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artigo

CELEBRAção da surpresa

Celebration of the surprise

Saúl I. Fuks
Resumo: este trabalho propõe uma reflexão so- Abstract: This paper proposes a reflection
about certain ways to connect with others who Terapeuta de casal,
bre determinadas maneiras de se conectar com
formador de terapeutas e de
os outros, que impactam significativamente a significantly impact the quality of the link is built.
facilitadores de grupos.
qualidade do vínculo construído. Faremos uma In particular we will review what has been called
“surprising ability” associated with “curiosity”, E-mail: cocofuks@gmail.com
revisão, em particular, do que tem sido chamado
de “capacidade de se surpreender”, expressão a position that has regained prominence in the
associada à “curiosidade”, características valori- “postmodern”. We will also discuss the role of
zadas na “pós-modernidade”. Discutiremos tam- reflexivity in the production of intersubjectivity Tradução de
bém o papel desempenhado pela reflexividade na and processing transformative connections. We’ll
produção da intersubjetividade e na geração de also briefly review some of the challenges that eloisa rosas
conexões transformadoras. Do mesmo modo, arise when trying to convey / teach curiosity and
nos deteremos sobre alguns dos desafios que se capacity to be surprised as instrumental “techni-
apresentam, quando se busca transmitir/ensinar ques” in psychotherapy, facilitation or research.
a curiosidade e a capacidade de se surpreender,
como “técnicas” instrumentais na psicoterapia, Keywords: curiosity, surprise, surprise, refle-
na facilitação ou na pesquisa. xivity

Palavras chaves: curiosidade, surpresa, as-


sombro, reflexividade.

A veces la curiosidad puede despertar el coraje o avivarlo. Pero, en la mayoría de los casos, la Recebido em 20/09/2011.
curiosidad enseguida se desvanece. La valentía tiene que recorrer un camino mucho más largo. Aprovado em 03/10/2011.
La curiosidad es igual a un amigo simpático en quien no puedes confiar. Te instiga y cuando
le parece, se va. Y entonces, tú solo, tienes que tirar para adelante haciendo acopio de coraje.
(Murakami, 2010)

A curiosidade converte as pessoas em estátuas de sal* e mata o gato**?

Na tradição filosófica ocidental (Gomperz, 2000), o interesse pelo “ser curioso”


emerge associado à busca de conhecimento, embora muito precocemente ele se
desdobre em sua dupla face: como busca da sabedoria e como transgressão mítica.
Aristóteles (1997) sustentava que a filosofia começa com o assombro. No início de
sua Metafísica, ele afirma que:

... os homens começam e começaram sempre a filosofar movidos pela admiração; no co-
meço, admirados diante dos fenômenos surpreendentes mais comuns; depois avançando
pouco a pouco e concebendo problemas maiores, como as mudanças da lua e os relativos
ao sol e às estrelas, e à criação do Universo. Mas o que se coloca como um problema, ou se
* Relato bíblico da mulher de
admira, reconhece sua ignorância. Lot, convertida em estátua de
sal por ter se deixado levar pela
curiosidade
Em Karl Jaspers (1989) há uma interessante distinção sobre o lugar ocupado ** Dito popular: a curiosidade
pelos questionamentos: matou o gato
A palavra grega filósofo (philosophos) se A concepção que valoriza a posição
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formou em oposição à sophos. Quer dizer, receptiva – a forma “Abrahâmica”*** –
amante do conhecimento, diferente de concebe o ser humano como um reci-
quem, na posse do conhecimento, se deno- piente que precisa ser preenchido com
minava sábio. Este sentido da palavra per- informações e ensinamentos, como um
dura até hoje: a busca da verdade – não a ser evolutivo que transita por graus de
posse da verdade – é a essência da filosofia conhecimentos progressivos, até al-
[...] Filosofia significa fazer caminho. Suas cançar o nível de seus mestres (ou seus
perguntas são mais essenciais do que suas deuses). Posicionamo-nos nos terri-
respostas, e cada resposta se converte em tórios da humildade, da gratidão, do
* Faz parte do processo de uma nova pergunta. (Jaspers, 1989). respeito, do reconhecimento, da troca,
construção dos mitos que
organizem formas binárias “quando o discípulo está preparado, o
e dilemáticas de formular os Nas histórias que narram a busca Mestre aparece”, das tradições místicas.
desafios.
** Qualificar-se-ão como
humana pelo conhecimento de seu A forma “Prometeica” concebe o ser
receptiva ou passiva a mundo, o posicionamento diante “das humano como alguém com direito a
interdependência, o livre arbítrio coisas”, a partir da curiosidade, do as- acessar os conhecimentos, a elevar-se
e os graus de liberdade, de
acordo com a concepção de ser sombro e da paixão pelo descobrimen- à altura dos deuses, com liberdade de
humano. to, chegam a nós organizados como colocar em dúvida a própria existência
*** Fazendo referência
à maneira receptiva com
relatos dramáticos ou trágicos. Nos destes, para reivindicar sua condição
que Abrahão recebe de mitos* antigos, o conhecimento podia de Herói; de ser “a medida de todas
Jeová os conhecimentos e ser “outorgado” por alguém superior,
sua convivência com seus
as coisas” do Iluminismo, do Renasci-
questionamentos que não eram como Prometeu ou Jeová, ou podia mento e do Humanismo. Essa forma
respondidos. Um livro que ser inventado ou obtido, por meios ativa de se posicionar diante da bus-
encarna esta dramática é escrito
pelo Rabino Nilton Bonder: lícitos ou ilícitos, definindo essas his- ca do conhecimento foi construída
Tirando os sapatos: o caminho tórias diferentes em lugares e tramas na trama das tensões entre liberdade
de Abraão, um caminho para
o outro, realizado por ocasião
relacionais para o ser humano. Cada e destino; entre os tempos de busca e
do projeto de diálogo público uma dessas formas narrativas mostra- os da necessidade de saber e como ex-
chamado O caminho de va modelos particulares de maneiras pressa Leonardo Boff (1998):
Abraham (www.abrahampath.
org) (Bonder, 2008). de se relacionar com o conhecimen-
**** Conta o mito que Zeus to, com a educação, com as interações Todos nós temos, de um jeito ou de outro,
enviou Pandora como presente
a Epimeteu, e ele ficou tão
entre “mestres” e “aprendizes” e/ou uma dimensão-galinha e uma dimensão-
fascinado por sua beleza com a cultura da época. Em uma for- -águia dentro de nós. A dimensão-galinha
que decidiu se unir a ela mulação esquemática e polarizada é é o sistema social imperante o nosso arranjo
imediatamente. Como presente,
Zeus lhes ofereceu uma linda possível definir duas formas extremas existencial, a nossa vida cotidiana, os hábi-
caixa enfeitada com pedras de contar com esses vínculos: a visão tos estabelecidos e o horizonte de nossas pre-
preciosas. A caixa estava
fechada e, ao dar a chave a receptiva ou passiva** apresenta cená- ocupações. São também as limitações (...) A
Pandora, Zeus advertiu que, rios nos quais as relações de transmis- dimensão-águia são os sonhos, os projetos,
se queriam viver felizes, não a
abrissem nunca. Assim fizeram
são, de ensino e a passagem – mais ou os anelos, os ideais e as utopias que, mesmo
e viveram sem problemas e menos ritualizada – dos saberes pela frustrados, nunca morrem em nos porque de
sem envelhecer, até que a via hierárquica ocupam lugar central. novo ressuscitam (Boff, 1998).
curiosidade de Pandora fez com
que a abrisse, deixando surgir Na visão oposta encontramos, ao con-
os males do mundo (doenças, trário, relatos heroicos, nos quais se A mitologia antiga é plena de lições
amarguras, dores, guerras
e outras desgraças...), mas
destacam a busca da independência, a de moral nas quais o desejo de saber
surgiu também a esperança, rebeldia diante da hierarquia, a paixão é associado à soberba e à transgressão
sob a forma de um pássaro pela aventura e o risco, e os grandes
que levantou voo. A curiosidade
dos ditames dos deuses. No mito grego
parece ter sido – para os antigos desafios de buscar o conhecimento, de origem do Homem, o relato do pre-
gregos – a fonte de todos os transgredindo proibições e rompendo sente de Zeus a Epimeteu e Pandora****
males, mas também a origem
da esperança. (Gomperz, 2000) tradições. é uma densa representação dessas ten-

