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Doze
Treze
Catorze
Quinze
Dezesseis
Dezessete
Dezoito
Dezenove
Vinte
Vinte e um
Vinte e dois
Vinte e três
Vinte e quatro
Vinte e cinco
Vinte e seis
Vinte e sete
Vinte e oito
Vinte e nove
Trinta
Trinta e um
Trinta e dois
Trinta e três
Trinta e quatro
Trinta e cinco
Trinta e seis
Trinta e sete
Trinta e oito
Trinta e nove
Quarenta
Quarenta e um
Quarenta e dois
Quarenta e três
Quarenta e quatro
Quarenta e cinco
Quarenta e seis
Quarenta e sete
Quarenta e oito
Quarenta e nove
A morte rouba tudo menos as nossas histórias.
— Jim Harrison
UM
Trupe do Molho..
Todo grupo de amigos precisa de um nome. Nós éramos a Trupe do
Molho.
Segundo ano. Tão perto do fim do ano letivo que estamos num perpétuo
estado de besteira. É sexta à noite e acabamos de assistir à produção da escola
do musical Rent. Foi ótimo. Mas, como era uma noite de sexta de primavera
— cada um de nós cercado pelos três melhores amigos —, poderia ter sido o
pior naufrágio de cocô fumegante (saca só essa metáfora complexa)
imaginável que mesmo assim estaríamos eufóricos.
Por isso, estamos enchendo o bucho no McDonald’s.
— Certo — Mars diz do nada, com a boca cheia de hambúrguer. — E se
vocês tivessem que classificar todos os animais como cachorro ou gato?
Refrigerante saiu pelo nariz de Eli. Já estávamos dando risada da pergunta,
e agora estávamos rindo de Eli secando a camiseta da Wolves in the Throne
Room que ele usava como se estivesse implantada em seu peito.
Blake está sem ar.
— Do que você está falando?
Mars estende o braço para mergulhar uma batata frita no meu ketchup.
— Não, não, tudo bem. Saca só. Guaxinins são cachorros. Gambás são
gatos. Esquilos são…
— Calma, calma — Eli diz.
— Mars, cara — Blake diz —, é óbvio que guaxinins são gatos. Gambás
são cachorros.
— Não, calma — Eli diz. — Qualquer animal que você não consiga treinar
é um gato. Não tem como treinar um guaxinim. Gato. Não tem como treinar
um gambá. Gato.
— Espera aí, como você sabe que não dá pra treinar um gambá? — Mars
pergunta.
— Dá para treinar gatos — comento. — Já vi uns vídeos no YouTube de
gatos usando a privada.
Agora todos os três estão morrendo de rir, com dificuldade para respirar.
Blake está se contorcendo de tanto dar risada.
— Por favor, me diz que quando você desmarca com a gente para escrever,
fica sentado em casa assistindo gatos mijando e cagando em privadas de
humanos e comemorando: “Isso aí! Gatos usando privada de humanos!”.
— Não, mas já vi alguns desses vídeos. Ao longo da vida.
Lágrimas escorrem pelo rosto de Mars.
— “Ao longo da vida.” O Blade falou “ao longo da vida”. Ai, meu Deus.
Ai, meu Deus.
Sacou? Carver significa entalhador; Blade significa faca. Blake tinha
inventado esse apelido. É engraçado porque me visto como um cara que quer
ser escritor e cuja irmã mais velha trabalha com antropologia e o ajuda a se
vestir. Garotos que se encaixam nessa descrição normalmente não atendem
por “Blade”.
— Certo, pessoal. Furões. Furões são gatos compridos — Eli diz.
— Já vi um furão treinado, então com certeza dá pra treinar um furão —
Blake diz.
— Para usar uma privada de humanos? — Mars pergunta.
— Não sei se existe privada de furão — Blake responde.
— Se dá pra treinar um furão, então retiro o que eu disse, porque furões
com certeza são gatos — Eli diz.
— Certo, focas — digo.
— Hum… gato — Mars diz, observando o nada, pensativo.
Eli parece incrédulo.
— Espera, como assim?
— Certeza que dá pra treinar uma foca, cara — Blake diz.
— Não, espera — Eli interrompe. — Acho que o Mars está querendo dizer
que ele acha focas parecidas com gatos.
Mars bate na mesa, chacoalhando nossas bandejas.
— Elas parecem. Têm cara de gato. E também adoram peixe. Gatos
adoram peixe. Focas são gatos aquáticos.
As outras mesas estão olhando feio para nós. Não estamos nem aí.
Lembra? Jovens. Vivos. Noite de sexta de primavera. Um banquete de fast-
food diante de nós. Melhores amigos. Nos sentimos como lordes. Parece não
haver limites.
Blake se levanta e termina a bebida com um gole barulhento no canudinho.
— Cavalheiros, preciso — ele faz aspas no ar — urinar, por assim dizer.
Se me dão licença. Quando eu retornar, espero ter uma resposta sobre a
questão do gato-foca.
Mars me dá um tapa nas costas.
— É melhor você ir com ele pra poder filmar.
— Você não entende, cara — eu digo. — Só curto gatos mesmo. —
Gargalhadas de Mars e Eli.
Estamos nos aprofundando no debate sobre se gafanhotos, águas-vivas e
cobras são cachorros ou gatos quando nos damos conta de que faz um tempo
que não vemos Blake.
— Ei, pessoal, dá uma olhada. — Mars aponta para o playground infantil
ao lado do McDonald’s. Blake está balançando para a frente e para trás num
daqueles cavalos de plástico presos por uma mola grossa. Ele está acenando
entusiasmado para nós, como uma criança pequena, e gritando.
— Olha só aquele imbecil — Eli murmura.
— Ele vergonha — Mark diz.
— Espera, quê? — pergunto. — Ele vergonha? Ninguém fala isso. Estão
faltando umas três palavras nessa frase, incluindo um verbo de ligação.
— Estou inventando. Alguém faz uma coisa idiota? A pessoa vergonha.
Você faz uma coisa idiota? Você vergonha.
Balanço a cabeça.
— Isso nunca vai pegar.
Eli junta sachês de molho do nuggets do Blake ainda fechados e dá alguns
para Mars.
— Vem, a gente precisa tacar isso nele.
Corro para acompanhar enquanto eles saem em disparada.
— Blade, você filma — Eli diz. Sou um ótimo escritor quando arremesso
coisas.
Blake balança, gritando, rindo loucamente, girando no ar um chapéu de
caubói imaginário e gesticulando para nós.
Sorrimos e acenamos — Eli e Mars dão tchau com uma mão, enquanto a
outra, cheia de sachês, fica escondida atrás das costas —, observando por um
momento ao mesmo tempo que filmo com o celular.
— Certo — Mars sussurra, ainda sorrindo e acenando bem empolgado. —
No três. Um. Dois. Três.
Juntos, ele e Eli param de dar tchau e avançam, atirando os pacotes de
molho. Mars tem um bom braço. Ele era obrigado pelo pai a praticar todo
tipo de esporte. Eli é alto e atlético. Teria sido um bom jogador de basquete
se conseguisse largar o violão de vez em quando e se não fosse tão avesso a
impedir que seu cabelo preto comprido e encaracolado caísse na cara. Um
teriyaki e um barbecue caem bem na cabeça do cavalo, abrindo e espirrando
em Blake. Seus gritos de alegria se transformam em berros de indignação.
— Aaah, o que é isso, seus filhos da puta?! Que nojo!
Mars e Eli comemoram com um toca aqui, e eu faço o mesmo, meio sem
jeito. Sou péssimo em toques. Eles caem no chão de tanto rir, rolando de um
lado para o outro.
Blake se aproxima com os braços estendidos, pingando molho. Mars e Eli
saem correndo. Blake começa a persegui-los, tentando secar o molho neles.
Ele é lento demais, mesmo contra os dois esbaforidos de tanto gargalhar.
Finalmente, ele desiste e vai ao banheiro. Volta esfregando papel-toalha na
camisa.
— Muito engraçadinhos, vocês. A maldita Trupe do Molho.
— A gente deveria se chamar assim: Trupe do Molho — Eli diz.
— Trupe do Molho — digo, sério, estendendo a mão, com a palma para
baixo.
— Trupe do Molho — Mars diz com seu péssimo sotaque inglês, e coloca
a mão em cima da minha.
— Truuuuupe do Molhooooo — Eli diz, imitando um narrador esportivo, e
coloca a mão em cima da de Mars.
— Trupe… — Blake começa a colocar a mão em cima da de Eli, mas
então dá um tapa de brincadeira no rosto dele e no de Mars. Os dois riem
baixo e tentam desviar sem separar as mãos. — Trupe do Molho — Blake
diz, e coloca a mão em cima da de Eli.
— Truuuuupe do Molho! — gritamos em uníssono.
— Algum dos burros idiotas aí filmou pelo menos? Quero postar no meu
canal do YouTube — Blake diz.
É fim de tarde quando Jesmyn estaciona perto do meu carro e o sol atravessa
as folhas, fazendo-as brilhar em tons de verde. Minha cabeça está latejando.
Percebo que não é só por causa da tensão, mas porque mal comi o dia todo.
Permanecemos sentados por um momento, o calor pesa sobre nós como
uma prensa. Depois de um dia de cerimônia, parece que ainda não consigo
sair da picape sem essa pressão.
Apoio o braço no parapeito da janela.
— Obrigado. Por sentar comigo durante o velório e me levar pro cemitério.
E ficar comigo no cemitério. E depois me trazer pra cá. — Paro. — Desculpa
se esqueci alguma coisa.
— Sem problemas. — Jesmyn parece exausta.
Levo a mão à maçaneta mas paraliso.
— Nem perguntei como você está.
Ela suspira e descansa a cabeça sobre as mãos, apoiadas no volante.
— Um lixo. Igual a você.
— Sei.
Ela seca as lágrimas. Alguns segundos fungando. O arrepio lento da culpa
retorna, assumindo o lugar depois da tristeza e da exaustão. Parece aquele
momento em que você está fazendo uma trilha e acaba pisando num córrego
gelado. Leva alguns segundos para a água fria ser absorvida e encharcar sua
meia. Talvez você até tenha conseguido tirar o pé da água. Mas aí começa
aquele calafrio úmido que se espalha pelo seu pé e você sabe que vai sofrer
com isso pelo resto do dia.
Por causa da gentileza dela, me permiti partir do princípio que ela não me
culpa. Mas e se toda essa gentileza não tiver nada a ver com isso e sim com
tentar se persuadir a não me odiar? Consigo entender a ideia de se convencer
a não odiar alguém sendo gentil com essa pessoa.
Estou exausto demais. Não tenho energia para a verdade; nenhum lugar
onde acomodá-la.
— Enfim, obrigado de novo. — Abro a porta.
Jesmyn tira o celular do bolso.
— Ei. Não tenho seu número. As aulas vão começar daqui a algumas
semanas e preciso de todos os amigos que conseguir. — Essa frase parece
uma epifania que surge a ela ao falar.
— Ah. Sim. Acho que não sou mais superpróximo de ninguém por lá.
Trocamos números. Talvez fosse essa a cerimônia de que eu precisava. Um
minúsculo raio de esperança.
Estou me dando conta de como este ano na escola vai ser solitário. A
Trupe do Molho era muito unida. Tínhamos nosso próprio universo
particular. Nenhuma pessoa viva tem o hábito de pensar em me ligar num
sábado à noite. Mas meu maior problema é Adair. Ela sempre exerceu uma
grande influência na escola — muito mais do que Eli. Muito, muito mais do
que eu. Se ela nunca parar de me odiar, várias pessoas vão seguir o exemplo
dela só para cair em suas graças.
— Bom — Jesmyn diz. — Pelo menos os velórios acabaram.
— Acho que já é alguma coisa.
— Vejo você depois?
— Sim. Até mais.
Agora vem a parte difícil. Quando não podemos mergulhar em programas
regrados para o nosso luto. Quando ficamos sozinhos com nós mesmos.
Mas o dia ainda não acabou para mim. A vovó Betsy me convidou para
passar na casa dela, onde a família está fazendo um jantarzinho em que cada
um levaria um prato para mandar embora de barriga cheia os parentes do
leste do Tennessee.
Semicerro os olhos contra a luz ofuscante enquanto procuro minhas chaves
e penso em como a luz está despreocupadamente brilhante naquele dia.
O mundo que dá voltas e o sol que queima não estão nem aí se ficamos ou
se vamos embora. Não é nada pessoal.
— Oi, Lisa — digo para uma das garotas do coral que atravessa o
estacionamento a caminho do carro dela.
— Ah. Oi. — Ela de repente fica hipnotizada pelo celular. Ela era uma das
pessoas com quem Adair estava conversando antes de o velório começar. E,
até onde sei, nunca desejou nenhum mal para mim até hoje. Pois é. Este ano
na escola vai ser incrível.
Estou prestes a entrar no meu carro quando vejo um homem jovem de
barba, calça cáqui, camisa social com as mangas arregaçadas até os cotovelos
e uma gravata fina afrouxada se aproximando.
— Com licença. Desculpa, com licença — ele chama, acenando. — Você é
Carver Briggs?
Pelo menos alguém quer conversar comigo.
— Sou.
Ele está carregando um bloco de notas e uma caneta. Tem algo que parece
um gravador digital no bolso da camisa.
Ele estende a mão.
— Darren Coughlin, do Tennessean. Estou cobrindo o acidente desde o
começo.
Aperto sua mão, relutante.
— Ah. — Então você é o responsável pela reportagem que saiu alguns
dias atrás, falando para todo mundo que a culpa do acidente era de uma
mensagem de celular e fazendo todos apontarem o dedo para mim.
— Ei, sinto muito pelas circunstâncias. Estou trabalhando numa matéria
sobre o acidente e o juiz Edwards me encaminhou para você. Ele disse que
você pode ter algumas informações sobre o que aconteceu. Eram seus
amigos?
Esfrego a testa. Essa é definitivamente uma das últimas coisas na Terra que
eu queria fazer agora.
— A gente pode fazer isso numa outra hora? Não estou muito a fim de
conversar.
— Entendo e não quero ser insensível, mas o jornalismo não pode parar
por causa da tristeza, sabe? Queria ouvir a sua versão da história antes de
publicarmos.
Minha versão. Inspiro fundo.
— Hum, sim. Melhores amigos.
Ele balança a cabeça.
— Sinto muito, cara. Você sabe alguma coisa sobre o que pode ter causado
o acidente?
— Pensei que você já tivesse uma ideia.
— Bom, parece que ele estava mandando uma mensagem de texto, mas
você sabe com quem Thurgood…
— Mars.
— Desculpa, não entendi.
— O apelido dele era Mars.
— Certo, você sabe com quem Mars estava trocando mensagens?
Meu estômago se revira com as farpas da pergunta. Meu suor fica gelado.
Sim, para falar a verdade, sei sim.
— Eu… não sei direito. Pode ter sido eu.
Darren assente e faz algumas anotações.
— Você estava trocando mensagens com ele perto da hora do acidente?
Ele pode estar tentando não passar uma imagem de ríspido e insensível,
mas está sendo, e isso me deixa nervoso.
— Eu… talvez? — Minha voz perde a força.
— Você sabe de alguma investigação criminal sobre o acidente?
Estremeço como se uma vespa zumbindo tivesse acabado de pousar no
meu pescoço.
— Não. Por quê?
Ele balança a cabeça com indiferença.
— Interessante.
— Você sabe de alguma coisa?
— Não, eu só ficaria surpreso se não existisse uma investigação. Três
adolescentes, mensagens no celular, sabe como é.
— Devo ficar preocupado?
Darren continua rabiscando anotações. Ele dá de ombros.
— Acho que não.
— Quero dizer, alguns policiais conversaram comigo logo depois do
acidente e eu contei para eles que eu e o Mars estávamos trocando mensagem
naquela tarde. Mas eles não me prenderam nem nada do tipo.
— É, não sei. — Darren aperta o botão da caneta.
— Você pode não escrever que talvez eu estivesse trocando mensagens
com o Mars? — Sou inteligente o bastante para saber como esse pedido é
inútil e como soa mal, mas às vezes faço coisas idiotas.
Ele me encara.
— Cara, não posso…
Mordo uma unha. Ele não chega a terminar a frase.
Darren volta a erguer o bloquinho.
— Então, a que horas você estava…
De repente percebo que não tenho muito a ganhar e como tenho muito a
perder se continuar essa conversa.
— Preciso ir. Preciso…
— Só mais algumas perguntas.
— Não, desculpa, tenho que ir pra casa do Blake. A avó dele queria que eu
fosse. — Entro no carro e fecho a porta. Preciso abrir a janela para respirar no
calor sufocante.
Darren apoia a mão sobre o parapeito da janela.
— Escuta, Carver, desculpa fazer isso agora. Desculpa mesmo. Mas isso é
jornalismo. E o jornalismo não espera pelo luto das pessoas. Então ou você
me conta o seu lado da história ou pode esperar para ler no jornal. Como
preferir.
— Não leio jornal. — Viro a chave na ignição.
Ele pega um cartão do bolso da camisa e me entrega pela janela.
— Enfim, cara, este é o meu cartão. Me escreve se lembrar de alguma
coisa ou se a polícia começar a fazer perguntas.
Jogo o cartão no banco de passageiro.
— Pode me passar seu número? — Darren pergunta.
— Estou atrasado. — Fecho a janela. Darren me lança um olhar de você-
está-cometendo-um-erro, como se eu já não soubesse disso.
O ácido do meu estômago sobe borbulhante e queima o fundo da minha
garganta enquanto dirijo até a casa do Blake.
Quando volto para casa, Jesmyn ainda não ligou nem mandou mensagem.
Mas Darren Coughlin deixou uma mensagem no meu celular pedindo para eu
comentar o que o juiz Edwards falou. Acho que ele deu um jeito de conseguir
meu número. Não conto para os meus pais nem retorno a ligação. O que eu
iria dizer? Tomara que eu não vá para a cadeia por mais que uma parte de
mim tenha certeza de que eu mereço. Sinto muito por ter matado meus
amigos. Sinto mesmo.
