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Revista de Psicologia

Lacan e a Homossexualidade Masculina


Revista Lacan and the Male Homosexuality
de Psicologia

Orlando Cruxên 1

Resumo
Este artigo aborda as concepções de Jacques Lacan sobre a homossexualidade masculina, principalmente aquelas contidas no
Seminário, Livro V, As formações do inconsciente. Coteja os paradigmas teóricos acerca do assunto apresentados no referido seminário
com alguns dos recortes apresentados por Freud sobre a mesma temática. Além disso, o artigo chama, ainda, a atenção para
algumas opiniões problemáticas e sem rigor formal, representando preconceitos na abordagem do tema.

Palavras-chave: Homossexualidade Masculina; Lacan; Freud.

Abstract
The presente articleisan approach about Jaques Lacan’sconceptions on malehomosexuality, which were presented in theSeminar,
Book V, The formations o f the unconscious. It considers the theoretic paradigmas about the themeas described in the mentioned
work, which brings also some of Freudian theories on the subject. Besides, the article stresses some problematic considerations
without forma laccuracy, what means a biased approach of the theme.

Keywords: Male Homosexuality; Lacan; Freud.

Um dia, vivi a ilusão de que ser homem bastaria


Que o mundo masculino tudo me daria
Do que eu quisesse ter
Que nada, minha porção mulher que até então se resguardara
É a porção melhor que trago em mim agora
É o que me faz viver
Quem dera pudesse todo homem compreender, ó mãe, quem dera
Ser o verão o apogeu da primavera
E só por ela ser
Quem sabe o super-homem venha nos restituir a glória
Mudando como um Deus o curso da história
Por causa da mulher.
(Gilberto Gil, Super-homem, a canção)

Recebido em 13 de outubro de 2012


Aprovado em 14 de novembro de 2012
Publicado em 28 de dezembro de 2012

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No tempo do casamento gay, recen- prevalece aqui. Que não nos ve-
temente aprovado na Bahia, faz-se neces- nham dizer, a pretexto de que essa
sário discutir o aporte da psicanálise às es- era uma perversão aceita, aprovada,
truturas homossexuais. Até mesmo porque até mesmo festejada, que não fosse
ao contrário de posições perversas clássi- uma perversão. A homossexualida-
cas, o homossexual é um habitué do divã. de não deixava de ser o que é, uma
A reivindicação gay pelo casamento parece perversão”. (Lacan, 1992, P.39)
acenar para um pedido do sujeito de re-
E mais adiante, ele comenta sobre O
conhecimento de seu desejo. Implica para
Banquete:
uma saída da clandestinidade e do uso ple-
no da palavra. “Porque, afinal de contas, este ban-
quete tomado em seu aspecto exte-
Atemo-nos aqui, às contribuições
rior, por alguém que nele penetre
de Lacan ao tema, principalmente, àque-
inadvertidamente, pelo camponês
las contidas no Seminário, livro V, sobre as
que sai de seu pequeno rincão nos
formações do inconsciente. (Lacan, 1992)
arredores de Atenas, representa,
Vale lembrar que, ao contrário de Freud
convenhamos, uma espécie de as-
(1910/ 2006a), o discurso dos psicanalis-
sembleia de tias, como se diz, uma
tas tem sido preconceituoso ao longo de dé-
reunião de bichas velhas“. (Lacan,
cadas. Temos que levar em conta que, em
1992, p. 47)
sua maioria, o psicanalista atual tem sua
formação universitária nos cursos de gra- Freud, ao situar um dos modelos da
duação em Medicina – com especialidade homossexualidade masculina, como resul-
em Psiquiatria - e no curso de Psicologia, tando de uma deferência ao pai, portanto
que em nosso entendimento são original- ao simbólico, teve uma melhor escuta de
mente lugares de manutenção da norma e posições subjetivas que parecem multiface-
do controle social que se associam ao poder tadas, diversas.
dominante. O desenvolvimento teórico do Semi-
Se as considerações de Lacan são, nário, livro V, situa três estruturações dis-
por vezes, preconceituosas no Seminário, tintas, relativas, uma ao travestismo e duas
livro VIII, quando situa o homossexualismo às homossexualidades masculinas.
enquanto uma perversão e compara o Ban-
quete a uma assembleia de “tias velhas” ,
no Seminário, livro V, ele se mostra mais
versátil e rigoroso. Não podemos esquecer,
O Édipo invertido
como sublinha Coutinho Jorge, que a pos-
tura preconceituosa dos psicanalistas é a O Édipo teria como função a norma-
única coisa em comum entre lacanianos e lização, ou seja, a assunção do sexo pró-
ipeístas. (Jorge, 2010). “Moebianamente” prio. Como cantou Caetano em sua música
(neologismo do autor), Lacan permitiu a intitulada Vaca profana, “De perto ninguém
formação aos homossexuais e considerou é normal”, e Lacan sublinha os destinos
que eles são perfeitamente analisáveis. edípicos tumultuosos no caso do menino.
Vejamos a citação de Lacan, no Se- Retoma, então, a noção freudiana de Édipo
minário, livro VIII: invertido.
“Isso não impede que o amor gre- Pode ocorrer no desenrolar do Édi-
go permaneça uma perversão, por po que o menino se encontre numa posi-
maior sublimação que seja. Ne- ção passiva em relação ao pai. O pai, que
nhum ponto de vista culturalista interditou tanta coisa, torna-se amante no