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sões. Algo valioso que é dado implica res para sempre, não faltaria mais, dois
deuses num universo, por isso te expulso
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na proibição de saber o que contém. Saúl I. Fuks
Zeus aparece como um deus que tenta a ti e a tua mulher deste jardim do éden...
o ser humano com a curiosidade, pre- (Saramago, 2009).
vendo que o desejo de saber será mais
poderoso do que as advertências divi- Estas maneiras de entender os rela-
nas. Um presente dos deuses incentiva tos culturais questionam ou relativi-
a desobediência e desata as desgraças zam as versões nas quais as histórias
para a humanidade, embora também são apresentadas como verdades “eter-
libere o pássaro da esperança. nas” reveladas, e fornecem versões
A situação é semelhante à enfren- mais complexas da vida social, como
tada por Adão e Eva que, nos rela- tramas de relatos nas quais alguns ocu-
tos bíblicos, confrontam o dilema da pam uma posição dominante, à custa
curiosidade com o da inocência, e en- do silenciamento de outras versões.
frentam a tentação de querer “saber” Assumimos, aqui, um olhar cético so-
o que não lhes era permitido. Como bre as versões das coisas que parecem
grande parte dos relatos que nos co- contar com certificados de veracidade
lonizam, os “ensinamentos” advertem ou que aparentam ser inquestionáveis.
sobre os perigos de nos deixarmos
levar pela paixão da curiosidade, ali- A curiosidade: ela matou o gato?
mentada pelo desejo de saber. No en-
tanto, na história humana, aqueles que Em sua magnífica revisão da histó-
promovem a necessidade de limitar ria da curiosidade na filosofia, Jeanne
os desejos pelo conhecer e investigar Hersch (2010) destaca que o primeiro
o “invisível” dificilmente conseguem motivo de curiosidade na nascente fi-
tomar o controle permanentemente; losofia (ocidental) foi a consciência da
outras narrativas se infiltram, crescen- mudança de todas as coisas. Este im-
do nos interstícios, expandindo suas pacto alimentou uma série de pergun-
redes de sentido, até alcançar a visibi- tas que, até esse momento, não haviam
lidade e a força para expressar sua voz. sido formuladas sobre o Universo e as
José Saramago (2009), com sua ico- coisas que o habitam. Estes questiona-
noclástica irreverência, nos transpor- mentos se expandiram, até que as in-
ta à cena do castigo original – no seu dagações sobre persistência e mudança,
Livro de Caim – e constrói um relato e o transcorrer do tempo se tornaram
“Prometeico”, no qual desnuda o eter- a matriz a partir da qual teve início a
no paradoxo enfrentado pelo ser hu- aventura humana do amor ao conhe-
mano Ocidental: é convidado a ser um cimento. De acordo com a autora:
quase-deus, criado à imagem e seme-
lhança Dele, com capacidade de discu- Pode o leitor imaginar o extraordinário
tir de igual para igual, mas obrigado a radicalismo de tais perguntas quando
limitar sua curiosidade, sob pressão de foram formuladas pela primeira vez?
ameaças terríveis. Podemos viver perfeitamente em meio
às coisas que mudam enquanto estas
Disse então o senhor, tendo conhecido o possuam, para nossa vida prática, uma
bem e o mal, o homem tornou-se seme- estabilidade relativa, suficiente para nós:
lhante a um deus, agora só me faltaria se colocamos um pão sobre a mesa, um
que fosses colher também do fruto da pouco mais tarde o encontramos de novo
árvore da vida para dele comeres e vive- ali, e isso basta (Hersch, 2010).