OITO
São onze e meia; estou quase dormindo quando meu celular vibra.
É a Jesmyn. Foi mal, acabei de receber sua mensagem. Ensaiando o dia todo. Ainda precisa
conversar?
Ligo pra ela tão rápido que derrubo o celular. Consigo pegar na hora em
que ela atende.
— Oi — digo baixo.
— Oi — ela responde. — Tudo bem?
Deitado na cama, cubro meu rosto com as mãos. Solto um grunhido-
suspiro.
— Arghhhh. Estou surtando agora.
— Por quê?
— Soube o que aconteceu?
— Não.
— Então, o pai do Mars é juiz.
— O cara superintenso?
— Esse mesmo. Hoje de manhã, minha mãe me chamou; eles estavam
assistindo ao jornal. E lá estava o pai do Mars na TV e ele disse que queria
que a promotoria investigasse o acidente talvez atrás de acusações criminais.
— Minha voz começa a tremer no final. Já chorei na frente de Jesmyn antes,
mas não preciso transformar isso em um hábito.
— Espera, como assim?! Acusações criminais? O que ele acha que você
fez? Você não atirou neles. Que doideira!
Mais uma pessoa que me considera inocente. E uma pessoa importante,
aliás — a única amiga que me resta no mundo. O ritmo do meu coração
acelerado diminui. O tremor deixa minhas mãos e minha voz.
— Não sei o que vai acontecer — digo. — Vamos falar com um advogado,
por via das dúvidas.
— Se precisar de alguma coisa, posso depor ou sei lá. Vou ficar tipo
“Protesto!”.
Rio baixo.
— Quase certeza de que só o advogado pode dizer isso.
— Ah, não! Quero protestar também.
— Enfim. Essa é a minha vida. O que você ensaiou hoje?
Ela suspira.
— Um noturno do Chopin que estou considerando para a audição da
Juilliard. Mas talvez não mais. Pode ser que eu troque por Debussy. Ou posso
tocar algo totalmente diferente.
— Mas, tipo, como você não vai tocar Debussy se pode tocar Debussy?
Poxa.
Ela ri baixo.
— Cala a boca.
— Qual é o seu compositor favorito?
— Ah, faça-me o favor. É o mesmo que perguntar qual é o meu dedo
favorito.
— Qual é o seu dedo favorito?
— Hummmm. O médio, na verdade. O médio da mão direita.
— Viu? Compositor favorito.
— Não. Foi uma analogia ruim. Qual é seu escritor favorito? Viu?
— Cormac McCarthy. Fácil.
— Crowmac McWhothy?
— Ah, qual é?
— Shermac McCathy?
— Cara. Para. — Não acredito que ela está tentando me animar depois do
dia que eu tive.
— “Cormac” é um nome alienígena.
Ela teria sido uma ótima integrante honorária da Trupe do Molho.
— “Jesmyn” é um nome alienígena.
— Não, sério. “Cormac” não parece um nome marciano?
— Tá, parece um pouco. O que funciona porque ele é do planeta Incrível.
Jura que nunca ouviu falar dele?
— Juro.
— Bom, vamos resolver isso. Qual é a sua opinião sobre canibalismo?
— Eu diria que sou… contra? Geralmente contra?
— E em relação a ler sobre canibalismo?
— Se for uma história boa. Se eu, tipo, me envolver com os personagens.
— Certo.
Algo se liberta no meu peito enquanto conversamos. Como se eu estivesse
deitado embaixo de uma pilha de pedras e alguém as tirasse uma a uma. Um
alívio surgindo muito devagarzinho.
Conversamos madrugada adentro. Preciso colocar o celular pra carregar.
Nós dois ficamos com tanto sono que, pouco antes de desligar, ficamos
dizendo o nome do outro de tempos em tempos para preencher o intervalo
entre os assuntos. Para nos certificar de que o outro ainda está lá.
NOVE
Meus pais estão sentados na cozinha tomando café da manhã quando entro
zonzo. Eles me encaram como se eu tivesse dito que tenho um amigo
invisível que me manda colecionar facas e guardar meu xixi em jarras.
— Oi, querido — minha mãe diz. — A gente ouviu você acordado no meio
da noite.
Esfrego o rosto.
— Pois é. Não conseguia dormir.
— É melhor descansar hoje — meu pai diz. — As aulas vão começar logo
e você não anda dormindo bem. E essa história do juiz Edwards não deve
estar ajudando.
— Não consigo dormir mais hoje. Além disso, vou ajudar a avó do Blake a
capinar o jardim ou coisa do tipo.
Minha mãe me passa uma tigela com cereal.
— Você ainda não conversou com a gente sobre tudo. O velório do Blake
foi há uma semana. Não é saudável ficar guardando as coisas. Se não falar
conosco, queremos que converse com alguém.
— Já falei com a Georgia sobre isso. Estou bem.
Meu pai tenta falar com uma voz gentil:
— Você não está bem. Pessoas que estão bem não vão ao pronto-socorro
com ataques de pânico. — Ele parece frustrado. Até consigo entender, mas
ele também me frustra às vezes, então nada mais justo.
— Foi uma vez só.
— Está trabalhando em alguma coisa nova? Algum conto ou poema novo?
— minha mãe pergunta. — Talvez ajude.
— Não. — Ouvir essa pergunta quando estou com bloqueio criativo
definitivamente não me faz me sentir melhor. Talvez minha musa estivesse
no carro junto com a Trupe do Molho.
Enquanto ficamos juntos, consigo notar o cérebro deles funcionando,
tentando aproveitar a oportunidade. Procurando as palavras certas. Sei como
é o ar perto de pessoas que estão tentando encontrar as palavras certas e não
acham nada. Por isso, como rápido e continuo em silêncio.
Quando vou escovar os dentes, meu pai diz:
— Nós te amamos, Carver. É difícil ver você sofrendo.
— Eu sei — digo. — Também amo vocês. — E, se é difícil me ver
sofrendo, imagina como é sofrer.
Mando uma mensagem para Jesmyn assim que chego em casa depois de
deixá-la na casa dela. Me diverti hoje. Eu deveria esperar. Não quero parecer
esquisito. Mas agora tenho total consciência de como é importante dizer às
pessoas o que queremos que elas saibam enquanto ainda há tempo.
Depois de alguns segundos: Eu também.
Vamos sair de novo qualquer dia, respondo. Foi bom conversar.
Claro, ela responde.
Um calor líquido rosa-dourado — qualquer que seja a cor contrária à da
solidão no espectro — me preenche por um breve momento.
Então me pergunto se Eli, onde quer que esteja, consegue me ver trocando
mensagens com a namorada dele, falando de como nos divertimos sem ele.
Tomara que não. Não quero que ele me entenda mal.
DOZE
Estou sentado em casa; é a manhã do dia que antecede a volta às aulas. Estou
me preparando psicologicamente para nossa reunião com o meu advogado
daqui a algumas horas e um estranho rompante de bravura me domina. Me
sinto preparado para dizer à vovó Betsy: “Sim, eu topo, vou fazer o dia de
despedida. Sou forte o bastante para aguentar”.
Dirijo até a casa dela, paro o carro, vou andando pela entrada e chego até a
porta. Então amarelo completamente. É como se a minha coragem estivesse
me zoando.
Considero bater na porta mesmo assim e ver se ela precisa de ajuda com
alguma coisa, sem comentar sobre o dia de despedida. Mas fico com medo
que ela volte a tocar no assunto. Ela vai ver a covardia na minha cara e sentir
o cheiro ruim da culpa em mim. Então saio discretamente, torcendo para que
ela talvez esqueça que fez essa sugestão.
TREZE
Viro na cama e mando uma mensagem para Jesmyn. Bom, foi um saco pior do que
o de um rinoceronte cinza fedido.
Depois de alguns minutos, ela me manda uma carinha chateada seguida
por Sinto muito. Quer conversar?
Basicamente, querem me acusar de homicídio negligente.
Sério????? Que merda.
Pois é. Ah, e isso vai custar um zilhão de dólares, então minha família vai acabar sem teto também.
Se eu tivesse aí, te daria um grande abraço.
Aceitaria esse abraço com prazer.
Amanhã de manhã. Quando for te buscar.
Fechado.
CATORZE
— Preciso correr pro trabalho. Já estou atrasada. Você tem a chave, né?
Faço que sim.
— Quando a mamãe e o papai chegarem do trabalho, você vai explicar
tudo isso pra eles. Sabe disso, né?
Faço que sim.
— Obrigado, Georgia.
— Vou levar você para a sua sessão. Quero dar oi pro dr. Mendez.
— Tá bom.
Ela vai embora e sigo penosamente o caminho para casa. Do lado de
dentro, parece uma tumba. Odeio esse silêncio de sozinho-em-casa-quando-
não-era-para-estar-lá. Tudo soa alto demais. Os estalos da geladeira. O tique-
taque do relógio. O tinido dos copos quando pego um do armário. Os
batimentos do meu coração. O correr do sangue nos ouvidos.
E isso é sob circunstâncias normais. Agora, os silêncios dão a sensação de
ausências. Ausências dão a sensação de perda. Perda dá a sensação de luto.
Luto dá a sensação de culpa. Culpa é uma angústia escarlate.
Sento no meu quarto, ouvindo os rangidos e estalos da casa, quando o
impulso descomunal de não ficar sozinho toma conta de mim.
Já estou na metade de uma mensagem para Jesmyn quando me lembro:
Você tem muito azar quando manda mensagem para as pessoas em ocasiões
inoportunas. Não traz boas consequências para as pessoas para quem você
escreve. E, então, em vez disso, fico deitado na cama com um saco de
ervilhas congeladas na testa e olho para o teto por um tempo. É muito menos
divertido do que se imagina.
Sento à escrivaninha e ligo o notebook. Talvez eu consiga ser produtivo no
meu texto de admissão para a faculdade, pelo menos. Talvez isso alivie
minha culpa de ficar em casa no primeiro dia de aula. Me inclino para a
frente na cadeira e começo a digitar.
Desde pequeno, eu queria ser escritor.
Talvez não seja a melhor ideia do mundo tentar escrever a redação que
deve promover você para uma faculdade quando está se sentindo pior do que
o cocô do cavalo do bandido.
Estou exausto, mas não quero descansar. Estou inquieto, mas estou
cansado demais para fazer qualquer coisa com isso. Quero abrir mão dessas
horas da minha vida e acabar com este dia logo.
Estou deitado na cama, lendo, quando meu celular vibra. É um
acontecimento muito mais raro do que costumava ser. Levanto com um salto,
fazendo pontos pretos surgirem no meu campo de visão, e pego o aparelho. É
a Jesmyn.
Como você está?
Superenvergonhado. Foi mal.
Não precisa pedir desculpa.
Olho para o relógio. Deve estar no fim do horário de almoço. Espero que não
tenha sentado sozinha no almoço.
Não, Alex Bishop me chamou pra sentar com ele e seus amigos.
Minhas tripas se apertam. Claro. Alex Bishop. Se você tivesse me
perguntado o pior cenário possível para o primeiro dia de aula, eu teria
respondido mais ou menos nesta ordem: 1) ter um ataque de pânico na frente
de todo mundo, incluindo Adair, e fazer papel de idiota; deixando que 2)
Alex Bishop tentasse conquistar Jesmyn no primeiro dia dela. Alex é um
bailarino que já rodou por um bom pedaço do corpo estudantil feminino na
Academia de Artes de Nashville, incluindo o corpo de Adair, por assim dizer.
Não sou fã do Alex. Eli o detestava. Ele teria detestado a ideia de Jesmyn
dividindo a mesa do refeitório com Alex. Detesto essa situação por ele.
Toma cuidado com o Alex.
Haha, ele parece legal.
“Parece” = palavra-chave.
Bom, você me deu bolo.
Não por escolha própria.
Eu sei. Tô zoando.
Aliás, deixei meu blazer no seu carro.
Sem problemas, posso passar na sua casa depois de ensaiar.
Quer sair um pouco depois?
Claro. A Trupe do Suor não fica pra trás.
Por um breve momento, essa conversa faz com que eu me sinta normal de
novo. Como se eu tivesse uma vida cheia de amigos e possibilidades. A
sensação se dissipa rápido e minha cabeça volta aos pensamentos sobre
prisão e o juiz Edwards, ataques de pânico e Adair.
Me pergunto se o centro de gravidade da minha vida algum dia ainda vai
voltar para um lugar onde os pequenos momentos de esquecimento não são
dádivas luxuosas.
Não sou louco pela ideia de contar aos meus pais, mas conto. Eles vão
descobrir em algum momento agora que médicos estão envolvidos. Eles
parecem aliviados por Georgia finalmente ter me convencido a procurar ajuda
profissional. Minha mãe nem fica brava por Georgia ter fingido ser ela para
marcar a sessão.
— O dr. Mendez foi maravilhoso para a Georgia — ela diz. Já terminei de
contar tudo para os meus pais quando a campainha enfim toca. Corro para
atender.
Jesmyn entreabre um sorriso ao me ver.
— Oi. — Então os olhos dela vão até o galo na minha cabeça e seu sorriso
se desfaz. — Ai, cara — ela murmura.
Levo os dedos a ele.
— O inchaço maior passou com gelo. Entra.
— Ah, seu blazer.
— Valeu.
Levo Jesmyn para os fundos e espio dentro da cozinha, onde meus pais
estão cozinhando o jantar e ouvindo rádio.
— Ei, mãe, pai, esta é a minha amiga Jesmyn. Ela acabou de se mudar para
Nashville e estudamos juntos. Nos conhecemos por causa do Eli. — É
estranho dizer essa última parte em voz alta. Ei, Jesmyn, este é o Carver.
Carver, Jesmyn. Certo, vou morrer daqui a pouco e deixar vocês virarem
amigos.
Minha mãe seca as mãos num pano de prato e aperta a mão de Jesmyn.
— Oi, Jesmyn. Bem-vinda a Nashville. Fica para o jantar?
— Ah, obrigada, mas meus pais estão me esperando.
— Tudo bem.
Picando cenouras, meu pai acena da bancada.
— Oi, Jesmyn.
Ela acena.
— Oi. É um prazer conhecer vocês.
Queria que Georgia estivesse aqui para conhecer Jesmyn. Depois do dia de
hoje, seria bom ter uma credencial de irmã mais velha legal.
Voltamos para a sala.
— Quer dar uma volta? Estou a fim de andar e conversar — digo.
— Claro. Mas preciso voltar logo pra casa.
— Não se importa de ficar toda suada?
— Não somos a Trupe do Suor à toa.
Começamos a suar assim que saímos para o calor abafado do fim de tarde.
No meio do quarteirão, minha camisa está colada às costas. O ar enevoado
tem cheiro de hambúrguer na grelha e grama aparada.
— Seu pai tem um sotaque legal — Jesmyn diz.
— Parece que era bem mais forte quando ele conheceu minha mãe. Foi
diminuindo com o tempo.
— Que pena.
— Pois é. Eu tinha vergonha quando era pequeno.
Jesmyn fica horrorizada.
— Como assim? É o sotaque mais sexy que existe.
— Aaargh! Toda menina fala isso!
— Só estou sendo sincera.
— Que nojo. — Seco uma gota de suor antes que caia no meu olho.
— Você queria ser tão legal quanto seu pai.
— Eu queria ter o sotaque dele, claro. Eu adoraria conversar o dia todo
sobre como o sotaque do meu pai é sexy, mas como foi a aula de piano?
Os olhos dela brilham.
— Incrível. A escola tem um piano de cauda Steinway. Parecia surreal. A
ação naquele piano era, tipo, orgásmica. Como vou me conformar com meu
piano de casa agora?
Ei, sei como é… sair de uma situação incrível para uma bem menos
incrível.
— Ah, sim — digo. — A ação no piano é a melhor. Dizem que tocar nele é
como mergulhar os dedos em manteiga quente.
— Espertinho. É assim mesmo. Por falar em tocar, como foi tocar o foda-
se e matar aula?
— Um saco. Georgia ficou falando “eu avisei” e tentei trabalhar no meu
texto de admissão para a faculdade em vez de não fazer nada, mas travei. O
que achou da AAN?
— Foi legal mas assustador. Na minha antiga escola, eu era
definitivamente a melhor musicista. Aqui, estou mais pra mediana. Fiquei
ouvindo algumas pessoas tocando e elas são incríveis. Mas acho que é um
bom treino pra eu entrar na Juilliard. Todo mundo foi supersimpático, pelo
menos.
— É, como foi almoçar com o Alex Bishop? Ele compartilhou um pouco
do suco de sêmen de lobo ou seja lá o que ele toma no almoço? — Tento soar
descontraído e não irritado.
Jesmyn solta um gritinho de repugnância, ri baixo e cobre a boca.
— Que maldoso.
Aproveito a deixa, imitando a voz de locutor de comercial.
— Esperma de lobo. O único suco energético que contém cem por cento de
esperma de lobo tirado de lobos orgânicos criados em liberdade. Garantimos
que vai dotar você da força e do vigor para dançar o dia todo e a noite toda.
Peça agora e receba um pote do nosso pó de proteína de pênis de tubarão…
totalmente grátis.
Ela ri mais alto e tenta cobrir a boca com as mãos.
— Para. Você vai me fazer vomitar.
Noto como os dedos dela são tortos; como pareceriam perfeitos curvados
sobre teclas de piano. São bonitos.
— Falando sério agora — digo.
— O Alex foi simpático, mas tinha uma foto dele sem camisa na tela
inicial do celular. Quem faz esse tipo de coisa?
— Eli odiava o Alex.
O sorriso de Jesmyn se desfaz.
— Por quê?
— Porque a Adair namorou com ele e ele deu um fora nela mais ou menos
uma semana depois que ela perdeu a virgindade com ele.
— Ai.
— Todo mundo chamava os dois de “ABs”. Alex Bishop; Adair Bauer. E
também porque os dois têm aqueles abdômens surreais de dançarinos.
Formaram um casal de celebridades da AAN por um tempo.
— Isso explica por que a Adair ficava me observando como se quisesse
cortar minha jugular com uma tesourinha de unha. Pensei que fosse porque
nós dois estamos andando juntos.
