Você está na página 1de 14

2003MariaHelenade MouraNeves

Copyrlgh1Q
Todos o, dircitOSdc1ta cdíçaoreservados ã
EditOraContcxtO(Edí10111 PínskyLaia.)

Diagram~ào
Rc:noiaAlcidcsfTextO& Ane ServiçosEdhoriais

Rn-isõo
Vera Lóc:iaQuinianilhaffcx10& Ano Sclvil'O>EditOriais
Capa
Anlonio Kchl

D3dos Internacionaisde Callllogaçlo na Publicação (CIP)


(CàmaraBrasileirado Livro,SP, Bra.,il)
Neves, Maria Helena de Moun,.
Que va,nática csrudarna escola?/ Maria Helenade MouraNeves
4. ed. - SAoPaulo : Contexto,2011.
Bibliografia
ISBN978-85-7244-226-8
1. Gramática- Estudo e ensino 2. Português- Grasmtica- Estudo
e ensino 1.Título.
03-3554 CDD-415.07
lndic:cpara caúlogo sistcm!1íco:
1. Gramática: Estudoe ensino:Linguística41S.07

Ellml«A Cowrocro
Ditctorc,füorial:Jaim~Píru/ry
RuaDr.José Elias. S20-AIIOda Lapa
0S083.030- Slo Paulo- s,
f/JIX: ( 11) 3832 5838
con1CX1o@cdi1oracon1CX10.com.br
www.cdi1oracontcx10.corn.br
A
Geraldo,
2011
Geraldinho (in memoriam),
Beto e Bete,
Proibidaa reprodução10t3Iou parcial.
Os infratoresserio processados na forma da lei. Lúcia e Edgar.
Norma, uso e gramático escolor 129

para ascensão soc'.ald~ ~eus alunos. Na verdade,a questãodo registro.central no


A gramática: 1
estudo da norma lmguist,ca,é central tambémpara falar-sede reflexãosobre a lin-
conhecimento e ensino guagem e sobre o uso linguístico,que é o que está no centro de examenesteestudo.
E se se fala em registro, contempla-si:nllo apenas a '"falaculta''. mas tam-
bém a "fala distensa''. Porque, se e usa a língua para obter resultadosde sentido,
é óbvio que só ha~erá se_ntido- só haverá exercício pleno da linguagem_ se as
ESTUDARGRAMÁTICA? E QUE GRAMÁTICA? escolhas e os arranJOSesttverem adap1adosàs condiçõesde produção,aí incluídos
os participantes do ato linguístico.
E aqui entram dua~questões básicas:
Insisto em que uma das perguntas que um professor de língua pátria se faz
constantementeé, com certeza. o que significa, em termos operacionais, gramá- 1. A compreensão daquilo que no funcionalismo(Dik, 1989: 1997)se chama
tica. e, a partir daí, o que representa, em sala de aula, trabalhar com a gramática. "modelo de interação verbal'",ou seja.o esquemaefetivoe plenoda interação
Não é necessária muita argumentação para que se assegure - também nisso no evento e fala.
insisto - que ensinar eficientemente a língua - e, portanto, a gramática - é, acima
2. A compreensão do jogo entre as determinaçõesdo sistemae as possibilida-
de tudo, propiciare conduzir a reflexão sobre o funcionamentoda linguagem,e de
des de escolha dentro desse evento (Neves,2002a, P.-80).
uma maneira, afinal, óbvia: indo pelo uso linguístico, para chegar aos resultados
de sentido. Afinal, as pessoas falam - exercem a faculdadeda linguagem, usam a Vamos esquematizar esse modelo de interaçãolinguística:
língua - para produzir sentidos, e, desse modo, estudar gramática é, exatamente, a. Do lado do falante:
pôr sob exame o exercício da linguagem, o uso da língua, afinal, a fala.
Isso significa que a escola não pode criar no aluno a falsa e estéril noção de a!. quem fala tem a intençãode obter algumamodificaçãono conhecimen-
que falar e ler ou escrever não têm nada que ver com gramática. to, no pensamt:ntu. nocornponarnento (etc.) de seu interlocmor;
E volto ao primeiro ponto, o que constitui a chave da questão, que é a noção a2. mas quem fala tem alguma noção (poucaou muita,quantomais, melhor)
do que seja gramática, e, então, do que seja a atividadede "estudar" gramática. de qual seja o conhecimento, o pensamento,o comportamento(etc.) de
Tenho repetido que, sempre que explico a alguém - especialmente a um seu interlocutor;
leigo - que o interesse central de minhas investigações em Linguística é a gra-
mática, tenho de fazer um parêntese e explicar o que é isso, porque até aí se terá a3. sobre essas duas bases ele faz suas escolhas- dentrodaquiloque o siste-
entendido que me dedico à inútil tarefa de grifar substantivose adjetivos, sujeitos ma permite, por exemplo. em português,sem nuncapôr um artigodepois
e predicados,isto é, que eu fico fazendo aquilo que o tempo todo se faz nas salas do substantivo - do modo que ele consideraque seja o que vai obter de
de aula do ensino Médio e Fundamental. Isso, se não se acrescentar ao conceito a seu interlocutor tal ou tal interpretação(que seja aquelainterpretaçãoque
agora charmosa ideia - que a televisão está vendendo- de que estudar e ensinar melhor cumprirá aquilo que era a sua intenção).
gramática é estudar e ensinar como se fala corretamente,para fazer bonito por aí. b. Do lado do ouvinte:
Não vou entrar aqui nessa questão da norma, a não ser para repetir que a es-
b 1. há uma expressão linguística(um produtoenunciado)que deveser inter-
cola tem a obrigação,sim, de manter o cuidado com a adequaçãosocial do produto
pretado, mas essa interpretaçãotem a expressãolinguísticaapenascomo
linguístico de seus alunos, isto é, ela tem de garantir que seus alunos entendam
pista, como mediação. porque uma interpretaçãosempre procura recu-
que têm de adequar regislros, e ela tem de garantir que eles tenham condições de
perar uma intenção: no fundo, cada pessoa que recebe uma expressão
mover-se nos diferentes padrões de tensão ou de frouxidão,em conformidade com
linguística (uma mensagem) sabe que quem a produziu queria alguma
as situaçõesde produção.Isso é obrigação da escola, que a escola antiga valorizou
Lanto- no que respeita à norma-padrão-, a ponto de por isso ela ser estigmatizada, coisa com a expressão;
e que, em nome da própria Linguística, a escola de hoje negligencia. b2. para a interpretação de uma expressão linguística, pesa, pois, o que
Desse modo, não é da gramát'.cano1111ati va que vou falar, e111bora
não negue 0 o receptor saiba dos pensamentos, dos conhecimentos,do comport~-
papel da escola como reguladorsocial e como fonte obrigatóriade meios e recursos mento (etc.) de quem a produziu, bem como o que o receptor, a partir
130 Ove 9romóticomtudorno escola~ Nonno, uso e 9romólicoe.colar 131