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Sócrates, ao propor sua “ironia que detenham ou posterguem a in-
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socrática”, foi o primeiro a formu- quietude, ou no risco de transitar pelo
lar um método para guiar a reflexão mistério de questionar, sabendo que
do interlocutor, e conduzi-lo à expe- não encontraremos a resposta.*
riência da perplexidade e confusão Em desenvolvimentos posteriores,
que produzem a experiência do não- especialmente na América Latina, a
-saber; o sentido disso é provocar “problematização” se converteu em
o reconhecimento de que sentir-se método dialógico, herdeiro da maiêu-
seguro de sua verdade é uma ilusão, e tica Socrática e potencializador da
esta descoberta o conduzirá a um novo consciência crítica: nesse terreno é in-
começo de reflexão. superável a obra de Paulo Freire (1970).
Nessa tradição, Santo Agostinho Foi precisamente esse pedagogo quem
(2010) nos confrontou com o incom- destacou o papel alienante de olhar o
preensível e com o efeito produzido na mundo como algo “natural” e, em con-
maneira como “o que fazer diante do sequência, indicou o papel perturbador
incompreensível, diante do problemá- da pergunta sobre “o já dado”.
tico?”. Não obstante a maneira que se con-
Um “problema” se refere aos obstá- sidere a curiosidade e o assombro, não
culos contra os quais se chocam nosso estão eles desligados da concepção de
pensamento, que não dependem de homem que se tenha. Um exemplo
nossa dificuldade de compreensão ou é que tanto Santo Agostinho (2010)
do montante de conhecimentos, mas como Heidegger (1951) consideravam
de nossa condição humana. A diferen- a curiosidade como uma forma degra-
ça entre uma “pergunta” e um “pro- dada e perversa do amor pelo saber,
blema” (Hersch, 2010) é que, diante uma “paixão epistêmica”. Walter Benja-
de certo tipo de pergunta, é possível min (1986) – ao contrário – a conside-
encontrar uma resposta (mesmo pro- rava como algo que amplia e enriquece
visória), mas ao ser formulada uma a capacidade perceptiva humana**.
questão à qual somente podemos res- No centro dessa antiga discussão en-
ponder com outra – numa série que a contramos a questão em torno do papel
aprofunda, sem oferecer uma resposta destinado – na vida – ao ócio, ao prazer
– estamos, então, diante de um “pro- e à dimensão lúdica da existência.
blema”. Em cada problema, reside um Agostinho/Heidegger – irmanados
mistério que, quanto mais buscamos na moral ascética do trabalho – qualifi-
esclarecer, mais se aprofunda. cam a distração gerada pela curiosidade
Essa distinção entre pergunta e pro- como pecaminosa e como falta de au-
blema permite destacar que as diferen- tenticidade. Em Benjamin, chega a ser
ças não estão ligadas ao conhecimento proposta como fonte de abertura a no-
que se persegue, mas à atitude diante vas experiências, ligada à criatividade.
* Queremos resgatar o lugar do conhecimento que se sustenta. Essa Isso parece ser uma tensão que perdura
que Barnett Pearce deu, em
sua obra, a esta dimensão diferença abre caminho para refletir até nossos dias e que – com frequên-
misteriosa do conhecimento. sobre nosso posicionamento e a res- cia – se expressa nas falsas opções, que
** Paolo Virno (Virno, 2003) faz
ponsabilidade assumida, pelo modo opõem rigor e criatividade***.
uma análise crítica aprofundada
deste ponto em um relato que como nos colocamos diante dos ques- A palavra curiosidade tem origem
vai além deste trabalho. tionamentos. Nessa bifurcação abrem- no latim curiosus (cuidadoso, diligen-
*** Para aprofundar
este aspecto, a obra -se opções que conduzem a caminhos te) e – como emoção – está relaciona-
de Nachmanocitch, La diversos: podemos nos situar do lado da à conduta de investigar, explorar e
improvisación en la vida y en el
arte é uma leitura insuperável.
da busca e/ou produção de respostas aprender, tanto presentes em huma-

