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ESCOLA NAVAL

ASPIRANTE IM-424 – LETÍCIA DA COSTA FALCÃO DE ALBUQUERQUE

A APLICABILIDADE DOS CONCEITOS DA PSICODINÂMICA DO


TRABALHO NO MEIO MILITAR-NAVAL

Apresentação de trabalho acadêmico como requisito


parcial para obtenção do grau de bacharel em Ciências
Navais perante a Escola Naval.

Orientadora: Professora Dr.ª Michelle Thieme.

Rio de Janeiro
2020
A APLICABILIDADE DOS CONCEITOS DA PSICODINÂMICA DO TRABALHO
NO MEIO MILITAR-NAVAL

RESUMO
O psiquiatra francês Christophe Dejours é o principal responsável pelo desenvolvimento da
Psicodinâmica do Trabalho, vertente da Psicologia voltada para o estudo das relações do
homem no ambiente de trabalho e seus decorrentes desdobramentos no campo da saúde
mental. Diante da constante expansão da relevância e do impacto do trabalho na vida do
homem contemporâneo, acompanhada de uma maior preocupação e conscientização social em
escala mundial para temas como a saúde mental, a monografia em questão tem como objetivo
central descobrir e analisar quais os principais desdobramentos das teorias da Psicodinâmica
do Trabalho no meio militar-naval, cenário em que a presença de atividades de risco e de
possível comprometimento da vida tende a produzir campo propício para os mais variados
tipos de sofrimento. Dessa forma, os conceitos da teoria da Psicodinâmica do Trabalho
priorizados no presente ensaio vão discutir, fundamentalmente, a formação da identidade do
indivíduo, a necessidade de reconhecimento do homem em sua atividade e os processos de
transformação do sofrimento frente aos desafios e às peculiaridades do ambiente profissional
militar-naval.
Palavras-chave: Psicodinâmica do trabalho. Saúde mental. Marinha do Brasil.
Aplicabilidade.

ABSTRACT

French psychiatrist Christophe Dejours is the main responsable for the development of the
Psychodinamyc Theory of Work, trend of Psychology focused on the studys of man’s
relationships inside his workplace e its developments among mental health discussion. Due to
the constant expansion of the relevance and the impact of work in contemporary man’s lives,
added to a wider concern and social awareness about mental health around the whole world,
the main purpose of this monography is to discover and analyze the main developments of
Psychodinamyc Theory of Work’s concepts in naval sector, where the existence of high-risky
activities and of very likely danger to life tend to encourage a fertile field to the growth of
many kinds of suffering. So, the major concepts of the Psychodinamyc Theory of Work
prioritized in this essay will discuss fundamentally the formation of the individual's identity,
the man’s need for recognition at his occupation and the processes of transformation of
suffering in the face of the challenges and peculiarities of the professional environment of the
naval sector.
Keywords: Psychodinamyc Theory of Work. Mental health. Brazilian Navy. Applicability.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 3
2 O TRABALHO, O HOMEM E SUAS TRANSFORMAÇÕES ................................. 4
3 A PSICODINÂMICA DO TRABALHO ..................................................................... 6
3.1 Origem e fundamentos ................................................................................................ 6
3.2 Fases e conceitos principais ......................................................................................... 7

4 A MARINHA DO BRASIL E A SAÚDE MENTAL .................................................. 9


4.1 O meio militar-naval e as principais fontes de sofrimento ............................................ 9
4.2 Os principais indicadores de sofrimento ...................................................................... 12
4.3 As estratégias de defesa organizacionais ...................................................................... 13
4.4 A ressignificação do sofrimento .................................................................................. 15

5 CONCLUSÃO .............................................................................................................. 17
AGRADECIMENTOS .................................................................................................... 19
REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 20
3

1 INTRODUÇÃO

O psiquiatra e psicanalista francês Christophe Dejours é considerado o pai da


“Psicodinâmica do Trabalho”, vertente da Psicologia que busca entender a relação entre o
homem e o trabalho, mais precisamente no que tange à ligação entre o trabalhador e os
sofrimentos decorrentes da estrutura organizacional do ambiente profissional. Desenvolveu
teorias importantes, dentre as quais destacaremos duas nesse trabalho: “dinâmica do
reconhecimento” e “dualidade do sofrimento”.
Essas teorias abordam a necessidade de reconhecimento do homem no meio
profissional, o processo de formação da identidade e do sentido do trabalho para o indivíduo e
a possibilidade de transformação criativa frente a situações de sofrimento. Teorias que foram,
portanto, a origem de interesse pela realização desse estudo, uma vez que suas ideias se
relacionam diretamente aos princípios da atividade militar, onde a formação profissional é
pautada em treinamentos intensos, com desgaste psicológico e físico, voltados para atividades
de risco e possível comprometimento da vida.
É de fundamental importância para qualquer organização, principalmente naquelas em
que o principal recurso de força de trabalho é o humano – como as militares - conhecer as
implicações de sua estruturação organizacional na saúde mental dos agentes envolvidos em
seus processos. Torna-se ainda mais relevante o estudo quando percebemos o real papel do
trabalho na vida do homem contemporâneo, muito mais do que meramente sua forma de
sustento e de sobrevivência. Além disso, há também a possibilidade desse estudo tornar-se
fonte de informações subsidiárias para a identificação de deficiências institucionais e de
consequentes melhorias, aumentando a eficiência da organização.
Dessa maneira, o estudo visa descobrir e analisar quais os principais desdobramentos
das teorias da Psicodinâmica do Trabalho em um ambiente de trabalho peculiar: o militar
naval contemporâneo. Portanto, é de fundamental importância o entendimento de que existe
uma linha tênue entre fazer com que, por um lado, pessoas se superem, expandindo suas
capacidades e, por outro, fazer com que pessoas ultrapassem seus limites pessoais e cruzem a
fronteira do território dos transtornos psicológicos. Se abnegação e espírito de sacrifício
orientam e fundamentam a doutrina naval, como distinguir então o que faz parte de ser militar
e o que são questões patológicas? Como identificar prováveis problemas organizacionais se
tudo é visto como não somente parte da rígida formação do militar, mas também requisito
para uma consequente boa preparação para a guerra? Se considerarmos o sofrimento como
algo inerente à profissão, como proceder diante dos crescentes números de militares com
4

