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CELEBRAção da surpresa
Saúl I. Fuks
Resumo: este trabalho propõe uma reflexão so- Abstract: This paper proposes a reflection
about certain ways to connect with others who Terapeuta de casal,
bre determinadas maneiras de se conectar com
formador de terapeutas e de
os outros, que impactam significativamente a significantly impact the quality of the link is built.
facilitadores de grupos.
qualidade do vínculo construído. Faremos uma In particular we will review what has been called
“surprising ability” associated with “curiosity”, E-mail: cocofuks@gmail.com
revisão, em particular, do que tem sido chamado
de “capacidade de se surpreender”, expressão a position that has regained prominence in the
associada à “curiosidade”, características valori- “postmodern”. We will also discuss the role of
zadas na “pós-modernidade”. Discutiremos tam- reflexivity in the production of intersubjectivity Tradução de
bém o papel desempenhado pela reflexividade na and processing transformative connections. We’ll
produção da intersubjetividade e na geração de also briefly review some of the challenges that eloisa rosas
conexões transformadoras. Do mesmo modo, arise when trying to convey / teach curiosity and
nos deteremos sobre alguns dos desafios que se capacity to be surprised as instrumental “techni-
apresentam, quando se busca transmitir/ensinar ques” in psychotherapy, facilitation or research.
a curiosidade e a capacidade de se surpreender,
como “técnicas” instrumentais na psicoterapia, Keywords: curiosity, surprise, surprise, refle-
na facilitação ou na pesquisa. xivity
A veces la curiosidad puede despertar el coraje o avivarlo. Pero, en la mayoría de los casos, la Recebido em 20/09/2011.
curiosidad enseguida se desvanece. La valentía tiene que recorrer un camino mucho más largo. Aprovado em 03/10/2011.
La curiosidad es igual a un amigo simpático en quien no puedes confiar. Te instiga y cuando
le parece, se va. Y entonces, tú solo, tienes que tirar para adelante haciendo acopio de coraje.
(Murakami, 2010)
... os homens começam e começaram sempre a filosofar movidos pela admiração; no co-
meço, admirados diante dos fenômenos surpreendentes mais comuns; depois avançando
pouco a pouco e concebendo problemas maiores, como as mudanças da lua e os relativos
ao sol e às estrelas, e à criação do Universo. Mas o que se coloca como um problema, ou se
* Relato bíblico da mulher de
admira, reconhece sua ignorância. Lot, convertida em estátua de
sal por ter se deixado levar pela
curiosidade
Em Karl Jaspers (1989) há uma interessante distinção sobre o lugar ocupado ** Dito popular: a curiosidade
pelos questionamentos: matou o gato
A palavra grega filósofo (philosophos) se A concepção que valoriza a posição
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formou em oposição à sophos. Quer dizer, receptiva – a forma “Abrahâmica”*** –
amante do conhecimento, diferente de concebe o ser humano como um reci-
quem, na posse do conhecimento, se deno- piente que precisa ser preenchido com
minava sábio. Este sentido da palavra per- informações e ensinamentos, como um
dura até hoje: a busca da verdade – não a ser evolutivo que transita por graus de
posse da verdade – é a essência da filosofia conhecimentos progressivos, até al-
[...] Filosofia significa fazer caminho. Suas cançar o nível de seus mestres (ou seus
perguntas são mais essenciais do que suas deuses). Posicionamo-nos nos terri-
respostas, e cada resposta se converte em tórios da humildade, da gratidão, do
* Faz parte do processo de uma nova pergunta. (Jaspers, 1989). respeito, do reconhecimento, da troca,
construção dos mitos que
organizem formas binárias “quando o discípulo está preparado, o
e dilemáticas de formular os Nas histórias que narram a busca Mestre aparece”, das tradições místicas.
desafios.