— Aposto que isso tem a ver também. Você não ganhou muitos pontos
com a Adair hoje.
— Não que eu tivesse muitos antes. Ela sempre foi estranha comigo. Como
se eu estivesse sugando demais da vida do Eli ou algo do tipo.
— Eu e ela nunca fomos melhores amigos nem nada, mas a gente se dava
bem.
Nossa conversa morre enquanto andamos os últimos metros até os portões
do parque Percy Warner. Então caminhamos em silêncio sob a cobertura da
floresta cada vez mais densa que cobre a estrada; as folhas filtram a luz do sol
num tom esmeralda claro.
Jesmyn parece prestes a dizer algo, mas se detém. Viro para ela. Ela está
com o olhar fixo à frente. Finalmente, diz:
— Hoje, quando eu estava ensaiando, comecei a chorar. Sem motivo. Não
estava lembrando do Eli na hora nem nada. É só que… Foi como se o que eu
estava tocando tivesse aberto outra porta dentro de mim e as coisas saíssem
de repente. Tristeza é um negócio esquisito. Parece que vem em ondas, do
nada. Num minuto estou tranquila no mar. No outro, estou me afogando.
— Soa familiar.
— Notei.
Fico vermelho.
— Valeu pela lembrança.
— Que tipo de pessoa você seria se não sentisse a perda deles?
— O tipo que tem uma foto sem camisa na tela inicial do celular e bebe
sêmen de lobo?
— Exato. — E então, mais baixo: — Você está determinado a me fazer
gargalhar.
Estou determinado a continuar a fazer Jesmyn rir porque o riso dela me faz
esquecer pelo menos por um momento.
Paro e viro para ela.
— Eu gosto de conversar com você.
— Eu também — ela diz, virando para me encarar.
— Vou perder algumas aulas amanhã também porque vou ao terapeuta que
minha irmã ia. Parece que ele é bom.
— Boa ideia — ela diz.
— Eu pareço tão maluco assim?
— Não mais do que eu pareço por chorar do nada durante a aula. Mas você
parece estar sofrendo.
— Estou.
— Nós dois estamos.
Caminhamos até um tronco caído ali perto e sentamos.
— Quero ouvir você tocar piano — digo.
— Tá bom. Desde que você me deixe ler alguma coisa sua.
— Se um dia eu conseguir escrever de novo.
— Você vai conseguir. Mas aceito coisa antiga até lá.
— Tá. Quando a gente voltar, te dou alguma coisa.
Vemos um cervo sair do meio das árvores e começar a rodear as margens
do prado, aproximando-se do meio com cuidado para comer, cheirando o ar.
— Você é a melhor coisa da minha vida agora — digo baixo, para não
assustar o cervo. — Fico feliz de sermos amigos.
Jesmyn se ajeita no tronco, procurando uma posição confortável e —
talvez seja a minha imaginação — sentando mais perto de mim.
— Eu também.
DEZESSEIS
Eu, Blake, Mars e Eli sentávamos nas últimas fileiras na aula de história da
civilização ocidental do sr. McCullough. Foi a única matéria que nós quatro
fizemos juntos. E quem nos deixou ficar juntos na mesma sala deveria ter
sido demitido. O sr. McCullough, bendito seja, era extremamente bem-
intencionado, sincero e sem qualquer senso de humor. Se esforçava para
responder de forma honesta qualquer pergunta, por mais obviamente inútil
que fosse. Por isso, cada hora um de nós fazia uma pergunta absurda e
espertinha, tentando interrompê-lo, gastar o tempo de aula e permanecer
acordado.
“Os mesopotâmicos faziam lutas de cócegas?”
“O Alexandre, o Grande, era chamado de Alexandre, o Meia Boca, e
Alexandre, o Legalzinho, até ter algumas vitórias nas costas? (E como eram
as costas dele?)”
“Os mongóis faziam cuecão nos povos que conquistavam?”
“Napoleão curtia motocicletas?”
Etc. etc.
Então, eu e o Mars sentamos um ao lado do outro, e Blake e Eli estão nos
lugares bem à nossa frente. Eles estão virados para trás, sussurrando enquanto
o sr. McCullough fala sobre os vikings em tom monótono.
— É a sua vez, Blade — Eli diz.
— Tem certeza? Achei que era a do Mars.
— Não, lembra? Perguntei se as pirâmides tinham banheiros.
— É, ele está certo — Blake diz. — Sua vez, Blade.
— Certo, espera. Só um segundinho.
— O segredo é não pensar demais — Blake diz.
Um momento se passa.
— Certo, já sei — sussurro.
Ergo a mão.
O sr. McCullough espia por sobre os óculos.
— Carver?
— Os vikings teriam curtido shorts jeans?
Blake, Mars e Eli gargalham em silêncio. Estão com a cabeça abaixada, os
ombros tremendo e as costelas pulando.
O sr. McCullough limpa a garganta.
— Bom, hum, essa é uma pergunta interessante. É, hum, sempre intrigante
especular sobre como os povos antigos teriam adotado tecnologias modernas.
Os, hum, vikings produziam roupas à base de linho e, por causa da escassez
de recursos e da dificuldade na produção de roupas… — E por aí vai. A
conclusão é que, sim, os vikings provavelmente teriam curtido shorts jeans,
pelo menos no verão, uma vez que são peças de roupa funcionais e duráveis
que lhes permitiriam liberdade de movimento para cultivar, navegar e lutar.
Mas não estou prestando atenção. Estou me divertindo vendo os meus
amigos rirem. Não parece haver consequência nenhuma a qualquer coisa que
façamos.
Sonho com eles de novo. No meu sonho, estamos juntos, fazendo alguma
coisa feliz — não sei exatamente o quê; meus sonhos nem sempre são muito
específicos —, e fico aliviado por eles não terem partido. Quando acordo,
imploro para ficarem mais um pouquinho, mas eles não ficam.
Como fizeram tantas vezes, eles evaporam na escuridão da madrugada, me
deixando sozinho com meu luto turbulento. Com minha culpa abrasadora.
VINTE E UM
Várias vezes na vida enfrentamos um desafio que parece mais do que somos capazes de
suportar. Tive um desses pouco antes de começar meu último ano do ensino médio. Precisei
aprender…
Precisei superar…
Isso me ensinou…
Não. Não dá. Desculpa, pessoal da admissão da faculdade, mas tenho que parar de mentir, de
falar da boca pra fora nesta redação idiota, porque não aprendi. Não superei. Tenho ataques de
pânico e não consigo dormir à noite. Perder meus três melhores amigos não me ensinou bosta
nenhuma além da minha capacidade de sofrer e de sentir ódio de mim mesmo.
Tgjjgdssvhjinngdsbnkjmvcdfbnnnbcsdfdkfsfd’apsdofias’dpfosakdf’sapdfjo
Vou deletar este lixo de merda e vou para a Faculdade Comunitáriado Estado de Nashville,
onde vou estudar ciências da zeladoria. Isso se eu não estiver na penitenciária.
Me recosto na cadeira e resmungo para o teto. Hoje não estava sendo tão
péssimo até agora. Faz uma hora que cheguei em casa depois de assistir
Jesmyn tocar de novo. Agora sinto dores de fome nos dias em que não a vejo
tocar. E a música parece abrir alguma porta enferrujada dentro de mim. As
palavras estão começando a fluir de novo. Quero dizer, gotejar. Consegui
escrever as duas primeiras páginas de um conto novo. Já é alguma coisa,
acho.
Uma batida na porta.
— Pode entrar — grito.
Minha mãe entra, seguida do meu pai. Eles estão com uma expressão
grave. Meu pai está segurando um jornal. Meu coração começa a acelerar.
— Oi, querido — minha mãe começa. — A gente pode conversar um
segundo? — A voz dela tem um leve tremor. Mas, se não fosse o contexto da
nossa interação, eu não teria notado.
— Hum, claro.
Meu pai senta na minha cama e minha mãe senta ao lado dele. Minha mãe
vira para o meu pai.
— Callum, você pode? Eu não…
Meu pai pigarreia. Ele me encara por um momento e olha para o jornal. A
voz dele é baixa. Com o mesmo tremor da minha mãe.
— Carver, o sr. Krantz ligou e nos contou sobre esse artigo no Tennessean.
A procuradoria do distrito decidiu abrir uma investigação sobre o acidente.
As batidas do meu coração se tornam um rufar de tambores.
— Ele disse mais alguma coisa?
— Disse que provavelmente vão querer conversar com você agora. Então
não é para falar com a polícia a menos que ele esteja presente — minha mãe
diz.
Minha boca está seca. Minhas mãos estão suadas. Não consigo respirar.
Uma sensação terrivelmente familiar.
— Posso ficar sozinho um pouco? Só… preciso ficar sozinho. — Tento
não parecer frenético, por mais que meus pulmões estejam murchando.
Eles me abraçam e saem, fechando a porta com cuidado.
Caio na cama, a cabeça girando. Pontos pretos se formam no meu campo
de visão. Tenho um leve momento de premonição de estar deitado numa
cama estreita de prisão, sofrendo um ataque de pânico.
Acho que essas mortes em miniatura são apenas parte da minha nova
paisagem. Pelo menos, vou ter muito o que conversar com o dr. Mendez na
nossa próxima sessão.
Quando o pior passou, mando uma mensagem para Jesmyn e pergunto se
ela pode colocar o celular perto do piano e tocar para mim. Não explico o
porquê e ela não pergunta.
Ajuda um pouco.
Quando ela termina, conto que talvez eu vá para a prisão.
VINTE E DOIS
Enquanto ela toca, fico deitado embaixo do piano, com as mãos atrás da
cabeça. Da minha posição estratégica, pareço completamente imerso em um
oceano iluminado por estrelas. Acalma a minha mente.
Ela para de tocar. Continuo deitado ali. Começo a levantar, mas ela se
ajoelha e olha embaixo do piano. Deita ao meu lado, olhando para cima.
— E aí? — ela diz.
— Você estava fenomenal.
— Você não pode dizer que não me ouviu cagando tudo na última parte.
— Posso e digo. Como chama essa música? É linda.
— “Jeux d’eau”, do Ravel. É basicamente impossível, mas vou me ferrar
se tocar alguma coisa fácil, mesmo se tocar com perfeição. — Ela cruza os
braços e alisa o vestido leve sobre as coxas. — Então aqui embaixo é assim.
— Não estou aqui pela vista; estou pelo som. Você vai se sujar toda.
Ela bufa.
— E daí? Eu caçava sapos com meus irmãos. Ficava cheia de lama entre os
dedos do pé.
— Você caçava sapos?
Ela suspira e revira os olhos.
— Lá vamos nós com o racismo de novo.
— Quê? Não. Ah, vá! Como?
— É, sim. Toda vez que comento alguma coisa típica do interior, você fica
chocado porque asiáticos não podem ser do interior.
— Não é isso.
— Então você é machista.
— Não.
— Se eu fosse um cara branco de dezessete anos de Jackson, Tennessee,
você ficaria surpreso se eu dissesse que caçava sapos com meus irmãos?
Merda. Caí direitinho.
— Sim?
— Mentiroso. Machista mentiroso.
— Não! É só que você é uma pianista e imaginei que todos vocês se
preocupassem demais com as mãos. — Boa. Fui rápido.
Ela segura o riso e me dá um tapa na barriga com o dorso da mão.
— Isso é… preconceito contra os músicos.
Eu me curvo e dou risada.
— Ai. Doeu. O que não me surpreende nem um pouco, porque meninas
são boas em bater também.
— Besta — ela murmura com um sorriso. — Então, quero ouvir como é o
som daqui debaixo. Vai lá tocar alguma coisa.
— Eu não toco.
— Todo mundo na Terra sabe tocar alguma música no piano. Vai, trouxa.
Finjo estar irritado.
— Tá bom. — Levanto e tiro o pó da roupa. Sento ao piano.
No caminho para casa, Darren Coughlin liga. Paro o carro para atender.
Ele pergunta se tenho algum comentário sobre a investigação iminente. Digo
que não e fico parado e respiro e escuto as batidas do meu coração até ter
certeza de que não vou ter um ataque de pânico enquanto dirijo.
Se eu tivesse um milhão de dólares… bom, primeiro pagaria o sr. Krantz,
mas depois usaria o resto do dinheiro para pagar por apenas uma hora em que
não pensasse sobre o Acidente, sobre o juiz Edwards, sobre a promotoria,
sobre Adair, sobre os custos do processo, sobre a prisão, sobre qualquer coisa
do tipo.
Uma hora em que pudesse sentar e deixar o calor da pele de Jesmyn se
esvair da memória dos meus dedos no momento em que minha cabeça está
tão clara e tranquila quanto um mar sem ondas num dia sem vento.
VINTE E QUATRO
Sem dormir, fico deitado na cama, e o silêncio ruge nos meus ouvidos. Os
dígitos verdes brilhantes do meu despertador mostram 2h45. Estava quase
dormindo quando um trem me acordou. A vovó Betsy não estava brincando
sobre acordar cedinho. Fiquei de encontrá-la às sete.
Tento reunir minhas histórias sobre Blake. Não vai me ajudar a dormir,
mas continuo mesmo assim. Arrumo-as em uma fila na minha cabeça. Dou
um banho e um polimento nelas.
Preparo para pôr todas elas para dormir.
Começo a trilha, esperando que vovó Betsy venha atrás de mim. Ela não
vem.
— Blade, se importa em ir na frente sem mim? Preciso de um minuto ou
dois sozinha aqui. — A voz dela é um sussurro arranhado, como o vento
passando pela grama alta. Ela me dá as chaves do carro.
Antes de ir, a observo sentar na cadeira ao lado daquela com o bilhete. Ela
apoia os cotovelos nos joelhos e posiciona a cabeça entre as mãos.
Faço o mesmo quando chego ao carro.
Nós dois estamos quase recompostos quando ela vem até mim, uns dez
minutos depois.
— Certo — ela diz com o que parece uma animação sincera (ou pelo
menos um alívio temporário). — Eu comeria waffles com bacon depois da
pesca depressiva. E você?
— Com certeza.
Vamos até a Waffle House mais próxima. Enquanto estacionamos, vovó
Betsy ri.
— Não deve parecer um último dia muito glorioso pro Blake. Mas é o que
eu e ele adorávamos fazer juntos. Todo sábado de manhã quando podíamos,
nos últimos anos. Só estou supondo que é isso que ele teria desejado no seu
último dia, mas definitivamente é o que eu desejaria.
— Como eu estou no lugar do Blake hoje, digo que é o que ele teria
desejado.
— Acho que, se você quisesse que seu último dia na Terra não parecesse
um dia comum pra você, você precisaria rever sua vida.
— Concordo. — Acho que um Buick no estacionamento de uma Waffle
House é um lugar tão bom quanto qualquer outro para ter a noção de uma
vida bem vivida ampliada, maior do que o Grand Canyon.
— Vamos comer waffles.
Uma garçonete loira com voz de fumante nos cumprimenta.
— Bom dia, Betsy! Já faz um tempinho. Você está com um companheiro
diferente neste café da manhã.
O sorriso da vovó Betsy diminui quase imperceptivelmente.
— Olá, Linda. Blake não pôde vir hoje. Este é o melhor amigo dele,
Carver.
— Oi. — Aceno.
— É um prazer conhecer você, querido — Linda diz. — Precisam do
cardápio ou vão querer o de sempre?
Vovó Betsy olha para mim.
— Eu topo o de sempre, seja lá o que for — digo.
— Então vai ser o de sempre — vovó Betsy diz.
— Já trago — Linda diz. — Fala pro seu neto que sentimos falta dele hoje.
Vovó força um sorriso.
— Aposto que ele já sabe disso.
Sentamos e Linda sai às pressas depois de nos servir xícaras de café. Vovó
Betsy se aproxima para sussurrar.
— Não consegui contar pra ela. Ela é tão simpática… E não tinha por que
deixá-la triste.
— Blake teria achado engraçado.
Os olhos da vovó Betsy brilham.
— Imagino o Blake vendo a gente lá do céu agora e rindo da brincadeira
que fizemos com a Linda.
Sorrio e brinco com o meu garfo.
— Você acredita no céu? — vovó Betsy pergunta.
A resposta fácil é que acreditava, de maneira tão despreocupada quanto
acreditava em tudo relacionado ao Divino. Era uma crença não testada e não
examinada, e por isso vivia confortável em mim. Mas agora? Se virassem
para mim e dissessem: “Escuta, o Blake vai morrer, mas não tem problema
porque você acredita no céu, certo?”, minha resposta teria sido não.
— Sim. Quase sempre — digo. — Mas não passei muito tempo da minha
vida pensando sobre isso como eu penso agora.
— Eu acredito no céu — ela murmura. — Acredito na ressurreição da
carne quando os mortos vão ascender aos céus. Acredito em tudo isso. E você
pode achar que isso torna as coisas mais fáceis. Acreditar que vou abraçar o
Blake de novo algum dia. Deveria ser tão fácil quanto se eu estivesse
mandando Blake para passar o verão em um acampamento. Mas não é.
Linda ressurge com dois pratos de waffles empilhadas e um grande prato
de bacon.
— Aproveitem.
— Pode apostar que vamos aproveitar — vovó Betsy diz.
Nós dois olhamos pela janela, para os carros que passam, as pessoas indo e
vindo. Ouvimos o tilintar dos talheres, o chiado da grelha, a crocância do
bacon. O zumbido das conversas e alguns pedidos ocasionais.
Sinto uma ânsia de confessar.
— O que você acha que impede alguém de entrar no céu?
Vovó Betsy me encara nos olhos enquanto termina de mastigar e toma um
gole de café.
— O que você quer dizer?
— Quero dizer, e se Deus achou que eu tinha algo a ver… — Linda se
aproxima e enche nossos copos com água.
— Tudo bem por aqui? — Linda pergunta.
— Tudo ótimo — vovó Betsy diz. Linda sai de novo.
Falo com um leve tremor na voz.