depressão e alcoolismo, por exemplo? Diante de tais questões, esse estudo parte da hipótese
de que, uma vez ajustadas às características do ambiente de trabalho militar-naval, as teorias
fundamentais da Psicodinâmica são aplicáveis e eficazes.
Optou-se por desenvolver essa análise por meio de pesquisa documental e
bibliográfica de livros, artigos e publicações que, de alguma forma, possibilitassem a
necessária ambientação com o tema a ser abordado e suas respectivas áreas de conhecimento:
administração, psicologia, doutrina militar-naval e saúde mental. Para tal, como referencial
teórico desse ensaio, foram exploradosos conceitos do psicanalista Christophe Dejours (1987,
1990, 1997), assim como demais artigos os quais contribuíram expressivamente para a
compreensão da realidade profissional dos homens e mulheres do mar. Dentre os artigos
pesquisados, escolhidos e estudados, recebem destaque três produções científicas: uma
monografia que investiga, segundo os pressupostos da Psicodinâmica do Trabalho, as relações
de prazer e sofrimento no trabalho, sob a perspectiva de sargentos do Exército Brasileiro
(RATES, 2007); uma dissertação de mestrado elaborada com o objetivo de compreender o
processo de trabalho dos militares que servem a bordo de navios operativos da Marinha do
Brasil e seus impactos na saúde e na vida social (Ramos, 2015) e; um artigo que permitiu um
maior conhecimento acerca dos efeitos das situações de trabalho na construção do alcoolismo
dentro da Marinha do Brasil (HALPERN; FERREIRA; SILVA FILHO, 2008).
A monografia em questão será estruturada em seis seções: a primeira, introdução; a
segunda, uma breve apresentação às transformações das formas de organização do trabalho ao
longo da história; a terceira decorrerá a origem da Psicodinâmica do Trabalho, seus
fundamentos e seus principais conceitos; a quarta, um panorama do cenário militar-naval
contemporâneo e suas implicações na saúde mental dos militares da MB, assim como a
identificação dos elementos psicodinâmicos; quinta, uma sintética conclusão das reflexões
desenvolvidas e um posicionamento quanto à hipótese inicial desse estudo e; a sexta,
agradecimentos.

2 O TRABALHO, O HOMEM E SUAS TRANSFORMAÇÕES

As trajetórias do trabalho, do homem e dos modelos de administração se encontraram


e se confundiram ao longo de toda a história. Seus conceitos ganharam complexidade e seus
preceitos sofreram alterações no tempo motivadas por razões sociais e econômicas, assim
como religiosas e políticas.
O trabalho, no início do que se conhece do homem, como resultado de uma simples e
instintiva luta por sobrevivência, alinhou-se, na Antiguidade e por um longo período da Idade
5

Média, à ideia de servidão, submissão e ausência de dignidade. Nesse contexto, surgiram os


escravos, os vassalos, entre outros.
Esse cenário se altera somente com a Reforma Protestante, na qual João Calvino
postula a correta vivência do homem, sob a ótica Cristã, com base em uma moral rígida,
pautada na simplicidade, no trabalho e na honestidade (PERES, 2011). Assim, a salvação do
homem dependia diretamente de seus feitos e suas conquistas.Estreitando, portanto, a relação
positiva entre o trabalho e a dignidade do indivíduo.
Ainda de acordo com Peres (2011), Adam Smith e Karl Marx contribuem com a
valorização do trabalho ao defender o ofício de um homem, respectivamente, como
verdadeira fonte de riquezas e plataforma para construção de caráter social e ferramenta de
permutação em meio às diferentes classes sociais.
Uma vez tendo seu papel já consolidado na sociedade, sobretudo devido à Revolução
Industrial e ao advento da máquina a vapor, surge a necessidade de mudanças profundas nos
processos de produção e de organização do trabalho, a fim de acompanhar o extensivo e
acelerado processo de industrialização, concorrência e competição em diferentes mercados.
Nesse contexto, grandes nomes da história da administração contribuíram para
mudanças e reorganizações significativas do ambiente de trabalho. Nos Estados Unidos,
Taylor e sua teoria da Administração Científica possibilitaram os grandes avanços da
produção em massa. Entretanto, o foco em maximização da produção e minimização dos
custos incentivava uma cultura de desqualificação profissional, de exploração dos
funcionários em prol dos interesses próprios da empresa e contribuía também para a
dissolução de uma identidade grupal que atualmente é comprovada como um dos aspectos
fundamentais para o sucesso das organizações (MAXIMIANO, 1995). Na Europa,
compactuando dos mesmos ideais, porém agora analisando menos a produção e mais a
estrutura organizacional, Henri Fayol postula seus 14 princípios fundamentais da
administração, os quais deveriam nortear as decisões e ações da alta administração das
empresas. Henry Ford, igualmente adepto ao conceito de produtividade máxima, é o
responsável por defender, diferentemente de Taylor e Fayol, a remuneração e a jornada de
trabalho como variáveis importantes. Isto é, segundo Maximiano (1995), nesse momento o
aspecto motivacional e as condições do trabalho deixam de estar em segundo plano, ganham
espaço nas discussões administrativas e passam a ser consideradas variáveis diferenciais na
equação do sucesso das organizações.
Dessa maneira, surge a Escola das Relações Humanas, de Elton George Mayo,
vertente da Administração oposta às anteriores, a qual ajustava seu foco nas pessoas e nas
6

relações interpessoais, em vez de priorizar o processo produtivo ou a estrutura da organização.


