindo caminhos
movimentos representativos dos gestores, lizados no caminho de um projeto popular de
como também, 9 representações de área de saúde onde haja o sentido do pertencimento
governo, ligadas às áreas técnicas do MS e popular ao SUS; a aposta na solidariedade e
instituições ligadas ao SUS. Reuniões peri- na amorosidade entre os indivíduos como for-
ódicas com o conjunto das representações ma de conquista de uma nova ordem social;
que o compõem têm sido realizadas a fim a valorização da cultura popular como fonte
de discutir e construir estratégias de forta- de identidade; a concepção de que a leitura
lecimento da EPS, as quais estão articuladas da realidade é o primeiro passo para qualquer
ao seu objetivo primeiro que é o de apoiar processo educativo emancipatório que vise
e sistematizar o processo de formulação e contribuir para a conquista da cidadania.
implantação da PNEP-SUS-SUS. Ao observarmos sua capilaridade nos
18 Para cumprir com este objetivo, em 2010 últimos anos, não podemos deixar de men-
foram realizados seis Encontros Regionais de cionar as inúmeras experiências que vem
EPS promovidos pelo MS em parceria com sendo desenvolvidas nos serviços de saúde
os movimentos sociais populares integrantes pelos trabalhadores do SUS que, por vezes
do CNEPS. Nestes Encontros ficou explíci- de forma silenciosa em relação à institucio-
ta a necessidade de reinventar a participação nalidade, sem apoio das instituições, tem
no SUS, considerar o “jeito de ser brasileiro”, buscado uma nova forma de fazer saúde,
de promover um Sistema de Saúde cada vez mais participativa, promovendo a autonomia
mais humanizado e identificado cultural- e a transformação da cultura vigente, assim
mente com a população que o constrói e o como as experiências realizadas pelos movi-
acessa cotidianamente. mentos sociais populares em suas atividades
Entende-se que a EPS apresenta-se educativas ou de mobilização. Um dado que
com potencialidade, não apenas como entendemos ter relação a este processo histó-
referencial teórico/metodológico para a rico da EPS e valide a afirmativa anterior, é
construção de políticas, haja vista as ex- o número expressivo de trabalhos apresenta-
periências reais em governos do campo da dos em congressos da área da saúde referen-
esquerda, como também, campo de práti- ciados na EPS nos últimos anos, trazendo a
ca social com amplo poder de agregação, dimensão da contribuição que este campo
alicerçado em princípios éticos e culturais tem possibilitado para a transformação das
compromissados com o popular. práticas de saúde. Para citar um exemplo,
Dentre os princípios da EPS, podemos destacamos o ABRASCO de 2010 que con-
destacar a defesa intransigente da democra- tou como eixo temático Educação Popular
cia em contraposição ao autoritarismo ainda e Movimentos Sociais, que teve o segundo
comum em nossa jovem democracia; a artic- maior numero de inscrições do congresso.
ulação entre os saberes populares e os científi- O número de iniciativas inovadoras re-
cos promovendo o resgate de saberes invisibi- ferenciadas na EPS, fomentadas ou sendo

Caderno de Educação Popular em Saúde


reconhecidas em muitas gestões estaduais versidades, secretarias estaduais e munici-
e municipais tem aumentado significati- pais e movimentos sociais populares como
vamente. Como exemplos de experiências os que acontecem em Aracaju/SE, Vacaria/
que merecem ser divulgadas, citamos as RS, Marília/SP, entre outros.
experiências relacionadas ao Departamen- Iniciativas desenvolvidas nas universi-
to de Endemias da ENSP/FIOCRUZ, a dades têm sido fortalecidas, como Especia-
exemplo da Ouvidoria Coletiva promovida lizações em Educação Popular em Saúde,
em parceria com a Secretaria Municipal de as ações relacionadas à Extensão Popular,
Saúde de Itaboraí; do projeto MobilizaSUS, como as experiências de Alagoas, Sergi-
coordenado pelo Departamento de Educa- pe, Paraíba com seus diversos projetos de
ção Permanente da Secretaria Estadual de extensão. Espera-se que as iniciativas de
Saúde da Bahia, que tem promovido articulação entre ensino, serviço e 19
uma grande mobilização por comunidade relacionadas à
meio de processos educati- educação popular em saú-
vos envolvendo atores do de sejam potencializadas
SUS de forma descen- pelo Programa Nacio-
tralizada no Estado. O nal de Reorientação
Espaço Ekobé ligado da Formação Pro-
ao projeto Cirandas fissional em Saúde
da Vida da Secretaria (Pró-Saúde) articu-
de Saúde de Fortaleza lado ao Programa de
tem trazido a contri- Educação pelo Traba-
buição das práticas po- lho para a Saúde (PET-
pulares de cuidado para o -Saúde) que em seu edital
interior do sistema, valorizan- de nº 24, publicado em 15 de
do o saber popular nos serviços de dezembro de 2011, que aponta a
saúde. educação popular em saúde como uma das
Na região Norte, ressalta-se a mobi- ações a serem trabalhadas buscando incor-
lização e articulação do Movimento pela porar o conceito do trabalho em rede na
Revitalização dos Saberes e Práticas Popu- saúde – integralidade da atenção e conti-
lares/Tradicionais de Saúde em Parintins/ nuidade dos cuidados.
AM. A implementação de Comitês de En- Um espaço que tem contribuído em
frentamento da Dengue em alguns estados muito neste processo, já identificado como
demonstra a importância do referencial das uma marca do campo são as Tendas de EPS,
práticas de cuidado e da arte e cultura na costumeiramente chamadas de Tendas Pau-
promoção da saúde; projetos de promotores lo Freire. A partir de seu precursor e fonte
da fitoterapia popular articulados com uni- inspiradora, o “Espaço Che” no Fórum So-

Construindo caminhos
arquivo ANEPS
20

cial Mundial de 2005, dezenas de tendas já pulares.


foram realizadas em eventos significativos Na 14ª Conferência Nacional de Saúde
do setor saúde3. Dentre suas características, (CNS) o Espaço Paulo Freire destacou-se
a dialogicidade entre práticas e saberes aca- como um dos ambientes da Conferência
dêmicos e populares e a superação de situa- mais propício à liberdade de expressão e à
ções-limite na saúde empregando metodo- construção de conhecimentos em saúde a
logias participativas e problematizadoras, a partir da integração dos diversos saberes, da
arte e cultura e a construção compartilhada promoção da cultura popular e principal-
entre os atores dos coletivos de EPS, desde mente um lugar onde delegadas, delegados
sua formulação. Tais ações promovem assim e a comunidade em geral puderam partilhar
a visibilidade das ações e práticas de EPS e experiências e discutir temas relevantes para
sua articulação, criando um espaço acolhe- a garantia do direito à saúde e o desenvolvi-
dor e colorido identificado à cultura popu- mento participativo do SUS. A realização
lar. Por meio da articulação com parceiros desta Tenda durante a 14ª CNS, no mo-
locais tem inaugurado um novo jeito na re- mento em que forças do controle social e dos
alização dos eventos da área da saúde, pro- movimentos populares estão engajadas pela
movendo o entrelaçamento entre a teoria e instituição da Política Nacional de Educação
a prática, trazendo para a cena atores his- Popular em Saúde, foi de significativa im-
toricamente invisibilizados neste contexto portância para a popularização do debate e
de produção do conhecimento e articulação visibilidade das práticas de EPS no SUS.
política, como militantes e cuidadores po- Destaca-se no relatório final da 14ª
CNS, na diretriz relacionada à gestão par-
3
Congresso da ABRASCO, Rede Unida, ticipativa e controle social sobre o estado:
CONASEMS, o Brasileiro de Enfermagem, de ampliar e consolidar o modelo democrático
Medicina de Saúde e Comunidade entre outros.

Caderno de Educação Popular em Saúde


arquivo ANEPS
21

de governo do SUS, a deliberação da neces- da a um conjunto de estratégias de sensi-


sidade de implementação da Política Na- bilização e mobilização, como seminários,
cional de Educação Popular, com a criação processos formativos, disponibilização de
de comissões estaduais. materiais pedagógicos; espera-se que seja
De modo geral, podemos afirmar que desencadeada junto às gestões estaduais a
o desafio atual é a institucionalização das necessária descentralização e capilarização
práticas e dos princípios da EPS no SUS, da Educação Popular em Saúde no SUS.
ou seja, publicizar a EPS a fim de contribuir O fato de esta Portaria fomentar a ar-
com melhoraria da qualidade de vida das ticulação entre a EPS e a promoção da equi-
pessoas, seja pela agregação de valores cul- dade nos provoca a refletir sobre a identi-
turais, pela incorporação de práticas e sa- dade existente entre suas intencionalidades.
beres que estão na sociedade e nos movi- Se compreendermos que a EPS nasce do
mentos populares. Institucionalidade assim comprometimento com as classes populares
entendida como o Estado reconhecer e le- e da contrariedade com as desigualdades
gitimar valores da sociedade que historica- existentes em relação aos direitos sociais no
mente foram marginalizados. País, perceberemos que esta relação é in-
Com o intuito de estimular este pro- trínseca e, portanto, possui potencialidade
cesso, a SGEP-MS publicou a Portaria Nº de articulação entre as ações das políticas
2.979 de dezembro de 2011 que repassa re- que as promovem. O referencial da EPS no
cursos federais às gestões estaduais para im- contexto da promoção da equidade tem sig-
plementação da ParticipaSUS, estabelecen- nificativos aspectos, como contribuir com
do como uma das metas a implementação os segmentos que atuam na perspectiva da
de Comitês de Educação Popular em Saúde defesa da equidade, fomentando o sentido
e Promoção da Equidade em Saúde. Alia- de pertencimento entre seus atores, inten-

Construindo caminhos
sificando identidades não só entre aqueles com as ações de EPS e destaca movimentos
de cada um destes (LGBT, negros, campo e sociais populares que tem acumulado uma
floresta, em situação de rua, ciganos), como qualificada compreensão no caminho com-
no seu conjunto, sendo que há similitudes plexo da institucionalização da EPS.
entre os condicionantes de suas situações Na análise das potencialidades da
de iniquidade, processo esse fundamental PNEP-SUS, uma dimensão significativa é a
também, na articulação da defesa do projeto articulação das práticas populares de cuida-
coletivo de saúde, elementar ao SUS. do aos serviços de saúde, pois estas atuam
O estímulo à descentralização de muito próximas dos princípios que temos
Comitês de Educação Popular em Saúde buscado efetivar no SUS, como a human-
apresenta-se como a estratégia para cap- ização, solidariedade e a integralidade, com-
22 ilarizar as ações de EPS junto às gestões preendendo estas não só como forma de
estaduais, na medida em que promove a in- cura, mas, fundamentalmente, como con-
stitucionalização de espaço de interlocução tribuidoras para a conquista de um projeto
entre atores dos movimentos sociais popu- de sociedade engajado com esses valores.
lares e as áreas de gestão do SUS. Assim, a A incorporação da EPS pelo SUS nos
PNEP-SUS se apresenta como referencial traz a dimensão do potencial apresentado
político pedagógico para a formulação e pelo trabalho em rede, o qual poderá ser
implementação de ações de EPS nas de- fortalecido enquanto referencial nas políti-
mais esferas de gestão, mas fundamental- cas de saúde, visando maior capilaridade,
mente, por meio destes espaços espera-se efetividade e democratização das mesmas.
promover a construção compartilhada e Para tanto, será fundamental a compreensão
identificada a cada realidade estadual, que de que a EPS não é apenas mais um con-
perpassa tanto a própria política de saúde, teúdo acadêmico e sim é uma prática social
as características locais do SUS, como tam- que apresenta uma produção consistente no
bém a conjuntura e organização política da campo teórico, mas que somente é apreen-
sociedade civil. Neste contexto, a configu- dida e realizada de fato, quando vinculada
ração dos Comitês de EPS não possuem ao compromisso com o SUS enquanto pro-
uma estrutura ou composição padrão e jeto de sociedade e vivenciada na prática.
sim, devem ser recriadas em cada locali- Ações de EPS poderão vir a contribuir
dade conforme a articulação e mobilização com a promoção da saúde e a qualificação
de atores que se movem no campo da ed- da educação em saúde tradicionalmente
ucação popular em saúde. O desenho im- realizada, fortalecendo vínculos emanci-
plementado no nível nacional poderá sim, patórios para que o cidadão tenha cada
servir de subsidio na formulação destes es- vez mais autonomia de decisão em como
paços no momento em que aponta áreas de se cuidar e mais amplamente no seu jeito
governo com identidade técnica e política de andar a vida. Vale destacar que na per-

Caderno de Educação Popular em Saúde


spectiva de fortalecer a mudança no mod- nas quais é envolvida, destaca-se o movi-
elo de atenção centrado na doença, é muito mento de reconhecimento e articulação que
significativa a aproximação dos serviços de a SGEP/MS está inaugurando com a popu-
APS às práticas populares de cuidado, pois lação do Circo a fim de buscar a correção das
estas carregam uma visão de mundo e de iniquidades a que as populações circenses
saúde que se aproxima dos princípios que estão expostas e potencializar o Circo como
cotidianamente temos nos esforçado para espaço de promoção da saúde.
implementar, como a integralidade, a hu- O Prêmio Victor Valla de Educação
manização e o acolhimento. Popular em Saúde congrega muitas das in-
Dentre estes processos, destaca-se o tencionalidades elencadas e proporcionou
desenvolvimento de espaços de encontro o acesso a uma grande diversidade de ex-
mediados pelo diálogo, abertos para uma periências, grande parte destas autônomas, 23
nova cultura participativa que acolhe e le- sendo desenvolvidas no interior dos serviços
gitima a contribuição do saber popular ao e por coletivos e movimentos populares. O
lado do saber técnico científico, os quais acesso às mais de 160 experiências partici-
poderão contribuir também para o desejado pantes do Prêmio evidenciou a necessidade
reencantamento popular pelo SUS. de investirmos enquanto política de saúde
No conjunto das estratégias desen- no apoio pedagógico aos atores que desen-
cadeadas pela Coordenação de Apoio à volvem estas práticas de promoção e edu-
Mobilização Social e à Educação Popular cação em saúde. Neste sentido a SGEP/MS
em Saúde para fortalecer o processo de im- encontra-se em fase de planejamento de um
plementação da Política Nacional de Edu- processo formativo envolvendo os protago-
cação Popular em Saúde, destaca-se a vis- nistas destas experiências e possibilitando a
ibilidade às práticas populares de cuidado, troca de experiências e o acesso ao referen-
destacando-se a importância dos terreiros, cial da educação popular em saúde.
das parteiras, benzedeiras, das plantas me- Essas iniciativas congregam-se ao mar-
dicinais, entre outras; a busca da interseto- co político do atual governo de desenvolvi-
rialidade, compartilhando o referencial da mento de um Projeto de Erradicação da
EPS com as demais políticas públicas; a in- Pobreza no País. No setor saúde, um avanço
serção da EPS como referencial do proces- significativo é a publicação do Decreto nº
so político metodológico da formação dos 7.508/2011 de regulamentação da Lei 8.080,
Agentes Comunitários de Saúde e Agentes que legitima a Atenção Primária como
de Controle de Endemias; e a potencial- porta de entrada do Sistema entre outros
ização dos demais processos formativos ar- avanços organizativos. Compreende-se que
ticulados ao SUS. A articulação entre arte e os avanços no modelo organizativo do SUS
cultura e a saúde é um referencial significa- somente gerarão o impacto desejado se hou-
tivo na EPS, dentre as múltiplas iniciativas ver o fortalecimento concomitante dos dis-

Construindo caminhos
positivos democratizadores da participação EPS, a quem serve e em quais espaços é
popular na política de saúde, dentre os quais propícia sua contribuição.
a EPS merece evidência. Quando entendemos que a busca da
Democratização é a palavra chave tan- transformação social perpassa as relações
to para garantirmos o acesso a todos como humanas, as formas de apropriação do con-
para a conquista de um sistema acolhedor, hecimento e de outros bens, torna-se mais
este último talvez mais complexo de ser con- compreensível que a EPS pode acontecer
quistado, pois, para garantir acolhimento é tanto no espaço da gestão, dos serviços de
necessário algo mais - o sentido de perten- saúde, de formação em saúde e dos movi-
cimento apontado por Paulo Freire. Nesse mentos populares onde foi concebida e vem
sentido, a EPS tem apontado princípios que sendo realizada.
24 podem contribuir às práticas de saúde nessa Com a PNEP-SUS, espera-se articular
busca, como a problematização da realidade o referencial da educação popular em saúde
vivenciada pelas populações enquanto ele- aos processos de gestão, formação, controle
mento básico dos processos educativos e de social e cuidado em saúde, buscando for-
planejamento no enfrentamento dos deter- talecer a gestão participativa, contribuir com
minantes sociais da saúde; a valorização do a formação em saúde em seus vários espaços
saber popular como forma de construirmos de ação - profissional, técnica, bem como for-
relações e vínculos mais efetivos, além do talecer os processos já existentes no campo
desafio de resgatarmos e articularmos as dos movimentos populares, intenção esta, que
práticas populares de cuidado aos serviços se traduz não apenas em apoio financeiro, mas
de saúde; a construção compartilhada do em relações mais próximas entre governos e
conhecimento; e a amorosidade, elemento estes movimentos na construção de projetos
intrínseco da humanização do sistema, que coletivos para a qualificação do SUS.
implica o reconhecimento do outro em sua O momento atual demonstra grande
totalidade e diversidade. fertilidade nas formulações e realizações do
Para que a EPS seja transformada em campo da EPS na política pública de saúde,
uma política do SUS temos de compreender porém, a conquista da Política Nacional de
que esta deverá contemplar a todos aque- Educação Popular em Saúde perpassa um
les que estão implicados com a política de movimento que vai além de sua pactuação e
saúde, ou seja, trabalhadores, gestores, do- instituição no marco regulatório do SUS. A
centes, educadores, estudantes e usuários. PNEP-SUS somente alcançará os impactos e
Ainda é comum a visão de que a educação transformações desejadas, se cada ator do SUS
popular somente é realizada a uma parcela sentir-se parte e protagonizar este processo de
da população mais desfavorecida e este deve implementação. O convite está posto. Espera-
ser um ponto a ser trabalhado na política, mos que, cada vez mais, esta política construa
ampliar a visão sobre o que realmente é a sentidos coletivos em sua materialidade.

Caderno de Educação Popular em Saúde


ANEPS: caminhos na construção do
inédito viável na gestão participativa do SUS

A saúde coletiva no contexto das democracias contemporâne-


as e particularmente no Brasil tem como um de seus desafios a
constituição de diálogos entre o espaço governamental (instituído) “Essa ciranda não é minha só
e os movimentos sociais na formulação e implementação das polí- Ela é de todos nós
ticas públicas. Várias estratégias e dispositivos vem sendo pensados Ela é de todos nós”
e incluídos nesse percurso na perspectiva de que o controle social (Lia de Itamaracá )
dessas políticas se efetive e, neste sentido, algumas dessas iniciativas
apontam para o fortalecimento da democracia participativa.
José Ivo dos Santos Pedrosa
Uma dessas estratégias foi à criação de um espaço de diálogo
entre os movimentos e práticas de educação popular em saúde, es- Médico. Doutor em Saúde Coletiva.
Professor Associado da Universida-
paços formativos e gestões do SUS, que surge a partir de 2003, como de Federal do Piauí
uma Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação
Popular em Saúde – ANEPS. Trata-se de uma experiência nova Maria Cecília Tavares Leite
que tem por objetivo uma relação diferenciada com o Estado capaz Assistente Social, Doutora em Ser-
de fortalecer a sociedade civil do ponto de vista popular e, ao longo viço Social. Professora do DSS/UFS
e ANEPS - Sergipe.
de um processo histórico e social mais amplo, fazer com que os
interesses do Estado sejam coincidentes com os da sociedade. A Simone Maria Leite Batista
ANEPS tem buscado, em seu percurso, construir caminhos e tri- Enfermeira, especilaização em Saú-
lhas que desencadeiem processos de reconhecimento e constituição de Púbiica. Movimento Popular
de Saúde do Estado de Sergipe e
de sujeitos, mobilizando entidades, movimentos e práticas de edu-
ANEPS.
cação popular. Desse modo, vem se construindo uma dinâmica que
possa romper com formatos verticais e hierarquizados de organiza- Vera Lúcia de A. Dantas
ção, que historicamente tem caracterizado as estratégias hegemôni- Médica, mestre em Saúde Públi-
cas de participação instituídas no âmbito das políticas públicas em ca- UECE, doutora em educação –
UFC e coordenadora pedagógica do
nosso país, que, de maneira geral, ainda se encontram pautadas nos Sistema Municipal de Saúde Escola
princípios e formas de organização da democracia representativa. da SMS Fortaleza. ANEPS.

Neste sentido a ANEPS, como um espaço de articulação, bus-


ca constituir uma ação em rede na qual vários movimentos que
dialogam, se articulam como possibilidade tos animadores dos primeiros encontros
de fortalecimento da organização popular, que foram se delineando por vários estados
aproximação de bandeiras de luta de cada do Brasil. Configurou-se uma cartografia
segmento, formação política e de interlocu- múltipla e diversa, na qual foram se incluin-
ção propositiva com os espaços instituídos, do atores da esfera institucional (estudantes
mantendo suas identidades. Resgata assim, e professores universitários, trabalhadores e
o sentido de projeto coletivo de saúde como gestores da Saúde), dos movimentos sociais
idealizado na reforma sanitária. populares e atores não necessariamente li-
Um dos propósitos originais da gados a movimentos, mas sujeitos de prá-
ANEPS tem sido o de articular e apoiar os ticas populares de cuidado como parteiras,
movimentos e práticas de educação popu- benzedeiras, educadores, entre outros.
26 lar e saúde a fim de qualificar suas práticas, Os desenhos dos encontros foram di-
desenvolver processos formativos e reflexi- versos e algumas tecnologias foram inven-
vos a partir da práxis e construir referências tadas e nomeadas como, por exemplo, as
para a formulação de políticas públicas. Farinhadas do Ceará, encontros onde um
Diante dos desafios que se apresentavam, movimento recebia os atores de outros es-
os passos iniciais revelaram a complexidade paços para que pudesse “saborear” sua expe-
desse caminhar considerando as distâncias e riência, seu jeito de acolher, suas formas de
diversidades na compreensão do que efeti- fazer e dela extrair aprendizados.
vamente se constituem práticas de educação Nesse processo outros arranjos sur-
popular em saúde e quem são seus atores. giram e se constituíram em momentos de
Como encontrá-los, promover encon- aprendizagem e se tornaram espaços re-
tros dialógicos? Como compartilhar saberes veladores da possibilidade de uma forma
e construir caminhos de organização rom- de produzir encontros diversos, plurais e
pendo com instituído eram questionamen- multiculturais. Assim, um exemplo disso,
tem sido as experiências das Tendas Paulo
Freire, que construídas nos principais En-
contros e Congressos de Saúde onde a inte-
gração de experiências diversas de diversos
estados, promove a discussão, têm proble-
matizado temas que apesar de integrarem
o cotidiano das pessoas não fazem parte da
agenda política da saúde como a importân-

“É fundamental diminuir a distância entre o


que se diz e o que se faz, de tal maneira
que num dado momento a tua fala seja a tua
prática.”. Paulo Freire
cia das práticas populares de cuidado como em um movimento que vai aprendendo a
um jeito singular e amoroso de produzir produzir “nós” para o fortalecimento dessa
saúde possibilita o compartilhamento de rede de articulações.
vivência distinto e a construção de propos- Nesses caminhos, a produção de sen-
tas de ação. tidos tem ocorrido também através da ar-
Foram também nessa perspectiva que, ticulação e constituição de fóruns perma-
desde 2003, foram construídos os diver- nentes de educação popular nos estados,
sos encontros estaduais e os 03 encontros como espaço de escuta das necessidades, de
nacionais (Brasília, em 2003; Aracaju, em formação de atores sociais para a gestão das
2006 e Goiânia, em 2010). Nessa caminha- políticas públicas, de organização, de comu-
da se foi chegando aos espaços instituídos: nicação entre os movimentos e de mobiliza-
na gestão, especialmente alguns setores do ção popular. Um processo – por vezes tenso 27
Ministério da Saúde; nos serviços incluindo – de diálogo desses movimentos e sujeitos
práticas; nas universidades, apresentando que buscam encontrar efetivos espaços de
jeitos diferentes de organizar e produzir co- interlocução com o jeito institucionalizado
nhecimentos. Nesse jeito diferente de fazer de fazer e produzir saúde (Ministério da
foram sendo realizadas formações em diá- Saúde, Secretarias Estaduais e Municipais
logo com a academia (Ekobé, -UECE, Fi- de Saúde, Universidades) sem perder suas
toterapia - UFS, Café Com Idéias - UFG, identidades e autonomia.
Saúde no Mercado – UFS) e ao mesmo Nesse percurso, a ANEPS ao mesmo
tempo criando teias entre estados e regiões, tempo em que referencia as práticas popu-
tais como a articulação, diálogos e ações lares de cuidado, de organização e culturais,
compartilhadas existentes entre os educa- não perde de vista as lutas por um projeto
dores populares do Ceará, Alagoas, Sergipe, popular de sociedade, articulando-se a ou-
Rio Grande do Sul e do Piauí. tras redes e organizações que caminham
Em todas essas iniciativas tem-se bus- nessa perspectiva como a Rede de Educa-
cado contribuir com a formação dos atores ção Popular em Saúde, a ANEPOP e o GT
que a constituem, incorporando os sujeitos de educação popular em saúde da ABRAS-
em suas potências, estimulando e apostando CO, a Rede de Educação Cidadã- RECID,
na capacidade de produzir reflexões acerca entre outros coletivos de educação popular
das próprias experiências. Assim é que os em saúde que caminham no sentido do for-
movimentos do Ceará, Sergipe e Alagoas talecimento das lutas políticas.
tem se juntado de forma solidária e muitas A criação do Comitê Nacional de Edu-
vezes sem recursos institucionais, para pro- cação Popular e Saúde - CNEPS- represen-
ver a formação em práticas de cuidado; que ta uma conquista dessa caminhada e aponta
atores do Sul passaram a contribuir com a para possibilidades de fazer política partici-
sistematização de experiências do Nordeste, pativa para além da democracia representa-

Construindo caminhos
tiva. Todo este processo desencadeou a for- que a vivenciam será um marco fundamen-
mulação da proposta do CNEPS, como mais tal. Colocando em cena uma dimensão im-
uma estratégia que tem como objetivo a am- portante da educação popular: a autorali-
pliação e o fortalecimento da luta pelo direito dade dos sujeitos na escrita da sua própria
à saúde, da luta em defesa do SUS, por meio história de luta e resistência. Olhar para sua
da participação popular, através dos já institu- realidade e contextualizá-la criticamente,
ídos espaços de participação popular nas po- percebendo-se sujeito da construção de um
líticas públicas e apostando em novas e criati- projeto popular de sociedade são uma das
vas formas de participação da população. perspectivas desse percurso formativo em
Apesar dos avanços na caminhada tri- gestação.
lhada pelos atores dos movimentos e práti- Frente a um contexto histórico no qual
28 cas que fazem a ANEPS, muitas situações- o processo de aproximação dos movimentos
-limite precisam ser superadas. Uma delas sociais e populares com o instituído, tem, via
diz respeito à própria for- de regra, resultado na total
ma de organização de um ou parcial descaracteriza-
espaço como esse. Vários Olhar para sua realidade e ção das suas propostas e na
foram os formatos já ex- contextualizá-la crit icamente, perda das identidades des-
perimentados e parece- percebendo-se sujeito da ses sujeitos e movimentos,
-nos que essa ainda é uma construção de um projeto o momento atual propi-
situação-limite que conti- popular de sociedade são uma cia uma discussão sobre a
nua a desafiar a capacidade das perspectivas desse percurso importância da participa-
inventivo-criativa dos su- formativo em gestação. ção popular na saúde e na
jeitos dessa articulação que implementação do SUS,
seguem maturando suas suscitando a necessidade
reflexões, seja na compreensão do sentido de refletir sobre a caminhada da ANEPS
político pedagógico da Educação Popular e no Brasil como uma estratégia de fortaleci-
de como ele se materializa na experiência, mento da educação popular em saúde, mo-
na percepção dos sujeitos sobre o que expe- vimento político e campo em constituição,
riência e como essa reflexão pode transfor- olhando para três dimensões: a ampliação
mar sua realidade. dos espaços de interlocução entre a gestão
A importância de produzir essas refle- do SUS e os movimentos sociais populares;
xões com base na experiência desses sujei- a capacidade de mobilizar a população pelo
tos levou à construção de uma proposta de direito à saúde e pela equidade; e como es-
formação envolvendo os outros coletivos tratégia pedagógica constituinte de sujeitos
nacionais de educação popular a que nos críticos e propositivos com potencialidade
referimos anteriormente, na qual a sistema- para formulação e deliberação de projetos
tização das experiências constituídas pelos políticos.

Caderno de Educação Popular em Saúde


Nossas fontes
Fontes nas quais todos e todas nós bebemos e
continuaremos bebendo a cada momento novo do nosso
aprendizado, das nossas descobertas. Fragmentos poéticos,
melodias, escritos traçados com leveza e criatividade.
Outras palavras, outras maneiras de dizer o que a teoria
científica procura fundamentar, talvez um tanto distraídas
e mais encantadoras. Apenas, outras palavras...
Ao Victor, depois de dois Setembros ou: primeiro poema para Victor Valla.
1. você semeou tanta e tanta coisa...
Depois do tempo dos torrentes e das que a gente pega semente
cachoeiras se faz difícil empreender a Até sem perceber
feitura artesã dos poemas. E se faz homem da terra, camponês de
A vida pega outros riachos e ficamos presos ideias novas,
ao automático cotidiano. e vira Ser Fecundo de sonhos possíveis.
Quem dera
Percorrer pelas tardes as ruas do Catete e 2.
parar nos bares e bancas, lhe procurando Passaram-se já dois setembros e meses
com esperança. mais. O mundo mudou pouco. Pouco
também fizemos nós
Mas você, Victor, já anda em outras Os seus amigos e aprendizes. Porque,
caminhadas, outras conversas de pastor de vamos conveniar, essa sua lista que ficou
ovelhas, risadas pendente é enorme.
Boas em outras companhias, em outros Mas enormes também são as esperanças,
planos, em outras lutas transcendentes. as impaciências, as viabilidades inéditas, as
Não tem tempo para nostalgias. nossas criações
Em todo o país e em todos os espaços.
Talvez, por necessidade ou por novas Em especial, veja bem o novo que surge
alegrias, você esteja começando a esquecer no olhar dos meninos, das faculdades, dos
essa sua estrada conosco. serviços, dos encontros...
Tanta coisa extraordinária
Nós, os que lembramos, E nós tão poucos para olhar, cuidar,
Não podemos nos dar esse luxo. Porque fortalecer, e etcéteras.
3. 5.
Complicando a conversa: Vou indo que o tempo apressa. Levo
Sempre Caos, a ninfa arredia e rápido o seu olhar por trás das lentes
brincalhona, vai nos impondo seu jogo de grossas, a barba mal feita, a cadeira
esconde-esconde, e nós Malvada que o apressava. E você
Simples seres alados rastejantes, vamos abraçando minha filha e rindo com ela,
costurando palavras, argumentos, estudos, perguntando: quer colo?
Evidências talvez, para lhe seguir Eu de coração rachado e você rindo
intuitivos nesse seu ritmo e jeito e rindo desde sua distância. Eu me
singulares de budista irônico. despedindo e você gozando da minha
Sementes difíceis e desafiadoras as suas, cara
heim Valla? Qual adeus? Vai virar jardineiro e nem
sabe. E na mão deixou um monte dessas
4. sementes raras
A memória é flor delicada. Cobra beijos Para cultivar, ampliar, torcer, retorcer,
e adubos. Cobra afagos para não morrer. reinventar e se refazer mais e mais.
Porque sabemos que boas linhagens são Julio Wong.
perseguidas, apagadas ou transformadas
em pacote industrial sem fruta original. Rio de Janeiro, 01 de Maio de 2012. O
Assim luar por cima da chuva. O branco de
Com seu trabalho, sua fala pausada, e os galáxia me abraçando.
óculos grossos para ver melhor o mundo
Suas maldades e suas belezas, seus visíveis Julio Alberto Wong Un
gritantes, os ocultos nas falas simples, os
invisíveis nos espíritos.
Introdução
O fortalecimento do SUS e principalmente a ampliação da Estratégia
Saúde da Família têm possibilitado que um grande número de profissionais
de saúde passe a atuar muito próximo da realidade das classes populares.
Assim, um crescente número de profissionais vem sendo despertado para
repensar suas práticas assistenciais para torná-`las mais integradas aos in-
teresses e à cultura da população. Mas isto não é fácil. Não basta querer se
integrar. É preciso saber fazê-lo. O mundo popular é marcado por valores,
interesses e modos de organizar o pensamento e a rotina de vida muito
diferente daqueles que orientam a classe média, ambiente cultural de ori-
gem de grande parte dos profissionais de saúde. O poder do doutor e das
instituições inibe a fala autêntica das pessoas mais fragilizadas, dificultando
o diálogo. Por isto, tem sido usual encontrar profissionais frustrados e até
rancorosos com as possibilidades desta integração. Alguns chegam a dizer:
“esta população não merece meu empenho de tornar as práticas assisten-
ciais mais humanizadas, criativas e participativas.”
Educação popular em saúde não é apenas a valorização da construção
de soluções para os problemas de saúde de forma dialogada e compartilha-
Eymard Mourão Vasconcelos
da. É uma arte e um saber complexo, acumulados por mais de 50 anos, para
Médico envolvido com saúde co-
munitária desde 1974. Professor
esta difícil tarefa. Victor Valla (1937-2009) foi um dos grandes intelectuais
do Departamento de Promoção que nos ajudou a avançar neste sentido.
da Saúde da Universidade Federal Norte-americano, Victor chegou ao Brasil em 1964 e logo ficou cho-
da Paraíba e membro da Rede de
Educação Popular e Saúde. cado com a intensa pobreza de grande parte da população. Este choque
mudou sua vida, que passou a ser dedicada à busca de caminhos de supe-
ração. Apesar de ser um pesquisador de grande prestígio acadêmico, nunca
deixou de buscar formas de convívio próximo com a vida e as lutas das clas-
ses populares. Com um pé no ambiente de discussão acadêmica dos intelec-
tuais da saúde pública e outro pé bem fincado no mundo popular, percebia
como que a maioria das lideranças e dos profissionais mais progressistas do
setor saúde não compreendia bem os comportamentos e o modo de pensar
da maioria da população.
Grande parte de seu esforço de pesquisa foi no sentido de destrinchar
as incompreensões mais importantes, buscando encontrar explicações que
pudessem ajudar os profissionais, que atuam na assistência, a superarem os
entraves para um trabalho compartilhado. Para ele, nós, profissionais da
saúde, é que não estamos compreendendo bem o que chamamos de resis-
tência ou falta de interesse e motivação da população.
A crise da interpretação é nossa:
procurando entender a fala das classes subalternas

As grandes mudanças que têm ocorridas nos últimos anos - a


queda do Muro de Berlin e subsequente fim do socialismo real, a
vitoriosa onda neoliberal e o processo de globalização que se ins-
taura hoje no mundo - exerceram um papel profundo no nosso
modo de pensar a educação popular e o trabalho comunitário. Pos-
sivelmente, um dos temas que mais sofreu questionamento como
resultado destas mudanças diz respeito às formas através das quais
as sociedades transformam-se. Enquanto a revolução ou a rebelião
em grande escala, na realidade, sempre foi uma exceção e não a
regra, as mudanças ocasionadas pelas forças progressistas têm mais
a ver com resistências sutis e pequenos levantes. Embora me-
Victor Vincent Valla
nos dramáticas, servem para minar a legitimidade política de Graduou-se em Educação, doutor
sistemas diferentes de exploração, e ao mesmo tempo, tendem a em História pela USP e pós gradu-
ação em Saúde Coletiva. Foi um dos
indicar melhor o sistema de crenças das classes subalternas do que
criadores do Centro de Estudos da
os confrontos diretos (Serulnikov, 1994). E neste sentido, talvez a População da Leopoldina (Cepel),
grande guinada, a principal mudança de ótica com relação aos tra- criado entre 1987 e 1988, conside-
rado, segundo ele, um brilhante mo-
balhos que são desenvolvidos com as classes subalternas se refere a mento de fusão da vida acadêmica
compreensão que se tem de como pessoas dessas classes pensam e com as aspirações populares, e onde
passou a ter contato mais próximo
percebem o mundo. com as comunidades. Participou
Depois de vários esforços para melhor compreender este cam- ativamente do Grupo de Trabalho
Educação Popular da Associação
po de ideias (Valla, 1992; Valla, 1993), duas questões têm ficado Nacional de Pós-Graduação e Pes-
mais claras para mim. A primeira é que nossa dificuldade de com- quisa em Educação (ANPEd), du-
rante duas décadas, marcando forte-
preender o que os membros das chamadas classes subalternas es- mente o seu modo de funcionamen-
tão nos dizendo está relacionado mais com nossa postura do to e a sua identidade.

que com questões técnicas como, por exemplo, linguísticas1. Falo


1
“A categoria de subalterno é certamente mais intensa e mais expressiva que a
simples categoria de trabalhador. O legado da tradição gramsciana, que nos vem
por meio dessa noção, prefigura a diversidade das situações de subalternidade, e sua
riqueza histórica, cultural e política. Induz-nos a entender a diversificação de
de postura, referindo-me à nossa dificul- tamente não é nova no campo de educação
dade em aceitar que as pessoas “humildes, popular - trata das nossas dificuldades em
pobres, moradoras da periferia” são capazes interpretar as classes subalternas, e que a
de produzir conhecimento, são capazes de “crise de interpretação” é nossa (Martins,
organizar e sistematizar pensamentos sobre 1989), assim como também é o nosso enfo-
a sociedade, e dessa forma, fazer uma inter- que da idéia de “iniciativa”. Falo de iniciati-
pretação que contribui para a avaliação que va porque penso que na relação profissional/
nós fazemos da mesma sociedade. população, muitos de nós trabalhamos com
A segunda é que parte da nossa com- a perspectiva de que a “iniciativa” é parte da
preensão do que está sendo dito decorre da nossa tradição, e que a população falha nes-
nossa capacidade de entender quem está te aspecto, fazendo com que seja vista como
36 falando. Com isso, quero dizer que dentro passiva e apática3.
das classes subalternas há uma diversidade
de grupos (Martins, 1989), e a compreen- Se sou referência, como chegar
são deste fato passa pela compreensão das ao saber do outro?
suas raízes culturais, seu local de moradia e
Ao relatar as relações de profissionais/
a relação que se mantém com os grupos que
mediadores com a população, uma contri-
acumulam capital2.
buição importante parece ser a de citar o
Na realidade, essa discussão - que cer-
máximo possível a fala dela, pois tal proce-
dimento permite que outros tenham a pos-
concepções, motivos, pontos-de vista, esperanças, no
sibilidade de interpretar o que está sendo
interior das diferentes classes e grupos subalternos”.
(Martins, 1989, p. 98). dito. A própria forma de relatar uma ex-
2.
O Departamento de Endemias Samuel Pessoa,
periência indica a concepção de mundo de
Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo quem faz o relato. Neste sentido, é possível
Cruz, desenvolve uma discussão semelhante, embora afirmar que os profissionais e a população
de origem diferente. Professores Paulo Chagastelles não vivem a mesma experiência da mesma
Sabroza, Luciano M. de Toledo e Carlos H. Osanai
propõe a utilização do termo “grupos sociais” em vez de maneira. A forma de trabalho dos profissio-
“classes sociais” ou “classes trabalhadoras”, por exemplo.
A argumentação que vêm utilizando é de que uma 3.
“Ao colocar em discussão a questão da visão dos
epidemia de dengue, por exemplo, numa cidade como ‘dominantes’ sobre as favelas, procuramos demonstrar
a do Rio de janeiro, pode atingir uma favela, enquanto que embutido no interior desse ponto há um outro
outra não, embora as duas favelas sejam compostas de aspecto metodológico: quem coloca o problema
classes trabalhadoras. A diferença seria na maneira da favela, seja acadêmico ou administrativo, são
em que seus moradores ocupam o espaço e a maneira os próprios construtores das favelas. Neste sentido,
em que a água seja distribuída. Assim, embora todos os muitos programas propostos pelas autoridades
os moradores sejam de favelas, representam grupos não são, na realidade, propostas, mas respostas
sociais diferentes. Para evitar a repetição do termo às ações dos populares. Com isso, pretendemos
“classes subalternas”, estarei utilizando o termo ressaltar a ‘atividade’ onde tradicionalmente são vistas
“população”como palavra substitutiva. a ‘passividade’ e a ‘ociosidade’”. (Valla, 1986, p. 27).

Caderno de Educação Popular em Saúde


nais (no partido político, na associação de cepção de que essa mesma população tem
moradores, na igreja) pode não estar levan- pouca autonomia para tomar a iniciativa.
do isso em conta, principalmente porque o É provável que dentro da concepção de
projeto que se desenvolve é provavelmente que os saberes dos profissionais e da popu-
anterior ao contato com a população. lação são iguais, esteja implícita a ideia de
O exemplo que ilustra este ponto é o que o saber popular mimetiza o dos profis-
trabalho que o profissional de saúde pública sionais. Se a referência para o saber é o
desenvolve com a população moradora das profissional, tal postura dificulta a che-
favelas e bairros periféricos. Toda proposta gada ao saber do outro. Os saberes da po-
dos sanitaristas pressupõe a “previsão” como pulação são elaborados sobre a experiência
categoria principal, pois a própria ideia de concreta, a partir das suas vivências, que são
prevenção implica num olhar para o futuro. vividas de uma forma distinta daquela vivi- 37
Mas, poderia ser levantada como hipótese da pelo profissional. Nós oferecemos nosso
de que estes setores da população condu- saber por que pensamos que o da popula-
zem suas vidas com a categoria principal ção é insuficiente, e por esta razão, inferior,
de “provisão”. Com isso se quer dizer que quando, na realidade, é apenas diferente.
a lembrança da fome e das dificuldades de
sobrevivência enfrentadas no passado, faz O que é que percebo
com que o olhar principal seja voltado para na fala do outro?
o passado e preocupado em prover o dia de
Num debate sobre o fracasso escolar na
hoje. Uma ideia de “acumulação”, portanto.
escola pública do primeiro grau, uma das
Neste sentido a proposta da “previsão” esta-
participantes desenvolveu um raciocínio
ria em conflito direto com a da “provisão”4.
extraordinariamente simples, mas esclarece-
É comum a população delegar-nos
dor. Trabalhou com o seguinte pressuposto:
autoridade para tomar a iniciativa em tra-
embora o professor tenha um livro didático
balhos desenvolvidos em conjunto (Con-
ou notas como referência, faz, na realidade,
selhos Municipais e Distritais de Saúde,
uma seleção da matéria que oferecerá aos
zonais de partidos políticos, por exemplo),
alunos. A seleção que faz provavelmente de-
pois tal atitude coincide com a nossa per-
ve-se a um domínio maior sobre a matéria,
ou, quem sabe, a uma afinidade com algu-
4.
As primeiras idéias são da Professora Marlene
Schiroma Goldenstein, palestrante, III Encontro mas ideias a ser oferecidas. Mas o importan-
Estadual de Educação e Saúde, Universidade te é o reconhecimento de que o professor faz
Estadual do Rio de Janeiro, dezembro, 1992. O uma seleção da matéria, oferecendo alguns
exemplo onde são utilizadas as categorias “provisão”
pontos e deixando outros de lado.
e “provisão” é da antropóloga Lygia Segala, que
empregou os termos no seminário “A construção Os alunos, por sua vez, também fazem
desigual do conhecimento”, realizado no Dep. de uma seleção. A atenção exigida pelo profes-
Endemias Samuel Pessoa, junho, 1992.

Nossas fontes
Fora do Eixo
38

E neste sentido, talvez a grande guinada, a principal mudança de ótica com relação aos trabalhos que são desenvolvidos com
as classes subalternas se refere a compreensão que se tem de como pessoas dessas classes pensam e percebem o mundo.
sor não é suficiente para fazer com que tudo do professor, pois é isso que foi retido pelo
seja assimilado pelos alunos. Justamente de- aluno. É também assim que se processa a
vido a sua história de vida, alguns pontos são fala do profissional com a população e vice
vistos com mais atenção do que outros, fa- versa. De acordo com a formação de cada
zendo com que sejam retidos e os outros não. um, a sua história de vida e as suas vivên-
É na hora da avaliação – disse a cias de cada dia, uma leitura do outro é feita,
expositora – que começam os problemas, não necessariamente de tudo que o outro
pois é uma prática comum não pedir que fala, mas daquilo que chama mais atenção,
seja relatado pelos alunos nem o que o pro- daquilo que mais interessa5.
fessor expôs, nem o que o aluno percebeu,
mas sim, qualquer aspecto do conteúdo que 5.
Essas ideias sobre avaliação foram desenvolvidas
estava no livro5. pela Professora Marisa Ramos Barbieri
(Departamento de Psicologia e Educação, Faculdade
Na realidade, a avaliação teria que ser de Filosofia, Ciências e Letras, USP, Ribeirão
sobre aquilo que o aluno percebeu na fala Preto) durante a mesa redonda “A escola: Seus
agentes e interlocutores”. Seminário sobre Cultura

Caderno de Educação Popular em Saúde


O que, frequentemente, para o discurso dentro do discurso aparentemen-
profissional é conformismo pode te repetido. Inversamente, uma postura de
ser para a população uma avaliação desprezo não detectaria o “desdito” na fala
rigorosa dos limites de melhoria. das mães. Três falas de moradoras de favelas
podem ser esclarecedoras dessa mesma di-
No seu livro Produção do Fracasso Esco-
ficuldade dos profissionais em compreender
lar, Maria Helena de Souza Patto inclui um
o discurso popular.
capítulo sobre a fala das mães dos alunos
A primeira trata de descrever a tuber-
“fracassados” (PATTO, 1991, p. 269). Não
culose como uma doença hereditária, onde
foi pretensão da autora fazer uma análise
seu tratamento é garantido pelo ar puro,
dos discursos das mães. Mas quem se pro-
descanso e boa alimentação. Apesar de o
põe a isso perceberá alguns eixos de
médico insistir com os moradores de uma 39
contradições. A fala das mães tende a
favela carioca de que a tuberculose é causa-
reproduzir a fala dos professores, direto-
da por uma bactéria e que há medicamen-
res de escolas e administradores escolares,
to hoje para seu tratamento, os moradores
onde um discurso aparentemente técnico e
continuavam a manter sua opinião.
científico explica porque os alunos “fracas-
A hipótese popular não desarticula
sam” e não aprendem. Mas é no fim do seu
causa e efeito. Associa a má qualidade de
próprio discurso que as mães acabam ne-
vida à repetição frequente desta doença
gando a medicalização e individualização
em seu extrato social. Não separa a do-
do fracasso dos seus filhos. Ou seja, a con-
ença da dinâmica social em que ela ocorre.
tradição é apenas aparente, pois justamente
Encara-a como fenômeno social. Entende
na repetição da fala dos professores, há um
que está na melhoria da sua qualidade de
momento em que elas negam o que tinham
vida, a “cura” social para este mal. (Peregrino
dito, “comparando o desempenho destes em
1993).
tarefas domésticas, no trabalho precoce ou
Uma outra moradora de favela carioca
em brincadeiras com os amigos... apontam
declara: “Quem visse o que eu já tive em
individualmente, ainda que de forma frag-
Minas...minha vida tá boa sim” (Cunha,
mentária, para muitas das determinações
1994). Numa outra favela do Rio de Janei-
institucionais do fracasso dos seus filhos...
ro, um líder comunitário comenta: “Não
pressões relativas à compra do material es-
tem mais problema, pois nossa favela já re-
colar... agressões físicas e verbais contra as
cebe água duas a três vezes por semana” 6. A
crianças...” (PEREGRINO, 1993, p. 69).
tendência dos profissionais que ouvem estas
Certamente a atenção dada à fala das
mães permitiu a percepção sobre outro 6.
Reunião da Comissão de Água do Complexo
das Favelas da Penha, Rio de Janeiro, promovida
e saúde na escola, promovido pela Fundação para o pelo Centro de Estudos e Pesquisas da Leopoldina
Desenvolvimento da Educação, 1992, (Alves, 1994). (CEPEL), abril 1994.

Nossas fontes
falas, é de entendê-las como sendo confor- radores de favelas pagam e a obrigação que
mistas, principalmente para quem tem co- o Estado tem de devolvê-los na forma de
nhecimento de causa do que significa rece- serviços ( neste caso, através da água). Meus
ber água em sua casa duas a três vezes por argumentos foram além: não cabe a Asso-
semana (Valla, 1994). ciação de Moradores preencher o papel de
O que cabe destacar aqui é a necessida- prefeitura ou governo, mas sim os morado-
de de entender melhor as “falas como a da res organizados reivindicando os seus direi-
moradora e as alternativas de condução de tos. Novamente o sorriso condescendente e
vida”, que têm como seu ponto de partida o comentário: “Professor, se nós moradores
a “leitura e representação de uma história, entregássemos a responsabilidade de distri-
referenciada em sua experiência de vida e buir água à CEDAE, iria ser o fim da nos-
40 que...oriente sua forma de estar no mundo” sa água. Se as favelas têm água, é por cau-
(Cunha, 1994). sa das Associações de Moradores, mesmo
O que frequentemente para o profis- com todos os seus problemas”. Ou seja, o
sional é conformismo, falta raciocínio que eu utilizei,
de iniciativa e/ou apatia, é O que frequentemente para era acadêmico, e, diga-se
para a população uma ava-
o profissional é conformismo, de passagem, correto. Em
liação (conjuntural e ma-
terial) rigorosa dos limites
falta de iniciativa e/ou apatia, é troca dos impostos pagos,
quem tem de oferecer ser-
da sua melhoria. O autor para a população uma avaliação viços de qualidade é o go-
deste trabalho teve muito (conjuntural e material) rigorosa verno, e não a população
dificuldade em compre- dos limites da sua melhoria. numa espécie de mutirão.
ender o sorriso condes- A resposta da liderança
cendente da liderança da inverteu a lógica: se não
favela quando insistiu com ele que “duas ou fosse pelo esforço dos moradores, organi-
três vezes por semana” era insuficiente e que zados nas suas associações, não haveria
o certo era 24 horas por dia. água nas favelas. O que ele queria di-
Na mesma conversa com esta lideran- zer era que a CEDAE, na realidade, não
ça, foi colocado por mim que os moradores tem política de distribuição de água para
de favela teriam de reivindicar a presença as favelas, mas que as Associações de Mo-
mais sistemática da Companhia de Água e radores conseguiram “puxar” a água atra-
Esgoto (CEDAE) com a devida urgência, e vés da sua organização, e não insistir nesta
que as Associações de Moradores não de- política significava abrir mão da água. Ou
veriam estar administrando a água no lugar seja, atrás da fala desta liderança, havia uma
da CEDAE. Neste momento, utilizei uma resposta teórica para minha proposta teóri-
discussão teórica desenvolvida no interior ca: os governos no Brasil não estão muito
da academia sobre os impostos que os mo- preocupados com os moradores de favelas

Caderno de Educação Popular em Saúde


na elaboração das suas políticas, e somente É necessário que o esforço de com-
o esforço dos moradores é que garante sua preender as condições e experiências de vida
sobrevivência. como também a ação política da população
Nesse mesmo sentido, há estudiosos seja acompanhado por uma maior clareza
da questão de participação popular que das suas representações e visões de mundo.
entendem que embora haja profissionais Se não, corremos o risco de procurar (e não
preocupados com a necessidade da popula- achar) uma suposta identidade, consciência
ção organizar-se e reivindicar seus direitos de classe e organização que, na realidade, é
e serviços básicos de qualidade, na realida- uma fantasia nossa (Martins, 1989).
de a tradição dominante no Brasil é o da Quantas vezes se pede para a população
participação popular, isto é, convite das au- se manifestar numa reunião, como prova do
toridades para que a população tenha uma nosso compromisso com a “democracia de 41
participação mais frequente. Além disso, classe média”. Mas uma vez passada a fala
frequentemente as autoridades querem a popular, procuramos voltar “ao assunto em
participação da população para poder so- pauta”, entendendo que a fala popular foi
lucionar problemas para os quais não dão uma interrupção necessária, mas com certe-
conta. Nesta concepção está incluída a ideia za, sem conteúdo e sem valor.
de que o aceite do convite de participar se- Nas escolas públicas, há professores
ria uma forma dos governos se legitimarem. que detectam que a percepção de tempo
Justamente a descrença da população, tal dos alunos não corresponde a mesma lógica
como manifestada acima pela liderança da temporal inscrita na perspectiva histórica
favela, no interesse dos governos de resolver com que trabalham na sala de aula. Assim,
os seus problemas, faz com que sua forma há um significado que os alunos “atribuem
de participar seja diferente do que a suposta aos acontecimentos inaugurais (o primei-
pelo convite. E embora muitos profissionais ro aniversário, o primeiro ano na escola...e
sejam sinceros na sua intenção de colabo- aos fatos coditianos)” (Cunha, 1994). No-
rar com uma participação mais efetiva e de vamente, aparece uma contradição aguda,
acordo com os interesses populares, mesmo desta vez entre a maneira de “dar ao peque-
assim a população vê estes profissionais no fato o acontecimento” e a historiografia
como sendo atrelados às propostas das au- marxista, que valoriza “através do conceito
toridades em que não crê. Daí sua aparente de processo as mudanças macro-estrutu-
falta de interesse em “participar” 7. rais e as conjunturas político-econômicos”
(Cunha, 1994).
7.
Arguição desenvolvida pelo Professor José
Carlos Rodrigues, da Universidade Federal usuários organizados da região da Leopoldina. Mary
Fluminense, durante a defesa da dissertação A Jane de Oliveira Teixeira. Escola Nacional de Saúde
vigilância epidemiológica e o controle público em Pública, Fundação Oswaldo Cruz, 1994.
tempos de SUS: A fala dos profissionais e dos

Nossas fontes
Não é nosso desejo que garante a su- balternas, mas, sim, a avaliação correta da
posta unidade das classes subalternas. maneira com que compreendem o mundo.
José de Souza Martins avalia que as “...a prática de cada classe subalterna e de
muitas dificuldades que os pesquisadores, cada grupo subalterno, desvenda apenas um
políticos militantes e profissionais encon- aspecto essencial do processo do capital....
tram na compreensão da fala da população Há coisas que um camponês, que esta sen-
têm como uma das explicações a per- do expropriado, pode ver, e que um operário
cepção do tempo. E é o reconhecimen- não vê. E vice-versa” (Martins, 1989).
to desta percepção temporal das classes A atribuição de identidade, consciência
subalternas que permite explicar em parte e organização, bem como das relações so-
sua diversidade. O desconhecimento desta ciais, baseadas na classe operária, às demais
diversidade é que faz com que a compreen- classes subalternas produz uma forte distor-
são das suas lutas e seu limites não sejam ção. Quando se utiliza este tipo de avaliação
apreciados (Martins, 1989). Não é o nos- para outros grupos sociais, como por exem-
so desejo, nem nosso incentivo verbal, que plo, para os camponeses, a impressão que
garante a suposta unidade das classes su- se tem é de que o processo histórico anda

É necessário que o esforço de compreender as condições e experiências de vida como também a ação política
da população seja acompanhado por uma maior clareza das suas representações e visões de mundo.