— E se Deus me acha responsável pelo Acidente? — Quero falar mais,
mas a palavras do sr. Krantz ecoam na minha mente. Sempre achei
incompreensível por que os criminosos confessavam seus crimes. Ainda mais
quando entregam à polícia a única chance que têm para continuar livres.
Agora entendo perfeitamente.
— Vou te falar sobre o Deus que eu conheço. — Ela olha pela janela por
um segundo, depois volta a me encarar. — Meu Deus julga uma vida inteira e
um coração inteiro. Não nos julga pelos nossos piores erros. E vou te dizer
mais uma coisa. Se Deus é alguém que nos faz andar numa corda bamba
sobre as chamas do inferno, não estou nem aí pra cantar louvores pra ele por
toda a eternidade numa nuvem prateada. Prefiro pular da corda bamba a fazer
isso. — A voz dela vacila na última parte, mas isso não diminui a força da
convicção dela.
De repente, sinto como se tivesse um cubo gigante de gelo entalado na
garganta. Tento engolir mesmo assim. Eu adoraria ter a mesma convicção,
mas não consigo.
— Você se importa se eu contar uma história totalmente aleatória que não
tem nada a ver com esse assunto? — pergunto.
— De jeito nenhum.
— Lembro de uma vez em que Blake estava na minha casa, e a Georgia
estava com algumas amigas ouvindo música com a porta do quarto aberta. Eu
e o Blake entramos no corredor, onde dava pra elas nos verem, e começamos
a fazer umas danças engraçadas. Rebolando, fazendo hula-hula, imitando
uma galinha, coisas assim. No começo, elas estavam gritando pra gente ir
embora, mas, no final, estavam rindo tanto que não conseguiam nem respirar.
Enfim. Acho que não parece tão engraçado quando conto. Talvez precisasse
estar lá.
Vovó Betsy está tremendo; está com a mão sobre a boca e lágrimas
escorrem de seus olhos. Não sei se está rindo ou chorando. Finalmente, ela
engasga, e parece um engasgo de riso.
— A maioria das histórias sobre as pessoas que a gente ama não é assim?
Precisava estar lá pra saber.
Terminamos de comer e nos levantamos para sair. Vovó Betsy tira mais
uma folha de caderno dobrada do bolso e a deixa sobre a mesa, junto com
uma nota de vinte e uma novinha de cem dólares. Coloca um copo vazio em
cima de tudo.
— Tchau, pessoal… Bom dia pra vocês! — Linda diz, passando com um
bule de café. — Até a próxima!
— Tchau, Linda — vovó Betsy diz. — Obrigada por tudo. E Blake manda
um obrigado também.
Linda não parece notar o tom de despedida na voz da vovó Betsy, mas eu
noto.
Saímos para o carro num silêncio meditativo. Estou ponderando sobre o
inferno. Me pergunto se, em vez de um lago ardente de chamas, cheio de
condenados gritando, é na verdade um corredor infinito de quartos sem
barulhos nem janelas. E, dentro deles, cada um dos condenados se senta
confortável numa cadeira de escritório perfeitamente comum, olha para as
paredes cinza vazias e revive seu pior erro.
De novo.
E de novo.
E de novo.
Vovó Betsy planejou tudo muito bem, porque sabia que precisaríamos de
um pouco de silêncio neste momento. Então vamos a uma matinê no cinema,
o que funciona porque ela e Blake adoravam ir ao cinema juntos.
É uma adaptação de Danny, o campeão do mundo. Era um dos meus livros
favoritos quando eu era criança, e eu pretendia assistir mesmo. Claro,
normalmente eu via filmes com a Trupe do Molho ou com a Georgia. Mais
uma maneira como a minha vida mudou e sobre a qual eu não tinha pensado
ainda. Jesmyn poderia ter topado. Parece provável, na verdade. Talvez um
pouco esperançoso da minha parte.
Eu e a vovó Betsy compramos um balde enorme de pipoca para dividir.
— Entendo se você não conseguir comer mais nada. Eu sei que não
consigo. Mas eu e o Blake sempre dividíamos uma pipoca grande, e tradição
é tradição.
Assistindo no escuro, reflito sobre os rituais comuns que, unidos de ponta a
ponta, formam uma vida. Trabalhamos para ganhar dinheiro e, depois, se
tudo der certo, usamos esse dinheiro para comprar memórias com as pessoas
que amamos. Coisas simples que nos trazem alegria.
Com a mente agitada, acabo não prestando muita atenção, e o filme passa
sem eu perceber. Talvez eu volte para assistir com a Jesmyn.
Nenhum de nós encosta na pipoca.
O filme acaba e vovó Betsy levanta do banco com um gemido.
— Essas cadeiras de cinema me causam um estrago… Envelhecer não é
nem um pouco divertido.
Não envelhecer também.
Vovó Betsy anda devagar em direção à saída.
— Acho que não vou mais ao cinema. Pelo menos não até os meus outros
netos crescerem um pouco. Não gosto de ir sozinha, e Blake era meu
companheiro de filmes. — Ela abre a porta da saída e semicerramos os olhos
sob o sol forte da tarde depois do escurinho frio do cinema. Por um segundo,
me pergunto se a ressurreição é parecida como isso. Sair das trevas para a luz
ofuscante.
No caminho até o carro, vovó Betsy cobre os olhos e diz:
— Eu sempre falava pro Blake procurar uma menina bonita para levar ao
cinema em vez de mim. Ele sempre dizia: “Não, vovó, prefiro ir com você”.
Verdade seja dita, fico um pouco grata por ele nunca ter encontrado a garota
certa. — Ela começa a destrancar a porta.
E agora tenho um puta de um problemão.
— É, você é mais gay do que… andar num pônei branco num campo de
pintos — Eli diz para Mars. Eles riem de novo. Eli dá um tapinha no braço de
Blake enquanto estaciono na casa do Eli. — Porra, mano, você deve ter
alguma.
Blake meio que entreabre um sorriso e se remexe no banco.
— Não, vocês já esgotaram todas.
— Poxa — Mars diz. — Vai, Blade. Acaba com ele.
— Não, não tenho nada aqui.
— Você está perdendo o jeito — Mars diz enquanto ele e Eli saem.
— Sua mãe é que está perdendo o jeito — Blake diz.
— Essa nem faz sentido — Mars diz.
— Sua mãe é que nem faz sentido.
Damos risada, e Mars e Eli sobem o caminho para a casa do Eli correndo.
Saio com o carro e começo a dirigir pra casa do Blake. Eu nunca o tinha
visto tão quieto. Estendo a mão e dou um soquinho de brincadeira no braço
dele.
— Está tudo bem, cara. A gente só precisa fazer um vídeo com cenas de
treinamento de piadas gays, em que você corre enquanto eu ando de bicicleta,
e levanta pesos enquanto grita piadas sobre gays, tudo pra você se redimir
dessa derrota humilhante.
Blake ri baixo, mas está na cara que não é um riso sincero.
— Pois é.
— Estou zoando, cara.
— Eu sei.
— Você está bem?
— Estou sim. — Depois de alguns segundos, ele diz: — Posso te perguntar
uma coisa?
— Claro — digo.
— Não, deixa pra lá.
— Cara.
— Não, é esquisito.
— É óbvio que é esquisito. É você que está perguntando.
— Promete que posso confiar em você?
— Sim, cara. Total. Juro.
Ele suspira e coça a cabeça. Começa a dizer algo e para. Tenta de novo.
— Como… Quando você descobriu que curtia meninas?
Fico sem palavras.
— Hum, você quer dizer, tipo, sexualmente? Desde que eu tinha mais ou
menos uns onze anos. Por quê? — No fundo, já sei exatamente por que ele
está perguntando.
Ele respira fundo, trêmulo. Como se estivesse prestes a pular de um barco
naufragando.
— Porque… eu… nunca curti meninas… desse jeito. Nunca.
Um longo silêncio.
Prefiro que Blake revele quando estiver pronto, mas ele não fala, então eu
digo:
— Você curte…?
— Ovelhas? Não.
Rimos.
— É — Blake diz baixo. — Acho que eu… curto meninos. — Ele
acrescenta rápido: — Não você; não se preocupa.
— Nossa.
— É óbvio que eu gosto de você como amigo. Mas não desse jeito.
— Caramba, agora estou me perguntando se eu deveria ter feito mais
hidratação ou esfoliação. Poxa, eu malho, cara — digo.
— Não, não malha — Blake diz.
— Ei. Desculpa, cara — digo, fechando o sorriso. — Por todas as piadas
de gay que eu já fiz. Não foi por maldade. Mars e Eli também pediriam
desculpa se soubessem. Eles não são homofóbicos de verdade. Nenhum de
nós é. A gente só… não pensou. Foi idiota da nossa parte. Estou muito
envergonhado.
— Tudo bem. Um dia conto pra eles, mas vamos manter isso só entre nós
por enquanto, pode ser?
— Sim, cara. Claro. Mas vou falar pra eles pararem de falar merda da
próxima vez que fizerem piada de gay. É de mau gosto zoar essas coisas.
— Isso eu acho legal. É bom desabafar. Você é a primeira pessoa pra quem
eu conto. Obrigado por me ouvir.
— Imagina. Isso não faz da gente menos amigos. — E, depois de um
segundo: — Mas, rapidinho, é por causa do meu cabelo?
Ele não contou pra ela. Imaginei que, depois de me contar, contaria pra ela.
Tinha sido há pouco menos de um ano. E agora preciso decidir se deixo que
ela conheça Blake por inteiro.
Se ele quisesse que ela soubesse, teria contado.
Se não quisesse que ninguém soubesse, não teria contado pra mim.
Talvez quisesse esperar o momento certo pra contar pra ela. Mais cedo ou
mais tarde, ele teria contado.
Esse momento nunca vai chegar agora.
Ele nunca falou pra você que contaria pra ela.
Ele nunca falou que não contaria pra ela.
Ela vai ficar perfeitamente feliz com as memórias dele se não souber.
As memórias dele vão ser incompletas se ela não souber.
Ela vai ficar magoada por saber que eu soube antes dela.
Ela convidou você aqui hoje porque você tinha peças de Blake que ela não
tinha.
É a coisa errada a fazer.
É a coisa certa a fazer.
Vovó Betsy entra no carro e eu também.
— Certo, agora nós…
— Preciso te contar uma coisa. — É uma má ideia.
— Sim. Claro.
As palavras tropeçam na minha boca ao saírem.
— O Blake… nunca encontrou a garota certa porque ele… não quis.
— E não é verdade? Parece que namorar era a última coisa na cabeça dele.
Espero pra encarar seus olhos antes de ela ligar o carro.
— Não foi isso o que eu quis dizer.
A expressão dela não muda por alguns segundos. Então a ficha vai caindo
aos poucos. Ela balança a cabeça como se estivesse meio dormindo, tentando
despertar.
— Ele não era…
Meu coração goteja frio e viscoso dentro do meu peito — claras de ovos
quebrados escorrendo pelas prateleiras de uma geladeira. Não faço ideia se
fiz a coisa certa.
Ela tira a mão das chaves e parece murchar no banco, paralisada. A única
coisa mais sufocante do que o calor no carro é o silêncio. Ela se inclina para a
frente e dá partida, e, graças a Deus, o ar-condicionado ganha vida com um
chiado. Mas ela se recosta e não nos mexemos.
— Eu não fazia ideia — ela diz. — Moramos juntos por anos. Eu não fazia
a menor ideia.
— Eu também não, até ele me contar.
— Quando ele te contou?
— Faz pouco menos de um ano.
O rosto dela se enruga e ela começa a chorar.
— Por que ele não me contou?
— Ele… ia contar. Ele me disse. — Definitivamente é uma mentira. Mas
necessária para consertar o que temo ter quebrado.
— Mas por que esperar?
— Acho que… ele sabia como a religião é importante pra você e tinha
medo de como você reagiria.
Ela revira a bolsa em busca de uma caixa de lenços de papel e seca os
olhos.
— Nossa religião definitivamente não aprova esse estilo de vida, mas
nunca acreditei que as pessoas escolhessem ser assim. Fico pensando… Se
talvez eu tivesse tirado o Blake da Mitzi antes…
— Tenho quase certeza de que não é assim que funciona. Acho que ele
nasceu desse jeito.
— Não consigo entender. Havia uma enorme parte dele que eu não
conhecia.
— Mas essa era só uma parte de quem ele era. Você o conheceu melhor do
que qualquer pessoa na Terra.
— Não tão bem quanto você, pelo visto.
— Mas você sabe inúmeras coisas sobre ele que eu não sei. Acho que a
única pessoa que conhece alguém completamente é a própria pessoa. E,
mesmo assim, nem sempre.
— Imaginei o futuro dele todo errado. Imaginava uma garota e um vestido
de noiva e netos.
— Ainda dá pra imaginar um casamento e netos. Só que haveria um
smoking no lugar de um vestido de noiva. — Tomara que eu esteja
melhorando, e não piorando a situação.
— Só conheci uma pessoa gay na vida. Meu cabeleireiro em Greeneville.
Eu adorava aquele rapaz. Mas era fácil perceber que ele era. — A vovó Betsy
assoa o nariz e pressiona a testa. Seu corpo se enruga e seu choro começa a
ser de soluçar. — Tantas vezes deixei as pessoas falarem besteira homofóbica
e preconceituosa na frente do Blake e não repreendi ninguém. Não é
nenhuma surpresa que ele tivesse medo de me contar.
Meu coração continua a gotejar.
— Desculpa se você ficou magoada pelo que contei. Tentei fazer a coisa
certa.
A voz dela treme.
— Você fez. Você está aqui para ajudar a narrar a história de Blake. — Ela
hesita. — Blade, você acha que ele conseguiu amar alguém do jeito que
queria?
— Não sei. Espero que sim.
— Eu também.
Ela faz menção de engatar a marcha do carro mas para de novo.
— Você pode dizer não pra esse pedido, mas pode fazer uma
encenaçãozinha comigo?
— Posso tentar.
— Você pode fingir ser o Blake e me contar para eu poder dizer em voz
alta o que eu teria dito? Caso ele possa nos ouvir?
— Acho que sim. Tá bom. Isso não vai ser tão engraçado quanto seria se
fosse o Blake.
— Não tem problema.
— Tá. Hum. Vovó, posso conversar com você sobre uma coisa? — Não
sei como fazer isso. Acho que não existe nenhum manual sobre como sair do
armário no lugar do seu melhor amigo morto.
Ela seca os olhos.
— Sim, Blake, pode. — Nós damos risada, embora não seja nada
engraçado.
— Já sei disso faz um tempo, mas preciso contar pra você que sou gay.
Vovó Betsy olha para o céu.
— Blake, querido, se você consegue me ouvir, preste atenção. — Ela me
encara e engole em seco e, quando fala, o tremor desaparece da sua voz, que
me envolve como um edredom. — Isso não faz a menor diferença pra mim.
Eu te amo mais do que amo o próprio Deus. Então, se ele tem algum
problema com isso, ele que venha conversar comigo, porque eu te amo do
jeito que você é. Agora, se isso é tudo o que você tem pra me dizer, então é
melhor irmos logo comer frango frito caseiro com pão de milho. Seu prato
favorito.
Ela assente uma vez, como um juiz batendo um martelo, engata a marcha
do carro, e saímos.
*
É fim de tarde quando terminamos de comer e de conversar e o que restou
da torta de limão repousa na mesa à nossa frente. Nos recostamos nas
cadeiras para aliviar a pressão em nossos diafragmas.
— Bom, já está pronto para a próxima parte? — Vovó Betsy varre com a
mão as migalhas da mesa e as joga no prato.
— Desde que não seja mais comida. Não que não tenha sido ótimo.
Ela sorri e levanta. Escuto-a revirando as coisas. Ela volta segurando um
tipo de bexiga cor-de-rosa. Está com um brilho travesso no olhar.
— Já brincou com uma dessas?
Faço que não.
— É uma almofada de pum — ela diz. — Olha. — Ela sopra dentro dela,
coloca sobre a cadeira e, quando senta, solta um guincho agudo de peido.
Damos risada.
— Já li sobre isso — digo. — Mas nunca vi uma.
— Tive que encomendar na internet.
— Acho que dava para baixar um aplicativo no celular.
Vovó Betsy parece acanhada.
— Sou velha demais pra ter pensado nisso.
— Para que vamos usar?
— Vamos viver o mundo através dos olhos do Blake. Entrei em contato
com o YouTube e consegui recuperar as informações de login do canal dele.
Preciso que você me ajude a filmar um vídeo de despedida pra ele.
Eu não tinha nem pensado no que seria de todos os seguidores do Blake no
YouTube. Não sabia se eles faziam alguma ideia do que havia acontecido.
— Tenho experiência como câmera do Blake.
— Então acho que estamos preparados. Mas, antes de tudo: precisamos
gravar uma introdução para o vídeo. Podemos fazer isso aqui.
Enquanto filmo, vovó Betsy tropeça e gagueja durante sua mensagem.
— Olá, pessoal. Eu sou a avó do Blake. Blake faleceu e sentimos falta
dele. Queríamos agradecer a todos pelo apoio que deram a ele. Obrigada.
Este próximo vídeo é nosso tributo ao Blake.
Vovó Betsy pega suas chaves e sua bolsa, a qual esvazia para guardar a
almofada de pum cheia. Faz um teste, apertando. Funciona. Ela enche a
almofada mais uma vez e a guarda de novo.
— Bom. Vamos lá.
Vamos de carro até uma loja de artesanato. Blake adorava lugares com
funcionários arrumadinhos e certinhos, e uma loja dessas com certeza tem
clientes que gostam mais de arranjos de flores do que de barulhos de peido.
— Nossa — vovó Betsy diz enquanto esperamos no estacionamento. —
Estou com um friozinho na barriga. Como Blake conseguia fazer isso?
— Blake não inventou esta frase, mas dizia que a comédia é sobre
controlar por que as pessoas riem de você.
Vovó Betsy assente com firmeza. Sua expressão fica mais decidida. Ela
respira fundo.
— Então vamos lá controlar por que as pessoas riem de nós. Em nome
dele.