A teoria foi responsável pela difusão da ideia de que um ambiente de trabalho com uma
integração equilibrada entre os indivíduos é mais propicio ao sucesso, uma vez que essa
integração estimula um maior espírito de colaboração entre trabalhadores e setores,
culminando em um maior atendimento e uma mais ampla satisfação não só de suas
necessidades profissionais, como também pessoais e psicológicas. Adiante, essas teorias
foram aprimoradas e integradas por Max Weber e Ludwig von Bertalanffy. O primeiro
defendia a racionalidade, a burocracia em sua forma legal e desenvolveu o conceito de
hierarquia organizacional. O segundo, por outro lado, foi responsável por desenvolver a
análise sistêmica das organizações e fomentar a compreensão do ambiente externo como fator
decisivo no desempenho das empresas (MAXIMIANO, 1995).
As transformações no papel do trabalho na vida do homem, desde a antiguidade até o
mundo contemporâneo, assim como sua irrefreável busca para melhor organizar essa
atividade – de maneira a possibilitar maiores chances de sobrevivência ou enriquecimento,
mas sempre almejando eficiência nos mais diversos contextos – foram precursoras e
catalisadoras de estudos e movimentos na área de Psicologia com o objetivo de compreender
os impactos do ambiente de trabalho no âmbito pessoal, social e psicológico do indivíduo.
Uma dessas vertentes da Psicologia ficou conhecida como “Psicodinâmica do Trabalho”,
perspectiva teórica que será apresentada e discutida a seguir.

3 A PSICODINÂMICA DO TRABALHO

3.1 Origem e fundamentos

A exploração do campo da saúde mental no trabalho surgiu em um movimento


liderado por alguns psiquiatras franceses nos anos 50. Em um cenário pós II Guerra Mundial,
alguns aspectos influenciaram esse movimento: a modernização da indústria francesa, sob um
novo enfoque de racionalização e produtividade; a criação de políticas voltadas para o campo
da saúde com o propósito de higienização social; a consolidação do trabalho como solo fértil
de diversos estudos e áreas de pesquisa e; o estreitamento de laços entre psiquiatria e
psicanálise. Conforme exposto por Lima (1998), a composição desse cenário foi responsável
pelo surgimento de novas formas de observação, compreensão e tratamento de doenças
mentais.
A doença mental era compreendida, em sua essência, como resultado direto de
alterações no chamado “substrato orgânico” do homem, isto é, nas anormalidades das raízes
do organismo de cada indivíduo e que não se enquadrem nos padrões. Paul Sivadon,
7

psiquiatra francês, foi o primeiro a utilizar o termo “Psicopatologia do Trabalho” e dedicou


seus estudos à análise dos distúrbios mentais sob o enfoque da integração dos elementos
psíquico, orgânico e social1 (LIMA, 1998). Sua principal contribuição para o campo de estudo
da saúde mental no trabalho foi a ergoterapia, ou terapia ocupacional, que consiste no
entendimento do trabalho como ferramenta de integração social e na execução de tarefas
manuais por pessoas doentes como método de tratamento. Contudo, suas teorias eram
limitadas e suas obras nunca conseguiram estabelecer relações relevantes entre os três
aspectos. Além disso, embora o médico defendesse o trabalho como instrumento terapêutico,
percebeu também o potencial patológico das atividades laborais sobre a vida do homem.
Conterrâneo de Sivadon, mas com perspectivas distintas e inspirações marxianas,
Louis Le Guillant tenta verificar o papel do meio no surgimento e no desaparecimento dos
distúrbios mentais (LIMA, 1998). Influenciado por George Politzer, filósofo marxista francês,
acreditava que, somente por meio do conhecimento e da compreensão da realidade do homem
e suas condições de trabalho, seria possível o mapeamento de sua saúde mental. O médico
defendia, ainda, que seria necessário analisar toda a trajetória do indivíduo – indicando
previamente um alinhamento com as ideias psicanalistas – e só então os problemas e
incongruências do ambiente de trabalho.
Entretanto, somente em 1968, com o psicanalista francês Christophe Dejours, sob um
viés freudiano, novas e importantes considerações sobre o tema são feitas. Dejours, autor da
renomada obra “A loucura do trabalho” (1987), demonstrava interesse em investigar os
resultados do trabalho, até mesmo em casos de ausência de doenças mentais. Interessava-se
mais do que apenas pela existência do sofrimento, mas fundamentalmente pela possibilidade
de transformá-lo. Essa transformação ocorreria por meio do estudo e da análise das estratégias
defensivas de minimização de danos e manutenção da saúde mental adotadas pelos
trabalhadores. É pioneiro na utilização do termo “Psicodinâmica do trabalho”, por acreditar
que “a relação entre organização do trabalho e o homem não é um bloco rígido, mas está em
contínuo movimento" (DEJOURS, 1987), contribuindo, assim, para a ampliação da discussão
sobre o tema.

3.2 Fases e conceitos principais

Conforme aponta Rates (2007), a Psicodinâmica do Trabalho é marcada por três fases
articuladas, complementares, e ao mesmo tempo delimitadas por publicações específicas de
seu fundador e propagador, Cristophe Dejours. A primeira fase é marcada pela publicação de