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nos como em animais. Apesar de se rísticas do interesse são pouco conhe-
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constatar a existência da curiosidade cidas, e ele é considerado uma forma Saúl I. Fuks
na maioria dos seres animados, uma de avaliação da novidade, relacionada
das características distintivas – entre a ao desconhecimento e à complexida-
curiosidade do ser humano e a de ou- de, assim como com a avaliação da
tros animais – é que o homem parece capacidade e o potencial de confronto
ser o único que pôde desenvolver uma diante de determinada situação.
meta-curiosidade: uma curiosidade
sobre a curiosidade. Quais as semelhanças e as diferenças en-
Depois do processo histórico críti- tre a curiosidade despertada em um gato,
co – associado ao humanismo – que diante do movimento de uma cortina; a
permitiu a revalorização das formas curiosidade de um ser humano diante de
criativas e libertárias de acesso ao co- uma atitude inesperada de outra pessoa
nhecimento, a curiosidade tende a ser e a curiosidade de um sujeito sobre sua
considerada, atualmente, como uma própria maneira de reagir diante de algo
paixão, que impulsiona a busca do sa- imprevisível?
ber, diferenciando-se, por contraste,
de um olhar sobre as coisas, susten- Voltaremos adiante a essa questão es-
tado no natural e no óbvio, que lança pecialmente relevante para aqueles que
uma luz uniforme sobre a vida. trabalham facilitando ou promovendo
processos de transformação e mudan-
“A vida te dá surpresas, surpresas te dá a ça, seja em contextos terapêuticos, edu-
vida, ai Deus” * cativos ou de transformação social.
A atenção sobre o que atrai nosso
Tooru Okada, o protagonista da interesse, para poder se sustentar como
novela de Murakami, ao afirmar: “A uma intenção consistente de busca de
curiosidade é igual a um amigo simpá- conhecimento, parece requerer o su-
tico em quem não se pode confiar. Te porte de uma atitude que poderíamos
instiga, e quando lhe apetece, se vai”; chamar de “capacidade de se surpre-
expressa a volatilidade da curiosidade ender”, já que ela é que pode trazer o
e a necessidade de contar com a va- suporte para que a volúvel curiosidade
lentia de seguir investigando quando a não se disperse, saltando de um lado
curiosidade decresce. para outro.
De onde vem essa energia que evita A surpresa pode ser considerada
que nos dispersemos diante de tudo o tanto um estado emocional de breve
que pode despertar nosso interesse? duração, produzido por um aconte-
O interesse é um sentimento ou cimento inesperado, como um estado
uma emoção que faz com que a epistêmico, gerado pela não satisfação
atenção se centre em um objeto, um de uma expectativa. Para que ocorra
acontecimento ou um processo. Nos um estado de surpresa é necessário que
desenvolvimentos da psicologia con- tenha existido – previamente – um ce-
temporânea, o termo tem sido utiliza- nário de expectativas, e que estas não
do como um conceito geral, capaz de tenham sido cumpridas**. Nesse senti-
abarcar outros conceitos psicológicos do poder-se-ia considerar que as sur- * “Pedro Navaja”, canção de
mais específicos, tais como a curiosi- presas são o resultado final de predi- Rubén Blades
** Poderíamos incluir,
dade e, em menor medida, a surpresa. ções ou antecipações fracassadas. sem dúvidas, a expectativa
Na opinião do pesquisador das A surpresa – como experiência – “negativa”: uma atitude de não
esperar que aconteça nada que
emoções, Paul Silvia (2005), as caracte- não pode ser duradoura, assim como chame nossa atenção.

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não pode manter constante sua ener- expectativas e nosso desejo de saber algo
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gia original, e costuma ser inversa- novo não seriam determinados pelo que
mente proporcional à capacidade da possuímos previamente?
pessoa de se habituar às situações ines-
peradas. À semelhança da curiosidade, A experiência surpreendente irrom-
elas podem apresentar “graus” em sua pe como incerteza, instabilidade, des-
manifestação, já que podem ser pro- concerto e – quando muito intensa e
duzidas situações de maior ou menor de longa duração – pode se converter
surpresa, que podem ser neutras, agra- em um impacto transformador que,
dáveis ou desagradáveis, cuja intensi- com sua energia perturbadora, poderá
dade parece estar relacionada ao grau surgir como poderoso gerador de mu-
de expectativas que não são satisfeitas. danças em nossos sistemas de crenças.
Em consequência, a surpresa en- Esse impacto não necessariamente se-
contra-se intimamente ligada à forma guirá a senda transformadora, o sur-
como construímos nosso mundo e o preendente também pode se restringir
transcorrer da vida cotidiana como ce- a um sobressalto ocasional que – não
nários estáveis, seguros e previsíveis e, sendo alimentado pela curiosidade –
assim, aos modos pelos quais organi- será controlado, mediante os pré-con-
zamos nosso sentido de identidade(s). ceitos e as rotinas naturalizantes.
Emerge, então, como um estado epis- Quando a curiosidade se transfor-
têmico, enraizado em nossas crenças, ma em capacidade de se surpreender,
valores, desejos, emoções, preferên- se maravilhar ou se admirar, e no po-
cias, preconceitos e – nessa direção – deroso motor que impulsiona a neces-
vinculada à forma como damos coe- sidade de conhecer mais sobre o que
rência a nossas ações. chamou a atenção, essa tensão alimen-
Como assinala Gadamer (1997): ta o desejo de se converter no explo-
rador de algum aspecto da realidade
Nosso ser não está composto por nossos que, para outras pessoas, pode ser algo
conceitos, mas por nossos preconceitos banal e sem interesse.
(...) os preconceitos nem sempre são er- Os “objetos” que despertam inte-
rôneos ou injustificados, nem sempre resse, curiosidade ou assombro não
distorcem a verdade. Ainda mais, a his- existem em mundos paralelos aos de
toricidade de nossa existência implica em quem vive essas emoções; a trama
que os preconceitos, em sentido estrito, relacional da qual essas experiências
conformam a direção que terá nossa ex- emergem se baseia nas interconexões
periência. São os fundamentos de nossa e interdependências que estruturam e
abertura para o mundo (...) as condições organizam nossa vida. Nesses cenários,
pelas quais experimentamos, pelas quais o “outro” pode emergir como foco de
conseguimos escutar o que a experiên- interesse, nos assombrar e despertar
cia tem para nos dizer. Isso não significa nossa curiosidade e, como consequên-
que estejamos presos aos nossos precon- cia desse impacto, abrir espaços para
ceitos e que somente deixamos entrar o ser explorado, como uma paisagem
que não viole a premissa de que “não há desconhecida e perturbadora.
nada de novo a se dizer”. Pelo contrário, As formas ou desenhos que se orga-
os hóspedes que deixamos entrar na nos- nizam de “exploração” do outro aconte-
sa vida são aqueles que nos despertam a cem (surgem e são sustentadas) em fun-
curiosidade. Mas, como sabemos, de to- ção do tipo e da qualidade das conexões
dos, qual será capaz de conseguir? Nossas existentes, assim como dos contextos