Entramos na loja, que cheira a flores e poeira. Vovó Betsy segura a bolsa
com firmeza ao lado do corpo como se guardasse um explosivo lá — o que,
de certa forma, é verdade. Seus lábios estão tensos. Seus olhos se movem de
um lado para o outro rapidamente, em busca de um alvo. Estou com o celular
a postos.
Tem mais meninas na casa dos vinte com piercing no nariz e cabelo roxo
do que eu esperava. Elas não servem para nós. Examino a loja. Vamos
andando até o corredor de tecidos.
— Ali — sussurro e aponto discretamente para uma mulher com cara de
mãe e cabelo grisalho. Ela está com os óculos de leitura equilibrados na ponta
do nariz, enrolando um pedaço de flanela.
— Boa — sussurra vovó Betsy. Ela respira fundo de novo. — Ai, Senhor,
o que estou fazendo? — murmura consigo mesma.
Nos aproximamos da mulher. Tiro o celular do bolso e finjo estar
concentrado olhando alguma coisa, mas estou filmando. Ao meu lado, vovó
Betsy engole em seco e dá um passo à frente.
— Com licença, senhora — ela diz. Sua voz parece aflita, mais aguda que
o normal. Como se a almofada de pum estivesse presa na sua garganta.
A mulher ergue os olhos com uma cara azeda e as sobrancelhas arqueadas.
Ótima escolha de alvo.
— Posso ajudar? — pergunta.
— Sim, a gente estava procurando por… — Vovó Betsy coloca a bolsa em
cima da mesa e põe a mão dentro, como se estivesse procurando uma folha
com medidas. Em vez disso, aperta a almofada de pum, emitindo um longo e
sonoro guincho flatulento. E então, um momento de completo silêncio, que é
a hora perfeita do corte de filmagem. A mulher está ligeiramente boquiaberta,
e alterna o olhar entre mim e vovó Betsy depressa.
Vovó Betsy está vermelha como se tivesse dormido no sol e acordado
cinco horas depois. Com a mão no braço da mulher, balbucia um pedido de
desculpas entre ataques de riso nervoso.
— Senhora, me desculpa. Juro que não pretendia ser rude. Nós
precisávamos… Eu…
A mulher encara a vovó Betsy como se ela tivesse peidado de verdade na
frente dela.
— Tenho muito a fazer aqui, então se não se importam.
Vovó Betsy se recompõe com rapidez. Isso me lembra como ela fez no
velório do Blake. Ela fala mais baixo e devagar.
— Peço desculpas sinceras. Perdi meu neto há algumas semanas. Ele era
um pregador de peças e adorava pegadinhas em que fazia papel de bobo em
público. — Ela aponta para mim. — O melhor amigo dele e eu estamos
fazendo um último dia de despedida pra ele. Eu precisava experimentar um
pedacinho do mundo do meu neto pelos olhos dele.
A expressão da mulher relaxa visivelmente.
— Sinto muito por sua perda.
Vovó Betsy revira a bolsa de novo e tira uma nota de vinte dólares. Ela a
estende para a mulher.
— Por favor, aceite. Estávamos apenas tentando fazer o papel de bobo, e
não você.
A mulher balança a cabeça e recusa a nota gentilmente.
— Não, senhora. Perdi um sobrinho num acidente de moto há alguns anos.
O luto faz todos nós de bobos.
Vovó Betsy guarda a nota de volta na bolsa.
— Sim, é verdade. Enfim. Desculpa de novo se te ofendi.
— Não precisa se desculpar. Espero que tenham uma ótima noite.
Vamos andando até o carro.
— Não foi tão ruim assim — digo. — Mas o pum de verdade funciona
melhor que uma almofada de pum. Deixa mais fácil manter o contato visual
que o Blake dizia ser tão essencial.
Vovó Betsy sorri.
— Na minha idade, não dá pra arriscar esse tipo de coisa, mesmo se eu
conseguisse fazer como Blake fazia.
Ela destranca o carro e entramos.
— O vídeo ficou bom?
— Sim. Quer que eu poste no canal para você?
— Pode fazer isso? Toma. — Ela me dá um papel com as informações de
login do YouTube de Blake. Entro na conta pelo celular e subo os dois vídeos
que gravamos.
— Foi difícil. Nunca mais gostaria de fazer isso de novo. Passamos a vida
toda fazendo de tudo pra não parecer idiota — vovó Betsy diz.
— É o medo. Nós só temos medo.
— Ele era movido por esse impulso de fazer alguma coisa ridícula para
iluminar o dia de alguém. Fez isso várias e várias vezes; enfrentou o medo
para fazer as pessoas rirem. Não sei como ele conseguia fazer isso. Quase
morri lá dentro.
Ninguém sabe como as pessoas superam as coisas. Elas apenas superam.
Ela parece tão cansada quanto eu. Hesito em ser a pessoa a terminar o dia,
mas alguém precisa fazer isso.
— Não que eu queira, mas acho melhor eu ir — digo, balançando para a
frente na cadeira. — Foi gostoso. Estou feliz por ter feito isso. Conheço
Blake melhor agora.
— Já passou da minha hora de dormir também. — Ela coloca a mão sobre
a minha e sinto o tremor nela. — Não sei como te agradecer. Fizemos coisas
simples hoje, as coisas que eu e o Blake fazíamos numa semana normal. Mas
é assim que eu gostaria de passar um último dia com ele.
— Eu também. — Começo a me levantar. — Em breve volto pra aparar a
grama.
— Não precisa. O ar fresco me faz bem.
— Eu sei, mas… — Me levanto, fazendo a comida se assentar no meu
estômago. — Isso tudo ainda dói muito. Mas não tanto quanto antes.
— Não — ela responde, distante. Há um timbre novo em sua voz.
Trêmulo. Nervoso. Ela está se remexendo na cadeira como se quisesse dizer
algo. Não consegue olhar para mim.
— Vovó Betsy?
Ela me encara nos olhos e vejo medo em seu rosto.
— Carver, tenho mais uma coisa pra te pedir.
— Claro. — Ele me chamou de Carver, não de Blade. Agora estou
contaminado pela apreensão dela. Sento.
Ela expira com força e coloca a mão no bolso. Tira outra folha de papel.
Quase o deixa cair de tanto que suas mãos tremem. Ela a desdobra e vejo um
número de telefone.
— Contratei um detetive particular para encontrar Mitzi. Ele a viu faz
alguns dias e me arranjou este número. Não liguei para contar pra ela ainda.
Pensei que este dia me daria forças para eu conseguir fazer isso sozinha, mas
não funcionou. Você entra e fica mais alguns minutinhos comigo para
segurar a minha mão enquanto ligo pra ela?
Contenho o pavor sombrio que sobe pelas minhas costelas.
— Fico.
O rosto dela se contorce. Ela chora.
— Ela vai dizer: “Você tirou Blake de mim e agora ele morreu por causa
disso”. E não sei como responder, porque ela está certa.
— Não. Mas… Não… isso está errado. É ridículo. Foi por minha causa.
Como contei pra você.
Vovó Betsy solta um riso amargo por entre as lágrimas.
— Ah, Blade. Ele nunca estaria naquele carro se eu não tivesse me mudado
pra cá. Só não estou preparada para ouvir isso dela. Mas nunca vou estar
preparada, então acho que não tem hora melhor do que agora.
— Não é culpa sua. — A encaro nos olhos e torço para que meu olhar
transmita minha convicção.
Ela finalmente assente.
— Está bem — ela diz como se não quisesse discutir; não como se eu a
tivesse convencido. Entramos e sentamos perto um do outro à mesa da
cozinha, no escuro. Imagino que, se ela quisesse a luz acesa, teria acendido.
Ela respira fundo.
— Deus, dai-me forças. — Ela pega o telefone e liga. Estendo o braço e
seguro a mão dela. Ela aperta a minha como o afogado de que falou há
pouco.
Ouço os toques do telefone do outro lado da linha. Um. Dois. Três. Quatro.
Cinco. Vovó Betsy olha na direção do céu. Eu a vejo murmurar algo. Seis.
Sete. Cada toque é um corvo me bicando na orelha. Oito. Nove. Ela aperta
minha mão com mais força.
E então, quando vovó Betsy está para desligar, alguém atende.
Rapidamente, ela volta a erguer o aparelho.
— Mitzi? Mitzi? É a Mitzi? Mitzi, aqui é a mamãe. A mamãe. Mitzi, dá
pra… dá pra abaixar a música, por favor? Abaixa a música, por favor. Não
importa como consegui; preciso falar com você. Eu sei. Eu sei, mas você…
Querida, por favor, você precisa me ouvir… Porque é sobre o Blake. É sobre
o Blake.
Sua mão está desmoronando na minha. É como tentar segurar um punhado
de areia do oceano enquanto a onda chega.
Ela tenta dizer mais, mas as palavras entalam em sua garganta. Lágrimas
descem cintilantes por suas bochechas.
— Não consigo — ela faz com a boca. — Não consigo. — Ela abaixa a
mão com o telefone para o seu colo, nos iluminando com o brilho branco
etéreo da tela. Mitzi grita algo. Vovó Betsy cobre os olhos e sacode a cabeça.
Sinto que está iminente. Uma coisa escorregando de uma prateleira. Mas
não cai. Fica cambaleando na ponta, esperando pra cair. Mas não cai.
Isso. Pelo menos isso você pode fazer por ela. Solto a mão da vovó Betsy e
pego o telefone devagar. Ainda escuto os gritos de Mitzi. Seria quase cômico
se não fosse tão completamente o contrário de cômico.
Levo o telefone à orelha.
— Alô, Mitzi? — Engulo em seco. Minhas pernas começam a se agitar.
Meu coração está pulando.
— Quem está falando, caralho? — A voz de Mitzi tem uma rouquidão
química. Sinto baratas rastejando sob a pele e feridas no meu rosto e dentes
apodrecendo só de ouvi-la. Tem gangrena nas pontas afiadas da sua voz. No
fundo, ouço uma TV ou música alta e a voz de um homem falando alguma
coisa.
— Aqui é o… eu sou amigo do Blake. Carver. Melhor amigo do Blake.
— O que está acontecendo? Por que minha mãe está me ligando pra falar
do Blake? Como ela conseguiu este número?
— Estamos… estamos ligando pra te contar que o Blake morreu num
acidente de carro pouco mais de um mês atrás. — Minha garganta lateja por
segurar o dilúvio.
— Como é que é? Não, ele não morreu. Isso é um trote? — As palavras
dela são desafiadoras, mas sua voz é pequena. Como a de uma criança que
ouviu que não há conserto para seu brinquedo predileto. Ou talvez como
alguém que levou um tapa. Ouço essa experiência na voz dela também.
Balanço a cabeça e depois me lembro de que Mitzi não consegue me ver.
— Blake se foi. Fizemos o velório dele. Ele foi enterrado. A vovó… sua
mãe tentou te encontrar, mas não conseguiu a tempo. Eu… sinto muito. Sinto
muito mesmo. Ela queria ter te contado antes.
— Não. — A voz de Mitzi é ainda mais baixa. — Não sei nem quem é
você. — Ouço a voz do homem de novo, mais perto.
— Sinto muito. — Minha voz treme.
— Deeeeeus nããããão. — Seu lamento logo se transforma em gritos
incoerentes e ásperos.
Preciso afastar o telefone da orelha. Vovó Betsy cobre os ouvidos e apoia
os cotovelos na mesa. Ela está chorando de soluçar e respira com dificuldade.
Quando coloco o aparelho de volta no ouvido, Mitzi está chorando uma
liturgia de:
— Põe ela de volta. Põe ela de volta. É culpa dela por ter levado o Blake.
Quero falar com ela. Põe ela de volta. Põe ela de volta. A culpa é dela. A
culpa é dela dele ter morrido. Ah, Jesus, Nosso Senhor. Ah. Ah, não posso.
Não posso. Ah.
— Não — digo, com toda a dureza que consigo. — Não vou colocar sua
mãe de volta na linha. Você vai gritar com ela.
Vovó Betsy ergue a cabeça e estende a mão para o telefone. Mas é uma
tentativa fraca, e me levanto para me afastar. Mitzi está engasgando de
chorar. Então preencho o espaço.
— Não é culpa dela. Não é de ninguém… A culpa é minha. A culpa é
minha. Pode gritar comigo. Vai. Grita comigo. A culpa é minha.
Ela lamenta:
— Você deixou que ele se machucasse. Não cuidou bem dele.
— Eu sei — digo, com as lágrimas se acumulando quentes e gotejantes. —
Desculpa. — Mas algo está mudando dentro de mim. Algo está queimando e
se transformando em raiva. Consigo ver que estou prestes a dizer algo de que
vou me arrepender, e já estou familiarizado com o arrependimento. — Mas
você também não. Você não estava lá pra cuidar dele. Você não estava nem
no velório dele. Seu filho teve uma boa vida por causa da sua mãe. Ele teve
amigos e pessoas que o amavam. Você deveria ser grata. Eu…
A linha cai e o único som nos meus ouvidos é o choro contido da vovó
Betsy. Abaixo o telefone devagar e o deixo sobre a mesa. Sinto que fui
pendurado num galho de árvore dentro de um saco e apanhei com uma vara.
— Eu ia te devolver o telefone. Não queria que ela te culpasse. Não
esperava que ela fosse desligar.
Ela balança a cabeça.
— Obrigada por contar pra ela.
De repente, percebo que quase fiz uma confissão a Mitzi. Eu deveria parar
com isso. Agora, porém, não me importo. Eles que tentem encontrar a Mitzi.
Pela voz dela, nem parece que vai sobreviver mais vinte e quatro horas.
Melhor ainda, eles que me crucifiquem. Seria um alívio.
Vovó Betsy tem uma expressão vazia e distante. Manter a cabeça erguida
parece requerer um grande esforço.
— Estou esgotada. Não sobrou mais nada.
— Eu posso ir embora. — Começo a ir em direção à porta.
— Blade? — ela chama. — Pode fazer mais uma encenação comigo?
— Sim.
— Deixe-me dar adeus para o Blake.
— Claro. — Me preparo.
Ela se levanta e me encara.
— Blake. Eu te amo e amei os dias que passei com você. Guardei todos no
meu coração. Um dia, quando aquele trompete soar, vou ter você nos meus
braços de novo. — E ela me abraça.
Fico sem palavras.
Depois de um longo tempo, ela diz:
— Foi um bom dia de despedida. Espero que você concorde.
— Sim.
— Blake foi um menino lindo e vou sentir falta dele.
— Eu também. — Com isso, vou embora.
Meus pais estão assistindo à TV no quarto deles. Não contei muito para eles
sobre o que iria fazer hoje. Só que eu e a vovó Betsy passaríamos o dia juntos
pra lembrar do Blake.
Entro e dou um abraço neles mais longo que o normal e digo que os amo.
Eles perguntam sobre o meu dia e respondo que não quero falar sobre o
assunto; estou muito cansado. Depois a gente conversa.
Caio na cama, mando uma mensagem para Jesmyn e pergunto se ela pode
conversar.
Enquanto espero a resposta, minhas memórias se dobram e se recolocam
nos baús de onde as tirei. Hoje foi um dia catártico como uma sessão
vigorosa de vômito. Você não se sente exatamente bem. Apenas expurgado
de algo.
VINTE E CINCO
— Você está com óculos novos — comento. O dr. Mendez está usando uma
armação preta circular.
— Sim e não — ele diz. — Não, porque tenho este par faz um tempo; sim,
porque vivo comprando óculos novos dos quais não preciso. Compro óculos
como algumas mulheres compram bolsas e sapatos.
— Minha amiga Jesmyn diria que isso é machista.
O dr. Mendez sorri, com um assentimento de concessão.
— E ela estaria certa. Preciso melhorar.
— Não vou contar pra ela.
Ele tira os óculos e os ergue para luz, examinando se estão sujos.
— O engraçado é que nunca vejo o mundo de maneira diferente através de
óculos novos. Só vejo as coisas diferentes quando me olho no espelho.
Aperto o indicador na ponta do meu nariz.
Ele ri.
— Na cara. É verdade. Se eu jurasse pra você que não pretendia falar como
um psiquiatra agora, você acreditaria?
— Assim, deve ser meio difícil. É o que você faz o dia todo.
— É verdade. Você está aliviando minha preocupação sobre minhas
limitações sem me deixar fugir da responsabilidade. Talvez devêssemos
trocar de lugar.
Entreabro um sorriso.
O dr. Mendez se afunda na cadeira e cruza uma perna sobre a outra.
— Então. Desculpa ter te perdido nas últimas semanas; estávamos de
férias. Como você está?
Inspiro fundo e seguro até não conseguir mais para reunir meus
pensamentos.
— Na semana passada, fiz aquele negócio que te falei. O dia de despedida
com a avó do meu amigo.
— Ah, é? Como foi?
— Muito bem. Talvez tenha me dado um pouco de paz. Precisei contar pra
mãe do Blake que ele morreu quando a avó dele não conseguiu.
— Parece difícil.
— E foi. Quase tive outro ataque de pânico contando pra ela, mas não tive.
— Que bom.
— Pois é. Enfim, pude conhecer Blake melhor. Contei algumas coisas da
vida dele para a avó que ela não sabia. Talvez tenha contado mais do que
deveria.
— Você se sente culpado por isso?
— Não tanto quanto por outras coisas.
— Outras coisas?
Olho para o chão e esfrego o rosto. Quero contar para ele, e ao mesmo
tempo não quero. Não que eu tenha medo de ele me julgar. Tenho medo de
ele não me julgar. E então me pergunto se meu quase ataque de pânico logo
antes de ligar para Mitzi significa que estou melhorando e se vou perder
qualquer progresso que estou fazendo se não contar pra ele.
Por isso, conto.
Tudo. Todos os detalhes de que consigo me lembrar. Confesso tão
completamente como fiz para o meu advogado. Mais até, porque acrescento
sentimentos, enquanto com o sr. Krantz eram apenas fatos. Conto ao dr.
Mendez sobre a investigação da promotoria. Ele escuta tudo sem pestanejar.
Às vezes assente de leve e diz um “Hum”.