Arquivo UPAC

Caderno de Educação Popular em Saúde


mais rápido para os demais do que para o exploradas, meio e instrumento (ao invés de
camponês. Tal visão foi o que levou Lenin instrumentalizá-las), para desvendar o lado
a declarar durante a primeira fase da Re- oculto das relações sociais com os olhos
volução Russa que “ o real (...) não é o que deles, revelando-lhe aquilo que ele enxerga
os camponeses pensem (...) e sim o que de- mas não vê, completando, com ele, a produ-
preendem das relações econômicas da atual ção do conhecimento crítico que nasce da
sociedade” (Lenin, 1974). Nesta perspecti- revelação do subalterno como sujeito”.
va, o agente ativo da História acaba sendo o O grande poder de síntese do António
capital e não o trabalhador. Em outros ter- Gramsci apontou para esta questão quando
mos, a “História esta necessariamente em chamou atenção para o fato de que “...o ele-
conflito com a consciência que dele têm os mento intelectual ‘sabe’, mas nem sempre
seus participantes” (Martins, 1989). compreende, e muito menos ‘sente! (Gra- 43
Quero levantar a hipótese de que tal msci, 1978).
como Martins nos alerta para perceber
como a relação do camponês com o capi-
Invertendo o significado, sem
tal é diferente desta relação com o operário,
deformar as palavras.
também é diferente a relação do capital com
o morador de favela ou bairro periférico da Carlo Ginzburg, na sua belíssima obra,
grande metrópole (biscateiro, subemprega- O Queijo e os Vermes, levanta uma questão
do, empregado de serviços). que se aproxima àquelas levantadas por José
O que está implícita nessa discussão é de Souza Martins. Ginsburg questiona o
a percepção de que a forma do trabalhador argumento de que as ideias de uma época
exprimir sua visão de mundo e sua con- têm sua origem nas ideias das elites, as clas-
cepção de história e da sociedade em que ses superiores, e que sua difusão chega às
vive está estritamente relacionada com a classes subalternas de uma forma mecânica,
maneira em que se relaciona com o capital: sofrendo uma deterioração e sendo defor-
de uma forma dinâmica, ou de uma forma madas na medida em que são assimiladas
indireta e oscilante. pelas classes subalternas. Martins, falando
Esta maneira de colocar a questão do conhecimento produzido pelas classes
temporal parece fundamental, pois nos- subalternas, propõe que o saber das classes
sa percepção de tempo se for baseada na populares é mais do que ideologia, “é mais
relação do operário com o grande capital, do que interpretação necessariamente de-
pode nos levar a ver o camponês, ou o mo- formada e incompleta da realidade do su-
rador da periferia, como sendo “incapaz” balterno. É neste sentido, também, que
e necessitando nossa “ajuda” para torná-lo a cultura popular deve ser pensada como
capaz. É necessário tomar como premissa cultura, como conhecimento acumulado,
“o pensamento radical e simples das classes sistematizado, interpretativo e explicativo,

Nossas fontes
e não como cultura barbarizada, forma de- anjos isolava Maria das companheiras, con-
caída da cultura hegemônica, mera e pobre ferindo-lhe uma aura sobrenatural. Para
expressão do particular” (Martins, 1989). Menocchio o elemento decisivo era, ao
Ginsburg discute o que ele chama de contrário, a presença das ‘outras virgens’,
“circulariedade”, isto é, de que as influências que lhe servia para explicar da forma mais
vão de baixo para cima e de cima para bai- simples o epíteto atribuído tanto a Ma-
xo. Com isso quer dizer que tanto as classes ria quanto às outras companheiras. Desse
subalternas influenciam as ideias das elites modo, um detalhe acabava se tornando o
como estas mesmas classes superiores exer- centro do discurso, alterando, assim, todo o
cem influencia sobre as ideias das classes seu sentido”.
subalternas (Ginsburg, 1987). Ginsburg aponta para a questão de que
44 Trabalhando com a concepção de cul- é mais importante discutir como Menoc-
tura oral, Ginsburg cha- chio leu e não tanto o que
ma a atenção para o fato leu: “é decifrar sua estra-
de que a leitura feita por
(...) a cultura popular nha maneira de adulterar e
quem recebe muito a in- deve ser pensada como alterar o que lê, de recriar”
fluência de uma cultura cul tura, como conhecimento (Ginsburg, 1987).
oral (e neste caso não é acumulado, sistematizado, Uma antropóloga
somente uma discussão de interpretativo e explicativo, e com grande experiência
um moleiro italiano do sé- não como cultura barbarizada, de trabalho com traba-
culo XVI, mas das classes forma decaída da cultura lhadores rurais assistiu à
subalternas no Brasil de hegemônica, mera e pobre seguinte cena: dois tra-
hoje) lê como se fosse com balhadores analfabetos
um filtro que “faz enfatizar
expressão do particular. olhando para uma carti-
certas passagens, enquan- lha sobre exploração dos
to ocultava outras, exagerava o significado trabalhadores no campo. Quando viram o
de uma palavra, isolando-a do contexto” patrão, gordo e forte de um lado, e o tra-
(Ginsburg, 1987). balhador rural magro e fraco do outro, um
Como exemplo, o autor destaca o mo- comentou para o outro: “Quem somos nós?
leiro Menocchio falando em público que “O outro respondeu:” É claro que nós somos
era um absurdo acreditar que Maria, mãe de a pessoa mais forte, pois unidos nós somos
Deus, era virgem. Mas quando foi chamado fortes, e o patrão é fraco sozinho, diante da
pela Inquisição a depor, citou um texto que nossa união” 8. Isto lembra o comentário do
continha cenas de um afresco onde Maria
aparecia com outras virgens, no templo. As-
8
A cena relatada foi assistida pela Maria Emília L.
Pacheco, da Coordenação Nacional da Federação de
sim, “sem deformar as palavras, inverteu o
Órgãos de Assistência Social e Educação (FASE),
significado”, pois, no texto, a aparição dos Rio de Janeiro, 1994.

Caderno de Educação Popular em Saúde


Professor Renato Janine Ribeiro, no Posfá- “A gente não quer só comer. A gente quer
cio do livro do Ginsburg: “O que Menoc- prazer para aliviar a dor”. Neste sentido, a
chio compreende mal é, na verdade, o que construção de aparências, que pode ser en-
ele compreende de outro modo”. (Gins- tendido como a construção de sonhos, não
burg, 1987) deve ser visto como uma forma apenas de
“escapar da realidade”, mas pode estar indi-
Rompendo a ordem predeterminada do cando uma concepção mais ampla de vida.
mundo por um esforço da imaginação. “Prazer para aliviar a dor”, então, pode
tomar vários sentidos para a população, dis-
É possível que um dos grandes
tintos dos sentidos que têm para a classe
problemas para os profissionais,
média. Certamente, um dos sentidos é o de
pesquisadores e militantes seja a forma com
que as classes subalternas encaram uma vida,
que a vida vale a pena viver, mesmo den- 45
tro de uma perspectiva de que não se pode
existência marcada, cercada de pobreza e
vislumbrar uma saída no futuro para o so-
sofrimento. É bem provável que estes setores
frimento e a pobreza que se atura diaria-
da população tenham uma enorme lucidez
mente. Se, de um lado, este enfoque pode
sobre sua situação social, como no caso da
ajudar a compreender por que seja possível
liderança da favela acima. Mas clareza da
“passar fome para comprar uma TV... o êx-
sua situação social pode significar também
tase com o futebol... com o alcoolismo...os
clareza de que uma melhoria significativa
jogos de azar” , de outro lado, também ajuda
seja uma ilusão. Neste sentido, a crença em
a entender porque “ as religiões se oferecem
melhorias e numa solução mais efetiva pode
muitas vezes como perspectivas substituti-
apenas ser um desejo, embora importante,
vas (compensação no além... os eleitos do
da classe média comprometida. Isso signi-
Senhor=consciência substitutiva de elite...
ficaria que a percepção da população seria
acesso a um mundo de protetores, trans-
mais lúcida e realista, a não ser que se con-
ferência estática a um outro cosmo)” (Evers,
figure uma conjuntura com indicações de
1985).
possibilidades reais de mudança que favo-
A cultura das classes subalternas é uma
reça as classes subalternas.
tentativa de explicar esse mundo em que se
Se a argumentação acima procede,
vive. Se, no entanto, não dá conta de expli-
então é possível que a relação que os pro-
car tudo, (e daí a razão de se recorrer à má-
fissionais estabelecem frequentemente com
gica), tampouco a ciência explica tudo
a população, acaba sendo de uma cobrança
(Martins, 1989). Como expressão dos
de busca permanente de uma sobrevivên-
vencidos até agora, a cultura popular é tam-
cia mais racional e eficiente (Evers, 1985).
bém a “memória da alternativa....uma exi-
A frase tão conhecida dos Titãs pode estar
gência, sempre postergada e longínqua, da
indicando, no entanto, um outro enfoque:
realização de justiça” (Chuai, 1990). Satria-

Nossas fontes
Arquivo UPAC
46

A cultura das classes subalternas é uma tentativa de explicar esse mundo em que se vive. Se, no entanto,
não dá conta de explicar tudo, (e daí a razão de se recorrer à mágica), tampouco a ciência explica tudo.

ni oferece a idéia de que a cultura popular, emudecido” (Martins, 1989).


para poder se afirmar neste mundo do ven- Martins (1989) sugere que a cultura
cedor, utiliza a duplicidade, o duplo código, popular “deve ser pensada como... conheci-
“...o afirmar e o negar, o obedecer e o de- mento acumulado, sistematizado, interpre-
sobedecer” (Martins, 1989), “o ajustamen- tativo e explicativo...teoria imediata” . Neste
to aos valores dominantes e a sua rejeição; sentido, o aparente absurdo para o profis-
interpretações lúcidas combinam-se com sional tem uma lógica clara para a popu-
ilusões aparentemente alienadas” (Evers, lação. Numa sociedade onde a concepção
1985); “...um inconformismo profundo... dominante é de que cada um é exclusiva-
sob a capa do fatalismo” (Chuai, 1990). Um mente responsável por sua saúde e dos seus
estilo de vida que “se manifesta na lingua- filhos, mas onde também se aprende ainda
gem metafórica, na teatralização que põe que Deus é quem decide sobre a morte das
na boca do outro o que é palavra do sujeito crianças, o suposto conformismo da mãe

Caderno de Educação Popular em Saúde


pode estar representando uma elaboração de Conclusão
um conhecimento mais complexo. Se, por
Talvez uma das coisas mais difíceis para
exemplo, o nascimento de um filho repre-
os profissionais/mediadores admitirem nos
senta um dos bens mais preciosos, aceitar a
contatos que desenvolvem com as classes
culpa por sua morte pode ser uma experiên- subalternas é a cultura popular como uma
cia insuportável. Mas, já que Deus quer as- teoria imediata, isto é, um conhecimento
sim, a culpa que é então compartilhada com acumulado e sistematizado que interpreta e
alguém, não é da exclusiva responsabilidade explica a realidade (Martins, 1989). A for-
da mãe. mação escolarizada da classe média, e mes-
Marilena Chauí (1990) observa, no mo daqueles profissionais que agem como
mesmo espírito, o desespero do arquiteto do mediadores entre os grupos populares e a
bairro operário, face ao “ caos espacial” onde sociedade (através de partidos políticos, 47
ficou “ a horta no lugar do jardim, pelas co- ONGs, igrejas, sindicatos) frequentemen-
res espevitadas das fachadas, pela confusão te leva-os a ter dificuldade em aceitar o fato
entre calçada e quintal”. Como observou de que o conhecimento é produzido tam-
José Carlos Rodriguez, não há interesse em bém pelas classes subalternas. Neste sen-
aceitar o convite de participar dessa forma. tido, mesmo que alguns mediadores sejam
“Assim...a destruição do planejado...seria mais atenciosos e mais respeitosos com as
uma forma de recusá-lo” . pessoas pobres da periferia, os muitos anos
Finalmente, a ideia da cultura popu- de uma educação classista e preconceituosa
lar como memória da alternativa (Martins, faz com que o papel de “tutor” predomine
1989), deveria ser pensada no contexto da nas suas relações com estes grupos.
dificuldade que uma grande parcela das Se, como diz Martins, a “crise da com-
classes subalternas tem de poder agir so- preensão é nossa”, a saída dessa crise não
mente dentro de um quadro previamente passa mais apenas por um contato sistemá-
delimitado, tem sentido então “que a mu- tico do mediador com as classes subalter-
dança só possa ser pensada em termos de nas. Embora tal prática seja louvável, exige
milagre [ou seja, de que contém]...a possi- também na parte do mediador uma atenção
bilidade de uma outra realidade no interior e constante estudo das novas leituras e revi-
do existente” (Chauí, 1990). Isto porque sões que estão sendo feitas sobre o papel de
“...o milagre, pedra de toque das religiões quem se considerou “vanguarda” no passado.
populares e de estonteante simplicidade A atenção prestada ao que a população
para a alma religiosa é ...inaceitável pelas pobre está falando não pode ser mais ape-
teologias e apenas de fato por elas tolera- nas feita com “educação”, mas, sim, porque é
do, pois rompe a ordem predeterminada necessário completar uma equação capenga
do mundo por um esforço da imaginação” que freqüentemente inclui uma das partes
(Chuaí, 1990). do conhecimento - o do mediador.

Nossas fontes
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PEREGRINO, Mônica. Picada, beco, vielas:

Caderno de Educação Popular em Saúde


Leituras de artigo de Fiori,
com a intenção de despertar outras leituras
Autoras das considerações que seguem, somos leitoras assíduas
do artigo do Professor Ernani Maria Fiori Conscientização e Educa-
ção, o qual constitui uma referência de base para nossas aulas, pes- Maria Waldenez de Oliveira
Enfermeira. Doutora em Educação
quisas, trabalhos de extensão universitária, atividades com grupos (UFSCar). Docente do Departa-
mento de Metodologia de Ensino
socialmente discriminados e postos a margem pela sociedade. Não da Universidade Federal de São
Carlos-SP. Coordenação do Projeto
pretendemos, nem temos competência para traçar explicação de tão Mapeamento e Catalogação de Prá-
ticas de Educação Popular e Saúde
rico e importante trabalho. Nossa intenção é de apontar posturas e de São Carlos- MAPEPS. Mem-
bro da Rede de Educação Popular e
compreensões que, enquanto educadoras, temos alcançado com o Saúde (EPS), do Grupo de Traba-
lho EPS da Associação Brasileira de
estudo sistemático e repetido do artigo em pauta. Pós-Graduação em Saúde Coletiva
- ABRASCO e do Grupo de Pes-
O Prof. Fiori, filósofo e professor de Filosofia, construiu seu quisa “Práticas Sociais e Processos
Educativos”.
pensamento e proposições a partir de experiências compartilhadas
com grupos populares, de trocas com colegas, entre eles notada- Petronilha B. Gonçalves e Silva
Professora Titular Ensino-Aprendi-
mente Paulo Freire. No convívio e trabalho conjunto, cada um a seu zagem – Relações Étnico-Raciais e
professora emérita da Universidade
modo, elaborou importantes reflexões que inspiram, dão suporte Federal de São Carlos.
para quem busca princípios e orientações com vistas a ações edu-

»
cativas em escolas, universidades, no meio go do Prof. Fiori foi gerado no âmago dos
popular. O texto Conscientização e Educa- movimentos populares que buscavam, nos
ção a primeira vista parece muito difícil de anos 1960, 1970 libertar a América Latina
ser compreendido. De fato fácil, ele não é. das estruturas opressivas que vinham per-
Trata-se da expressão de um filósofo, de um sistentemente se construindo desde que
jeito próprio de refletir em Filosofia que os europeus, no século XVI, invadiram as
parte de autores com os quais, muitas vezes, terras onde viviam, no seio de suas culturas
nós, educadores, não somos familiarizados. e sociedades, povos originários do conti-
Por isso, se quisermos aprender com as re- nente. Usando a opressão, a desqualificação
flexões do Prof. Fiori temos de estudar seu como instrumentos para se impor aos povos
texto seriamente. Quanto ao estudar, Paulo originários, aos africanos que escravizavam,
50 Freire (1979, p. 10)1 nos orienta: buscaram, os invasores, e ainda hoje segui-
dores de seus pensamentos e propósitos
A atitude crítica no estudo é a mesma que buscam, converter a tudo e a todos num
deve ser tomada diante do mundo, da re- constructo europeu. Em outras palavras, a
alidade, da existência. Uma atitude de ideia de que o mundo europeu conteria o
adentramento com a qual se vá alcançan- que de mais perfeitamente humano existe,
do a razão de ser dos fatos cada vez mais imperava e impera. Por isso, todos que es-
lucidamente.[. . .] Um texto estará melhor tivessem fora dele, deveriam se converter o
estudado quanto, na medida em que dele se mais próximo possível a seus ideais e ideias,
tenha visão global, a ele se volte, delimitan- para serem admitidos e reconhecidos entre
do suas dimensões parciais. O retorno ao as elites, hoje, constituídas, pelos descen-
livro (no presente caso, ao artigo) aclara a dentes ou representantes daqueles invasores
significação de sua globalidade. e colonizadores de territórios e mentes.
É assim que as autodenominadas elites,
De fato, a cada estudo do artigo em
desde o século XVI, vêm criando mecanis-
tela, sempre pautado por experiências de
mos de exclusão, de desigualdades sociais
aprender e de ensinar, próprias de nossas
no continente que decidiram denominar
tarefas de professoras, vamos descobrindo
América Latina. Os oprimidos, nesse qua-
novos significados, diferentes orientações.
dro de organização social, têm manifesta-
O referido texto é um manancial para quem
do descontentamento, por meio de atos de
é persistente e dele se acerca com curiosida-
resistência que nunca deixaram de ocorrer
de, paciência, vontade de aprender, de iden-
desde a invasão e a consolidação de projetos
tificar sempre novos significados. Antes de
de colonização. Aos grupos populares, ao
mais nada, é importante lembrar que o arti-
longo dos séculos, têm se juntado intelec-
tuais que buscam um pensar e um agir vin-
1
FREIRE, Paulo. Considerações em torno do ato de
estudar. In: ___. Ação cultural para a liberdade. Rio
culados às origens e experiências próprias
de Janeiro, Paz e Terra, 1979. p. 9-12. dos povos e sociedades que hoje constituem

Caderno de Educação Popular em Saúde


a América Latina. É nesse quadro, que, a dualista de ver o mundo, para se colocar na
partir do ponto de vista dos oprimidos, se perspectiva das comunidades a que se per-
inicia notadamente nos anos 1960 reflexão tence e que fecundam nossas identidades de
geradora do fecundo pensamento origina- mulheres, homens - crianças, adolescentes,
do pela Teologia da Libertação, Filosofia da jovens, velhos, heterossexuais, homossexuais,
Libertação, Educação Libertadora. O Prof. escolarizados, sem escolaridade, em busca
Fiori se encontra entre os pensadores desse de trabalho, em luta por terra, por moradia,
importante e original movimento. Original deficientes, entre outras condições de ser e
porque buscou as raízes da experiência de viver, além, é claro, da nossa comunidade de
ser latinoamericano e de construir as socie- pertencimento étnico–racial - povos indíge-
dades latinoamericanas. nas, negros afrodescendentes, eurodescen-
Elaborado, nesse contexto, o artigo do dentes, descendentes de asiáticos. 51
Prof. Fiori é fundamental para quem bus- Tal postura permite compreender as
ca pensar, promover, participar da educa- afirmações do Prof. Fiori em que ponde-
ção em nosso continente, ra, por exemplo, que a co-
com os olhos voltados para municação das consciências
nossas histórias e culturas. Elaborado, nesse contexto, o artigo (a intersubjetividade) supõe
Então, um passo para cap- do Prof. Fiori é fundamental para um mundo comum (p. 69).
tar o que a primeira vista quem busca pensar, promover, Bem como quando destaca
parece ser um intrincado participar da educação em nosso que nossos caminhos pessoais
texto, é voltar atenção e são os mais diversos, num
curiosidade para as nossas
continente, com os olhos voltados horizonte necessário de co-
experiências de povos e de para nossas histórias e culturas. municação (p. 69). Assim,
nações latino-americanas, aprendemos, com o pensa-
sem depreciá-las, sem vontade de nos tor- mento que vem sendo desdobrado ao lon-
nar uma imitação das sociedades que se au- go do artigo, que nossa origem de pessoas
todenominaram primeiro mundo. está no encontro de umas com as outras,
Dar esse passo, exige que pouco a pou- com a natureza, com a sociedade. Encontro
co se vá libertando dos valores e perspec- esse que se dá na perspectiva da comuni-
tivas centrados no mundo europeu e, com dade. Em outras palavras, valendo-nos da
empenho, se passe a reconhecer valores e sabedoria dos povos africanos, presente en-
projetos enraizados nas experiências diver- tre seus descendentes que fazem parte da
sas de sermos latino-americanos. América Latina, a fortaleza de cada um está
Para reconhecer as raízes e valores la- na comunidade, por isso tudo que aprende,
tino-americanos, é preciso fazê-lo como al- adquire não pode ser apenas para benefício
guém que faz parte da América Latina e não próprio, mas de toda a comunidade.
como um curioso que olha de fora. Tem-se, A comunidade, nessa perspectiva assim
pois, que abrir mão de uma postura indivi- como na dos povos originários da Améri-

Nossas fontes
ca Latina, é constituída pelo encontro das Para penetrar no pensamento do Prof.
pessoas umas com as outras e também pelo Fiori, temos de apreender essa visão de
seu encontro com o ambiente que as circun- mundo e com ela aprender, além, é claro, de
da, ou seja, a natureza, as sociedades com as assumir ética e politicamente posição dian-
diferentes culturas e histórias daqueles que te das relações sociais, entre elas as étnico-
as compõem. Por isso, não são somente os -raciais, de que participamos. Para tanto, do
pensamentos e perspectivas de vida origi- ponto de vista do Prof. Fiori, é preciso rom-
nados a partir das raízes européias, que nos per com preconceitos e engajar-se em “luta
permitem compreender as realidades em contra a dominação” que somente “alcança-
que vivemos, nos diferentes países da Amé- rá seus fins se romper as estruturas para dar
rica Latina. Para tanto, também são fun- surgimento ao homem novo” (p. 73). Difícil
52 damentais a sabedoria ancestral dos povos é medir o desafio para os estabelecimentos
originários, dos descendentes de africanos, de ensino, notadamente as universidades,
de asiáticos. cuja meta maior têm sido a produção de co-
Reconhecer, respeitar nhecimentos e a formação
e valorizar as diferentes ra- Para penetrar no pensamento do superior, pautadas em cri-
ízes históricas e culturais térios da meritocracia que
da nossa região é atitude
Prof. Fiori, temos de apreender cultiva valores e defende
política fundamental para essa visão de mundo e com ela interesses dos grupos que
libertar a América Latina aprender, além, é claro, de assumir detêm o poder de governar
das opressões que a arra- ética e politicamente posição a sociedade. Em outras pa-
sam. O Equador e a Bolí- diante das relações sociais, entre lavras, escolas e faculdades
via, o reconhecem nas suas embora não possam impe-
constituições nacionais,
elas as étnico-raciais, de que dir o acesso de estudantes,
ao acolher a sabedoria de particip amos. professores e funcionários
seus primeiros habitantes dos grupos populares, ten-
e incluir entre os direitos que asseguram os tam exigir que esses se convertam a valores,
direitos da natureza, dando-lhes igual valor objetivos e projetos daqueles que o ensi-
ao atribuído aos direitos humanos. Reco- no superior sempre acolheu e formou para
nhecem, dessa maneira, a sabedoria ances- ocupar os postos que decidem os destinos
tral dos indígenas da América Latina que da sociedade, do país.
ensina serem os homens e as mulheres parte Lutar contra a dominação exige que
da natureza e não seus senhores, diferente se tenha disposição, vontade e energia para
do que a cosmovisão de raiz européia difun- conhecer e decifrar as realidades em que
de. No entender dos povos originários o que vivemos e nos constituem. “As lutas pela
vale não é o benefício individual, mas o bem libertação”, sublinha, o Prof. Fiori, “ desde
viver, a vida boa para todos os seres vivos, seus primórdios, devem restituir ao homem
inclusive os não humanos. sua responsabilidade de re-produzir-se, isto

Caderno de Educação Popular em Saúde


é, de educar-se e não de ser educado” (p. que cultura no singular não se refere a uma
66). Esse movimento exige “adentramento cultura universal, tampouco superior, mas
em nós mesmos”, o que “supõe uma volta ao ambiente em que diferentes e até mes-
pelo mundo” (p.67). “O mundo se descobre mo divergentes visões de mundo se expõem,
ao mesmo tempo em que a consciência, ao cruzam, identificam, divergem, contrapõem,
expressá-lo, se expressa nele”(p. 67). dialogam, se fazem e refazem. Quando,
Para refazer o mundo, a fim de superar nesse processo, são considerados superiores,
as relações sociais opressivas em que vive- uma visão de mundo e decorrentes signi-
mos na América Latina, é preciso que cada ficados atribuídos a pessoas, à natureza, a
um se refaça a si próprio (p. 68). É nesse suas histórias, se estabelecem relações de
movimento de conscientização, que “o ho- opressão. Para delas se libertar, os sujeitados
mem se constitui, se assume, ao produzir-se tem de superar as condições de alienação a 53
e reproduzir-se” (p. 65). Movimento vivido que foram constrangidos, passando a deci-
por cada um e que exige “lucidez e cora- dir o seu próprio destino. A respeito disso,
gem (p. 66).” Em outras palavras ninguém assim se refere o Prof. Fiori (p. 74):
conscientiza ninguém, ninguém educa nin- O processo de cultura, portanto, im-
guém. Embora seja na companhia e nas tro- plica, dialeticamente, aperfeiçoamento
cas com as outras pessoas, “sujeitos de um pessoal e domínio do mundo: ao sepa-
mundo comum”que cada um se conscienti- rar cultura e civilização, formação do
za e se educa (p. 69). homem e transformação do mundo,
Educar-se implica abrir-se para o mun- o homem se divide internamente e o
do, para experiências de conhecer e buscar mundo deixa de ser mediação huma-
compreender o que se expõem diante dos nizadora. O sujeito não se reencontra
olhos, tudo que se abre aos sentidos, à in- no mundo que ajuda a construir; nele,
teligência, aos sentimentos e que por meio nesse mundo desumanizado, fica reti-
de reflexão se constitui em processo “que do como objeto de outro sujeito: alie-
não se conclui jamais”(p. 66). O educar-se na-se. Para libertar esse homem, isto é,
permite tomar consciência dos significados para devolvê-lo a sua condição de su-
jeito é necessário romper as estruturas
e rumos das experiências que vivemos. Per-
sócio-econôminas que o coisificam.
mite identificar nos intercâmbios com as
outras pessoas, isto é, nas trocas entre subje- É necessário também que se descons-
tividades, reconhecimento a jeitos próprios truam preconceitos e racismos que ferem, e
de ser, viver, ou discriminação, opressão. muitas vezes alienam todos que fogem do
As pessoas se educam no seio da cul- modelo do que, alguns pretendem, seja o ser
tura que “é o mesmo processo histórico em humano perfeito. Entre os desrespeitados,
que o homem se constitui e reconstiui, em desconsiderados estão povos indígenas, ne-
intersubjetividade, através da mediação hu- gros, ciganos, empobrecidos, os homossexu-
manizadora do mundo”(p. 74). Entenda-se ais, pessoas em luta por moradia, por terra,

Nossas fontes
desempregados, deficientes. Ora, pondera, o Prof. Fiori, “a forma
humana se recria em diferentes formas de vida, na concretiza-
ção histórica; a cultura se refaz e se reassume na diversidade das
culturas”(p. 75). E mais adiante (p. 78) acrescenta que no saber
da cultura se fortalece a participação de cada um na sociedade.
Entretanto, chama, ele, a atenção para o fato de que valores
e formas de vida ancestrais, se impostos, podem também alienar
(p. 76). Entende-se, então, a firmeza com que sublinha que para
se educar é exigido de cada um reflexão e crítica, fazer-se e
refazer-se constantes. E também a firmeza com que diz: “toda
cultura é medularmente aprendizado. Em sua dinâmica, o ho-
54 mem se faz, aprendendo a refazer-se, aprendendo a humanizar-
-se, a libertar-se. Cultura autêntica é aprendizado e aprendizado
autêntico é conscientização” (p. 78).
Com as considerações que acima formulamos, pontuamos
algumas das passagens do artigo do Prof. Fiori que têm fecunda-
do, orientado e ajudado a avaliar nossa atuação enquanto mulhe-
res, professoras, investigadoras, militantes junto a movimentos
sociais que congregam negros, moradores de favelas, prostitutas.
Esperamos que sejam úteis no sentido de incentivar leitores que
costumam desistir diante de textos longos e aparentemente difí-
ceis. Para concluir, citamos mais uma vez o mestre, em afirmação
que desencadeia inquietações e questionamento a nossas atua-
ções: “A conscientização é esse esforço do povo para retomar seu des-
tino histórico, sua cultura, em suas próprias mãos. Cultura do povo,
pois, e não cultura para o povo: cultura popular.” (p. 81).

Caderno de Educação Popular em Saúde


Conscientização e educação

Falar de educação concientizadora é verbal. Educação e cons-


cientização se implicam mutuamente. A conscientização é o “reto- FIORI, E.M. Conscientização e
mar reflexiciencia como existência”. Nesse movimento, o homem se educação. Educação & Realidade, v.
11, n. 01, p.03-10, 1986.
constitui e se assume, ao produzir-se e reproduzir-se. Nesse refazer-
-se consiste seu fazer-se e seu fazer. A verdadeira educação é par- Exposição feita em fevereiro de 1970
ticipação ativa neste fazer o homem se faz continuamente. Educar, em Washington, em reunião promo-
vida pelo Secretariado para a Amé-
pois é conscientizar e conscientizar equivale a buscar essa plenitude rica Latina da Conferência Nacional
da condição humana. do Bispos Americanos, e repetida, na
Se a consciência é existência e histórias, ficam descartadas des- mesma época, na Universidade de
Columbia, em Nova Iorque.
de logo as duas falsas concepções de conscientização: aquela que
reduz exclusivamente o efeito inevitável de mudanças naturais ou
aquela que a eleva à causa única, a unidade da práxis é negada sua Ernani Maria Fiori
dialeticidade. Bacharel em Direito, formado pela
Faculdade de Direito de Porto Ale-
As estruturas podem aprisionar o homem ou propiciar sua li- gre em 1935 e, ao ser aposentado na
beração, porém, quem se liberta é o próprio homem. A conscienti- Faculdade de Filosofia da URGS,
em 1964, era catedrático interino
zação, como processo interno às contradições estruturais, pode ser no Departamento de Filosofia (não
fator relevante de transformação sociocultural; de qualquer manei- chegou a defender a tese para efei-
tivação no cargo devido ao expurgo)
ra, deverá ser sempre seu acabamento. O homem não pode liberar- e Diretor do Instituto de Filosofia,
-se caso ele mesmo não protagoniza sua história ou se não toma sua além de Inspetor de Ensino de Filo-
sofia do MEC. Cargos dos quais foi
existência em suas mãos. A isso conduz a dinâmica da conscienti- também afastado em 1964.
zação.
De dentro de um sistema articulado de dominação externa ou
interna que subjuga, confunde e mistifica os povos da América La-
tina, começando a emergir uma consciência iluminadora da situa-
ção e do momento. É um princípio de conscientização que poderá
ser fator decisivo em sua liberação e que, em todo caso, deverá fi-
nalmente marcar o significado humano de seus projetos históricos.
As lutas pela liberação, desde seus primórdios, devem resistir ao
homem sua responsabilidade de reproduzir-se, isto é, de educar-se
e não de ser educado. Nessa emergência de uma autoconsciência
crítica de nossos povos, é de vital importância uma reflexão com-
prometida com a práxis da libertação que nos permita captar
com lucidez e coragem o sentido último deste processo de cons-
cientização. Só assim será possível repor os termos dos proble-
mas de uma educação autenticamente libertadora; força capaz
de ajudar a desmontar o sistema de dominação e promessa de
um homem novo, dominador do mundo e libertador do homem.
Essa reflexão é também existência. Seus resultados não
se antecipam. Talvez só possam ser insinuados alguns de seus
pressupostos teóricos - estes mesmos não anteriores à práxis
56 e sujeitos à sua revisão e elaboração. É ao que nos propomos
nesta breve apresentação: esboçar alguns pressupostos que nos
pareçam válidos para prosseguir numa reflexão que não se
conclui jamais, pois seu término e seu princípio se dinamizam
juntos, numa dialética existencial.

Distribuímos alguns destes pressupostos


em duas partes:

I. Sentido do movimento de constituição da


consciência como existência, e seu retomar
reflexivo: a conscientização.
II. A função conscientização da educação.

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I - Conscientização do exige o esforço de torná-lo mais pre-
sente, na transparência da presença. Assim
1. A imaginação especializante faz da que, aprofunda-se no mundo, não é sair da
consciência o receptáculo de um mundo consciência.
que a preenche e a excede. É a imagem A consciência é “para si” sendo “para o
oculta em todos os dualismos, que separam outro”: simultaneamente, implicamente e
consciência e mundo e os estabilizam em dialeticamente. Uma consciência que fosse
duas entidades, de cujo encontro surgiria à presença presente algum não seria, ”para si”
consciência do mundo. mas o “si mesmo” absoluto.Por isso o “para
O encontro referido, entretanto, não é si” da consciência é abertura, que seria nada,
o resultado de dois entes que se encontram, se o outro não fosse na relação para o qual
mas, antes, a origem de ambos: ”encontro ela, a consciência, se constitui. 57
originário”. Não dizemos que o encontro Uma não preexiste ao outro-consciên-
seja a causa, mas a origem da consciência e cia e mundo. E, portanto, fica excluído todo
do mundo. dualismo que os separa para reuni-los. Jun-
Antes do mundo consciente, a consci- tos, aparecem e desaparecem. Desde este
ência é vazio total: fora da consciência do primeiro ponto, pois, a conscientização já se
mundo, este é ausência sem nome. Juntos, anuncia como movimento em que a consci-
consciência e mundo ganham realidade. Um ência se reconquista, ao conquistar o mundo.
não se perde no outro, perdendo sua iden-
tidade: identificam-se um através do outro. 2. Na consciência do mundo, o mundo,
Que eu consciência é presença que se através dela, vai aparecendo como um hori-
presentifica a si mesmo, ao presentificar o zonte repleto de significados. Estes signifi-
outro. E o outro, uma estrela, uma flor ou cados não são postos somente pelo mundo
um pássaro, só é presente nesta luz da pre- ou dados pela consciência. O mundo se des-
sença. A uma chamamos interioridade e à cobre, ao mesmo tempo em que a consciên-
outra exterioridade, metáforas devidas, uma cia, ao expressá-lo, se expressa nela.
vez mais, às ilusões da imaginação especia- Portanto, nem a consciência é refle-
lizante. xo do mundo, nem esse é simples projeção
O caminho da nossa interioridade pas- daquela. O mundo é significado no perma-
sa, pois, pela exterioridade e vice-versa. O nente significar ativo, que não é atividade
adentramento em nós mesmos supõe uma de uma consciência pura, mas desenvolvi-
volta pelo mundo. A consciência não se mento dialético da consciência do mundo
deixa aprisionar em nenhuma situação vi- ou do mundo consciência. Este significar
vida, sobrepassando a todas, e por isto pode ativo não termina num significado que se-
voltar-se sobre tudo si mesma: é capaz de ria como seu produto estático acabado. O
reflexão. Por sua vez, a penetração no mun- significar é o dinamismo interior do signi-

Nossas fontes
ficado, como um fazer que não termina em mente; como corpo consciente, pode trans-
produto feito, mas em que o efeito é uma cender sua situação espaço-temporal, para
contínua manifestação de um fazer que se visualizá-la, aprendê-la, determiná-la.
refaz, continuamente. É o mundo mesmo Não é corpo do eu que se entrega no
que se constitui e reconstitui neste refazer- mundo: não é o corpo que possui, mas o
se. Assim, na expressão do mundo pela corpo que ele é. Seu corpo que se objeti-
consciência o próprio mundo se expressa va no mundo. E assim experimentamos a
como consciência do mundo. O mundo objetividade de uma experiência que nunca
não pode refletir-se na consciência antes de pode chegar ao seu termo, pois neste reapa-
ser mundo consciente. E a consciência não rece a presença que presentifica e objetiva: o
pode ser determinada pelo mundo antes de sujeito. Ao contrario, se experimentamos o
58 um se recuperar através do outro: não está objeto como presença presente a si mesmo,
dada, ela se conquista e se faz: é, ao mesmo esta experiência tão pouco se esgota na pura
tempo, descobrimento e invenção. subjetividade, pois, na transparência desta, o
Nesse sentido, a expressão do mundo corpóreo se reencontra, também, como ob-
não acontece nem sucede à sua transfor- jetividade. Eu e mundo não se erguem em
mação, uma ultrapassa a outra e coincidem. frente ao outro: convocam-se, mutuamen-
Assim, a consciência do mundo retoma, re- te, para a existência, que é o movimento no
flexivamente, o movimento de seu significar qual se situa e se projeta, isto é, no qual se
ativo em que os significados mundanos se dialetiza como efeito que se transcende e
constituirão. Na medida em que o homem transcendência que se efetiva.
dá significados ao mundo, neste se reencon- O significar ativo em que o mundo é
tra, reencontrando sempre e cada vez mais a significado não se efetua como atividade de
verdade de ambos. uma consciência pura subjetividade. Este
Neste momento, a conscientização já se significar, ao contrário, é um comportamento
prefigura como ação transformadora e não corpóreo-mundano e existencial no qual se
como visão especular do mundo: refazer- constitui e reconstitui o mundo significado.
-se com autenticidade implica reconstruir O sujeito deste significar é logos e práxis.
o mundo. Não é um logos que ilumina o mundo como
espetáculos; ilumina-se na interioridade de
3. O eu consciente também se situa entre
uma práxis que transforma. Diz o mundo
as coisas no mundo; porém, estranhamente,
num discurso que é existência.
ele mesmo é a luz que revela o lugar e o
O homem não é, pois, um sujeito dentro
momento da sua situação. Chega a ser ob-
de um mundo de objetos: é uma subjetivida-
jeto entre objetos, sem deixar de ser sujeito,
de encarnada numa objetividade. Isso quer
embora nunca em plenitude.
dizer que, neste sentido, o mundo vai dimi-
Como eu corpóreo, situa-se fisica-
nuindo sua opacidade e resistência, ganhan-

Caderno de Educação Popular em Saúde


do maior transparência humana, enquanto o transformadora. Significar existencialmen-
homem vai dominando e assumindo, como te o mundo, num comportamento corpóreo,
fator intrínseco de sua própria renovação. equivale a construí-lo. Sua elaboração, em
É, então, quando a conscientização es- intersubjetividade, é coloração.
boça o traçado essencial de seu movimento: A encarnação no mundo coincide
o da encarnação histórica. com a promoção mútua das consciências;
4. A subjetividade não se comensura com a uma é condição da outra, em reciprocida-
ipseidade de um eu fechado em seu próprio de dialética. Nossa encarnação é comunhão.
mundo. Se cada consciência de seu mundo, E assim se esclarece um pouco mais o sen-
separado dos demais mundos, a subjetivi- tido da conscientização: tarefa mundana e
dade morreria sufocada dentro de mônadas compromisso pessoal de amor.
incomunicáveis.
A comunicação da consciência (a inter- Na medida em que o homem dá significados ao mundo,
subjetividade) supõe um mundo comum. Se neste se reencontra, reencontrando sempre e cada vez
cada um constituísse seu mundo, esse não
mais a verdade de ambos.
poderia ser a mediação para o encontro das
consciências, e estas se comunicariam sem
o mundo - o que não é o caso, pois somos
seres encarnados – ou não se comunicariam.
Uma vez mais: as constituem em intersub-
jetividade originaria.
Nossos caminhos pessoais são os mais
diversos. Dentro deste encontro radical, po-
demos desencontrar-nos, quando nossas in-
tencionalidades não têm o mesmo sentido.
Porém, qualquer objetivação nossa se inser-
ta nesse horizonte de comunidade. Não há
objetividade exclusiva de uma consciência:
esta é, sempre, abertura com a amplitude da
universalidade. Em nossa encarnação his-
tórica, não constituímos uma objetividade
própria, somente nossa, mas participamos
de uma objetividade comum.
O dinamismo significante deste mun-
do comum, como dissemos, não é inten-
cionalidade da consciência pura: é práxis

Nossas fontes
Aicó Culturas
5. A subjetividade encarnada não submerge tempo, é a origem permanente de onde, per-
o eu na imanência de uma objetividade que manentemente, brota este processo tempo-
o absorve e dissolve. Ao contrário, o mun- ralizador em que o homem busca refazer-
do se incorpora ao eu corpóreo, quanto mais -se. O dinamismo deste encontro originário,
este presentifica aquele, numa presença que ainda que oculto a si mesmo mítico, pois é
ultrapassa todas as estreitezas situacionais. ele quem gera a historicidade essencial, in-
Como uma luz interior que, quanto mais in- clusive dos chamados “povos sem história”.
terior, mais translúcida o faz, mais apaga seus Esta unidade originária está na raiz de
limites exteriores, difundindo-se em todos todos os momentos do processo, através do
os sentidos. Quanto mais profundamente antagonismo da subjetividade e objetividade,
se encarna a subjetividade, tanto menos li- isto é, de um mundo inteiramente iluminado
60 mitante se a objetividade e assumido pela plenitude da intersubjetivi-
de seu mundo. Não há dade. Como idéia limite
um eu puro: é impossível Enquanto as consciências não se da história, só poderá ser
uma projeção de um eu meta-história, não a ne-
no vazio, numa total au-
intersubjetivarem plenamente, gação, mas a glorificação
sência de mundo. O ca-
através de um mundo sem mais da história - “o novo Céu
minho de acesse que leva obscuridades e resistências; enquanto e a nova Terra”.
para além do momento a humanização for um esforço Enquanto as cons-
vivido passa pela indo de incorporação do mundo ou de ciências não se intersub-
jetivarem plenamente,
interioridade do mundo encarnação do eu, o homem não através de um mundo
e é este mesmo mundo,
em suas dimensões de
poderá eximir-se de uma dialética sem mais obscuridades
passado e futuro. histórica que o aliene e desaliene. e resistências; enquanto
O eu não se disten- a humanização for um
de, pois, nestas dimensões, dentro de um esforço de incorporação
mundo que seria como o leito imóvel do rio do mundo ou de encarnação do eu, o ho-
que flui. O eu expressa, incorpora e trans- mem não poderá eximir-se de uma dialética
cende e o reconstitui-transcender que não histórica que o aliene e desaliene.
nega o mundo e sim o assume e transforma. Em seu incessante existenciar-se, o
Neste movimento, o eu se projeta e se recu- homem objetiva um mundo em que ele
pera, continuamente. Isto é a história: tem- mesmo se objetiva. Nesta objetivação a
poralização do eu e do mundo num mesmo subjetividade se constitui, se encarna e se
processo em que juntos se constituem e re- plenifica. Nela, na objetivação, o mundo se
constituem, respondendo ao destino de seu incorpora ao eu, mas também resiste a ele.
encontro originário. Dentro deste coeficiente maior ou menor
Este encontro não é um começo no de resistência, a objetivação esconde, sem-

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pre, certa forma de alienação. mais reconhecimento, mas sim dominação
Na necessária objetivação do sujeito- de consciência, seja por grupos pequenos,
-para existenciar-se, esse se refaz constan- classes ou povos inteiros.
temente, sem chegar, jamais, a acabar-se. Entretanto, inclusive a mais feroz do-
Sempre sobra uma certa espessura de obje- minação não é capaz de coisificar totalmente
tividade, que o sujeito não chega a assumir, homem: sempre há de lhe sobrar suficiente
dominar e reconstituir, isto é, sempre fica subjetividade para integrar, funcionalmente,
uma porção de mundo que não se historiciza. o sistema da dominação. Desde ai esta pe-
Dentro dela, o sujeito não se reencon- quena faixa de luz, de subjetividade, poderá
tra inteiramente. O encontro originário da passar pelas brechas estruturais do sistema,
consciência e do mundo é um processo que crescer, fazer-se consciência critica e práxis
não se totaliza, enquanto a subjetividade libertadora. Esta é a condição de possibili- 61
não se comensura consigo mesma, ao co- dade de desalienação.
mensurar-se com sua objetividade. A consciência retoma este processo:
Para evitar confusões com o idealismo, temporalização e historicizaçao. Dialética
talvez fosse preferível não dizer que o sujeito que nos aproxima da ideia limite da história.
se aliena ao objetivar-se, senão que, na objeti- Não necessita, pois, de direção definida: não
vação, ele não chega a reconstituir-se uma for- pode buscar qualquer meta. Sua dinâmica
ma acabada - a plenitude humana do sujeito. é práxis e, num sistema de dominação, esta
De qualquer modo, na interioridade práxis só pode ter o sentido da libertação.
desta dialética de objetivação, o sujeito cor-
re o risco de opacificar sua subjetividade, 6. Esta historicização não é desenvolvi-
quando o funcionamento das estruturas so- mento das virtualidades dum ante cuja for-
cioeconômicas o reduzem a simples objeto ma ideal se situa antes ou depois da história.
de outros sujeitos. A subjetividade de tal Nela, nesta historicização, o homem plasma
sujeito de não é reconhecida pelos outros: sua forma completa e histórica, produz a
para esses, ela se reduz a mundo, e mun- forma de seu mundo e, por sua mediação, a
do dominando. Aqui podemos falar, com sua própria. Não reduz sua forma como algo
propriedade, de alienação. Nela, o homem feito, mas a produz em sue fazer: educação e
perde sua condição humana, de sujeito de produção se implicam. O homem não é uma
sua própria historicização trágica, situação essência criadora de essência: sua essência é
de quem se objetiva sem poder, na objetiva- incessante conquista existencial: é pessoal:
ção, encarnar sua subjetividade. A consciên- mesmo dentro de todos os condicionamen-
cia do mundo cinde-se num dualismo que tos e determinismos, pode dispor da sufi-
deforma e nega o homem. A consciência ciente energia de ser, para existenciar-se, isto
passa a ser prisioneira de um mundo de ou- é, para re-trançar sua figura histórica, nas li-
tras consciências: a intersubjetividade não é nhas do próprio movimento de constituição

Nossas fontes
da consciência como existência. revolução cultural: a cultura, aqui, entendida
Este movimento, portanto, não é di- como humanização, isto é, como valoriza-
namismo cego, nem aventura sem rumo: ção do homem. Todas as atividades huma-
tem um sentido-assinalado na dialética da nas, enquanto carregadas de uma significa-
encarnação histórica da intersubjetividade, ção valorativa (seja econômica, religiosa ou
sentido fora do qual a face do homem se outra) representam dimensões de cultura. A
deforma e se desvanece. globalização destas atividades vistas, numa
O comportamento existencial em que o perspectiva axiológica, dilata o território da
homem se autoconfigura, desenha-se num cultura a tudo que é humano. E todo di-
contorno axiológico, mercado pelo sistema namismo humano tem direção axiológica.
de valores, implicado nas estruturas de um Sendo assim, num sistema estático de valo-
62 determinado mundo histórico. Se o homem res, não há renovação do homem.
é a busca permanente de sua forma, o ho- Os interesses da dominação das cons-
mem autêntico coincide com o homem novo. ciências se mistificam em valores supostos,
O que permanece prisioneiro de formas es- capazes de uniformizar e adaptar os com-
táticas resiste ao movimento de sua histori- portamentos à funcionalidade do sistema.
cização: hominizado, não se humaniza. Esta Tão forte é seu poder de mistificação, que
renovação do homem supõe uma constante o próprio dominado busca valorizar-se, se-
revalorização da existência, no mesmo sen- gundo seus padrões e as escalas do sistema
tido do movimento de constituição existen- dominantes. É, inclusive, escudo-revolu-
cial da consciência do mundo ou do mundo ções, através de certas mudanças estruturais,
consciente, o que quer dizer que os novos va- perseguem, no fundo de suas intenções, os
lores não são criação arbitraria de uma cons- mesmos valores que justificavam as estru-
ciência pura, mas o paciente e valioso desco- turas antigas. A luta contra a dominação
brimento de um comportamento disposto a só alcança seus fins se romper as estrutu-
assumir os riscos da história. Se essa não é ras para dar surgimento ao homem novo.
de todo absurda, há de ser, em seu caminho, Um homem novo, para realizar-se, exige a
que o homem se reencontrará como homem mediação de um mundo novo: e o mundo
novo ao descobrir seu sentido em cada si- novo requer a luz de uma nova constelação
tuação histórica, desvendará os valores que de valores, uma nova cultura.
configurarão sua encarnação renovadora de Por isso, a revolução verdadeira, verda-
mundo e recriadora de si mesmo. deiramente libertadora, é a que propicia o
Não há transformação do homem sem aparecimento do homem novo, a revolução
mudança estrutural, porém o homem não cultural.
refaz sua forma se o sistema de valores
continua o mesmo. Buscar novos valores
para revalorizar o homem é a substancia da

Caderno de Educação Popular em Saúde


7. A ação cultural conscientizadora, que ção seja demarcada por linhas estruturais
reivindica para o homem, em intersubje- dadas, assumi-la será sempre uma aventura
tividade, a posição de sujeito do processo existencial da consciência como existência, e
histórico, parece chegar demasiado tarde. o sentido da existência será aquele que essa
Poderosas correntes do pensamento da sub- consciência refaz em seu comportamento
jetividade e a morte do homem, ao menos, de encarnação e comunhão, de recriação e
no atual campo epistemológico das “ciên- libertação do homem.
cias humanas”. Coincide com a morte de Podemos chegar a explicar tudo o que
Deus, na “teologia radical” de nossos dias. a consciência significa. Somente que há
O homem não é mais que um sujeito, é explicação exaustiva para o significado da
uma estrutura inconsciente. Porém o desco- própria consciência, pois, dadas as respostas
brimento de tal estrutura é uma historia cons- das ultimas perguntas, sempre permanece 63
ciente. Se nessa não houvesse nenhuma verda- o sujeito que formula as últimas perguntas,
de, também se desvaneceria a verdade daquela. sempre permanece o sujeito que formula as
Ou, no melhor dos casos, últimas respostas, que nunca são as últimas.
não se manifestaria. Esta última realidade sub-
É com essa maior O homem não é mais jetiva não é só feito dado e
ou menor verdade da que um sujeito, é uma recebido: é um sujeito que
existência que nos estrutura inconsciente. Porém o se faz e se refaz. Por isso,
comprometemos, quando a explicação do feito não
a assumimos como projeto
descobrimento de tal estrutura é recobre o sentido deste
novo. E, na proporção em
uma historia consciente. fazer-se. Seu sentido radi-
que a assumimos, nos fa- cal não é resultado de um
zemos sujeitos da história. Dentro de todas descobrimento, é o objeto de uma conquis-
as determinações estruturais, o que distin- ta.
gue o homem dos demais seres é a sua res- O homem é expulso da história, não
ponsabilidade de superar o dado da nature- tanto pelas “ciências” que pretendem dissol-
za pelo fazer da cultura: de transformar-se a vê-lo, senão pelo sistema imperante, que o
si pelo poder de libertação. aliena como objeto no mundo da dominação.
A conscientização não pretende refazer A conscientização busca restaurá-lo em seu
o homem desde seus recônditos mais ocul- devido lugar, como um sujeito da domina-
tos, pretende, sim, retomar o movimento da ção do mundo. A conscientização não é, pois,
constituição da consciência como existência, uma ciência da consciência: ainda que inte-
isto é, retomar-se naquele instante em que grando a pratica teórica das ciências em sua
o homem se reconstitui conscientemente, práxis total, é, sobretudo, opção e luta. Opção
num sentido histórico que é visão e com- pelo homem e luta por sua desalienação.
promisso. Aceitando que nossa historiciza-

Nossas fontes
II - Educação não renova o mundo em novas formas de
vida. O sistema de valores de uma socieda-
1. Detrás de cada conceito de cultura - e de se delineia na sua textura estrutural; em
são tantos -, está presente uma teoria diversa estruturas antigas não é possível configurar-
do homem. Já expressamos, anteriormente, -se uma imagem nova do homem. Não são,
nosso conceito de cultura, quando a defi- pois, verdadeiramente, novas estruturas que
nimos num sentido amplo, pela valorização retêm o processo recriador da existência.
do homem. A humanização, insistimos, se Por isso, o homem novo não é produto de
realiza pela encarnação e comunhão: sub- uma renovação cultural, e o mundo novo, de
jetividade em que se reconhece, ativamente, uma transformação estrutural: a revolução
na objetividade em que se constitui e atra- cultural. Uma esta contida na outra, uma
64 vés da qual, em permanente reconstituição promove a outra, num processo em que não
da unidade originaria, também se constitui há primeira nem segunda.
como intersubjetividade.Em outros termos, O dinamismo da cultura tem uma dire-
cultura é o mesmo processo histórico em ção axiológica, ainda que, de fato, participe
que o homem se constitui e reconstituição da ambigüidade da história: nela o homem
e reconstitui em intersubjetividade, através pode conformar-se. A forma humana não
da mediação humanizadora do mundo. O pré-existe à história como uma idéia eterna
processo de cultura, portanto, implica dia- que esta reflete e deforma. A forma humana
leticamente aperfeiçoamento pessoal e do- vai se definindo, historicamente, no movi-
mínio do mundo: ao separar cultura e civi- mento de constituição da consciência como
lização, formação do mundo, o homem se existência, tal como procuramos esboçar nos
divide internamente e o mundo deixa de ser pontos relativos á conscientização. O sentido
mediação humanizadora. de movimento é uno, ainda que o movimen-
O sujeito não se reencontra mais no to mesmo não seja uniforme. A forma hu-
mundo que ajuda a reconstruir: nele, nes- mana se recria em diferentes formas de vida
se mundo desumanizado, fica retido como na concretização histórica, a cultura se refaz
objeto de outro sujeito: aliena-se. Para li- e se reassume na diversidade das culturas.
bertar este homem, isto é, para devolvê- A cultura se diversifica e se determina
-lo à sua condição de sujeito, é necessária pela forma particular de vida de um grupo
romper as estruturas socioeconômicas que humano, no qual: se reconstitui a forma do
o coisificam. Só assim o mundo poderá re- homem-sua forma histórica. Se o respecti-
cuperar, também, sua virtude mediadora, de vo grupo humano deve ser o sujeito de seu
socializaçazaçao personalizante.Por meio próprio processo histórico-cultural, então a
da interioridade deste processo de mudan- ele cabe o risco e a responsabilidade de au-
ça estrutural, passa a via de renovação do to-configurar sua forma particular de vida.
homem: o homem não se pode recriar, se Isto quer dizer que o homem desta cultura

Caderno de Educação Popular em Saúde


tem o direito de autovalorizar-
-se, segundo seus próprios va- A conscientização não pretende refazer o homem desde seus recônditos
lores. O sentido do processo mais ocultos, pretende, sim, retomar o movimento da constituição da
de constituição do homem pela
cultura contém, pois, uma exi-
consciência como existência, isto é, retomar-se naquele instante em que o
gência de autonomia. Cultura homem se reconstitui conscientemente, num sentido histórico que é visão
sem autonomia é anti-cultura, e compromisso.
porque, como vimos, em tal hi-
pótese, a objetivação da subje-
tividade, ao invés de liberar o
sujeito, o coisifica como objeto
de dominação.
Cultura autônoma não
se identifica com cultura au-
tônoma. Os valores ances-
trais podem ser tão alienantes
quanto os valores impostos,
extrinsecamente, a uma cul-
tura particular. Tão pouca
cultura autônoma supõe re-
púdio á universalidade da cul-
tura. O homem se existência,
sempre, em formas particu-
lares de vida. Os valores que
as significam, se não valores e
são humanizadores, têm, for-
çosamente, a universidade do
homem, não do homem abs-
trato, mas do que se reproduz
na singularidade da práxis-
-universal concreto.
O que a cultura autentica
repudia, em seu dinamismo, é
a imposição de valores estra-
nhos. Istoé de valores que não
foram descobertos, conquis-
tados, reelaborados e assumi-
foto: Aicó Culturas

Nossas fontes
dos, livremente, pelo sujeito do respectivo permanente transcender-se a si mesmo.O
processo histórico. Como estes valores es- homem se defini por esta liberação de limi-
tão presentes em todos os planos estrutu- tes.Pode localizar-se em seu mundo, porque
rais, econômicos ou outros, o deslocamen- o transcende o ilumina.E, ao transcendê-lo,
to do sujeito de sua função essencial, em pode voltar-se reflexivamente sobre si e ilu-
qualquer deles, afeta o processo global da minar seu mundo.Não são dois momentos:
cultura.Reduzir o sujeito a objeto, em qual- o da construção do mundo e o da apreen-
quer dos referidos planos, já o desvaloriza são refletiva.O meio vital se transforma em
radicalmente, desumanizando. A perda de um mundo, quando o homem o transcende
sua condição humana, em tal plano, já ex- num retomar reflexivo.O mundo humano
pressa algum modo de dominação cultural. não é espetáculo de inteligência pura, nem
66 A cultura não é um plano ao lado dos de- modelagem de ação cega: é obra de mãos
mais, é o conjunto de todos, enquanto eles inteligentes.O “logos” não precede á práxis,
estão carregados do sentido de valorização nem é seu produto: é sua luminosidade inte-
do homem. A alienação cul- rior. Interioridade que é, dia-
tural não se situa, portanto leticamente, transcendência.
somente em superestruturas Para reconstruir seu mundo, Nesta transcendência se de-
artísticas, cientificais, ideo- o homem tem que excedê- senvolve a facilidade do acon-
lógicas ou religiosas, senão lo. O homem, porque pode tecer humano. No próprio ato
na raiz e na substancia axio- desde acontecer, acende a luz
lógica de todas as atividades
lançar-se mais além de sua em que ele se desvenda como
humanas. A desalienação natureza, cult iva-se. facilidade histórica.
cultural é libertação total, li- A cultura se faz, pois,
berdade do homem novo. num fazer que, reflexivamente, se percebe
Pouco significa o combate a certos fazendo: é o saber da cultura. Mas o fazer
epifenômenos de dependência cultural, no humano. Este saber é, enquanto se sabe fa-
setor das letras, das ciências, dos costumes zendo. Este saber é o intimo reverso do fa-
ou das técnicas, sem a radicalidade da luta zer, o que o torna transparente a si mesmo
pela total desalienação do homem, para que e permite, ao respectivo sujeito, assumi-lo
se reencontre, em qualquer plano, como, su- subjetivamente. Saber que, estranhamente,
jeito de sua própria história. A recuperação transcende o fazer, porem, neste fazer se re-
que, pode ser total, é essencialmente cultural. faz. E reflexão e crítica. Porque transcende e
se transcende, pode saltar fora das situações
2. Para reconstruir seu mundo, o homem limitantes, retomar-se conscientemente e
tem que excedê-lo. O homem, porque pode reconstituir-se criticamente: um movimen-
lançar-se mais além de sua natureza, cultiva- to que também é existência e cujo sentido
-se.E a, mesma cultura se desenvolver num aponta para a libertação.