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nas quais estão inseridas, o que resume fluxo das ações conjuntas, desenvol-
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toda a singular complexidade de nossa vidas para dar/encontrar um senti- Saúl I. Fuks
vida relacional, de sua ética e das di- do singular a esse momento, podem
mensões micropolíticas desses mundos. transbordar as restrições do marco em
Que formas relacionais são estas que que se desenvolvem, e se converter em
nomeamos de “conexões”? encontros transformadores.
A palavra conectar se refere* a “esta- Essas tramas enredadas tomam cor-
belecer relação entre uma ou mais coi- po, se plasmam na ação/prática social,
sas”, “unir ou colocar em contato uma nas formas conversacionais que se
coisa com outra, de modo que formem organizam. Barnett Pearce (2011) sus-
uma só coisa ou fiquem ligadas”: ligar tenta, em sua produção, uma preocupa-
elementos que, sem esse fator, perma- ção consistente em torno desses temas.
neceriam isolados, desconectados, sem Em seu livro Communication and the
referência, descontextualizados. Human Condition propõe uma relação
Estas conexões supõem uma forma de causalidade recíproca entre as for-
de acoplamento que implica – de am- mas de comunicação que desenhamos
bas as partes – um interesse genuíno e os modos de “ser humano” que ge-
pelo outro, assim como a disposição ramos. Nessa publicação, sustenta que
e a abertura para exploração**. Uma nos comunicamos da forma que faze-
posição relacional que supõe “trans- mos devido ao tipo de pessoa em que
parência” e implica em “estar aí”, po- nos convertemos, e que somos o tipo de
sicionado “na primeira pessoa” (Fuks, pessoas que somos devido às formas de
2010) e sem se proteger pelo uso da comunicação para as quais contribuí-
técnica. Esta forma de relação foi sin- mos para organizar e nas quais partici-
tetizada por Shotter (2009) da seguin- pamos ativamente.
te maneira: Nessa direção se encontram as pos-
turas construcionistas, quando susten-
Desta maneira, como vejo, existem cer- tam que criamos mundos relacionais
tos momentos cruciais na vida humana, com nossa forma de falar com nós
em nossas ativas e vivazes relações com mesmos e com os outros. Neste traba-
os demais, nos quais uma segunda pes- lho, buscamos refletir – somente – so-
soa responde de maneira espontânea aos bre as complexidades e os desafios dos
pronunciamentos (ou a qualquer tipo de mundos em que participamos, quando
expressão) de uma primeira – seja com nos posicionamos, expandindo nossa
uma escuta ativa ou com uma resposta curiosidade e capacidade de assombro.
sensível às mesmas – estabelecendo entre Em suma, falamos de formas de
elas uma “conexão vívida”, um momento habitar mundos relacionais – geradas
que, conforme Bakthin (1986), podería- pela curiosidade e pelo espanto – que
mos chamar de “momento dialógico”; ou podem ser pensadas como marcos
o que originalmente eu formulava como matriciais, inerentes às conversações
“ação conjunta” (Shotter, 1980) e, poste- transformadoras e, nesse sentido, con-
riormente, como um “momento interati- sideradas como metainstrumentos. * Diccionario Manual de la
O que torna possível celebrar a apari- Lengua Española Vox. 2007.
vo” (Shotter, 1993).
Larousse Editorial, S.L.
ção do que não esperávamos? ** Usamos a expressão
Estamos nos referindo ao tipo de Quais são os movimentos que pro- “explorar” para substituir a
palavra “pesquisar”, que tem
vínculos que, mesmo condicionados duzimos para que o desconcerto que nos uma conotação e um peso
pelo contexto (ou contextos) que cir- perturba e atemoriza se converta no de- acadêmico que não condiz
com o sentido do que estamos
cunscrevem o sentido do encontro, o sejo de nos aproximar, conhecermos mais propondo.

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sobre o que nos inquieta e abrir-nos a A reflexividade: de que outra
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conexões íntimas que nos comprometem? coisa estamos falando?
Que mudanças precisamos produzir
em nós, para sermos capazes de detec- Barnett Pearce (2011) propõe, em
tar algo surpreendente, onde só víamos seu trabalho At Home in the Universe
coisas conhecidas, que não despertavam with Miracles and Horizons: Reflections
nosso interesse? on Personal and Social Evolution, uma
Quais são os aspectos que distinguem concepção do desenvolvimento da
essas curiosidades e surpresas entre as consciência do ser humano baseada no
que fazem o gato saltar e aquelas outras que denomina “milagres”. No Quinto
que deixam uma pessoa pensativa dian- milagre: a autoconsciência: desde a cons-
te de algo que não compreende? ciência de si mesmo à consciência reflexi-
A principal diferença entre a surpre- va (consciente de ser consciente), diz:
sa do gato e a nossa parece residir nessa
estranha capacidade humana de se ob- Esta qualidade da mente é, pelo que sa-
servar como se fosse “outro”, e de olhar bemos, um desenvolvimento tardio na evo-
para si, a partir dos olhos dos outros. lução do universo, única em uma espécie
Essa possibilidade de sentir curio- neste planeta e, acredito, um desenvolvi-
sidade pelo fato de estar experimen- mento relativamente tardio em nossa espé-
tando curiosidade, de ser capaz de se cie em seu conjunto e na maturação de cada
desdobrar e de se re-conhecer nesse um de nós individualmente. A consciência
desdobramento é o que faz a diferença. autorreflexiva é a capacidade da mente que
O estar aberto à curiosidade e prestar permite a homens e mulheres trocarem de
atenção a um acontecer (como o gato!) perspectiva intencionalmente. Não estou se-
e – simultaneamente – ser perturba- guro de que todos nós desenvolvamos uma
do pela experiência de vivenciar essa autoconsciência reflexiva. Não estou segu-
emoção (curiosidade) que inunda de ro que todos nós queiramos desenvolvê-la.
indagações parece ser uma das linhas Uma consciência autorreflexiva nem sempre
divisórias que nos distingue como es- é algo que desejamos ter. É ela que nos faz
pécie. temer a morte ou o fracasso, perguntarmo-
Em um pensar complexo que -nos sobre que forma tinha nosso rosto antes
transcende a razão, este segundo ní- que nascêssemos, temer o futuro, etc. Nossa
vel de curiosidade se desdobra em um consciência autorreflexiva é também o me-
cenário existencial perturbador, que canismo que permite ao nosso espírito voar,
questiona quem o vivencia sobre seu imaginar o que não podemos ver, construir e
modo de transitar na vida relacional. pôr em marcha planos para mudar o mundo
O processo é expansivo e quase em que vivemos. Quando a admiração e o
fractal, já que, partindo da inquietu- assombro são gerados, é permitido ao nosso
de pelo “o que está acontecendo comi- cérebro ser integrador e à nossa mente fun-
go?”, se transforma em “quem sou eu, cionar nos níveis superiores da consciência.
o que sou eu; esta pessoa que está sendo
impactada pelo que está acontecendo” Este observar-se do observador em
e expandindo-se: “A partir de agora, suas próprias observações é uma ma-
que consequências terá o que estou nifestação de uma “reflexividade” di-
experimentando em minha maneira de ferente da mera racionalidade, uma
viver, nos compromissos que assuma, concepção desta que transborda o
nas responsabilidades que enfrente, nos “pensar-se” associado aos processos
testemunhos que produza?”. cognitivos ou à clássica introspecção