— Então — ele diz, cruzando um braço embaixo do outro e batendo no
lábio com o dedo indicador. Ergue três dedos. — Sua condição emocional do
momento parece ter três componentes. Você tem o luto: sofreu a perda e tudo
que vem junto com ela. Tem o medo: da investigação sobre o acidente. E, em
cima de tudo isso, tem a culpa: acha que causou a morte dos seus amigos.
Estou certo?
— Bem por aí. Também tenho medo do quanto vai custar o advogado pros
meus pais.
— Certo.
— Além disso, a irmã de um dos meus amigos quer acabar comigo na
escola.
— Entendi. E imagino que aqui, o luto, o medo e a culpa tenham um efeito
sinérgico. Um mais um mais um é igual a dez, não a três.
— Bem por aí.
— Uhum. — Ele se recosta e cobre a boca com os dedos. Ficamos nos
encarando por alguns segundos, ouvindo o tique-taque do relógio. A nossa
respiração. Deixamos o silêncio florescer.
— Me conta uma história — ele diz baixo.
— Tipo, qualquer história?
— Uma história sobre a morte dos seus amigos em que você se retira da
questão de causalidade.
— A gente se chamava de Trupe do Molho.
Ele sorri.
— Aposto que tem uma boa história por trás disso também.
— Tem. Posso te contar essa?
— Algum dia, claro. Mas conte a que eu te pedi agora.
— Então você quer que eu conte uma história em que a culpa não é minha?
— Exato.
Minha mente gira, procurando algo em que se segurar. Algum fragmento
que eu consiga desenredar e recriar algo. Não está funcionando.
— Não consigo.
— Por que não?
— Porque não. Não foi isso o que aconteceu.
— Ah, qual é? — ele diz. — Você é um contador de histórias. É um
escritor.
— Desculpa desapontar você.
— Me conta uma história. Qual é o problema em tentar?
— Eu gosto de fazer por merecer as coisas.
— Você sofreu, não sofreu?
— Sim.
— Então fez por merecer. Não que precisasse.
Reviro os olhos e ergo as mãos.
— Beleza. Hum. Naquele dia, em vez de mandar mensagem pro Mars,
espero que me busquem no trabalho para sairmos. Eles todos vivem e não
estou sentado aqui. Fim.
— Não, não. Lembra das regras? Essa narrativa ainda gira em torno das
suas ações. O que você não fez salvou seus amigos. Quero que você me conte
uma história em que você não tem nada a ver com o acidente.
Solto um resmungo gutural.
— Certo. O caminhão em que eles bateram não deveria estar lá. O
motorista estava atrasado então… é isso. E, se ele não estivesse lá, eles teriam
vivido.
O dr. Mendez franze a testa e assente.
— Nada mal. Mas não consegui me… apegar aos personagens. Qual é o
nome do motorista mesmo?
— Não sei.
— Talvez seja por isso que a história não me pegou. — Os olhos dele
brilham. — Você consegue coisa melhor.
Reviro os olhos de novo e me afundo na cadeira, encarando o teto. Quando
falo, olho para cima.
— Tá. O motorista do caminhão se chamava… Billy… Scruggs. É um
bom nome de caminhoneiro, né? — Continuo sem olhar para o dr. Mendez.
— Excelente.
— A mulher do Billy tinha largado ele fazia pouco tempo. Disse que
queria o divórcio porque estava cansada de ele viver na estrada. Por isso ele
estava deprimido. Ele sai de… Macon, na Geórgia, onde mora. É um bom
lugar pra um caminhoneiro morar, né?
— Billy Scruggs de Macon. Ótimo. Quero ouvir mais.
— Então, Billy está levando uma carga de… — Olho para o dr. Mendez.
Ele ergue as mãos em um gesto de “Não sei! A história é sua”.
— … manuais de psiquiatria e óculos para Denver. — Quase quero que ele
me chame a atenção pela ironia.
Em vez disso, o dr. Mendez ri e aponta.
— Agora você me pegou.
Dá uma sensação estranhamente boa.
— Então, Billy nunca foi um motorista responsável e está um pouco
atrasado. Ele fez uma pausa numa parada para caminhões em Chattanooga
para tomar café. Ele sabe que deveria voltar pra estrada, mas não consegue,
por causa da garçonete. O nome dela é… Tammy Daniels. Ela tem trinta e
nove anos, mas não parece ter mais do que cinquenta.
O dr. Mendez ri baixo.
— Fantástico.
— Ela não é tão bonita quanto já foi e tenta esconder isso com muita
maquiagem. Mas Billy acha ela bonita mesmo assim. Porque ela só precisa
ser bonita em comparação com o asfalto infinito e os outdoors e a traseira de
outros caminhões.
O dr. Mendez assente.
— Sim — ele diz baixo. — Muito bom.
— Então, Billy fica tentando criar coragem pra pedir o número dela. Ela já
sorriu e piscou pra ele, então ele acha que tem chance. Ele bebe um café
depois do outro, mais do que tem vontade, porque isso a leva para a mesa
dele. Ele está se perguntando quando a veria de novo caso criasse coragem.
Finalmente, ele amarela e desiste. Billy não é só um mau caminhoneiro,
também é o tipo de cara que desiste fácil. Ele deixa uma gorjeta generosa e
escreve “Você é linda!” na conta antes de pegar a estrada.
— Eu estava torcendo pro Billy — dr. Mendez diz. — Agora ele está
atrasado e não conseguiu a garota.
Em algum momento, passei a sentar na ponta da poltrona sem nem
perceber.
— Além disso, ele precisa parar toda hora para fazer xixi por causa de todo
o café que tomou esperando por uma chance para falar com a Tanya.
— Tammy.
— Ah, é. Tammy. Então ele está bem atrasado. Quando chega a Nashville,
era pra estar bem mais longe na estrada. Mas não está. Em vez disso, está
onde a Trupe do Molho bateu nele. Na frente dele, tem um furgão com uma
carga de almofadas de penas e isopor picado. Se eles tivessem batido naquele
furgão, teriam sobrevivido. Mas bateram no Billy. Maldito Billy.
Um longo silêncio se passa. Limpo uma mancha na minha calça.
— Nessa história, você não é a causa da morte deles — o dr. Mendez diz.
— Acho que não. Nessa história.
— Como você se sente depois de me contar?
— Como se eu estivesse mentindo pra nós dois.
— Por quê?
— Porque não foi isso que aconteceu.
— Como você sabe?
— Sabendo.
— Como?
— Sabendo.
— Como?
Suspiro.
— Tá, não sei.
Mais um longo momento pensativo se passa antes do dr. Mendez falar:
— Nossa mente busca causa e efeito porque isso sugere uma ordem no
universo que talvez não exista, mesmo se você acreditar em algum poder
superior. Muita gente prefere aceitar uma parcela indevida da culpa por
alguma tragédia do que aceitar que não existe ordem nas coisas. O caos é
assustador. É assustadora uma existência inconstante em que coisas ruins
acontecem a pessoas boas sem nenhum motivo lógico.
Definitivamente.
— Pareidolia — digo.
— Como é?
— Pareidolia. Uma das minhas palavras preferidas. É quando a mente
busca um padrão que reconhece onde não existe nenhum. Como ver um rosto
na lua. Ou formas nas nuvens.
O dr. Mendez sorri, mais para si mesmo.
— Pareidolia. Que palavra bonita.
— Pra algo que nem sempre é bonito.
— Pra algo que nem sempre é bonito.
VINTE E SEIS
Às vezes, esqueço por alguns segundos que eles se foram. Escuto alguma
coisa na escola sobre a próxima produção de dança ou de teatro. Leio sobre
um filme ou um videogame novo. Algo que dividiríamos. Existe uma faísca
de entusiasmo. E, tão rápido quanto surge, ela se evapora, como se o próprio
ar tivesse mais controle sobre a minha felicidade do que eu. Seria de esperar
que isso acontecesse com menos frequência quanto mais tempo passasse
depois da morte deles. Mas parece acontecer mais à medida que o verão se
entrega ao outono.
Ouvi dizer que pessoas que perderam um membro do corpo têm um
“membro-fantasma”, que coça e sente dor como se o corpo tivesse esquecido
que ele não está mais lá.
Eu tenho uma trindade de fantasmas.
VINTE E SETE
Estamos dentro, mas não deveríamos estar. Era para estarmos aproveitando o
fim de tarde perfeito de vinte e dois graus. O fim do verão é minha
miniestação favorita, com seus dias amenos: noites suaves e frescas com
grilos cantando devagar, e manhãs que são como seda fresca contra a pele.
Normalmente fico feliz sem motivo nessa época. Não neste ano.
Estamos na biblioteca Bellevue. É um prédio novo e moderno com dezenas
de pássaros entalhados com a madeira das árvores derrubadas do terreno da
biblioteca flutuando sobre nós, pendurados em cabos. O mesmo que fazemos
com nossa memória depois que nossa vida é esvaziada e terraplenada. Nós as
entalhamos como pássaros e as penduramos, como se ainda voassem de
verdade.
Jesmyn está sentada à minha frente. De fone de ouvido, assiste a algo
concentrada no notebook. Eu deveria estar trabalhando na minha redação
sobre Toni Morrison para a aula de literatura inglesa avançada, mas Jesmyn
me distrai. Ela pareceu irritada o dia todo. Tento decifrar sua expressão, mas
ainda não estou acostumado com todas as nuances dela.
Começa a fungar. Limpa os olhos rapidamente com os polegares. Fico em
dúvida se finjo não notar ou se digo alguma coisa. Decido dizer.
— Ei — sussurro.
— Ei — ela sussurra com a voz trêmula, secando os olhos de novo.
— Quer sair?
Ela assente e fecha o notebook. Enfia o computador na mochila sem fazer
contato visual, deixando o cabelo cobrir o rosto. Pego minhas coisas depressa
e a sigo pra fora, onde está sentada num banco, com a mochila aos seus pés.
— Eu fiz alguma coisa? — pergunto.
Ela fica em silêncio por vários segundos, observando os carros passarem.
Enfim, diz:
— Quero que seja completamente honesto comigo.
— Tá bom. — Me remexo, apreensivo.
— Você andou falando pras pessoas que a gente está ficando?
Fico gelado e minha boca seca.
— Não. Não. Como assim? Pra quem eu falaria?
— “Pra quem eu falaria” não é muito tranquilizador. Caras falariam pro
entregador de pizza se quisessem se gabar de pegar uma garota.
Estou me esforçando de maneira consciente pra parecer sincero, o que é
verdade. O problema é que, quanto mais você se esforça para parecer
confiável, menos realmente parece.
— Jesmyn, eu juro. O que você ouviu?
— Hoje, na aula de teoria musical, a Kerry comentou que ouviu um
pessoal falando que eu e você estávamos ficando, e que tínhamos começado
antes mesmo do Eli morrer.
Nada despe você e o deixa caído nu e machucado como descobrir que
alguém andou contando mentiras maldosas sobre você. Acho que é por isso
que as pessoas fazem esse tipo de coisa. Pessoas que odeiam você. Uma onda
crescente de fúria e humilhação sobe em meu peito.
— Nossa, quem será que anda espalhando uma fofoca dessas?
— Adair? Você acha?
— Ela odeia a gente pra caralho.
— Mas pra que mentir?
— Porque ela quer machucar a gente? Fico sinceramente surpreso por você
ter se voltado contra mim antes de se voltar contra ela.
— Bom.
— Não, sério. Mesmo se a gente estivesse ficando de verdade, eu nunca
contaria pra ninguém.
— A gente ainda está se conhecendo.
— Você deveria me conhecer melhor a essa altura. Cara, a Georgia me
treinou direitinho.
Jesmyn parece um pouco aliviada.
— Desculpa. É só que aconteceu isso na minha última escola. Comecei a
ficar com um garoto e a ex-namorada dele começou a falar pra todo mundo
que eu era uma vadia.
— Viu? As meninas são tão capazes de espalhar fofocas de merda quanto
os caras.
— Não disse que não eram.
— Sexista.
— Tanto faz.
— Estou muito arrependido de ter te colocado nessa história. — Mas não
arrependido demais.
— Que história? Ser amigos? Ah, tá bom. Vou ser amiga de quem eu
quiser. Adair vai ter que me engolir. Só não gosto de pessoas mentindo sobre
mim. — Mas, apesar do tom ousado, ela ainda parece chateada.
— Era só isso que estava te incomodando?
Ela mexe no bracelete. Suas unhas estão pintadas de cinza-escuro, quase
preto.
— Não.
— Quer conversar?
— Só se me prometer não tentar consertar o problema. Os garotos vivem
querendo consertar as coisas.
— Prometo. Na verdade, não só não vou tentar consertar as coisas como
prometo estragar ainda mais.
Ela ri.
— Não faça isso também. Só escute.
— Só escutando.
— Então, eu tenho uma condição neurológica chamada sinestesia.
— É aquele negócio em que…
— Em que um sentido estimula o outro. Então, quando toco ou escuto uma
música ou qualquer som, na verdade, eu vejo cores.
— Ah. Uau. Que incrível. Já ouvi falar disso.
— Mais ou menos. Às vezes é incrível. Mas nem sempre. Enfim, sabe
aquela música que estou ensaiando para minha audição na Juilliard? “Jeux
d’eau”? Eu mal conseguia ver a Martha Argerich tocando. É para soar
cristalina, azul-cobalto. Como… um vitral azul. É assim que soa quando ela
toca. Mas quando eu toco, o som é verde-amarronzado. Todo catarrento. É
nojento e horrível. Sinto uma dor física me escutando.
— O som é incrível quando você toca.
— Sem ofensa, cara, mas tenho que tocar pra pessoas com ouvidos muito
mais apurados que os seus.
— Você vai mandar bem.
— Bom, nos últimos dois meses, tudo o que toco tem cor de catarro. É
como se a morte do Eli tivesse quebrado alguma coisa dentro de mim e agora
tenho esse filtro estranho amarelo-esverdeado de doente em tudo o que faço.
É horrível ter algo que amo tanto parecendo absurdamente errado.
— Sei bem.
— Não sei o que fazer.
Em resposta, fico notavelmente imóvel e de boca fechada. Jesmyn me
encara com expectativa.
— Isso sou eu não fazendo nadinha para tentar consertar o problema —
murmuro pelo canto da boca.
Ela ri. Esse som se tornou um santuário para mim.
— Tá bom, pode me abraçar. É não consertador o bastante.
Levantamos e nos abraçamos, balançando um pouco.
— Seus abraços são bons — ela murmura.
— Cuidado pra não me deixar consertar alguma coisa sem querer.
— Não vou deixar.
— Sinto muito por você estar vendo o mundo através de lentes cor de
catarro nos últimos tempos.
— Eu também.
Ela recua e — talvez eu esteja imaginando, mas — passa o canto dos
lábios de leve pelas minhas bochechas. (Crescimento pessoal, então preciso
sentar com cuidado.)
Jesmyn se senta.
— Acha que me ajudaria se eu tivesse um dia de despedida para o Eli
como você fez com o Blake? Sem piadas sobre você não poder consertar
nada.
Por essa pergunta eu não esperava, considerando os últimos
acontecimentos.
— Talvez. Quero dizer, o Blake está definitivamente mais calmo na minha
cabeça do que antes.
— Talvez a gente devesse fazer um dia de despedida para o Eli com os
pais dele. Pode nos ajudar.
Por causa da Adair, isso nem tinha me passado pela cabeça. Acho a ideia
estranha.
— Quer que eu veja se eles topariam? — Estou torcendo para ela dizer
não.
— Talvez.
— E a Adair?
— Se a Adair for um problema, eles vão dizer não.
— E o que vamos fazer sobre a Adair em geral? Vamos tentar conversar
com ela?
— Depois de uma tentativa, não acho que isso vá ajudar muito.
Ficamos em um silêncio contemplativo, meus pensamentos borbulhantes
vêm à tona.
— Então — digo finalmente —, de que cor é a minha voz? Quando eu
falo?
Ela esfrega o queixo e estreita os olhos.
— Hummm. Normalmente cor de burro quando foge.
VINTE E OITO
No dia seguinte, depois do dia de aula mais longo da minha vida, estamos
todos sentados em volta da mesa de conferência do sr. Krantz. Meus pais
estão à minha esquerda. Tem uma cadeira vazia à minha direita para o sr.
Krantz. Uma câmera de vídeo repousa sobre um tripé no canto. Ninguém diz
nada.
Escuto vozes; gentilezas de fachada sendo trocadas. A recepcionista
conduz dois homens de calça social cáqui e casaco esportivo para dentro da
sala. Eles têm distintivos e armas nos cintos. Uma moça com um terno bem
preparado e um ar profissional igualmente bem preparado os segue.
O mais velho se apresenta.
— Carver? Tenente Dan Farmer. Obrigado por ter vindo.
Ah, de nada! Estou supercontente de estar aqui!
O homem mais novo se apresenta.
— Sargento Troy Metcalf.
A mulher dá um passo à frente.
— Carver, sou Alyssa Curtis. Assistente da promotoria do condado de
Davidson.
— Veio a turma toda — meu pai diz. Ele tenta parecer descontraído, como
se não tivéssemos nada com que nos preocupar, apesar do desprezo em sua
voz (o sotaque do meu pai funciona bem com desprezo). Há um riso
constrangido. Não do nosso lado da mesa. Meu estômago está cheio de
vespas.
Eles se sentam à minha frente. Encaro minhas mãos suadas. Ninguém abre
a boca. Por fim, o sr. Krantz entra, com os óculos na ponta do nariz,
segurando uma caderneta amarela. Nenhum dos oficiais nem a sra. Curtis
parecem especialmente contentes em ver o sr. Krantz. Mas todos se
cumprimentam.
— Bom — o sr. Krantz diz, sentando-se com um gemido e olhando para o
relógio. — Eu sou ocupado; meu cliente é ocupado; vocês todos são
ocupados… ou pelo menos deveriam ser. Então vamos começar.
— Muito bem — o tenente Farmer diz, apertando o botão da caneta. —
Carver, estamos aqui investigando o acidente que tirou as vidas de Thurgood
Edwards, Elias Bauer e Blake Lloyd no dia 1o de agosto deste ano. Por que
não nos conta tudo o que sabe sobre as circunstâncias desse acidente?