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plano da fantasia. A decorrência disto, fa- A criança permanece envelopada


zer-se amar pelo pai, traz o risco de colocar pela mãe, espécie de segunda pele, como
o menino no nível da feminização, com a Gauthier denominou algumas camisetas
ameaça de castração que isto comporta. O coladas na década de 90… Daí toda a im-
resultado da operação é uma esquize. Por portância das vestimentas em alguns casos
um lado, o sujeito mantém uma posição de perversão. O sujeito fica preso à lei da
homossexual em relação ao pai. Por ou- mãe, que é uma lei descontrolada, uma lei
tro suspende, recalca esta posição, dada do capricho. A lei está toda no sujeito que a
a ameaça de castração que ela comporta. suporta, ou seja, o bem ou o mal querer da
(Lacan, 1998, 173) mãe. (Lacan, 1998, p.188) De certa forma,
Lacan não se reporta, aqui, à fanta- o sujeito responde à finalização do Édipo
sia “Uma criança é espancada”. Pode ocor- materno, quando o desejo de recuperar o
rer uma fixação à segunda fase da fantasia. falo é o ápice, resistindo à interdição pa-
Ser espancado pelo pai equivaleria a sofrer terna.
o coito, de forma passiva, quando o bater O que provoca questionamento é o
vem compensar a culpa pela fantasia com fato de muitos travestis declararem que
um ato incestuoso. preferem a posição ativa no ato sexual. Po-
demos pensar, com Freud, a gênese do fe-
tiche. Uma parte do representante ideativo
sofre o recalque. A outra parte se articula à
O travestismo idealização. Assim, dada a marca do recal-
que, o sujeito, em parte, acederia à dialéti-
No estabelecimento da metáfora pa- ca do ter ou não ter o falo.
terna o pai substitui a mãe. Desta subs-
tituição resta um x, onde está embutida
a significação do falo. A criança, com um
pouco mais ou menos de astúcia, pode se
O Édipo na homossexualidade mas-
fazer falo, pela via imaginária, que implica
culina
toda uma série de fixações. Esta perspecti-
va é dual, o que faz todo o polimorfismo das ����������������������������������
No Seminário, livro V, Lacan come-
perversões. (Lacan, 1998, p.175) ça a falar de homossexualidade masculina
Numa relação do fetichismo com o de forma enigmática e aforística: “Les ho-
travestismo, Lacan coloca que a criança mosexuels, on en parle. Les homosexuels,
se identifica com o mais além do desejo da on les soigne.Les homosexuels, on ne les
mãe, com o falo propriamente dito. O falo guérit pas. Etcequ’il y a de plus formidable
com valor de excelência é tomado pela via c’estqu’on ne les guérit pas malgre qu’ils
de uma identificação imaginária à mãe. Há soient absolument guérissables”. (Lacan,
mais que uma identificação à mãe fálica. 1998, p.207) Nesse trecho, ele menciona
Há uma identificação ao falo escondido que os analistas cuidam dos homossexu-
sob as vestimentas da mãe. (Lacan, 1998, ais, mas não os curam, apesar deles serem
p.184) A criança não aceita que a mãe seja totalmente curáveis. Lacan deixa entrever
privada pelo pai do objeto de seu desejo. aí um desejo de que os homossexuais pu-
Estamos aqui, aquém da dialética do ter. dessem mudar suas orientações sexuais.
Estamos no nível do to be or not to be o falo. Ao mesmo tempo em que indica que há vá-
A possibilidade de ser castrado é essencial rios homossexuais em tratamento. O que
na assunção do fato de poder ter o falo. (La- não ocorre, com muita frequência, em ca-
can, 1998, p.186) sos de perversão.