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da psicologia moderna, e que se cons- vem trazendo notáveis contribuições
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titui como princípio essencial de uma para o aprofundamento dessa temáti- Saúl I. Fuks
relação com o conhecimento a qual ca, destacando que os métodos a que
poderíamos denominar Epistemologia os pesquisadores recorrem para conhe-
da Reflexividade. cer o mundo social são, basicamente,
A reflexividade assim entendida limi- os mesmos utilizados pelos atores para
ta a conexão íntima entre a compreen- conhecer, descobrir e atuar em seu pró-
são/construção que fazemos de nosso prio mundo (Garfinkel, 1967; Heritage,
mundo nos diálogos internos, e a ex- 1984; Fuks, 2010; Hammersley,1994).
pressão de dita compreensão nos relatos John Shotter, por sua vez, sublinhou
que produzimos para os outros. Essas a importância de entender nossa exis-
narrativas configuram tanto o suporte tência humana “desde dentro”, e no
como o veículo dessa compreensão, e artigo de 1999 intitulado At the boun-
não existem fora da comunicação em daries  of being: Re-figuring  intellec-
que se constroem e onde se expressam. tual life afirmava:
Diversos autores se detiveram dian-
te do tema da reflexividade, da qual se Acontecem coisas estranhas no ponto de
pode encontrar referências precoces contato entre duas ou mais formas de
em Maquiavel (1972); na sociologia vida diferentes entre si. (Ali) emerge ou-
esse conceito foi introduzido por Al- tra forma de vida coletiva com seu único
fred Schutz (1973), que a definia como e singular mundo próprio (uma cultu-
a forma em que os sujeitos conferem ra?). Como Bakhtin (1984) assinalava,
sentido-significado às suas condutas, é somente a reunião de uma pluralidade
com o nome de intersubjetividade. de consciências sem se fundirem, cada
Recentemente, Bourdieu (1995), Gi- um com seu próprio mundo, que tal es-
ddens (1997) e Luhmann e de Georgi paço (estrutura dialógica) se cria... “seu
(1993) se ocuparam especialmente da caráter único somente pode ser viven-
noção de reflexividade. Em Bourdieu ciado e compreendido desde dentro das
essa noção se faz notar tanto em sua práticas que se criam...” (Shotter, 1999)
teoria como em sua prática intelectual,
partindo de seus estudos na aldeia dos A partir dessas concepções, a tarefa
Pirineus onde cresceu, até a pesquisa de conhecer o mundo dos outros (e
no mundo universitário; a sociologia como estes o habitam) se focou em:
representa para ele uma autoanálise, “apreender as formas em que os sujei-
uma reflexão da realidade sócio-his- tos produzem e interpretam sua reali-
tórica e a possibilidade de interrelação dade, para apreender seus métodos de
entre ciência e sociedade. Por sua vez, pesquisa” (Guber, 2011). Essas perspec-
Giddens ligou a reflexividade com os tivas surgidas em espaços acadêmicos,
conceitos de “sociedade de risco” e ao serem introduzidas nas práticas so-
“desenvolvimento do eu”, pontos no- ciais comprometidas com a mudança
dais de sua definição da modernidade – como a psicoterapia –, motivaram
tardia. Luhmann localiza o conceito de um deslocamento desde o poder es-
refexividade no centro de sua teoria do truturante dos protocolos e “verdades”
sistema social, onde situa a capacidade em direção a formas de exploração do
de observação do ator como funda- mundo dos interlocutores e aos mo-
mento da complexidade social. dos em que estes constroem o foco da
Partindo de outros questionamentos, conversa/encontro que os convoca. Não
desde os anos 1960 a etnometodologia obstante o impacto que essas ideias pro-