Engulo em seco. Quando estou prestes a falar, o sr. Krantz intervém. Ele
tira os óculos e os joga em cima da caderneta.
— Não, não, não. Você tem alguma pergunta específica? Então faça. Não
vou deixar meu cliente te contar de graça uma história de acampamento.
O tenente Farmer se contorce na cadeira.
— Carver, no momento do acidente, você estava ciente de que os três
falecidos estavam em um veículo?
Começo a responder, mas o sr. Krantz me interrompe.
— Meu cliente exerce seus direitos sob a Quinta Emenda da Constituição
dos Estados Unidos e Artigo Um, Seção Nove, da Constituição do Tennessee
e se recusa a responder.
O tenente Farmer solta uma respiração de lá-vamos-nós pelo nariz.
— Você mandou uma mensagem para Thurgood Edwards imediatamente
antes do acidente?
— Eu…
— Meu cliente exerce seus direitos sob a Quinta Emenda e o Artigo Um,
Seção Nove, e se recusa a responder.
— Você estava ciente de que Thurgood estava dirigindo no momento em
que você mandou uma mensagem pra ele?
Espero alguns segundos antes de tentar responder. Com razão.
— Meu cliente nunca falou pra vocês que mandou uma mensagem para o
sr. Edwards. Você disse isso. Além do mais, ele exerce seus direitos sob a
Quinta Emenda e o Artigo Um, Seção Nove, e se recusa a responder.
Sargento Metcalf suspira.
O tenente Farmer fala devagar:
— Olha, Carver, estamos só tentando chegar ao fundo dessa história. Não
estamos tentando armar pra você.
O sr. Krantz dá risada.
— Dan, você não pode fazer o policial bonzinho depois de já ter começado
como o policial malvado. Além disso, até parece. Você está tentando botar a
culpa de alguma coisa no meu cliente, um garoto, para a Sua Excelência
fechar o mandato. Vamos admitir do que isso se trata.
— Não estamos nos divertindo com isso, Jimmy.
— Não disse que estavam. Próxima pergunta. Não tenho muito tempo.
— Carver, com quem você falou sobre esse acidente?
Pausa. Espere pelo…
— Meu cliente exerce seus direitos sob a Quinta Emenda e o Artigo Um,
Seção Nove, e se recusa a responder.
— Jim — diz a sra. Curtis —, a cooperação de Carver ajudaria muito para
resolver essa situação ou dar a vocês uma moeda de troca mais pra frente.
Ainda mais se a nossa investigação acabar encontrando alguma coisa. Aí vai
ser tarde demais.
— Também ajudaria muito a dar a vocês a única chance que vocês têm.
Esta é a sua única oportunidade de conversar com Carver, então sugiro
agilidade.
O tenente Farmer crava os olhos em mim. Como se me provocasse para
desafiar o sr. Krantz e falar algo sem pensar.
— Carver, tem alguma coisa que você gostaria de ter feito de maneira
diferente no dia 1o de agosto?
Ah, as formas como eu poderia responder a essa pergunta. Ah, as formas
como essa pergunta passou a definir toda a minha existência. E minha
resposta chocante e surpreendente é…
— Meu cliente exerce seus direitos sob a Quinta Emenda e o Artigo Um,
Seção Nove, e se recusa a responder.
Lá vamos nós.
A sra. Curtis toca o braço do tenente Farmer e se levanta.
— Certo. Isso é um desperdício de tempo pra todos nós. — Ela me encara
feio. — Não posso prometer nada sobre como a promotora vai reagir à sua
falta de cooperação se decidirmos seguir em frente com o caso.
O tom dela me dá calafrios.
O sr. Krantz solta um riso cretino.
— Que caso? — Ele se levanta. — Pessoal, sempre um prazer. — Ele não
estende a mão. Tampouco os dois oficiais ou a sra. Curtis.
— Vamos entrar em contato — a sra. Curtis diz quando começam a sair.
— Assim espero. E, pessoal?
Os dois oficiais e a sra. Curtis se viram.
— Espero não ficar sabendo de nenhuma tentativa por baixo dos panos de
fazer Carver dizer algo que não deva. Nenhuma policial novinha com decote
disfarçada. Nenhum homem de meia-idade se passando por adolescente em
salas de bate-papo. Nenhuma manobra; nenhum lero-lero. Daqui em diante,
meu cliente está clara e inequivocamente exercendo seu direito de
permanecer em silêncio. Ele não está interessado em ajudar a ser massacrado
por Fred Edwards. Estamos entendidos?
Nenhum dos três responde. Eles saem.
O sr. Krantz olha para o relógio enquanto reúne suas coisas.
— Desculpa a pressa. Eu não estava brincando sobre ter pouco tempo. —
Ele me dá um tapinha no ombro e aperta. — Segura firme, rapaz.
Segura firme. É sempre um bom conselho, ainda mais porque sempre vem
quando você se sente pendurado à beira de um precipício.
Quando chego em casa, conto para Jesmyn que planejo conversar com os
pais do Eli sobre fazer um dia de despedida. O que não conto é que decidi
fazer isso porque estou preocupado com duas coisas: 1) ir para a prisão antes
de ter essa chance; 2) não ir para a prisão e ficar me corroendo por dentro
antes de ter essa chance. Enfim. É algo que prefiro fazer logo.
Fico nervoso de ligar para eles até lembrar que há pouco tempo informei
uma mãe pelo telefone de que o filho dela tinha morrido. Se consegui fazer
aquilo, acho que consigo fazer qualquer coisa. Em termos de telefone. Ainda
tem a Adair me deixando apreensivo, mas deixo isso para eles resolverem.
Pensei que teria de explicar mais, mas não preciso. Converso com a mãe
do Eli. Ela me conta que a vovó Betsy ligou para eles pouco depois do dia de
despedida do Blake e recomendou a experiência como terapêutica. Então eles
estavam considerando, mas estavam preocupados em como me abordar. E o
momento é perfeito, porque eles planejam espalhar as cinzas do Eli na
cachoeira Fall Creek neste outono. Acham que ele teria gostado disso. Ela me
fala para convidar Jesmyn. Falo que vou fazer isso.
Não falo que espero que isso permita que Eli finalmente descanse na
minha mente, porque a morte se torna real apenas quando as pessoas enfim
descansam.
VINTE E NOVE
— Me conta uma história. — É a primeira coisa que o dr. Mendez diz quando
nos sentamos nas poltronas. Pulamos toda a conversa fiada.
Vim preparado. Por que não? Eu sabia que ele tentaria me arrancar isso e
eu teria de inventar algo na hora.
— Em 2001, Hiro Takasagawa era um engenheiro de segurança na Nissan.
Na verdade, ele era um artista, construía esculturas móveis. Mas as pessoas
não compravam, então ele precisou fazer um trabalho de verdade de acordo
com as suas habilidades.
— O mundo é um lugar difícil para os artistas.
— Pois é. Mas Hiro adorava seu trabalho porque seus pais morreram num
acidente de carro quando ele era bem pequeno. Eles bateram na traseira de
um caminhão em uma estrada coberta de gelo. Ele queria evitar que isso
acontecesse com outras pessoas. Por isso, projetou um sistema de segurança
para carros em que havia um par de asas brancas mecânicas, asas de uma
grua, dobradas embaixo do carro. E havia… um sensor ou algo do tipo na
frente do carro e, se você estivesse se aproximando de um obstáculo rápido
demais, as asas se abririam e começariam a bater e levantar o carro sobre o
obstáculo. Ele planaria por um tempo e daria para dirigir no ar usando o
volante. Até você chegar a um lugar onde pudesse pousar com segurança.
O dr. Mendez parece realmente absorvido pela história.
— Em 2001. Você foi bem específico em relação a isso.
— Então, Hiro levou a ideia pro chefe dele. A ideia era começar a colocar
aquilo nos Nissans 2002. Mas o chefe ficou furioso: “Takasagawa, você tem
noção do quanto isso vai custar?”, ele perguntou. “Mas funciona”, Hiro disse.
“Construí um protótipo e testei. Quanto custa a vida das pessoas?” E o chefe
falou: “Seu idiota! Estamos dirigindo uma empresa aqui. Você desperdiçou
tempo e dinheiro com isso?! Você está demitido!”. — Estou entrando na
história. Estou fazendo vozes diferentes pro Hiro e pro chefe.
— Como chamava o chefe? — o dr. Mendez pergunta.
— Yoshikazu Hanawa. Presidente da Nissan em 2001. Eu pesquisei.
— Ótimo — o dr. Mendez fala baixo. — Muito bom. Desculpa. Por favor.
— Ele faz sinal para eu continuar.
Respiro fundo.
— Então, Hiro sai devastado da sala do Hanawa. Acha que falhou com
seus pais e desonrou a si mesmo. Entra no carro e sai dirigindo. Planeja se
suicidar. Tenta bater o carro na lateral de um prédio, mas, no último segundo,
um par de asas reluzentes de grua surge debaixo do carro. E o engraçado é
que ele não estava dirigindo o protótipo. Elas simplesmente surgiram. Elas o
levam para o alto, para o alto, por cima do prédio, rumo ao céu. E ele nunca
mais desceu. Ainda está voando naquelas asas.
Há uma longa pausa antes do dr. Mendez dizer:
— E Mars dirigia…
— Uma Nissan Maxima 2002.
— Não equipado com as asas de Hiro.
— Teriam sido caras demais.
— Mas, se o sr. Hanawa tivesse aprovado a ideia de Hiro…
— Então, mesmo com Mars me mandando mensagem, as asas o fariam
passar por cima do caminhão.
— O caminhão de Billy Scruggs.
— Exato.
— Independentemente do que você fez ou deixou de fazer.
— Exato.
— Como se sente contando essa história?
— Ainda como se eu estivesse mentindo pra mim e tentando botar a culpa
em outra pessoa.
— Por quê?
— Porque sim. A história de Hiro não aconteceu de verdade.
O dr. Mendez inclina a cabeça com um brilho no olhar e vejo a pergunta.
— Tá — murmuro. — Não tenho como saber.
O dr. Mendez abre um sorriso largo.
— Então. Como você está?
Mordo a parte de dentro do lábio.
— Conversei com policiais sobre o acidente outro dia. Quero dizer, sentei
numa sala com os policiais enquanto eles faziam perguntas que meu
advogado falava que eu não iria responder.
— Não estou acostumado a elogiar meus clientes por se recusarem a falar,
mas bom trabalho.
— Por que bom trabalho?
— Lembra do que discutimos na última visita? Como buscamos causa e
efeito onde talvez não exista?
— Você pensa que eu não deveria aceitar a culpa agora.
— O que eu penso não importa. O que importa é o que você pensa. Estou
tentando ajudar você a pensar no seu melhor. Quero ter certeza de que você
considerou outras perspectivas antes de dar um passo que possa ter
consequências drásticas.
— Estou com medo.
— Do quê?
— De ir pra cadeia.
— Imagino. — Ele franze a testa.
Me afundo na poltrona.
— Soaria estranho se eu dissesse que também estou com medo de não ir
pra cadeia?
— Sabe por que você está com medo disso?
— Não sei totalmente.
— Em parte porque você sente que isso tiraria de você uma oportunidade
de se redimir?
— Talvez.
O dr. Mendez não diz nada, mas sua expressão me fala que devo continuar
seguindo por esse caminho.
— Falando em remissão — digo —, vou fazer outro dia de despedida.
Com os pais do Eli.
— Você disse que a experiência com a avó do Blake foi importante.
— Foi.
— Depois de viver com essa experiência por um tempo, você tem alguma
reflexão sobre ela?
Fico observando a estante atrás do dr. Mendez, como se a lombada de um
livro tivesse a resposta à pergunta dele.
— Me… me fez querer ainda mais que eu tivesse aproveitado melhor o
tempo que tive com eles enquanto pude.
— É um arrependimento muito comum de se ter. Você não quer viver
constantemente à sombra da morte, mas, a menos que faça isso, sempre vai
haver coisas que não foram ditas ou aproveitadas por completo. Se achou a
experiência do dia de despedida terapêutica, sou a favor de que faça com os
pais de Eli.
— Tá.
Ele me lança um olhar que costuma vir antes de quando está prestes a
entrar dentro da minha cabeça.
— Mas você tem ressalvas.
— Tenho.
— Por quê?
— Porque a família do Eli é muito diferente da avó do Blake.
— Em que aspecto?
— Tipo… filosoficamente, acho. O mundo deles é muito mais complicado.
Os dois são muito estudados. Com a avó do Blake, tem Deus, céu, inferno e
só. Os pais do Eli… duvido que eles acreditem que vão voltar a ver o Eli
como a avó do Blake acredita que vai encontrar com ele de novo. Eles
definitivamente não frequentam a igreja. Além disso, o Eli tem uma irmã
gêmea. A Adair. Ela me culpa.
— Hummm.
— Não sei direito qual é a posição dos pais do Eli sobre a questão da
culpa.
— Imagino que, se eles responsabilizassem você, não aceitariam a ideia e
pronto.
— Talvez. Outra coisa é que fiquei muito próximo da Jesmyn, namorada
do Eli. Ex-namorada. Viúva-namorada. Sei lá como chama o que ela é.
— E isso te preocupa por quê?
— Não quero que pareça que estou tentando tirar algo do Eli. Não estou. Já
tem fofocas na escola. Suspeito que foi Adair que espalhou.
— Essa é a mesma Jesmyn que teria me dado bronca, com razão, pela
minha piada machista infeliz na última visita?
— Exato. Boa memória.
O dr. Mendez faz um triângulo com os dedos em frente à boca.
— Pelo pouco que você me falou dela, ela não aceitaria a ideia de ser dada
ou tirada de alguém.
— Ah, com certeza não.
— Então, o que você ou os pais de Eli pensam sobre sua relação com ela é
irrelevante. Ela nunca se permitiria estar em um relacionamento que não
quisesse. É justo dizer isso?
— Com certeza. Mas somos só amigos. — Sempre parece errado dizer
isso. Tirando as ereções (vamos ser sinceros: um anúncio de lingerie de loja
de departamentos pode movimentar as coisas lá embaixo sob as
circunstâncias certas), não acho que sejamos nada além de amigos. Mas
dividimos uma intimidade emocional que nunca tive com nenhum amigo
antes, então não sei se “só amigos” descreve totalmente o que somos.
— Entendo.
— Converso com ela sobre tudo isso mais do que converso com os meus
pais.
— Seus pais estão dispostos a ouvir?
— Sim. Mas não sou muito de conversar com eles. Tenho dificuldade em
ser vulnerável com eles. Não é nada que eles fizeram. Acho que… Não quero
desapontá-los ou coisa assim. Só quero ser independente? Gosto do meu
espaço? Talvez eu seja esquisito, sei lá.
Dr. Mendez balança a cabeça.
— Não, de jeito nenhum. Olha, eu sou formado em conversar com as
pessoas e, mesmo assim, meu filho, Ruben, que é um pouco mais velho que
você, não fala muito comigo. Isso não faz de você esquisito.
Alguns segundos se passam.
— Permitir ser vulnerável com seus pais e se abrir com eles é algo que
podemos trabalhar — o dr. Mendez diz.
— Sim. Mas já tenho muita coisa pra lidar agora.
— Eu sei. Mais pra frente.
— Vou ficar bem algum dia? — pergunto.
— Espero que sim. Vai levar tempo e trabalho. Mas um dia você vai estar
melhor. Nunca achei que fosse uma questão de se livrar de um sentimento,
mas sim de conviver com ele. Torná-lo uma parte de você que não doa tanto.
Sabe como as ostras fazem pérolas?
— Sim.
— Da mesma forma — ele diz. — Nossa memória dos entes queridos é a
pérola que formamos em volta do grão de luto que nos causa dor.
Reflito sobre isso por um tempo antes de voltar a falar.
— Lembrei de uma coisa engraçada e aleatória.
— Eu gosto de coisas engraçadas e aleatórias.
— O pai da Jesmyn trabalha na Nissan. Assim como o Hiro. Foi por isso
que eles se mudaram pra cá.
O dr. Mendez responde com um sorriso.
TRINTA
Melissa atende a porta. Ela está vestida para um dia ao ar livre. Calça de
trilha, tênis de corrida, um colete térmico. Seu cabelo escuro e encaracolado
está preso em um rabo de cavalo. Lembro de Eli me contando que ela era
uma corredora ávida. Ela tem o mesmo ar que a vovó Betsy tinha — distante,
assombrado.
— Entrem. É bom ver vocês.
— Oi, Melissa — digo. Parece errado chamar uma neurocirurgiã pelo
primeiro nome, mas Eli e Adair sempre chamavam os pais de Melissa e
Pierce, então…
A casa está quase igual como me lembro. Tem até o mesmo cheiro — a
mãe de Eli adora velas que cheiram a uma mistura de chá preto, folhas de
tabaco e couro —, abrindo ainda mais portas da memória.
Vejo uma dor parecida no rosto de Jesmyn.
— Ei — sussurro.
— Ei — ela responde com outro sussurro.
Seguimos Melissa até a cozinha. Uma série de pães e de croissants está
empilhada num prato. Ela faz sinal para nos servirmos.
— Essas são algumas das coisas favoritas do Eli da padaria Provence. A
gente ia lá todo sábado de manhã em que eu não trabalhava, quando o tempo
estava bom. Ainda vamos com a Adair. Jesmyn, você foi com a gente uma
vez, não foi?
Ela assente.
— Comi um croissant de chocolate.
— Compramos desse tipo também — Melissa diz.
Eu e Jesmyn pegamos um croissant de chocolate cada, e começamos a
comer enquanto Melissa, sem dizer nada, faz um suco de laranja natural e
coloca alguns copos à nossa frente.
— O Pierce vem? — Jesmyn pergunta.
— Ah… sim. Ele saiu pra fazer algumas coisas. Deve chegar daqui a
pouco.
— E a Adair? — pergunto, hesitante. — Ela vem?
Melissa suspira e faz uma pausa.
— A Adair é… complicada.
Nossa, você acha?