Caderno de Educação Popular em Saúde


O saber da cultura é a cultura que se dade originaria, isto é, solidário com todo
sabe. Por destinação originaria, pois, o sa- o processo que o gerou e de que ele deve
ber não deveria nunca desligar-se da função ser a mais lúcida expressão de consciência
humanizadora da cultura. Só o saber liber- histórica – o processo de encarnação obje-
ta o homem, porem, seu correto exercício tivamente e comunhão intersubjetivante, os
não poderia perseguir outro fim. Não é uma dois aspectos da cultura autêntica, que cres-
pratica teórica junto a outras práticas. Se cem juntos, um em razão direta do outro.
assim fosse, sua integração na práxis ficaria
ininteligível. Quando rompe seu compro- 3. A cultura é um processo vivo de perma-
misso com a vida, aliena-se: e não se aliena nente criação: perpetua-se refazendo-se em
só, separadamente, para, depois, alienar e novas formas de vida.Só se cultiva, realmen-
cultura toda. Sua separação já é reflexo mis- te, quem participa deste processo, ao refazê- 67
tificado e mistificador da alienação cultural, -lo e refazer-se nele. A transmissão do já fei-
como processo total de desumanização do to, é cultura morta. O feito é só mediador de
mundo. E o reflexo é o contrario da refle- cultura, enquanto manifesta, interiormente,
xividade, o contrario da criticidade, não o um fazer interno de que participamos. A
comprometimento. elaboração do mundo só é cultura e huma-
Uma cultura alienada e alienante não nização, se intersubjetiva as consciências.
se desaliena, pois, tão só pelo esforço exclu- Elaboração que postula, necessariação de um
sivo de um saber critico. Enquanto o saber mundo comum. Participação que radica na
se compromete, existencialmente, e assume comunicação do saber da cultura: partici-
sua função de reflexividade concreta no pro- pação no saber, no saber fazer, no fazer que
cesso global da práxis, responde à sua vo- se sabe. E nisso consiste, essencialmente, o
cação essencial: a de ser consciência critica aprendizado. Ninguém aprende o que se lhe
do referido processo. Esta consciência não ensina: cada um aprende o que aprende.
se constitui fora, mas dentro do processo: Agora, se o saber, como vimos, é o re-
é histórica também. Consciência critica é verso translúcido da cultura (é a mesma cul-
consciência histórica. Não é sobre-determi- tura que se vai dizendo a si mesma, como
naçao que empurra o processo desde fora, consciência critica, e, neste dizer-se, vai se
nem força que o impulsiona desde dentro. do é participação ativa, comprometida no
O mundo humano é histórico: consciência processo histórico cultural).
histórica é, também, consciência do mundo. Toda cultura é, assim, medularmente
E esta, como temos repetido tantas vezes, aprendizado. Em sua dinâmica, o homem
não é um dualismo, mas unidade originaria, se faz, aprendendo a refazer-se. Cultu-
isto. O saber não desaliena nem se desalie- ra autêntica é conscientização.Na cultura
na, se não implicado nas tensões dialéticas alienada, o saber deixa de ser cultura que
que dinamizam internamente essa uni- se sabe, num saber que critica e promove:

Nossas fontes
foto: Aicó Culturas
A cultura é um processo vivo de permanente criação: perpetua-se refazendo-se em novas formas de
vida. Só se cultiva, realmente, quem participa deste processo, ao refazê-lo e refazer-se nele. A trans-
missão do já feito, é cultura morta.
passa a ser um reflexo ideológico, mistifi- assim, toda cultura alienada é um sistema
cante, da dominação que impede ao sujeito de dominação de consciência: neste sentido,
recuperar-se na objetividade, o coisifica no um sistema de ensino. O sistema educacio-
mundo e o domínio do mundo se confunde nal dominante não é mais que o sistema de
com a dominação da consciência. O saber dominação cultural.Dentro dele, separado
se transforma em instrumento de mistifi- do processo em que os homens se histori-
cação das consciências: não liberta, justifica cizam, o saber se institucionaliza à margem
a servidão.Na cultura alienada, o apren- da vida do povo, encastela-se dentro dos
dizado se transforma em domesticação. muros das escolas e academias, assume as
O ensino não propicia a participação co- falsas aparências democráticas dos meios
mum: transmite o efeito e impõe os valores massificadores de comunicação: aí, e desde
dominantes, que não dominam por sua vali- aí, defende, mantém e propaga os ensinos e
dez, mas, isto, pelo poder dos interesses que, valores de uma civilização de escravos.
simultaneamente, ocultam e manifestam. E, A educação se define, dentro da fun-

Caderno de Educação Popular em Saúde


cionalidade desde sistema, como adaptação. Os referidos agentes são partidários
Se aceitamos os pressupostos anteriores, se da chamada “democratização do ensino”,
a cultura deve ser criadora do homem novo, enquanto esta é fator de maior integração
se o homem se renova pela superação de to- dos dominados no sistema de dominação.
dos os seus limites, num retomar reflexivo Portanto, são implacáveis adversários da
que o refaz, sempre, mais além de si mesmo, conscientização, já que esta é aprendizado.
então educação é exatamente o contrario: Aprendizado em que aprender não é rece-
é esforço de permanente desadaptação.O ber, repetir e ajustar-se, se não participar,
homem que se conforma, renuncia á histo- desadaptar-se e recriar. Nessa perspectiva
ricização: desumaniza-se. do sistema estabelecido, a alfabetização em
massa, a educação de adultos, a extensão
4. Os povos do Terceiro Mundo, objeto de universitária, etc., são outros tantos meios de 69
dominação interna e externa (conjugados “socialização”, isto é, de funcionalizar, mais
num sistema de gratificação mútua) não perfeitamente, as atividades humanas nas
podem pensar, pois, em desenvolver sua estruturas de uma sociedade desumana. Em
consciência critica e comprometida, através tal sistema, a instituição escolar, durante lar-
da rede educacional em que o sistema impe- go tempo, segrega o educando da elaboração
rante domestica e aprisiona as consciências. viva da cultura. Neste mundo da dominação,
Não se pode esperar que os dominadores ele é um objeto amais a ser plasmado, segun-
concedam as condições de libertação, ainda do cânones estabelecidos: não participa da
que possamos tornar seus instrumentos de direção do processo histórico cultural, num
dominação pra voltar-nos contra eles. É o inclusive, de sua história escolar.
que, por exemplo, ainda pode dar um sen- A rebelião de grande parte da juven-
tido revolucionário a certos movimentos de tude atual, contra a escola, talvez radique
reforma universitária. numa consciência, cada vez mais clara, de
Concretamente, pois, os agentes da do- que o sistema só lhe permite participar da
minação externa, apóiam e promovem, com construção do mundo quando considerar
aparência de grande generosidade, todas as preparada para fazê-lo nas exatas medi-
medidas que fortalecem e estendem o sis- das de seus interesses, isto é, dos interesses
tema de dominação e comportamento dos dos grupos e classes dominantes. O ensi-
dominados. no é, assim, técnica hábil para conformar
As aspirações que despertam, determi- e uniformizar, ao contrario do aprendi-
nam-se pelas pautas e valores propostos e zado como método de liberação e auto-
impostos pelo sistema – aspirações que o -configuração, descobrimento histórico de
sistema, com satisfação, absorve – e capi- valores de humanização, de invenção do
talizam, ganham sentido dentro do sistema homem novo. É o que ressalta, nitidamente,
de valores vigentes. da atividade dos representantes,

Nossas fontes
conscientes ou inconscientes, do sistema, histórico-cultural, eles e os que nem sequer
nas lutas pela reforma universitária: não têm oportunidade de trabalhar, marginaliza-
receiam modernização institucional, dos pelo sistema. E são Povo de Deus, por-
antes a propiciam para ajustar melhor a que ajudam a edificar o Reino. Os que traem
universidade ao pleno funcionamento, à sua a colaboração humanizadora, deixando-se
politização, como esforço por comprometê- vencer pela sedução luciferina da dominação
-la numa dinâmica de desalienação cultural. não são povo, são opressores do povo.
E, quando o sistema abre suas compor- Esta é a missão da luta libertadora do
tas para alargar os “benefícios” da cultura até povo oprimido; devolver-lhe a situação de
os últimos grupos marginalizados, uma vez sujeito de seu próprio processo histórico-
mais não o faz para libertar. O “beneficia- -cultural. Na alienação cultural, é objeto.
70 do” só muda de posição: Este fiel servidor Ao desalienar-se, retoma, reflexivamente,
poderá, quem sabe, avançar muito dentro livremente, o movimento de constituição de
do sistema, mas os condutos abertos devem sua consciência como existência: conscien-
fechar-se, sempre, antes das fronteiras poli- tiza-se. A conscientização não é exigência
ciadas da ordem estabelecida. previa para a luta de libertação, é a própria
Entre este ensino “funcional” (escolar, luta. O retomar da consciência se identifica
extra-escolar) e a educação conscientizado- com a reconquista do mundo: em práxis li-
ra, há inimizade irreconciliável. bertadora.
A conscientização é este esforço do
5. A educação é, pois, processo histórico povo por retomar seu destino histórico, sua
no qual o homem se re-produz, produzindo cultura, em suas mãos. Cultura do povo,
seu mundo. Todos que colaboram na pro- pois, e não cultura para o povo: cultura po-
dução deste, deveriam reencontrar-se, no pular.
processo, como sujeitos própria destinação De tudo que antecede, se depreende,
de sujeito só pode ser preenchida pelos que inevitavelmente, que cultura popular não
trabalham o mundo. Esses são verdadeira- é extensão das sobras do sistema de ensino
mente o povo - a comunhão pessoal só tem estabelecido para a multidão dos ignoran-
um nome: colaboração no mundo comum. tes e miseráveis, que não tiveram valor su-
No sistema estabelecido, os que do- ficiente para incorporar-se a ele.Seria, pois,
minam pelo trabalho. O trabalho, por sua algo necessário ao sistema educacional, que
vocação original, deveria intersubjetivar as serviria aos objetivos de adaptar, uniformi-
consciências, ao contrário da dominação zar e mistificar, transformando o dominado
que as objetiva e escraviza. em mais funcional à dominação.
Os que têm este título, o do trabalho, o Para nós, cultura popular é cultura do
único que legitima a dominação do mundo, povo – do homem que trabalha e humani-
são excluídos da direção ativa do processo za o mundo, e ao fazê-lo, reproduz-se a si

Caderno de Educação Popular em Saúde


mesmo, livremente em comunhão com os No sistema atual, entretanto, a verda-
demais. Em vez de ser extensão secundaria deira cultura popular está forçada a refu-
do sistema educacional estabelecido, nela, giar-se nas organizações populares de base.
na cultura popular, a institucionalização di- Daí deve enfrentar-se com sistema, não
nâmica do ensino deveria, pois, enraizar-se como simples educação popular, organizada
e nutrir-se. O mais alto saber não seria o pelo próprio povo, senão como luta contra
mais distante, senão, isto sim o mais pro- tudo o que seja obstáculo para o povo assu-
fundamente comprometido com uma refle- mir sua história: tornar-se sujeito, libertar-
xão critica, em que a cultura deve, continua- -se; luta, portanto, também para tomar a
mente, rever-se, promover-se, renovar-se. E direção do respectivo processo histórico:
de uma cultura como processo global, his- conscientização equivale, pois, à politização.
tórico, do qual o povo deveria ser o sujeito e Não se identifica, contudo, com tomada 71
o beneficiário. de poder. É uma ação permanente, valida,
Isso, entretanto, não ocorre. O sistema antes, durante e depois deste momento
denuncia o caráter subver- eminentemente político.
sivo da cultura popular. E, O homem luta para
com razão. Entre ela e o A conscientização não é obter condições de renova-
sistema, a incompatibilida- exigência prévia para a luta ção: obtidas, deve renová-
de é radical e total. Poderia -las para renovar-se. Cons-
parecer estranha a acusação
de libertação, cientização é um processo
para quem considera a cul- é a própria luta. consciente e inacabado-co-
tura popular como simples mo o homem.
“método” de educação. Sem Em nossos povos la-
dúvida é método, por mais variadas que se- tino-americanos, grupos cada vez mais
jam suas técnicas, mas, afinal, método: re- numerosos despertam para as atividades
toma os caminhos que se dirigem ao rumo, conscientizadoras. Quais são os caminhos
que rapidamente indicamos: o da conscien- a seguir para apressar nossa libertação?A
tização do povo. teoria da ação cultural se justifica por sua
A contradição entre a consciência his- fecundidade histórica. Na práxis, ela encon-
tórica emergente e a dominação das cons- tra seu principio, sua inspiração e sua prova.
ciências pelo sistema estabelecido, produz a Nesses pontos, apenas enunciados, te-
eclosão da consciência de classe dos domi- mos buscado, tão somente, o sentido ori-
nados e explorados. As contradições estru- ginal da conscientização. E achamos que
turais se desmistificam, se manifestam e se coincide com a “revolução cultural”.
agudizam na clara consciência com que os
dominados se levantam contra a dominação.
Então começa a despertar o homem novo.

Nossas fontes
Círculos de Cultura: problematização
da realidade e protagonismo popular
Sistematizados por Paulo Freire (1991) os Círculos de Cultu-
ra estão fundamentados em uma proposta pedagógica, cujo caráter
radicalmente democrático e libertador propõe uma aprendizagem Nada continua como está
integral, que rompe com a fragmentação e requer uma tomada de Tudo está sempre mudando
posição perante os problemas vivenciados em determinado con- O mundo é uma bola de ideias
texto. Para Freire, essa concepção promove a horizontalidade na Se transformando se transformando
relação educador-educando e a valorização das culturas locais, da
oralidade, contrapondo-se em seu caráter humanístico, à visão eli- (Junio Santos)
tista de educação.
Concebidos na década de 1960, como grupos compostos por
trabalhadores populares, que se reuniam sob a coordenação de um
educador, com o objetivo de debater assuntos temáticos, do inte- Vera Lúcia Dantas
resse dos próprios trabalhadores, cabendo ao educador-coordena- Médica, educadora popular, mestre
dor tratar a temática trazida pelo grupo. Surgem no âmbito das em Saúde Pública- UECE, doutora
em educação – UFC e atualmente
experiências de alfabetização de adultos no Rio Grande do Norte coordenadora pedagógica do Siste-
e Pernambuco e do Movimento de Cultura Popular. Não tinham ma Municipal de Saúde Escola da
SMS Fortaleza
a alfabetização como objetivo central, mas a perspectiva de contri-
buir para que as pessoas assumissem sua dignidade como seres hu-
Angela Maria Bessa Linhares
manos e se percebessem detentores de sua história e de sua cultura,
Professora doutora do Programa de
promovendo a ampliação do olhar sobre a realidade. Nesse con- doutorado em Educação e do Mes-
texto, propõem uma práxis pedagógica que se compromete com a trado em Saúde Coletiva da Univer-
sidade Federal do Ceará
emancipação de homens e mulheres ressaltando a importância do
aspecto metodológico no fazer pedagógico, sem desvalorizar, no
entanto, o conteúdo específico que mediatiza esta ação, possibili-
tando a tomada de consciência do educando, mediante o diálogo
e o desvelamento da realidade com suas interligações, culturais,
sociais e político-econômicas.
Destarte, caracteriza-se como locus privilegiado de comunica-
ção-discussão embasadas no diálogo, nas experiências dos atores-
74

-sujeito, na produção teórica da educação e traduzirá no tema gerador geral, vinculado


na escuta, a qual se orienta pelo desejo de a ideia de interdisciplinaridade e subjacente
cada um e cada uma aprenderem as falas à noção holística de promover a integração
do outro e da outra problematizando-a e do conhecimento e a transformação social.
problematizando-se. A Tematização3, ou seja, processo no
Tendo como princípios metodológicos qual os temas e palavras geradoras são co-
o respeito pelo educando, a conquista da dificados e decodificados buscando a cons-
autonomia e a dialogicidade, os círculos de ciência do vivido, o seu significado social,
cultura, tais como foram sistematizados por possibilitando a ampliação do conhecimen-
Freire, podem ser didaticamente estrutura- to e a compreensão dos educandos sobre a
dos em momentos tais como: a investigação própria realidade, na perspectiva de intervir
do universo vocabular1, do qual são extraídas criticamente sobre ela. O importante não é
palavras geradoras2. Esse mergulho permite transmitir conteúdos específicos, mas des-
ao educador interagir no processo, ajudan- pertar uma nova forma de relação com a ex-
do-o a definir seu ponto de partida que se periência vivida.

1
Relação das palavras de uso corrente, entendida como
representativa dos modos de vida dos grupos ou do
3
A codificação pode se dar por imagens expressas de
território onde se trabalhará (estudo da realidade). Este várias formas— desenho, fotografia, imagem viva, — que
momento permite o contato mais aproximado com por sua vez deverão suscitar novos debates. Parte-se da
a linguagem, as singularidades nas formas de falar do compreensão de que cada pessoa, cada grupo envolvido na
povo, e suas experiências de vida no local. ação pedagógica, dispõe em si próprio, ainda que de forma
2
Unidade básica de orientação dos debates. rudimentar, dos conteúdos necessários dos quais se parte.

Caderno de Educação Popular em Saúde


Fig. pag 72: A experiência
de Angicos (RN) é referên-
cia na vida e obra de Paulo
Freire. Nessa cidade, 300
trabalhadores rurais foram
alfabetizados em 45 dias.

fig. pág 73 e 74: Guache


do artista plástico pernam-
bucano Francisco Bren- 75
nand, ilustrando a discus-
são do conceito de cultura
nos Círculos de Cultura.

A Problematização representa um mo- possibilita a ampliação da consciência críti-


mento decisivo da proposta e busca superar ca sobre a realidade ao trabalhar a horizon-
a visão ingênua por uma perspectiva críti- talidade, a igualdade em que todos procu-
ca, capaz de transformar o contexto vivido. ram pensar e agir criticamente com suporte
A ação de problematizar em Paulo Freire na linguagem comum, captada no próprio
impõe ênfase no sujeito práxico que discu- meio onde vai ser executada a ação peda-
te os problemas surgidos da observação da gógica e que exprime um pensamento ba-
realidade com todas as suas contradições, seado em uma realidade concreta. Diálogo,
buscando explicações que o ajudem a trans- nessa perspectiva, tem a amorosidade como
formá-la. O sujeito, por sua vez, também se dimensão fundante, contrapondo-se a ideia
transforma na ação de problematizar e passa de opressão e dominação. Situa a humilda-
a detectar novos problemas na sua realida- de como princípio no qual o educador e o
de e assim sucessivamente. Nesse sentido, educando se percebem sujeitos aprendentes,
a problematização emerge como momento inacabados, porém jamais ignorantes.
pedagógico, como práxis social, como mani- A ampliação do olhar sobre a realida-
festação de um mundo refletido com o con- de com amparo na ação-reflexão-ação, e, o
junto dos atores, possibilitando a formula- desenvolvimento de uma consciência críti-
ção de conhecimentos com base na vivência ca que surge da problematização, permitem
de experiências significativas. Assim, o que homens e mulheres se percebam su-
diálogo se constitui como elemento-chave jeitos históricos, o que implica a esperança
no qual educadores e educandos sejam su- de que, nesse encontro pedagógico, sejam
jeitos atuantes. Para Freire (2003), o diálogo vislumbradas formas de pensar um mundo

Nossas fontes
A ampliação do olhar sobre a realidade
com amparo na ação-reflexão-ação, e,
o desenvolvimento de uma consciência
crítica que surge da problematização,
permitem que homens e mulheres
se percebam sujeitos históricos,
o que implica a esperança de que,
nesse encontro pedagógico, sejam
vislumbradas formas de pensar um
76 mundo melhor para todos.

melhor para todos. Esse processo supõe a vência democrática, de formas de pensamen-
paciência histórica de amadurecer com o tos, experiências, linguagens e de vida, que
grupo, de modo que a reflexão e a ação se- possibilita o estabelecimento de condições
jam realmente sínteses elaboradas com ele. efetivas para a democracia de expressões, de
A democracia (...) é forma de vida, se pensamentos e de lógicas com base no res-
caracteriza, sobretudo por forte dose de peito às diferenças e no incentivo à partici-
transitividade de consciência no comporta- pação em uma dinâmica que lança o sujeito
mento do homem. Transitividade que não ao debate, focando os problemas comuns.
nasce e nem se desenvolve a não ser dentro
de certas condições em que o homem seja Referências
lançado ao debate, ao exame de seus proble-
DANTAS, V.L.A. Dialogismo e arte na ges-
mas comuns. (FREIRE, 1991, p. 80).
tão em saúde: a perspectiva popular nas Ci-
Dessa forma, Paulo Freire fala de edu-
randas da Vida em Fortaleza. 2010. (Tese de
cação como conscientização, reflexão rigo-
Doutorado). Universidade Federal do Ceará,
rosa sobre a realidade em que se vive, com
Fortaleza,CE, 2010.
o entrelaçamento das linguagens e suas res-
FREIRE, P. Educação como prática de liberda-
pectivas lógicas epistêmicas, evidenciando
de. 20. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991.
os focos a serem problematizados pelo gru-
po, instigando o debate e constituindo uma FREIRE, P. O caminho se faz caminhando:
rede de significados. conversas sobre educação e mudança social.
Nesse contexto, segundo Dantas (2010), 2a Ed. Petrópolis, Vozes, 2003.
o Círculo de Cultura constitui-se locus da vi-

Caderno de Educação Popular em Saúde


Diálogo com a experiência
Fontes nas quais todos e todas nós bebemos e
continuaremos bebendo a cada momento novo do nosso
aprendizado, das nossas descobertas. Fragmentos poéticos,
melodias, escritos traçados com leveza e criatividade.
Outras palavras, outras maneiras de dizer o que a teoria
científica procura fundamentar, talvez um tanto distraídas
e mais encantadoras. Apenas, outras palavras...
Dialogismo e arte na gestão em saúde: a perspectiva
popular nas cirandas da vida em fortaleza

Este estudo é fruto da caminhada de homens, mulheres, jo-


vens e crianças que compõem as rodas das Cirandas da Vida1 e da
nossa inquietude que, ante uma proposta que parte da iniciativa de
atores e atrizes populares, insere-se no contexto de uma gestão pú-
blica municipal, buscando fazer o movimento dialético de desvelar
o mundo, com base na ação-reflexão-ação.
Neste sentido, formulamos a questão geradora deste projeto de
pesquisa – que realiza um estudo sobre a experiência das Cirandas
da Vida em Fortaleza-CE: como poderíamos ler o dialogismo e a arte
na gestão em saúde, buscando a perspectiva popular
Com o protagonismo dos atores dos movimentos e práticas Vera Lúcia Dantas
que a fazem a ANEPS em Fortaleza e o apoio da gestão municipal Médica, educadora popular, mestre em
Saúde Pública- UECE, doutora em edu-
de saúde, as Cirandas foram lançadas em 2005 com a intenção de cação – UFC e atualmente coordenado-
se constituírem um espaço de interação e interlocução dos diver- ra pedagógica do Sistema Municipal de
Saúde Escola da SMS Fortaleza
sos atores institucionais e comunitários na formulação de políti-
cas sociais que interferem e atuam na produção de saúde visando Angela Maria Bessa Linhares
a direcionar as políticas públicas municipais para uma democracia Professora doutora do Programa de dou-
participativa, na perspectiva de estimular o protagonismo popular. torado em Educação e do Mestrado em
Saúde Coletiva da Universidade Federal
As Cirandas da Vida afirmam buscar trazer à cena o desafio do Ceará.
de desenhar coletivamente uma proposta de educação popular que
constitua um olhar multirreferencial na interface dos atores popu-
lares e institucionais, de modo a dialogar sobre ações coletivas de
enfrentamento às situações-limite apontadas pela população, espe-
cialmente nas áreas de maior vulnerabilidade social de Fortaleza. As
situações-limites no contexto das Cirandas da Vida são vistas como
o lugar de se problematizar as transformações; aquelas que exigem

1
. Ação de educação permanente do Sistema Municipal de Saúde Escola de
Fortaleza, que busca articular o princípio de comunidade junto à esfera institucional.
transformação no contexto local, por difi- onde se promove a reflexão das ações em
cultarem a concretização dos sonhos, dese- saúde. Assim é que buscamos as situações
jos e necessidades coletivas das populações.” vividas onde se favorece a escuta em rede
Ao situarem-se no campo da educação da experiência coletiva tentando capturar o
popular, apóiam uma formação política que dialogismo trazido pela arte na gestão em
constitui o concerto dialógico envolvendo o saúde.
princípio de comunidade e a esfera institu- Esta tese nos desafiou a delinear um
cional e, dessa forma, propõem que o poder percurso, de ação-reflexão-ação sobre as Ci-
analítico dos grupos e movimentos popula- randas da Vida – onde atuamos, refletimos
res possa dialogar sobre ações compartilha- e intervimos coletivamente, na perspectiva
das o que inclui discussão, reflexão crítica e de pensar gestão popular no contexto do
82 possibilidade de diálogo concreto. Estado, com suas linguagens e caminhos
A perspectiva popular a que nos re- singulares em saúde popular e, recortamos
ferimos diz respeito ao olhar dos atores e as esferas dialógicas da gestão popular em
atrizes dos movimentos populares como saúde nas quais nos movemos trazendo a
protagonistas de ações de transformação às arte também como linguagem, no contexto
situações-limite da sua realidade, na pers- da gestão atual em saúde.
pectiva da emancipação; de um popular que Para traçar esses caminhos, ousamos
se tece na busca de superação da consciên- construir uma pesquisa-ação que cunhamos
cia ingênua rumo ao inédito viável: como de Ciranda de Aprendizagem e Pesquisa em
inacabamento, formação permanente que cuja abordagem multirreferencial envolve-
se constitui em determinados  princípios e mos atores populares – os cirandeiros – que
se orienta por uma ética que busca a justiça, constituíram o grupo sujeito deste estu-
a solidariedade nas relações e nas políticas do, coautores e protagonistas da produção
trazendo a tensão permanente entre ação do conhecimento nessa vivência de práxis
política e o fortalecimento dos espaços or- grupal fundamentada na Comunidade Am-
ganizativos que animam a luta popular em pliada de Pesquisa, Comunidade Ampliada
sua mediação com a esfera institucional. de Pares, nos círculos de cultura e na arte.
Buscamos o popular que, ao produzir atos- O percurso também inclui os teste-
-limite transformadores da realidade atuali- munhos e narrativas de vida como ex-
za sua potência criativa. pressões de um saber coletivo carregado
Neste estudo, apresentamos a arte de historicidade, subjetividade e sentidos,
como espaço de criação – transcendência, incorporando a oralidade e potencializan-
capaz de produzir sentidos e sentimentos, do a atualização temporal e espacial desses
e optamos por tomá-la como dimensão dos atores – sujeitos em seus discursos. Dessa
sujeitos que potencializa a dialogicidade ca- forma a Ciranda de Aprendizagem e Pesquisa
paz de realizar a suspensão crítica e criativa traz esse referencial buscando aprendiza-

Caderno de Educação Popular em Saúde


dos que se fundamentam na possibilidade passagem nas diversas regiões da cidade,
de nos percebermos sujeitos que aprendem junto aos seus atores protagonistas ge-
”desde o princípio mesmo de sua experiên- rando atos-limite, potentes em seu poder
cia formadora, assumindo-se como sujeito de transformação, que se entrelaçam e se
também da produção do saber” (FREIRE, intercambiam em um movimento circu-
2000, p. 24). lar como as cirandas e, ao mesmo tempo,
A proposta metodológica da Ciranda complexo como a própria vida.
de Aprendizagem e Pesquisa está organizada As sinfonias trazem, harmonias e con-
em momentos não estanques e que podem trapontos, como espaço polifônico do dizer
acontecer simultaneamente ou em tempos das culturas humanas e também revelam
diversos partindo da constituição do grupo desafios. Um deles é o de se constituir na
sujeito. Os cirandeiros trouxeram em seus gestão em saúde um caminho de interseto- 83
relatos, as experiências vividas que os refe- rialidade, capaz de comportar a perspectiva
rendaram a ocupar esse lugar, ensejando popular onde a arte se apresenta como po-
leituras sobre o território e os questiona- tência e devir social.
mentos sobre as trilhas que empreenderam Este artigo se constitui a partir de uma
nas Cirandas. Esses relatos e as questões dessas sinfonias que teve os jovens em situ-
geradoras levantadas por parte de cada um ação de conflito com a lei como protagonis-
são relidos pelo grupo, que problematiza e tas, buscando desvelar caminhos de inclu-
produz reflexões e, por sua vez, suscitam a são na vivência com a juventude vida loka.
escrita coletiva constituída não apenas dos
textos formais, mas também da produção O rap como narrativa da realidade de
de desenhos, músicas, textos teatrais, poe- jovens em conflito com a lei
mas e outros.
As Cirandas, em suas trilhas musicais,
As situações-limite apontadas pela
constituem novos percursos e outros arran-
população, bem como os atos-limite (as
jos sinfônicos expressos na batida marcan-
superações propostas e vividas para trans-
te do rap, trazendo para o centro da roda a
formar o que se detecta como situação-
problemática da juventude envolvida com o
-limite) foram base para os enfrentamen-
crime, com a exploração sexual, introduzi-
tos do princípio de comunidade e a esfera
da na Ciranda de Aprendizagem e Pesquisa
institucional. Com estes movimentos,
com a fala do cirandeiro Thyago, o mais jo-
cria-se uma perspectiva de engendrar o
vem dos cirandeiros pesquisadores. Advin-
inédito-viável.
do do Movimento Nacional de Meninos e
As narrativas dos cirandeiros e ciran-
Meninas de Rua do Ceará (MNMMRCE)
deiras desencadearam movimentos que,
e da região do Grande Lagamar, ele inicia
por sua vez, configuraram sinfonias por
seu relato:
onde as Cirandas da Vida marcaram sua

Diálogo com a experiência


Olha a Fortaleza Bela Nesse território, a questão da violên-
Nesse imenso arquipélago cia, para os jovens, surge de forma bastante
De bairros e favelas contundente. Nos aprofundamentos que se
Área de contradições seguiram às primeiras rodas das Cirandas,
É a regional II apontou-se a necessidade coletiva de cons-
Onde porções de riquezas tituir atos-limite para um grupo de jovens
São cercadas por bolsões de pobreza em grave situação de vulnerabilidade social,
Vocês tirem a prova, como é o caso dos jovens em situação de
Mas eu tenho certeza. conflito com a lei e dos adolescentes e jo-
vens em situação de exploração sexual.
A fala musical do cirandeiro contextu- Para o cirandeiro Thyago,
84 aliza o cenário onde se delineia a sinfonia As Cirandas da Vida na SER II se re-
que nos propomos agora analisar. O Gran- alizam em um cenário marcado pelos lutas
de Lagamar é um território, que, perante sociais, pela moradia e resistência e no pas-
um contexto de dificuldades sociais, ousa sado pela luta da sobrevivência. Por parte da
se reconhecer como “uma comunidade de juventude, nesses tempos atuais, particular-
luta” elaborando suas estratégias de luta e mente para mim, palco melhor não existi-
resistência, no sentido do fortalecimento da ria em tal regional. Tal palco é chamado de
organização popular, protagonizada inicial- Grande Lagamar, comunidade esta que se
mente pelas mulheres. aglomera nos bairros do Pio XII, Aerolân-
dia, Alto da Balança, São João do Tauape
e Lagamar, que surge já oriundo da luta
de resistência e sobrevivência das famílias
vítimas da seca, que foram morar às mar-
gens do riacho Tauape.
Os grupos de juventude apontam,
mais fortemente, a violência do acesso
aos direitos básicos de cidadania, que
se expressam no tráfico de drogas e de-
saguam na discriminação e no cerco de
negações conhecido como “mundo dos
jovens em conflito com a lei”.

Neste contexto as Cirandas encontram,


por intermédio do cirandeiro Thyago, o
MNMMRCE que constitui o grande
foto: Arquivo MNMMRCE

parceiro para os movimentos que


Caderno de Educação Popular em Saúde compõem essa sinfonia.
Ao trazermos à cena a questão da ju- posição de ações que incorporam outras di-
ventude e seu envolvimento com a violência, mensões como o compromisso vivido e as-
referendamos o relatório final do projeto sumido pelos jovens e o sentido de pertença
Centro de Defesa Técnico-Jurídico de Ado- à comunidade onde os jovens se inserem e
lescentes em Conflito com a Lei (2003), que é elaborado no correr do percurso edu-
que aponta o nível alarmante de violência cativo:
institucional contra crianças e adolescentes,
Todos nós, jovens, somos da comunidade.
o que exige uma política pública bem mais
Ali nascemos e crescemos e, portanto, te-
eficaz para eliminar ou, ao menos, no pri-
mos o compromisso com a transformação
meiro momento, atenuar as práticas autori-
da realidade em que vive a nossa juventude
tárias contra essa parcela da população.
e em conseqüência, da nossa comunidade.
Neste contexto as Cirandas encontram, 85
Isso tem facilitado a nossa aproximação e
por intermédio do cirandeiro Thyago, o
o diálogo com esses jovens, pois, quando
MNMMRCE que constitui o grande par-
estão em dificuldades recorrem a nós para
ceiro para os movimentos que compõem
ajudá-los. Muitas vezes somos nós que
essa sinfonia.
buscamos apoio jurídico. Aqueles que estão
O MNMMRCE trabalha com esses jo-
em medida sócio-educativa ou na justiça,
vens através de alguns projetos e ações. Um
vamos acompanhando o andamento dos
deles é o “Minha História, Minha Vida” que
processos, das audiências, às vezes temos
é na verdade um acompanhamento a esses jo-
de acompanhá-los à delegacia. Somos, na
vens através de visitas domiciliares, diálogos
prática, seus advogados.
com cada jovem que a gente faz semanalmente
e às vezes até diariamente. Aqueles em que a O relato que acabamos de transcre-
situação está mais grave, que estão no assalto ver nos faz refletir sobre a exclusão social
direto e que não estão sendo acompanhados por no campo da educação e a necessidade de
nenhum projeto, a gente vai quase que dia- repensar os critérios de inclusão. Aqueles
riamente. Vamos discutindo com esses jovens a que pensam a formação acadêmica como
situação em que se encontram e buscando en- caminho de transformação social, que pen-
caminhamentos para escolas, cursos profissio- sam a formação articulada à solução dos
nalizantes, documentos, acesso à saúde para o problemas cotidianos do território em que
jovem e para a família. vivem, não conseguem acessar a educação
Desse relato é possível apreender o pública e, por outro lado, os que a acessam
quanto (apesar dos diversos projetos ins- não conseguem, via de regra, realizar esse
titucionais apregoados pelo Estado bra- percurso de inserção nos contextos da vida
sileiro) essa parcela da juventude ainda se no território.
encontra desassistida. Por outro lado, revela Ao mesmo tempo, podemos dizer que
a potência dos movimentos locais na pro- há certa ausência das políticas públicas no

Diálogo com a experiência


âmbito dos territórios e os movimentos po- A participação dos jovens que possuem
pulares realizam uma ação que, em grande envolvimento direto com a violência trou-
medida, deveria ser do Estado. Ouçamos a xe um olhar diferenciado, sobre a questão.
fala do cirandeiro: Na fala do cirandeiro se explicita a potência
desses jovens que hoje protagonizam ações
Os projetos até hoje não têm apoio insti-
que se voltam para o mundo da crimina-
tucional direto. Quem milita nesse campo,
lidade. Compondo esse cenário discursivo,
vai trabalhar em outro lugar para sobrevi-
estão, por um lado, a óptica da segurança
ver e bancar a estrutura mínima das ações:
pública trazida para as rodas das Cirandas
passagens, aluguel de espaço, entre outros.
pelas lideranças comunitárias mais tradicio-
Assim é que, apoiados por um movi- nais e, por outro, a visão de um grupo de jo-
86 mento de juventude, os primeiros movi- vens em estado de exclusão social. Vejamos:
mentos das Cirandas trouxeram para a roda
Naquele exercício das rodas, tive a certeza
esses jovens, em uma configuração primeira
de que não só no Lagamar, mas em qual-
das trilhas das Cirandas no território. Veja-
quer periferia existe uma parcela de sujei-
mos os relatos:
tos que discutem a sua realidade social de
Foi com base nessa experiência do movi- outra forma e externam também de forma
mento e na sua inserção com esses jovens diferente. Temos ainda as lideranças de
que as Cirandas, trouxeram esses jovens associações, que em sua maioria vivem de
para serem escutados pelos adultos, lide- representação, de atos externos também,
ranças da nossa comunidade e os bacanas reuniões... Temos as lideranças tidas como
(pessoas do poder público). Naquele en- negativas, que os próprios moradores e a
contro, pela primeira vez nós tínhamos sociedade preferem ignorar tanto que os
mais adolescentes, crianças e jovens do cursos, projetos e até a escola são formata-
que adultos e, mais ainda, uma parcela da dos para os meninos bonzinhos e não para
juventude que durante todo o processo de os vida loka, para os sujeitos e os jovens
construção e luta da comunidade sempre questionadores, que irão nos colocar à pro-
foi deixada de lado, a juventude vida loka. va em sua vivência.
A partir dessa participação eles reconfi-
A falta do trabalho, ainda uma vez,
guraram o conceito de violência até então
foi a principal dificuldade (situação-limite)
entendido pela comunidade e pelos baca-
apontada pelos jovens: para eles, a ausên-
nas apenas como o da violência do senso
cia de oportunidades de profissionalização,
comum que é o do jovem que assalta e que
o ‘falseado’ acesso à escola, como dizem, a
a solução é o aumento da muralha policial
inexistência de áreas de lazer e a violência
que nos rodeia (grifo nosso).
policial ensejam uma reação em cadeia e
ocasionam a organização dos jovens em ní-

Caderno de Educação Popular em Saúde


veis correspondentes de violência. usam a muralha da PM para nos lembrar
A briga de gangues também aparece que não podemos subir para Aldeota. Que
como imagem significativa, influenciada o nosso lugar deve ser sempre o Lagamar
por vivências que se iniciam com rivalida- e a violência que aqui se produz tem que
des e, por percorrerem as “margens”, como ficar aqui.
eles dizem, resultam por tocar o “mundo do
Como vemos, os jovens destacam as
crime”, das “paradas”.
múltiplas dimensões da violência sob a
Nesse percurso, a arte oferta motes, re-
óptica da exclusão social: o não-acesso às
vela olhares diversos, descortina trilhas, ma-
políticas públicas de saúde, educação, traba-
peando e desvelando a violência vivida no
lho, moradia etc. Relacionando também as
território. Dessa forma, se apresenta como
questões do “sentimento”, tais como desa-
potência de expressão e narrativa juvenil, 87
mor dos adultos, ganância e exploração dos
especialmente por meio do teatro e do rap.
“barões”, junto às suas análises mais amplas,
A linguagem teatral trouxe imagens
como a ausência de políticas de trabalho e
e histórias revelando, de modo crescente-
renda.
mente grave, cenas de assaltos, violência po-
Os enfrentamentos propostos quase
licial, doméstica e sexual. O rap, por sua vez,
sempre buscam as formas culturais de se
mostrou sua potência como crônica social.
expressar, compreender e se relacionar com
Despertando o interesse e o respeito dos
o mundo do bairro e a sociedade maior. As
participantes, expõe em “musicalidade, rit-
experiências com arte aparecem, sob o olhar
mo e letra um conteúdo social verdadeiro;
do jovem, como grandes oportunidades: o
com uma imagética rica, aborda a comuni-
hip-hop, os grupos de teatro e dança, o es-
dade de modo criativo e situa o político em
porte, entre outras.
todos os espaços da vida da juventude da
A partir do diálogo das Cirandas da
periferia.” (DANTAS et al., 2007).
Vida com o MNMMRCE, foi feito um
Outras questões surgem e valores éticos
processo de escuta com os atores que dele
são trabalhados e contextualizados nas lutas
fazem parte. Uma das coisas fortes é que
do território – um deles é a dimensão do
o grafite e o rap são duas linguagens que
preconceito que se mescla à exclusão social:
aglutinam esses jovens e que a oportunida-
As pessoas têm medo de vir ao Lagamar. de de acesso à profissionalização é uma das
Na visão da classe média, na periferia só estratégias de superação ao envolvimento
tem bandido e marginal. Na realidade so- com o crime, que atualmente é o único es-
mos sobreviventes de uma selva que cada paço onde eles têm oportunidade, porque
dia que passa, busca nos manter em nossas não se necessita ter 2º grau e nem ter boa
favelas como faziam no apartheid. A dife- aparência e sim ser malandro, articulado e
rença é que na África usavam cercas e aqui acima de tudo não ser viciado em crack.

Diálogo com a experiência


Como observa o cirandeiro Thyago, o positivo, com aproveitamento de espaços-
grafite e o rap, bem como a profissionaliza- -tempos nas comunidades. Com relação à
ção, aglutinam os jovens e funcionam como dificuldade de acesso ao lazer, por exemplo,
estratégias educativas para a superação do foi articulada – com a Assessoria de Espor-
crime e do que se inscreve como práticas de te e Lazer da SER II – a estruturação de
juventude vida loka. um projeto em que as quadras das escolas
Na realidade, a violência ou a paz são públicas municipais do Grande Lagamar
formulações que acontecem em um universo serão cenário de práticas esportivas, cuja
relacional, mas têm sua base. Assim como forma e modo de agir serão definidos pelo
se trabalham políticas afirmativas, se parece conjunto dos adolescentes e jovens que pro-
dever trabalhar-se com o aspecto propositi- tagonizaram o processo.
88 vo da cultura de paz, ganhando espaços no- Em relato e estudo grupal sobre violên-
vos de reflexão-ação e não apenas descons- cia e juventudes, pudemos pensar:
truindo práticas, parece oportuno trabalhar
[...] os enfrentamentos tentam
com a ideia de cultura de paz
fazer reviver a esfera sistêmica,
– assim, se admitem aspectos
estruturais, e não se deixa de
Contudo, como manter vivo alargando o dialogismo vivi-
lidar com uma dimensão rela- o princípio de comunidade,
do nos grupos intergeracionais,

cional (a que é constituída na em meio à hierarquização e


agora junto à esfera institucio-
nal. Contudo, como manter vivo
relação com o Outro). Há que fragmentação dos trabalhos
o princípio de comunidade, em
se reconceituar a palavra paz, dos serviços públicos? meio à hierarquização e frag-
muitas vezes deteriorada ao
mentação dos trabalhos dos ser-
longo da história, como algo
viços públicos? como deixar cla-
conveniente ao poder e aos que estão acu-
ro que não se trata de “fazer pelo estado”,
mulando as riquezas sociais.
mas fazer com que a esfera sistêmica possa
No atual estádio de globalização, além
dispor do poder analítico dos movimentos
dos fatores econômicos, é preciso dar visibi-
sociais, da riqueza de sua experiência e in-
lidade aos processos de exclusão, lutar con-
tervenções, de sua construção de saberes
tra eles e aperceber-se de que há aspectos
múltiplos e do conhecimento da cultura na
mais amplos da necessidade social de jus-
qual se inserem? (DANTAS et al., 2007).
tiça, como a afirmação da cultura de paz, a
afrodescendência, a questão de gênero, da Thiago continua refletindo e questio-
agroecologia, espiritualidade, das juventu- nando os entrelaçamentos da esfera sistê-
des, entre outros, que envolvem dimensões mica com a atuação das Cirandas:
subjetivas junto às da economia.
A juventude local (do Lagamar) pare- [...] Outra situação que nós percebemos foi
cia partir da idéia de se atuar de modo pro- a relação que se estabelecia entre os sujeitos

Caderno de Educação Popular em Saúde


institucionais e comunitários na constru- os orientem (aos jovens) e acima de tudo
ção das parcerias. Uma das estratégias que que os vejam não pela droga que fumam ou
estamos tentando consolidar coletivamen- pelo artigo que respondem perante a justiça
te é a criação de uma rede articulando os e sim por que os enxergamos como jovens
diversos projetos, ações e serviços públicos, humanos como eu fui e sou.
tanto comunitários quanto institucionais, A roda da Ciranda desafiava: como re-
para garantir o atendimento integrado aos alizar atos-limite que alcançassem a escola,
adolescentes e jovens em situação de dro- espaço privilegiado de promoção da vida,
gadição, em conflito com a lei... Bem como na instauração do diálogo entre estudantes
as suas famílias. Isso, porém, está sendo e comunidade?
muito difícil, pois as pessoas preferem fa-
[...] na SER II estamos trabalhando o foco
zer de conta que o problema não existe ou 89
dessa juventude vida loka na perspectiva
buscar resolvê-lo sob a ótica da segurança
de que eles participem da construção das
pública, melhor dizendo, policial. Os po-
políticas. O projeto “craques só de bola”
deres públicos preferem excluir o problema
foi organizado numa parceria das cirandas
do que enfrentá-lo chamando os jovens
com a CUFA e está trazendo para dentro
para construir juntos.
da escola os jovens que foram expulsos dela
A exploração sexual de meninos e me- – porque a grande maioria dos jovens que
ninas surge, nas rodas das Cirandas – pelo estão fora da escola foram expulsos por ela.
que pudemos ver nesta pesquisa –, intima-
O unicef, por exemplo, afirma tra-
mente vinculada à drogadição, especial-
tar a violência nas escolas sob a perspectiva
mente o crack. Em seu relato, o cirandeiro
da garantia de direitos e de qualidade da
Thyago problematiza a questão com a expe-
educação. Podemos perguntar: o que sig-
riência do MNMMRCE.
nifica ver as escolas, serviços de saúde, as-
Outro projeto é o Flor de Lis que é o
sistência social, conselhos tutelares e outros
acompanhamento e encaminhamento das
mecanismos e instituições como “agentes
meninas que estão sendo exploradas se-
protetores”, ou seja, que desempenham um
xualmente. A gente faz inicialmente uma
papel estratégico na defesa dos direitos das
abordagem noturna identificando quem são
crianças e adolescentes?
estas meninas e em que áreas da comuni-
Da narrativa do cirandeiro, é possível
dade vivem. Então, buscamos encaminhá-
apreender a imensa dificuldade de reconhe-
-las para as políticas e setores que podem
cimento, nas instituições públicas, da atuação
ajudar como CAPS, Conselho Tutelar...
da juventude. A visão de participação popu-
Esses projetos surgem das necessidades da
lar e do princípio da comunidade como mas-
comunidade, que não possuem nenhuma
sa de mobilização (instrumentalizadora e re-
instituição ou projeto que os acompanhe ou
dutora) ainda prepondera, como se pode ver:

Diálogo com a experiência


[...] Outra ação que estamos tentando re- como a dos Racionais e MC’s são muito
alizar que é a oficina de Acolhimento ao presentes no seu dia a dia. Essa identifi-
Adolescente e que foi construído com as cação não apenas com o estilo do rap en-
entidades que trabalham com esses jovens quanto musicalidade, mas com esses gru-
dos quais estamos falando, ainda não ini- pos, está no fato de que eles vivenciam a
ciou porque as unidades de saúde que fi- mesma realidade que os nossos jovens vi-
caram de enviar cada uma um profissional venciam: a violência policial, o preconceito,
nunca encontrou tempo para isso. Só nos as drogas, a falta de oportunidades e falam
reconhecem quando se trata de mobilizar disso em sua música. Assim eles se vêem na
a comunidade. Mas, não nos reconhecem música, principalmente quando estas falam
como porta voz de uma política pública, no da família. Daí a gente viu a riqueza do rap
90 caso as Cirandas. pela possibilidade de discutir a história, a
realidade das juventudes.
Assim, o cirandeiro-pesquisador for-
mula as suas perguntas de pesquisa que Pode-se ver como em sua narrativa o
mais aprofundam o que se alevanta como cirandeiro revela o potencial crítico da pro-
reflexão sobre o que temos vivido: blematização vivida por meio das Cirandas,
e como a vivência da arte amplia a visão so-
como construir ações concretas com a ju-
bre a realidade:
ventude do Grande Lagamar a partir da
interação entre as políticas existentes sobre Antes eles enxergavam as músicas como
juventudes? Como reconhecer (identificar) apologias às coisas que estavam fazendo: ao
a ação de lideranças juvenis envolvidas com crime, às drogas. Quando passamos a dis-
a criminalidade, potencializando a cons- cutir com eles as letras e a própria forma de
trução de projetos de vida cidadã? Como viver desses grupos (Racionais, MC’s) que
viabilizar a construção de políticas de pro- também estão na correria para mudar as
moção da vida com jovens do Lagamar, a suas comunidades, eles passaram a refletir
partir das linguagens presentes no cotidia- sobre a sua própria realidade e aí começa-
no juvenil? ram a se aproximar da realidade do hip hop,
que é um movimento que contribui para a
As inquietações do cirandeiro são apro-
organização dessa parcela da juventude a
fundadas na Ciranda de Aprendizagem e
partir de quatro elementos: o rap, o grafite, o
Pesquisa, onde a problematização iniciada
break e o DJ, muito embora os três primei-
no território delineia possibilidades de ela-
ros estejam mais presentes na nossa realida-
boração de atos-limites que trazem a arte
de, porque o quarto já exige mais recursos.
como dimensão nucleadora:
Dessa fala podemos apreender como
Como convivemos cotidianamente com
os jovens partem da dimensão da arte pre-
essa rapaziada, percebemos que as músicas

Caderno de Educação Popular em Saúde


Como reconhecer (identificar) a ação
de lideranças juvenis envolvidas com

foto: Fora do Eixo


a criminalidade, potencializando a
construção de projetos de vida cidadã?
Como viabilizar a construção de políticas
de promoção da vida com jovens do
Lagamar, a partir das linguagens presentes
no cotidiano juvenil?

sente no cotidiano e, com base nela, buscam coleções de bens materiais e simbólicos. 91
ampliar visões, construir novos sentidos, A relação de propriedade com os territó-
além de apontar possibilidades de organiza- rios relativiza-se em práticas recentes, que
ção. Nesse percurso, o grafite representa um parecem expressar a desarticulação entre o
marco e o cirandeiro nos revela o porquê: percebido nas cidades e na cultura política.
Na fala do cirandeiro Thyago, é pos-
quanto ao grafitti eles se identificam ini-
sível apreender esses significados para as
cialmente porque, em sua maioria, eram
ações de pixação. Segundo ele, o grafite re-
pixadores. Pixar pra eles significava deixar
presenta um momento fundamental para a
sua marca nos espaços públicos; dizer algo
juventude da periferia; como chega para ela
que estava á margem dos outros lugares de
vinculado ao movimento hip hop, representa
dizer e demarcar territórios.
a possibilidade de expressar criticamente a
Canclini (1997), fala do grafite como realidade.
“uma escritura territorial da cidade, desti- Na pixação que se fazia na cidade a gen-
nada a afirmar a presença e até a posse sobre te queria marcar território entre as gangues,
um bairro”. Segundo Canclini, as marcas do entre as facções. Era um movimento de nós
grafite expressam as lutas pelo controle do pra nós. Não tinha esse cunho marcadamen-
espaço, as referências estéticas, políticas, ou te político. Já o grafite é um movimento dos
mesmo sexuais mediante as marcas próprias jovens para a sociedade. Enquanto os traços
e modificações dos grafites de outros, ma- da pixação só são entendidos entre os pa-
nifestando, assim, um estilo, um modo de res, sejam eles aliados ou rivais, no grafite as
viver e de pensar, que se contrapõe aos cir- mensagens são claras. O código não é mais
cuitos publicitários comerciais, políticos ou restrito só a quem é grafiteiro e representa a
dos mass media. possibilidade desses jovens se comunicarem
Ainda segundo o autor, o grafite acen- com a sociedade e expressarem suas leituras
tua o território, e parece desestruturar as críticas da realidade.