** Qualificar-se-ão como
humana pelo conhecimento de seu A forma “Prometeica” concebe o ser
receptiva ou passiva a mundo, o posicionamento diante “das humano como alguém com direito a
interdependência, o livre arbítrio coisas”, a partir da curiosidade, do as- acessar os conhecimentos, a elevar-se
e os graus de liberdade, de
acordo com a concepção de ser sombro e da paixão pelo descobrimen- à altura dos deuses, com liberdade de
humano. to, chegam a nós organizados como colocar em dúvida a própria existência
*** Fazendo referência
à maneira receptiva com
relatos dramáticos ou trágicos. Nos destes, para reivindicar sua condição
que Abrahão recebe de mitos* antigos, o conhecimento podia de Herói; de ser “a medida de todas
Jeová os conhecimentos e ser “outorgado” por alguém superior,
sua convivência com seus
as coisas” do Iluminismo, do Renasci-
questionamentos que não eram como Prometeu ou Jeová, ou podia mento e do Humanismo. Essa forma
respondidos. Um livro que ser inventado ou obtido, por meios ativa de se posicionar diante da bus-
encarna esta dramática é escrito
pelo Rabino Nilton Bonder: lícitos ou ilícitos, definindo essas his- ca do conhecimento foi construída
Tirando os sapatos: o caminho tórias diferentes em lugares e tramas na trama das tensões entre liberdade
de Abraão, um caminho para
o outro, realizado por ocasião
relacionais para o ser humano. Cada e destino; entre os tempos de busca e
do projeto de diálogo público uma dessas formas narrativas mostra- os da necessidade de saber e como ex-
chamado O caminho de va modelos particulares de maneiras pressa Leonardo Boff (1998):
Abraham (www.abrahampath.
org) (Bonder, 2008). de se relacionar com o conhecimen-
**** Conta o mito que Zeus to, com a educação, com as interações Todos nós temos, de um jeito ou de outro,
enviou Pandora como presente
a Epimeteu, e ele ficou tão
entre “mestres” e “aprendizes” e/ou uma dimensão-galinha e uma dimensão-
fascinado por sua beleza com a cultura da época. Em uma for- -águia dentro de nós. A dimensão-galinha
que decidiu se unir a ela mulação esquemática e polarizada é é o sistema social imperante o nosso arranjo
imediatamente. Como presente,
Zeus lhes ofereceu uma linda possível definir duas formas extremas existencial, a nossa vida cotidiana, os hábi-
caixa enfeitada com pedras de contar com esses vínculos: a visão tos estabelecidos e o horizonte de nossas pre-
preciosas. A caixa estava
fechada e, ao dar a chave a receptiva ou passiva** apresenta cená- ocupações. São também as limitações (...) A
Pandora, Zeus advertiu que, rios nos quais as relações de transmis- dimensão-águia são os sonhos, os projetos,
se queriam viver felizes, não a
abrissem nunca. Assim fizeram
são, de ensino e a passagem – mais ou os anelos, os ideais e as utopias que, mesmo
e viveram sem problemas e menos ritualizada – dos saberes pela frustrados, nunca morrem em nos porque de
sem envelhecer, até que a via hierárquica ocupam lugar central. novo ressuscitam (Boff, 1998).
curiosidade de Pandora fez com
que a abrisse, deixando surgir Na visão oposta encontramos, ao con-
os males do mundo (doenças, trário, relatos heroicos, nos quais se A mitologia antiga é plena de lições
amarguras, dores, guerras
e outras desgraças...), mas
destacam a busca da independência, a de moral nas quais o desejo de saber
surgiu também a esperança, rebeldia diante da hierarquia, a paixão é associado à soberba e à transgressão
sob a forma de um pássaro pela aventura e o risco, e os grandes
que levantou voo. A curiosidade
dos ditames dos deuses. No mito grego
parece ter sido – para os antigos desafios de buscar o conhecimento, de origem do Homem, o relato do pre-
gregos – a fonte de todos os transgredindo proibições e rompendo sente de Zeus a Epimeteu e Pandora****
males, mas também a origem
da esperança. (Gomperz, 2000) tradições. é uma densa representação dessas ten-