daí, considere que tenha sido a intenção do falante ao produzir UMAAMOSTRADA LIMITAÇÃOA QUE SE
aquele enunciado.
SUBMETEUUMA DETERMINADATRADIÇÃO
Esse é um recorte m·tificial:como se eu tivesse paralisado um momento da DE ENSINO DE GRAMÁTICA
interação verbal efetiva. tivesse congelado a imagem no momento da produção e
recepção de uma expressão linguística. Obviamente esse flash tem de ser multipli- Para ilustrar a discussão com temas concretos de análise. escolhi dar uma
cado e complicado. com falante e ouvinte mudandoconstantemente (e até remon- amostra da limitação a que se têm submetidocertos temas, a partir de uma escola
tadamente) de papel. como bem nos lembram as superposições da fala. que se fechou numa determinadatradição de ensino de gramática, e, também. que
Quanto mais a interpretaçãoesteja próxima da intenção, mais bem-sucedida se fixou em determinados registros. Vamos falar preferentementedos processosde
terá sido a comunicação. incluindo-seaí até a possibilidadede que a intenção tenha constituição do enunciado. e. dentro deles. da referenciação.Como o que pretendo
sido uma interpretaçãodúbia. isto é. até de que a ambiguidade tenha sido pretendi- é contemplar especialmente o modo pelo qual a escola vem tratando ternas como
da. Afinal. dentro dessa moldura pragmática que governa a interação. o que se faz esses. vou estribar minhas reflexõesem material enco111rado em livros didáticosem
é produzir sentido, tanto quem emite a expressão linguísticaquanto quem a recebe. uso nas escolas de Ensino Fundamental.Contemploparticularmentea utilizaçãoque
É isso, pois. o que fazemos com a nossa gramática: vem sendo feita de tiras e quadrinhoshumorísticoscomo supor:tepara transmissãode
a. submetemo-nos a um núcleo duro que governa a parte "computacional" dos lições nas aulas de Língua Portuguesa,e especialmenteporque esse tipo de material
arranjos: aparentementecaracterizaria modernidadede proposta. e. então. tínhamoso direito
de esperar que incorporassea modernidadedas reflexõesda Linguística.
b. manejamos um conjunto de opções, com as quais ajustamos nossas produ- Antes de tratar os temas que constituemdeclaradamente''lições de gramática''
ções para, compondo sentido, obtermos sucésso na interação, conseguirmos, nesses livros, vou volt.arà questão - que levantei no início destas reflexões - da
realmente, interagir. nacurezada interação verbal, apontando a importânciade que a escola leve o aluno
à compreensão da natureza do estabelecimento do circuito de comunicação, até
E, a partir daí. a pergunta é: por que, na escola, não refletirmos_com os
alunos sobre o que, realmente, representa "falar e escrever melhor", exatamente para que ele aprenda a refletir sobre a própria atividade de compor enunciados, e,
o objetivo do ensino de língua portuguesa declarado pelos professores (Neves, assim, se aproprie das ..regras" da gramáticade sua língua.
1990a)2? Também farei isso inspirada no material gráfico ·'moderno'' e sugestivo - as
tiras e as histórias em quadrinhos - que os livros oferecem, especialmente para
Falar e escrever bem é, acima de tudo, ser bem-sucedido na interação. E isso
mostrar que, representativa.~de atividades de interlocução. e em geral muito in-
ocorre de maneiras diferentes, como diferentes são as situações de comunicação
teligentes, essas peças poderiam ser a porta de entrada para riquíssimas reflexões
e as funções privilegiadamente ativadas: é levar alguém a agir, se era isso o que o
sobre a atividade de linguagem e para introduçãodo aluno na observação dos pro-
falante pretendia (e agir do modo como ele pretendia), é fazer alguém acreditar,
cessos de constituição do enunciado. e. no entanto. na maior parte das vezes, apa-
se isso era o necessário no momento (e, como o que está em questão não é a ética,
recem nos livros como curiosidade. ou apenas para garantir ao livro um atestado
podemos até dizer, sofisticamente (Neves, 1987, p. 35-44): acreditar "entenden-
de engajamento com o mundo em que os alunos vivem. Chamo a ~tenção,també~,
do", se isso convinha, ou até acreditar "não entendendo", se era o que convinha),
para o mau aproveitamento dos bons textos que os hvros de hoJe - verdade sep
e assim por diante; ou é, afinal, por exemplo, obter apenas fruição do interlocutor,
se a predominância da "função poética" era pretendida. dita - muitas vezes abrigam.
Obviamente - como já apontei no início - todas as situações de interação
linguística estão em questão: formais e informais; com língua falada e com língua A falta de inserçãodos análisesno modelo de interação
escrita; de relação simétrica e de relação assimétrica. São todas questões que têm verbal
de ser contempladas nas reflexões, porque os resultados de sentido estão em fun-
ção dessas condições. Nas reflexões sobre o estabelecimentodo circuito de comunicação, duas são
as situações problemáticas mais gerais:
• o interlocutor não reconhecer a intenção:
132 a...egr(lmónc:oe,tvdorno escolof N0<ma~uso e gramáticocscoJar 133
• haver desconhecimentoda infonnação pragmáticado interlocutor. O que se vê é que o primeirofalante não consegueque o segundoentre no
Veja-se. prirneiramente,corno o texto que segue poderia servir para ilustrar circuito que ele tenra estabelecer:o segundo enunciado configurnque não houve
com grande felicidadeuma sitm1çãodesse tipo: recuperaçãodo primeiro.e. assim.que nãoesrá havendo,realmente.interlocução.Os
enunciadosdos dois interlocutoresficamisoladosentresi: cada um dessesenunciados
De manluio pai blllia 1111porta do quartodo filho: é só de quem o produziu.e acaba a conversa,isto é. a inremçãonão se estabelece.
-Acorda, meufilho. Acorda. que está na hora de você ir para o colégio. Ourro bom exemplo dessa incomparibilidacle está na históriaem quadrinhos
transcrira a seguir. que tem a meradede ~eus quadrinhos com silêncio dos intcr-
Ln dP dPmrn. estre1111111hotlo,
n filhn respn11dPu:
Jocurores. porque a intenção do pnmctro fala111e é frustrada. e isso exatamente
- Pai. eu ltoje 11(/0 vou ao colégio. E 11<io
vou por três razões: primeiro, porque sua mensagem não se afina com a narureza da "cabeça" do interlocutor.
porque eu es1oumorto de sono; segundo.porque eu detesto aquele colégio; O resullado é o silêncio. que. ~omadoao pedido de repetição da mensagem. é ,1
terceiro, porque eu não (lguemomais aqueles meninos. própria marca da frusrração:
E o pai respondeulá de/ora:
- Você tem que ir. E tem que ir, exa1ame111e,
por três razões;primeiro, por-
que você 1e111 dever a cumprir; segundo, porque você já 1e111
11111 45 anos;
terceiro, porque você é diretor do colégio.
(Anedorinhasdo Pasquim. Rio de JMeiro: Codecri, 1981)
Trata-se de uma situação de inreraçãoem que os interlocurorestinham todo
o conhecimento necessáriopara o sucesso da rroca linguística, sucesso. afinal, ob-
tido. Mas o leitor - que é. também. um interlocuror.apenas noutro plano de inte-
ração - não rem a informação referente a um dos interlocutores, e fica, áré certo
ponto do andamenroda inreraçãolinguística.incapacitadode acompanhá-la dentro
do seu real enquadre interlocutivo,vindo daí, exaramenre,o efeito de humor.
Ainda para refletirsobre a possibilidadede um trabalho,junto aos alunos, de
compreensãode situaçõesproblemáticasna interação,selecioneivárias liras e alguns
outrosquadrinhosexistentesem livrosdidáticosadoradosna rede pública,materialesse
que. em geral. é usado para que, nas suas poucas palavras,os alunos encontremsubs-
camivos,pronomes.preposiçõesetc. e que poderiaser aproveitadopara emender-se,
por exemplo,a variadapossibilidadede falhasque impedemo bom êxito da interação.
Vejamos uma riraem que está ilusrradoum caso extremo de falta de sintonia
entre os dois interfocurores:

l'ORQI/EONARtl~ C{NI{
1111.LlM BAIII (IM LUGARONDE
{ S( JI/IITAMA BOA C(RVE.JA.
1
I
SEMPRE COÇA QUANl)OAS
MÃOSll,4 CENTT{STÁO
! :~~=~!! f OCIJPAOASt A GENTr

tii~
134 Que grom6ticoestudar no escola? Norma, uso e gromóticoescolar 135

Na tira seguinte, observa-se bem a necessidade,por parte do ouvinte, de co- Essa falta de conhecimentodo ouvinte, que seja do mesmo nível que o do
nhecimentodo mesmo nível que o do falante, paraque possa recuperar com suces- falante. pode ser corrigida por este, que se antecipa e supre a necessidade.como se
so a niensagem recebida. O segundo interlocutornão tem, aí. esse conhecimento. vê nesta outra tira:
e a intenção não é recuperada.
OOUEO('.ARA /)IÇ,(EQIIAMJO
IIOCf RF,('lAMQIJ VO PRF(O
QI tF.EU'C.OBl10U
l'RA
CvNS8/TAR cJ 8Allr01

Afi~~I-\.IM
~

Até que o falante diga Ele vive ali. voltando-separa a realidade exterior,
para mostrar um imponente castelo. o enunciado anterior não faz sentido, e, por-
tanto, a intenção não é recuperada.
Na tira seguinte, é o ouvinte que encontra.na realidade que o cerca, pistas de
que não está recuperando adequadamentea interpretaçãopretendida pelo falante,
ou de que há algo falso na fala deste: afinal. pistas de que as duas pontas da intera-
ção não estão afin11das,e que há um reajuste u ser feito.

Note-se que. desta vez, é conhecimento de natureza linguística que falta:


o pai da moça não está de posse do jargão de um determinado gênero de música . A 1/GATBHW
í/05 e.
e não sabe o que significa metaleiro; o conhecimentoque ele tem e aciona - que
-eiro é sufixo que indica profissão- não é o que deveria ser acionado, considerada
a intençãodo falante. É do mesmo tipo - e, portanto,tem o mesmo efeito dr. humor
- a tira seguinte:

""·....e,~é O l-<()IJ60,
,A.lt1WZ-1Wo-mo O ouvinte pode, também,sentindo a impossibilidadede recuperar a intenção
(
do falante, solicitar complementaçãodo enunciado para que seja possível a recons-
trução da mensagem, e haja, realmente,interação. É o que se vê nesta Lira:

~!tj
136 Ovegramático estudar no escola? Norma, U$o0e gromóticoescdur 137

O esforço para que a mensagem seja adequada ao descinatário,e, portanto.