Diálogo com a experiência


Thiago, por sua vez, observa como a que passam os adolescentes em situação de
releitura dos signos do grafite (a “proble- conflito com a lei.
matização” do que foi exposto como grafite)
Mais uma vez, tendo como ponto de
realiza uma espécie de aproximação entre os
partida a experiência do MNMMRCE, os
que atuam junto às juventudes e, também,
atos-limite consistiram de oficinas de gra-
ensejam que estes jovens sejam escutados
fite e aerografia (um aprofundamento do
de outra forma. O próprio estranhamento
grafite como técnica). Thyago explicita as
do grafite não utilizar signos verbais fun-
razões das escolhas feitas e mostra as inter-
ciona de modo a dizer o que a fala escon-
faces e parcerias constituídas:
deria? E as paredes seriam o Outro a quem
interessa dizer algo: A partir daí foram se estruturando ofici-
92 nas de grafite e uma de aerografia, como
Percebemos como essa linguagem podia
uma estratégia para organizar esses jovens
nos aproximar desses jovens e ao mesmo
e, partindo deste processo, problematizar
tempo ajudá-los a refletir
com eles as realidades viven-
sobre a realidade, trazendo
ciadas. A escolha de se ter uma
outra forma de expressão O próprio estranhamento oficina de aerografia foi por
que não a linguagem fa- do grafite não utilizar signos conta da questão do profissio-
lada. Sabemos que muitas verbais funciona de modo a nal. No Lagamar, como tem
vezes não há espaço na so-
ciedade para ouvir as falas,
dizer o que a fala esconderia? rivalidades, dividimos a oficina

narrativas dos jovens, en- E as paredes seriam o Outro em dois lados. Em um dos la-

quanto que o grafite é uma a quem interessa dizer algo: dos, nós trazíamos a técnica da
aerografia, que é na realidade
linguagem que não precisa
a profissionalização do grafite,
de autorizações ou platéias
na perspectiva de montar um atelier onde
e sim de apenas uma parede onde as pes-
as camisas produzidas na oficina seriam
soas ao passarem olham e refletem sobre as
colocadas à venda para comercialização na
mensagens deixadas ali pelo o artista. Por
própria comunidade, trazendo assim as re-
isso o movimento resolveu trabalhar com os
ferências da economia solidária.
jovens em forma de oficina a linguagem do
grafite, onde buscamos problematizar com Aqui podemos apreender um aspecto
eles. “Medidas sócio-educativas: que nóia é que diferencia fundamentalmente as pro-
essa?” foi o nome que demos e que resultou postas que nascem na perspectiva comu-
na construção de uma cartilha em parceria nitária. Enquanto as iniciativas do Estado
com o Centro de Defesa da Criança e do trazem em si a fragmentação, as redes co-
Adolescente - CEDECA-CE retratando, munitárias edificam pontes entre as várias
a partir da vivência deles, os procedimentos potencialidades locais que se complemen-

Caderno de Educação Popular em Saúde


tam, se ajudam e se fortalecem. Da narrativa do cirandeiro, podemos
O relato do cirandeiro deixa clara a perceber as diferenças entre a propos-
perspectiva da inclusão, no processo, tam- ta pedagógica trazida pelas Cirandas e o
bém daqueles que não estão prontos para MNMMRCE, e aquela outra propositura
esse momento mais aprofundado da técnica pautada pelas políticas públicas para esses
do grafite, que se está a chamar de aerografia: jovens. Ouçamos o cirandeiro:

Já a oficina de grafite veio para trabalhar- Naquele momento decidimos procurar as


mos com os jovens que eram mais envol- políticas que trabalham com esses jovens
vidos com o consumo das drogas e muitos no território tais como a saúde, educa-
possuíam um nível de escolaridade mais ção e a coordenadoria das medidas sócio-
baixa e sentíamos a necessidade de se ter -educativas da FUNCI, por entender que
93
uma linguagem não para a geração de precisávamos de apoio institucional para
renda e sim para problematizar com eles as questões que iriam surgir no processo.
a realidade que eles vivenciavam naquele Ao iniciarmos esse diálogo percebemos
momento e principalmente para expor nos que as falas sempre giravam em torno de
muros das avenidas que perpassam e cru- uma formação técnica separada da forma-
zam a comunidade. ção humana e que mesmo quando esta era
sugerida, sempre trazia na sua proposta um
A proposta pedagógica se revela na
processo de receber informações e não de
fala do cirandeiro, em consonância com os
se construir com eles.
princípios educativos defendidos por Frei-
re (2003b, p. 203), como processo educati- O círculo de cultura brincante como
vo que “aumente e amplifique o horizonte cena dramática da exploração sexual de
de entendimento crítico das pessoas”, que crianças e adolescentes
esteja dedicado à liberdade e não à doutri- Na Ciranda de Aprendizagem e Pes-
nação e que lhes pudesse fazer retomar a quisa, o cirandeiro relata como buscaram a
esperança de conhecer e transformar a sua superação de situações-limite e como pro-
realidade. curaram articular experiências de várias na-
A fala do cirandeiro é reveladora dessa turezas. Dessa forma é que trazem para a
perspectiva: roda a cirandeira Lúcia, advinda das CEBs
e que há mais de dez anos ajudava a ar-
a nossa preocupação é que a técnica não
quitetar o trabalho do espaço cultural Frei
fosse trabalhada desvinculada das situações
Tito de Alencar- ESCUTA, na região do
presentes no cotidiano da vida. Que a for-
Pici – SER III. Em seu relato, a cirandeira
mação humana dialogasse constantemente
reconstitui o processo vivido naquela região,
com a técnica e os contextos vivenciados
cuja referência maior foi a experiência vivi-
pelos jovens.
da pelo ESCUTA.

Diálogo com a experiência


A região do Pici representa um con- Na perspectiva de constituir atos-
glomerado de bairros na III Região Ad- -limite, foram estruturados círculos de cul-
ministrativa de Fortaleza, que envolvem o tura. Estes foram inspirados nos Círculos
Planalto Pici, Antônio Bezerra, Quintino de Cultura Brincante, experiência que o
Cunha, Bela Vista, João XXIII, Rodolfo ESCUTA já desenvolvia há cinco anos e
Teófilo, Henrique Jorge, entre outros. Sur- que era protagonizado por jovens do grupo.
gem durante a Segunda Guerra Mundial, Sobre esses círculos de cultura, o cirandeiro
quando a área foi ocupada pelos ianques Paulo (que também era do ESCUTA e que
para a construção de uma base aérea, que veio posteriormente substituir a cirandeira
depois foi abandonada e passou a ser ocu- Lúcia na condução das Cirandas) relata:
pada com pequenos sítios.
Partindo de alguns problemas percebidos
94 Ao reportar-se à questão da violência
na comunidade, juntávamos o ESCUTA e
apontada como situação-limite, relata Lúcia:
a comunidade para que, em um primeiro
A partir das oficinas temáticas foram pen- momento, as pessoas falassem livremente
sados atos limite e o Escuta, enquanto gru- sobre o tema em questão e as relações com
po protagonista desses atos, envolveu-se a realidade vivenciada pelas pessoas que ali
com o Fórum de Enfrentamento à Explo- estavam. Com base nos relatos o grupo de
ração Sexual de Crianças e Adolescentes. atores do ESCUTA, que realizava o Cír-
Só que do Fórum não foi tirada nenhuma culo de Cultura Brincante5, preparava uma
proposta concreta e aí nos perguntávamos: esquete teatral, agora incluindo esses rela-
Para que o Fórum? Que ações concretas tos e falas das pessoas e passavam a circular
poderiam mudar a violência com crianças e nas escolas e nas ruas da comunidade, em
adolescentes? Há na comunidade do Pici o uma ação que chamávamos de rodas de rua.
Gargalo da Garganta: um gueto de explo- Ali se problematizava a questão e se parava
ração sexual, droga e roubo. Ali se falam das o espetáculo para ouvir da platéia sua opi-
Pedreiras2, Pedritas3 e Pedrinas4, meninas nião sobre como a questão se apresentava
de 12 a 14 anos que preparam fumo, pe- na comunidade e também suas sugestões
dra, vendem e são exploradas sexualmente. para o enfrentamento do problema. O
Chegaram nas Pedreiras umas doze famí- grupo sistematizava as questões surgidas a
lias com caixas e tábuas e ali virou boca de partir das rodas de rua e de acordo com as
fumo, foco que movimenta a ação do trá- propostas apontadas como caminhos para
fico. Começamos a nos articular, organizar enfrentar o problema, convidava pessoas ou
encontros para ver o que poderíamos fazer. setores que deveriam se responsabilizar por
2
Pedreiras é um lugar onde vivem famílias que moravam esses enfrentamentos.
embaixo do viaduto do bairro Antônio Bezerra.
3
Meninas que vendem crack.
4
Meninas que usam crack. 5
Círculo de cultura brincante.

Caderno de Educação Popular em Saúde


Retomando a fala da cirandeira Lúcia, pliação da perspectiva dos jovens envolvidos
reconstituímos os círculos de cultura, agora nas oficinas de grafite e aerografia.
problematizando a violência, como situação Outro aspecto fundamental da pro-
que necessitava ser enfrentada no contexto dução dessa sinfonia diz respeito à forma
do território pela ação protagonista de seus como foram definidos os facilitadores do
atores locais e das redes sociais. processo. Os cirandeiros buscaram a poten-
Na Ciranda de Aprendizagem e Pes- cialização de atores locais, mais especifica-
quisa, a cirandeira detalha as singularidades mente aqueles que já tinham alguma atua-
do processo de problematização vivido e que ção junto a esses jovens.
articulou o ESCUTA à reflexão-ação em Uma das dificuldades que precisáva-
saúde no Pici. Observemos como a unidade mos enfrentar era a escolha dos facilitado-
de saúde era vista como distante (e lugar de res. Assim, a escolha partiu da história de 95
morte) pela população. Vemos aqui como a vida que cada um trazia e que era a mesma
voz da população era silenciada no espaço das gangues, da violência policial, da ausên-
da Unidade de Saúde e como a perspectiva cia de oportunidades... E de como eles su-
popular passa a intervir nessa relação: peraram esse universo que conspirava para
que eles hoje estivessem em estatísticas de
Inicialmente tivemos esses grupos como
jovem mortos pela violência ou hóspede do
informantes. Depois fomos a campo ver
sistema penitenciário.
onde estão os sinais de vida e os sinais de
As parcerias para a superação dos par-
morte, como as chamas do palito de fósfo-
cos recursos financeiros de que as Cirandas
ro acesa e apagada, que era uma dinâmica
dispunham (apenas horas aula para os fa-
que usávamos nas CEB’s. Nesse processo, a
cilitadores e o material para a parte técnica
escola foi apontada ao mesmo tempo como
da oficina) foram estabelecidas de forma
um espaço de vida e de morte. O Cen-
diferenciada em cada território, mas com
tro de Cidadania César Calls com escola,
o protagonismo dos próprios facilitadores
Centro de Referência de Assistência Social
com base em sua inserção no território.
- CRAS e unidade de saúde também foi
O relato do cirandeiro sobre o proces-
apontado como espaço de morte. As crian-
so realça alguns questionamentos iniciais
ças e adolescentes foram partícipes desse
sobre a omissão do Estado na constituição
processo e as últimas fizeram o mapa com
das propostas e de como o princípio de co-
o próprio grupo dos guetos.
munidade termina por suprir, à sua forma,
A experiência do ESCUTA, mediada as lacunas deixadas pela esfera institucional.
pela arte, como estamos a ver (os Círculos A questão da infra-estrutura no tocante
de Cultura Brincantes tinham o teatro como à alimentação não conseguimos construir;
linguagem fundamental), portanto, soma-se eu acredito que não conseguimos sensibi-
à experiência do MNMMRCE para a am- lizar as outras políticas para a importância

Diálogo com a experiência


deste processo e que o envolvimento não nhecimento acerca do universo dos jovens,
era apenas ceder alguns lanches e sim o en- criando condições de interagir no processo.
volvimento direto das pessoas da gestão no Sigamos com o cirandeiro Paulo em seu de-
processo, e como pra gente do Movimento talhamento do processo metodológico:
não tem tempo ruim, então nós mesmos fo-
Com os jovens partimos da apresentação
mos bancando a estrutura do lanche.
do documentário, Falcão Meninos do Trá-
O processo envolveu cerca de setenta
fico, seguido da problematização do que
jovens dos quatro territórios e foi acompa-
aquilo tinha a ver com a sua realidade.
nhado ao mesmo tempo pelos cirandeiros
Um momento marcante dos círculos foi
Thyago e Paulo. Este último relata no en-
quando pedimos que mapeassem os sinais
contro temático da Ciranda de Aprendiza-
de vida e de morte no território e eles fi-
96 gem e Pesquisa:
zeram isso a partir de desenhos. Depois
Nas comunidades do Pio XII e Alto da colocamos os desenhos no mapa. Alguns
Balança fizemos caminhadas pelo terri- construíram dobraduras que aprenderam
tório. Andar pelas ruas, ouvir o linguajar, na FEBEM. Com base nos desenhos e nas
os sons de músicas que saem das casas, os falas dos meninos e meninas, na verdade,
pontos chaves do território onde se dá o adolescente e jovens, percebemos que a pa-
tráfico, onde está o forró, os conflitos entre lavra geradora para o grupo era “vida loka”.
os grupos, sentar nas calçadas com alguns Alguns até a tinham tatuado no corpo. En-
dos meninos. Conhecer os micro-territó- tão reapresentamos os desenhos e as falas
rios do Lagamar e suas especificidades, as deles em tarjetas e começamos a produzir
barreiras. Entender como funciona o dia a com eles um desenho único que simboli-
dia desse território, seus rituais, seus perso- zasse o que era para eles a vida loka. Os
nagens para poder dialogar com eles. moradores e a igreja local ofertaram muros
para que expusessem esse desenho como
À sua maneira, esses jovens cirandeiros
painel de grafite.
parecem realizar um momento importante
trabalhado por Freire nos círculos de cultura Este relato desvela a forma singular
que ele denominava de investigação do uni- como o círculo de cultura se conforma na
verso vocabular, onde se buscava identificar experiência e os universos que descortina
palavras de uso corrente na vida dos grupos sobre a realidade vivida desses jovens. Na
ou do território, que se constitui um mo- verdade, a expressão geradora vida loka re-
mento fundamental para o estudo da reali- vela um tema gerador geral que para Freire
dade. Essa aproximação com a linguagem, deveria promover a integração do conhe-
com as singularidades nas formas de falar cimento e a transformação social, possibi-
dos jovens e sua comunidade, de sua família, litando a ampliação do conhecimento e a
propiciaria aos cirandeiros ampliar seu co- compreensão dos jovens sobre sua realida-

Caderno de Educação Popular em Saúde


de, na perspectiva de que possam intervir que lhe oferta ter visibilidade, respeito e a
criticamente sobre ela. Assim, compreen- grana para viver.
der o que para aqueles jovens significa vida
A problematização da forma como foi
loka, como a vivem, como se expressam, que
arquitetada com as linguagens da arte pa-
sentidos dão a ela, parecia fundamental para
recia produzir uma escrita singular mar-
problematizar a violência como situação-li-
cada por imagens refletindo o cotidiano e
mite em cujo processo esses jovens ocupa-
que elaboram novos símbolos e sentidos na
vam um lugar de centralidade.
constituição grupal. Vejamos como o ciran-
Ao tematizar a vida loka, os cirandeiros
deiro Thyago segue seu relato do processo.
também constituem uma forma particular
O mapeamento dos espaços de vida e
de problematização que parte da realidade
de morte nos revelou que alguns espaços
que cerca esses jovens em situação de con- 97
que para quem é de fora é morte como o
flito com a lei, buscando com eles a expli-
caso do Forró para eles é a única alternativa
cação para as situações-limite que estão a
de acesso ao lazer e algum tipo de cultura
vivenciar e os possíveis atos-limites para
mesmo que não seja o conceito de cultura
transformar aquela realidade, pela ação des-
que temos. Revelou ainda que a escola para
ses jovens como sujeitos práxicos no dizer
eles é um espaço de morte tanto por conta
de Freire que, ao se transformarem na ação
da violência que ocorre dentro delas quan-
de problematizar, passam a detectar novos
to por conta da violência que elas praticam
problemas na sua realidade e assim suces-
com ele.
sivamente sempre partindo da vivência, de
A narrativa do cirandeiro desvela mais
experiências significativas.
uma vez as contradições dos espaços públi-
O cirandeiro Thyago relata como se
cos que deveriam contribuir com a inclusão
constituiu esse processo:
desses jovens para que pudessem preparar
A partir dessa problematização trabalha- sua inclusão na sociedade e que fortalecem a
mos com os jovens o que faltou em suas exclusão. Poder ler a realidade com base no
vidas que os levaram a ser “vida loka” e olhar desses jovens, parecia aos cirandeiros
ao mesmo tempo apontavam a criação de uma oportunidade ímpar de pensar também
espaços de lazer, oportunidades de profis- a humanização; de rever os preconceitos que
sionalização e de emprego como possibi- a sociedade nos ajuda a engendrar. E Thya-
lidades para que, aqueles que estão na vida go prossegue, revelando aspectos importan-
loka, saíssem superando a tentação de so- tes que a problematização trouxe à tona:
breviver com o dinheiro fácil que vem do
Dessas vivências questões importantes sur-
tráfico. O que me marcou foi a consciência
giam: a família além da mãe muitas vezes
que eles tem de que estão nessa vida não
eram os parceiros, onde as relações de ami-
por uma opção e sim por ser o único espaço
zades são bastante fortes entre eles, algo in-

Diálogo com a experiência


teressante é que todos vêm com esses laços A fala do cirandeiro nos remete a Ar-
desde a infância pois todos se conheciam, royo (2004), em sua reflexão sobre educan-
algo marcante é você ver esses jovens que dos de escolas públicas e o papel da mídia.
são rotulados pela mídia e pela sociedade Os diálogos do autor com esses adolescen-
da Aldeota como bandidos e monstros sem tes e jovens parecem revelar certa rebeldia
emoção e coração, ver um deles que é ca- contra as formas como são apresentados pe-
deirante por conta de alguns tiros que le- los meios de comunicação, e acrescentamos,
vou na vida do crime, ser carregado por ou- também, profissionais da saúde e da educa-
tros jovens que aparentemente não teriam ção. Parecem assim esperar que os vejamos
nenhuma obrigação de carregá-lo. de uma forma menos preconcebida.
No dizer de Arroyo (2004, p. 306),
Nem idealizados, nem satanizados. Se-
res humanos que esperam ser compreendi-
Nem idealizados, nem satanizados. Seres humanos que dos e acompanhados no duro aprendizado
esperam ser compreendidos e acompanhados no duro do jogo da vida. Demasiado transparentes,
aprendizado do jogo da vida. Demasiado transparentes, talvez não aprenderam, ainda, o jogo das
talvez não aprenderam, ainda, o jogo das máscaras. máscaras. Não aprenderam a ocultar-se. Se-
rão condenados por condutas que os adul-
Não aprenderam a ocultar-se. Serão condenados por tos aprenderam a ocultar?
condutas que os adultos aprenderam a ocultar? Os cirandeiros também trazem em seus
relatos os desafios enfrentados no trabalho
com esses jovens:

Algumas vezes os encontros deixaram de


acontecer por mortes de alguns dos me-
ninos, acenos do pessoal do movimento
de que o clima estava tenso, de que havia
conflito na área. Durante os encontros os
meninos entravam e saindo. Sabíamos que
nessas saídas havia o consumo de drogas,
mas não estávamos ali para trabalhar de
forma repressiva. Os horários era outro
problema, assim como a fome. Muitos che-
gavam mareados da noite virada, no forró,
no barraco de uns e outros, virando bruxo,
foto: Fora do Eixo

lombrado. Mantê-los até o fim exigia aten-


ção constante. Flexibilidade no que tínha-
mos programado. Falar pouco, trazer a mú- rar a dimensão do cuidado na perspectiva
sica e não fazer muito movimento físico. da integralidade. Do cuidado que parte de
Tínhamos que compreender até o silêncio. um olhar respeitoso sobre as marcas que
nos revelam silenciamentos, marcas de sua
A complexidade dos desafios a serem
condição social, no dizer de Arroyo (2004),
enfrentados nesse lidar com os jovens exi-
de seu gênero, raça, etnia, classe, condição
gia dos cirandeiros um esforço além do que
social, da exclusão, da fome. E nos pergun-
as Cirandas conseguiram arquitetar em seu
távamos: o que essa experiência nos ensina
processo formativo com os cirandeiros. O
para a escuta às falas desses corpos?
compromisso como educadores populares e
Ao mesmo tempo, o cirandeiro apon-
militantes sociais, no entanto, parecia man-
ta os aprendizados advindos desse processo
tê-los firmes nesse exercício e o cotidiano
que, no seu dizer, referendam a potência da 99
forjava-lhes as táticas para manter vivo o
arte nas linguagens do grafite e do rap como
processo na perspectiva de que se percebam,
narrativas e problematização do cotidiano
não como seres carentes, sobreviventes na
dos jovens em situação de conflito com a lei.
selva do mundo globaliza-
A valorização e inclu-
do, mas, como nos lembra-
va Arroyo (2004), sujeitos Falar pouco, trazer a música são das potencialidades da
em seus direitos humanos. e não fazer muito movimento comunidade nos processos
de organização e formação
Uma das questões que físico. Tínhamos que da juventude vida loka; A
vimos seria importante foi compreender até o silêncio. afirmação das linguagens
a de que eles precisavam
do grafite e do rap como
receber algum tipo de cui-
narrativas desses jovens
dado. Fizemos uma vivência de argila com o
pois nelas eles se identificam e fazem parte
cirandeiro Edvan, onde eles passaram pelo
do seu cotidiano; Apropriação da metodo-
banho com argila, com a respiração, com o
logia dos círculos de cultura por parte do
sol e o mar. Percebemos que eles foram se
MNMMRCE com metodologia proble-
permitindo serem tocados tanto pelo faci-
matizadora da realidade, a ser utilizada com
litador quanto uns com os outros. Outra
esses jovens em nossas ações e projetos;
coisa foi que eles depois comentaram como
Para o cirandeiro algumas mudanças
tiveram dificuldade de caminhar e respirar e
são perceptíveis. Trabalhando com tamanha
associaram a questão das drogas e do fumo.
complexidade e considerando os desafios ex-
Alguns até explicitaram que precisavam re-
postos, alguns movimentos revelam potên-
duzir a quantidade.
cias; luzes que se anunciam de que vale a pena
Dessa forma, mais uma vez, a experi-
a lutar e investir na formação desses jovens.
ência popular aponta caminhos de supe-
O caminho de emancipação trilhado
ração dos desafios cotidianos ao incorpo-
por alguns jovens que participaram das vi-

Diálogo com a experiência


vências das Cirandas da Vida, como aqui por trazer oficinas de arte e de esporte em
podemos citar o jovem R., morador do Bar- vez de opções de profissionalização que se
roso II, que catava latinha na beira mar para encaixem no universo deles.
sobreviver e hoje é instrutor de breack em
O cirandeiro Thyago aponta uma con-
uma escola particular para vinte meninos
tradição importante no que diz respeito à
e meninas, N. e A. ambas de quinze anos
arte. É que a oferta de vivências com arte
que estão produzindo camisas pintadas a
pela esfera institucional substitui a possibi-
própria mão e estão tentando buscar um
lidade de acesso às políticas de geração de
curso de aerografia para se aperfeiçoarem
renda e qualificação profissional. Parece
na técnica. Tem ainda o P. que além de jo-
nos dizer que há um certo descaso desta es-
vem, negro, morador de uma comunidade
fera em relação a esse público no que diz
100 pobre e violenta optou em organizar esses
respeito à profissionalização. Por que então
jovens e fazer revolução através do hip hop
as ofertas de oficinas de arte? O que estaria
possibilitando aos jovens dessa comunidade
a nos dizer nas entrelinhas?
sonharem com um futuro melhor.
Outro fato é que na Fortaleza Bela os
Com as potências também se desvelam
discursos sobre a juventude é que ela é di-
os desafios, as contradições de uma socieda-
versa, mais infelizmente na prática das po-
de desigual que também cerceia os sonhos
líticas públicas se cuida mais de uma juven-
de ser mais. As oportunidades de ingressar
tude e da nossa que vive nas periferias os
no trabalho formal esbarram por um lado no
“vida lokas” essa só é lembrada para justifi-
preconceito e por outro nas escassas ofertas
car os projetos e as captações de recursos. Aí
de qualificação profissional destinadas a esse
quando os jovens deixam de freqüentar os
público. Ouçamos o que nos diz o cirandeiro:
cursos vem aquele discurso: “Eles não que-
Percebemos que, ao mesmo tempo em que, rem nada tai, demos o curso para eles cadê
através do grafite, problematizamos com que eles vêm? não tão interessados” quando
esses jovens a existência de outras possibi- na verdade o discurso era pra ser outro, “será
lidades que não sejam o crime, o tráfico, a que a nossa metodologia, mobilização não é
pista ou o sinal como forma de consegui- arcaica para esses jovens? Será que estamos
rem ser vistos, vejo que estamos plantando falando a língua deles? Será que conhece-
com eles uma semente do sonho, embora mos a realidade vivenciada por eles?”
muitas vezes a concretude desse sonho
esbarre na ausência de estrutura. A visão A narrativa contundente do cirandeiro
deturpada que algumas políticas têm no leva-nos pelos caminhos tortuosos da ex-
tocante a profissionalização como uma es- clusão social e da necessidade premente de
tratégia de reinserção social desses jovens, desenvolver diálogos com o princípio de co-
é mascarada em um discurso que termina munidade representado por essa juventude

Caderno de Educação Popular em Saúde


que parece ser ocultada também nos espaços
da esfera institucional. O cirandeiro clarifi-
ca a idéia de que não se pode falar de uma
juventude. São juventudes diversas e várias
são as identidades e as culturas. Como en-
tão considerar essa diversidade intercultural
na constituição das políticas de juventude?
Como incluir esses olhares e saberes mar-
ginalizados, valorizar a pluralidade e buscar
os pontos de contato, como propõe Santos
(2004), promovendo o diálogo intercultural
(Freire) de forma a romper com a fragmen-

foto: Fora do Eixo


tação?
Sigamos com as reflexões do cirandeiro
sobre os desafios que a sinfonia revela:
E nos perguntávamos: o que essa experiência nos ensina
Na prática o que está acontecendo é que
para a escuta às falas desses corpos?
sob o manto da vulnerabilidade social pro-
jetos como o PRONASCI ampliaram para
jovens que não se envolveram ainda com o dos jovens em conflito com a lei. Ao mes-
crime. Os que já estão envolvidos, vão ser mo tempo, ao trazer os acordes finais dessa
a minoria e vão estar nas oficinas de cul- sinfonia, o cirandeiro Thyago ilustra como
tura, que terminam por referendar o que a juventude em situação em conflito com a
os técnicos consideram importante cultu- lei narra com a arte do rap o seu cotidiano e
ralmente, mas por que não o graffiti, Rap, expõe os conflitos dessa relação:
DJ, Breack? Por que não começar com essas
que falam de perto a esses jovens e depois O mais importante aprendizado é que não
ampliar para as outras? As Cirandas foram existe fórmula mágica da paz e sim cami-
convidadas a entrar na roda, mas não con- nhos a serem percorridos e que a violên-
seguiram fazer esses jovens protagonistas cia não pode ser dialogada somente com
de histórias de inclusão, não tiveram vez estudiosos, bacanas, doutores e homens e
como educadores, porque o seu currículo mulheres que se julgam sábios de algo que
não conta paras as universidades que vão nunca vivenciaram. A paz que buscamos na
assumir os processos. periferia não é da camisa branca e da pas-
seata mais sim a do respeito aos princípios
As reflexões do cirandeiro referendam constitucionais e dos direitos humanos, do
o que já anunciamos sobre os descompassos direito à moradia digna, alimentação sau-
da esfera institucional em relação ao mundo dável, educação de qualidade que nos pre-
pare para enfrentar as dificuldades da vida CANCLINI, N. G. Culturas híbridas – estraté-
e nos dê condição de resolver os conflitos gias para entrar e sair da modernidade.Tradução
a partir do dialogo, de uma segurança pú- de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão.
blica com menos armas e com mais dialogo São Paulo: EDUSP, 1997. p. 283-350.
e acima de tudo da igualdade de oportuni- Divulgação em Saúde para Debate, v. 39, p. 68-
dades para todos nós, não só para os filhos 81, 2007.
de bacanas mais para todos os seres huma- FREIRE, P. Política e educação. 7. ed. São Paulo:
nos que somos. “A nossa liberdade não será Cortez, 2003b.
dada pelos opressores ela  está sendo con- ______. Pedagogia da autonomia: saberes neces-
quistado pelos oprimidos dia-a-dia.” sários à prática educativa. São Paulo: Paz e Ter-
ra, 2000. (Coleção Leitura).
Assim, o cirandeiro parece querer expor
102 ______. Extensão em comunicação? 10. ed. Rio
e conceder visão pública de Janeiro: Paz e Terra,
a uma dimensão silen-
ciada, ocultada, da his- O mais importante aprendizado é que 1977.
tória desses jovens que não existe fórmula mágica da paz e FUGANTI, L. Biopolítica
e produção de saúde. Inter-
não chega aos profissio- sim caminhos a serem percorridos face – Comunic., Saúde,
nais de saúde, aos técni- e que a violência não pode ser Educ., v. 13, p. 667-679,
cos das diversas políticas
sociais. Lembrar-nos de
dialogada somente com estudiosos, 2009. Supl. 1.
que, em meio às vulne-
bacanas, doutores e homens e LINHARES, Â. M. B.;

rabilidades, é possível mulheres que se julgam sábios de algo FERNANDEZ, G. Recor-


tes para um retrato do ser
enxergar o que Fuganti que nunca vivenciaram. aprisionado – um estudo
(2008) denomina “zo- sobre educação prisional.
nas de indeterminação”, Fortaleza, Ceará, 2007. 370
espaços onde é possível despertar paixões p. Mimeo.
alegres capazes de ativar o conatus, no dizer SANTOS, B. S. A universidade no século XXI:
de Spinoza, e promover as potências desses para uma reforma democrática e emancipató-
jovens. A arte em suas linguagens significa- ria da universidade. Educação, Sociedade &
tivas a esses jovens seria esse espaço? Culturas, n. 23, p. 137-202, 2005a. Disponí-
vel em: <http://www.fpce.up.pt/ciie/revistaesc/
ESC23/23>.
Referências: ______. O futuro do Fórum Social Mundial: o
ARROYO, M. Imagens quebradas: trajetórias e trabalho da tradução. Compilação do Observa-
tempos de alunos e mestres. Petrópolis, RJ: Vo- tório Social de América Latina. [S.l.]: OSAL,
zes, 2004. Sept./Dic. 2004. (En Publicación: Observatorio
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4. ed. Social de América Latina, n. 15).
São Paulo: Martins Fontes, 2003.

Caderno de Educação Popular em Saúde


Dialogando com a experiência das Cirandas
da Vida em Fortaleza-CE: novas reflexões

Eu me sinto implicado na experiência das Cirandas da Vida


desde seu início em vários aspectos: como gestor, nos tempos em
que coordenava a área de Educação Popular no Ministério da Saú-
de, como animador, participante e militante das rodas de conversa
e farinhadas na ANEPS do Ceará. Bem como professor, pesquisa-
dor da academia, que foi convidado para a banca de defesa da tese
da Verinha, quando a experiência das cirandas virou “conversa de
doutor” e, principalmente, como pessoa, ser humano que afirma a
humanescência nas relações de respeito, carinho e aprendizagem.
Essas implicações, que em um plano infra-psíquico sempre re-
sultam em modificações nas nossas percepções, sensações, desejos José Ivo dos Santos Pedrosa
e afetos, em um plano mais relacional, sempre significam desafios Médico. Doutor em Saúde Co-
letiva. Professor da Universidade
a enfrentar. Federal do Piauí
A pergunta problematizadora - “como poderíamos ler o dialogis-
mo e a arte na gestão em saúde, buscando a perspectiva popular?” nos leva
a pensar em alguns pressupostos fundamentais para que a experiên-
cia se tornasse viável e daí pudesse emergir tal questão.
O primeiro deles é pensar a gestão em saúde como resultado do
processo de aprofundamento da democracia participativa em nosso
país que possibilite a presença ativa e protagonista no espaço público
dos movimentos sociais populares como legítimos sujeitos portado-
res de projetos construídos coletivamente na ação comunicativa. De
modo que a relação entre governo e sociedade civil não ocorra como
relação de disputa, mas de complementaridade e consensos para pro-
jetos políticos emancipatórios.
O segundo é a afirmação do diálogo como força motriz dessa
relação, que guarda a possibilidade de expressar a perspectiva po-
pular com a força de um saber construído e legitimado pela vida,
com a leveza e a sabedoria da arte, consi- de ator institucional, e, do outro lado, os mo-
derada força constituinte de sujeitos que se vimentos, que pelo histórico de dominação
preparam para questionar criticamente os se vêem mais como portadores de necessida-
porquês do mundo e descobrir qual sua par- des e demandas do que como sujeitos propo-
ticipação. E isso é trabalhar com a educação sitivos, capazes de vocalizar e lutar por aquilo
popular freiriana, isto é: que aqui é chamado de perspectiva popular.
É diante da necessidade de romper com
(...) uma prática educativa fundada na
visão de mundo que naturaliza a opressão
abertura ao outro como objeto de reflexão
e institui a cultura do silêncio (FREIRE,
crítica, como experiência fundante daque-
1976) que as Cirandas da Vida
les e daquelas que se abrem ao mundo e aos
outros em busca de explicação e de respos- (...) mostram a intenção de se constituírem
104
tas. (Freire, 1976, p.) um espaço de interação e interlocução dos
diversos atores institucionais e comunitá-
Frente a esses pressupostos, um dos
rios na formulação de políticas sociais que
grandes desafios das Cirandas da Vida é
interferem e atuam na produção de saúde,
colocar-se como dispositivo promotor do
representa uma das estratégias visando a
diálogo entre a gestão e os movimentos po-
direcionar as políticas públicas munici-
pulares. Diálogo que tem por base a von-
pais para uma democracia participativa, na
tade de entrar na roda, de participar desse
perspectiva de estimular o protagonismo
espaço comunicativo, no qual os saberes e
popular. (FREIRE, 1976).
os fazeres do outro são expressos e aceitos
em várias linguagens. Observamos na nossa De maneira geral, em sociedades de-
história que a vontade de participar da de- mocráticas, o ciclo da formulação à efeti-
terminação das coisas por parte da popula- vidade das políticas públicas compreende: a
ção foi alimentada pela luta pelo direito de construção da vontade coletiva em relação
participar, de ser cidadão. Vontade que foi à superação das situações-limite, isto é, o
muito mais desconhecida, reprimida e ex- processo de compreensão, aceitação e mo-
cluída que incentivada; e, no meio disso, foi bilização da sociedade; a institucionalização
também muitas vezes permitida e regulada, dessa vontade no plano jurídico legal; o de-
mascarando e minimizando os resultados e senvolvimento de organizações e arranjos
as conquistas, mesmo as parciais. organizacionais com capacidade de produ-
Dessa situação decorre, no imaginário zir as ações consensuadas e garantidas na
social instituído, uma falsa polaridade em lei; e, finalmente, a avaliação dessa política
que num lado se encontram os gestores que pela sociedade (EIBENSCHULTZ, 1991).
tradicionalmente não se reconhecem como E, nesse sentido, a gestão participativa,
participantes do diálogo, mas arautos do dis- na perspectiva de diminuir a separação entre
curso competente que lhes confere o papel sociedade civil e Estado, implica o aprofun-

Caderno de Educação Popular em Saúde


damento de processos que ampliam a parti- ao pensarmos no outro, imediatamente en-
cipação social nas políticas públicas e a cons- quadramos esse outro naquilo que pensamos
tituição de espaços nos quais são construídas que ele seja capaz de fazer, de acordo com o
proposições coletivas, incluindo as demandas que nós selecionamos como sendo o melhor
da sociedade e os arranjos institucionais ne- a ser feito, segundo a nossa visão de mundo
cessários para operacionalizar as respostas. decorrentes e todos os significados (BOUR-
Esses arranjos exigem processos com- DIEU, 2005).
partilhados de formulação de políticas que Com a nossa formação técnica e cien-
minimizem a captura e a tradução dos de- tífica, que coloca o pensar como base da
sejos e necessidades da sociedade civil pelos existência humana (penso, logo existo!), é di-
recursos de poder técnicos e burocráticos fícil reconhecer outro saber que não decorra
apresentados pelo governo, além de dina- exclusivamente do pensamento racional e
mismo organizacional que reduza as dis- científico, mas da ação, da experiência.
tâncias hierárquicas e possibilite momentos O saber que autoriza esses meninos e
de construção da vontade coletiva. meninas a se constituírem sujeitos de sua
Ora, como jovens que vivem em confli- história e autônomos para reconstruí-la e
to com a lei em uma capital como Fortaleza recontá-la sob suas perspectivas é um saber
podem se constituir sujeitos e construir um que vem da vivência e militância nos movi-
saber que possibilite sua participação como mentos sociais. A práxis que vem das lutas
ator político portador de projetos de eman- de rua, da sobrevivência, do MNMNR e da
cipação? Como é possível o diálogo entre ANEPS é a fonte desse processo que Paulo
esses jovens que desafiam cotidianamente Freire chama “saber de experiência feito”, que
as normas e regras estabelecidas e a parti- supera o saber resultante de procedimentos
cipação institucionalizada em espaços, tem- metodicamente rigorosos.
pos, atores e argumentos específicos? foto: Fora do Eixo
Às vezes, perguntas como essas são for-
muladas por muitos de nós, em face de nossa
própria história, na qual temos vivenciado
muito mais o pensar do que o fazer. Ou seja,

Como é possível o diálogo entre esses jovens


que desafiam cotidianamente as normas
e regras estabelecidas e a participação
institucionalizada em espaços, tempos,
atores e argumentos específicos?

Diálogo com a experiência


“A superação e não a ruptura se dá na me- (LAPASSADE, 1998) que possibilita a re-
dida em que a curiosidade ingênua, sem criação e a reconstituição desses jovens de
deixar de ser curiosidade, pelo contrário, vida loka em sujeitos que se identificam e
continuando a ser curiosidade, se criticiza.” dialogam nos espaços coletivos, produzin-
(FREIRE, 2004, p. 31). do pensamentos e ações que tensionam o
Esse saber se diferencia do que nor- instituído.
malmente se conhece como empírico, por- Esse saber feito de experiência é expres-
que essa prática é também pensamento so e comunicado por meio do rap, hip hop
e reflexão, ou seja, é práxis. E, na fala dos e do grafite. Expressões artísticas que, ao se
cirandeiros, é reconstruído todo o processo manifestarem, produzem elementos que ali-
no qual a descoberta da identidade com o mentam a potência existente nos sujeitos so-
106 lugar e o compromisso com a comunidade ciais e a transformam em força individual e
foram os elementos reveladores da potência coletiva, social e política.
imanente a esses jovens. Entretanto, é preciso tomar cuidado
Ao se descobrirem potentes, dinâmicos, com a tendência de instrumentalização da
críticos e criativos, os jovens do Lagamar arte e da educação no campo da saúde, que
realmente transformam o movimento das realiza uma verdadeira captura da essência
Cirandas em momentos de aprendizagem da arte e da educação e as utiliza como me-
e construção coletiva nos quais são ressig- ros instrumentos para aumentar a efetivida-
nificados, na perspectiva popular, o conceito de da mensagem que o transmissor deseja
de violência e de exclusão social, bem como passar. Na experiência relatada, “o grafite, o
são identificados espaços antes invisíveis nos rap, assim como a profissionalização, aglu-
territórios, evidenciando contradições entre tinam os jovens e funcionam como estraté-
movimentos e suas lideranças e discutidas gias educativas para a superação do crime e
novas perspectivas diante de novas temáticas do modo de vida loka, ou seja, as expressões
e, principalmente, diante de outro modo de artísticas por meio das quais os jovens se
viver, no qual o tempo, o lazer, a alegria foram identificam e se comunicam produzem re-
sendo significados de maneira muito dura. flexões sobre questões ainda não tematiza-
No encontro entre o modo de viver na das na agenda das políticas públicas, como
realidade de um território em “extrema vul- preconceito, discriminação, violência totali-
nerabilidade social” e o idealizado pelas ins- tária do Estado em determinados aspectos
tituições sociais sobre o “vir a ser” do outro, da vida social e sua ausência em outras.
é que as Cirandas da Vida, em sua relação A arte aqui não significa tão somente
institucionalizada com a gestão municipal, momentos lúdicos compartilhados, quan-
promovem o diálogo e a ação comunicativa do se “congela” o cotidiano e nos deixamos
entre dimensões distintas da mesma reali- enlevar pelo som de alguma música, na
dade, atuando como dispositivo pedagógico maioria das vezes relaxante, utilizada como

Caderno de Educação Popular em Saúde


foto: Aicó Culturas

preâmbulo em vários encontros e eventos (...) é preciso tomar cuidado com a tendência de
dos quais participamos. Ao contrário, a arte instrumentalização da arte e da educação no campo da
como força que torna consciente a potência saúde, que realiza uma verdadeira captura da essência da
existente nesses sujeitos gerou perguntas
que, por sua vez, demandaram movimen-
arte e da educação e as utiliza como meros instrumentos
tos em busca de respostas que se tornaram para aumentar a efetividade da mensagem que o
evidentes na necessidade de parcerias, na transmissor deseja passar.
construção de uma intersetorialidade que
tem por base o território e como amálgama
do a compreensão, apreendida por meio da
as necessidades e os desejos desses jovens
escuta às significações próprias expressas
que as linguagens comumente utilizadas
pelos sujeitos; a interpretação, que inclui a
não conseguem expressar.
comunicação; e a multirreferencialidade ex-
Nesse intenso processo de aprendiza-
plicativa voltada para
gem, encontra-se a ousadia de instituir ou-
tro espaço de produção de conhecimentos (...) objetos que ainda se quer interrogar no
e saberes, articulado com a produção das sentido de aumentar sua inteligibilidade, qua-
ações, afirmando a indissociabilidade entre lificada a partir de vários pontos de vista [...]
o pensar e o fazer, as Cirandas de Aprendi- diferentes linguagens das disciplinas que se
zagem e Pesquisa. Espaço possibilitado pela trata de operacionalizar, de distinguir e com-
multirreferencialidade com que os autores binar entre elas.” (ARDOINO, 1998, p. 30).
trabalham saúde, educação e arte, envolven-

Diálogo com a experiência


Nesse lugar, ocorre a autorização dos Referências
sujeitos como autores de sua história e de
suas narrativas, de forma que os cirandeiros
ARDOINO, J. Abordagem multirreferencial
e os jovens não são somente os conhecidos
(plural) das situações educativas e formativas.
sujeitos objetivados nas pesquisas acadê-
In: BARBOSA, J. A. (Org.). Multirreferencia-
micas tradicionais. São sujeitos que falam,
lidade nas Ciências e na Educação. São Carlos-
exigem autoria de suas falas e interlocução
-SP, Editora da UFSCar, 1998, p. 24-41.
quando elaboram proposições explicativas
BOURDIEU P. Método científico e hierarquia
sobre sua realidade.
social dos objetos. In: NOGUEIRA, M. A.;
Nas Cirandas de Aprendizagem e Pes-
CATANI, A. (Org.). Escritos de Educação. 7
quisa, esses sujeitos autores produzem um
ed. Petrópolis, Vozes, 2005. p. 35-64.
108 conhecimento que difere do conhecimento
objetivo acadêmico e racional e se caracte- EIBENSCHULTZ, C. Poder, salud y democra-
riza como objetividade sem parênteses, que, cia. Taller de Medicina Social, v. 2, Caracas,
conforme Maturama (2005, p. 48), é um ca- Universidad Central de Venezuela, Ediciones
minho explicativo em que “não há verdade del Rectorado, 1991, p. 121-135.
absoluta nem verdade relativa, mas muitas FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e
verdades diferentes em muitos domínios outros escritos. São Paulo, Paz e Terra, 1976.
distintos. Nesse caminho explicativo exis- FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes
tem muitos domínios distintos de realidade, necessários à prática educativa. São Paulo, Paz
como distintos domínios explicativos da ex- e Terra, 1996.
periência, fundados em distintas coerências LAPASSADE, G. Da multirreferencialida-
operacionais e, como tais, são todos legíti- de como bricolagem. In: BARBOSA, J. A.
mos em sua origem, ainda que não sejam (Org.). Multirreferencialidade nas Ciências e
iguais em seu conteúdo e que não sejam na Educação. São Carlos-SP, Editora UFS-
igualmente desejáveis para serem vividos”. Car, 1998, p. 122-148.
Finalmente, ao dialogar com a experi-
MATURAMA, H. Emoções e linguagem na
ência das Cirandas da Vida, ficam as lições
educação e na política. Belo Horizonte-MG:
sobre a existência de possibilidades de su-
Editora da UFMG, 2005.
peração das situações-limites e a construção
de inéditos viáveis como forma de enfren-
tamento dos determinantes das condições
de vida dessa população. Entretanto, ficam
também interrogações a respeito de que li-
ções a gestão em saúde tem apreendido nes-
sa interlocução.