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venientes do mundo acadêmico tive- (com graus diferentes de responsabi-
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ram no surgimento do que chamamos lidade) da forma que tomem esse en-
“terapias pós-modernas”, esse efeito se contro, das conexões que se habilitem,
aprofundou devido a uma característi- da diversidade de histórias que ocor-
ca singular dos contextos que as apro- ram, das condições em que os corpos
ximam da pesquisa-ação (Lewin 1946; possam se manifestar, das sinergias ge-
Argyris & Schon,1974): o processo em radas para potencializar o melhor de
espiral que descreve uma sequência de cada um, das éticas que sejam coorde-
ação-reflexão-ação e que explicita seu nadas e dos significados transmutados.
compromisso com a mudança*. A partir daí, entender quais são os
Estas concepções sobre os encon- questionamentos que os “outros” se fa-
tros, que resgatam a presença cons- zem e mediante que métodos buscam
trutiva do observador/pesquisador, obter respostas às suas inquietações
tornam mais evidentes – que na pes- implica, por parte do “observador/
quisa acadêmica clássica – o fato de terapeuta”, a expectativa de que a dita
que quem pesquisa o mundo do outro exploração possa guiar sua própria
está sendo “pesquisado”, por sua vez, reflexividade para entrar em sintonia
por seu interlocutor, que será pertur- com a do cliente.
bado por questionamentos similares Este desenho de interação, de intér-
aos do pesquisador/ator: pretes buscando (através do diálogo)
dar sentido às surpresas produzidas em
Como o outro produz seu mundo, como o suas trocas, pode firmar as bases para
conhece, como o transforma e que conse- um encontro pleno de possibilidades
quências tem isso tudo na forma de nosso para ambos os participantes. É um pro-
encontro? cesso expansivo, expansível e potencia-
lizador que poderá vir a ocorrer se o
Desde suas origens, no âmbito do terapeuta estiver aberto a três dimen-
encontro terapêutico, a “tarefa” para o sões da reflexividade que se colocam
terapeuta tem sido a compreensão das em jogo no encontro: sua reflexivida-
formas como seus interlocutores bus- de como membro de uma cultura; sua
cam dar sentido a sua própria vida e, reflexividade como terapeuta, com sua
em particular, àqueles aspectos surpre- perspectiva teórica, seus interlocutores
endentes desta. O transformador foi científicos, seus hábitos disciplinares
a incorporação do fato que o cliente, e seu epistemocentrismo (Bourdieu
* Este compromisso com além da tarefa explícita de compre- 1995) e as reflexividades dos sujeitos
a ação transformadora
encontrou entre nós o
ender os aspectos surpreendentes de que o consultam. Tal trama de reflexivi-
aprofundamento da ética que seu próprio mundo, em outro nível dades** não produz uma configuração
o sustenta, especialmente também tenta entender como seu in- estável, que uma vez alcançada à cone-
na IAP (Investigação-Ação-
Participação) idiossincrática terlocutor/terapeuta constrói sua vi- xão, se mantém: frequentemente apare-
da Psicologia Comunitária são sobre o que têm em comum e que cem oscilações, que vão desde o fascínio
Latinoamericana. Ver: Montero,
2011. isso, longe de ser algo que deveria ser gerado pelo mágico fluir de uma cone-
**Descritas de maneira controlado e restringido, seria uma xão empática até a perplexidade pro-
magnífica por Shotter, J. (1999).
*** “A origem e a forma
rica fonte de novas possibilidades. O duzida pelos inevitáveis desencontros e
primitiva do jogo de linguagem efeito renovador se produziu a partir mal-entendidos. Nas reações*** a esses
são uma reação, e só a partir de uma nova maneira de conceber o desencontros (perplexidade, assom-
disso se podem desenvolver
as formas mais complexas. contexto, onde todos os envolvidos nos bro, curiosidade) é onde pode emergir
“Linguagem – quero dizer – é intercâmbios comunicativos do encon- a condição dialógica, já que o descon-
refinamento, no princípio era a
ação (Wittgenstein,1980).”
tro terapêutico se tornam copartícipes certo e a surpresa abrem caminho para

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a possibilidade de explorarem juntos o (1988), Donald Schön (1997), Ander-
Celebração da surpresa 95
mistério abismal da linguagem, do qual sen e Goolishian (1992), Edgar Mo- Saúl I. Fuks
nos falava Wittgenstein (1980). rin (1994), Paul Ricoeur (1992) entre
Martin Buber (1977) também se re- outros, o que não acontece por mera
feria a esses desencontros quando afir- compreensão de teorias, da mesma
mava que em toda situação de diálogo, forma que não se aprende a meditar
necessariamente aberta, o encontro com leituras sobre a meditação.
pode se transformar em um desen- Em função do que viemos afirmando,
contro que se converte em incerteza e cabe questionar se esses meta-instru-
sofrimento. Esta dialética de encontro/ mentos do conhecimento – curiosidade/
desencontro tece uma linha fina e frágil espanto – podem ser reduzidos a uma
– um “desfiladeiro estreito”, retoman- dimensão técnica (funcional e operacio-
do a metáfora buberiana – de relações nal) sem que sua potência transforma-
duais que nos determinam existencial- dora seja corroída, e essa é uma questão
mente: uma pessoa pode se abrir em nodal quando o contexto no qual se in-
presença do Outro e estabelecer um sere; esta pergunta é a formação de tera-
verdadeiro diálogo com ele, ou tentar peutas, facilitadores e outros navegantes
acomodar o Outro às suas próprias dos processos de mudança.
crenças. De acordo com as ideias de Bu- A particularidade do conhecimen-
ber, o “encontro” se localiza como um to científico – entendido desse modo
fator predominante do mundo do ho- – não reside na confiabilidade de seus
mem e a tarefa de compreender o Ou- métodos, mas no processamento da
tro – honestamente – implica a aceita- reflexividade e sua articulação com a
ção e o abrir-se para essa presença com teoria social de referência, o qual nos
responsabilidade, sem tentar impor trás novamente a pergunta:
nenhuma verdade ou colonizá-lo com O que torna o interlocutor “perito”
nossa maneira de ver o mundo. com sua própria reflexividade, com as
perturbações que a curiosidade e o es-
A palavra responsabilidade vem de res- panto geram em sua relação consigo
ponder; e a falta de responsabilidade é mesmo e com seus supostos teóricos?
quando não respondemos ao outro, quan- Estes questionamentos podem ser
do permanecemos fechados em nós mes- um convite a uma reavaliação do lugar
mos, dentro de nosso esquema de ideias, que damos, nos sistemas de formação
escondendo-nos detrás de nossas barreiras de terapeutas e facilitadores, ao forta-
defensivas, bloqueando dessa maneira a lecimento da capacidade de se posicio-
presença do outro (Calles, 2004). nar como se tudo pudesse ser vivido
como algo novo, inesperado e impre-
Para o terapeuta, estar em condi- visível; das maneiras que cuidamos da
ções de assumir uma posição de aber- tendência “natural”, que a insegurança
tura diante do surpreendente (de si e a incerteza geram, de refugiar-se no
mesmo) no encontro com o “outro conhecido, no rotineiro e no óbvio; e
curioso” requer algo mais que o es- de como construímos contextos que
tudo de teorias ou a incorporação de permitam desfrutar do jogo sagrado
relatos que o informem sobre outras de inventar(se) mundos, ali onde nada
maneiras de construir o encontro te- parece capaz de surpreender-nos.
rapêutico**. É necessária uma fissura Para subverter a fuga em direção * Contarmos com teorias
na epistemologia da perícia, tal como às receitas seguras, que reduzem a in- aceitas pela comunidade
científica modula o impacto
foi descrita por Michel Foucault quietude e a incerteza, não bastam as perturbador de todo o processo.