à situação de comunicação, não é apenas daquele que deve interpretá-la. mas.
obviamente, é do próprio emissor. Na tira a seguir, por exemplo, o próprio falan-
te reanalisa seu enunciado a partir da reação provocada no interlocutor. e reco-
nhece a inadequação da mensagem. exatamente por impropriedade na avaliação
desse incerfocutor. Afinal. esse reconhecimento acaba tomando a interlocução
bem-sucedida.

~~----
..,....
Glt,ACAlA
CM!""'
.&'l!U
1>1DND()
111rl"l. ÍIW>ES\
~i

ii"
~JJ,.
0

-;.;'
-=:--. ~
.

Se nem o falante corrige a falta de ,tjuste no conhecimento dos interlocu- Essa última oferece oportunidade feliz para uma reflexãosobre o papel da
tores nem o ouvinte encontra pistas que corrijam as distorções, ele pode dar-se metáfora na conversação de todos os dias, e não apenas como "figura de lingua-
por satisfeito, mesmo saindo da conversa com uma interpretação absolutamente gem". A interação, aí, não é bem-sucedida, e exatamenteporque o ouvinte não faz
oposta à pretendida pelo falante, como ocorre com o Recruta Zero na tira transcrita a transferência metafórica que constitui a chave da interpretação.Com efeito-. e
a seguir. Trata-se de um exemplo cabal de insucesso da interação, por isso mesmo isso pode muito bem ser trabalhado com os alunos - a metáfora está no p~ópno
fonte muito feliz de efeito humorístico. fazer da linouaoem ela é continuamente chave de interpretaçãodos. enunciados.
o e, '
porque, na verdade, falamos por metáforas. Afinal.me1áforanão é simplesmente
um item de lição de estilística. ,
O papei dos processos cognitivos no sucesso de uma interlocuçã? tambem
é questão importante para reflexão em sala de aula. Por exemplo, na tira que se
mostra a segmr.· foi· um erro na ·111,erencia
, • ·, do ouv·n1e
1 que levou ao msucesso na
recuperação plena da mensagem.

Após uma recuperação errônea, se a conversa continua, ela toma obvia-


mente um rumo que não era o desejado pelo falante, como se observa nas próximas
duas tiras.
l 3'8 Ove 9rom6~co estudar no escola? Norma, uso e 9romóticoescolar 139

Outro aspecto determinantemente envolvido no completamento bem-suce-


dido da interação verbal diz respeito, obviamente, aos próprios interlocutores, que
devem reconhecer-se mutuamente durante todo o processo de interação, sob risco
de comprometer a interpretação. O conhecimento desse processo é fundamental
como reflexão sobre o funcionamento da linguagem, em atividades de ensino de
uma língua. Veja-se. por exemplo, como a tira abaixo pode oferecer ensejo para
essa reflexão. Trata-se de uma situação em que o ouvinte não recupera a intenção
comunicativa do falante exatamente porque não se reconhece a si mesmo como
destinatário do enunciado:

.,,.--. /~:--~7', ,r;:~-..\


(~•.=.,;'\
\_:
-~,-
""• 11\.■ I ,/ f "-~~~~ '; ~ :S:3At
:'· ,.,,_("·,>; >
')/1'- _..
1 ,.,.~! '
'--~··· 1·
l ,.,
\ ~-, \.
• • ~ ,. J '-
~-r~
I

-
, '7,. ., ,.

,. •'f'i'•
. ~ ...

Na história em quadrinhos a seguir, por outro lado, o conhecimento que o


ouvinte, baseado nas ações do falante, vai tendo dele, enquanto a interlocução se
desenvolve, não é compatível com a recuperação de conteúdos baseada nas expres-
sões linguísticas em si. Mal-avaliado o próprio interlocutor, a expressão linguística
emitida, destoante daquilo que o falante mostra ser, perde-se, e fica prejudicada a
comunicação. O resultado é que o ouvinte se ausenta completamente da conversa,
e volta. às suas atividades (no caso, volta a ler seu livro), desistindo da interação.

8-1
140 Que gromóficoestudar no escalo? Norma, usoe gromáricoescolar 141

Afinal,só há interlocução,mesmo,quando os ouvintes se sentemparticipan- E. por último, não poderia faltar aqui um exemplode sucessona interação,
tes do mesmouniverso de conhecimento,de sentimentose de atitudesque possam verificando-seque isso ocorre, no caso, porquetodosos requisitossãopreenchidos.
conviver num mesmo palco de discussão. Na história que abaixo se apresenta. Na tira colocada a seguir temos um ouvinte que está de possede conhecimentosu-
temos a sucessão de três falas iniciais altamente apelativas, que aparentemente ficientedo falante que a ele se dirige, e, assim,é capazde recuperaradequadamente
teriam grande efeito sobre os ouvintes, mas que se perdem sem resposta porque até um enunciado mentiroso, reconhecendo,mesmo,a sua falsidade:
falta essa compatibilidade.O engajamento dos interlocutoressó ocorre na quarta
fala, em si menos impactante, mas que naquele mundo- trata-se de uma conversa
de crianças - é altamente envolvente:

QU__éBE.LO GRUPO DE FurUR05 ;SUSPl~O; A,QU€LE


B-4RBAROSl QUANT"' HO.SnowtDél COM O LIVl!O.
QU,4L 0ELé5 E. O .Si:U FIU-(O?