Caderno de Educação Popular em Saúde


Construindo zonas de indeterminação
Vera,
faz um tempo que a gente não se encontra. Teu texto trouxe
uma saudade de conversar contigo sobre arte e saúde, sobre boniteza.
E mais: trouxe uma vontade de conversar não apenas contigo, mas
também com o cirandeiro Thyago e com a galera vida loka. Não
satisfeito, ainda fiquei imaginando um diálogo em que esta galera
pudesse trocar experiências com alguns jovens que conheci no meu
trabalho como educador e redutor de danos: jovens que de muitas
maneiras são semelhantes aos descritos pelo cirandeiro no seu texto.
Enfim: neste espírito de prosa barulhenta, de muitas vozes, gostaria
que minha voz fosse apenas mais uma, compartilhando ideias, algu-
Dênis Roberto da Silva Petuco
mas lembranças e, principalmente, suspeitas. Nenhuma certeza.
Redutor de danos e educador popu-
A primeira coisa que me interpelou no seu texto foi a discussão lar; Cientista Social com mestrado em
sobre o RAP. Fez-me pensar, antes mesmo do RAP, nesta necessária Educação - Militante antimanicomial
com foco na defesa de direitos de pes-
abertura no estabelecimento das linguagens que constituem nossos soas que usam álcool e outras drogas.
encontros com os outros, em especial com os educandos. Aliás, Vera,
o final do teu texto traz as reflexões do Thyago sobre o desconten-
tamento dos jovens vida loka com o repertório de oficinas que eram
oferecidas a eles. Que sintoma! E é o próprio Thyago quem aponta
uma saída possível para este problema, quando articula as oficinas à
questão da profissionalização: por que não valorizar o potencial des-
tes jovens, seus saberes e práticas, oferecendo-lhes qualificação pro-
fissional justamente em suas áreas de atuação? Por que não oferecer
a estes jovens conhecimentos sobre técnicas de oficinagem, sobre
Educação Popular? Por que não lhes oferecer conhecimentos im-
portantes a uma atuação como educadores sociais, como oficineiros,
e, ao mesmo tempo, ampliar seus conhecimentos na arte específica
à qual estão ligados (RAP, grafite, dança...)? Por que não constituir
espaços – e a Educação Popular é fantástica para isto! – em que eles
possam ampliar sua compreensão sobre fe- no atendimento a usuários de álcool e ou-
nômenos sociais, sobre política, arte, vida... tras drogas no qual eu trabalho, na cidade
Lembro de uma situação vivida no de Cabedelo, Paraíba. Desde novembro de
Instituto Leonardo Murialdo, instituição 2009, eu tenho coordenado oficinas de mú-
religiosa que realiza trabalhos de educação sica no serviço, que por algum tempo não
social no Morro da Cruz, em Porto Alegre, tiveram muito sucesso. No início, tentei tra-
lugar onde se deu o forte de minha formação zer para as rodas de música algumas can-
como educador popular: eu estava na sala ções que pudessem operar como dispositi-
dos educadores, trabalhando na escrita de vos disparadores de reflexões, fosse por seus
um projeto, e tinha como companhia o CD conteúdos em termos de letras, fosse pelo
“Livro”, de Caetano Veloso. Em um dado tipo de memória afetiva a que tais canções
110 momento, um dos jovens que frequentavam pudessem estar ligadas. Mas, de um modo
a instituição postou-se à porta e ali ficou, geral, a coisa não funcionava, e muito rara-
silencioso. Olhei para o ra- mente tínhamos algo além
paz, perguntei-lhe se que- Por que não constituir de uma simples rodinha na
ria algo e ele apontou para espaços – e a Educação qual se sucediam pedidos
o aparelho de som com o de canções. Por vezes, nem
queixo, dizendo com voz
Popular é fantástica para mesmo isto.
baixa e grave: “hip hop”. isto! – em que eles possam A coisa seguiu neste
Convidei o rapaz para ampliar sua compreensão compasso morno, até que
dentro da sala. No apa- sobre fenômenos sociais, sobre dois eventos mudaram os
relho de som, Caetano política, arte, vida ? caminhos da oficina. O
Veloso cantava os versos primeiro foi a chegada do
de “Navio Negreiro”, de Isnaldo, contratado para
Castro Alves, a partir de uma base rítmica ser educador físico e instrutor de capoeira
e melódica própria do RAP. Enquanto meu no CAPSad, e que trouxe seu berimbau para
jovem camarada tecia comentários sobre o as rodas de música, ampliando a qualidade
maravilhoso arranjo de percussão constru- musical dos nossos encontros, abrindo no-
ído pelo mestre Carlinhos Brown, eu fala- vas possibilidades em termos de experimen-
va um pouco sobre Castro Alves e sua luta tação, de invenção, de alegria. As ladainhas
contra o racismo, tendo a arte como arma. de capoeira passaram a fazer parte do nosso
Não sei se outra linguagem que não o cotidiano e as rodas de música, antes des-
RAP poderia proporcionar uma conversa potencializadas, começaram a atrair mais
deste tipo! pessoas, inclusive de outros serviços da rede.
Há outra história, bem mais recente, O segundo evento ocorreu no dia em
vivida há poucos meses no CAPSad Prima- que um dos usuários pediu que tocássemos
vera, serviço de Saúde Mental especializado alguma canção de Bezerra da Silva. Num

Caderno de Educação Popular em Saúde


primeiro momento, fiquei em dúvida: será Pernambuco, cujo objetivo era promover a
que é correto tocar este tipo de música, em reflexão sobre os atravessamentos entre uso
um serviço que congrega pessoas que têm problemático de álcool e outras drogas, e as
problemas com o uso de drogas? Talvez formas hegemônicas de exercício da mas-
seja o mesmo tipo de dúvida que interpele culinidade na sociedade brasileira contem-
um educador que trabalha com jovens em porânea.
conflito com a lei, quando pedem para ou- Tais reflexões foram de extrema im-
vir ou cantar canções dos Racionais MC’s. portância para que conseguíssemos ampliar,
Não seria uma espécie de “reforço positi- não apenas nosso instrumental interpreta-
vo” à violência, à criminalidade, ao uso de tivo, mas principalmente para que pudésse-
drogas? No entanto, quando se supera o mos qualificar nossa intervenção cotidiana
medo e o preconceito iniciais, o universo do no serviço. Passamos a perceber o quanto o 111
hip hop – bem como seu território-irmão, machismo implica ampliação da vulnerabili-
constituído por sambas malditos, marginais dade, não apenas para as mulheres, mas tam-
– apresenta-se como território de reflexão, bém para os homens. Os modos hegemôni-
de emergência de subjetividades indignadas cos de constituição do masculino implicam
com a desigualdade social, com a carência glamorização da violência e dos excessos
de espaços de lazer e cultura, com uma edu- com as drogas (especialmente o álcool). É
cação que não se expressa em práticas de muito difícil para um homem parar de be-
liberdade, com a violência policial. ber, visto que para o exercício de tal opção, é
Em que pese a referência à sua expres- preciso não apenas superar os momentos ini-
são policial, a violência não está presente ciais sem álcool (o que pode ser bastante pe-
apenas nas relações das forças de segurança rigoso, justificando em alguns casos interna-
e repressão com a juventude vida loka. Elas ção hospitalar), mas principalmente suportar
também estão presentes nas relações consti- a pressão dos amigos homens, que muitas
tuídas entre estes próprios jovens, na forma vezes associam abstinência à diminuição da
como disputam territórios, no modo como virilidade. De maneira similar, o uso da vio-
cobram eventuais dívidas. A respeito disto, lência física como estratégia de solução de
há no seu texto, Verinha, toda uma reflexão conflitos, inclusive com a utilização de armas
sobre cultura de paz. No CAPSad em que brancas ou de fogo, está igualmente associa-
eu trabalho, este assunto já foi tema de pro- do aos modos hegemônicos de exercício da
fundas reflexões, quando percebemos que masculinidade. Assim, parece-me que um
nos esforçávamos para cuidar dos garotos, dos grandes nós críticos a serem desatados
mas eles acabavam vitimados por eles mes- para a efetiva construção de uma cultura de
mos! E foi mais ou menos neste momento paz entre usuários de álcool e outras drogas
que fomos convidados a participar de um diz respeito a esta necessária superação do
projeto organizado pelo Instituto Papai, de machismo, compreendido não apenas como

Diálogo com a experiência


fonte de sofrimento para as mulheres, mas na negligência estatal para com determina-
também como prisão ideológica que diminui das demandas, mas também pela presença
em muito a liberdade dos homens para se do Estado através de seu braço forte, cujo
constituírem de outras maneiras, para exer- peso se faz sentir no lombo daqueles que são
citarem outras masculinidades. posicionados como “perigosos”, como “inde-
Mas, que outras masculinidades seriam sejáveis”. Nas palavras de Claude Olievens-
estas? Não sei. E talvez seja justamente nes- tein: “Para se matar um cachorro, é preciso
te ponto que o título escolhido por mim ex- dizer que ele tem raiva”. É como se a mídia e
plique uma citação de Luiz Fuganti feita no o Estado estivessem jogando vôlei: a mídia,
último parágrafo de seu texto, Verinha, a nos ao posicionar os jovens vida loka como peri-
falar de “zonas de indeterminação”. Afinal, gosos, levanta a bola na rede; ao Estado, com
112 os círculos de cultura associados às tradições braço forte, cabe cortar. Se o levantador não
da Educação Popular não são espaços cate- alçar a bola na rede, não há possibilidade da
quéticos, mas lugares de troca horizontal, de cortada. Para que se possa exercer o poder de
invenção, de emergência. Lugares de rein- eliminação social (seja pela morte, seja pela
venção da política (esta palavra tão desgas- reclusão), é preciso antes constituir uma es-
tada), de estabelecimento de novas pautas, pécie de mandato social. Em uma palavra:
novas bandeiras. Não apenas novas formas autorização.
de luta, mas de novas lutas. Penso na mar- O território da política, da arte, das
cha das vagabundas, na marcha da maconha, trocas, pode se constituir como território de
na marcha da liberdade. Penso no repeador vida, de solidariedade. Seu texto, Verinha,
paraibano Sacal, que em meio à onda avas- traz uma linda reflexão sobre os territórios,
saladora que preconiza internação compul- que me fez lembrar Guattari, quando ele
sória como forma de lidar com o sofrimento nos falava sobre desterritorialização. Há que
relacionado ao uso de drogas, grita a plenos se ultrapassar certezas, que se abrir ao novo,
pulmões: “Eles vão querer me internar / ao inédito viável (e mais uma vez voltamos
Mas eu não vou!”. Penso em coletivos como à ideia do Fuganti). Produzir territórios da
o Princípio Ativo (Porto Alegre), o Desen- dúvida, da suspensão das certezas, de aber-
torpecendo a Razão (São Paulo) e a Rede tura e invenção, talvez seja o grande desafio,
Antiproibicionista Potiguar (Natal), que não apenas no trabalho direto com os jovens
trazem para o debate a utilização das leis vida loka, mas também com as pessoas que
de drogas como dispositivo de legitimação atuam nas redes de cuidado e proteção (tan-
da violência policial que acomete de modo to gestores quanto trabalhadores da ponta!).
privilegiado homens negros e jovens, mora- Creio ser fundamental que abandonemos os
dores das periferias das grandes cidades bra- territórios nos quais nos sentimos seguros, e
sileiras. Porque é sempre preciso lembrar: a que ousemos experimentar, desapegando-
violência estrutural não se manifesta apenas -nos de pré-conceitos, de receitas de bolo,

Caderno de Educação Popular em Saúde


de caminhos já gastos de tanto trilhar. E, ao “vida” pudesse ser associada apenas a lugares
mesmo tempo, que possamos lançar novos limpinhos, arrumadinhos, frequentados por
olhares para os territórios aparentemente “pessoas de bem” (seja lá o que isto quer di-
conhecidos, mas que muitas vezes apresen- zer). Outra reflexão: o que faz com que os
tam faces inesperadas, vertiginosas. Adorei territórios constituídos por determinadas
ler em seu texto que os mesmos espaços que práticas sociais (como o uso e o comércio de
eram em determinados momentos posicio- drogas tornadas ilícitas, por exemplo), tor-
nados como “territórios de morte”, podiam nem-se mais vulneráveis à violência? Não,
ser reposicionados – em outros momentos não há nada de natural nisto. Será que se
e pelas mesmas pessoas – como “territórios trata de um efeito das drogas ou do modo
de vida”. Sobre isto, uma primeira reflexão como constituímos o tema das drogas em
que me assalta diz respeito à noção de ter- nossa sociedade? Tomemos o exemplo do 113
ritório com que se busca operar nas expe- crack: há lugares do mundo em que o uso
riências brasileiras com desta droga, ainda que te-
Redução de Danos: para nha efeitos severos sobre a
os redutores de danos, o Para os redutores de danos, saúde, não está associado
território não se constitui o território não se constitui à violência e assassinatos.
apenas em sua materiali- apenas em sua materialidade Ou seja: que dinâmicas
dade espacial, mas também espacial, mas também em sua políticas, culturais, estru-
em sua temporalidade, e turais, participam da pro-
mais: nas relações simbóli-
temporalidade, e mais: nas dução destes “territórios de
cas que ali se estabelecem. relações simbólicas que ali se morte”? Neste ponto, lem-
Neste sentido, uma mesma estabelecem. bro de Pedro Abramovay,
região pode constituir-se indicado para coordenar a
como “território de vida” Secretaria Especial de Po-
em determinados momentos, e em “territó- líticas Sobre Drogas (SENAD) no governo
rio de morte” em outros. de Dilma Roussef. Após declarar à impren-
Mas, o que significa “morte” e “vida” sa que julgava inadequado o tratamento de
neste caso? Na famigerada ideia de “revitali- jovens vendedores drogas como traficantes,
zação”, tão empregada para designar políti- Pedro foi demitido de seu cargo, logo nos
cas de remoção de populações sobre as quais primeiros dias de governo. Ou seja: ao que
recaem efeitos de estigma e preconceito de parece, o Estado brasileiro já fez sua opção
determinadas regiões urbanas, é como de- pelo enfrentamento bélico do problema das
terminadas regiões, por serem freqüentadas drogas e em definir os jovens vida loka como
por prostitutas, usuários de crack, travestis, os maiores inimigos da nação.
moradores de rua, fossem “regiões mortas”, Pensei em terminar esta prosa com mais
desprovidas de vida. É como se a palavra algumas palavras sobre a fertilidade dos di-

Diálogo com a experiência


álogos entre Redução de Danos e Educação avaliar que pessoas deveriam ser internadas
Popular, seja nas práticas cotidianas, seja na contra a vontade. As críticas a este tipo de
superação de uma “ingenuidade epistemo- política têm sido bastante volumosas, espe-
lógica” com relação ao complexo tema das cialmente da parte de setores comprometi-
drogas, tão presente em abordagens teóri- dos com a construção da Reforma Psiquiá-
co-metodológicas que privilegiam o poder trica brasileira.
das substâncias em detrimento da aposta Talvez aquilo de que mais precisemos
nos sujeitos. Penso em palavras que são ex- neste momento seja justamente esta articu-
tremamente caras, tanto para redutores de lação política, afetiva, ética e estética entre
danos, quanto para educadores populares: as pessoas que fazem e pensam a Educação
transgressão, diálogo, horizontalidade, aco- Popular e a Redução de Danos no Brasil.
114 lhimento, escuta... Penso também em uma Como construir, ao mesmo tempo, pro-
frase de Thyago, referindo-se ao entra e sai cessos de resistência no nível micro, lá no
dos jovens durante as atividades, e sobre a miúdo do cotidiano da vida vivida, e na ar-
dificuldade de “segurá-los” por muito tem- ticulação política para reverter políticas que
po dentro da sala de aula. Diz o cirandeiro: apontam, cada vez mais, para a construção
“sabíamos que nestas saídas havia consumo de estigma e preconceito. Políticas que –
de drogas, mas não estávamos ali para tra- desculpe-me se peso na comparação, Veri-
balhar de forma repressiva”. nha – flertam com o fascismo.
Assim como redutores de danos, é co-
mum que educadores sociais tenham con-
tato direto com usuários de drogas, em seus
territórios (os textos governamentais sobre a
equipe básica dos Consultórios de Rua fala
na presença de “educadores sociais”). Não
obstante, o campo político-reflexivo que se
organiza em torno do tema das drogas, no
Brasil, tem sido chamado a se posicionar
com relação a um plano de enfrentamento
ao crack que aponta na direção do endure-
cimento das diretrizes federais para o cui-
dado de pessoas que usam drogas. Na co-
letiva de imprensa posterior ao lançamento
do referido plano, o ministro da saúde che-
gou a dizer que o papel dos Consultórios de
Rua (nos quais trabalham muitos redutores
de danos e educadores sociais), seria o de

Caderno de Educação Popular em Saúde


Pequena enciclopédia dos fazeres
Fontes nas quais todos e todas nós bebemos e
continuaremos bebendo a cada momento novo do nosso
aprendizado, das nossas descobertas. Fragmentos poéticos,
melodias, escritos traçados com leveza e criatividade.
Outras palavras, outras maneiras de dizer o que a teoria
científica procura fundamentar, talvez um tanto distraídas
e mais encantadoras. Apenas, outras palavras...
Construção coletiva em educação popular:
oficinas de culinária terapêutica

A alimentação saudável tornou-se objeto de discussão e estraté-


gia nas principais políticas de saúde. A educação nutricional, realiza-
da através da educação popular, possibilitou a criação de ações como
as Oficinas de Culinária Terapêutica, às quais priorizaram a reflexão “Ensinar exige a convicção
e o diálogo sobre as práticas de saúde, estimularam uma interação de que a mudança é possível”.
dinâmica com os idosos e possibilitaram formas mais participativas (Paulo Freire)
de buscar melhores condições de saúde e qualidade de vida.
Nos relatos apresentamos o processo de escuta, problematiza-
ção e reflexão com a participação de idosos e de pessoas com do-
ença crônica não transmissível (DCNT) interessadas nas atividades
educativas, a partir de duas experiências profissionais. A primeira, na Maria Isabel Barros Bellini
Unidade Básica de Saúde (UBS) Rubem Berta, de 2001 a 2005 e, em Assistente Social. Doutora pelo
PPGSS/PUCRS. Docente da PU-
seguida, a experiência com as oficinas na UBS IAPI de 2006 a 2011. CRS e ESP/SES. Coordenadora do
A escuta respeitosa dos usuários nos grupos provocou reflexão so- Comitê de Ética e Pesquisa em Saú-
de/ESP/SES.
bre o conhecimento prévio dessas pessoas diante dos processos saúde/
doenças e de sua relação com as informações alimentares. Para conhe-
cer melhor o cotidiano dessas pessoas, utilizamos atividades de dra-
matização, colagem, pintura que possibilitaram avaliar e compreender
como as informações recebidas no serviço de saúde e nos debates que
se davam nos grupos impactavam em seu cuidado com a alimentação.
Quando se referem à alimentação, as informações vinham impregna-
das de significados emocionais, sociais e culturais que precisaram ser
conhecidos e respeitados. Nos debates em grupo essas informações
foram aproximando o saber científico do saber prático, considerando
que o início de todo trabalho educativo é conhecer onde o outro está.
O processo de reflexão acontecia nos grupos e também na equi-
pe interdisciplinar, num movimento dinâmico de escuta, planeja-
mento, reflexão e avaliação dos momentos de síntese das atividades.
Cabe ressaltar as principais dificulda- em CTG – Centro de Tradições Gaúchas,
des referidas que se repetem nos grupos, em escola, em igreja e em espaço dentro do
como: a falta de apoio no ambiente familiar serviço de saúde. O grupo que antes relata-
para implementar as mudanças; a falta de va suas dificuldades no entendimento sobre
companhia de pessoas que viviam sós e com alimentação saudável passou à condição de
dificuldade de organizar uma rotina ali- formador junto a outros grupos, multiplica-
mentar; as desigualdades de renda quanto dor e protagonista. Freire (1997) referiu que
ao acesso a uma alimentação diversificada; a autonomia vai se constituindo da experi-
as influências da mídia sobre as escolhas ência de várias e inúmeras decisões.
alimentares; as promessas de alimentos ou Neste espaço coletivo, oportunizamos
dietas “mágicas” e a dificuldade de sustentar novas experiências culinárias através da ex-
120 a recusa do prazer no consumo dos alimen- perimentação de receitas, consideradas sau-
tos de baixa qualidade nutricional, que esta- dáveis, valorizando os aspectos salutares da
vam incorporados nos hábitos alimentares. alimentação dos participantes, comparti-
Na tentativa de conhecer o que coti- lhando-as em grupo. Foi chamada de Ofi-
dianamente eles reconheciam como pre- cina de Culinária Terapêutica pelos usuários,
parações saudáveis, solicitamos que cada que associavam o potencial dos alimentos e
participante trouxesse uma receita que con- das preparações para a produção de benefí-
siderasse saudável. Estas receitas movimen- cios à saúde. Também acreditamos que tenha
taram o trabalho que se desenvolve sistema- relação com a convivência social possibilitada
ticamente há 10 anos. nesse espaço de continência e cuidado com a
Ao apresentarem suas receitas justifica- saúde, pois, respeitando a cultura alimentar
vam suas escolhas, expunham suas dúvidas, local, expandimos hábitos alimentares atra-
e mostravam seus conhecimentos. Da ex- vés da incorporação de novas experiências.
ploração das receitas à curiosidade de expe-
(...) vi melhoras em mim própria, no meu
rimentá-las foi um pequeno passo. O pro-
corpo, inclusive no meu físico e também na
cesso de motivação que se desencadeou no
minha família porque participando daqui
grupo e nos profissionais só se descreve pela
a gente leva pra casa, a gente faz em casa
riqueza das novas descobertas. Paulo Frei-
para os familiares, achei muito importante.
re nos relata que: “o processo de aprender
(Dona B).
pode desencadear uma curiosidade crescen-
te, que pode torná-lo mais e mais criador.”
(FREIRE, 1997, p. 27). Ativamente os ido-
sos passaram a buscar locais na comunidade
onde pudessem colocar em prática as recei-
tas. Cozinhamos, desde então, em espaços
cedidos pela própria comunidade, em bar,

Caderno de Educação Popular em Saúde


Bibliografia
BRASIL, Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Coordenação Ge-
ral da Política de Alimentação e Nutrição. Guia alimentar para a população
brasileira: promovendo a alimentação saudável. Brasília, Ministério da Saúde,
2006.
BRASIL, Ministério da Saúde. Portaria n. 687/GM, de 30 de março de 2006,
que aprova a Política Nacional de Promoção da Saúde. Secretaria de Vigilância.
Secretaria de Atenção à Saúde. Brasília, Ministério da Saúde, 2006.
BRASIL, Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa.
Caderno de Educação Popular e Saúde. Departamento de Apoio à Gestão Par-
ticipativa. Brasília, Ministério da Saúde, 2007. 121
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 14º
Ed. São Paulo, Paz e Terra, 1997 (Coleção Leitura).
FREIRE, P. Pacientes impacientes- Apresentação Ceccim, R. In: Caderno de
Educação Popular e Saúde. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estra-
tégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa- Brasília,
p. 32-45, 2007.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAUDE. Envelhecimento Ativo: Uma Po-
lítica de Saúde 2002. Organização Panamericana de Saúde, Brasília, 2005.
PEDROSA, J.I.S. Caderno de Educação Popular, Ministérios da Saúde: Identi-
ficando espaços e referências. In: BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, Ca-
derno de Educação Popular e Saúde. Ministério da Saúde, Secretaria Gestão
Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio a Gestão Participativa –
Brasília, p.13-17, 2007.
PEKELMAN, Renata. Caminhos para uma ação educativa emancipadora, a prá-
tica educativa no cotidiano dos serviços de saúde. In: I Encontro de Educação
Popular em Saúde, Escola Estadual de Saúde Pública da Bahia. Salvador, julho
de 2003.

Pequena enciclopédia dos fazeres


A Educação Popular em Saúde como referencial
para as nossas práticas na saúde

“Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras.


Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras gran-
des e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Exis-
te gente de fogo sereno, que nem percebe o vento e gente de
“Escuta, escuta
fogo louco que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos
O outro, a outra já vem
bobos, não alumiam nem queimam: mas outros incendeiam
Escuta, acolhe
a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para
Cuidar do outro faz bem”.
eles sem pestanejar e quem chegar perto pega fogo”. (Ray Lima )
Eduardo Galeano no “El Libro de los Abrazos”, Siglo Vein-
tiuno editores, 1991.

Vanderléia Daron
Galeano nos desafia a compreensão integral do ser humano e o
Educadora popular e militante fe-
respeito e valorização da singularidade de cada ser. Lidar com seres minista junto do Movimento de
humanos segundo a perspectiva popular nos remete a pensar que Mulheres Camponesas e em grupos
de mulheres trabalhadoras urbanas
toda ação tem uma dimensão educativa e pedagógica. Neste sentido, e catadoras de material reciclável. É
é importante a reflexão sobre os fundamentos que norteiam estas re- filósofa e mestre em Educação pela
UPF e doutoranda em Educação
lações que se estabelecem no universo das nossas práticas cotidianas. UFRGS. Coordena o Ensino no
Para construir práticas de trabalho considerando a perspectiva Centro de Educação Tecnológica e
Pesquisa em Saúde do Grupo Hos-
popular, torna-se necessária a reflexão trazida por Paulo Freire de pitalar Conceição.
que “só há sujeitos em relação” e, neste sentido, que os atores e atri-
zes com quem trabalhamos necessitam se constituir protagonistas
de ações de transformação às situações-limite da sua realidade, com
vistas à emancipação, buscando a superação da consciência ingênua
rumo ao inédito viável.
A educação popular, portanto, traz um referencial caracterizado
pelo diálogo entre os sujeitos, pela educação vista como humaniza-
ção, pela compreensão integral de ser humano como sujeito consti-
tuído por várias dimensões, bem como a busca de matrizes pedagó-
gicas apropriadas à formação destes sujeitos.
Nessa perspectiva busca promover a
participação dos sujeitos sociais, incenti- Alguns princípios pedagógicos
vando a reflexão, o diálogo e a expressão da
afetividade, potencializando sua criatividade
e sua autonomia. Incorpora a perspectiva »» A construção da dignidade humana, do ser
do protagonismo dos diversos sujeitos, a humano integral, histórico, livre, portador de
direitos, de deveres e do potencial protagonista
valorização das culturas locais nas suas or-
transformador da realidade e das relações que
ganizações, suas expressões artísticas e as
nela ocorrem;
possibilidades de envolvimento de outros
setores para o enfrentamento dos problemas »» A educação como processo de produção e
cotidianos. construção de conhecimento individual e co-
124 Assim, o agir educativo se constitui letivo, mediatizada pelo mundo;
como ação que se alimenta no processo de »» O desenvolvimento de atividades construtivas
construção de um fundamento teórico me- onde o sujeito possa desenvolver sua criativi-
todológico de sustentação, de projetos que dade através de pesquisas, diálogos, indaga-
promovam a participação ativa da sociedade ções, investigações e estudos;
e de ações capazes de produzir novos senti-
dos nas relações entre necessidades da po-
pulação e organização da vida e da sociedade
para uma vida com qualidade e dignidade.
Outro aspecto importante é do aco-
lhimento que os movimentos sociais e po-
pulares realizam em sua ação cotidiana nos
territórios onde atuam aos que necessitam
de ajuda, com suas especificidades e singu-
laridades.
Reconhecer a legitimidade destas ações
pressupõe o incentivo permanente à parti-
cipação popular na formulação e gestão das
políticas públicas, na perspectiva de que a
ação social pela satisfação das necessidades
sociais implica num caminho que se traduz
concretamente nas formas de gestão par-
ticipativa e na atuação do controle social,
foto: Aicó Culturas

constitui-se como outro relevante elemento


de busca do trabalho de educação popular
em seus diálogos com as políticas públicas.

Caderno de Educação Popular em Saúde


da Educação Popular em Saúde:
»» O diálogo como base da relação entre sujeitos, »» A importância da sistematização das experiências
onde cada um cresce no respeito, na valorização e como forma de construção e reconstrução de co-
na construção de valores solidários e éticos; nhecimento onde os sujeitos partem das próprias
»» A construção da autonomia dos sujeitos envolvi- experiências, e estas são registradas, problemati-
dos no processo de formação que se desenvolve zadas, refletidas e, a partir delas, construídos no-
como ser atuante, ético, criativo, amável e prota- vos saberes e aprendizados;
gonista de si e da sua ação na sociedade;
»» A construção de reflexões críticas sobre a prática Pressupõe a busca, por parte dos atores que fazem
educativa, implicando no movimento dinâmico, as políticas públicas e dos educadores, da realização
dialético, entre a prática e a construção teórica; da formação humana que contemple a formação de
»» O combate a qualquer forma de discriminação e sujeitos:
o fortalecimento da equidade, da integralidade da
»» com forte consciência de que são sujeitos de di-
atenção e do cuidado à vida;
reitos;
»» Visão social de mundo
»» com capacidade de leitura critica da realidade, o
a partir da solidariedade e da
que implica discernimento e tomada de posição;
justiça, comprometidos com a
»» capazes de se organizar para a busca ou institui-
construção de um projeto de
ção de direitos;
sociedade democrático e parti-
cipativo. »» que respeitem o bem público, que tenham sen-
tido de responsabilidade no exercício do poder e
»» Valorização das formas e
respeitem os regramentos, quando formulados e
expressões culturais, artísticas,
decididos em processos participativos;
de cuidados com a vida e de vi-
vências libertadoras de espiritu- »» que desenvolvam a indignação frente ao desres-
alidade; peito aos direitos humanos;
»» A compreensão da pes- »» que estejam com um pé firme na realidade, mas
quisa como um processo social com os olhos na direção do futuro, do projeto
capaz de gerar mudanças coleti- para suas vidas e de país, que vão se dispondo a
vas, optando por metodologias construir.
participativas que busquem es- »» Que reconheçam, respeitem e valorizem a diver-
truturar uma ação por parte das sidade humana.
pessoas ou grupos implicados
no problema sob observação;

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Alguns fundamentos dos processos educativos
tar, emancipar-se. “Na fronteira, éticos, cuja expressão se dá pela
Diálogo: a vida carrega os sentidos huma- vivência cotidiana de valores,
É preciso recuperar a educação nos da dignidade, da emancipa- atitudes, ações e posturas condi-
como diálogo, síntese do proces- ção e da justiça”. zentes com a ética.
so educativo e dimensão funda- Para Freire (2000) educar é tor- Para isto é preciso partir de
mental de reconhecimento de nar os sujeitos mais humanos e uma pedagogia que reconheça
sujeitos, que são agentes de uma humanizar seria situar os pro- os valores do povo, que o reco-
história, trajetória, cultura e va- cessos e práticas educativas no nheça como sujeito de sua pró-
126 lores. âmago, nos anseios e nas lutas pria cultura, enquanto conjunto
dos setores populares, incorpo- de sujeitos culturais, estéticos.
Humanização: rando os princípios da dignida- Uma das heranças populares é a
de, da emancipação e da justiça. estética onde estes setores ritu-
É preciso reconhecer a dimen-
Se a busca pela humanização alizam tudo o que fazem e, por
são pedagógica das relações hu-
pertence ao processo, a desuma- meio dessa ritualização, buscam
manas como parte constitutiva
nização faz parte dele. Educação a beleza.
do trabalho em saúde. Educar
é o processo de resgate da hu-
é antes de tudo um processo de
humanização. Humanizar é situ-
manidade roubada por fatores Matrizes Pedagógicas
como a fome e o desemprego, as
ar os processos e práticas educa- Para criar eixos geradores da
condições desumanas e injustas
tivas no cerne, nos anseios, e nas construção do sujeito é preciso
que os setores populares enfren-
lutas dos setores populares. A trabalhar a partir de matrizes
tam.
educação problematiza a própria pedagógicas, como o corpo. A
vida humana e busca a constru- educação e a saúde se encon-
ção de sentidos para qualificá-la
Sujeito total, tram em algum lugar, este lugar
e fortalece-la em todas as suas
ser humano integral: é o corpo. Outras matrizes são
dimensões. Educar é trabalhar com a totali- bastante familiares, como a pa-
Os setores populares procuram dade das dimensões do sujeito e lavra, que é capaz de mudar va-
as políticas públicas e, em es- não apenas com aspectos especí- lores, consciência e hábitos. Ou
pecial, a saúde por uma ques- ficos como comportamento, ha- como o trabalho, cujas condições
tão básica de sobrevivência. A bilitação para o trabalho, qualifi- materiais devem ser humaniza-
minoria da sociedade supera a cação para o mercado, ou ainda doras. Há também as condições
fronteira da vivência, pode pro- conscientização política. O ser de convívio, de interação, onde,
longar a vida e usa o setor saúde humano precisa ter autonomia e a partir do relacionamento e da
para isso. Já nos setores popula- maturidade para tomar decisões, troca de experiências, as pessoas
res, até para viver se tem que lu- enquanto sujeitos conscientes e se educam.

Caderno de Educação Popular em Saúde


1. Como compreendemos a Educação Popular em Saúde

Compreendemos a educação popular priação e multiplicação do conhecimento.


como parte do modo de vida dos grupos so- Segundo Linhares (2004) a educação
ciais que criam e recriam uma cultura, dife- popular tem a ver com a cultura e a vin-
re de treinamento ou da simples transmis- culação às fontes da vida e da morte das
são de informações. Significa a construção comunidades: criação de laços solidários e
de um senso crítico que colabore para que comprometidos com a libertação; elo que
os sujeitos entendam, comprometam-se, articula saberes diferenciados; sensibiliza os
tenham capacidade em elaborar propostas, diferentes atores envolvidos e exprime as
reivindiquem e transformem (-se). representações que o ser humano constrói a
  Não é um discurso acadêmico sobre partir da sua leitura do mundo na perspec- 12 7
um método, nem um produto acabado ou tiva de conhecer e intervir sobre a realidade.
uma receita simples e mágica. É diferente Para Vasconcelos, a educação popular
de técnicas de grupo que são utilizadas para oferece um instrumental para o desenvolvi-
estimular a participação e a cooperação. mento de novas relações, “através da ênfase
 Não é um método fácil que populari- ao diálogo, a valorização do saber popular e
za a complexidade, embora faça o esforço a busca de inserção na dinâmica local” tendo
criativo de traduzir conceitos abstratos em a identidade cultural como base do processo
linguagem cotidiana, metáforas e símbolos. educativo, e compreendendo que o respeito
É um processo coletivo de produção e so- ao saber popular implica necessariamente o
cialização do conhecimento que capacita os respeito ao contexto cultural.
sujeitos a ler criticamente a realidade sócio- As experiências de arte, humanização e
-econômico-político-cultural com a finali- a educação popular nos fazem pensar nos
dade de transformá-la. modos de acalentar, sentir a dor, o parto, o
  A educação popular fala de um ca- gozo, a traição, o choro, o crescimento dos
minho político-pedagógico que requer o filhos, a seca, a invernada, a partida para
envolvimento e a co-responsabilização de o longe de outras terras, o acarinhado de
todos participantes, na construção, apro- quem se aguneia por um agrado, o modo
de despejar na natureza seus sentimentos de
Estes foram aspectos fundamentais para a educação popular homem ou de mulher, a fome, esse singular
em saúde destacados pelo educador Miguel Gonzalez Arroyo
que é o modo próprio de ser do povo (LI-
durante conferência no II Seminário sobre Educação Social e
Saúde no Contexto da Promoção da Saúde, realizado em agosto NHARES 2003).
de 2001 na Universidade de Brasília. A conferência de Arroyo, Neste sentido, as linguagens da arte
denominada ‘A prática educativa como processo de construção nos permitem tocar dimensões mais tota-
dos sujeitos’, foi  sintetizada em edição da revista ‘Tema’, publi-
lizadoras do sujeito e, em geral esquecidas;
cada pelo Programa Radis (Reunião, Análise e Difusão de In-
formação sobre Saúde) da Escola Nacional de Saúde da Fiocruz nos processos de conhecer - como a do cor-
em dezembro de 2001.

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po, da estética, da ética, da religiosidade, da Freire (1995) quando afirma que, en-
afetividade - em um construto que vincula quanto as pessoas não se dão conta de que
desejo e cognição, intuição e sensibilidade. estão, coletivamente, produzindo temas ge-
A arte de reconstituir movimentos de su- radores, que envolvem situações-limite, os
peração das marcas produzidas pela vio- atos não podem acontecer de modo crítico e
lência, por exemplo. De tornar mais belos e com intencionalidade social e política clara.
acolhedores os espaços de trabalho, mesmo Os temas geradores são entendidos
quando a infraestrutura é precária e os re- como o universo temático explicativo e de
cursos didáticos e audiovisuais são poucos. enfrentamento das questões relacionadas a
Da escuta sensível, do toque carinhoso, do vida nas comunidades. Estes temas gerado-
olhar que acolhe, da palavra que apoia, mas res remetem às situações concretas vividas
128 que também explicita e aclara os conflitos. permeadas pela contradição entre reprodu-
Partindo da busca da memória das lu- ção e transformação (situações-limites), em
tas populares, percursos de experiências de relação às quais buscam-se alternativas con-
educação popular tem sido possibilidade cretas (atos-limites) – e isto ocorre o tempo
coletiva de intervenção e produção da vida todo no cotidiano da atividade humana.
coletiva; conexão entre cotidiano e histó-   A educação popular tem o compro-
ria, vinculando a experiência local sentida misso com os oprimidos e seu ponto de
no singular dos grupos com a inserção na partida é a convicção de que o povo já tem
história, vivida no exercício sócio - político um saber, parcial e fragmentado e que car-
em rede. A reflexão, partilha e leitura cole- rega em si o dom de ser capaz. Mas precisa
tiva das possibilidades sendo feita também refletir sobre o que sabe (não sabe que sabe)
mediante o exercício das linguagens diver- e incorporar o acúmulo teórico da prática
sas, espaços comunicativos dos movimen- social. Torna-se um instrumento que des-
tos, através dos quais é possível estimular o perta, qualifica e reforça o potencial de or-
protagonismo popular a partir do reconhe- ganização popular em uma perspectiva so-
cimento da história de vida das pessoas em lidária. Um compromisso de amorosidade
seus anseios, necessidades e potencialidades. para com o ser humano.
Linguagens que emergem na capilari- Sua tarefa específica é relacionar o fazer
dade das experiências locais que, em uma (saber empírico) das pessoas com uma re-
vivência de protagonismo ousada, impri- flexão teórica (saber científico) e integrar a
mem sua feição particular, buscando, aos dimensão imediata (micro) com a dimensão
pouco, incluir-se nos espaços das políticas e estratégica (macro). É um processo educa-
instituições formadoras e ensaiar uma ação tivo permanente que tenta concretizar suas
que interfira nessas políticas, mas que, ao convicções, princípios e valores, responden-
mesmo tempo, possa alimentar-se continu- do adequadamente em cada conjuntura.
amente de suas práticas concretas.

Caderno de Educação Popular em Saúde


2. Metodologias participativas
Muitas vezes, as pessoas falam em me- enfoque radical tem como premissa a con-
todologia pensando nas dicas de como fazer cepção das condições materiais e a estrutura
as coisas, nos procedimentos e técnicas de social como causas básicas dos problemas
grupo ou ainda na sequência de como deve de saúde, direcionando o processo educati-
seguir uma atividade. vo para a transformação das condições ge-
Eduardo Stotz (1993) pontua sobre a radoras de doenças. Este enfoque trabalha
existência de diferentes enfoques utiliza- com a perspectiva de que educadores e ci-
dos nas práticas educativas em saúde, tendo dadãos possam ser sujeitos do processo e in-
como referência a proposta de Tones (1987): tervir politicamente na luta pela saúde, bem
enfoque educativo, preventivo, radical e de como articula o processo educativo à busca 129
desenvolvimento pessoal. Segundo o au- de autonomia e poder, voltando-se para a
tor, todos eles têm em comum a crítica ao possibilidade de potencializar a “construção
chamado modelo médico. O enfoque pre- de processos de participação popular como
ventivo, ainda hoje o mais utilizado na prá- uma prática social de organização da vida
tica educativa que se realiza nos serviços de cotidiana” (Sophia, 2001: 6).
saúde, está centrado na mudança de com- A metodologia participativa é aquela
portamento individual, no sentido de afas- que permite a atuação efetiva dos partici-
tar fatores de risco, tem a persuasão como pantes no processo educativo, valorizan-
princípio orientador e o educador como su- do os conhecimentos e experiências dos
jeito da ação. O enfoque educativo também participantes, envolvendo-os na discussão,
está centrado na figura do educador como identificação e busca de soluções para pro-
sujeito da ação educativa e tem como ob- blemas que emergem de suas vidas. É uma
jetivo a compreensão da situação por parte forma de trabalho pedagógico baseado no
do usuário, partindo do princípio que, a par- prazer, na vivência e na participação ativa
tir da eleição informada dos riscos à saúde, em situações reais ou imaginárias provoca
é possível promover o acesso igualitário às a reflexão faz os participantes construírem
informações. O enfoque do desenvolvimen- sentidos às situações concretas da vida.
to pessoal teria como objetivo o desenvol- Existem diversas formas de garantir
vimento da personalidade dos indivíduos processos participativos como o sociodra-
levando-os a desenvolver destrezas, que au- ma, psicodrama, teatro do oprimido, teatro-
mentariam sua capacidade de controle sobre -fórum, círculos de cultura, a oficina e ou-
a vida. Ainda neste enfoque, o educador é tras técnicas de grupo, Que são oriundas de
o sujeito do processo. Enquanto os enfo- saberes multidisciplinares.
ques anteriores apresentam como ponto de Existem muitas formas de realizar pra-
partida a intervenção no plano individual o ticas pedagógicas que visam à domestica-

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ção das pessoas para que elas se prestem a lar, gestão democrática e participativa, afirma-
obedecer e a reproduzir um padrão de com- ção da cidadania ativa, ampliação dos direitos
portamento que serve a uma ordem e aos e processos de controle social e de democrati-
interesses de uma classe dominante. Outras zação do Estado apontando para a emancipa-
ainda se utilizam do discurso da metodolo- ção e a construção de um projeto popular de
gia popular, mas constroem uma prática au- transformação social.
toritária na qual as pessoas são dominadas Referendamos aqui um olhar sobre
pela manipulação, pela sensação de que são metodologia, como percurso, que não se re-
parte onde os educadores tomando a inicia- duz ao modo de fazer, mas compreendendo
tiva pelos educandos, perpetuam neles a de- que este modo está sempre ligado a uma
pendência e o sentimento de inferioridade. visão de mundo e a um objetivo histórico
130 Reportamo-nos aqui a um olhar sobre concreto sendo, portanto, também marcada
o caminho metodológico que se ancora nos por um projeto de pessoa e de sociedade. A
princípios da educação popular a que nos pedagogia também é marcada por um pro-
temos referido neste texto. Um caminho jeto de pessoa e de sociedade, pode-se di-
onde o trabalho que realizamos se faz com zer, de forma esquemática, que existem três
os atores e atrizes com os quais trabalha- concepções básicas de metodologia:
mos. Onde o modo de fazer já é, de certa
forma, o que se quer fazer e o para que se Autoritária - Visa a domesticação das
faz. Esse jeito de fazer visa despertar o senso pessoas para que elas se prestem a obe-
crítico e promover o diálogo entre as partes decer e a reproduzir um padrão de com-
para juntá-las num processo de construção portamento que serve a uma ordem e
coletiva, numa perspectiva solidária. aos interesses de uma classe dominante.
Dessa forma é possível ao mesmo tem-
po, fortalecer aspectos da identidade e au- Populista - Utiliza o discurso popular,
toestima dos sujeitos, mobilizá-los para a mas sua prática visa manter as pesso-
ação transformadora desenvolvendo o com- as dominadas pela manipulação, com a
promisso com processos legítimos de luta sensação de que são parte. Perpetua as
pela vida para a emancipação das pessoas e relações de dependência e sentimento
sua afirmação como sujeitos sociais. de inferioridade.
Nessa perspectiva o processo por si ca-
Dialética-dialogal-libertadora: Afirma
pacita e qualifica política e tecnicamente, os
que o modo de fazer já é, de certa forma,
sujeitos através da experimentação e apropria-
o que se quer fazer e o para que se faz.
ção do conteúdo e do modo de fazer; fortale-
Visa despertar o senso crítico e promo-
ce ações coletivas no enfrentamento dos seus
ver o diálogo entre as partes para juntá-
problemas e na construção de soluções que
-las num processo de construção coleti-
expressem o poder da população e incentiva a
construção de espaços de participação popu- va, com perspectiva solidária.

Caderno de Educação Popular em Saúde


Partindo da convicção de que quem faz
sabe, mas que quem pensa sobre o que faz,
faz melhor e que quem faz, faz também o
sentido do que faz, a metodologia popular
significa, ao mesmo tempo um caminho: Alguns sinais
»» em que os sujeitos tomem uma postura »» Anima e apaixona seus participantes porque
respeitosa e sugerem formas de partici- resgata neles o elemento da identidade e da
pação e de colaboração. dignidade (autoestima).

»» cujo ponto de partida é a convicção de »» Mobiliza porque rompe com a situação de dor-
que todos são capazes, que os oprimidas mência e a sensação de impotência, geradas
pela dominação e expressas no individualismo
têm interesse em superar a atrofia física,
consumismo e fatalismo.
mental e cultural a que foram submetidas
e que a emancipação começa por quem se »» Compromete as pessoas, numa dimensão in-
dispõe a um processo de transformação tegral da vida, em processos legítimos de luta
individual e social. pela vida para a emancipação das pessoas e na
sua afirmação como sujeitos sociais.
»» de valorização dos sujeitos, sua neces-
sidade de unir esforços, de organizar-se »» Capacita e qualifica política e tecnicamente, os
sujeitos através da experimentação e apropria-
para a conquista de direitos e para a ta-
ção do conteúdo e do método.
refa de assumir-se como sujeito do seu
destino coletivo. »» Produz a multiplicação criativa, com base numa
parte que tem como meta a envolver o conjun-
O processo educativo se realiza no tra- to da sociedade e a realidade mais geral.
balho que se faz a partir das necessidades
»» Produz fermentação social e mobilização po-
sentidas e num compromisso permanente
lítica ao fortalecer ações coletivas no enfrenta-
dos envolvidos. Acreditar que as respostas
mento dos seus problemas e na construção de
espontâneas do povo sejam transforma-
soluções que expressem o poder da população.
doras pode apenas significar uma posição
»» Incentiva a construção de espaços de participa-
tão autoritária quanto à própria imposição.
ção popular, gestão democrática e participativa,
Aliado ao reconhecimento e o respeito às
afirmação da cidadania ativa, ampliação dos
iniciativas populares, será necessário pro-
direitos e processos de controle social e de de-
blematizar e potencializar essas ações e es-
mocratização do Estado.
timular a construção de alternativas mais
»» Incentiva e contribui para a construção de pro-
próximas da integralidade. Quando inspira-
cessos legítimos de luta pela emancipação e
dos em processos da educação popular, apli-
pela vida.
cada a um processo político-pedagógico,
podemos perceber alguns sinais:

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Com base na intencionalidade de for- »»Articulação das forças sociais com a estru-
talecer a participação popular, o controle turação de redes de educadores populares,
social e a gestão participativa na saúde, é educares em saúde, entidades e movimentos
fundamental observar os seguintes procedi- sensíveis à necessidade de uma ampla mobi-
mentos metodológicos nos processos edu- lização social em defesa do direito à saúde,
cativos: retomando os fundamentos da Reforma Sa-
nitária.
»»Aproximação e conhecimento da realidade »»Planejamento das diferentes ações que po-
social em que se vai desenvolver o trabalho, tencializem a dimensão educativa da ação,
na perspectiva da educação popular, com fazendo da articulação e da formação um fa-
a metodologia da observação participante, tor efetivo da mobilização social.
132 numa atitude de abertura e de escuta para a
construção de diagnósticos das realidades lo-
cais, fomentando a solidariedade e o espírito 2.1 Orientações pedagógicas
de compromisso dos grupos em contato. Existem diversas formas de garantir
»»Mobilização social que junte os esforços de processos participativos como o sociodra-
articulação e formação (encontros, seminá- ma, psicodrama, teatro do oprimido, teatro-
rios, oficinas, reuniões formativas, grupos de -fórum, círculos de cultura, oficinas e outras
estudos, círculos interativos, intercâmbios de técnicas de grupo, que são oriundas de sa-
experiências, mutirões de formação popular e beres multidisciplinares.
caravanas) em torno de programas concretos, Independente da linguagem escolhida
ligado à defesa da vida e da saúde. podemos apresentar algumas posturas ou
»»Desenvolvimento de processos educati- orientações que consideramos imprescindí-
vos que articulem a teoria com as práticas veis para que se possa concretizar um prá-
sociais, entidades e agentes envolvidos com tica problematizadora, reflexiva, dialógica e
diferentes modalidades formativas, instru- produtora de autonomia.
mentos didático-pedagógicos e comunica- Inicialmente referendamos a necessi-
ção de massa, cultura popular de resistência e dade de conhecer a realidade social em que
reinvenção das relações econômicas, sociais, se vai desenvolver o trabalho. A observação
culturais, ambientais etc. participante, a atitude de abertura e de es-
»»Construção coletiva do conhecimento fun- cuta são pontos de partida fundamentais
damentada no processo dialético prática- para a construção de vínculos entre traba-
-teoria-prática, associando o conhecimento lhadores e comunidade.
da realidade com sistematização das expe- Ao mesmo tempo, a mobilização dos
riências e conhecimentos dos processos de atores institucionais e comunitários pre-
articulação, formação e mobilização, concre- sentes no território pode contribuir sobre-
tizando o “aprender com a prática”. maneira para o trabalho na articulação e

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transformação da realidade de saúde. Esta cais, fomentando a solidariedade e o espírito
pode acontecer também de formas diversas de compromisso dos grupos em contato.
a depender dos contextos já anteriormente Mobilização social que junte os esfor-
abordados, tais como, encontros, seminários, ços de articulação e formação (encontros,
oficinas, reuniões, grupos de estudos, círcu- seminários, oficinas, reuniões formativas,
los interativos, intercâmbios de experiências, grupos de estudos, círculos interativos, in-
mutirões de formação popular e caravanas tercâmbios de experiências, mutirões de
em torno de programas concretos, ligados à formação popular e caravanas) em torno
defesa da vida e da saúde (DARON, 2008) de programas concretos, ligado à defesa da
Desenvolvimento de processos edu- vida e da saúde.
cativos que ampliem o olhar dos diversos Desenvolvimento de processos educa-
atores sobre a realidade e articulem a teo- tivos que articulem a teoria com as práticas 133
ria com as práticas sociais. Nesse sentido sociais, entidades e agentes envolvidos com
podem ser organizados cursos, oficinas e diferentes modalidades formativas, instru-
outras modalidades de formação, das quais, mentos didático-pedagógicos e comunica-
podem resultar a produção de instrumentos ção de massa, cultura popular de resistência
pedagógicos e comunicacionais com base e reinvenção das relações econômicas, so-
nos elementos da cultura local e nas po- ciais, culturais, ambientais etc.
tencialidades do território. Desse processo Construção coletiva do conhecimento
também pode resultar a sistematização das fundamentada no processo dialético prá-
experiências locais e a construção coletiva tica-teoria-prática, associando o conheci-
do conhecimento, fundamentada na ação- mento da realidade com sistematização das
-reflexão-ação, concretizando o “aprender experiências e conhecimentos dos proces-
com a prática” e referenciando a experiência sos de articulação, formação e mobilização,
como categoria chave na produção do co- concretizando o “aprender com a prática”.
nhecimento. Articulação das forças sociais com a
Com base na intencionalidade de forta- estruturação de redes de educadores popu-
lecer a participação popular, o controle social lares, educares em saúde, entidades e movi-
e a gestão participativa na saúde, é funda- mentos sensíveis à necessidade de uma am-
mental observar os seguintes procedimentos pla mobilização social em defesa do direito
metodológicos nos processos educativos: à saúde, retomando os fundamentos da Re-
Aproximação e conhecimento da reali- forma Sanitária.
dade social em que se vai desenvolver o traba- Planejamento das diferentes ações que
lho, na perspectiva da educação popular, com potencializem a dimensão educativa da
a metodologia da observação participante, ação, fazendo da articulação e da formação
numa atitude de abertura e de escuta para a um fator efetivo da mobilização social.
construção de diagnósticos das realidades lo-

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3. Técnicas pedagógicas participativas

a) técnicas vivenciais sentidos produzidos. Estas técnicas se


adéquam, especialmente, nos processos de
Privilegiam a dimensão vivencial e têm aproximação entre trabalhadores e comu-
como objetivo unir, criar um ambiente fra- nidades, no início de atividades, tais como
terno e participativo, promovendo a alegria, oficinas, cursos entre outros, sempre na
o humor, a integração e a descontração dos perspectiva de fomentar a integração e a
participantes, além de análises que buscam produção de vínculos entre estes atores.
oferecer elementos simbólicos para a refle- Podem ser utilizadas no início de ativi-
xão sobre uma determinada questão. dades formativas para permitir a integração
Nestas, alguns aspectos são funda- dos participantes ou depois de momentos in-
134 mentais: a flexibilidade no tempo, o pro- tensos de trabalho para possibilitar o descan-
cesso de reflexão sobre a vivência e os so e a descontração. As mais utilizadas são:

Para quebrar o gelo sonho, sinto e penso... Sem máscaras e subterfú-


» Ajuda a tirar as tensões do grupo, desini- gios, mas com autenticidade e sem violentar a
bindo as pessoas para o encontro. vontade das pessoas.
» Pode ser uma brincadeira onde as pessoas » Exige diálogo verdadeiro, a partilho do que
se movimentam e se descontraem. posso e quero ao novo grupo.
» Resgata e trabalha as experiências de crian- » São as primeiras informações da minha
ça. pessoa.
» São recursos que quebram a seriedade do » Precisa ser desenvolvida num clima de con-
grupo e aproximam as pessoas. fiança e descontração.
Técnicas de apresentação » O momento para a apresentação, motivação
» Ajuda a apresentar os participantes uns aos e integração. É aconselhável que sejam utili-
outros. Possibilita descobrir: quem sou, de onde zadas dinâmicas rápidas, de curta duração.
venho, o que faço, como e onde vivo, o que gosto,

Para integração: » Ajuda a sermos vistos pelos outros na intera-


» Permite analisar o comportamento pessoal ção grupal e como nos vemos a nós mesmos. O
e grupal. A partir de exercícios bem específi- diálogo profundo no lugar da indiferença, dis-
cos, que possibilitam partilhar aspectos mais criminação, desprezo, vividos pelos participantes
profundos das relações interpessoais do gru- em suas relações.
po. » Os exercícios interpelam as pessoas a pensar
» Trabalha a interação, comunicação, encon- suas atitudes e seu ser em relação ao outro ou o
tros e desencontros do grupo. grupo.

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Para animação e relaxamento: Para atividades de formação:
» Tem como objetivo eliminar as tensões, sol- » Deve ser usada para trabalhar com pessoas
tar o corpo, voltar-se para si e dar-se conta da que já possuem alguma prática de animação
situação em que se encontra, focalizando can- grupal.
saço, ansiedade, fadigas etc. Elaborando tudo » Possibilita a revisão, a comunicação e a per-
isso para um encontro mais ativo e produtivo. cepção do que fazem os destinatários, a reali-
» Estas técnicas facilitam um encontro entre dade que os rodeia.
pessoas que se conhecem pouco e quando o » Amplia a capacidade de escutar e observar.
clima grupal é muito frio e impessoal. » Facilita e clareia as atitudes dos educador
» Devem ser usadas quando necessitam rom- (a)es para que orientem melhor seu trabalho 135
per o ambiente frio e impessoal ou quando se grupal, de forma mais clara e livre com os
está cansado e necessita retomar uma ativida- grupos.
de. Não para preencher algum vazio no encon- » Quando é proposto o tema/conteúdo princi-
tro ou tempo que sobra. pal da atividade, devem ser utilizadas dinâmicas
que facilitem a reflexão e o aprofundamento;
são, geralmente, mais demoradas.

b) técnicas com atuação Para que tenham o efeito desejado é


preciso observar:
Estas técnicas tem a expressão corpo-
ral como aspecto central, e nestas se poderá
» Apresentação ordenada e coerente;
representar situações, comportamentos e
» Dar tempo limitado para que os elementos
formas de pensar. Para que ocorra o efeito
centrais sejam resumidos;
desejado é importante observar alguns as-
» Que seja utilizado a expressão corporal, o
pectos: ordenação e coerência na apresenta-
movimento, os gestos e a expressão facial;
ção; limite de tempo para que os elementos
» Que a fala seja com voz forte;
centrais sejam sintetizados, clareza na ex-
» Que não tenha atuação e fala de dois par-
pressão corporal e facial, movimento, gestu-
ticipantes ao mesmo tempo.
alidade, dicção e presença cênica, ressaltan-
do ainda a importância da criatividade e da
espontaneidade.