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contribuições teóricas que expandem para melhorar uma técnica, precisamos
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o caudal de informações do “expert”, já mudar as regras que se repetem.
que essa ampliação conceitual pode se Nos relatos da história do artesa-
restringir à mera incorporação de uma nato, os mestres não ensinavam a seus
moda ou à cobertura de chocolate cha- aprendizes: deixavam que observassem
mada “atitude politicamente correta” enquanto trabalhavam, e a responsa-
ou seja, à mistificação de incorporar bilidade do aprendiz era fazer as per-
“as maneiras adequadas de falar, pen- guntas que tornassem compreensíveis
sar ou atuar” de forma acrítica. os conhecimentos que impregnavam o
fazer. Não obstante, em algum momen-
Que condições nos são necessárias to o aprendiz precisava tentar repetir
para conectarmos, expandirmos e man- o “fazer” do mestre, e aí se encontrava
termos vivas essas habilidades? com outra dificuldade: as ferramentas
do artesão são sempre “feitas à mão”,
são adaptadas ao seu corpo, sua força,
Homo Ludens sua energia, seu ritmo. O aprendiz ti-
nha então que enfrentar o fato de que,
Na opinião de Friedrich Von Schiller necessariamente, teria que construir
(2004), primeiro autor moderno a es- suas próprias ferramentas, para o qual
crever sobre o jogo, este tem a capacida- tinha que compreender seu corpo, seu
de de transitar entre o prazer e o rigor; ânimo, seu espírito e seus tempos, as-
questão que foi retomada por Johan sim como sua capacidade para desfru-
Huizinga (2000), que afirmava que o tar e formalizar seu trabalho.
trabalho moderno se tornara “desespe- Tal como afirma Richard Sennett
radamente sério”. Este autor sustentava (2009) em seu estudo sobre o artesa-
que quando o utilitarismo do fazer se nato, o jogo inaugura o treinamento e
impõe, os adultos perdem algo que é é uma escola onde se aprende a incre-
essencial para a capacidade de pensar: mentar a complexidade.
a curiosidade livre que produz o espaço
e o jogo. O bisturi, uma ferramenta simples, ser-
Clifford Geertz (1988), ao estudar o viu a finalidades de grande complexida-
“jogo profundo”, afirmou que existem de no trabalho científico do século XVII,
conexões disponíveis no ser humano tal como havia sucedido desde o século
que lhe permitem recuperar a capaci- XV com a chave de fenda de ponta pla-
dade infantil de produzir e renovar as na; em seus começos um e outra foram
regras de seu fazer e que isso se mani- ferramentas elementares. Realizam um
festa nos rituais cotidianos que criam e trabalho complexo porque nós, como
mantêm a coesão social entre as pessoas. adultos, aprendemos a brincar com suas
Depois das intuições iniciais de possibilidades em lugar de lidar com
Freud, Erik Erikson (1983) foi quem cada ferramenta como se destinada a um
estudou mais profundamente a impor- único fim. O tédio é um estímulo tão im-
tância do modo infantil de lidar com portante no artesanato como o jogo; ao
as regras no jogo e sua relação com a entediar-se o artesão procura o que mais
socialização do adulto. Segundo esse pode fazer com as ferramentas das quais
autor, as crianças aprendem no jogo a dispõe. (Sennett, 2009)
* Como denominamos em modificar as regras que eles mesmos se
um trabalho o conjunto de impõem, e isso afeta – na vida adulta – a Nesse mesmo sentido, o artesão de
habilidades para “ler” contextos,
inserir-se neles, modificá-los e capacidade de repetir práticas de índole contextos* precisa recuperar sua capa-
construir estruturas alternativas técnica e modificá-las pouco a pouco, cidade de jogo para reencontrar suas
que oferecem mais opções mudando ou melhorando. Dado que, ferramentas pessoais e afiná-las com a
(Fuks, 2004 e 2005).

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cena em que se encontra. Como afir- Dewey, J. (2004). Democracia y educa-
ción una introducción a la filosofía de
Celebração da surpresa 97
mou John Dewey: “O trabalho que se Saúl I. Fuks
mantém impregnado de brincadeira la educación. Madrid: Morata.
é arte” (2004), e o prazer de brincar Erikson, E. (1983). Infancia y sociedad.
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