A falta de consideração dos processos


de constituição do enunciado.
Um exemplo: a referenciação

A segunda ilustração que quero fazer refere-se ao ensino propriamentegra-


matical, e o tema escolhido é a referenciação,um dos principaisprocessosde cons-
tituição do enunciado. Na verdade, ao estudar-seo funcionamentoda linguagem,
o que está em questão são prioritariamenteos processos,e é a compreensãodeles
que governa a compreensão dos arranjos dos itens que os expressamadequada-
mente. Entretanto. como se tentará mostrar,o tratamentoda gramáticaoa escolasó
fica na exterioridade das entidades.
A reflexão que aqui se faz centra-seno modo de tratamentoda questãonos
livros didáticos, verificando especialmente o tratamentodo papel dos pronomes,
entidades fóricas que atuam na composiçãoda cadeia referencialdo texto.
Transcreve-se a seouir um belo texto de LourençoDiaféria,presenteem um
dos livros didáticos de &"série adotados no Estadode São Paulo:
Já não se fazem PAIS como antigamente
A grande caixa foi descarregadado caminhãocom cuidado.De um lado
estava escrito assim: "Frágil". Do outroladoestavaescrito:"ES te ladopara
cima". Parecia embalagemde geladeira,e o garotopensou.q~efo_sse mesmo
uma geladeira.Foi colocadana sala, ondepen11a11ece 11o dia mteiro.
142 Que gramático e,tudor no escalo? Norma, uso e gramático escolar 143

À noitinha a mãe chegou, viu a caixa, mostrou-se satisfeita, dando a impres- dispositivo opcional, que permite lo11gascaminhadas a campos de futebol.
são de que já esperava a entrega do volume. O menino quis saber o que era, Sabendo manejá-lo, sem forçar, tem garamia para suportar crianças até
se podia abrir. A mãe pediu paciência, 110 dia seguime viriam os técnicos seis anos. Porém não coma histórias, e não convém i11sistir,pode desgastar
para instalar o aparelho. O equipamento, corrigiu ela, meio sem graça. o circuito do monitor.

Era 11111equipamento. Não fosse tão largo e alto, podia-se imaginar um O garoto se decepcionou 11111pouco, sem demonstrar isso à mãe, que pare-
conjunto de som, talvez um sintetizador. A curiosidade aumentava. À noite o cia encantada.
menino sonhou com a caixa fechada. Ligado à tomada elétrica (funcionava também com bateria). o equipamento
Os técnicos chegaram cedo, de macacão. Eram dois. Desparafusaram as paterno já havia colocado os chinelos e, sem dizer 11111apalavra, foi até à
madeiras, juntaram as peças brilhantes umas às outras, em meia hora insta- mesa e apanhou o jornal.
laram o boneco, que não era maior do que 11111homem de mediana estarura. A mãe puxou o filho pelo braço:
O filho espiava pela fresta da pona, tenso.
- Agora vem, filhinho. Vamos lá para dentro, deixa teu pai descansar.
A mãe o chamou:
Em um deLenninadoponto da lição, o livro didáticoapresentaexercícios de
- Fi/hi11ho,vem ver o papai que a mamãe trouxe.
"gramática" sobre pronomes, e um deles. que passo a comenLar,ilustramuito bem
O filho entrou na sala, acanhado diante do artefato estranho: era um bone- o desperdício em que se consútui o tempo gasto com a sua resolução:
co, perfeitamente igual a um homem adulto. Tinha cabelos encaracolados, Substitua os tennos destacados por pronomes:
encanecidos nas têmporas, usava Trim, desodorante, fazia a barba com gi-
lete ou aparelho elétrico, sorria, fumava cigarros king-size, bebia uísque,
a. Os técnicos chegaram cedo, de macacão.
roncava, assobiava, tossia, piscava os olhos - às vezes um de cada vez -, b. O filho espiava pela fresta da porta.
assoava o nariz, abotoava o paletó, jogava tênis, dirigia carro, lavava pra-
tos, limpava a casa, tirava o pó dos móveis, Jazia strogonoff.· ace11diaa c. A mãe também necessitava de companheiro.
11111

churrasqueira, lavava o quintal, estendia a roupa, passava a ferro, engo- d. Os técnicos e a mãe olhavam admirados para o boneco.
mava camisas, e dentro do peito tinha um disco que repetia: "Já fez a lição?
Como vai, meu bem? Ah, estou tão cansado! Puxa, hoje tive um trabalhão e. Maria e suas amigas também queriam um ZYR-14.
dos diabos! Acho que vou ficar até mais tarde no escritório. Você precisava Comentemos os três primeirositens desse exercícioproposto:
ver o bode que deu hoje lá na firma! Serviço de dono de casa 111mcaé reco-
nhecido! Meu bem, hoje não!" a. Os técnicos chegaram cedo, de macacão.
O menino estava boquiaberto. Fazia tempo que sentia falta do pai, o qual No texto, o pronome eles não caberia- como pretendea lição - no lugar de
havia dado o pé. Nunca se queixara, porém percebia que a mãe também os técnicos. Em termos informativos.aí, nesse ponto do texto, é crucial a menção
necessitava de um companheiro. E ali estava agora o boneco, com botões, a tais personagens. É justamente esse sintagma,os técnicos, que acaba por compor
pai11éisembutidos, registros, totalmente transistorizado. O menino eme11- em definiúvo a ideia de que a caixa que chegoucontém um equipamentoque deve
dia agora por que a mãe trabalhara o tempo todo, muitas vezes chegando ser montado, e que as pessoas que o montarãochegaram cedo de macacão.
bem tarde. Juntava economias, sabe lá com que sacrifícios, para comprar
b. Ofilho espiava pela fresta da porta.
aquele paizão.
Se, no texto, 0 pronome ele fosse colocado no ~ugarde o ~Ih~ - c~mo quer
- Ele conta histórias, mãe?
o exercício _ esse pronome não faria a referênciadevida: a referencia sena ao bo-
Os técnicos olharam o garoto com i11diferença. neco, e não ao filho. Observe-sea sequência:
- Esse é o modelo zrR-14, mais indicado para atividades domésticas. Os técnicos chegaram cedo, de macacão. Eram dois. Desp~rafusar~m as ma-
Não conta histórias. Mas assiste a televisão. E pode ser acoplado a 11111 deiras, juntaram as peças brilhantes umas às outras, em meta hora instalaram
144 Que gromótico ostudor no escalai
Nonno, uso e 9romó~caescolar 145