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c) Técnicas Audiovisuais
Outras técnicas utilizadas nas produção de materiais visuais ração prévia, que geralmente é
práticas educativas são as au- escritos ou gráficos tais como: fruto da reflexão ou análise que
diovisuais, como exposição produção de painéis, mandalas, o grupo realizou. Trazem sem-
de filmes, vídeos e exposições fanzines, jornais, revistas entre pre elementos de informação
dialogadas. A característica outros. A escrita e as imagens adicional para que o grupo en-
principal dessas técnicas é a se constituem como elemento riqueça sua discussão e análise
utilização de som ou de sua central. sobre algum tema. Trazem um
combinação com imagens. Podem ser elaboradas pelo ponto de vista particular para o
Nestas é necessário uma elabo- grupo no processo de formação debate coletivo. É um material
ração prévia, fruto da reflexão e colaboram com a concentra- que traz elementos novos ou
136 ou análise do grupo, trazendo ção e concretização das ideias e interpretações que permitam
um ponto de vista particular reflexões do grupo. um aprofundamento do tema
para o debate coletivo, para que Orientações a serem seguidas: tratado.
se constituam como práticas Para a utilização de uma téc- Ao utilizar este tipo de técnica
participativas. nica auditiva ou audiovisual é é necessário que a pessoa que a
Pode-se trabalhar ainda com a preciso um trabalho de elabo- irá utilizar tenha conhecimen-

d) Técnicas Visuais:
As Técnicas escritas são aque- dinâmicas é fundamental que novos para o aprofundamento
las em que se utiliza a escrita a letra seja legível por todos e do grupo. É importante ver se
como elemento central. Podem que a redação seja concreta dei- a redação, o conteúdo e a lin-
ser: papelógrafo, leitura de tex- xando claro e resumido ideias guagem correspondem ao nível
tos... centrais de um debate coleti- dos participantes. A utilização
Podem ser elaboradas por um vo. Este tipo de técnica ajuda sempre será acompanhada de
grupo no processo de forma- a concentrar e concretizar as passos metodológicos que per-
ção, se caracterizam por ser o ideias e reflexões do grupo. mitam a participação e o deba-
resultado direto daquilo que o Os materiais elaborados com te coletivo sobre o conteúdo.
grupo sabe, conhece ou pensa antecedência como a leitura As Técnicas gráficas são aque-
sobre determinado tema e é de textos, que são resultado las em que o conteúdo se ex-
produto do trabalho coletivo de uma reflexão ou interpre- pressa através de desenhos e
no mesmo momento de sua tação de pessoas externas ao símbolos para interpretação.
aplicação. grupo ou de elaboração indi- Sempre que usamos este tipo
Na utilização deste tipo de vidual deve trazer elementos de técnica é recomendável co-

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Técnicas aprofundadas na Edução Popular

a) círculos de cultura
to prévio do conteúdo a ser
desenvolvido, para que a téc- Sistematizados por Paulo Freire (1991) os Círculos de Cul-
nica sirva como ferramenta de tura estão fundamentados em uma proposta pedagógica de-
reflexão. Por isto, é importan- mocrática e libertadora e propõe uma aprendizagem integral,
te fazer uma discussão prévia que rompe com a fragmentação e requer uma tomada de po-
para analisar o conteúdo a ser sição perante os problemas vivenciados em determinado con-
trabalhado ou da mensagem texto. Para Freire, essa concepção promove a horizontalidade
apresentada na técnica auditi- na relação educador-educando e a valorização das culturas
va ou audiovisual. Para isto, é locais, da oralidade. Nesse contexto, propõe uma práxis pe-
fundamental preparar algumas dagógica que se compromete com a emancipação de homens 137
perguntas que permitam rela- e mulheres ressaltando a importância do aspecto metodo-
cionar o conteúdo com a reali- lógico, no fazer pedagógico, sem desvalorizar, no entanto, o
dade do grupo. conteúdo específico que mediatiza esta ação. Destarte, carac-
teriza-se como locus privilegiado de comunicação-discussão
embasadas no diálogo, nas experiências dos atores-sujeito, na
produção teórica da educação e na escuta, a qual se orienta
pelo desejo de cada um e cada uma aprenderem as falas do
outro e da outra problematizando-a e problematizando-se.
Tem como princípios metodológicos o respeito pelo edu-
cando, a conquista da autonomia e a dialogicidade e podem
meçar descrevendo elementos ser didaticamente estruturados em momentos tais como: a
que estão presentes no gráfico. investigação do universo vocabular1, do qual são extraídas pala-
Logo que os participantes que vras geradoras2. Esse mergulho permite ao educador interagir
não elaboraram o trabalho fa- no processo, ajudando-o a definir seu ponto de partida que
zem uma interpretação e que se traduzirá no tema gerador geral, vinculado a ideia de inter-
finalmente sejam as pessoas disciplinaridade e subjacente à noção holística de promover
que o elaboraram as que vão a integração do conhecimento e a transformação social. A
expor quais foram as ideias que Tematização3, ou seja, processo no qual os temas e palavras
quiseram expressar. Isto possi-
bilita a participação de todos
1
Relação das palavras de uso corrente, entendida como representativa
dos modos de vida dos grupos ou do território onde se trabalhará (estudo
na medida em que exige um da realidade). Este momento permite o contato mais aproximado com a
esforço de interpretação por linguagem, as singularidades nas formas de falar do povo, e suas experiências
parte de uns e de comunicação de vida no local.
por parte de outros. 2
Unidade básica de orientação dos debates.
3
A codificação pode se dar por imagens expressas de várias formas – desenho,

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geradoras são codificados e decodificados homens e mulheres se percebam sujeitos
buscando a consciência do vivido, o seu sig- históricos, o que implica a esperança de que
nificado social, possibilitando a ampliação nesse encontro pedagógico sejam vislum-
do conhecimento e a compreensão dos edu- bradas formas de pensar um mundo melhor
candos sobre a própria realidade, na pers- para todos. Esse processo supõe a paciência
pectiva de intervir criticamente sobre ela. histórica de amadurecer com o grupo, de
O importante não é transmitir conteúdos modo que a reflexão e a ação sejam real-
específicos, mas despertar uma nova forma mente sínteses elaboradas com ele.
de relação com a experiência vivida. Nesse contexto o Círculo de Cultura
A Problematização representa um mo- constitui-se locus da vivência democrática,
mento decisivo da proposta e busca superar de formas de pensamentos, experiências,
138 a visão ingênua por uma perspectiva críti- linguagens e de vida, que possibilita o es-
ca, capaz de transformar o contexto vivido. tabelecimento de condições efetivas para a
A ação de problematizar em Paulo Freire democracia de expressões, de pensamentos
(ano) impõe ênfase no sujeito práxico que e de lógicas com base no respeito às dife-
discute os problemas surgidos da observa- renças e no incentivo à participação em
ção da realidade com todas as suas contra- uma dinâmica que lança o sujeito ao debate,
dições, buscando explicações que o ajudem focando os problemas comuns.
a transformá-la. O sujeito, por sua vez, tam-
bém se transforma na ação de problemati- b) Técnica de Oficinas
zar e passa a detectar novos problemas na
A oficina se constitui num espaço pri-
sua realidade e assim sucessivamente. Nesse
vilegiado de criação e descobertas, onde,
sentido, a problematização emerge como
processo e produto compõem uma unidade
momento pedagógico, como práxis social,
dialética, cujos objetivos e passos são pactu-
como manifestação de um mundo refletido
ados com os participantes, portanto, é plu-
com o conjunto dos atores, possibilitando a
ridimensional, criativo, coletivo, planejado e
formulação de conhecimentos com base na
coordenado coletivamente. Nesse sentido,
vivência de experiências significativas.
todos são essenciais e cada um é correspon-
A ampliação do olhar sobre a realida-
sável na produção do que se quer obter, ten-
de com amparo na ação-reflexão-ação e o
do como referência as potencialidades do
desenvolvimento de uma consciência crítica
próprio grupo, a partir da prática de cada
que surge da problematização permite que
um em seu cotidiano. Por isso o compro-
misso e a responsabilidade dos participan-
fotografia, imagem viva, – que por sua vez deverão
tes do grupo são essenciais: cada um assume
suscitar novos debates. Parte-se da compreensão de que
cada pessoa, cada grupo envolvido na ação pedagógica, uma posição importante na produção do
dispõe em si próprio, ainda que de forma rudimentar, que se quer obter.
dos conteúdos necessários dos quais se parte.

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Oficina é um lugar de consertos, repa- grupo irão identificar no produto construí-
ros, criatividade, descobertas, lugar de vida, do aspectos da contribuição de cada um.
trabalho, transformação, processo de cons- Para o planejamento de uma oficina
trução. A oficina se constitui num espaço é necessário que o facilitador (a) planeje e
privilegiado de criação e descobertas. busque, anteriormente, fontes que contri-
Numa oficina, processo e produto com- buam para uma apropriação do saber histo-
põem uma unidade dialética, que não preten- ricamente acumulado e a problematização
dem alcançar um objetivo “a qualquer custo”; da temática em questão, assumindo sempre
preocupa-se, pelo contrário, com a adequação a postura de coparticipante.
e a sequencia dos passos a serem dados para O facilitador (a), além de planejar e bus-
que se chegue àquele mesmo objetivo. car as fontes anteriormente assume, durante
A aprendizagem trabalha as diversas a oficina, a postura de coparticipante, que 139
dimensões do ser humano como o sentir, o acredita na originalidade da contribuição
pensar, o agir, a intuição, a cognição, o gesto e de cada participante e que, por isso mesmo,
a palavra encontram de forma complementar não pode prever qual será o resultado final
produzindo uma nova síntese. do processo que é chamado a facilitar.
Prioriza o aprendizado usando o corpo Caso sejam várias pessoas a facilitar ou
todo e não só a razão. É por isso que, numa assessorar a oficina, será necessário que haja
oficina, são trabalhadas distintas dimensões sintonia entre elas. Como cada experiência
do ser humano: o sentir, o pensar, o agir, tem sua particularidade, requer ingredientes
intuição e razão, gesto e palavra intervêm adequados e combinados de forma a corres-
e encontram uma nova síntese. Trabalhar ponder a cada especificidade local e conjun-
com oficinas, portanto, implica em desen- tural, a cada público e objetivo. O prazer de
volver a criatividade. Por isso é comum, fazer oficina se fundamenta exatamente no
numa oficina, a introdução de expressões desejo de experimentar e aprender algo sin-
culturais e artísticas, como: a dança, a po- gular.
esia, a pintura, a modelagem, brincadeiras. Sua utilização deve responder a obje-
O produto que daí nasce terá essa mes- tivos específicos de uma determinada es-
ma marca criativa e pluridimensional, será tratégia educativa, no sentido de estimular
sempre algo concreto, visível: um desenho, a produção do conhecimento e a recriação
uma expressão musical ou plástica, uma co- deste conhecimento tanto no grupo/coletivo
lagem, uma expressão corporal, um cartaz, quanto no indivíduo/singular, uma vez que a
um texto, no qual os diversos sujeitos do técnica da dinâmica não é um fim, mas um
grupo poderão perceber a contribuição de meio - é uma ferramenta a ser usada.
cada um (DARON, 2008).
Para isso torna-se necessário um traba-
lho prévio de sistematização. As pessoas do

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3.2 - Exemplos de técnicas participativas

quanto tempo eu tenho 4. Outra variante é fazer com que os partici-


pantes conversem em dupla e depois utilizem
Objetivo: Provocar desinibição e conheci-
o fósforo para falar o que conhece do compa-
mento do outro.
nheiro.
Material: Som com música alegre, caixa de
5. Usar a dinâmica para perguntar: que signi-
fósforos, um cartaz ou fichas - nomes, de
fica amizade ou ainda, para revisar qualquer
onde é, de que mais gosta, uma alegria, uma
disciplina.
tristeza etc. (Podem-se criar outras conforme
Discussão: Conseguimos expressar os pon-
o objetivo proposto).
tos mais importantes na nossa apresentação?
Como me senti? É fácil falar de nós mesmos?
1. Todos, em círculo, o educador (a) distribui
O que significa um fósforo aceso? (marcando
um palito de fósforo, não usado. As fichas de-
tempo) O que significa o fogo? (iluminando).
vem estar em lugar visível.
Resultado esperado: Ter feito uma reflexão
2. Pedir a um participante que risque o fós-
sobre o tempo que estamos na terra e o que
foro. Enquanto o fósforo estiver aceso, vai se
podemos ser para os outros. A maneira como
apresentando, falando de si.
eu utilizo o fósforo é a nossa própria vida.
3. Cuidar para que ele fale só o tempo em que
Analisar todas as situações que aparecem du-
o fósforo estiver aceso. Caso alguém não con-
rante a ação.
siga, o educador (a) poderá usá-lo para que
os outros façam perguntas (pessoais) como Ronildo Rocha, Catolé do Rocha, PB.
numa entrevista. ronildorocha@yahoo.com.br

a construção coletiva do rosto - desenhar o outro olho; - passar a direita e...


completar todo o rosto com cada pessoa colo-
Objetivos: Fazer com que os membros do
cando uma parte (boca, nariz, queixo, orelhas,
grupo sintam-se à vontade uns com os outros.
cabelos).
Aplicação:
d) Quando terminar o rosto pedir à pessoa
a) Orientar os participantes para sentarem em
para contemplar o desenho;
círculo;
e) Orientar para dar personalidade ao dese-
b) O assessor distribui para cada participante
nho final colocando nele seus traços pessoais;
uma folha de papel sulfite e um giz de cera;
f ) Pedir ao grupo para dizer que sentimentos
c) Em seguida orienta para desenhar o se-
vieram em mente.
guinte: - uma sobrancelha somente; - passar
a folha de papel para as pessoas da direita e A Construção da solidariedade e a educação do
pegar a folha da esquerda; - passar novamen- sentimento na escola. Editora Mercado de Letras.
te; - desenhar um olho; - passar novamente;

140 Caderno de Educação Popular em Saúde


dois circulos tocar a música, cada círculo gira para um lado.
Objetivo: motivar um conhecimento inicial, Quando a música pára de tocar, as pessoas
para que as pessoas aprendam ao menos o devem se apresentar para quem parar à sua
nome umas das outras antes de se iniciar uma frente, dizendo o nome e alguma outra infor-
atividade em comum. mação que o educador (a) achar interessante
Para quantas pessoas: é importante que seja para o momento.
um número par de pessoas. Se não for o caso, Repete-se até que todos tenham se apresen-
o educador (a) da dinâmica pode requisitar tado. A certa altura pode-se, também, mistu-
um “auxiliar”. rar as pessoas dos dois círculos para que mais
Material necessário: uma música animada, pessoas possam se conhecer.
tocada ao violão ou com gravador. “Aprendendo a ser e a conviver” - de Marga-
Descrição da dinâmica: formam-se dois cír- rida Serrão e Maria Clarice Baleeiro, Editora
culos, um dentro do outro, ambos com o mes- “FTD”, 1999.
mo número de pessoas. Quando começar a

poesia, música, crônica 8. No seu grupo, responda o que você faria


Finalidade: Consiste em ouvir uma poesia e/ com esse sentimento-palavra trocada.
ou música para ajudar na introdução de um 9. O grupo deve montar uma história com os
assunto ou de uma vivência subjetiva. sentimentos trocados e com a poesia recebida.
Material: Letra (cópia xerográfica ou mi- 10. Cada grupo apresenta no grupão sua his-
meografada) de uma poesia ou canção. tória de maneira bem criativa.
11. Buscar o que há de comum em todas as
Descrição: histórias.
1. Escolher uma poesia ou canção sobre o Comentários:
tema a ser trabalhado 1. Este trabalho leva à reflexão de um tema/
2. Dividir os participantes em grupos. assunto, abrindo um espaço para que as pes-
3. Cada um lê em voz baixa, murmurando. soas falem de um assunto sob diferentes olha-
4. Escolher a palavra que mais marcou, em res.
cada estrofe. 2. Contribui para o desenvolvimento da ex-
5. Gritar essas palavras juntas, bem alto. De- pressão verbal e do trabalho coletivo.
pois bem baixo, até se calar. Fonte: “Augusto Boal, publicado no livro “Di-
6. Andando, procurar sua “palavra-sentimen- nâmica de grupos na formação de lideranças” de
to” com outra pessoa do grupo. Ana Maria Gonçalves e Susan Chiode Perpétuo,
7. Explique, sinta, expresse, toque. Ed. DP e A, 1998.

Pequena enciclopédia dos fazeres 141


colcha de retalhos considera representativo de sua vida. Depois
disso, peça para escolherem pedaços de tecidos
Quantas vezes sentamos ao lado de nossos avós
para pintar símbolos, cores ou imagens relacio-
ou mesmo de nossos pais para escutar aquelas
nadas às suas lembranças. Esse é um momento
longas histórias que compuseram a vida e a tra-
individual, que deve levar o tempo necessário
jetória da nossa família e, portanto, a trajetória da
para que cada um se sinta à vontade ao expres-
nossa vida? Quantas vezes paramos para pensar
sar o máximo de sua história de vida. Quan-
na importância do nosso passado, nas origens
do todos terminarem, proponha a composição
de nossa família, e mais, de nossa comunidade?
da primeira parte da Colcha de Retalhos, que
Indo um pouco mais longe, quantas vezes pa-
pode ser feita costurando ou colando os traba-
ramos para pensar de que forma a cultura da
lhos de cada um, sem ordem definida.
nossa cidade e de nosso país influencia o nosso
modo de ver as coisas? Pois é. Nós somos aquilo
2ª Etapa - História da Comunidade
que vivemos. Somos um pouquinho da via de
nossos pais e avós, somos também um pouqui- Esta etapa exige muito diálogo entre os par-
nho da vida de nossos pais e avós, da nossa, do ticipantes, que devem construir a história da
nosso bairro, das pessoas que estão à nossa volta, comunidade onde vivem. Uma boa dica é pes-
seja na cidade ou no país onde vivemos. Isso é o quisar junto aos mais velhos. O grupo escolhe
que se chama identidade cultural. E esta é uma alguns fatos, acontecimentos e características
atividade que ajuda a buscar essa identidade - da comunidade para representá-los também
o que significa buscar a nossa própria história, em pedaços de tecido pintados. Pode-se reunir
conhecemos a nós mesmos e a tudo que nos as pessoas em pequenos grupos para a criação
rodeia. Buscar a identidade cultural é “entender coletiva do trabalho. Todas as pinturas, depois
para respeitar” nossos sentimentos e os daqueles de terminadas, deverão ser costuradas ou co-
com quem compartilhamos a vida. ladas compondo um barrado lateral na colcha.

» Tecido - lona, algodão, morim cortados em 3ª etapa - História da cidade, país e da Terra
tamanho e formatos variados A partir daqui, a idéia é dar continuidade à
» Tinta de tecido ou tinta guache (é bom lem- colcha de retalhos, criando novos barrados,
brar que o chache se dissolve em água) de forma a complementá-la com a história de
» Linha e agulha ou cola de tecido. vida da cidade, do país, do mundo e até a do
universo. Não há limites nem restrições. O ob-
1ª Etapa - História de Vida
jetivo principal é estimular nos participantes a
Peça a todos os participantes para relembrarem vontade de conhecer e registrar a vida, em suas
um pouco de suas histórias pessoais e das his- diferentes formas e momentos. Desse modo,
tórias de suas famílias, pensando em suas ori- poderão se sentir parte da grande teia da vida.
gens, sentimentos e momentos marcantes, em
Fonte: “Paz, como se faz? Semeando cultura de paz
sonhos, enfim, em tudo aquilo que cada pessoa
nas escolas”, Lia Diskin e Laura G. Roizman.

142 Caderno de Educação Popular em Saúde


descobrindo a quem pertence
Obs.: Esta atividade objetiva, também, es-
1. O educador (a) divide o grupo em duas
tabelecer as relações no grupo. É divertida e
metades.
usa a curiosidade do grupo como detonadora
2. Uma metade do grupo dá ao educador (a)
de uma busca. Pode ser feita no início de um
um objeto de uso pessoal. O educador (a)
grupo e repetida sempre que se deseja um cli-
mistura os objetos e os distribui pela outra
ma mais descontraído.
metade, que sai à procura de seus donos. Não
é permitido falar. “Aprendendo a ser e a conviver” - de Marga-
3. Ao encontrar o dono do objeto recebido, rida Serrão e Maria Clarice Baleeiro, Editora
forma-se par com ele. “FTD”, 1999.

teia da vida apresentam, quem ficou com o novelo deve


Material: um novelo de linha ou de lã devolvê-lo a quem lhe entregou, repartindo
Desenvolvimento: Os participantes se colo- as informações dadas por seu companheiro.
cam em pé formando um círculo. A um deles Este faz o mesmo de tal forma que vai en-
é entregue o novelo. Ele tem que dizer seu rolando a linha em forma de bola e vai refa-
nome, de onde é, tipo de trabalho que faz in- zendo a trajetória anterior, porém no sentido
teresse de sua participação, etc. Depois pega inverso, até que volta ao companheiro que a
a ponta do fio e joga a bola a outro compa- iniciou. É preciso avisar os participantes da
nheiro, que por sua vez deve apresentar-se da importância de estarem atentos durante a
mesma maneira. A ação se repete até todos apresentação de cada um, pois não se sabe a
os participantes fiquem entrelaçados numa quem vai ser lançado o novelo, depois deverá
espécie de teia ou rede. Depois que todos se repetir os dados de quem lançou.

fotografia cena onde todos permanecem congelados.


O educador (a) divide a turma em grupos de O instrutor orienta o grupo para que fiquem
no máximo dez pessoas, e dá um tema para postos no lugar, bate palma e o grupo congela.
cada grupo, desde que os outros não saibam Os demais grupos tentam descobrir a mensa-
(ex.: prostituição, saúde, violência, fome, ale- gem - ou tema. Fazer um debate sobre o que
gria, namoro etc.). O grupo irá montar uma se aprendeu com esta dinâmica.

Pequena enciclopédia dos fazeres 143


rótulos respeite-me/ ajude-me/ rejeite-me/ ignore-
O educador (a) cola uma etiqueta em cada -me / ria de mim/ zombe de mim
participante, sem que o participante veja o Exercício pessoal de revisão de vida e de prá-
que está escrito nela. Movimentam-se pela tica:
sala, os participantes devem se tratar uns aos a) Recolha-se num lugar tranqüilo, onde você
outros conforme o rótulo que virem na testa possa ficar em silêncio e confortável.
dos companheiros. Cada um deve tentar adi- b) Retome a sua vida e procure refletir sobre
vinhar que rótulo recebeu. ela a partir das seguintes questões:
Depois de vinte minutos, o educador (a) pede Como vai a sua relação? - consigo mesmo;
para cada um diga o rótulo que recebeu e por- - com o grupo de jovens; - no namoro; - na
que sentiu isso. Deve-se conversar também família; - com os(as) amigos(as); - com os co-
sobre os efeitos que os rótulos provocaram legas de trabalho; - com Deus.
nas pessoas, se gostam ou não de serem trata- c) Partilhar com seu grupo com os amigos
das a partir de rótulos e comparar com o que como foi a experiência.
acontece na vida real no cotidiano do grupo. Fonte:Equipe da Casa da Juventude Pe.
Sugestões de rótulos: aprecie-me/ ensine- Burnier,CAJU, Goiânia, GO.Subsídio de Apoio
-me/ tenha piedade de mim/ aconselhe-me/ da Escola de Educadores de Adolescentes e Jovens.

invertendo os papéis Tempo para discussão, pedindo que anotem


os pontos principais levantados pela equipe.
Objetivo: Refletir sobre os papéis sexuais e os
3. Solicitar que cada subgrupo crie uma
estereótipos vigentes em nossa cultura; possi-
cena que expresse a conclusão a que che-
bilitar o questionamento dos privilégios entre
gou. Pedir que, na cena, os rapazes façam
os sexos, percebendo as diferenças culturais
o papel feminino e as moças, o masculino.
existentes.
4. Apresentação de cada subgrupo.
Material: Papel ofício e lápis.
5. Plenário - compartilhar os sentimentos e
1. Dividir o grupo em cinco subgrupos.
as observações: Como se sentiu incorporan-
2. Dar um tema para cada subgrupo, pedin-
do o papel do sexo oposto? Qual a diferença
do que discutam os papéis, as diferenças e os
existente entre o que você representou e o que
privilégios relativos aos sexos, de acordo com
você faria nessa situação na realidade? Quais
o tema recebido:
as diferenças que são inerentes ao gênero e
* relação marido-mulher;
quais as que decorrem da cultura?
* educação de filhos (as);
* trabalho; Fonte: Projeto Crescer e Ser, publicado no livro
* namoro; “Aprendendo a ser e a conviver”, Margarida Ser-
* relacionamento sexual. rão e Maria C. Baleeiro, ED. FTD, 1999.

144 Caderno de Educação Popular em Saúde


aprendendo com as cirandas da vida
Reconstituindo a memória da comunidade: a transformado na realidade) envolvendo basi-
história de luta e resistência camente duas perguntas: O que necessita ser
Reunir a comunidade articulando profissio- transformado (situações-limite e potenciais
nais, gestores, crianças, jovens e adultos do da comunidade) e em que direção se deve
território. Momento de escuta às narrativas seguir(que imagens de futuro ou de sonho ),
da população, sobre suas histórias das lutas o que podemos e percebemos que devemos
localizando imagens de transformação, em transformar e que grupos trazemos para essa
suas potencialidades e desafios. Com as crian- construção. A seguir planejar que linguagem
ças pode ser trabalhada a partir de desenhos, utilizar e o quê se irá socializar no Escambo
brincadeiras circenses. Com os jovens a partir de Arte e Saúde, onde os grupos popula-
do teatro, da música, hip hop, poesia, e com res locais apresentam suas expressões sobre o
os adultos em uma roda de contação de his- vivido de forma criativa. Ao final ocorre a
tórias onde se tentará localizar as imagens de construção de pactos e agendas para os atos-
transformação ( direções do que necessita ser -limite.

Cirandas:
Mandei fazer uma Casa de Farinha
Gira essa roda Ciranda
Bem maneirinha pro vento poder levar
Agita essa roda cirandar
Oi passa sol, passa chuva , oi passa vento
Gira sem medo ciranda
Só não passa o movimento do cirandeiro a rodar
Cirandas da Vida estão sem a girar
Ah! foi bom bonito, meu amor brincar, Ciranda
Vida que é vida não pode parar
maneira, vem cá cirandeira, Vem cá balançar

Essa ciranda não é minha só Vou fazer uma farinhada, muita gente eu vou chamar
Ela é de todos nós Quem entende de farinha vem comigo peneirar
Ela é de todos nós... Vou chamar a (o nome) pra comigo peneirar( a pes-
A melodia principal quem diz soa convidada, vai ao centro, peneira junto, a outra sai
É a primeira voz e uma outra é convidada ao centro).
É a primeira voz Quem entende de farinha vem comigo peneirar

Roda de acolhimento:
Na roda a pessoa dá um passo á frente, diz o e dão um passo para esquerda dizendo: e se-
nome, de onde vem, suas expectativas e os ou- guimos em frente. A roda prossegue até todos
tros dão um passo à frente, repetem seu nome, se apresentarem.
dão um passo atrás dizendo: te damos espaço

Pequena enciclopédia dos fazeres 145


Bibliografia
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educação e saúde: teoria e prática. 2.ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
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Tones, B. R. “Educação para la salud:prevencion o subversion?” in “Ten-
dencias actuales en educacion sanitária”. Barcelona, Quadern CAPS, mer.
1987;(8)

Caderno de Educação Popular em Saúde


Reflexões e vivências
Fontes nas quais todos e todas nós bebemos e
continuaremos bebendo a cada momento novo do
nosso aprendizado, das nossas descobertas. Fragmentos
poéticos, melodias, escritos traçados com leveza e
criatividade. Outras palavras, outras maneiras de dizer
o que a teoria científica procura fundamentar, talvez
um tanto distraídas e mais encantadoras. Apenas,
outras palavras...
Educação popular na formação
do agente comunitário de saúde

Hoje em dia, existem aproximadamente 250.000 Agentes Co-


munitários de Saúde (ACS) atuando no Sistema Único de Saúde
no Brasil. (BRASIL, 2011). Importante componente da equipe de
Saúde da Família e responsável pelo contato inicial com a popula-
ção, este trabalhador não necessita ter nem mesmo o Ensino Médio
completo e é contratado sem qualquer formação profissional. Entre
suas atribuições específicas mencionadas no Anexo I da portaria nº
648 (BRASIL, 2006) consta: “estar em contato permanente com
as famílias desenvolvendo ações educativas, visando à promoção da
saúde e a prevenção das doenças...”
A Saúde da Família é apresentada pelo Ministério da Saúde
como a principal estratégia de reorientação do modelo de atenção
à saúde no Brasil. Um dos sentidos da reorientação proposta busca Vera Joana Bornstein
passar de um modelo de atenção centrado na doença e na sua cura Escola Politécnica de Saúde Joaquim
para um modelo onde a centralidade se dê na prevenção de doenças Venâncio (EPSJV)/Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz).
e na promoção da saúde. Fica evidente, portanto, a necessidade da
ênfase das ações e serviços de saúde nos determinantes e condicio- Márcia Raposo Lopes
nantes dos problemas de saúde assim como nas situações de risco Faculdade de Enfermagem da Universi-
dade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ
encontradas no território. Carmem Teixeira (2006, p. 29) chama a
atenção à complexidade de um processo de mudança do modelo de Helena Maria S. Leal David
atenção à saúde que exige um conjunto heterogêneo de iniciativas Faculdade de Enfermagem da Universi-
“macro” sistêmicas, tais como, a formulação e implementação de dade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ

políticas que criem condições para as mudanças ao nível “micro” – o


nível do processo de trabalho em saúde.
Ainda que conscientes desta complexidade, buscaremos aqui
problematizar apenas uma das mudanças que consideramos neces-
sárias no processo de trabalho em saúde, mais especificamente na
transformação do enfoque predominante das ações educativas rea-
lizadas pelas equipes de saúde da família: de educativa no trabalhado em saúde, conside-
um enfoque de educação em saúde tradicio- rada eixo fundamental para a promoção e a
nal, com ênfase em orientações fornecidas prevenção.
pelo serviço para a mudança de hábitos e De uma forma geral, a formação pro-
comportamentos da população, dirigidas fissional deste trabalhador, tem sido rea-
sobretudo ao indivíduo para um enfoque de lizada em serviço, sob a denominação de
educação em saúde que estimule a análise curso introdutório ou ambientação, visando
crítica das condições de vida e trabalho da principalmente a instrumentalização para a
população, o fortalecimento de sua autono- prática. Morosini et al. (2007) se referem a
mia e a participação na sociedade. estes processos formativos como aligeira-
Abordaremos, neste sentido, duas das dos e ressaltam a redução de seu conteúdo
152 questões colocadas acima: a formação pro- às necessidades mais imediatas do serviço.
fissional do agente comunitário de saúde e Outras de suas características são: o fato
como parte desta formação, a abordagem desta não ser regulamentada, não ter pré-
-requisitos e não conferir habilitação pro-
fissional.
Em 2004, os Ministérios da Educa-
ção e da Saúde aprovaram o Referencial
Curricular para Curso Técnico de Agente
Comunitário de Saúde, com um itinerário
formativo de 1200 horas distribuídas em
três etapas, que se constitui numa proposta
de habilitação técnica destes profissionais.
Esta proposta parte do reconhecimento
da importância desse trabalhador no con-
texto de mudança do modelo de atenção e
do papel social do ACS junto à população
(BRASIL, 2004).
Até o momento, tem sido difícil garan-
tir a formação técnica completa em nível
nacional. Uma das argumentações contrá-
rias à realização do curso técnico em suas
três etapas se fundamenta na Lei de Res-
foto: Ministério da Saúde

ponsabilidade Fiscal1, já que estes trabalha-


1
Ficou conhecida como Lei de Responsabilidade
Fiscal a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio
de 2000. Dentre outras coisas, determina que a

Caderno de Educação Popular em Saúde


dores, ao se tornarem técnicos, poderiam dução do trabalho educativo presentes no
reivindicar um aumento dos salários. Na processo de trabalho de agentes de saúde.
maioria dos Estados, parte dos ACS reali- Foi categorizada uma primeira forma de
zou apenas a primeira etapa deste curso téc- condução cujo aspecto primordial era o de
nico. Algumas das exceções são os Estados convencimento da população por parte do
do Tocantins e do Acre, onde o curso foi profissional de saúde que se julga detentor
finalizado em suas três etapas e uma turma de um saber e outra forma fundamentada
que concluiu as três etapas na Escola Poli- no diálogo, no reconhecimento do saber do
técnica de Saúde Joaquim Venâncio (EP- outro, na reflexão crítica sobre a realidade,
SJV/Fiocruz), em julho/2011. Este foi um no fortalecimento da autonomia e do tra-
projeto-piloto da EPSJV, que pretendeu balho coletivo. Acreditamos que esta últi-
contribuir para o debate ma forma de condução 153
em torno da necessidade Foi categorizada uma primeira do trabalho educativo
de qualificação técnica favorece a reorganização
dos ACS e subsidiar sua
forma de condução cujo aspecto do modelo de atenção
luta por melhores condi- primordial era o de convencimento em saúde, na medida
ções de formação e tra- da população por parte do em que amplia o foco
balho. profissional de saúde que se julga do trabalho em saúde e
De acordo com a detentor de um saber e outra estimula a participação
Portaria nº 648 citada da população na análise
anteriormente (BRA-
forma fundamentada no diálogo, e busca de solução para
SIL, 2006), as atividades
no reconhecimento do saber do seus problemas. Em ar-
educativas individuais e outro, na reflexão crítica sobre a tigo de Bornstein, Matta
coletivas nos domicílios realidade, no fortalecimento da e David (2009), é men-
e na comunidade estão autonomia e do trabalho coletivo. cionado que as equipes
entre as atribuições es- de saúde pesquisadas no
pecíficas do ACS. A dimensão educativa município do Rio de Janeiro desenvolviam
assume uma centralidade no trabalho do poucas atividades educativas na comunida-
agente comunitário, sobretudo ao conside- de e que o principal foco do trabalho educa-
rar o foco na promoção da saúde e também tivo era de conteúdos vinculados à preven-
na prevenção de agravos. ção de doenças abordadas pelos programas
No entanto, em artigo publicado por do Ministério da Saúde. A principal cono-
Bornstein e Stotz (2008/2009), os autores tação deste trabalho estava permeada pelo
procuram diferenciar as formas de con- convencimento da população em relação às
orientações fornecidas pelo serviço.
despesa total com pessoal não poderá ser maior
Foi também mencionado o trabalho
do que 50% da receita corrente líquida da União e
60% dos estados e municípios, a cada ano. educativo não programado, feito pelo agen-

Reflexões e vivências
te de saúde na comunidade como um espa- do conhecimento, não levando em consideração
ço potencial de trabalho educativo, menos o saber alheio, formam alunos passivos prepa-
sujeito às normas do trabalho prescrito. rados apenas para o mundo em que vivemos
Buscando justamente favorecer a trans- sem questionamento”.
formação deste quadro, a formação técnica Margarette de S. Francisco ressal-
dos ACS realizada na EPSJV, coloca a dis- ta que “quando o processo educativo é verti-
cussão da educação em saúde como ponto cal, o profissional despeja todo o conteúdo no
central de seu currículo, estando presente educando que recebe todas aquelas informa-
nas três etapas de formação em que este ções sem, no entanto assimilar nenhuma”. As
é dividido. O enfoque privilegiado é o da alunas abordam outra forma de conduzir
educação popular e saúde e o trabalho de o processo educativo quando os profissio-
154 conclusão de curso dos alunos é a constru- nais reconhecem o saber dos educandos e
ção de um plano de trabalho de educação tornam a aprendizagem um espaço de troca
em saúde. de experiência, um processo de busca, for-
Assim, durante todo o curso, os alunos mando pessoas ativas, críticas, que não se
foram levados a problematizar as práticas de conformam com qualquer condição impos-
educação em saúde realizadas pela equipe ta, que refletem sobre o mundo e buscam
de saúde da família. Discutiram-se a forma modifica-lo.
de condução do trabalho, o material edu- No trabalho de conclusão de curso de
cativo utilizado e os temas abordados nas um dos grupos, o tema “lixo” foi escolhido
atividades educativas realizadas na sala de como conteúdo disparador de um trabalho
espera, nos grupos e nas visitas domiciliares, educativo na comunidade, após um proces-
além da construção de outras possibilidades so de priorização dos problemas levantados.
de atuação. Foram realizadas várias atividades que pos-
Os diferentes debates propiciaram aná- sibilitaram o aprofundamento sobre a ques-
lises sobre os efeitos das práticas educativas tão do lixo, incluindo pesquisa bibliográfica,
dos agentes, favorecendo a construção de uma entrevista a moradores e visitas a instituições
visão crítica sobre estas e a compreensão da que pudessem enriquecer a análise do pro-
proposta da educação popular. Ainda que a blema. Na preparação da atividade educati-
percepção de cada aluno seja diferenciada, va com a população da “comunidade” onde
podemos mencionar a fala de algumas alunas os ACS trabalhavam, optou-se por preparar
do curso técnico, que sintetizam seus entendi- cartazes com perguntas problematizadoras,
mentos em relação à educação popular. como forma de buscar encaminhamentos
Segundo Pámela Gonçalves, fazendo que possibilitassem o enfrentamento dos
um paralelo do trabalho de educação em problemas encontrados. As perguntas for-
saúde com o trabalho educativo numa esco- muladas pelo grupo de alunas: Aldalice G.
la “professores autoritários, que têm o domínio Franca, Luciana R. G. Eugênio, Margarette

Caderno de Educação Popular em Saúde


Francisco e Maria José L. S. Custódio. Fo- não foi unânime. No entanto, houve, a nos-
ram ilustradas com fotos das suas áreas de so ver, um crescimento da perspectiva crí-
trabalho e moradia, procurando inicialmen- tica de grande parte dos alunos. Ainda que
te aproximar-se ao problema, perceber se a estivesse prevista a realização de uma práti-
situação era reconhecida como incômoda ca educativa com os alunos em suas áreas de
pelos moradores e posteriormente provocar trabalho, este é um elemento que conside-
um debate sobre causas, consequências e ramos necessário ser melhor desenvolvido
possíveis soluções. Algumas das perguntas num próximo curso.
que acompanhavam as fotos foram: “você Acreditamos que a formação técnica
conhece estes lugares? Esta situação te incomo- dos ACS pode ser um importante elemen-
da? O que chama a sua atenção? Como poderí- to para o fortalecimento de um processo
amos resolver este problema?” de trabalho inovador. Neste processo de
Segundo Pámela M. P. Gonçalves, a trabalho se inclui o trabalho educativo, que
forma crítica como o processo pedagógico por sua vez pode ser de grande importância
foi conduzido na EPSJV possibilitou que para a mudança do modelo de atenção, na
os alunos se formassem “não apenas técni- medida em que possibilite a expressão das
cos agente de saúde, mas cidadãos melhores com necessidades e demandas da população, for-
perspectiva de fazer um mundo melhor”. taleça sua autonomia, sua organização e sua
Entendemos que a percepção dos alu- participação na sociedade e, especificamen-
nos em relação às possibilidades de trabalho te, na consolidação do sistema de saúde.
dentro da perspectiva da educação popular

Reflexões e vivências
BIBLIOGRAFIA

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BORNSTEIN, V.J.; MATTA, G.C.; DAVID, H. O processo de
trabalho do agente comunitário de saúde e sua incidência sobre a
mudança do modelo de atenção em saúde. In: MONKEN, M. &
DANTAS, A.V. (Orgs). Estudos de Politecnia e Saúde, v.4, p. 191-
219. Rio de Janeiro: EPSJV, 2009.

156 BRASIL. Ministério da Saúde. Ministério da Educação. Referencial


curricular para curso técnico de agentes comunitários de saúde: área
profissional saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2004.
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 648, de 28 de Março de
2006. Diário Oficial da União, Brasília, DF, nº 61, de 29 de março
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BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Atenção Básica.
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munitário de saúde no âmbito das políticas voltadas para a atenção
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TEIXEIRA, CF. A mudança do modelo de atenção à saúde no SUS:
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Modelo de atenção à saúde: promoção, vigilância e saúde da famí-
lia. Salvador: EDUFA, 2006, p. 19-58.

Caderno de Educação Popular em Saúde


Diálogo com práticas populares
de saúde na formação profissional

Conhecimentos construídos nas diversas práticas sociais de


pessoas e grupos, como nas tradições familiares e nas experiências
de vida solidariamente compartilhadas, assim como conhecimentos
técnicos e/ou científicos disponibilizados pelos profissionais de saú-
de, da educação e mesmo pela mídia, vão dando corpo a processos de
enfrentamento de situações adversas, entre elas, a doença. Na cons-
trução do enfrentamento dessas situações, as pessoas buscam apoio
não apenas nos profissionais do sistema de saúde, mas também, entre
outros, dos agentes de práticas populares de saúde, complementando
os sistemas terapêuticos. As pessoas que buscam soluções também
na cultura popular não vêem uma oposição entre esses sistemas (o
Maria Waldenez de Oliveira
médico e a erveira, por exemplo), vêem complementaridade. Na sua
Enfermeira. Doutora em Educação e
avaliação, as práticas populares têm algo que as práticas do serviço
Docente na UFSCar. Coordenação do
não oferecem e vice-versa. Suas escolhas advêm de suas visões acerca MAPEPS. Membro da Rede de Edu-
cação Popular e Saúde (EPS), do GT
do ser humano e dos significados que suas experiências de vida vão
de EPS da ABRASCO e do Grupo de
dando aos processos de adoecimento, de cura, ao que é saúde, e doen- Pesquisa “Práticas Sociais e Processos
ça. Assim, esses significados estão em constante construção, não são Educativos”.

definitivos, assim como as escolhas também não o são. São escolhas Aida Victoria Garcia Montrone
pautadas em avaliações rigorosas da realidade em que estão imersas. Enfermeira Obstetra. Doutora em Edu-
Os motivos para a procura por práticas populares são inúmeros. Um cação e docente na UFSCar. Coordena-
ção MAPEPS e membro do Grupo de
primeiro que podemos citar é a centralidade da pessoa (e não da Pesquisa “Práticas Sociais e Processos
doença) no processo de cura, o que acarreta maior responsabilização, Educativos”.

empoderamento, autonomia, participação das pessoas nas decisões Aline Guerra Aquilante
e ações. Um outro, decorrente do primeiro, é que, para que a pessoa Cirurgiã-dentista. Doutoranda em Saú-
volte ao centro da terapêutica, é vital a relação direta, com vínculos de Coletiva (UNIFESP). Docente da
UFSCar. Coordenação do MAPEPS.
de confiança com o terapeuta ou com o agente da prática popular.
Há também a influência da família no que diz respeito à tradição Fábio Gonçalves Pinto
familiar de procura por práticas populares. Além dessas motivações, Médico Veterinário, Doutor em Patolo-
gia pela UNESP. Docente da UFSCar.
Coordenação do MAPEPS.
Como incluir as
as pessoas percebem maiores benefícios em de saúde, a necessida- práticas populares de
relação aos medicamentos convencionais e de de sensibilizar os saúde na formação
menores reações adversas, assim como refe- profissionais de saúde dos profissionais de
rem o bem-estar geral e a promoção de uma à realidade em que saúde promovidas pelas
boa saúde. Todos esses motivos levam a um estão inseridas as pes-
escolas, universidades,
outro bastante evidente para essas pessoas, soas que atendem. Ou
se bem que pouco considerado: as práticas seja, há uma ética que
cursos técnicos?
populares promovem saúde. Se assim não essas políticas pregam,
fosse, teríamos que rever uma das bases do mas não seguem (ou
conceito ampliado de saúde 1, enquanto ca- seguem de maneira ainda incipiente) uma
pacidade dos indivíduos e da comunidade prática que permita alcançá-la. São poucas
158 de lidar com as adversidades e na melhoria pesquisas que analisam o conhecimento dos
de sua qualidade de vida. Vale ainda dizer profissionais de saúde sobre práticas popu-
que complementar práticas biomédicas com lares, ou mesmo a inserção dessas práticas
práticas populares não é um costume ape- nos currículos dos cursos na área de saúde.
nas das classes populares; além do que, é um Mas aquelas a que temos acesso já são su-
costume bastante tradicional, no sentido de ficientes para nos apontarem um cenário
que isso acontece há muito tempo. preocupante: o conhecimento dessas tera-
Diante desse quadro, descrito no pri- pias se dá pelo senso comum, há pouca ou
meiro parágrafo, podemos concluir que nenhuma discussão sobre elas na sala de
abrir-se para o entendimento desse modo aula, avalia-se as práticas populares tendo-
de enfrentar a doença pode significar uma -se a medicina biomédica como referência,
escuta mais acolhedora pelo (a) profissional algumas “incorporações” de práticas popula-
de saúde e uma atenção à saúde mais inte- res por profissionais de saúde ocorrem após
gral, dialogada com os modos que cada um distorção das referências tradicionais. Por
encontra para construir sua saúde. Mas, pelo outro lado, vemos em alguns contextos que
menos no que se refere à formação profis- estudantes querem e procuram saber mais,
sional em saúde, não é bem assim que acon- que docentes e profissionais aproximam-se
tece, mesmo que constatemos nos vários de práticas populares de saude, como, por
documentos oficiais e políticas brasileiras exemplo, o uso de plantas medicinais.
O início deste projeto de deu em 2005,
1
A saúde é a resultante das condições de alimentação,
quando participantes de uma reunião da
habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho,
transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse ANEPS-SP debatêramos a seguinte ques-
da terra e acesso aos serviços de saúde. Sendo assim, é tão: como incluir as práticas populares de
principalmente resultado das formas de organização saúde na formação dos profissionais de saú-
social, de produção, as quais podem gerar grandes
de promovidas pelas escolas, universidades,
desigualdades nos níveis de vida. (Brasil, VIII
Conferencia Nacional de Saúde, 1986) cursos técnicos? Por razões diversas, essas

Caderno de Educação Popular em Saúde


fotos: Arquivo da pesquisa
práticas são invisíveis nos currículos oficiais cebem a cultura popular e suas práticas de
nos cursos de formação profissional em saú- saúde como algo exótico, folclórico, advindas
de. Podemos levantar alguns motivos para de uma tradição oral e, portanto, sem con-
isso: a cultura erudita2, preponderante nessas seqüências comprovadas na cura. Às vezes,
159
escolas, aliada ao cientificismo3 e à biome- avaliam que são inócuas (funcionando como
dicina4, preponderantes, por sua vez, na for- um “placebo” para pessoas susceptíveis), ou-
mação e atuação profissional em saúde, per- tras vezes avaliam que têm consequências
perniciosas, especialmente afastando os in-
2
Vivemos mergulhados em várias e diversas culturas: divíduos do sistema de saúde e, portanto, do
popular, de massa (especialmente produzida e conhecimento biomédico, prejudicando, as-
divulgada nos meios de comunicação), erudita
sim, o processo “correto” de cura. Além dessa
ou letrada (especialmente produzida, presente e
divulgada nas escolas), entre outras. Essas culturas questão cultural, há também uma questão
circulam entre os grupos. Assim, um estudante de classe, pois como nos alertava Valla, para
de medicina (escola), por exemplo, tomará um muitas pessoas da classe média, os saberes
chá de hortelã (popular) para uma indigestão,
acumulados historicamente entre os pobres
sem ter estudado na universidade sobre ele. Uma
comunidade popular aprenderá sobre ervas num das periferias, dos campos, dos quilombos,
programa de rádio (de massa). Para o propósito neste das florestas, dos rios, etc., advêm de cren-
artigo, estamos enfatizando as relações entre cultura ças e da sua ignorância dos saberes escolares,
letrada presente nas escolas de formação profissional
em saúde e a cultura popular presente nas práticas
baseados nos saberes científicos, biomédicos.
populares de saúde. Mas é importante dizer que há Todos esses fatores juntos, presentes na for-
outras relações em outros espaços, culturas, grupos mação profissional em saúde, têm uma gran-
etc. Esta é apenas uma. de força para construir um muro que coloca
3
Apenas o que é verificável experimentalmente, de um lado os saberes populares e do outro
cientificamente, seja em laboratórios, seja num
os aprendidos na escola, muitas vezes estes
bairro, é válido. Citologia, Anatomia, Fisiologia,
Microbiologia, entre outras áreas de conhecimento, lançando fogo contra aqueles.
são fortes bases para os argumentos cientificistas. Nosso desafio era trazer nossa con-
4
Alguns pilares da biomedicina são, entre outros: o tribuição ao enfraquecimento desse muro,
cientificismo, a supremacia do ser humano sobre a fragilizar argumentos e raciocínios cientifi-
natureza, e portanto, sua separação dela.

Reflexões e vivências
cistas e biomédicos, gradativamente abrindo ção, contra a discriminação, a intolerância,
brechas por onde essas culturas conversas- o racismo, etc. Assim, ao mesmo tempo
sem. E, mais do que isso, construir propostas em que tínhamos clareza da dimensão do
concretas e possíveis de serem implementa- desafio, também sabíamos da historicidade
das a curto, médio e longo prazo, para que em que ele estava embebido. Não estávamos
essa conversa chegasse ao serviço de saúde. sozinhos: os povos originários da América
A análise feita no parágrafo acima, propi- Latina e os povos africanos na Diáspora nos
ciada por autores acadêmicos, críticos ao antecederam e nos acompanhavam; as de-
cientificismo e à biomedicina, bem como mais ações e lutas contra a intolerância es-
autores propositivos da educação popular, tavam conectadas a este trabalho. Essa his-
aliada ao conhecimento popular que nos era toricidade ao mesmo tempo ampliava nossa
160 propiciado através de nossos trabalhos com consciência de mundo, fortalecia nossos
movimentos e práticas populares, nos ajuda- propósitos e aumentava nossas responsabi-
vam a ter uma visão clara da dimensão desse lidades e críticas à metodologia e a todo o
desafio. Um desafio que estava posto há 500 processo que estava por acontecer. Estabe-
anos, pelo menos, para as culturas originá- lecemos, na coerência com o que até aqui
rias da América Latina, onde a colonialida- foi dito, um pressuposto político, teórico e
de5 ainda se mantinha fortemente presente. metodológico vital para o projeto: esta ação
Tínhamos claro que o projeto fazia parte de seria pautada pelo respeito às dinâmicas
um trabalho permanentemente em constru- próprias dessas práticas populares, de quem
as exerce e de quem a elas recorre.
5
A colonialidade advém da colonização de paises Foi nesse contexto e com essa visão
(América Latina, África) pela Europa propiciada por e desafio que iniciamos um projeto piloto
uma necessidade econômica e uma visão de mundo junto à Universidade Federal de São Carlos
que legitimaram a coisificação de nações inteiras.
Esse olhar, essa visão e postura de colonizador se
- UFSCar em 2006, pensado no formato de
mantém ainda hoje. Mas se amplia, não sendo apenas oficinas para profissionais de saúde em for-
um olhar de um país sobre o outro, mas também, de mação. Nessas oficinas, as diversas expressões
uma nação sobre a outra, de uma cultura sobre a das práticas populares de saúde seriam de-
outra, de um grupo sobre o outro. A colonialidade
se expressa, entre outros, na postura de que o mundo batidas e os seus praticantes atuariam como
se divide em seres mais humanos e seres menos facilitadores juntamente com a equipe da
humanos. Tal postura justificaria, por exemplo, UFSCar. Montamos a equipe da UFSCar,
as tutelas opressoras de um grupo sobre o outro, o
com professores(as)/pesquisadores(as) que
desrespeito dos profissionais às práticas populares de
cura, a não inclusão das classes populares no processo compartilham um projeto de atenção à saú-
de planejamento das políticas públicas – a não ser de que dialoga com a cultura popular, e nos
apenas como seu “público –alvo”, a verticalização das deparamos com a seguinte lacuna em nosso
prescrições. Tudo em nome da qualidade de vida que
conhecimento: “quem eram e onde estavam
o grupo de seres mais humanos avalia ser a necessária
para o grupo de seres menos humanos. os praticantes dessas práticas populares de

Caderno de Educação Popular em Saúde


saúde em São Carlos?”. Certamente conhecí- munitários de saúde (ACS) da Estratégia
amos várias, mas de uma forma assistemática, de Saúde da Família na unidade do bairro e
de nosso cotidiano, de nossas experiências com freqüentadores (em sua maioria, mulhe-
de vida. Diante da falta de informação siste- res) do Centro Comunitário. Entrevistamos
matizada em São Carlos sobre tais práticas, mais de 150 moradores e cerca de 20 pessoas
elaboramos em 2006 o projeto de pesquisa e de 4 equipes de Saúde da Família dessas re-
extensão “Mapeamento e Catalogação Inicial giões. Nestes 3 levantamentos, várias práticas
de Experiências de Educação Popular e Saú- foram mencionadas, algumas mais freqüen-
de de São Carlos”, com o objetivo de identi- tes em uma região que em outras. De modo
ficar e localizar as práticas populares e seus geral, as práticas e praticantes mencionados
praticantes. Junto com estudantes da área da foram: benzimento, erveiros e raizeiros, far-
Saúde da UFSCar foram realizados estudos mácia, centros espíritas, massagista, Igreja 161
sobre tais práticas, que sub- Católica, Igrejas Pentecos-
sidiaram os procedimentos tais e Neo-pentecostais, ou-
desse levantamento.
Estabelecemos, na coerência tras igrejas, Centro Espírita,
Com base no levanta- com o que até aqui foi dito, homeopatia, terreiros, mas-
mento, o grupo vem produ- um pressuposto político, sagista, acupuntura, terapia
zindo duas ações: 1) edição teórico e metodológico vital comunitária, catolicismo
de catálogos com as práticas para o projeto: esta ação popular, parteiras.
populares de saúde identi- seria pautada pelo respeito às Na 2a etapa, de levan-
ficadas em cada região ge- tamento de informações e
ográfica do município, 2)
dinâmicas próprias dessas produção do catálogo, os
Curso para profissionais práticas populares, de quem as praticantes são localizados
de saúde formados ou em exerce e de quem a elas recorre. a partir das indicações obti-
formação, que se configura das junto aos entrevistados
como um trabalho coletivo com os (as) prati- na primeira etapa. Quando a indicação pelo
cantes. O projeto, além de trazer à luz infor- entrevistado não é suficiente, recorre-se a
mações detalhadas sobre as práticas populares moradores próximos da localidade aponta-
de saúde de São Carlos, vem ampliar-se em da. Mesmo assim, alguns praticantes não são
ações para a formação profissional em saúde. localizados. Houve também casos em que o
Até o momento, foram feitos levanta- local da prática foi encontrado, no entanto,
mentos em 3 regiões da cidade. Delimita- havia “fechado” ou o (a) praticante havia se
mos as regiões de São Carlos de acordo com mudado. O roteiro para entrevista foi cons-
a divisão feita para o Orçamento Participa- truído com base nas dimensões das raciona-
tivo, que divide a cidade em 13 regiões. lidades médicas, descritas na literatura espe-
Na 1 etapa, de identificação das práti-
a
cialmente pela pesquisadora Madel Luz. Os
cas, realizamos entrevistas com agentes co- (as) praticantes que são localizados e assim

Reflexões e vivências
permitem, são entrevistados(as). Até o mo- apresentação aos profissionais de saúde num
mento, entrevistamos 33 praticantes. formato que favoreça sua compreensão.
O catálogo objetiva mostrar a diversi- O catálogo é construído num período
dade de expressões de práticas populares de de tempo específico. Possivelmente, outras
saúde em que os moradores da região buscam práticas/praticantes serão encontradas/os na
apoio para o enfrentamento das situações de região ou mesmo algumas (ns) das (os) que
adoecimento. São elaborados a partir da sín- constam do catálogo podem não mais existir
tese das informações obtidas nas entrevistas naquela região. Não é nossa pretensão que
com os (as) praticantes. Após essa elabora- o catálogo seja completo ou um guia para a
ção da síntese, ocorre a validação do catálogo localização das práticas populares de saúde.
junto aos (as) praticantes entrevistados(as). Tampouco é nossa pretensão “enquadrar” as
162 Logo após a validação, é feita a impressão práticas dentro das dimensões das raciona-
definitiva e a entrega qualificada. lidades médicas. Nossa intenção é mostrar a
Os catálogos também são produzidos diversidade de práticas populares de saúde
dentro das dimensões das racionalidades presentes usando um referencial de análise
médicas (morfologia, dinâmica vital, diag- que permite uma melhor compreensão pe-
nose, sistema de intervenções terapêuticas e los (as) profissionais de saúde, geralmente
doutrina médica), sendo os conteúdos sub- formados dentro de uma visão biomédica de
metidos à validação pelos (as) praticantes corpo humano e do processo saúde-doença-
entrevistados (as). O texto referente a cada -cura. O catálogo é material didático para o
prática apresentada no catálogo é extraído curso de formação profissional.
de entrevista com o (a) praticante, como já Até o presente momento, foram produ-
apontado acima. Nem sempre, nessas en- zidos três volumes do catálogo, referentes às
trevistas, é possível obter informações pre- regiões mapeadas. No total, foram descritas
cisas e completas de cada uma das dimen- 53 práticas populares de saúde. Os catálogos
sões das racionalidades médicas. Neste caso, estão disponíveis para consulta e download
apresenta-se no catálogo o trecho ou infor- no site www.processoseducativos.ufscar.br
mações obtidas da entrevista que mais se (clicar em “projetos”). O catálogo também é
aproximam da dimensão que se estava bus- oferecido para cada praticante que participou
cando. Assim sendo, não se deve entender de sua composição e para o Centro Comu-
as dimensões apresentadas em cada prática nitário que participou da primeira etapa do
no Catálogo como categorizações dos dados levantamento, em número que avaliarem ser
obtidos nas entrevistas dentro da dimensão necessário. Também é feita divulgação de for-
das racionalidades, mas como elementos da ma qualificada (entrega pessoal por alguém
prática que se aproximam de tais dimensões. da equipe da UFSCar acompanhada por uma
Lembrando que o objetivo do catálogo não conversa sobre os objetivos do catálogo, a ex-
é de categorização das práticas, mas de sua pectativa de seu uso, contatos futuros e outros

Caderno de Educação Popular em Saúde


temas), a escolas de formação (técnica e ou- de modo participativo com a ANEPS-SP,
tras) em saúde, serviços de saúde, nos locais profissionais da Rede de Saúde e de Ação
onde o levantamento foi realizado, Secretaria Social do Município, estudantes dos cursos
Municipal de Saúde, eventos acadêmicos in- de Saúde da UFSCar e praticantes da co-
ternos e externos à UFSCar. munidade. Teve 23 concluintes. Em 2008,
2009, 2010 e 2011 foram 17, 32, 29 e 46
O curso concluintes, respectivamente.
Os cursos têm sido frequentados por
O Curso “Práticas Populares de Saú-
docentes da UFSCar, residentes, professores
de” visa a permitir o conhecimento dessas
de Educação Física, enfermeiros, auxiliares
práticas, para que estudantes e profissionais
de enfermagem, assistentes sociais, psicólo-
ampliem suas visões e suas compreensões de
gos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas,
ser humano e de mundo, complexificando
agentes comunitários, biólogos, dentistas,
e aprimorando suas práticas de cuidado às
psicólogos, nutricionistas, médica veteriná-
pessoas e comunidades, e movimentem-se
ria e também por estudantes (de graduação
em direção ao diálogo com as práticas po-
e pós-graduação) de Enfermagem, Fisiote-
pulares de saúde na sua atuação profissional.
rapia, Terapia Ocupacional, Medicina, Psi-
A primeira oferta, em 2007, caracterizou-se
cologia, Gerontologia, Ciências Sociais, Ci-
como oferta-piloto, sua formatação foi feita

Nossa intenção é mostrar a diversidade de práticas populares de saúde presentes usando um referencial
de análise que permite uma melhor compreensão pelos (as) profissionais de saúde, geralmente formados
dentro de uma visão biomédica de corpo humano e do processo saúde-doença-cura.
fotos: Arquivo da pesquisa

Reflexões e vivências
ências Biológicas e Educação Física. Finalizando
O curso tem 28 horas de duração, di-
O catálogo, juntamente com o curso e
vididas em 14 encontros de 2 horas. Nos
outras ações de divulgação do grupo, auxilia
dois primeiros encontros, apresenta-se o
na divulgação e fortalecimento dessas práticas,
contexto do curso e as referências teóricas e
mostrando que essas pessoas buscam apoio
políticas de seu oferecimento. Apresenta-se
não apenas nos profissionais de saúde das uni-
a Educação Popular e Saúde, os resultados
dades dessa região, mas também nos agentes
do levantamento das práticas populares de
das práticas populares, complementando os
saúde e o referencial teórico das racionali-
sistemas terapêuticos. As pessoas avaliam que
dades médicas. Nos encontros seguintes, são
as práticas populares têm algo que as práticas
apresentadas as práticas populares pelos (as)
do serviço não oferecem e vice-versa.
164 praticantes das regiões onde foi realizado
Trata-se de uma experiência nova, até
o levantamento, dedicando-se um encon-
onde tivemos oportunidade de perceber em
tro para cada praticante, totalizando-se a
nossas revisões bibliográficas, bem como nos
apresentação de 6 práticas. Não é objetivo
eventos que temos participado, pois articula
do curso ensinar a prática, mas apresentar os
levantamento sistematizado de práticas po-
aspectos que o (a) praticante considera que
pulares –referenciadas pela população usuá-
devam ser apresentados e entendidos pelos
ria de tais práticas – com formação profissio-
estudantes. Essas apresentações são inter-
nal, esta realizada com os praticantes e com
caladas com encontros de estudo de textos
auxílio de material (catálogo) com dados
oferecidos pelos (as) praticantes para apro-
organizados a partir da realidade da cidade.
fundamento do estudo e análise das práticas
Assim como as demais ações de Educação
por grupos de alunos. O produto final do
Popular e Saúde, estas ações almejam cons-
curso constitui uma reflexão crítica sobre a
truir uma relação com o Estado capaz de
inserção, ou não, dessas práticas nos serviços
fortalecer a sociedade civil do ponto de vista
onde os participantes atuam. Os grupos de
popular. Além dessa relevância social, des-
estudantes debatem e sugerem como cons-
taque deve ser dado à relevância acadêmica,
truir o diálogo com as práticas populares de
uma vez que permite a profissionais e alunos
saúde nas Unidades de Saúde e nos demais
dos cursos de Saúde o acesso a informações
espaços de atuação. Destaque-se que são
sobre práticas populares de saúde em São
propostas “para si mesmos”, ou seja, ações
Carlos, podendo ampliar suas formações e
que o estudante avalia serem possíveis de re-
visões sobre os processos de adoecimento e
alizar dentro de seu espaços de atuação.
cura, bem como a construção, pelos próprios
profissionais de saúde, de alternativas para
o diálogo com essas práticas nos serviços de
saúde e outros espaços onde atuam.