1
Enfoque BIO-PSICO-SOCIAL.
8

sua primeira obra “A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho” (1987) e tem
como objetivo de estudo identificar a origem do sofrimento advindo do embate entre a
organização do trabalho e o trabalhador. Em um contexto onde prevalecia o modelo
Taylorista, pautado em produtividade máxima e condições precárias de trabalho, buscava-se
compreender a estruturação do sofrimento e quais as estratégias defensivas individuais e
coletivas utilizadas em contrapartida pelos trabalhadores. O foco, então, recai sobre o
indivíduo, seu sofrimento e a maneira por meio da qual confronta a organização na tentativa
de preservar sua saúde mental e atingir seus objetivos.
Em um segundo momento, materializado em obras como “Fator humano” (1997),
Dejours conclui que o sofrimento é inerente a todo e qualquer formato de organização do
trabalho e que cada contexto específico também apresenta estratégias defensivas
características. Portanto, evidencia-se o papel da organização na formulação deste sofrimento,
o que impacta diretamente na busca por novos modelos de coordenação do trabalho.
Como consequência desse novo panorama, ocorre a transição para a terceira fase desse
campo de estudo, fase esta que perpetua até hoje por meio do aprimoramento e do
aprofundamento de conceitos centrais da teoria da psicodinâmica do trabalho como: o
trabalho como mecanismo de construção da identidade do indivíduo; a dinâmica do
reconhecimento e; a natureza dual do sofrimento: o patológico e o criativo. Nessa nova fase, o
foco se estabelece não sobre a eliminação do sofrimento, mas sim sobre sua aceitação e,
posteriormente, transformação.
Dejours, em seu livro “A banalização da injustiça social” (1999), justifica o
surgimento do sofrimento na ausência da possibilidade de negociação entre o homem e a
realidade de trabalho imposta pela organização. Para o psicanalista, a organização se dá por
três elementos básicos: a divisão do trabalho, o conteúdo das tarefas realizadas e as relações
de poder e hierarquia. Outros autores em suas obras, como Ana Magnólia Mendes em
“Psicodinâmica do trabalho: teoria, método e pesquisas” (2007), contribuem com a percepção
de que a organização do trabalho pode desenvolver uma influência tanto de forma positiva
quanto negativa na vida do profissional, dependendo diretamente de dois fatores: a
personalidade do indivíduo e a margem de liberdade administrada pela organização. Assim, o
sofrimento lida com um processo de ressignificação: além de seu caráter patológico, também
carrega consigo alto potencial criativo.
Para Mendes (2007), o saudável é constituído pelo enfrentamento das imposições e
pressões do trabalho, as quais eventualmente causam a instabilidade psicológica e deturpação
da personalidade. O viés criativo do sofrimento contribui, portanto, para sua transformação
9

em sentimentos ligados ao prazer e também em um aumento da resistência do sujeito ao risco


de desestabilização psíquica e somática. O patológico, por outro lado, diz respeito às falhas
nessas modalidades de enfrentamento do sofrimento, ocorrendo principalmente quando os
objetivos da organização sobrepõem os desejos do sujeito trabalhador.
Na visão de Dejours, as vivências do prazer-sofrimento no trabalho se dão por três
aspectos principais: valorização, reconhecimento e desgaste com o trabalho. Enquanto o
sofrimento se evidencia em situações de cansaço, desânimo e insatisfação, a valorização está
atrelada à consciência de propósito da atividade por parte do indivíduo, não só para si, mas
como também para toda a sociedade. Também, o prazer, no que tange ao reconhecimento,
está relacionado aos sentimentos de admiração, respeito e aceitação no ambiente de trabalho.
A subjetividade do indivíduo, entretanto, não deve ser minimizada. Fato esse que
explica o porquê de, ainda que sujeitos às mesmas condições de trabalho, algumas pessoas
adoeçam e outras não. Rates (2007) diz que as estratégias defensivas diante do sofrimento são
regras de conduta articuladas por homens e mulheres. Sendo assim, variam de acordo com a
individualidade e subjetividade de cada um.
Assim, o principal mérito da discussão sobre a psicodinâmica do trabalho é justamente
a possibilidade de identificação e exposição dos gargalos dos mecanismos de preservação da
saúde mental nos mais diversos modelos de organização e, oportunamente, a utilização dessas
análises em prol do aprimoramento organizacional. Para tal, além do conhecimento sobre os
principais conceitos dessa vertente da psicologia, é essencialmente o domínio das
características peculiares das organizações alvo de estudo. No caso desta pesquisa, o cenário
militar naval no Brasil.

4 A MARINHA DO BRASIL E A SAÚDE MENTAL

4.1 O meio militar-naval e as principais fontes de sofrimento

Incorporando-me à Marinha do Brasil, prometo cumprir rigorosamente as ordens das


autoridades a que estiver subordinado, respeitar os superiores hierárquicos, tratar
com afeição os irmãos de armas, e com bondade os subordinados, e dedicar-me
inteiramente ao serviço da Pátria, cuja Honra, Integridade, e Instituições, defenderei
com o sacrifício da própria vida. (Juramento à Bandeira Nacional).
Um dos três pilares das Forças Armadas brasileiras, a Marinha do Brasil é uma
instituição nacional, permanente e regular, a quem compete a assegurar a segurança do Estado
e a garantia de seus poderes constitucionais, dentre outras extensas responsabilidades
dispostas em Constituição Federal (1988). Muito embora o Brasil não possua um histórico de
ser uma nação engajada diretamente em guerras e conflitos bélicos, mantém a preparação de
seu pessoal militar, assim como de seus meios operativos em prontidão permanente. A fim de
10

atingir esse alto nível de eficiência que se espera e se necessita de uma Força Armada,
sobretudo de homens e mulheres do mar servidores da pátria2, é necessária uma rígida
formação, pautada em uma doutrina milenar: a doutrina militar naval.
De acordo com o disposto no EMA-305, a Doutrina Básica da Marinha (DBM)
estabelece os princípios, conceitos e, de forma ampla, os métodos de emprego em combate,
ou em outras participações não relacionadas à atividade-fim, com o propósito de orientar a
organização, o preparo e o emprego do Poder Naval brasileiro.
É importante salientar, portanto, a atividade fim da Marinha do Brasil: o mar. Mesmo
aqueles que contribuem para a missão da Força em apoio, como Fuzileiros Navais e o Corpo
de Intendentes da Marinha e demais habilitações, esses têm suas funções e ações sempre
norteadas em prol do objetivo primordial da instituição. Assim, faz-se necessário analisar as
atividades inerentes ao ofício do marinheiro, seus propósitos, suas dificuldades, seus
mecanismos de defesa e as consequências de sua profissão em termos de saúde mental para a
melhor compreensão dos impactos da organização na vida desses homens e mulheres.
A vida a bordo dos navios da Marinha do Brasil não é, de fato, fácil. Mesmo aqueles
militares que permanecem embarcados por curtos períodos de suas carreiras, dada a
intensidade e a singularidade dessa experiência, estão sujeitos aos impactos das peculiaridades
da vida nos mares. A rotina de bordo segue um padrão básico, salvo em casos inopinados:

Exercícios reais e simulados de controle de avarias, o briefing apresentado sobre o


planejamento das missões dos carros de combates, das aeronaves e dos outros navios
que faziam parte da comissão, das pausas para as refeições, muitas vezes
interrompidas por alarmes de emergência ou pelo próprio “jogo” do navio que não
permite a permanência à mesa por muito tempo, o preparo das refeições, os raros
momentos de descontração e o compartilhamento do camarote com outras militares.
(RAMOS, 2015)
Ao analisar a fundo o impacto dessas atividades na vivência dos militares, Ramos
(2015) em seu trabalho de mestrado conseguiu identificar os principais problemas atrelados à
atividade militar naval. Nessa pesquisa, os marinheiros relataram que, mesmo que não estejam
em situação real de guerra, existem sim muitos riscos envolvidos em praticamente todas as
suas obrigações profissionais, assim como alguns danos à saúde que, por muitas vezes,
tornam-se permanentes ou crônicos.
Entre os principais, o mais abrangente e conhecido de todos é a cinetose ou “mal do
movimento”. De acordo com a Classificação Internacional de Doenças (CID), os sintomas
dessa doença consistem em náuseas e tonturas causadas pela movimentação dos meios de
transporte, ou seja, no caso em estudo, pelo “jogo” dos navios. Esse problema, por vezes,

2
Servidores da Pátria são os militares que juram à Bandeira Nacional com o sacrifício da própria vida.
11

revela-se crônico quando a sensação de instabilidade se mantém até mesmo quando o militar
desembarca, configurando o conhecido pela literatura “mal do desembarque” (BROWN; e
BALOH, 1987).
No que tange à habitabilidade do navio, os principais pontos destacados são o pouco
espaço, a disponibilidade limitada de aguada, além da ausência de elementos de conforto
como, por exemplo, o ar condicionado. Com relação às fainas3 de bordo, os riscos se
evidenciam no transporte de pesos, nos ruídos do navio, na insalubridade do ambiente, no
contato direto com solventes e, ainda, na perigosa possibilidade de inalação de gases
provenientes de combustíveis e outras substâncias tóxicas.
Ainda sobre os serviços a bordo, Ramos (2015) relatou a acumulação de funções como
um fator de sobrecarga profissional muito estressante para os militares. A demanda do navio
costuma ser superior à disponibilidade de pessoal. Todos possuem diversas funções e
encargos colaterais que, por muitas vezes, contribuem para o encurtamento do período de
descanso desses homens e mulheres. Por exemplo, aqueles que atuam na cozinha, embora não
dêem serviço na parte de navegação, emendam a preparação de uma refeição em outra, o que
exige também um alto nível de prontidão e disponibilidade permanente.
Os momentos de descontração e relaxamento também são questões a serem analisadas.
Isto porque o marinheiro, mesmo quando não está de serviço, continua imerso em seu
ambiente de trabalho e deve permanecer atento aos alarmes e acionamentos a bordo. O navio
funciona 24 horas por dia, mesmo quando não está navegando (RAMOS, 2015). A rotina
cansativa, somada à privação de sono e ao confinamento do meio social, costuma elevar a
tensão do ambiente de trabalho.
No âmbito de esgotamento emocional, os militares apontam como as maiores
dificuldades o afastamento da família, a inevitável ausência em diversos eventos sociais e a
comum desestabilização da dinâmica familiar. Não são raros os relatos de marinheiros que
perderam o nascimento de seus filhos, aniversários e formaturas das filhas ou, ainda, a
impossibilidade de estarem presentes em momentos fúnebres. Esses homens e mulheres
vivem essa experiência às vezes desde muito cedo na carreira, se considerarmos o regime de
internato adotado na maioria das escolas de formação da instituição. Além disso, embora a
evolução da tecnologia tenha ampliado as possibilidades de comunicação, pela natureza da
atividade militar e sua demanda por sigilo, a utilização de celulares e dispositivos móveis é
constantemente proibida.

3
Denominação atribuída ao conjunto de tarefas e atividades realizadas pelos profissionais da Marinha do Brasil.
12

Enganam-se também aqueles que acreditam que esses problemas se apresentam apenas
durante o período ativo da carreira. No que se relaciona ao processo de reinserção social, a
aposentadoria é um desafio ainda maior para os militares. O meio militar naval constitui uma
espécie de cultura. Mais do que apenas a utilização de uniformes, possuem um linguajar
próprio, gírias específicas, costumes organizacionais. Em determinados Distritos Navais,
usufruem de auxílio de moradia, residindo em vilas ou em residências do Próprio Nacional
Residencial (PNR). Se por um lado isso ampara esses profissionais, por outro intensifica
ainda mais o problema de segregação social, pois mesmo quando longe dos navios ou das
Organizações Militares (OM) em que trabalham, permanecem imersos num ambiente de
convívio predominantemente militar.
Diante de todas essas portas de sofrimento no trabalho supracitadas, para uma
organização como a Marinha do Brasil, que depende diretamente do recurso humano, torna-se
fundamental saber “ouvir os gritos de ajuda” desses homens e mulheres, isto é, saber
identificar como esse sofrimento se desenvolve e pode ser percebido.