o boneco,que não era maior do que um homem de medianaestatura.Ofil/ro a oportunidade de fazer reflexõesproveitosassobreo exercícioda linguagem.do
espiavapela/resta da porta, reuso. tipo das que se indicam a seguir:
c. A mãe também necessitavade um companheiro. 1. Refletir sobre a frase em discursodireto
Ora. essa frase está no trecho:
- Ele conta histórias, mtie?
O menino estava boquiaberto. Fazia tempo que sentiafalta do pai, o qual
havia dado no pé. Nunca se queixara. porém percebia que a mãe também para mostrar a referência a um objeto presentena situação.feita pelo pronomede
necessitava de 11111companheiro. terceira pessoa do di~curso,que não tem precipuamenteessa funçãode introduzir
referentes no discurso. sendo. no mais das vezes.rcferenciadorno nível textual.
Em primeiro lugar, trata-se de uma oração que, no texto, é completiva(obje-
tiva direta), mas que foi "arrancada" do texto como independente,e. desse modo, 2. Refletir sobre as diversas sequênciascom enunciadosdo chamado'·sujeito
não é vista "funcionando". Vê-se. ninda. que, no texto, a oração principal (perce- oculto". para mostrar o papel não apenasdo pronomepessoal,mas também
bia) dessa completiva é de terceira pessoa, com sujeito do tipo tradicionalmente de sua elipse na recuperaçãode referentesinstituídosno texto.Já foi comen-
chamado de "oculto"(= o menino). sendo, ao mesmo tempo. a quarta oração de tado o trecho:
uma série com o mesmo sujeito. o qual, na primeira vez, vem expresso, e, subse• O menino esu1vc1boquiaberto.Fazia rempoque 0 sentiafalta do pai{!), o
quenternente.vem três vezes "oculto": qual havia dado 110pé.
o menino estava boquiaberto, No parágrafo anterior, por seu lado, estava a seguintesequência,com uma
@semiafalta do pai. série de orações num mesmo período, nas quais a referênciaao elementosujeito
se fez por elipse:
0 nuncase queixara,
porém@ percebia (que...../. Ofilho entrou na sala. acanhadodiantedo arrefa10estranho:era um bone•
co, perfeirame111eigual a um homem adulto. {!)Tinha cabelosencaracola-
Fica sem nenhuma consideração aquilo que, na verdade, seria uma grande dos. encanecidos nas têmporas.@usavaTrim,desodora111e, @Jaziaa barba
lição sobre a referenciação textual com pronomes (caso de anáfora expandida, um com gilete ou aparelho elétrico. 0 sorria, {!)fumava cigarrosking-size,0
dos grandes recursos de coesão textual):o fato de a mãe entrar, aí, como a mãe dele bebia u(sque, @ roncava, 0 assobiava,li} tossia. li} piscava os olhos - às
(do menino de que se falava e que vinha corno sujeito das orações precedentes, in• vezes 11mde cada vez -. @assoava o nariz. {!)abotoavao paletó, @jogava
clusive da oração principal dessa completiva). E perde-se também a oportunidade tênis, @dirigia carro. 0 lavavapratos. (!) limpavaa casa. @ tiravap6 dos
de tratar o valor funcional da elipse do sujeito (do ta.1de "sujeito oculco"W móveis, @fazia srrogonojf.@ acendiaa churrasqueira,0 lavavaquintal.@
Os outros exercícios - d. e e. - não merecem comentário, porque utilizam estendia a roupa, @passavaaferro. (!) engomavacamisas,e dentrodo peito
frases "inventadas". @tinha wn disco q11erepetia:(...)
O que se observa,afinal,é um tratamentodistorcido,que vê o enunciadocomo
uma ~a que, escrita num papel, registradaem letras,tivesseficadoà disposiçãodos E mais adiante ocorre. ainda. outra sequência do mesmo tipo, esta com
estudantespara irem mexendonela, fazendosubstituições.trocas, remendos.Não há enunciados independentes:
nenhum empenho em despertar o interessedos alunos para a atividadede produção Esse é o modelo ZYR-14.mais indicadopara atividadesdomésticas.0 Não
de senrido,já que das trocaspodemresultarefeitoscompletamentediferencesdos pre- coma histórias. Mas @ assiste televisão.E @ pode ser acopladoa 11111dis-
tendidos no texto; por exemplo, é óbvio que o resultadode sentido- e o efeito - que positivo opcional. que permite longas caminhadasa campos de futebol._
o autor do texto obteve com os rtcnicos com certeza não é exatamente o mesmo Sabendo manejá-lo. semJorr;(lr,0 remgara111ia para suportarcnanças are
que se obteria com o pronomeeles no mesmo ponto de ocorrência. seis anos. Porém @não coma histórias.e não convéminsistir,pode desgas-
E, então, poderíamosnos perguntar por que não se aproveitaramtantas opor- tar o circ11iro
do moror.
tunidadesde mostrar, nesse texto tão bem construído, o modo como os usos eleitos
No exercício de reflexão sobre esses'enunciados,o importanteé fazer en-
pelo autor lhe permitiram chegar a determinadosefeitos. Perdeu-se, por exemplo,
tender que a elipse do sujeito. tamo quanto a presençnde um pronomeque aí se
146 Que gromó~coe.tudor no escalo? No,mo, uso e gromóficoe><:olor 147

explicitasse, recupera um referente, mas que as duas estratégias têm sua~ dife- Construções como essas, presentes no nosso dia a dia. estão comumente au-
renças. Ou seja, fazer entender que a elipse tem a função de referenciação - por sentes das lições de língua portuguesa da escola. como se os professores tivessem
exemplo, a mesma de um pronome pessoal - e que o fato de essa posição sintática a obrigação de colocá-las no índex. esquecer que elas existem, só porque ocorrem
principalmeme na língua falada.
ser, ou não, a de sujeito é questão de outra ordem. Da maneira pela qual os livros
didáticos cooduzem a questão, parece que só o sujeito pode ser "oculto'', "indeter- E. o que é ~ais gr~v:: elas nã? são equivalentes àquelas de terceira pe.ssoa
minado'' etc. do plural que os hvros d1dat1cosabngam: não são usadas nos mesmos contextos
A propósito do uso de pronomes, faço aqui um parêntese na observação do criam outro efeito. fazem, afinal, Outra "indeterminação". e constituem. pois, re~
tratamento dos itens referenciais, para explicitar um pouco mais o tratamento da cursos paniculares para obtenção de sentido. Observe-se que. nesses dois últimos
questão da indeterminação do sujeito nas salas de aula. Ora, o que se tem ensinado enunciados, nf10é possível trocar o eu ou o você pela terceira pessoa do plural:
tradicionalmente é que o sujeito se indetennina com a terceim pessoa do plural (?) amigamente iam ao Cine lpiranga, eram umas poltronas ótimas
ou com o pronome se junto de verbo (não transitivo) na terceira pessoa do singular.
No entanto, sabemos que isso não diz tudo. (?) por exemplo, podem saber rodos os sinais de trânsito de cor. tá. memo-
O livro didático traz, por exemplo, urna tira como rizaram o seu processo (. ..), mas é preciso que apliquem, que utilizem os
sinais de 1ra11si10na hora cena