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Lacan comenta que o homossexu- Nesta vertente do Édipo, o sujeito se


al passa pelo Édipo, de forma completa. identifica com o lado forte, com a mãe.
O que precisamos compreender é o ponto Quando encontra um parceiro que
preciso do término do Édipo. A relação com é substituto do personagem paterno, suas
o objeto feminino, longe de ser abolida, é fantasias e sonhos demonstram que o sujei-
profundamente estruturada. to trata de desarma-lo, de torná-lo incapaz
Entre os traços da homossexuali- de se fazer valer ante uma mulher. Por ou-
dade masculina, um dos mais fortes é sua tro lado, o interesse pelo pênis no parceiro,
relação profunda e primordial com a mãe. provém do fato de que algo é colocado em
(Lacan, 1998, p.207) No casal parental, a questão- ele o tem, ou não? O parceiro deve
mãe tem uma função diretriz, eminente, demonstrar que têm. (Lacan, 1998, p.210)
ocupando-se mais do filho que do compa- Se amar é dar o que não se tem, o
nheiro. amor excessivo do pai pela mãe torna-se
O interesse pelo pênis do parceiro, um indicativo de que o pai pode não ter o
característica completamente exigível, pro- falo. Em relação ao órgão feminino, o sujei-
vém do fato de que a mãe fez lei ao pai. to apresenta um temor de que ele detenha
A procura pelo órgão do parceiro surgiria o falo paterno. Não se trata aqui do horror
como uma exigência de certificação de que à castração, desmentido e assunção de um
a lei está no lado paterno. triunfo no lugar da castração, conforme os
Lacan desenvolvera, anteriormente, delineamentos freudianos de O fetichismo.
a tese de que o pai intervém na dialética Se a castração não é desmentida, é
edipiana com o desejo de fazer lei à mãe. Na por que ela é inscrita e a lei que permite
homossexualidade masculina a mãe faz a o acesso ao desejo, mesmo que de forma
lei ao pai, num momento decisivo. Quando bastante conflitante, situa-se na vertente
o interdito do pai deveria introduzir o su- paterna. Buscar o falo no parceiro favo-
jeito à fase de dissolução de sua relação ao rece um basta à lei do capricho materno.
objeto do desejo da mãe e cortar, pela raiz, O sujeito tem acesso à dialética do ter ou
toda possibilidade do sujeito se identificar não ter.
ao falo, a criança encontra reforço na estru- Entretanto, Lacan permanece obs-
tura da mãe para que esta crise não tenha curo ao não diferenciar este Édipo comple-
lugar. O sujeito experimenta o fato de que a to, da efusão que o perverso mantém com o
mãe detém a chave da situação que ela não falo materno. Perversão esta que se inscre-
se deixa privar do falo. Houve a interdição, ve na dialética do to be or not to be o falo.
mas ela escoou. Em outros casos, onde a
Freud, em Sobre algunos meca-
marca da interdição paterna é quebrada, o
nismos neuróticos en los celos, la para-
resultado é o mesmo. Pode ser que o pai
nóia y La homosexualidad (1922 [1921]
ame demais a mãe e que surja como muito
/ 2006b) apresenta três versões claras,
dependente dela. (Lacan, 1998, p.208)
embora sucintas, sobre homossexualida-
Lacan se preocupa com uma diversi- de masculina.
dade de casos. Em vários deles, o pai está
O processo típico, discutido no ca-
presente no sentido do Édipo não invertido.
pítulo 3 de seu estudo sobre Leonardo,
Por trás da relação tensional à mãe, marca- implica uma forte fixação infantil à mãe
da por todo tipo de acusações, de queixas, e uma mudança de atitude na puberda-
de manifestações agressivas, que compõe o de: identificação com a mãe e procura de
texto de uma análise de um homossexual, objetos amorosos onde o sujeito se redes-
existe a presença do pai como rival, da ma- cobre e ama, tal como outrora fora amado
neira mais clara. (Lacan, 1998, p.209) pela mãe. Atribui-se um alto valor ao órgão