4.2 Os principais indicadores de sofrimento

Sob a ótica do enfoque BIO-PSICO-SOCIAL, as relações sociais – como o próprio


ambiente de trabalho e suas características – podem, em paralelo à estrutura psíquica e à
história de vida, desencadear alterações no humor, no raciocínio e no comportamento dos
indivíduos, comprometendo sua saúde mental. Um estereótipo infelizmente muito enraizado
em nossa sociedade é de que as pessoas que vivenciam transtornos psicológicos como
depressão ou ansiedade são sempre necessariamente indivíduos tristes ou desanimados. Os
indicadores de sofrimento psíquico podem ser, na verdade, discretos e difíceis de serem
percebidos na maioria das vezes, sobretudo por aqueles que não possuem o conhecimento
clínico para tal. Surge, portanto, o seguinte questionamento: quais os principais indícios de
problemas?
De acordo com os estudos realizados por Ramos, os militares, além do estresse que
advém da exaustão por excesso de trabalho – muito além de uma jornada de 8 horas diárias
convencionais – e da privação de sono, além das demais particulares da profissão expostas
previamente, revelaram, também, sentimentos e sensações que, em certa frequência e sem a
devida atenção da organização, podem vir a comprometer sua saúde mental. Os problemas
mais recorrentes foram episódios depressivos, transtornos mentais e também
comportamentais, muitas vezes influenciados pela excessiva ingestão de álcool.
13

O alcoolismo na MB é, na verdade, uma questão a ser discutida com atenção, ao se


revelar como uma espécie de “ideologia defensiva 4” institucional. Isso porque longos
períodos de afastamento do lar podem gerar um processo de perda de identidade primária e
sofrimento psíquico, onde o álcool se revela como instrumento de enfrentamento, “uma
válvula de escape”, e também como ferramenta de integração social.

Jovens marinheiros percebem o beber com seus colegas de trabalho durante a


jornada de trabalho semanal como um mecanismo apropriado para lidar com o
estresse, tédio, solidão e ausência de outras atividades de lazer. (HALPERN;
FERREIRA; SILVA FILHO, 2008).
Essas aflições não se relevam apenas durante as missões ou embarques duradouros.
Pesquisas revelam uma quantidade expressiva de militares que sofre no período que antecede
os embarques. De acordo com Ramos, não é rara a ocorrência de insônia, ansiedade, saudade,
tensão psicológica e muscular, angústia, entre outros tormentos.
Contudo, segundo os conceitos da psicodinâmica do trabalho explorados por Dejours,
mais importante do que identificar as causas de sofrimento e a forma como se evidenciam, é
entender os mecanismos de defesa individuais e coletivos empregados pelos indivíduos no
confronto de suas necessidades pessoais e as demandas profissionais a que estejam sujeitos. A
partir do correto mapeamento dessas conexões, a organização estará apta a desenvolver
projetos, programas ou, ainda, alterações em sua estrutura a fim de investir na manutenção da
saúde mental de seus trabalhadores, aumentando sua qualidade de vida.

4.3 As estratégias de defesa organizacionais

Dejours (2009) defende que certas organizações do trabalho favorecem a


psicodinâmica do reconhecimento e permitem inscrever o trabalho como mediador
insubstituível da saúde. Outras, por outro lado, apresentam falhas nas engrenagens dessa
dinâmica. Nesse quadro, muito embora o meio-militar naval se estruture sob diversas
características semelhantes às de uma instituição total5, como qualquer forma de organização
de trabalho, é uma construção humana. Ou seja, suas missões, portanto, só são cumpridas
mediante o consentimento e a colaboração de milhares de homens e mulheres. Dessa forma,
torna-se necessária a compreensão de como a estrutura da Marinha do Brasil corrobora com

4
Seu principal objetivo é mascarar, conter e ocultar uma ansiedade particularmente grave, sendo específica de
um grupo social particular. Destina-se a lutar contra um perigo e um risco reais. Ela é coletivamente elaborada e
alimentada.
5
Goffman (2001) define uma instituição total como um local de residência e trabalho onde um grande número
de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo,
levam uma vida fechada e formalmente administrada.
14

os conceitos de Dejours e quais são as principais estratégias coletivas de defesa da


organização.

As estratégias coletivas de defesa caracterizam-se por regras construídas a partir de


um consenso ou acordo compartilhado entre os membros do coletivo, na busca de
uma estabilidade frente ao sofrimento oriundo do trabalho. (DEJOURS;
ABDOUCHELI; JAYET, 2014).

Embora exista poucos estudos no meio acadêmico que abordem a natureza do meio
militar naval, dentro da própria estrutura da MB existem procedimentos, projetos e programas
que auxiliam a manutenção da saúde mental desses homens e mulheres, além de evidenciarem
a preocupação da instituição com a temática.
Por exemplo, uma das atividades mais comuns ao militar: o treinamento físico militar
(TFM). Os benefícios da prática esportiva são comprovados pela Organização Mundial da
Saúde (OMS) e pelo Ministério da Saúde: melhora do condicionamento muscular e
cardiorrespiratório, aumento da autoestima e da sensação de bem-estar, melhora da qualidade
do sono e, inclusive, melhora em quadros de depressão e ansiedade, entre outras vantagens.
Para os militares, pesquisas apontam que uma boa preparação física influencia diretamente na
capacidade de lidar com o estresse advindo de treinamentos e do combate, além de contribuir
para o aumento da resistência a doenças e acelerar a recuperação de lesões. Dentro da
instituição, a prática da atividade física é incentivada por regulamentos internos (CGCFN-15,
2009), sendo inclusive requisito para promoção em situações específicas. De acordo com o
disposto nas normas, é responsabilidade do comandante da OM assegurar a possibilidade de
prática de atividade física a seus militares pelo menos três vezes na semana.
Com relação ao atendimento clínico, evidenciam-se alguns problemas na organização.
Ramos (2015) diz que os militares embarcados possuem muita dificuldade de planejamento,
vide a rotina volátil do navio, mas não desfrutam de qualquer prioridade na marcação de
consultas nos hospitais e clínicas navais. Ainda assim, um aspecto positivo é a periodicidade
com a qual os militares são submetidos a inspeções de saúde obrigatórias ao longo da carreira.
Regularmente, são realizadas inspeções de saúde trienais e, para aqueles militares envolvidos
em atividades de maior risco e elevado grau de higidez psicofísica, as inspeções são realizadas
anualmente. Esses aspectos ampliam e facilitam o monitoramento da saúde dentro da
organização.
Há também o manual para Aplicação dos Programas de Saúde da Marinha – DSM
(Diretoria de Saúde da Marinha) 1001, o qual reforça a importância de um conjunto de ações
coordenadas e multidisciplinares, de modo a prevenir as doenças relacionadas ao trabalho,
sugerir as modificações ambientais, possibilitar as modificações de hábitos de vida, verificar a
15