E. aliás, os enunciados reais - com o emprego de eu e de III na indetermina-


ção do sujeito - obtêm uma indeterminação muito maior do que enunciados como
os da última tira (Morderam a isca.), porque a terceira pessoa do plural sempre
se refere apenas a terceiras pessoas (se sem sujeito expresso. singular ou plural),
eliminando a primeira e a segunda. enquanto o você e o eu, emhorn sej:im prono-
mes de segunda e de primeira pessoa do discurso, respecúvamente. não excluem
nenhuma das três pessoas. Nesse pomo, a indeterminação com esses dois prono-
mes tem a mesma ampla abrangência da indeterminação com o pronome se, da
qual, porém, se distingue pela diferença de registro e pelo maior engajamento das
pessoas envolvidas no ato de comunicação, o que significa que, de certo modo, a
indeterminação é mais viva. mais carregada de subjetividade.

Essa é a lição modelar que os livros escolares dão sobre indeterminação


do sujeito. e vai sempre reduzir-se a isso. Mas a tarefa que temos pela frente é 3. Refletir sobre os enunciados
diferente: se queremos que nossos alunos se apossem dos recursos de organização
Agora vem. filhinho. \!amos lá para demro. dei.ra teu pai descansar.
dos enunciados da língua, isto é, se queremos contribuir para que eles "falem e
escrevam melhor'', temos de passar por todas as estruturas possíveis da língua, para mostrar que o pronome possessivo é um recuperador da infonnação (fórico), e,
mesmo as que são privilegiadamente usadas na linguagem falada. Por exemplo, no caso, recuperador na situação, porque se trata da segunda pessoa do discurso.
na conversação, há maneiras muito expressivas de indeterminar o sujeito que são Sobre o valor do possessivo, vamos refletir mais um pouco. Veja-se a outra
absolutamente ignoradas nas lições de escola. São exemplos da língua falada, mais história em quadrinhos que vem na lição.
especificamente, da língua urbana culta - NURC (Neves, 1994a):
a111igame111ePOCê ia ao Cine /piranga, eram umas poltronas ótimas (DID-
SP-234, p. 578-579)

por exemplo, eu posso saber todos os sinais de trânsito de cor, tá, eu me-
morizei o meu processo( ... ), mas é preciso que eu aplique, que eu 111ilizeos
sinais de trânsito na hora cena (EF-POA-278, p. 283-287)
148 Que 9romótico estudar no 8$Colo? Norma, usoe 9romótico e$Color 149

Sobre os demonstrativos também se pode refletir.avaliandoo que a escola


faz e o que poderia fazer, para conduzir os alunos na compreensão da rede
referencial de que se compõem os textos. construídaem grande parte com O uso
de demonstrativos.
Esta é uma tira que um livro didático utilizademro da sua lição sobre pro-
nomes demonstrativos:

NÃO.AQUELE
SINAL
E

Abai:xoda tira se apresenta o exercício:


"Analise os pronomes que aparecem na/rase da tabuletagrande,110 último
quadro, e classifique-os em pronome substantivoe pronome adjetivo."
OSSO BONECO ,. Vê-se, em primeiro lugar, que o que se põe em exameé a frase solta, sem
OE NEVE !?.~
1 ' ' nenhuma acenção ao real funcionamento dos itens, desconsiderando-secomple-
.
8AH'
-- - . .
--:, .
tamente a semântica textual, e vê-se, além disso, que o exercício constitui uma
ft ,Jt/f UM '· \ I ' , simples rotulação de entidades.
('S.,;Q f'I: N~ )' a,;:~Jr.11.. Também de um livro didático, e tambémda lição sobre pronomesdemons-
AMflfM NA.' -
:A ~Al'A MA1 ,, trativos, é a tira:

No comentário que, logo abaixo dos quadrinhos, vem falar de possessivos,


apenas se reforça a falsa noção de que o possessivo é sempre, e apenas, indicador
de posse, esquecendo-se que ele é um relacionador - para várias indicações - de
duas pessoas do discurso: uma terceira pessoa e uma outra qualquer. Perde-se a
opo1tunidadede refletir sobre o papel fórico e a natureza pessoal - mais rigoro-
samente, bipessoal - do pronome possessivo (Neves, 1993), questões que ficam
completamentedesconsideradas•.Imaginemos uma situação em que alguém expõe
Apresentada essa tira, propõe-se.no livro.o seguinteexercício:
um texto em uma aula: se essa pessoa disser nossa aúla, ou nesta nossa sala, estará
dizendo que os presentes possuem uma aula, ou uma sala? Isso é, afinal, a escola "Aponte e classifique os pronomes prese111es
no quadrinho.",
abdicando da reflexãoe continuando a repetir chavões.
· uma vez, 1mphca.
o que, mais · · '1esmente.exerci·1arrotulaçãoe subclassificação
· s1mp
· · - no texto em que ocorre. Há completa
de entidades, sem vistas para suas funçoes
1 1

150 Que gromóticoestudar no escola?


Norma, uso e gramóticaescolar 151
ausência de atenção para a observação de "efeitos especiais" de sentido que se po-
dem obter, por exemplo, com o uso do aquilo (Neves, 2000a, Parte II).
O tratamento de outro elemento eminentemente referenciador, o prono-
me pessoal, segue o mesmo roteiro. Esta é uma tira registrada em um livro de
7• série:

~ - INJ

Os exercícios pedidos a seguir são:


"Aponte e classifique todos os pronomes presentes nos quadrinhos."
Não preciso dizer que novamente se trata de simples nomenclatura,mas
devo dizer que se perde a oportunidade de mostrar, entre outras coisas,o mecanis-
Os exercícios que se pedem são: mo de representação da quantificação: por exemplo. nesse caso, haveriaa oportu-
nidade de mostrar que foi o jogo entre a quantificaçãouniversale a quantificação
a. Classifique os pronomes do texto.
parcial que propiciou a manifestação comparativa, pois dentro de um conjunto
b. Classifique os dois os. total (todos), alguns são comparados (piores) com os outros (com os restantes).
E p~r aí,se-chegaria a uma relação fundamental na constituição dos enunciados.
Limpe os pés. Mas o mecanismo da comparação nunca é trabalhado nas escolas, a não ser para
Limpe-os. montar-se aquele velho quadro que registra a forma velha e cansadade expressão
do "grau dos adjetivos" 5•
Novamente, a atenção só vai para a rotulação, identificação, subclassifica-
ção, e com a frase arrancada do texto, como se o texto fosse peça morta, simples
registro gráfico extenso do qual se pode tirar um ou outro pedacinho, para praticar
o esporte de dar nome a certas palavras que nele ocorrem. Ü QUE CONCLUIR
Outro problema ilustrado, no caso da exploração dessa tira, é a comparti-
mentação das noções, como se o texto não se construísse com todas as classes de Com essa última observação, que, afinal, toca o modo usual de tratamento
palavras - e todas com função no fazer do texto - de tal modo que, dentro da lição da gramática nas aulas da disciplina Português, concluo estas reflexões,dizendo
sobre pronomes pessoais, só essa entidade pudesse ser observada. Veja-se que, no o que me parece uma série de obviedades. mas que, pelo que vem ocorrendo,
caso particular dessa tira, perde-se a oportunidade de mostrar a referência a um ob- merece observação:
jeto presente na situação, feita especialmente pelo pronome demonstrativo este, • que estudar gramática é refletir sobre o uso linguístico,sobre o exercícioda
Embora não se trate de referenciação, aproveito a oportunidade para observar linguagem;
o tratamento descuidado que, particularmente, os pronomes indefinidos têm mere-
cido. Veja-se uma tira utilii.adapelo mesmo livro na lição sobre esses pronomes: • que o lugar de observação desse uso são os produtosque tei:nosdis_poníveis
-
falados e escritos - mas é, também, a própria atividade lmguíSt1cade que
participamos, isto é, a produção e a recepção,afinal,a interação;

• que, afinal, a gramática rege u_rroduçãode sentido.


l 52 Que gromólicoestudorno escolo~

Notas Para uma gramática escolar.


linguística, uso linguístico e
1 Uma primeira ven;ão deste texto está publicadaem Neves (2000b). gramática na escola'
2 Ver nota 3 do capítulo "Língua falada. língua escrita e ensino" e nota 6 do capítulo "Uma
gramáticaescolar fincada no uso linguístico".
3
O tematambémé tratadonocapítulo"Umagramáticaescolarfincadanouso linguístico". A DIFICULDADE
DA PROPOSTA

' Ver exercício comentado no capítulo "Uma gramática escolar fine.adano uso linguístico".
Talvez o passo mais difícil e arriscado na propostade uma gramáticaescolar
' Um tratamentodo mecanismoda comparaçãoestá no capítulo "A fixaçãoda norma-padrão: que parta do uso linguístico seja o que tem de ser dado da "dinâmica linguísli-
a fonte e os limites". ca" para a "descrição gramatical" (tomando emprestadlasas expressõesde Clairis,
1999, p. 35). Diz Clairis que o primeiro cuidado, dentro de um plano que pretenda
levar em conta a "dinâmica linguística'' na ''descrição gramatical"é refletir sobre
o próprio termo gramática, ver quando foi forjado, seguir sua trajetóriahistórica
das origens até os nossos dias. Foi o que, de certa forma, se tentou fazer nesta obra,
a partir do Capítulo I.
Ora, se não por conta de tal passo, seria por conta da própriaempreitadade
tentar elaborar uma gramática escolar que uma reflexãodesse tipose farianecessá-
ria, embora sempre correndo-se o risco - muitas vezesjá verificadoconcretamente-
de efetuar o percurso simplesmente pelo percurso.Quantos estudosassumemcomo
tarefa inicial historiar a instituição da disciplinagramáticae revisar historicamente
o conceito de "gramática"; no entanto, não logram aproveitar esse excurso para a
fixação das diretrizes da empresa de descrição gramaticala que visam!

AINDA UMA VEZ A NOÇÃO DE GRAMÁTICA

Como diz Clairis (1999. p. 35), qualquer indivíduo,se perguntado,terá algo


a dizer sobre o que entende por gramática. Trata-se, pois, de um elemento da cul-
nrra geral, um produto que diz respeito a um público vasto. Gramáticaé, afinal,
urrt termo familiar.
Não é difícil conciliar esse estatuto com a história do termo e do produto
que ele nomeia. Cla.iris ( 1999. p. 36) volta ao título do manual de gramática de
Dionísio, 0 Trácio (século li a.C.), Téchne grammariké, para insistir no caráter
de "técnica" da gramática alexandrina. Tenho preferido (Neves.!987) insis!irem
seu caráter de "arte" 2, o que não muda muito o rumo da reflexao, mas retJra do
'! conceito a noção de "conquista tecnológica" que Clairis acentua_nele,e. fazendo
isso afasta-o ainda mais de uma natureza possivelmenteespeculattva.De qualquer
modo, trata-se de uma disciplina de caráter prático, de envolvime~topúblico e d_e
apelo cultural. Não poderia ser diferente uma atividade que, movida pela valon-

Você também pode gostar