Caderno de Educação Popular em Saúde


Formação profissional e educação popular a partir de
uma experiência curricular em graduação em enfermagem

Este texto retoma alguns aspectos teórico-metodológicos


que vêm orientando as práticas de Educação Popular e sua re-
lação com a formação profissional em saúde, a partir de uma
experiência de desenvolvimento curricular na formação de en-
fermeiros. Entende-se que a incorporação desses aspectos à for-
mação profissional do enfermeiro potencializa a construção de
experiências inovadoras na formação e contribui para o fortale-
cimento da dimensão pedagógica do trabalho de enfermagem.
Para tal, discutimos aspectos fundamentais do trabalho
de enfermagem, a partir da vivência docente na Faculdade de
Helena Maria S. Leal David
Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro -
Faculdade de Enfermagem da Uni-
ENF/UERJ, cujo projeto pedagógico tem como eixo norteador versidade do Estado do Rio de Ja-
a proposta pedagógica de Paulo Freire, e de nossas trajetórias neiro - UERJ. Membro da Rede
de Educação Popular e Saúde e do
na Rede de Educação Popular e Saúde, espaço de articulação GT Educação Popular e Saúde da
de profissionais de serviços, da academia e representantes dos ABRASCO
movimentos sociais para a troca de saberes e experiências edu- Sonia Acioli
cativas crítico-reflexivas.
Faculdade de Enfermagem da Uni-
Assim, refletimos a interlocução entre os campos da Edu- versidade do Estado do Rio de Ja-
cação Popular, da formação e do trabalho de enfermagem, apon- neiro - UERJ. Membro da Rede
de Educação Popular e Saúde e do
tando para a potencialidade da inserção de aspetos teórico-me- GT Educação Popular e Saúde da
todológicos da Educação Popular nos processos de formação em ABRASCO

Enfermagem, e para a importância de se reconhecer a dimensão


pedagógica do trabalho de enfermagem no seu cotidiano, para
além das tradicionais palestras, grupos e salas de espera.
Educação popular e saúde: trajetória de Fato relevante neste contexto de reor-
um campo de reflexões e práticas ganização das práticas educativas, a Con-
ferência Internacional sobre Cuidados
A Educação Popular possui raízes his- Primários de Saúde, em Alma-Ata, 1978,
tóricas no Brasil ligadas aos movimentos apontou para a necessidade do desenvolvi-
sociais de caráter popular. Floresce, a partir mento de estratégias capazes de dar conta da
da década de 1960, com as organizações de diversidade na oferta de recursos, buscando,
suporte a lutas populares, sobretudo a luta ao mesmo tempo, certa uniformidade con-
camponesa, experiências que coincidiram ceitual e metodológica no desenvolvimento
com as propostas baseadas nos princípios das ações de Saúde Pública, incluindo-se as
da Medicina Comunitária, desenvolvida ações educativas.
166 pelas instituições acadêmicas de formação Algumas análises históricas sobre as
médica. Também a Enfermagem de Saú- práticas educativas em saúde têm sido bas-
de Pública começou a incorporar os novos tante críticas quanto ao processo de “domes-
conceitos e metodologias educativas nesta ticação” das classes subalternas decorrentes
época. da visão higienista e das políticas sanitárias

Caderno de Educação Popular em Saúde


desenvolvimentistas da primeira metade na problematização e na ação comum entre
do século passado (COSTA,1985,p.65; profissionais e população” (STOTZ; DA-
MEHRY,1984,p.17), justificando a perma- VID; WONG UN, 2005, p.51).
nência, entre os profissionais de saúde, de Especificamente em relação à enferma-
um certo “ranço higienista” na sua prática gem, um marco foi a experiência de capaci-
educativa junto às camadas populares. tação de Auxiliares de Enfermagem realiza-
O conceito de participação comuni- da em parceria entre o Ministério da Saúde
tária, exposto no documento do Encontro e a Organização Pan Americana da Saúde
Nacional de Experiências de Educação em (OPAS), que ficou conhecida como Pro-
Saúde, de 1981 (BRASIL, p.9), pretendia jeto Larga Escala. Baseando-se na Teórica
agregar a visão popular sobre os problemas Crítica, o Projeto Larga Escala influenciou,
de saúde, a fim de atender às suas necessi- nos anos seguintes, muitos projetos de ca- 167
dades, quase como uma forma de “corrigir” pacitação, treinamento e reforma curricular
uma visão unilateral dos serviços, que te- da enfermagem (CASTRO; SANTANA;
riam deixado de lado o olhar da população NOGUEIRA, 2002).
ao longo dos anos. Sente-se aqui a influên- A concepção de mundo e do papel so-
cia do pensamento de Paulo Freire, expli- cial da educação na EPS determina que as
citado na necessidade de incluir um olhar ações se baseiem em princípios tais como a
diferente sobre o processo educativo junto busca do diálogo e da escuta do outro; tomar
às classes populares (DAVID, 2002, p.10). como ponto de partida do processo pedagó-
A relação entre a Educação Popular e gico o saber anterior das pessoas, acreditan-
a Saúde passa a se constituir, de modo mais do que todos têm um conhecimento a par-
claro, a partir das lutas sociais pela saúde tir de suas experiências e vivências, de suas
como direito no movimento de Reforma condições concretas de existência; atenção
Sanitária, que trouxe para o debate a neces- e viabilização de momentos de troca de ex-
sidade de superação das distâncias culturais periências e construção de conhecimento
entre população e profissionais de saúde. entre o saber técnico e o saber popular, o
Vale lembrar que as influências histó- que pressupõe que os diversos saberes são
ricas que conformaram a Educação Popu- apenas diferentes, e não hierarquizados e
lar e Saúde (EPS) remontam a contextos que a experiência vale tanto quanto a teoria.
anteriores à experiência de alfabetização A construção compartilhada do conhe-
descrita e sistematizada por Paulo Freire, e cimento é pensada como uma estratégia
incluem influências de ideologias como o metodológica
cristianismo, o humanismo e o socialismo,
(...) que considera a experiência cotidiana
que convergem, tendo como eixo o pensa-
dos atores envolvidos e tem por finalidade
mento de Paulo Freire, “numa pedagogia e
a conquista, pelos indivíduos e grupos po-
concepção de mundo centrada no diálogo,

Círculo de Cultura, em Angicos, em 1963, onde Paulo


Freire coordenou o processo de alfabetização com Reflexões e vivências
base na realidade de trabalhadores e trabalhadoras.
pulares, de maior poder e intervenção nas e desejos da população demandam o de-
relações sociais que interferem na qualida- senvolvimento de uma sensibilidade espe-
de de suas vidas (CARVALHO, ACIOLI cial para com as formas de construção dos
& STOTZ, 2000, p.101). saberes sobre saúde, aí se incluindo as ex-
periências com a arte popular, os projetos
Mais que propor uma metodologia
voltados para lutas na perspectiva de gêne-
educativa, este conceito remete a um ques-
ro e sexualidade, e inclusão de temas como
tionamento sobre o papel da ciência e do
espiritualidade e religiosidade popular, que
conhecimento científico frente às neces-
são eixos importantes no desenvolvimento
sidades e condições desiguais de vida dos
das práticas educativas atuais.
grupos populares, cuja lógica de conheci-
O profissional enfermeiro pode ser
mento do mundo parte do que se conven-
168 considerado um dos sustentáculos do pro-
cionou denominar senso comum. O con-
jeto do SUS, com destaque para sua atua-
ceito dialoga ainda com o pensamento de
ção no campo das práticas, da docência e
Santos (2004), que pressupõe uma ecologia
da pesquisa em Saúde Pública e Saúde Co-
de saberes e de práticas onde a pluralidade
letiva.
de conhecimentos e as interações entre es-
A profissionalização é analisada na
tes são fundamentais para a construção de
perspectiva da constituição de sujeitos pro-
conhecimentos.
fissionais, como coletivo que domina um
Os processos de comunicação e produ-
saber técnico-científico específico, norma-
ção de ideias na Educação Popular e Saúde
lizado, legitimado do ponto de vista social e
se aproximam da composição de “socie-
juridicamente sancionado, definido a priori,
dades em rede”, cujas características são a
com delimitações mais ou menos claras a
fluidez, a mobilidade, a mutabilidade e a
respeito do que o enfermeiro deve e pode
instauração de laços incertos, em renovação
fazer, numa concepção carregada de abs-
permanente (STOTZ; DAVID; WONG
tração e generalização. (ALMEIDA; RO-
UN, 2005). No entanto, se, por um lado, o
CHA,1997, p.17).
estabelecimento de relações em rede amplia
Desde um olhar baseado na concep-
sua capilaridade de ação nos diversos espa-
ção dialética da historia, não se pode des-
ços sociais, por outro, a fragilidade destas
vincular o trabalho das reais e concretas
relações e sua intensa mutabilidade criam
condições de produção e reprodução da
possibilidades de construção de conheci-
existência. Num sentido teleológico, o que
mentos híbridos e de difícil diálogo com os
o trabalhador busca como objetivo já se ex-
saberes hegemônicos já instituídos nas ins-
pressa idealmente em sua imaginação, des-
tituições de saúde ou de ensino.
de o início; mas o resultado final dependerá
Os desdobramentos de se trabalhar
também das condições concretas de produ-
educativamente a partir das necessidades
ção do trabalho (LESSA, 2002, p.97).

Caderno de Educação Popular em Saúde


A dimensão educativa foi sempre enfati- algo a dizer sobre a saúde do outro, discurso
zada no trabalho de enfermagem, a nosso ver, socialmente legitimado pela profissão.
mais que em outras profissões. Mesmo reco- Esta assimetria é internalizada e na-
nhecendo-se o enfermeiro como educador, a turalizada no cotidiano do trabalho de
ação educativa tende a se desenvolver como enfermagem. O enfermeiro nem sempre
uma ação técnica componente ou adicional ao reconhece a responsabilidade e potenciali-
conjunto de práticas profissionais, em lugar de dade pedagógica do seu trabalho. Pode-se
uma dimensão inerente à prática profissional. afirmar que este distanciamento, além de
Com frequência, esta dimensão é referida comprometer a autonomia do trabalhador,
como mais uma responsabilidade ou tarefa do é um elemento capaz de aprofundar ainda
enfermeiro a ser incorporada ao processo de mais a assimetria na relação com os usuá-
trabalho e tende a reproduzir a racionalidade rios. Além disso, é marcante a influencia da 169
biomédica hegemônica (ALMEIDA; RO- lógica taylorista na organização do traba-
CHA,1997, p. 21). lho de enfermagem, sendo que esta lógica
A marca do trabalho de saúde é a relação se estende às ações educativas, dificultando
entre sujeitos - profissionais a superação da alienação
e usuários - dos serviços. no trabalho (RIBEIRO;
Mehry (2005, p. 45) situa-
Uma concepção ampliada de PIRES; BLANK, 2007, p.
-o como produção em ato, educação como mediação social 439).
retomando a categoria mar- devolve às práticas educativas seu Uma concepção am-
xista de trabalho vivo. No sentido histórico. pliada de educação como
trabalho de enfermagem, a mediação social devolve às
ação que o produz e o produto final não se práticas educativas seu sentido histórico.
separam (RIBEIRO; PIRES; BLANK,2007, Esta ressignificação é o que, por sua vez,
p. 438). O espaço do cuidado é este espaço de permite aos sujeitos reconhecerem o coti-
intersecção, de produção de intersubjetivida- diano como espaço de mediação possível
de, onde o trabalho vivo se dá, e a dimensão entre o individual-particular e o genérico-
educativa permeia este espaço, não se cons- -histórico (HELLER, 1991, p.37). Neste
tituindo em dimensão adicional ou externa a sentido, é ferramenta que amplia a autono-
ele. A assimetria na relação entre profissionais mia dos profissionais de saúde como, em
e usuários é uma das preocupações ressaltadas cada relação com o usuário.
pela EPS (VASCONCELOS,1998, p.40; Acioli (2001, 2003) debate o conceito
DAVID, 2001, p. 102). Questiona-se o fato de prática relacionando-o ao de práxis, de
de que, nesta relação, é o profissional de saú- modo a facilitar o seu uso como ferramenta
de quem pauta, coordena e controla a relação para a reflexão. De especial interesse para
pedagógica. Na relação com o paciente ou a a presente discussão, o conceito de práxis
coletividade, o enfermeiro é aquele que tem é entendido como dimensão que engloba

Reflexões e vivências
tanto a ação objetiva do homem quanto desenvolvimento de ações educativas como
suas produções subjetivas, articulando ações atividade ou procedimento específico, e sim
e intenções, como superação da alienação. de reconhecer o potencial pedagógico do
No sentido proposto por Bourdieu trabalho de enfermagem como um todo.
(1983), as práticas e suas representações são Nesta perspectiva, retoma-se uma con-
estruturadas a partir do habitus. As práticas cepção integradora a respeito do trabalho
são, ainda, fruto de uma série de condições como prática social.
relacionadas ao contexto social, político,
econômico, e a aspectos da ordem do dese- Aprendizado a partir de uma
jo e da conveniência dos grupos envolvidos. experiencia curricular que busca
Enquanto produto de uma relação dialéti- incorporar a educação popular e saúde
170 ca, a prática é expressão da relação entre as
Ressaltada a dimensão pedagógica no
condições sociais de produção do habitus
trabalho da enfermagem, apresentamos as
e as condições do exercício desse habitus
linhas orientadoras de uma experiência pe-
(BOURDIEU, 1983, p.65).
dagógica de formação profissional, desen-
Consideramos a EPS como campo de
volvida na Faculdade de Enfermagem da
idéias relevantes para o fazer da Enferma-
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
gem, uma vez que a ação pedagógica crítica
(ENF/ UERJ), para destacar algumas ques-
permite ao trabalhador, ao mesmo tempo
tões sobre a relação entre EPS e a forma-
em que se torna mais sensível ao sofrimento
ção do enfermeiro. O processo de mudança
do outro, avançar numa análise mais apro-
curricular na ENF/UERJ iniciou-se a partir
fundada sobre as relações entre condições e
da percepção do corpo docente e discente
modos de viver e a produção da saúde, para
acerca da necessidade de preparar profissio-
além dos processos biológicos imediatos. Ao
nais cuja atuação pudesse estar mais voltada
buscar uma prática educadora transforma-
para os fatores que conformam a realidade
dora, o enfermeiro transforma-se, ao mesmo
do nosso país, ou seja, um enfermeiro que
tempo, como trabalhador, pela ampliação de
pudesse articular dinamicamente ensino,
sua consciência crítica sobre seu próprio
trabalho, comunidade, teoria e prática (Fa-
processo de trabalho e como educador. Esta
culdade de Enfermagem – UERJ, 2005).
subjetivação do trabalho permite-lhe ressig-
Essa percepção traduziu-se em vontade
nificar sua prática, para além das normas e
política de mudança a qual se articulou ao
rotinas impostas pelo trabalho prescrito.
movimento nacional de reforma curricular
Defendemos, aqui, que a dimensão
que culminou com a elaboração do novo
educativa possa ser reconhecida como prá-
Currículo Mínimo para Formação do En-
xis e como atitude educativa, uma respon-
fermeiro, publicado na Portaria MEC/1721
sabilidade inerente ao processo de trabalho
de 16/12/94.
de enfermagem. Não se trata de propor o

Caderno de Educação Popular em Saúde


No âmbito da Fa-

foto: Ministério da Saúde


culdade de Enfermagem,
acordou-se como prin-
cípio que as propostas
deveriam estar pautadas
nas diretrizes da organi-
zação do Sistema Único
de Saúde, e na defesa da
cidadania da população
brasileira. Em dezem-
bro de 1994 a Faculdade
optou por uma reforma 171
curricular que rompeu
radicalmente com o mo-
delo anterior, dando en- Não se trata de propor o desenvolvimento de ações educativas
tão origem ao currículo como atividade ou procedimento específico, e sim de reconhecer o
integrado. Mudou-se o potencial pedagógico do trabalho de enfermagem como um todo.
paradigma pedagógi-
co, adotando-se a Teoria suas bases teórico-metodológicas. O desen-
Crítica da Educação como referencial, e in- volvimento de ações extensionistas junto a
cluindo metodologias pedagógicas na linha grupos sociais populares em determinadas
da problematização. Ainda que no Projeto localidades no município do Rio de Janeiro
Político Pedagógico não esteja explicitada a tem sido uma experiência importante para
aproximação com a Educação Popular, este aproximar docentes/estudantes/profissio-
se aproxima, em termos conceituais e práti- nais de saúde dos vários contextos sociais,
cos, desta perspectiva. culturais e econômicos existentes, facilitan-
Transforma-se a reflexão acerca do eixo do a possibilidade de diálogo e a troca de
condutor da compreensão sobre o processo saberes na perspectiva da educação popular.
saúde-doença, partindo agora da compre- Os projetos rompem com o antigo pa-
ensão do próprio adoecimento enquanto radigma assistencialista associado à prática
um processo de complexas determinações extensionista, desenvolvendo-se de modo
sociais, econômicas, políticas e biológicas, articulado ao ensino, como mediação entre
estreitamente relacionadas com a qualidade instancias produtoras de saberes sobre saú-
de vida das populações. de, ressaltando a dimensão pedagógica crí-
Entendemos, ainda, que o currículo tica da prática profissional e alertando para
também é composto por vivências e pro- o fato de que a produção de conhecimentos
jetos que direta e indiretamente reforçam

Reflexões e vivências
pode se dar de modo compartilhado e inte- tiva-se em um dos cenários de prática, con-
grado à dinâmica de vida das comunidades. solidar algumas competências básicas para
Busca-se desenvolver a proposta de in- a atuação em enfermagem de saúde públi-
tegrar as áreas de conhecimento em todos ca, por meio da atuação supervisionada em
os períodos acadêmicos que compõem a comunidades, na perspectiva de integração
formação do enfermeiro, buscando privile- dos saberes e habilidades, progressivamente
giar a experiência do aluno para a sistema- construídos nos períodos anteriores.
tização do conhecimento. Assim, ao mesmo tempo em que é ca-
Nas aulas teórico-práticas, por meio da paz de prestar cuidados e orientações bá-
problematização, privilegia-se a experiência sicas a uma gestante por ocasião da visita
do aluno para a sistematização do conhe- domiciliar, o estudante é também capaz de
172 cimento e teorização. Como um exemplo, identificar o perfil epidemiológico da co-
podemos citar o desenvolvimento das aulas munidade onde esta reside, estabelecendo
sobre políticas de saúde, a relação entre os níveis
nas quais se incorpora Acreditamos que a partir desses dos determinantes e con-
a vivência do estudante “pequenos movimentos” que dicionantes das situações
sobre o que significa ser ocorrem no ambiente pedagógico de saúde e os modos de
atendido no serviço pú- viver das pessoas da co-
blico de saúde, criando
podemos alimentar “grandes munidade.
uma atividade que impli- movimentos” que resultem na Acreditamos que
ca em buscar algum aten- ampliação da competência técnica, a partir desses “peque-
dimento na rede, recupe- da consciência crítica e, da nos movimentos” que
rando, posteriormente, autonomia do futuro profissional. ocorrem no ambiente
por meio da sistematiza- pedagógico podemos
ção, uma vivencia concre- alimentar “grandes mo-
ta de sentidos, observações e reflexões críti- vimentos” que resultem na ampliação da
cas sobre o Sistema Único de Saúde, seus competência técnica, da consciência críti-
princípios e problemas a serem superados. ca e, da autonomia do futuro profissional.
A utilização da problematização como Espera-se formar um profissional que, par-
método pedagógico é também um recurso tindo das diversas situações de realidade en-
para o ensino de epidemiologia e de conte- contradas, esteja apto a identificar e intervir
údos da saúde pública, já que várias ativida- sobre determinantes, riscos e danos a saúde,
des de ensino são realizadas através de aulas de acordo com as competências definidas
teórico-práticas, desde o ingresso na gradu- para o profissional enfermeiro.
ação. Nos últimos períodos do curso de gra- Considerações finais
duação – denominado internato - onde se
Como enfermeiras envolvidas na forma-
dá a vivencia do mundo do trabalho, obje-

Caderno de Educação Popular em Saúde


ção profissional em saúde parece-nos funda- alunos de graduação, especialização, mestrado
mental dar vida ao ensino, fazer com que os e bolsistas de extensão. Também nos encon-
momentos de aprender e de ensinar tenham tros e seminários da ANEPS-RJ procuramos
alegria e sentido, que incluam todos os su- estimular a participação discente, entendendo
jeitos envolvidos nos processos de ensino- estes espaços de interlocução como elementos
-aprendizagem na perspectiva de construção potencializadores não apenas das lutas pela
de formas de um conhecimento sensível. conquista da saúde, mas também da atuação
Uma construção coletiva não é uma de enfermeiros comprometidos com um pro-
tarefa fácil. Há que se exercitar tolerância, jeto coletivo de saúde.
profissionalismo, capacidade para tomar Nós, enfermeiros envolvidos com a
decisões, objetividade, e principalmente co- EPS, estamos mudando, e fazer esta mu-
ragem para mudar - mudar como professor- dança dentro dos espaços acadêmicos tem 173
-enfermeiro, mudar como pessoa. sido uma experiência ao mesmo tempo di-
Nossas atividades no campo da EPS têm fícil e gratificante. Este tem sido um pro-
trazido importantes lições para nossa atuação cesso repleto de contradições e um campo
docente. Torna-se muito claro que os proces- de embates políticos, mas também de es-
sos de aprendizagem acontecem na vida e não treitamento de laços entre a academia, co-
apenas dentro dos currículos e das instituições munidades e movimentos sociais. Espera-
formais. Neste sentido, a EPS, por meio dos mos com esta discussão contribuir para os
princípios do diálogo, do respeito à diversida- debates sobre a formação e o trabalho de
de e da valorização de sujeitos coletivos nos enfermagem, na perspectiva de uma prática
permite avançar numa formação profissional profissional comprometida com um projeto
voltada para a construção cotidiana do projeto social mais amplo de mudança.
de saúde do SUS.
Há que se reconhecer os limites que qual- Referências
quer estrutura curricular impõe ao aprendiza-
ACIOLI, S. Os sentidos das práticas voltadas
do, estimulando o desenvolvimento de outras
para a saúde e doença: maneiras de fazer de
vivências, em articulação com as organizações
grupos da sociedade civil. In: PINHEIRO,
comunitárias e movimentos sociais da área da
R; MATTOS RA, (orgs). Os sentidos da
saúde. A presença de pessoas da Rede de Edu-
integralidade na atenção e no cuidado à saú-
cação Popular e Saúde e, mais recentemente, a
de. Rio de Janeiro, UERJ/ IMS/ABRAS-
estruturação da Articulação Nacional de Mo-
CO,2001.
vimentos e Práticas de Educação Popular e
ACIOLI, S. Novos olhares sobre a saúde: sen-
Saúde (ANEPS), têm atuado como elemen-
tidos e práticas populares. 2003. 147 f. Tese
tos impulsionadores de novas vivências, tendo
(Doutorado em Saúde Coletiva) – Instituto
algumas delas, ocorrido em parceira com a
de Medicina Social, Universidade do Estado
ENF/UERJ, contando com a participação de

Reflexões e vivências
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003. cadores de saúde pública. Série Educação e
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histórica. In:MINISTERIO DA SAUDE.
Saúde – perspectivas de atuação dos edu-

Caderno de Educação Popular em Saúde


Outras palavras
Fontes nas quais todos e todas nós bebemos e
continuaremos bebendo a cada momento novo do nosso
aprendizado, das nossas descobertas. Fragmentos poéticos,
melodias, escritos traçados com leveza e criatividade.
Outras palavras, outras maneiras de dizer o que a teoria
científica procura fundamentar, talvez um tanto distraídas
e mais encantadoras. Apenas, outras palavras...
Aprendendo - e ajudando - a olhar o mar:
das muitas saúdes, culturas e artes na educação popular

“Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovakloff, levou-o


para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do
outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enf im
alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar
estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu
fulgor, que o menino f icou mudo de beleza. E quando f inalmente con-
seguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - Me ajuda a olhar!”
Eduardo Galeano, em “O livro dos abraços”

A sensação mais salutar de mundo, posso afirmar, é a vivência


espantada do infinito. A percepção profunda de que ele é algo que
não acaba, e que estamos mergulhados nele - como esse mar visto Julio Alberto Wong-Un
pela primeira vez que deixou o menino mudo de beleza. Mas o co- Universidade Federal Fluminense -
Instituto de Saúde da Comunidade
tidiano contemporâneo, bombardeado de imagens, textos e sinais, a - Departamento de Saúde e Socie-
cada segundo das nossas vidas, tende a nos anestesiar - ao banalizar dade - Grupo Temático de Educação
Popular da ABRASCO.
e simplificar tudo; ao transformar o singular e precioso em produto
de consumo e de produção em série. Tudo igual. Tudo rápido, dige-
rido e descartável.
Está ali uma luta valiosa e fundamental para a pessoa humana:
resistir, recuperar e fazer florescer essa qualidade delicada e sensível
que é a busca fundamental pelo “Ser Mais”, de que falava Paulo
Freire; de ir Além de Nós Mesmos - a transcendência, mencionada
por Leonardo Boff e outros; ou, ainda, de tentar manter o olhar de
principiante de que nos falavam os budistas Zen. E para isso neces-
sitamos urgentemente ficar mais vezes “mudos de beleza”; sozinhos,
e com Outros que nos “ajudem a olhar”. E aqui vai uma afirmação
inicial: assim como na educação, e assim como na saúde, na arte e
no trabalho cultural os processos fundamentais são feitos de manei-
ra compartilhada, em diálogo profundo, em contraponto criativo.
Somos com os Outros. O artista, por mais temente único e monolítico, tem produzido
que teime, nunca é um solitário isolado; ele cismas entre as diversas dimensões da ex-
foi feito de Outros e com Outros. periência humana. E, como consequência,
O poema, a peça de teatro, o conto, a um ordenamento social e simbólico: aquilo
canção, o boneco de argila, a renda, a dança que é mais próximo ao exato, das equações
leve, a pintura intensa, a acrobacia de cir- e cálculos, e da produção tecnológica é mais
co, a massagem, a carícia que cuida... tudo valorizado e beneficia-se de mais recursos e
absolutamente, na Arte, se faz em dança bens materiais. No senso comum, a Ciên-
socializada. Seja o “popular”; seja o “eru- cia representa hoje a Verdade. E as outras
dito” - assim, com grandes aspas. Na alma dimensões - como a arte, a espiritualidade,
criativa do artista faz-se a alquimia de todas a intuição, o desejo, os indícios, ou as con-
180 as culturas. Sem planejar diretamente, sem versas de improvisação - foram ficando às
calcular, sem saber ao certo no que vai dar. margens dessa hierarquia de saberes “legí-
Mas sempre enraizado na voz de Todos. Há timos”.
um canal misterioso, que ciência e reflexão É minha proposta contrária, e a
teórica explicam muito pouco, entre a obra de muitos outros autores, críticos desse
singular dos artistas e as ricas dinâmicas vi- Projeto de Modernidade e de Mundo, que
vas de uma cultura - feita de muitas e mui- essas dimensões nunca deveriam ter sido
tas vontades, desejos, matérias, percursos, separadas. E que elas acontecem sempre de
caminhos, construções, etc. forma articulada e interpenetrada, como o
Porém, voltando à questão inicial sobre sugerem inúmeras metáforas de sabedoria e
o Infinito: já faz quatro séculos que a Ci- filosofia antigas. O que Ciência ou Religião
ência - pelo menos a parte mais poderosa pretendem separar, rasgar ou escindir o co-
dela - vai nos dizendo que tudo pode ser tidiano e a produção da vida das pessoas
compreendido, tudo pode, potencialmente, tende a juntar e misturar.
ser delimitado, analisado e entendido pelas Antes da Ciência Moderna, e ao longo
suas partes. O mundo seria um imenso e de muitos séculos, foi a religião institucio-
complicado quebra-cabeças que poderá um nalizada, sob a forma das grandes Igrejas -
dia ser completamente catalogado, negando em especial a do Vaticano - que se colocava
o infinito. O Mistério só existirá enquanto como a única verdade, de maneira talvez
houver resquícios de ignorância. Existiriam mais direta e violenta, mas igualmente to-
Leis Naturais Universais, mensuráveis. A talitária. O sonho universal da ciência de
História teria um “motor” que levaria, ne- certa maneira é herdeiro da religião, embora
cessariamente, a um único Destino Social, tenha sido a resistência a essa um dos seus
a uma ordem inevitável. Esse sonho, bonito, principais motores. Tanto na Igreja como
mas tolo, que até hoje faz parte de um pro- na Ciência, os saberes e culturas “comuns”
jeto ideológico de Ordem Mundial, aparen- ou “populares”, são ignorados ou despreza-

Caderno de Educação Popular em Saúde


dos como coisas de ignorantes que devem os excluídos, os oprimidos, os mais pobres.
ser superadas. Assim, os dois são projetos Esses autores, como E.P. Thompson, Josué
históricos para englobar toda a experiência de Castro, Milton Santos, Peter Burke, José
humana - mas excluindo o “povo ignoran- de Souza Martins, Mikhail Bakhtin, Antô-
te”, o estranho, aquilo que foge às frontei- nio Gramsci, Rosa Luxemburgo, Edward
ras “abissais” na definição de Boaventura de Said, Carlo Ginzburg, Noam Chomsky,
Sousa Santos. Aquele saber feito de expe- Boaventura Santos, dentre outros, permi-
riência, e feito da tradição e da cultura de tem hoje uma aproximação mais cuidadosa
um grupo: “saber de experiência feito”, dizia e respeitadora às chamadas culturas popu-
Paulo Freire. lares, com suas criações, formas culturais
Mas todo projeto Total (que ambiciona próprias, dinâmicas de relação com outras
abarcar e explicar o Mundo) vai gerar his- culturas e lógicas de pensamento e ação, de 181
toricamente dissidências e rupturas. E, me- prática e reflexão, diferenciadas das produ-
lhor ainda, irá produzir novas criatividades, ções dos outros grupos.
e percepções do que é e do que pode ser. É a partir da leitura desses e
Uma ordem férrea sempre outros autores; mas,
é correspondida com de- O que Ciência ou Religião principalmente a partir
sordens criativas. E duran- pretendem separar, rasgar da experiência de
te muitos anos, séculos até, ou escindir o cotidiano e a espanto, aprendizado,
a Ciência definiu o que era compartilhamento, e
permitido como Verdade.
produção da vida das pessoas criação junto aos artistas,
Isso foi mudando, especial- tende a juntar e misturar. esses seres extraordinários e
mente ao longo do século comuns, que dialogaremos
XX. Surgiram propostas novas, alternativas, nestas páginas.
algumas solidárias e situadas, que aos pou- Privilégio aqui a experiência porque
cos foram se fortalecendo - sem chegar a o viver cotidiano das pessoas, organizadas
ser hegemônicas ou predominantes. Bons em grupos sociais e culturais, é um viver
exemplos são a Física Quântica, as Ciências imbuído das lógicas da prática. Uma das
da Religião, a Micro História, a Biologia do características dessas lógicas é a pluralida-
Conhecimento, os estudos sobre outras Ra- de, além de certas formas de pragmatismo.
cionalidades Médicas e Terapêuticas, o es- As pessoas vão, contextualmente, aceitando
tudo dos Mitos de Joseph Campbell, e tam- ou rejeitando propostas e ofertas de “verda-
bém a Pedagogia Crítica de Paulo Freire. de”, “bom” e “melhor”. Permanentemente,
Vale lembrar que, fato fundamental mesmo que muitos não percebam, pesso-
para nossa reflexão, Paulo Freire, e outros, as comuns e grupos estão sempre criando,
construíram o pensamento crítico ao longo questionando e inventando. Tudo o que é
do século XX, posicionado e solidário com ofertado é filtrado, digerido, refeito, e re-

Outras palavras
-interpretado como nos ensinam autores etc.), incluindo muitos dos autores acima
como Victor Valla, Carlo Ginzburg e José mencionados, dialogam muito bem com
de Souza Martins. Acontece assim também a Educação Popular; e esses diálogos de-
com as Dimensões Invisíveis da experiência veriam ser aprofundados. Ainda, limitar a
social - como a espiritualidade, a religião, a Educação Popular em Saúde a um “popu-
arte, as emoções, e a intuição, dentre outras lar” rígido, e “oficializado”, contraria a ideia,
formas tênues ou invisíveis de produção so- uma das bases dessa proposta, que os gru-
cial. pos populares têm as habilidades e conhe-
Neste texto abordarei alguns aspectos cimentos necessários para a incorporação
da complexa dinâmica pessoal e social que crítica - na lógica própria e particular des-
acontece entre: as muitas formas de arte; as sas culturas - de saberes diferentes. Muitos
182 culturas onde essas são criadas e que deter- estudos mostram como, no mundo atual,
minam suas formas e significados; e o am- as culturas dialogam, entram em embate e
plíssimo mundo da saúde - rico em facetas, acordo, e se misturam em mestiçagens e hi-
nuanças e singularidades, mas também cul- bridações.
turalmente definido e ligado fortemente às Estas reflexões iniciais são importantes
estruturas sociais. para entrarmos agora nas relações entre cul-
O fato desta reflexão fazer parte do turas, artes e saúdes - todas elas em plural,
mundo da Educação Popular em Saúde não porque assim, de fato é o mundo: diverso,
nega essa complexidade. Considero redu- multiforme, cheio de detalhes sutis, e - qua-
cionismo pensar que a Educação Popular se sempre - novos, inesperados. A criação
esteja limitada ao que se considera “Popular” - parte central da arte - é assim.
- sendo que essa consideração ou definição, É verdade que não iremos cobrir todas
ela própria, está marcada pelas condições de as possibilidades. A visão e a discussão
sua produção conceitual e simbólica e de- iniciadas aqui sobre o Infinito, o Diverso,
pende de “quem” define, e como é “usada” o Singular e o Próprio servem de boa
essa definição. Pelo contrário, assim como justificativa para a parcialidade. Mas na
a Educação Popular é uma forma rica de parte também podemos intuir o Todo.
Ação Cultural para valorizar e impulsionar
as criatividades periféricas - artes, práticas, A arte como as mil faces de Brahma:
saberes e sabedorias - ela também é um
Brahma, uma das principais deidades
projeto de compreensão e leitura profundas
da religião védica - na Índia e em países
do Mundo, onde diversos saberes e formas
próximos, é representado quase sempre
culturais podem ser apreendidos, pensados
como tendo quatro cabeças. Em cada cabe-
e misturados. Muitas propostas reflexivas e
ça vários rostos. O que a pedra tenta sugerir
de ação, vindas dos mais diversos campos
é o que os mitos contam: Brahma, criador
(como ciências humanas, sociais, literatura,

Caderno de Educação Popular em Saúde


do universo, teria mais de mil faces. Elas se am o mundo com sabedorias intuitivas, com
manifestariam dependendo da natureza do formas diferentes de amar e dançar com este
observador. Para cada observador Brahma e outros mundos. Artes e saúdes são formas
mostrava uma variante das mil faces - ou amorosas da cultura. Duas formas expulsas
das suas combinações. Nunca, ninguém, do jardim dos Saberes Autorizados: a arte
conseguia definir com certeza como era o foi relegada à forma de divertimento e de
rosto dele. Assim as Artes. São infinitas. desviar a atenção das massas; e a Saúde fi-
As Artes nos acompanham desde o co- cou invisível porque somente se elaboraram
meço da Humanidade. Talvez antes, desde saberes e discursos sobre a Doença.
nosso ser Animal, membros da imensa co- Qualquer arte tem origem social e tem
munidade dos bichos, das árvores, das águas. efeitos sociais e culturais que os próprios
Mas elas sempre surgiram: intensas, colo- artistas ou artesãos - e colocamos aqui os 183
ridas, sonoras; ou silen- dois no mesmo nível -
ciosas e contemplativas. não imaginam. Efeitos,
Luxuosas, dionisíacas; ou Duas formas expulsas do jardim alguns, de muito fôlego e
simples, cotidianas, hu- longo prazo.
mildes. Todas as formas
dos Saberes Autorizados: a
Muitos grupos, or-
de arte, todos os rostos de
arte foi relegada à forma de ganizações e movimentos
Brahma. divertimento e de desviar a criam formas de arte que
Diante de um mun- atenção das massas; e a Saúde fazem parte da própria
do cada vez maior - so- ficou invisível porque somente se identidade coletiva, dos
mente nos últimos 150 elaboraram saberes e discursos símbolos de unidade ou
anos que o mundo come- de uma tradição de co-
çou a se apequenar - as
sobre a Doença. munidade. Formas pró-
pessoas, em diálogo, e em prias, mas que bebem das
criação singular, fomos criando e criando. culturas - locais e globais. Criações pessoais
Arte como saber do mundo, arte como in- de artistas - todo e qualquer tipo de artista,
terpretação do muito que vivemos, como criador de qualquer forma de expressão -
tradução das emoções e paixões. Arte como são abraçadas e modificadas amorosamente
representação do Divino, ou como pre- pelos coletivos. Muitas vezes o artista custa
sente e prece para esse Divino. Arte como a reconhecer aquilo que semeou, sob a for-
transgressão e celebração do proibido. Arte ma de obra de arte.
como forma de amar - aliás, arte amorosa Mas aqui, nesta parte da reflexão vale a
dos corpos belos; belos porque se amando. pena abordar duas questões centrais à Arte
E Arte como forma de cuidado, cura, saúde. e às suas construções: a criação e a experi-
A Arte como Saúde. ência poética.
As Artes proliferam, florescem, povo- A pessoa humana é criadora. Mesmo

Outras palavras
presa em redes de exploração e alienação, sistemas de valores e hierarquias predomi-
incitada a ser um autômato consumista, nantes descartaram e exilaram rapidamente
cria. E criar é transformar, questionar, rever, do desejável e que traz “sucesso”; por fora
pensar de outra forma, quebrar a forma co- das linhas do reconhecido como saber. Di-
mum de ver as coisas. Criar também é uma zer, como Freire, que todos podemos criar, é
forma de ser mais, de ir além de nós mes- afirmação perigosa, que questiona uma das
mos, de mergulhar em realidades delicadas bases da ordem excludente: que alguns pen-
e pouco conhecidas - o mar do desconhe- sam, alguns criam e outros só obedecem,
cido. A criação é a invenção de mundos, a produzem manualmente, e consumem.
criação de planetas e galáxias. Descobrir-se criador. Potencializar
Todas as formas de criação são possí- essa dimensão do Humano, e descobrir que
184 veis e válidas - da arte humilde da dona de a criação é ato político que também pode
casa que se distrai, do artesão que luta pelo transformar o mundo é tarefa fundamental
sustento diário, do poeta emocionado nas da Educação. Segundo os pensadores da
horas vagas; até os que vão incorporando linha crítica - que a educação popular em
essa atividade criadora como algo que toma saúde abraça - ler o mundo, problematizan-
quase todo o seu dia: artistas profissionais. do-o, indo do saber ingênuo ao crítico, é um
Mas a essência humana da criação é com- objetivo estratégico da Educação Transfor-
partilhada por todos eles. madora.
As expressões de arte - que não deixam Mas isso não resolve nem contempla
de nos surpreender - são, talvez, mais di- totalmente a questão da criação na arte.
versas ainda do que os processos de criação. Para tentar uma compreensão dela se faz
Elas respondem ao momento histórico, à necessária uma procura de várias dimen-
personalidade do artista, às suas relações sões. E mesmo assim, escorregamos. A Ra-
sociais, etc. Cada produto é único no tempo zão tem seus limites nesse mundo. Muito
e no espaço. E, mais ainda, por exemplo, um além dessa razão, chamada instrumental, a
bonequinho delicado do Alto do Moura em arte é feita de forças e fluxos como a intui-
Caruaru, feito anos atrás, pelo mesmo ar- ção, a sensibilidade, as emoções, a contem-
tista, será diferente de outro feito hoje. Ar- plação extasiada da Beleza do mundo e das
tistas e suas obras são seres vivos. Mudam, pessoas, a experiência direta do Mundo e da
crescem, avançam e voltam, aperfeiçoam ou matéria. Ela convive, necessariamente, com
partem para outros caminhos de beleza e a experiência poética.
estética. Experimentar poeticamente qualquer
A criação, ato sagrado dentro da carne coisa a transforma. Uma forma de olhar,
e do espírito humanos, tem uma dimensão sentir, viver... a experiência poética do mun-
política profunda - recuperar o inútil, os do é fundamental a qualquer arte. De novo,
trastes de Manoel de Barros, aquilo que os há formas muito diversas de viver poetica-

Caderno de Educação Popular em Saúde


mente. Existem muitos e muitos caminhos. mais sutis.
Na Educação Popular, aparentemente, pri- É verdade que os grandes poetas
vilegiamos os caminhos “populares” - aque- tiveram a alegria de ir além de todos nós.
les que se fazem em diálogo amoroso e crí- Beber do povo e criar universos pessoais,
tico com e desde os grupos populares, com como Guimarães Rosa. Criar linguagens
as culturas chamadas “do povo”. Só na apa- ousadas é também inventar mundos.
rência. Em nosso mundo global os grupos e Grandes poetas e artistas são inspirações,
pessoas que consideramos atrasados, limi- guias, exemplos de produção de emoção e
tados a produzir culturas também “limita- beleza. Nos espelhamos neles, são nossos
das” sempre nos surpreendem. Camponeses horizontes. Vivemos praticando para che-
escutando Mozart. Índios procurando so- gar a um certo patamar desejado. A experi-
bre arte barroca na internet. Crianças ensi- ência poética deles ressoa em todos. 185
nando seus pais. Tribos “isoladas” que estão Todavia, vale colocar aqui uma forma
mais “antenadas” do que muitos moradores especial de experiência poética do mundo.
de classe média das áreas urbanas. É aquela que se vive desde os mundos da
Então, essa experiência do poético saúde. E, radicalizando, é a experiência de
contido no mundo, nos vários mundos que quem faz da sua vida na saúde uma obra
conhecemos, tem, ao mesmo tempo: coisas ou processo de Arte. Eu com o Mundo,
singulares para cada lugar, cultura ou artis- em dança criativa, criando arte no meu co-
ta; e coisas comuns. Para nossa conversa é tidiano, na minha vivência em serviços de
valioso falar dessas coisas em comum. saúde e ou comunidades. Nós, os seres da
O poeta e prêmio Nobel de Literatura saúde, como seres poéticos. Uma possibili-
Octavio Paz nos mostra que essa experiência dade; uma escolha; um trabalho paciente de
é a vivência da Outredade. Esse outro mun- transformação do ordinário em beleza. A
do, diz, contido no nosso, mas que também alquimia do cuidado.
vai muito além, abrindo novas passagens. A Até aqui falamos da arte. Desse rosto
experiência intensa da Beleza, do Terrível, infinito do Brahma, o criador dos universos,
do Imenso, do Infinito. De novo o infinito. fonte de todas as sabedorias. E afirmamos
E é na poesia, na criação poética que, diz que existem muitos trabalhando na saúde
Paz, se condensa como grande exemplo do que fazem do próprio viver uma arte, uma
encontro do Ser do Artista com o mun- Beleza, uma Ternura Emocionada.
do diferente contido no mundo cotidiano. A educação crítica sempre acolheu a
Toda a beleza está contida no corriqueiro. A dimensão da arte. Mesmo quando a colo-
arte é uma forma de olhar. De certa maneira cava por baixo, como diversão, como distra-
é uma clarividência. Mas, acima de tudo, é ção, esperando que elas - as formas de arte
uma prática regular de treinar os sentidos - acabassem para falar das coisas “sérias”, a
- não somente os cinco usuais, mas outros, educação popular sempre respeitou o mun-

Outras palavras
do nebuloso e difuso das Artes. Talvez fosse a diferença. O livro todo que você, leitora
uma intuição a contramão que sussurrava o ou leitor, tem nas mãos aborda muitas das
valor desse mundo menos racional, mais in- facetas da Educação Popular em Saúde.
tuitivo, difícil de esmiuçar e controlar. Aqui, seguindo nossa linha de reflexão,
e pensando na deusa das águas doces, vou
Dos rios e cachoeiras de Oxum na salientar a sensibilidade e a alegria na edu-
educação popular em saúde: cação em saúde.
A partir do saber e do olhar do Outro
Na mitologia Yoruba, Oxum é a deu-
- sem excluir nem desprezar nosso próprio
sa graciosa da sensibilidade. Fecunda, ama
saber e olhar de profissionais e cidadãos - a
acima de tudo seus filhos, enxergando so-
Educação Popular se envolve em processos
mente o brilho deles. Orixá das cachoeiras
186 e mananciais, ela flui, é transparente e espu-
de delicadeza sensível, favorecendo a troca
e as emoções “boas” - quer dizer, que fazem
mosa, alimenta a vida; fecunda e é fecun-
bem à saúde - como a alegria, a solidarieda-
dada. Vaidosa e de sorriso farto, Oxum nos
de, e o sentimento de pertencer a um todo
mostra o caminho brincalhão do mundo.
maior.
Sensível, nos ensina a praticar essa e outras
Mas essas emoções e sentimentos não
dimensões delicadas e sutis.
são neutros, piegas, nem formas de aneste-
A Educação Popular em Saúde, criação
siar as consciências. O diferencial da Edu-
coletiva - com alguns heróis, pensadores
cação Popular não é o sentimento, a con-
e artistas especiais que se misturaram aos
versa, a dinâmica brincalhona e os métodos
processos sociais de busca pela saúde - é o
criativos. O diferencial se encontra na visão
esforço histórico que se expressou em mo-
crítica - política - tanto do processo educa-
vimentos sociais, grupos organizados, lide-
tivo como de toda a saúde.
ranças, profissionais e professores das uni-
Uma sensibilidade intensa sem abrir
versidades, estudantes e moradores de áreas
mão da criticidade, da lucidez que significa
rurais e periféricas urbanas. Uma das suas
indicar as desigualdades, denunciar o injus-
características é se inspirar na obra de Paulo
to, propor mudanças profundas à ordem.
Freire na educação; e de autores como Vic-
Esse é o desafio da amorosidade da educa-
tor Vincent Valla, Eduardo Navarro Stotz e
ção popular que indica um caminho ético e
Eymard Mourão Vasconcelos na saúde.
político para todo o trabalho em saúde, para
As reflexões desses autores partem de
todo o Sistema de Saúde.
experiências práticas de acompanhamento,
Partir, na construção de saberes, do di-
apoio e luta junto a movimentos sociais or-
álogo com o Outro é, de fato, uma radica-
ganizados, grupos de moradores, campone-
lidade. Perigosa para qualquer governo ou
ses, dentre outros; e não somente a partir
partido. Uma ampliação revolucionária da
de leituras e saberes teóricos. Isso faz toda
experiência da democracia.

Caderno de Educação Popular em Saúde


Nessa sensibilidade, nessa alegria, nessa amorosidade, nes-
sa valorização dos saberes práticos e feitos de experiência, está a
Educação Popular. E nisso ela se aproxima das reflexões sobre arte
sugeridas acima. Uma sensibilidade de mil faces: Brahma e Oxum
em seduções míticas.
Por isso, o encontro entre a força das Artes e a Sensibilidade
Crítica da Educação Popular rende tão bons frutos. Complementa-
res - embora não isentas de conflitos e mal-entendidos - elas quase
sempre se potencializam.

Artes, culturas e educações populares nos mundos da saúde:


as boas misturas. 187
Hoje é tanta mistura de Arte e Educação Popular na Saúde
que não é preciso ir catando exemplos. Ao longo do país todo - e
mesmo no mundo - milhares de experiências aproximam a educa-
ção em saúde, na perspectiva freireana, às diferentes formas da Arte.
Basta olhar ao redor ou acompanhar qualquer evento público que
muitas experiências ficarão evidentes.
Para encerrar esta reflexão curta e inicial que espero estimule
o seu interesse por conhecer mais - uma boa lista de textos para
começar vai no final - deixo a impressão, em poema, de uma via-
gem pelo Cariri, paraíso no interior do Ceará, catando com a amiga
Renata Pekelman expressões de cultura, arte e saúde. Que os deuses
amorosos e brincalhões acompanhem nossa caminhada pela saúde.