higidez do continente militar, não só com os exames periciais de rotina, mas também com
atividades de promoção da saúde (RAMOS, 2015). Por exemplo, a criação em 1997 do
Centro de Dependência Química (CEDEQ), visando um maior combate à presença do
alcoolismo na MB, torna evidente a preocupação da instituição com a saúde dos marinheiros.
Essa atenção organizacional acompanha o militar até mesmo após o período ativo da
carreira. As diretrizes da Política de Assistência Social das Forças Armadas, os programas e
as normas expostas na DGPM-501 (5ª Revisão), assim como os projetos desenvolvidos pela
Diretoria de Assistência Social da Marinha (DASM) buscam facilitar esse delicado momento
de transição de estilo de vida para homens e mulheres que dedicaram parte significativa de
sua vida aos afazeres do mar. Isso se dá por meio de atividades como encontros e visitas a
OM em todo o território nacional.

4.4 A ressignificação do sofrimento


Quem foi reconhecido pela contribuição que trouxe à organização por seu trabalho
pode, eventualmente, voltar esse reconhecimento de seu saber-fazer para o registro
de sua identidade. Graças ao reconhecimento, trabalhar não é apenas produzir bens
ou serviços, é também “se transformar em si mesmo” (GERNET e; DEJOURS,
2011).
O processo de transformação do sofrimento em prazer se estrutura sobre um conceito
central da Psicodinâmica do Trabalho: a dinâmica do reconhecimento. De acordo com
Dejours (1999), a ressignificação do sofrimento depende igualmente de três aspectos
fundamentais: a realidade do indivíduo no contexto do ambiente de trabalho, a identidade do
sujeito e o reconhecimento por meio do outro.

Triângulo da dinâmica do conhecimento


Fonte: AUTORA (2020).
16

No contexto da Marinha do Brasil é necessário, portanto, entender a realidade das


atividades realizadas pelos marinheiros, identificar o processo de formação da identidade do
militar e o expressivo significado do ofício desses homens e mulheres. Além disso, evidenciar
as diferentes percepções de reconhecimento que os profissionais da instituição experimentam
não somente dentro da própria Força, mas na sociedade como um todo.
No que tange à formação da identidade do indivíduo como ferramenta para mutação
do sofrimento, destaca-se a forte presença de uma unidade de pensamento e ação dentro do
meio militar. Isto é, a sensação de estarem todos juntos sob as mesmas condições e em prol do
mesmo objetivo. Ramos (2015) salientou em suas pesquisas que os fortes laços de amizade e
companheirismo entre os militares impactam diretamente na capacidade de minimização de
problemas como a saudade da família e o estresse diante do excesso de serviço. Muitos
relatam, ainda, que o confinamento e a distância fazem com que ocorra uma maior
valorização do meio familiar. O reconhecimento, então, se estabelece na sensação de
pertencimento a uma equipe, a uma coletividade, a uma profissão (DEJOURS, 2009). Por
meio dessa sensação, o homem revela-se capaz de suavizar e até mesmo eliminar eventuais
crises psicopatológicas. Assim, ser reconhecido por meio de uma identidade coletiva estimula
o desenvolvimento de uma identidade pessoal, aumentando a resistência psíquica do
indivíduo e contribuindo para a manutenção de sua saúde mental.
Para compreender a busca por sentido no trabalho em meio à realidade da MB, torna-
se fundamental o conhecimento da diferenciação que Dejours detinha sobre os conceitos de
“tarefa” e “atividade”. O psicanalista entende a tarefa como aquilo prescrito para o
trabalhador pela organização e a atividade como o conjunto de ações e reações desenvolvidas
a partir da tentativa de execução da tarefa. Para Dejours (2009), a tarefa é ilusória e homem
sempre precisará fazer adaptações a fim de cumprir objetivos de forma eficiente e satisfatória.
A vivência da realidade pode assumir forma de desafio ou até mesmo de fracasso,
desencadeando sentimentos como a surpresa, logo substituído pelo nervosismo e pela
irritação, se não pela cólera ou pela decepção, a fadiga, a dúvida, o desalento, o sentimento de
impotência (DEJOURS, 2009).
Circunstâncias envolvendo missões de paz da ONU, operações de patrulha, além de
missões de socorro e salvamento configuram grande potencial de transformação do
sofrimento frente à realidade das tarefas navais. Um forte exemplo da influência dessas
condições para os marinheiros é o resgate dos corpos do trágico acidente aéreo do vôo da Air
France, em 2009. Ramos (2015) expôs o relato de um militar que participou ativamente dessa
missão:
17