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masculino e sua ausência no objeto amado ne. Sua atração sexual e seu desejo, entre-
é intolerável. tanto, eram dirigidos a jovens. Suas cartas
à Madeleine se constituíram como fetiche.
“Más tarde hemos llegado a conocer
Uma vez rasgadas por Madeleine, provoca-
todavía, como poderoso motivo para
ram em Gide um estremecimento no fundo
la elección homosexual de objeto, la
do ser e verdadeiros gritos de fêmea.
deferencia por el padre o la angustia
No Seminário, livro XX, Mais ainda,
frente a él, pues la renuncia a la mu-
Lacan (1985, p.105) simplifica as posições
jer tiene el significado de “hacerse a
sexuais em termos de sexuação. É faculta-
un lado” en la competência con el (o do ao falasser colocar-se no lado homem,
con todas las personas de sexo mas- ou no lado mulher, das fórmulas de sexu-
culino que hacem sus veces”. (Freud, ação. São João da Cruz é citado como al-
(1922 [1921] / 2006b, p.224) guém que se situou com afinidade no lado
mulher das fórmulas. Afinal, heterossexu-
Freud, em seguida, descobriu que alidade advém da diferença oposicional dos
uma forte deferência ao pai, na altura do significantes e deve ser mesmo todo tipo de
complexo de castração, motiva a homosse- amor pela diferença.
xualidade. A posição de Freud foi mais atenta
Em um modelo que pode ser articu- e aberta. Aliás, o repúdio ao feminino, en-
lado ao precedente, Freud postula na ori- carnado na aversão atual ao homossexua-
gem da homossexualidade um ciúme arcai- lismo, parece uma nova forma de repressão
co, dirigido contra os irmãos mais velhos. sexual. Como assinala Jorge (2011, p.62)
Ciúme este, derivado do complexo materno. referindo-se ao último tópico, do terceiro
Esses impulsos sofrem o recalque e experi- ensaio de Os três ensaios sobre a teoria da
mentam uma transformação, de forma que sexualidade:
os antigos rivais surgem como os primeiros “Nele podemos observar a maneira
objetos amorosos homossexuais. sub-reptícia pela qual Freud prati-
camente traz a homossexualidade
Este processo, em contraste com-
para o campo da normalidade. Ao
pleto com o desenvolvimento da paranoia,
observar que a atração que os ca-
demonstra uma exageração do movimento
racteres sexuais antagônicos exer-
que conduz ao nascimento de pulsões so-
cem um sobre o outro não é sufi-
ciais no indivíduo.
ciente para excluir a perversão, ele
O quadro é caracterizado por uma
pondera que a interdição desta pela
mudança muito precoce das pulsões agres-
sociedade é um fator proeminente
sivas tanto quando pelo fato da identifica-
para realizar tal exclusão. E acres-
ção com a mãe retroceder para segundo
centa que: `quando a inversão não é
plano. Há, aqui, um amor pela diferença
considerada um crime, ver-se-á que
que convive com a heterossexualidade e
ela responde amplamente às incli-
não contém traços do horror feminae.
nações sexuais de um número não
Outras considerações de Lacan sobre a ho- pequeno de pessoas`.
mossexualidade masculina
Apenas a título de informação, assi-
nalamos que Lacan (2000) também tratou
de homossexualidade masculina em A ju- Referências
ventude de Gide, texto dos Escritos. Ali, ele
pondera sobre a disjunção entre a corren- FREUD, S. (2006a) Um recuerdo infantil de
te do amor e a do desejo. Gide, realmente, Leonardo da Vinci Buenos Aires: Amor-
amava sua prima e futura esposa Madelei- rortu. (Original de 1910)

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_______ (2006b) Sobre algunos mecanismos


neuróticos en el cello, la paranoia y la
homosexualidad. Buenos Aires. Amor-
rortu. (Original de 1922[1921])
Jorge, M.A.C. (2011) Cem anos da teoria a
sexualidade. In. Braunstein, N; Fuks, B.
B. (Orgs) 100 anos de novidade: a moral
sexual cultural e o nervosismo moderno,
de Sigmund Freud (1908-2008). Rio de
Janeiro: Contracapa.
Lacan, J. (2000) A juventude de Gide. In.
Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
_______ (1998) Le Séminaire. Livre V. Les
formations de l’inconcient. Paris: Seuil.
_______ (1992) O seminário, Livro 8. A trans-
ferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
_______ (1978) O seminário, Livro 20. Mais,
ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

1
Psicanalista. Professor Associado II do Departamento de Psicologia da UFC. Membro do Laboratório de Psicanálise da
UFC e do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise – Seção Fortaleza. Av. Santos Dumont, 3131 - A / 521Shopping Del
Paseo - Aldeota - Fortaleza - Ceará
CEP 60150-162. e-mail: ocruxen@uol.com.br

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