Outras palavras
O tesouro do Cariri. Uma viagem de
descoberta com a gêmea loira.
saber-se amante e amado, no meio desse coisa de misturas, paraíso dos antropólogos.
tempo ido, ao levantar o chinês - eu - fotografando tudo
e ao pôr do Sol. E a gente, dois dos reis deixando sem nada a loucura da festa. carros
magos, de luxo, velhos burros, ônibus surrados
a loira e o chinês, na cidade singela do finalmente, antes daquele avião pequenino
Crato procuramos, à noite, a grande praça. que pulava de nuvem em nuvem
no meio dela, sons de banda; e os colegas, e onde conseguimos essas figuras de
artistas populares, já sem vestes de dança madeira maravilhosas
bebericavam e conversavam.- o Crato é um fomos a Juazeiro do Norte, lugar sagrado,
188 lugar fresco no Ceará, disse a Iracema. Temos cidade agitada de comércio
umas montanhas e no santuário do padim eu consegui
que valem a pena demais. Do outro lado está imagens geniais
Exú, terra do Gonzagão. E fomos tal era a luz e a atmosfera de fumaça e
até o topo da Serra - forro pé de Serra - vendedores. e uma moça linda entrou no
para ver-imaginar-abraçar Exú quadro
mas nada de seu Luiz - minha vida é andar e ficou congelada em digital. e as missas não
sem me perder, sem desafinar, sem parar de paravam.
sanfonar
e comemos truta na Serra, como se fosse digo de mim que fazer-mo-nos era tão
qualquer serra, mas mais concentrada nobre como fazer milagres
e ainda tão simples e tão distante. nessa viagem de
o museu do cordel, a figurinha do Patativa, Fortaleza a Olinda nos fizemos amigos, nos
as fotos, os guardiões da memória reconhecemos irmãos,
que querendo nos explicavam, que semeamos a cultura que bebemos a cada
sonhando nos diziam segundo, apostando em novas flores, novos
vocês que vêm de tão longe, senhores espaços
vamos lhes apresentar o Mestre Cirilo que para misturar poesia, canto e educação
vai dançar e dar entrevista na saúde - que era nossa missão de
nucleamos todo tipo de dança, canto, exploradores.
desenho, poema,
e um sorvete de fruta no alto das 22 horas assim. verso final sem rima as coisas se
era fundamental encaixaram. o mosaico das visões formou
para depois dar um pulo em Barbalha onde, um grande desenho
grande sorte, era a festa de Santo Antônio que nunca cansamos de ver, e refazer.

Caderno de Educação Popular em Saúde


Leituras utilizadas:

ALVES, R. Lições de feitiçaria: meditações sobre a poesia. São Paulo:


Edições Loyola, 2003.
ALVES, R.; BRANDÃO, CR. Encantar o mundo pela palavra. Campi-
nas: Papirus Editora, 2006.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renasci-
mento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Editora Hucitec,
2010.
BRANDÃO, C.R Diário de campo a antropologia como alegoria. São
Paulo: Editora Brasiliense,1982. 189
CIRINO, DCS. Tecendo sonhos e fiando destinos: a vivência do bordado
em um grupo de gestantes e puérperas. In: VASCONCELOS, Eymard;
CRUZ, Pedro JSC (Orgs.). Educação Popular na Formação Universi-
tária. São Paulo – João Pessoa: Editora Hucitec e Editora Universitária
UFPB, 2011.
COSTA, R.R. Ô cirandeiro, cirandeiro ô. In: VASCONCELOS, Eymard;
CRUZ, Pedro JSC (Orgs.). Educação Popular na Formação Universi-
tária. São Paulo – João Pessoa: Editora Hucitec e Editora Universitária
UFPB, 2011.
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática
educativa. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2011.
FREIRE, P. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do
Oprimido. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2011.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Editora Paz e Terra,
2011.
FREITAS, A.L.S. Saber de experiência feito. IN: STRECK, Danilo;
RODIN Euclides; ZITKOSKI, José Jaime (Orgs.). Dicionário Paulo
Freire. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.
GINZBURG, C. O queijo e os vermes: o cotidiano de um moleiro perse-
guido pela inquisição. São Paulo: Companhia de Bolso, 2010.
MANO, M.A. Ensaio sobre a gratidão. IN: MANO, Maria Amélia Me-
deiros; ERNANDE, Valentin do Prado (Orgs.). Vivências de educação
popular na atenção primária à saúde. São Carlos: EdUfSCar, 2010.

Outras palavras
MAY, Rollo. Minha busca da beleza. Petrópolis: Editora Vozes, 1992.
PAZ, O. El arco y la lira: El poema, la revelación poética, poesía e historia.
México, Fondo de cultura económica, 1986.
REDIN, Euclides. Boniteza. IN: STRECK, Danilo; RODIN Euclides;
ZITKOSKI, José Jaime (Orgs.). Dicionário Paulo Freire. Belo Hori-
zonte: Autêntica Editora, 2008.
VALLA, V.V. Procurando compreender a fala dos setores populares. IN:
VALLA, Victor; ALGEBAILE, Eveline; GUIMARÃES Maria Bea-
triz (orgs.). Classes populares no Brasil: exercícios de compreensão. Rio
de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, 2011.

190 VASCONCELOS, E.M.; FROTA, L.H.; SIMON, E. Perplexidade na


universidade Vivências nos cursos de saúde. São Paulo: Editora Huci-
tec, 2006.
Wong-Un, J.A. O sopro da poesia: revelar, criar, experimentar e fazer saú-
de comunitária. In: VASCONCELOS, Eymard (org.) A Espiritualida-
de no trabalho em saúde. São Paulo: Editora Hucitec, 2006.

Agradecimentos:
Desejo agradecer às seguintes parceiras pela amizade; pelos di-
álogos inspiradores; por terem trazido esses e outros temas à minha
reflexão cotidiana; por trabalhar com utopia e amor pela saúde pú-
blica. Pela leitura do texto. E pelo afeto grande que eu, obviamente,
não mereço: Lenita Lorena Claro, pela limpeza ética e o olhar de
criança; Célia Sequeiros da Silva, pela beleza sobrenatural da sua
alma; e Aline Rodrigues Corrêa Sudo pela alegria, pela energia boa,
e pelo sonho de um mundo com menos malvadeza e mais boniteza,
como escreveu Paulo Freire.

Caderno de Educação Popular em Saúde


De cenopoesia e dialogicidade: da reinvenção
da linguagem ao reinvento do humano

A cenopoesia traduz-se como espaço dialógico que rompe


com as amarras da própria língua (escrita e formal) em suas limi-
tações como forma de expressão e comunicação humanas. Mesmo
considerando suas inúmeras possibilidades e contribuições para
a construção cenopoética, a língua (falada e escrita) esbarra em
certas limitações que pedem o complemento ou a interação com
outras maneiras de falar, dizer, pensar, expressar o sentimento e as
experiências de mundo. Caracteriza-se como uma linguagem que,
articulada com outras, ganha diversidade e dá força ao próprio dis-
curso em sua capacidade de expressão. Atua como espaço conver-
gente de articulação em que se dão as interfaces entre linguagens, Ray Lima
tanto em seus aspectos formais, quanto em suas singularidades a Cenopoeta, ator e diretor teatral,
construir algo como que um campo dialógico, sinérgico e gerador fundador do Movimento Escambo
Popular Livre de Rua. Formado em
de novos sentidos multifacetados, ressignificados e reconstruídos Letras na UERJ com especialidade
como linguagem única, aberta e viva. em Gestão de Sistemas e Serviços
de Saúde pela UNICAMP. Assessor
Percebendo que por mais que, a partir da língua, busquemos a artístico-pedagógico das Cirandas
liberdade criativo-expressiva, acabamos por ficar presos à glote do da Vida - SMSE-SMS, Fortaleza,
CE. Autor de vários livros publica-
decano, ao corpo diplomático da gramática, à camisa de força de dos.
um corpo pré-configurado e inscrito na história, na trajetória do
significado, no corpo sensível da raiz de cada palavra-expressão.
Daí que não encontramos muitas vezes sua libertação na lín-
gua, dentro ou em seu dorso literal, mas em infinitas possibilidades
de interação entre linguagens, discursos ou sentidos semiotizados:
“língualinguagem sem corpo nem sentido
língua de corporações
língualinguagem oceano ou insulação do falante
língua da vida inteira ou do instante
língualinguagem corpo qualquer morrente ou vivente fonte mu-
tante nascente
língualinguagem de corpo e alma ambulantes
liberta e prisioneira de si
libertária ou opressora de seus praticantes?”

Em mais de duas décadas de existência, se contarmos da


192 data de 1987, quando o termo “cenopoesia” foi usado pela pri-
meira vez, por Ray Lima, para nomear um recital poético na
Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ, o ato ceno-
poético utilizou-se dos mais variados espaços, interagindo so-
bre diferentes contextos e situações. Desde bares, salões, teatros,
ruas, praças, teatros naturais de pedra, igrejas, auditórios, hotéis,
palácios, restaurantes, universidades, cinemas, árvores, tendas,
terreiros, etc., onde a problematização da vida em sociedade e a
expressão do humano se faz sempre recarregada de sua impres-
cindível liberdade de criação e recriação do mundo.
Tendo início no Rio de Janeiro a experiência cenopoética
se efetivou no Ceará e Rio Grande do Norte, através principal-
mente do Movimento Escambo Popular Livre de Rua. Nasce do
rompimento com modos tradicionais de recitais poéticos e com
o império da fala e da escrita como únicas formas de validar a
produção e produção do pensamento humano.
Neste sentido, a cenopoesia é por nascimento uma arte soli-
dária que se ocupa, por isso mesmo, com a construção de víncu-
los. Prefere não abortar as possibilidades de diálogo com outras
linguagens em função de uma escritura ou de uma suposta (pu-
reza) estética ou cultura literária, indo em direção a uma relação
respeitosa até o limite de suas distinções que unem e não sepa-
ram ou fragmentam. Tem se mostrado inovadora ferramenta pe-
dagógica em processos educativos de educação popular, formal e
não-formal. Destravando as relações de poder entre linguagens
como teatro, música, poesia, dança, artes plásticas, dentre outras

Caderno de Educação Popular em Saúde


formas de expressão. A cenopoesia trilha por caminhos próprios
sem perder a força dialógica em sua interação com outras formas
de expressão e comunicação.
O exercício da linguagem cenopoética revela-se, além de
expressão artística genuína, como potente estratégia de proble-
matização em processos formativos e pedagógico-vivenciais, em
ações de educação, promoção e humanização em saúde no âmbi-
to do Sistema Municipal de Saúde Escola – SMSE de Fortaleza.
A partir das Cirandas da Vida e da educação popular, em
níveis regional e nacional, a linguagem cenopoética vem contri-
buindo com reflexões e problematizações marcando uma pre-
sença pedagógica que consiste em desenvolver outras raciona- 193
lidades, para além do discurso científico de tradição ocidental,
trazendo a ideia de pensar e agir com o corpo inteiro e de forma
fotos: arquivo Cirandas da Vida

graciosa sem, por isso, perder a consistência e a criticidade.


Na prática isso se tem dado nos mais variados contextos e
lugares de aprendizagens, dentre os quais destacamos ou pode-
mos mencionar alguns de inegável importância política e edu-
cacional da saúde no Brasil: 8º Congresso Brasileiro de Saúde
da Família (Fortaleza-CE); III Mostra Nacional de Produção
em Saúde da Família(2008); Cavarana SUS e Mostra Interativa,
o SUS que dá certo (Fortaleza-CE); II Seminário Nacional de
Humanização (Brasília); e o Congresso Brasileiro de Enferma-
gem (Fortaleza-2009). Em 2010, a I FENAGEP (Brasília), o
III Encontro Nacional de Educação Popular e Saúde e I En-
contro Nacional de Práticas Integrativas e Populares de Cui-
dado (Goiânia); a Conferência Nacional de Saúde Mental e a
9ª Conferência da Rede Unida (Porto Alegre – RS); I Mostra
das Cirandas da Vida; e 14ª Conferência Nacional de Saúde, na
abertura da programação da Tenda Paulo Freire.
Tais espaços vêm marcando definitivamente a cenopoesia
como forma de expressão e nova racionalidade que serve à refle-
xão e ao debate sobre temas relacionados à saúde, à educação, à
política, a situações da vida cotidiana e a produção do comum,
reafirmando a multifuncionalidade do discurso cenopoético e
sua capacidade de adaptação aos múltiplos contextos, tempos e
lugares.

Outras palavras
“O cotidiano de Dona Chica na luta contra a tuberculose”
e a possibilidade de aprender com ludicidade

Francisco Josenildo Nascimento A produção da história em quadrinhos “O cotidiano de Dona


Movimento de Saúde Mental e Co- Chica na luta contra a tuberculose” surgiu pela interface das Ci-
munitária do Bom Jardim/Cirandas da
Vida/Secretaria Municipal de Saúde de
randas da Vida com o projeto AGAP (Aperfeiçoamento em Ges-
Fortaleza. tão da Atenção Primária). Este teve como objetivo o envolvimento
de atores da atenção, formação e controle social para a redução da
Mayana de Azevedo Dantas
taxa de abandono do tratamento à tuberculose. Descrevemos aqui,
Secretaria Municipal de Saúde de For-
taleza/Sistema Municipal Saúde Esco- o processo de criação desta história em diálogo com os atores en-
la/Cirandas da Vida. volvidos. Trabalhamos com a Ciranda de Aprendizagem e Pesquisa
Ana Paula Ramalho Brilhante que inclui os Círculos de Cultura e a arte.
Secretaria Municipal de Saúde de Forta-
O projeto atuou na SER (Secretaria Executiva Regional) I - e
leza/Sistema Municipal Saúde Escola. uma das ações refere-se à formação dos trabalhadores de saúde para
Maria Rocineide Ferreira da Silva
o enfrentamento desta “situação-limite”. Nesse sentido, propôs-se
construir um material pedagógico que pudesse desencadear essa
Universidade Estadual do Ceará/
ANEPS-CE. discussão com os trabalhadores. A pesquisa para produção da his-
Maria Vilma Neves de Lima tória se fez a partir de uma vivência de teatro-fórum, durante o
Universidade Estadual do Ceará/ processo formativo dos trabalhadores e das discussões geradas, na
ANEPS-CE. qual foram retratadas histórias reais vividas pelos usuários e traba-
lhadores.
A história em quadrinhos como uma linguagem plural pro-
põe-se dialogar com os envolvidos de forma lúdica e socializar essa
discussão em escolas, unidades de saúde, igrejas e outros espaços
comunitários. A construção da história em quadrinhos se concreti-
zou pela ação de atores das Cirandas e representou, para estes atores
advindos do movimento popular, a possibilidade de ampliar o seu
conhecimento sobre a temática, ajudando a quebrar preconceitos
relacionados à mesma. Ao mesmo tempo, tem-se revelado potência
no sentido de produzir reflexão e entretenimento, proporcionando
aos leitores e aos que a produziram o aprender com ludicidade.
195

Outras palavras
Cha(mamé)lé cultural: poesia gauchesca
Ipiranga – Poesia gauchesca
Maria Helena Zanela - Ponto de Cultura Jardim

A saúde e a cultura
deram as mãos lá em Brasília
e repercute aqui no Sul
bem na ponta, um coração
que é o formato do Estado
onde fica o Conceição E nesta história mui linda
entra a tal Comunitária
Hospital que é para todos que é um serviço excelente
que sara, ensina, pesquisa trabalha com atenção primária
e que espraiando horizontes e com um Núcleo tecendo
sabe que a arte mantém cultura em rede solidária
a energia vital
e a felicidade também Com muitas parcerias
mantemos as mãos unidas
e com ações que construímos
lembram? Juntamos saúde e cultura
vamos abrindo caminhos
para outras formas de cura

Caderno de Educação Popular em Saúde


Entre sementes e raízes
Fontes nas quais todos e todas nós bebemos e
continuaremos bebendo a cada momento novo do nosso
aprendizado, das nossas descobertas. Fragmentos poéticos,
melodias, escritos traçados com leveza e criatividade.
Outras palavras, outras maneiras de dizer o que a teoria
científica procura fundamentar, talvez um tanto distraídas
e mais encantadoras. Apenas, outras palavras...
Extensão popular de fitoterapia:
realidade em Sergipe

A Fitoterapia é uma das formas mais antigas de cuidado da


vida. Constitui, na sociedade contemporânea, importante recurso
terapêutico, acessível a todos os segmentos populacionais, na pre-
venção e tratamento de doenças de forma integral, haja vista que
estimula as defesas naturais do organismo e resgata o ser humano
às suas relações mais profundas com a mãe terra.
Em maio de 1978, por meio de uma resolução da Organização
Mundial de Saúde (OMS), ficou determinado o início de progra-
ma mundial visando ao uso e avaliação dos métodos da chamada
“medicina tradicional”. A OMS tem estimulado os países a iden-
Simone Maria Leite Batista
tificar e explorar os aspectos da medicina tradicional que fornecem
remédios ou práticas seguras e eficazes para a obtenção de saúde, os Karen Emanuella Fernandes Bezerra

quais devem ser recomendados nos programas voltados para cuida- Maria Cecília Tavares Leite
dos primários de saúde (Plantas Que Curam, 1983). Tulani Conceição da Silva Santos
O Brasil, seguindo a tendência mundial, mas preservando suas Vitor Araújo Neto
raízes culturais, principalmente no uso de plantas medicinais como
prática popular, começa por ações que resgatam a medicina popular,
estimula o dialogo entre os diversos saberes e objetiva o uso seguro
e racional das plantas medicinais e fitoterápicos, especialmente com
a edição da portaria n° 971/GM/MS de 03 de maio 2006, que cria
a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no
SUS; do decreto interministerial n° 5.813 de 22 de junho de 2006
que cria a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos,
além da edição da portaria interministerial n° 2.960 que concretiza
o Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos e cria
o Comitê Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos como
forma de viabilizar tal política. Estabelece, com esse marco legal,
as diretrizes e linhas prioritárias para o desenvolvimento de ações
pelos diversos sujeitos em torno de objeti- pe, em novembro de 2007, promovida pelo
vos comuns voltados à garantia do acesso Movimento Popular de Saúde (MOPS), foi
seguro e uso racional de plantas medicinais proposta a organização de um curso aos di-
e fitoterápicos e preconiza diretrizes, ações versos sujeitos (trabalhadores e atores dos
e responsabilidades dos poderes munici- movimentos populares) com aprofunda-
pais, estaduais e federal na sua implantação mento teórico-prático sobre as plantas me-
e implementação, as quais irão orientar os dicinais. Assim, surgiu à ideia da construção
gestores no seu estabelecimento ou em sua do Curso de Extensão Popular em Fitote-
adequação aos programas já implantados. rapia, que logo foi aceito pela Pró-Reitoria
Em Sergipe, tem sido recorrente a afir- de Extensão e pela vice-reitoria dessa insti-
mação dos pesquisadores e historiadores tuição de ensino.
200 sobre a grande tradição do uso de plan- A organização foi iniciada através ro-
tas medicinais, talvez também decorrente das de conversas com professores, represen-
da característica agrária desse estado e da tantes dos movimentos sociais e práticas
hegemônica composição de arranjos fami- populares de saúde ligados a ANEPS, com
liares na produção. Essa característica tam- o objetivo de construir a proposta do cur-
bém marca a capital do estado – Aracaju so, que deveria ter metodologia dialógica
– no que pese a predominante caracteriza- e constituída de aulas presencias teórico-
ção urbana. Aracaju, com uma população -práticas, com módulos mensais aos finais
em torno de 600 mil habitantes, também de semana, totalizando uma carga horária
se caracteriza pela existência de arranjos de 200 horas/ano.
produtivos familiares em atividades marca- O que se percebe nesse caminho é que
damente agrícolas compondo diversos dos as trilhas iniciadas por Dona Josefa, a partir
seus cenários. da década de 1990, de valorização da Fito-
Essas características, aliadas à crescente terapia através da troca e multiplicação de
produção do saber sobre o uso de plantas saberes, nos diversos espaços e cenários-
medicinais e fitoterápicas enquanto proje- -comunidade, assistência à saúde, gestão e
tos terapêuticos e a edição da Política Na- academia chegam a 2012 com muitos avan-
cional de Plantas Medicinais e Fitoterápi- ços. Também símbolo dos passos dados foi
cos, têm impactado a forma de construção quando a Secretaria Municipal de Saúde de
do modelo assistencial de saúde e a produ- Aracaju, para coordenar as demandas e arti-
ção de projetos terapêuticos e de cuidado cular a frente de trabalho, criou a referencia
em Aracaju. técnica das PIC’s, que tem estruturado sua
Como resultado da ampliação dessa ação em estreita articulação com as institui-
discussão e como resultado de oficina sobre ções formadoras dos trabalhadores da saúde,
plantas medicinais realizada na Semana de especialmente com a Universidade Federal
Extensão na Universidade Federal de Sergi- de Sergipe, fruto também da qual se estru-

Caderno de Educação Popular em Saúde


Em Sergipe, tem sido
recorrente a afirmação dos
pesquisadores e historiadores
sobre a grande tradição do
uso de plantas medicinais,
talvez também decorrente da
característica agrária desse estado
e da hegemônica composição de
arranjos familiares na produção.

turou a proposta do Pró-Saúde


e pesquisa a ser realizada pelos
discentes do curso de Serviço So-
cial através do PIBIC 2012 (em
análise). Além da articulação com
as IFES, também tem sido cada
vez mais estreita a aproximação
com os atores dos movimentos
populares, especialmente com a
Articulação dos Movimentos e
Práticas de Educação Popular –
ANEPS\SE e com o Movimento
Popular de Saúde – MOPS\SE.
O Movimento Popular de
Saúde (MOPS), atualmente um
dos principais articuladores da
Fitoterapia em Sergipe, através
de muitas parcerias, promove
anualmente o Curso de Extensão
em Fitoterapia (projeto conjunto
com a Universidade Federal de
Sergipe - UFS), que está em sua
IV edição e conta com a parti- Foto: Aicó Culturas

Entre sementes e raízes


cipação dos mais diversos atores sociais de vendo a articulação entre os envolvidos para
todo o estado. efetivação de uma política municipal. Na
Como objetivos foram priorizados: ca- avaliação final, observou-se a necessidade de
pacitar profissionais, estudantes da área de valorização dos terapeutas populares e a ca-
saúde e representantes da sociedade civil pacitação dos profissionais de saúde para que
no cultivo, preparo e utilização das plantas conheçam, respeitem e consigam trabalhar
medicinais no tratamento de enfermidades, em parceria com os praticantes de práticas
contribuindo assim para a conservação das populares (ALVES; BATISTA; SANTOS;
espécies e práticas tradicionais a elas asso- DO PRADO; BAIÃO CAMPOS, 2012).
ciadas. Os principais indicadores corres- Além disso, o curso de Enfermagem
ponderam ao aproveitamento máximo do da UFS, contará em seu novo currículo
202 conhecimento teórico-prático abordado, com a  disciplina de Práticas Integrativas
assim como a capacidade de multiplicação e Complementares de Saúde, tendo como
de cada participante. A metodologia obje- um dos eixos a Fitoterapia, Isso, fruto de
tivava promover motivação e reflexão sobre uma pesquisa realizada durante o Seminá-
as principais questões inerentes à Fitote- rio em defesa do SUS em 2011, no hospital
rapia e aos modos, tradicionais ou não, de universitário, edição do curso de Extenção
cuidado efetivo vivenciado. em Fitoterapia: “Fitoterapia na formação
Muitos cursos e seminários são rea- dos acadêmicos de enfermagem: uma tentati-
lizados anualmente, com destaque para o va de atrelar o saber popular e o conhecimento
Seminário de Práticas Integrativas e Popu- científico” (Bezerra, Silva, Santos,
lares de saúde da região centro-sul de Ser- Batista, 2010). (Este trabalho sugeriu
gipe, realizado pelas secretarias de saúde da uma disciplina que tratasse da fitoterapia no
região, Campus de Lagarto da UFS, Secre- currículo do curso de enfermagem, havendo
taria de Saúde do Estado, Mops e Aneps aceitação por parte dos estudantes).
Sergipe, em setembro passado, que contou Houve também a crítica ao modelo de
com a participação de 400 profissionais de formação a que o estudante está sujeito:
saúde, estudantes e gestores.
De fato, uma disciplina que contenha aulas
O evento contou com a participação dos
práticas encontra respaldo na opinião dos
diversos atores envolvidos na construção do
estudantes e a vivência com a comunidade
SUS dos municípios da região de Lagarto,
é destacado, apontando para a ideia da tro-
e teve como objetivo sensibilização dos par-
ca de experiências propiciada pelo contato
ticipantes para a implantação da Política
extramuros. (BEZERRA, SILVA, SAN-
Nacional de Práticas Integrativas e Comple-
TOS, BATISTA, 2010.
mentares (PNPICS) e a futura Política de
Educação Popular em Saúde (PNEP-SUS) Nota-se, por um lado, que faltam es-
no Sistema Único de Saúde (SUS), promo- forços governamentais na implementação e

Caderno de Educação Popular em Saúde


execução de aspectos práticos da portaria citada. Assim como, faz-
-se necessária maior participação da sociedade nas reivindicações
de políticas de saúde pública permanentes, duradouras e direciona-
das aos reais interesses da população.
Como esforços governamentais, entende-se além de vontade
política, com priorização da política, a disponibilização de recursos
necessários para a efetivação da mesma. Há necessidade também de
formação e capacitação dos profissionais da rede do SUS, como eles
mesmos reconheceram no seminário realizado em Lagarto, pois há
necessidade de se promover o uso racional do fitoterápico e a in-
tegração do saber popular entre a população e os profissionais de
saúde necessitam ser sensibilizados. 203
É importante, no processo de implantação da Política de Plan-
tas Medicinais e Fitoterápicos, que se façam parcerias intersetoriais
em virtude da abrangência da cadeia produtiva existente, não dei-
xando de lado as parcerias com a comunidade que é a detentora do
saber popular. Esse envolvimento coletivo contribuirá para a sua
efetiva implantação, de forma complementar, mas, abrangente e
eficiente.
Ressalta-se que os resultados destes cursos e seminários já rea-
lizados demonstram a necessidade e a importância da implantação
na Rede Básica de uma Política Municipal de Plantas Medicinais e
Fitoterápicos, como recurso importante no processo de prevenção
e cura do indivíduo.

Referências
ALVES, E M S; BATISTA, S M L; SANTOS, TCS; DO PRADO, E
V; BAIÃO CAMPOS, A L. Construção da política estadual das prá-
ticas integrativas, populares e Complementares de Sergipe: início da
caminhada. I Fórum Nacional de Racionalidades Médicas e Práticas
Integrativas e Complementares em Saúde. Rio de Janeiro, 2012.
BEZERRA, K. E. F; SILVA, L. A. S. M; SANTOS, V.; BATISTA,
S.M.L. Fitoterapia na formação dos acadêmicos de enfermagem: uma
tentativa de atrelar o saber popular e o conhecimento científico, 2010.
BRASIL, Ministério da Saúde Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insu-
mos Estratégicos. Departamento de Assistência Farmacêutica. Política

Entre sementes e raízes


Nacional de Plantas Medicinal e Fitoterápico. Brasília, 2007.
BRASIL, Ministério da Saúde. Secretaria de atenção a Saúde. Depar-
tamento de Atenção Básica. Política Nacional de Práticas Integra-
tivas e Complementares no SUS: PNPIC. Brasília, 2008.
MATOS, F. J. A., Prescrição Médica de Fitoterapia. 1983.
Plantas Que Curam. A natureza a serviço da sua saúde. V.1, São Pau-
lo, Três livros e fascículo, 1983.
STRAND, R. D. Que seu médico não sabe sobre medicina nutricio-
nal pode estar matando Você. Ed Books, 1ª Edição, 2004.
YU; GHANDOUR; HUANG; ASTIN, Revista Farmacognosia V1
204 Final.
YUNES R.A.; PEDROSA R.C.; CECHINEL FILHO. Fármacos
e fitoterápicos: a necessidade do desenvolvimento da indústria de
fitoterápicos e Fito fármacos. São Paulo, SP, Brasil, 2005.

Caderno de Educação Popular em Saúde


Diálogo com os cuidadores
sobre práticas de cuidados populares

A pergunta que fiz a mim mesma ao ser desafiada a escrever


sobre a importância das práticas de cuidados populares nas rodas
de conversas, encontros, seminários, como também em nossas vidas
particulares foi: como abordar de uma forma mais adequada esse
assunto do cuidado num diálogo sobre educação popular e saúde,
as práticas de cuidados populares, como massagens, benzementos,
etc., e o SUS? Além disso, o que estamos fazendo para facilitar esta
troca de experiências entre estas instâncias?
Sim, porque todos nós sabemos e temos a prática do cuidado
em nossas casas como, por exemplo, na alimentação cotidiana, no
contato com nossos filhos, enfim, cuidados estes que nos mantêm Suely Corrêa
vivos. MOPS / ANEPS MT

Por esse motivo, gostaria de começar dizendo que nós, seres


humanos, não somos apenas matéria, mas sim a manifestação de
uma soma de processos internos e externos, como respiração, fun-
cionamento orgânico, alimentação, pensamentos e a influência do
meio ambiente em que vivemos. Por esta razão, a presença de do-
enças e sintomas do nosso corpo são expressões naturais da nossa
energia interna. São como mensagens, avisos desta força interna de
que algo não está bem.
Há muitas razões que alteram o nosso corpo físico, causando
uma distorção em nossa postura natural e equilibrada, como o mau
funcionamento orgânico, vida sedentária, pouco movimento corpo-
ral, movimentos repetitivos, pensamentos negativos, emoções com
apegos, má alimentação, muito trabalho e pouco lazer.
Enfim, os nossos hábitos alteram a postura física natural e, por
isso, necessitamos de exercícios corretivos para, através deles, forta-
lecemos a nossa parte “sadia” ou “boa”, corrigindo a parte “afetada”.
Nesse sentido, a questão do cuidado etc., ajuda a perceber a necessidade de uma
quer ajudar a despertar a linguagem cor- consciência ecológica, ou seja, da urgência
poral do tocar e do sentir, atitudes que há de um sentimento de coletividade e conhe-
muito estão esquecidos no nosso dia-a-dia, cimento mútuo.
sintomas claros da aceleração do tempo Para finalizar, proponho algumas dicas e
na vida moderna. Assim, a participação na cuidados, após um dia de trabalho ou reunião.
vida da família, da comunidade, de grupos,

206

Para corrigir partes assimétricas


1. Em pé, flexionar a coluna para frente, com os bra.ços(Dealon ga-
vido a
ar os joelhos
dos tentando tocar o chão, sem flexion
a das pessoas não consegue
uma rigidez na área lombar a maiori
tocar o chão).

2. Voltando a posição em pé, com os olhos fechadoa s,todimaosginnose


e seu corpo par
que você é uma gelatina, moviment
gelatina, sem nenhuma ri-
lados suavemente como se fosse uma
do lentamente. Va movi-
gidez, sem ossos, inspirando e expiran
a e se libertando de todas
mentando o corpo de forma espontâne
as tensões.

3. Abra os olhos e flexione novamente o corpo parapod


frente, ten-
endo até
flexibilidade
tando tocar o solo. Você sentirá mais
você relaxa a musculatura,
tocar o chão. Fazendo esse exercício
melhora a circulação.
ativa sua flexibilidade física, mental e
Outra dica de uma boa alimentação
Frutas não combinam com hortaliças, exceto as frutas oleaginosas. Tomate não combina
com limão, devido ás reações entre os ácidos que compõem estes alimentos. O limão, apesar
de ser classificado como fruta acida, pode ser agregado às saladas, devido ao seu baixo teor
de carboidrato (açucares), exceto quando houver tomate. Uma sugestão de cardápio:

Molho de beringela 207


Ingredientes
• 800 Gramas de tomate, sem pele, picados;
• 4 dentes de alho picados ou amassados;
• 4 colheres de azeite;
• 8 nozes ou castanhas picadas;
• 1 colher ( sopa) de molho de soja;
• 1 berinjela media cortada em cubinhos;
• Sal a gosto.
• Cheiro verde

Modo de preparar:
• Ferventar os tomates em duas xicaras de agua por 10 minutos.
• Escorrer e reservar o caldo.
• Á parte, fritar o alho no azeite até dourar.
• Acrescentar o tomate, o caldo reservado e os ingredientes
restantes.
• Cozinhar em fogo baixo com panela tampada por 20 minutos.
Mexendo de vez em quando.
Receitas de sucos
heco
lves Josefa de Lourdes S. Pac
Glaudy Celma Sousa Santana Marta Ma. Fontes Gonça
Sergipe
Pastoral Criança e Aneps
Mops e Aneps Sergipe
Pastoral da Criança e Aneps Sergipe

Erva cidreira ou capim santo


Com limão Com morango Com laranja e abacaxi
• 1 xícara (chá) de folhas • 1 xícara (chá) de capim • 1 xícara (chá) de capim
de capim santo picadas santo picado santo picado
• 200 ml de água • 200 ml de água • 200 ml de suco de laranja
• 3 colheres (sopa) de mel • 2 colheres (sopa) de mel • 3 colheres (sopa) de mel
• Suco de 2 limões • 2 xícaras (chá) de moran- • 2 rodelas de abacaxi
• Gelo gos congelados congelado

! Bata no liquidifi- ! Bata no liquidifi- ! Bata no liquidifi-


cador o capim santo com cador o capim santo com cador o capim santo com
a água. Coe e leve para a água, coe e leve para o suco de laranja. Coe e
bater novamente com o bater novamente com o leve para bater novamente
mel, o suco de limão e o mel e os morangos. com o mel e o abacaxi.
gelo.

Caderno de Educação Popular em Saúde


209

Suco Verde
Conta com a ajuda da maçã e da couve para repor nutrientes perdidos. “A pectina, que
está na casca da maçã, é uma fibra muito importante para reduzir a gordura e a glicose do
sangue, além de ser uma fruta muito rica em vitaminas B1, B2, niacina, ferro e fósforo.
A couve tem alto teor de clorofila, que ajuda a limpar o intestino e ainda protege o fígado
dos efeitos nocivos das bebidas alcoólicas”.

H
• 1 copo de 200 ml de água de coco ! Colocar no liquidificador a água de
• 1 maçã com casca picada coco, a maçã picada, a couve, o mel e o
• 1 folha de couve gelo. Bate tudo depois de pronto o suco,
• 1 colher de sopa de mel salpique a linhaça por cima do suco, para
• 1 colher de sobremesa de linhaça dar um a brilho e vai estar pronto para ser
• 1 cubo de gelo servido.

Entre sementes e raízes


Abacaxi e cavalinha
O poder do abacaxi de digestão das proteínas e o efeito de desinchaço e de reposição
dos minerais da cavalinha. O kiwi também é rico em fibras que estimulam o intestino.

H • 1 xícara (chá) de água ! Prepare o chá: coloque a água no


• 1 colher (sobremesa) de cavalinha seca fogo e, assim que ferver, desligue e acres-
• 1 rodela de abacaxi cente a cavalinha. Tampe a panela. Deixe
210
• 4 folhas de hortelã em infusão por cinco minutos e coe. Bata
• 1 kiwi sem a casca no liquidificador com os outros ingre-
• 1 folha de alface dientes e coe novamente.
• 1 colher (sopa) de mel (orgânico)

Suco de aipo com melancia


O sabor da melancia com o poder de “faxina” da  linhaça. Além de proteger contra a formação
de tumores, é excelente para quem deseja perder peso, pois ajuda a diminuir o colesterol e
a controlar a sensação desnecessária de apetite. A linhaça tem grandes quantidades de fibra
dietética, cinco vezes mais que a aveia.

H • 2 fatias de melancia picada ! Coloque a melancia, o aipo, as


• 1 talo de aipo com as folhas sementes e o mel e bata tudo no liquidifi-
• 1 colher de sopa de linhaça cador, depois se quiser coe e sirva.
• 1 colher de sopa de mel (orgânico)

Caderno de Educação Popular em Saúde


211

Suco desintoxicante
H • 1 copo de 300 ml de abacaxi em cubos ! Bata todos os ingredien-
• 1 colher de sopa de raspas de casca de limão tes no liquidificador e sirva
• ½ colher de sobremesa de gengibre fresco ralado.

Benefícios para a saúde


Os componentes do abacaxi, como vitaminas do complexo B, ácido pantotênico e vitamina
A, fazem a fruta ser energética. Além disso, o abacaxi tem efeito anti-inflamatório, diuré-
tico e digestivo, graças a uma substância encontrada em seu miolo, a bromelina. Já a casca
do limão e o gengibre contêm substâncias antioxidantes, tendo funções anti-inflamatórias.
Quanto maior for à expulsão de toxinas do organismo, mais disposição física você vai notar.
Outros benefícios percebidos são pele mais firme e intestino funcionando em ordem.

Entre sementes e raízes


212

Suco de cenoura com limão (que emagrece)


H • 1 litro de água ! Bata todos os ingredientes no liqui-
• 1 cenoura dificador e beba um copo de 200 ml nos
• 1 limão intervalos das refeições.

Suco para metabolismo acelerado


H • 1 colher de sopa de mate solúvel ! Bata todos os ingredientes no liqui-
• 1 copo de 200 ml de água dificador e sirva gelado. Por ser um suco
• ½ maçã sem semente proteico, a bebida é energética e estimu-
• ½ mamão papaia lante, garantindo que o metabolismo fun-
• 1 banana prata cione a todo vapor.
• ½ copo de 100 ml de leite de soja

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Suco para pele dourada e hidratada
H • ¼ de uma cenoura média crua ! Bata todos os ingredientes e sirva.
• ¼ de um mamão médio
• ½ limão médio para suco
• 1 colher de sobremesa de semente de linhaça dourada
• 1 colher de sobremesa de gérmen de trigo
213
• 1 colher de sobremesa de farelo de semente de linhaça dourada
• Água

Benefícios para a saúde


O mamão e a cenoura se destacam por serem ricos em vitamina A, nutriente capaz de
recuperar e regenerar o tecido celular. Fundamental também para a saúde dos cabelos e
unhas. Além disso, a receita contém grandes quantidades de vitamina C e flavonoides,
que entram em ação contra os radicais livres, protegendo a pele dos efeitos nocivos do sol
e prevenindo contra o envelhecimento precoce. Já o gérmen de trigo contém quantidade
suficiente de vitamina E. Juntamente com o ômega-3 fornecido pela linhaça dourada, o
ingrediente garante a hidratação da pele e também preveni o envelhecimento das células.

Suco cítrico com limão


H • 1/2 mamão
! Coloque no liquidificador o mamão picado
• 2 laranjas sem sementes, o suco das laranjas e o suco do limão
• 1 limão sem sementes. Bata e tome em seguida.

Entre sementes e raízes


Suco de caju e cenoura
H • 1 cenoura ! Bata no liquidificador todos os ingredientes.
• 1 caju Beba este suco 2 vezes ao dia.
• 1 xícara de (chá) de água

Benefícios para a saúde


214 Ajuda a manter todo o corpo com saúde. Poderosa antioxidante previne os danos ce-
lulares. Alimentação especial para os olhos e pele. Suco de cenoura funciona como um
anti-inflamatório e revitalizes e tons de toque da pele e ajuda a prevenir o cancro. Dimi-
nuição da pressão arterial pode ser ajudada por consumir salsa e alho.

Suco anticelulite
H • 1 colher de sobremesa de salsa
! No dia anterior ao preparo do suco,
• 1 pires de chá de couve manteiga crua coloque a água de coco em forminhas para
• 1 fatia média de abacaxi gelo e leve ao congelador. Para preparar o
• 350 ml de água de coco suco, bata bem no liquidificador a água de
• 3 folhas de hortelã coco, a couve e a salsinha. Acrescente o
• ½ limão para suco abacaxi, gotas de suco de limão e horte-
lã. Bata até ficar bem homogêneo. Adoce,
caso seja necessário. Se preferir, substitua
o abacaxi por melão.

Caderno de Educação Popular em Saúde


I Prêmio Victor Valla
Prêmio Victor Valla
Uma ação de reconhecimento e fortalecimento da EPS no SUS

Chegamos ao final da Primeira Edição do Prêmio Victor Valla


de Educação Popular em Saúde coordenado pela Secretaria de
Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde (SGEP/
MS) em parceria com o GT de Educação Popular e Saúde da Asso-
ciação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. O Prêmio
Victor Valla é produto do diálogo que a SGEP/MS tem desenvol-
vido com os diversos coletivos e movimentos sociais populares que
Esdras Daniel dos Santos Pereira
SGEP/MS atuam na educação popular organizados no Comitê Nacional de
Educação Popular em Saúde (CNEPS) instituído em 2009 no MS.
Osvaldo Peralta Bonetti Esta iniciativa tem por finalidade apoiar e contribuir com o
SGEP/MS fortalecimento dos grupos, coletivos, movimentos populares e aca-
dêmicos, assim como dos serviços de saúde que, democrática e dia-
logicamente, desenvolvem ações de Educação Popular em Saúde,
sendo uma justa homenagem ao saudoso Professor Victor Vincent
Valla (1937-2009) que em sua trajetória de militância e produção
acadêmica construiu um grande legado que nos inspira a refletir
sobre os modos de viver e produzir saberes das classes populares e
suas relações diretas com a saúde.
Os números desta primeira edição do Prêmio impressionam.
Foram 161 experiências inscritas sendo 23 Textos Artísticos; 37
Produções Audiovisuais e Musicais; 53 Narrativas e Relatos e 48
Pesquisas e Sistematizações.
Surpreende-nos a quantidade e a diversidade de experiências
inscritas, muitas destas desenvolvidas junto aos serviços de saúde,
em destaque as iniciativas relacionadas aos cotidianos da Atenção

Caderno de Educação Popular em Saúde


Básica, fruto do comprometimento de pro- Na categoria Produção Áudio Visual,
fissionais de saúde, como Agentes Comu- destaca-se o levantamento e sistematização
nitários de Saúde, que buscam promover a de práticas populares e a valorização dos sa-
saúde de forma democrática e participativa, beres populares pela universidade apresenta-
muitas vezes sem apoio institucional. do em vídeo pela Universidade Federal de São
Outro fato evidenciado é a existência Carlos e a inovadora, como também, na cate-
de diversas experiências que buscam mape- goria Pesquisas e Sistematizações a instigante
ar, conhecer e compartilhar saberes com as Produção Acadêmica do Grupo Cirandas da
Práticas Populares de Cuidado presentes nas Vida-CE entitulada “Dialogismo e arte na
comunidades de todo o país. Tais práticas res- gestão em saúde: a perspectiva popular nas
gatam o conhecimento popular e promovem Cirandas da Vida em Fortaleza-CE”.
a autonomia dos sujeitos no enfrentamento É importante ressaltar que as pesquisas 217
de suas situações limites em saúde, reforçan- e sistematizações inscritas no Prêmio de-
do a necessidade de aproximação dos saberes monstram que hoje a Educação Popular em
técnico-científicos aos saberes ancestrais /tra- Saúde constitui-se enquanto campo produtor
dicionais de nossa população. de conhecimentos e propositor de estratégias
Fica evidente a articulação entre arte, cul- potentes para o enfrentamento das iniqui-
tura e saúde demonstradas nas experiências dades em saúde. O comprometimento das
deste Prêmio. São peças teatrais, músicas, po- instituições de ensino e sua articulação com
esias e filmes construídos no dia a dia dos mo- os movimentos sociais e com os serviços de
vimentos populares e dos serviços de saúde, saúde demonstram que a Educação Popular
demonstrando o potencial educativo destas é também um referencial capaz de promover
ações. Porém, são muitos os relatos das difi- mudanças na formação dos profissionais de
culdades estruturais e teórico-metodológicas saúde, fortalecendo processos de ensino, pes-
para o desenvolvimento destas ações. quisa e extensão aliados à implementação do
Dentre as experiências premiadas Sistema Único de Saúde e ao fortalecimento
destaca-se, na categoria Textos Artísticos, da participação social.
o texto do grupo Quintal das Artes que Parabenizamos os premiados nesta
problematiza na forma de teatro infantil as primeira edição do Prêmio Victor Valla de
questões ambientais na região de mangues Educação Popular em Saúde, estende suas
em Alagoas. A Narrativa da Experiência congratulações a cada educador (a), es-
“Promovendo Educação e Saúde através tudante, trabalhador (a), a todos que par-
das Plantas Medicinais” da Escola de En- ticiparam deste Prêmio reafirmando seu
sino Fundamental Benjamin Felisberto da compromisso no fortalecimento das ações
Silva do Povoado Gruta D’água-Arapiraca- de Educação Popular em Saúde no Sistema
-AL expressa a capilaridade de cenários que Único de Saúde.
a EPS tem se configurado.

Prêmio Victor Valla


3 primeiros lugares de cada categoria:
.br
Os 40 premiados podem ser conferidos no www.portal.saude.gov
Textos artísticos Produção audiovisual
A Revolta do Mangue Projeto de Mapeamento de Práticas de
Rogério Dias Quintal - Cultural Alagoas-AL Educação Popular e Saúde
Maria Waldenez de Oliveira - Universidade Federal de
RoteiroCenopoético São Carlos - São Carlos - SP
para a Caravana SUS em Fortaleza
Ray Lima - Grupo Pintou Melodia na Poesia Projeto de extensão popular “práticas integrais
- Movimento Escambo - Popular Livre de Rua - da nutrição na atenção básica em saúde
Fortaleza-CE Pedro José Santos Carneiro Cruz - / UFPB - João
Pessoa - PB
Fotossíntese poética como síntese criativa
dos processos e encontros da saúde Um passo e cada vez: o despertar da
coletiva cidadania
Elias José da Silva - Programa cirandas da vida - Gislaine Cavalcante Raposo - Museu da Imagem e do
Fortaleza-CE Som e de Campinas e UNICAMP - SP

Pesquisas e Sistematizações Narrativas e relatos


Dialogismo e arte na gestão em saúde: a Promovendo Educação e Saúde através das
perspectiva popular nas Cirandas da Vida. Plantas Medicinais
Vera Lúcia de Azevedo Dantas - Secretaria Municipal Edinalva Pinheiro dos Santos Oliveira Escola de Ensino
de Saúde de Fortaleza - Fortaleza-CE Fundamental Benjamin Felisberto da Silva Povoado Gruta
D’água - Arapiraca-AL
Quem sabe faz a hora não espera acontecer:
a formação técnica Em saúde no MST Saúde de guerreira
Etel Matielo - Grupo de Pesquisa Educação em Saúde, Daraína Pregnolatto Flor de Pequi - brincadeiras e ritos
Universidade Federal de Santa Catarina populares Pirenópolis - GO
Saberes, Danças e Imaginários frente ao Chalé da Cultura GHC Espaço de criação
sofrimento difuso: quando o “aquecimento” de novas relações e práticas de cuidado a
da comunidade já é própria ação de cuidar partir do convívio com as diferenças
Shirley Monteiro de Melo Universidade Federal da Melissa Acauan Sander - Equipe Chalé da Cultura
Paraíba João Pessoa - PB GHC - Porto Alegre -RS
Sugestão de leitura
Os profissionais de saúde que querem aperfeiçoar sua relação edu-
cativa com a população na perspectiva de Educação Popular têm
hoje muitos livros e artigos de revista disponíveis para estudar e
discutir. A Educação Popular em Saúde tem aglutinado muitos
pesquisadores, organizado eventos e produzido várias publicações
sobre seus desafios e caminhos de atuação. Vamos apresentar algu-
mas destas publicações que estão hoje disponíveis.

Comunicação e cultura:
as ideias de Paulo Freire
Venício A. de Lima
Editora UNB / Co-edição Perseu Abramo

Foram poucas as ocasiões, depois de Extensão


ou Comunicação? [1969] e Pedagogia do
Oprimido [1970], nas quais Freire tratou
especificamente o tema da comunicação.
Neste livro, o professor Venício Lima reedita
o volume revisto e com novo prefácio, que
provoca um olhar instigante sobre as relações
entre educação, comunicação e cultura na
obra de Freire. O que a prática e a reflexão
posteriores de Freire acrescentaram sobre
comunicação e cultura? O que pensam os
pesquisadores, sobretudo os brasileiros, a
respeito da contribuição de Freire para os
estudos de comunicação?
Educação Popular na Formação Universitária:
Reflexões com Base em uma Experiência.
Eymard Mourão Vasconcelos;
Pedro José Cruz (Orgs.).
Editora Hucitec, São Paulo.
Organizado por Eymard Mourão Vasconcelos e
Pedro José Cruz. A grande maioria da reflexão
da Educação Popular em Saúde está dedicada à
220 relação pedagógica entre os profissionais de saúde
e a população. Mas muitas universidades e projetos
de educação permanente vêm também aprendendo
a utilizar a metodologia da Educação Popular na
relação entre docentes e estudantes. O livro busca
relatar e analisar os caminhos desta formação
profissional, orientada pela Educação Popular, a
partir de uma importante experiência, com mais de
14 anos, na Universidade Federal da Paraíba.

Educação Popular e a Atenção à Classes Populares no Brasil:


Saúde da Família - 5ª edição Exercícios de Compreensão.
Eymard Mourão Vasconcelos.
Eveline Algebaile; Maria Beatriz Guimarães;
Hucitec, São Paulo. Victor Vicente Valla.
Abrasco Livros, Rio de Janeiro.
O autor se inseriu em um serviço
de atenção primária à saúde de Falecido em 2009, Victor Valla foi um pesquisador
Belo Horizonte para analisar as fundamental para a consolidação da Educação
dificuldades e as possibilidades de Popular em Saúde no Brasil. Porém, sua vasta obra
aperfeiçoamento das ações educativas estava dispersa e foi preciso um grande trabalho
na perspectiva da Educação Popular. de Eveline e Beatriz para organizá-la e atualizá-la,
São mapeados muitos dos mais resultando neste lindo livro. A força das reflexões
importantes bloqueios para uma de Valla, voltadas principalmente para compreender
relação educativa mais participativa melhor a cultura e as condições de vida das classes
e pensadas estratégias de superação populares, são fundamentais para a superação das
destes entraves. dificuldades da atuação educativa nas periferias dos
grandes centros urbanos.

Caderno de Educação Popular em Saúde


Da Nicarágua à Maré:
Intensidades. Suburbana

Vera Joana Bornstein.


Co. Editora. Disponível
Histórias, reflexões e aprendizados de uma
importante educadora popular da saúde brasileira
que iniciou sua vida de militância social no início da
década de 1970, foi presa pela Ditadura e migrou
para a Nicarágua para ajudar na implantação de
221
um governo popular. Na década de 1990, voltou
ao Brasil e foi trabalhar no Complexo da Maré,
conjunto de favelas do Rio de Janeiro. A partir de
sua história, podemos conhecer melhor o passado
do trabalho social orientado pela Educação Popular
na América Latina e sentir o seu significado na
vida de quem a ele se dedica.

Vivências de Educação Popular na Atenção


Primária à Saúde: a Realidade e a Utopia.
Maria Amélia Mano e Ernane V. do Prado (Org.).

Editora da Universidade Federal


de São Carlos-SP (EdUFSCar).

Vinte e uma experiências de utilização da Educação


Popular na Atenção Primária à Saúde, dos mais
diversos recantos do Brasil, foram selecionadas
para mostrar as diversas possibilidades concretas
de atuação neste importante espaço de atuação em
saúde. Amélia e Ernande organizaram esta coletânea
com apoio de toda a Rede de Educação Popular e
Saúde. Há ainda dois capítulos mais teóricos que
contextualizam a importância destas análises de
experiências. É um livro muito gostoso de ler.

Roteiro de leitura
De sonhação a vida é feita, com crença e
luta o ser se faz. 1a. edição. Ray Lima. Revistas
Ministério da Saúde, Brasília.
Roteiros para refletir brincando: outras razões Revista Saberes e Práticas: experiências
possíveis na produção de conhecimento e em Educação Popular em Saúde.
saúde sob a ótica da educação popular. vol.1 no.1, out./2011.

Livro de roteiros cenopoéticos organizado Publicação da Articulação Nacional de


por Ray Lima com capa de Alivre Lima e Educação Popular em Saúde (ANEPS) com
desenhos de Josenildo Nascimento, Mayana apoio do Ministério da Saúde. A revista
Santas e Alivre Lima. Trata-se de um livro reúne experiências de todo o Brasil. Organiza
com roteiros cenopoéticos que problematizam em três eixos: (1) formação - experências
222
várias temáticas sempre à luz da educação que brotam, germinam e florescem no
popular e da cenopoesia Contribui para a cotidiano da saúde; (2) práticas de cuidado
vivência de diversas linguagens nos serviços - saber e poder popular no cuidado à saúde;
de saúde, movimentos e comunidades. e (3) comunicação - inter-relações entre
comunicação, educação popular e cultura. É
distribuida pela ANEPS e está disponível em
seu site para leitura.

Caderno de Educação Popular em Saúde


Caderno CEDES, vol.29 no.79, set./ Revista APS vol. 11, nº 3 (2008) e vol. 12,
dez. 2009. nº 4 (2009).
Esta importante publicação acadêmica do Esta revista científica dedicada ao tema
campo da Pedagogia dedicou um número da atenção primária à saúde dedicou estes
especial para o tema da educação popular dois números especiais para artigos sobre
em saúde. Vários autores da América educação popular em saúde. A totalidade dos
Latina colaboraram, sob a coordenação textos está disponível pela internet nos sites
da Rede de Educação Popular em Saúde. http://www.aps.ufjf.br/index.php/aps/issue/
Todos os textos estão disponíveis na view/20 e http://www.aps.ufjf.br/index.php/
Internet no site http://www.scielo.br/ aps/issue/view/29
scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0101-
26220090003&lng=pt&nrm=iso

La Piragua
Conselho de Educação de Adultos
da América Latina.
Esta revista, escrita em espanhol
e produzida pelo Conselho de
Educação de Adultos da América
Latina a (CEAAL), é a principal
publicação acadêmica sobre
Educação Popular. Cada número se
concentra em um tema específico.
Todos os seus textos podem ser
acessados pela internet no seguinte
site http://www.ceaal.org
Telas do pintor Gildásio Jardim
O artista plástico iniciou seus trabalhos aos 13 anos. Co-
meçou rabiscando a terra vermelha como forma lúdica de
se expressar. Mais tarde desenvolveu uma técnica única
que está diretamente ligada ao seu dia-a-dia. Gildásio,
pinta sobre estampas de Chitas e reproduz o cotidiano da
sua região, o Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais.
Sua pintura é feita com tinta acrílica, tinta para tecido,
tinta látex e com corante líquido. Suas telas retratam a
afetividade humana, a beleza estética e os personagens da
cultura popular do sertão, sempre com um olhar crítico,
político e poético.
Para este trabalho, em parceria com a Aicó Culturas, o
núcleo argumental foi a interseção entre cultura popular
e saúde. E todas as educadoras e cuidadoras retratadas,
têm nome, endereço e muita história para contar.
Mais inforações sobre o artista pode ser encontrada no
site www.gildasiojardim.com.br e nos documentários
produzidos pela Aicó Culturas: www.aicoculturas.com

Índice das telas:


pag. 04 - A Parteira (Dona Zefa da Guia)
pag. 14 - O multirão
pag. 30 - O cortejo (Grupo Xicas da Silva)
pag. 78 - Espaço de Saúde e Cultura Che Guevara
pag. 124 - A biscoitera
pag. 157 - A agente de saúde
pag. 184 - Aprendiz
pag. 206 - A raizeira
pag. 223 - Victor Valla

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