Lembro-me como se fosse hoje, nós estávamos vindo de uma comissão longa e
retornando da África, estávamos saindo de Maceió pra chegar a Salvador. E então
recebemos uma mensagem [...]. E na época o imediato fez um trabalho de
conscientização da importância que era a missão e que tínhamos chance de salvar as
pessoas, de buscar sobreviventes. Todos incorporaram aquilo ali, toda a tripulação,
como de fato foi uma operação real mesmo. E o pessoal não ligou para a questão do
desconforto, de dar serviço um por um, acabar o mantimento, de ficar as madrugadas
acordado, nós ficamos 20 dias lá e todo mundo que estava de serviço e o que não
estava de serviço ficava no convés procurando os corpos. Foi uma experiência
marcante, bem marcante pelo fato do que a gente viu no local e a importância que era
para os familiares das vítimas que tinham esperança de encontrarmos algum
sobrevivente. A gente estava perdendo nosso conforto, não tinha hora de descanso, a
gente suportou a falta de comida, de água, mas as famílias estavam perdendo as
pessoas que eles mais amavam (Militar 4, Navio 1).
Dessa forma, os militares vivenciam esses preceitos quando demonstram orgulho de
sua profissão e a percebem como uma atividade importante, útil, necessária e gratificante,
sendo fonte fértil de significado. Contudo, só o reconhecimento individual não é suficiente: o
olhar do outro é fundamental nesse processo de transformação. Com relação ao
reconhecimento dos demais, Dejours (2009) acredita que essa dinâmica se desenvolva por
meio de dois tipos principais de julgamento: o da utilidade e o da qualidade. Isto é, sentir-se
útil e ser reconhecido como bom na execução de suas tarefas são questões substanciais para a
obtenção de satisfação e prazer no trabalho, além de viabilizarem a transformação do
sofrimento patológico em criativo.
O meio militar naval, entretanto, revela algumas características antagônicas quanto ao
terceiro vértice da dinâmica do reconhecimento. Isso porque no interior da instituição, todos
tendem a reconhecer a si mesmos e aos outros, mas, em um cenário externo, a realidade nem
sempre é a mesma. Conforme exposto por Ramos (2015), a sociedade brasileira se mostra
muito questionadora, por exemplo, em relação ao orçamento destinado à Defesa Nacional.
Poucos conhecem as ramificações da missão das Forças e, por isso, muitas vezes os militares
brasileiros não tem sua importância reconhecida socialmente.
Essa ausência de reconhecimento reside na chamada “invisibilidade do trabalhar”.
Para Dejours (2019), quase como uma espécie de maldição, os bastidores do que se passa em
meio à realidade das tarefas do trabalho, assim como as emoções experimentadas pelos
trabalhadores, não são aspectos explícitos, públicos ou objetivos. A dúvida, a hesitação, o
fracasso, a abnegação, o esforço, a superação. Na maioria das vezes, para aqueles que não
estejam imersos no meio militar-naval, a singularidade do processo de ressignificação do
sofrimento vivenciado por esses marinheiros tende a ser invisível aos olhos.

5 CONCLUSÃO
18

Com base nos conhecimentos básicos expostos sobre as inconstantes formas de


organização do trabalho e suas transformações ao longo da história do homem, é possível
compreender a consolidação da preocupação com os impactos das atividades laborais na
saúde mental dos indivíduos e a necessidade emergente de discussão sobre o tema. A
exploração desse campo de estudo avançou e evoluiu para uma medicina voltada para área do
trabalho, propulsionada por Christophe Dejours, pai da Psicodinâmica do Trabalho e principal
responsável pela fundamentação e o desenvolvimento dos conceitos centrais que motivaram e
permitiram a elaboração desse estudo, o qual se dedicou a conectar essas teorias às
peculariedades do universo militar-naval.
No decorrer dessa monografia, foram analisados trabalhos acadêmicos que ilustraram
aspectos importantes a respeito do meio militar-naval: a missão da Marinha do Brasil e os
princípios da Doutrina Militar-Naval; as principais fontes de sofrimento vivenciadas pelos
marinheiros, assim como de que forma podem ser devidamente indicadas e percebidas;
programas, projetos e características organizacionais que compactuam com os conceitos da
teoria da psicodinâmica, funcionando como estratégias de defesa e mecanismos de promoção
e manutenção da saúde mental e; por fim, um aprofundamento da perspectiva da dinâmica do
reconhecimento e como esta pode ser desenvolvida dentro da estrutura da MB.
Portanto, em consonância com o propósito inicial deste ensaio, verificou-se a validade
da hipótese de que os conceitos da Psicodinâmica do Trabalho são aplicáveis no meio militar-
naval, onde o sofrimento se revela fonte de crescimento e alavanca para evolução e
aprimoramento.
Essa validade dependeu diretamente de uma minuciosa e imparcial análise das
condições de trabalho às quais corriqueiramente estão sujeitos os marinheiros, assim como um
correto mapeamento das recorrentes disfunções na instituição. Foi imprescindível, também,
identificar quais as características estruturais e quais os esforços da instituição que vão de
encontro com as ideias de Christophe Dejours, pai das teorias que nortearam essa pesquisa e
quais seriam, ainda, as possibilidades de aprimoramento organizacional no campo da
manutenção da saúde mental.
O objetivo final deste estudo não reside no esgotamento da discussão sobre o tema,
mas sim, em conformidade com o atual panorama mundial de discussões no campo de saúde
mental, em incentivar pesquisas, reflexões e debates, oferecendo subsídios que possam
contribuir de forma significativa em tornar a Marinha do Brasil uma instituição igualmente
mais saudável e eficiente.
19

AGRADECIMENTOS

Primeiramente, gostaria de agradecer à Professora Drª Michelle Thieme, minha


orientadora, que me acompanhou não somente durante toda a elaboração dessa monografia,
mas ao longo da maior parte da minha formação nessa casa. Agradeço pelo apoio que por
infinitas vezes transcendeu as salas de aula da Escola Naval e pelos importantes
conhecimentos transmitidos, os quais muito contribuíram para o meu crescimento profissional
e pessoal. Assim, dedico esse trabalho com profunda admiração, eterna gratidão e sincero
respeito.
Em um segundo momento, agradeço à minha mãe, minha primeira grande escola de
formação e porto seguro da minha vida. Afirmo com total certeza que todas as conquistas até
o presente momento somente foram possíveis graças ao seu amor e apoio incondicionais.
Agradeço, também, aos Oficiais Naraiane Machado Feitosa, Leonardo Rosa Habib e
Pedro Henrique Silva Martins de Oliveira por terem acreditado no meu potencial mesmo nos
momentos mais difíceis e desafiadores, ensinando-me muito sobre força de vontade,
superação e resiliência.
E, por fim, aqueles que me permitiram multiplicar as alegrias e dividir as tristezas ao
longo desses cinco anos de formação em Villegagnon: meus companheiros e companheiras da
Turma Capitão-Mor Jerônimo de Albuquerque. Em especial agradeço aos Aspirantes Ianka
Patricio de Andrade, Eni Hacore Ribeiro da Fonseca e Jose Elias Rodas Espinoza por terem
percorrido cada centímetro dessa trajetória ao meu lado. Sem vocês nada disso teria sido
possível.
20

REFERÊNCIAS

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Rio de Janeiro, RJ, 2009.
BRASIL. Marinha do Brasil, Diretoria de Saúde da Marinha. Manual para Aplicação dos
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21

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