— A gente chamou. Ela se recusou. Passou a noite na casa de uma amiga
— Melissa continua. — Está lá até agora. Não está pronta para nada disso. É
diferente com gêmeos. Eu e o Pierce nunca entendemos direito o laço deles.
Não tínhamos como entender.
— Este dia vai dificultar as coisas com ela? — Jesmyn pergunta.
Melissa vira de costas para nós e limpa a bancada já impecável.
— Na verdade, é engraçado. Adair insistiu para irmos, mesmo não
querendo ir. Mas decidimos não espalhar as cinzas de Eli como estávamos
planejando. Não sem ela. Vamos fazer isso num outro momento.
Por que a Adair queria que seus pais fizessem isso? Isso deveria me fazer
me sentir melhor, mas não faz.
— Podemos cancelar se quiser — digo.
— Não — Melissa diz baixo, mas firme. — Eu quero fazer isso. É bom
confrontar os sentimentos. Vocês dois conheceram o Eli de formas que não
conhecemos, nem mesmo Adair. — Ela pega um pote cheio de areia colorida.
— Em vez disso, vamos espalhar isto aqui na cachoeira. Foi uma das
primeiras coisas que Eli fez pra mim na pré-escola. Contém sua energia
criativa. Essa vai ser nossa cerimônia.
A atmosfera é tensa. A família do Eli nunca foi do tipo fofinha. Então
comemos, e eu e Jesmyn trocamos alguns olhares de apoio.
Uns cinco minutos depois, ouvimos a porta da frente se abrir e Pierce
entra, vestido para o ar livre também. Ele parece desgrenhado. Exausto.
Definhado, especialmente no rosto.
— Oi, pessoal — ele diz. Embora eu não tenha a sinestesia de Jesmyn, a
voz dele me soa cinza.
Pierce se aproxima e dá um beijo na bochecha de Melissa. Ela abre um
sorriso discreto, mais apertando os lábios do que erguendo os cantos da boca.
— Se sirva — Melissa diz.
— Não, estou bem — Pierce responde.
— Obrigada por fazerem isso — Jesmyn agradece. — É bom ver vocês de
novo. Estava com saudades.
Melissa dá um sorriso mais caloroso para ela.
— Também estávamos com saudade. Adorávamos ter você por perto.
— Então — Jesmyn diz —, não sei direito como isso funciona, mas posso
contar pra vocês exatamente como conheci o Eli, se estiverem interessados.
— Adoraríamos ouvir — Pierce diz. — Temos uma vaga ideia, mas só do
lado do Eli. Não do seu.
Jesmyn dá um gole no suco de laranja e limpa a boca.
— Notei Eli no primeiro dia do acampamento de rock. Tivemos que sentar
em círculo no palco do auditório. Os orientadores tentavam nos ensinar uma
“aeróbica punk rock”, mas eu ficava toda hora distraída olhando pra ele. Ele
estava bem na minha frente. Achei o cabelo dele bonito. Longo, escuro e
cacheado. Me lembrou do Jon Snow do Game of Thrones.
— Eu tinha tanto medo de ele herdar meu cabelo, e claro que herdou —
Melissa diz. — Pentear era um drama sem fim quando ele era pequeno.
Jesmyn continua.
— Mas tirei isso da cabeça porque eu estava lá pra fazer música, não pra
arranjar um namorado. Enfim, eles nos dividiram em bandas e claro que…
— Vocês ficaram na mesma banda — Pierce diz. — Foi tudo o que Eli nos
contou.
— Pensei “Não importa”, porque guitarristas costumam ser um saco.
Beleza, ele é bonito, mas e daí? Então começamos a trabalhar na nossa
música pra apresentação e, de repente, ele vem com uma ideia. Eu e ele
tocamos essa melodia ascendente e descendente de guitarra e teclado, e ele
vai harmonizando comigo. Pensamos num jeito e tentamos. É um vermelho-
laranja-rosa quente.
— Carver, você sabe sobre a sinestesia da Jesmyn? — Melissa pergunta.
Faço que sim, estranhamente magoado pela mãe de Eli saber disso antes de
mim. É bobagem, porque ela é a mãe do Eli e cirurgiã cerebral, mas mesmo
assim…
— Eu adorava ver essa cor, então ficava insistindo para o Eli repetir essa
parte comigo de novo e de novo. Em nenhum momento achei que ele estava
dando em cima de mim. Ele foi um perfeito cavalheiro. Fui eu que fui atrás
dele. No fim da semana, a gente estava inseparável. Vocês deviam ver o
ataque que dei quando descobri que a gente iria pra mesma escola.
A história é um picador de gelo entrando devagar entre as minhas costelas.
Mas de um jeito diferente de como foram as histórias do Blake. Fixo o olhar
no meu prato como se a resposta para algum mistério estivesse naquelas
migalhas. Tenho medo de erguer os olhos, porque não quero que ninguém me
pergunte o que estou sentindo. Eu não saberia dizer.
Comemos por mais alguns minutos, trechos de conversas vazias e tensas
emergindo e voltando a se afundar. Quando Pierce sugere para sairmos, estou
quase torcendo para que Jesmyn tenha outra história dela correndo atrás do
Eli, já que a primeira, mesmo me deixando incomodado, pareceu aliviar o
resto da tensão.
Embrulhamos os pães. Estamos quase saindo pela porta quando Pierce nos
detém.
— Esperem. — A voz dele soa ainda mais carregada; nuvens de chuva à
beira do dilúvio. — Estamos prestes a tirar parte do Eli desta casa pela última
vez. Esta é a casa em que o criamos. No dia em que trouxemos o Eli e a
Adair recém-nascidos do hospital pra casa… — Ele para e tosse,
recompondo-se. Tenta recomeçar, mas vacila. Finalmente, limpa a garganta e
diz: — Melissa estava amamentando Adair. Então sentei lá fora na varanda
com o Eli e deixei o vento tocar seu rosto pela primeira vez. Eu percebi ele
ouvindo as árvores farfalhando pela primeira vez. É uma coisa incrível: ver
um ser humano sentir o vento pela primeira vez. Ele abriu os olhos só uma
vez, semicerrando-os para mim. Me perguntei quantas outras coisas deste
mundo eu mostraria pra ele.
Eu não tinha considerado esta diferença entre o dia de despedida do Blake
e o do Eli: os pais do Eli têm histórias de bebê.
Vamos para a varanda, onde a brisa ficou mais forte, soprando nosso
cabelo.
Pierce para.
— Pessoal, o plano era espalhar a areia nas cachoeiras, mas podemos
deixar uma parte aqui?
Todos concordamos. Melissa se mantinha impassível. Como uma cirurgiã
que lida com morte e moribundos todos os dias, imagino que ela não tenha
muito espaço para sentimentalismo. Mas lágrimas escorrem por suas
bochechas.
Pierce abre o jarro e tira uma pitada de areia. Então devolve essa pequena
parte do espírito de Eli para o vento que um dia tocou seu rosto.
Mando uma mensagem para Jesmyn quase assim que chego em casa
depois de deixá-la na dela. Agradeço pela ajuda durante mais um ataque de
pânico. Agradeço por ter me deixado emprestar meu casaco a ela, porque não
queria vê-la molhada e com frio. Falo para ela como sinto saudades do Eli.
Falo da primeira parte do que Pierce me falou no banheiro. Falo que estou
contente de poder ter visto a cachoeira Fall Creek antes de talvez ser preso.
Falo tudo para ela, menos o que mais quero falar.
TRINTA E TRÊS
Meu sangue urra nos meus ouvidos no momento em que a diretora entra na
sala de biologia avançada, interrompendo a aula sobre fotossíntese. Ela
chama meu professor de lado e eles conversam em sussurros sigilosos e
urgentes, lançando olhares furtivos para mim. A diretora volta para o
corredor.
— Hum, Carver? — meu professor chama.
Não é nenhuma surpresa. Vou para a frente da sala, com a adrenalina
queimando minhas costelas.
— Pode pegar suas coisas?
Todo mundo se vira nas cadeiras, seus olhares repuxando minha pele.
Escuto seus murmúrios. Meu rosto queima. Volto para minha carteira, pego
minhas coisas e saio da sala de cabeça baixa.
A diretora me espera no corredor.
— Carver, desculpa tirar você da aula. Tem dois detetives aqui que
precisam falar com você. Se puder vir comigo.
Meu coração se encolhe na forma de uma bola de aço gelada. Minha
cabeça gira, delirante. Eles estão aqui para finalmente me prender.
Encontraram alguma evidência. Acabou pra mim.
Faço que sim e sigo a diretora até a secretaria. O tenente Farmer e o
sargento Metcalf estão lá. Não digo nada. Nem mesmo oi. O tenente Farmer
segura dois envelopes grandes. Ele me entrega um.
Pego como se estivesse cheio de aranhas.
— Carver, esse é um mandado de busca e apreensão de arquivos
eletrônicos no seu celular e notebook. Enviamos uma cópia por fax para o seu
advogado. Ele deu uma olhada. Fique à vontade para ligar pra ele ou ler o
documento.
Não digo nada, mas abro o envelope e tiro o papel de dentro, como se eu
conseguisse atestar se é legítimo. Parece.
— E? — pergunto.
O sargento Metcalf estende um saco.
— O celular aqui. O nome disso é saco de Faraday e bloqueia as
transmissões saindo e entrando do seu celular, então nem se dê ao trabalho de
limpar quaisquer informações remotamente.
Tiro a arma do crime do bolso e a jogo no saco.
— O que vou fazer sem meu celular? — Não vou ter meu celular pro show
do Dearly.
O tenente Farmer ri com sarcasmo.
— A polícia do Estado vai tirar coisas dele durante uma ou duas semanas;
nesse meio-tempo, você vai ter que se virar. Gerações de adolescentes
sobreviveram sem celular antes de você.
— Notebook também, por favor — diz o sargento Metcalf. Ele estende
uma versão maior do saco em que coloquei o celular.
Tiro o notebook da mochila e o entrego.
— E as lições de casa que tenho aí? Além disso, tem um monte de contos e
coisas que escrevi.
A diretora intervém:
— Carver, você não vai ser cobrado por nenhuma tarefa de casa que esteja
no seu computador.
— Não precisa ter receio de algum arquivo ser apagado — diz o sargento
Metcalf. — O trabalho do Departamento de Investigação do Tennessee é
garantir que nada seja deletado do seu notebook.
— Tá bom. É só isso. Posso… — começo a dizer.
O tenente Farmer me estende outro envelope.
— Este é um mandado de busca para o seu quarto. Vamos direto daqui
para a sua casa. Acabamos de falar com a sua mãe e ela vai nos encontrar lá.
Também conversamos sobre isso com o seu advogado, mas fique à vontade
para ligar pra ele.
— Como vou ligar com o meu celular no saco ali? — Sei que estou sendo
sarcástico, mas o comportamento deles, essa história de virem até a minha
escola, parece calculado para me intimidar. Está funcionando, e sinto raiva
deles por isso.
— Pode usar os telefones da escola — a diretora diz.
Ligo para o sr. Krantz. Ele está a caminho do tribunal. Fala pra eu ir para
casa supervisionar a busca dos oficiais e filmar tudo.
A diretora me dispensa pelo resto do dia. Vou de carro para casa. Quando
chego, minha mãe já está lá e alguns policiais à paisana acabaram de
estacionar. Falo para ela filmar com o celular dela, e é o que faz.
Eles reviram cada centímetro do meu quarto. Erguem cada livro e
folheiam. Olham embaixo do meu cobertor. Buscam em todas as minhas
gavetas. Analisam meu cesto de roupas com luvas de borracha. Tiram cada
foto e pôster da parede e olham atrás. Desparafusam a luminária e espiam
dentro dela. Abrem as entradas de ar e apalpam em volta dos dutos. Acho que
considerando a hipótese de eu ter escrito “matei meus três melhores amigos
de propósito” num papelzinho e ter enfiado ali dentro. Eles me perguntam se
tenho um diário. Não tenho, mas não respondo e fico olhando pra cara deles,
confiante de que é isso que o sr. Krantz me aconselharia a fazer. Eles
encontram um pen drive e meu iPod e os guardam em sacos. Levam alguns
dos cadernos em que escrevo ideias de contos.
Vendo tudo, sinto como se estivessem revirando minhas tripas, arrancando
a carne dos meus ossos. Abutres numa carcaça. Sua fome: destruir minha
vida mais do que já foi destruída.
TRINTA E QUATRO
Estou à flor da pele quando sento diante do dr. Mendez. Estava temendo esta
visita porque sei a primeira coisa que ele vai dizer.
— Me conta uma história — ele diz.
— Não.
A expressão dele não se altera. Ele seria um ótimo jogador de pôquer. Ele
inclina a cabeça para o lado e deixa o silêncio respirar, esperando que eu me
explique. Mas não digo nada.
— Por que não? — pergunta finalmente.
— As pessoas contam histórias para criar uma onde não existe nenhuma.
Já existe uma história aqui. Sabemos o que aconteceu.
— Sabemos? — o dr. Mendez continua muito imóvel. Não apenas uma
falta de movimento passiva. É mais profundo que isso. Está ativamente
imóvel.
Não consigo mais ficar sentado. Levanto e ando de um lado para o outro.
— Sim. Mandei mensagem para o Mars e sabia que ele responderia, e ele
tentou fazer exatamente o que eu sabia que ele faria, e meus amigos
morreram por causa disso.
— E quanto ao Billy? O Hiro?
Estou elevando a voz. É satisfatório alimentar este silêncio com raiva,
botar fogo neste pasto calmo.
— Eles não existem. São frutos da minha imaginação. São uma mentira
que estou contando pra nós dois. Eu sei disso e a polícia também sabe. Aliás,
eles estão com o meu celular e com o meu notebook agora, então tomara que
não tenha tentado me ligar. Eles vasculharam meu quarto. Eu vou pra cadeia.
— Eles te disseram isso?
— Assim, basicamente.
— Sinto muito por isso estar acontecendo.
— Eu também.
— Se eu tivesse uma varinha para fazer isso tudo desaparecer pra você, eu
faria.
— Tente arranjar uma então.
O dr. Mendez continua me encarando firme de trás de seus óculos
retangulares de aro transparente.
— Você comentou que faria um dia de despedida para o Eli.
Paro na frente da minha poltrona e me jogo nela, fazendo-a escorregar
alguns centímetros para trás.
— Sim.
— Você fez?
— Sim.
— Como foi?
— Ah. Fantástico. — Pontuo “fantástico” com dois joinhas ácidos e
irônicos.
O sorriso plácido do dr. Mendez faz eu me arrepender na hora do meu
sarcasmo e da minha raiva.
— Desculpa — murmuro.
— Tudo bem.
— Foi um desastre.
Pausa. Espera.
Então continuo:
— Os pais do Eli… têm problemas. Faz tempo que eles não se dão bem.
Agora vão se divorciar. Disseram que não foi por causa do que aconteceu,
mas é. E foi superconstrangedor ficar com eles. Além disso, o pai do Eli
basicamente me considera responsável. Ah, mas ele não quer que eu vá pra
prisão e não me odeia tanto quanto a irmã do Eli, que definitivamente quer
me ver pular a prisão e ir direto pra cadeira elétrica. E, claro, a irmã do Eli
não foi ao dia de despedida, mas queria muito que os pais dela fossem por
algum motivo. Foi uma situação muito estranha.
— Imagino que drasticamente distinta da experiência com a avó do Blake.
— Pois é. Além disso, tive outro ataque de pânico. Num banheiro imundo
pra cacete. Meu segundo na frente da Jesmyn.
— Sinto muito.
Minhas pernas começam a se agitar.
— Estou cansado dos ataques de pânico. Estou tomando o Zoloft como
você prescreveu.
O dr. Mendez assente e levanta. Volta à sua mesa, abre uma gaveta
trancada, pega uma caderneta e volta, senta e começa a escrever.
— Vou aumentar sua dosagem de Zoloft. — Ele tira a prescrição da
caderneta e me estende a receita.
Fico imóvel, olhando para o papel. Mas não estendo a mão para pegar.
— Isso vai parar com os ataques?
— Se não parar, vai ser um passo na direção certa. Vamos resolver isso.
— Até lá, sento aqui e conto histórias. — Finalmente, pego a prescrição.
O dr. Mendez deixa a caderneta de prescrição na mesinha ao lado, se
recosta e cruza as pernas, entrelaçando as mãos na frente do corpo e
pousando o cotovelo no joelho.
— Juro que existe um método nessa loucura aparente. Você confia em
mim quando digo isso?
— Acho que sim. — Mal consigo ouvir minha própria voz.
— Acredita em mim se eu disser que o objetivo do nosso trabalho aqui, o
objetivo dessas histórias, não é pedir pra você mentir para si mesmo nem pra
ninguém?
— É a sensação que dá, mas acredito, sim.
— E não é sugerir que não temos responsabilidade por nossas ações.
— Tá bom.
— Se eu disser pra você que tenho bons motivos para crer que isso pode
ajudar, você acredita?
— Sim.
— Juro pra você: se não funcionar, vamos tentar outra coisa.
Esta é uma das únicas coisas na sua vida que não está tentando destruir
você. Meus olhos se enchem de lágrimas e abaixo a cabeça.
— Tudo bem. — Suspiro voltado para o chão.
— Me conta sobre o dia de despedida do Eli. Parece uma experiência de
confrontação. Pessoas. Emoções.
— Pois é.
— Você conseguiu confrontar alguma coisa que não tinha conseguido
confrontar antes?
— Hum. Sim. — Encaro o tapete. Ergo os olhos e o dr. Mendez está
observando, à espera. — Eu… percebi que talvez sinta alguma coisa pela
Jesmyn.
— Imagino que isso gere questões complicadas.
— Você acha? — A calma do dr. Mendez não alimenta o meu sarcasmo.
— Uma hora, o pai do Eli estava todo: “Ah, a propósito, estou percebendo
como você olha pra ela e não quero nunca ver você saindo com a namorada
do meu filho morto”.
— E gera questões emocionais dentro de você?
— Óbvio. Tem isso também.
Ele esfrega o queixo e bate nos lábios com o indicador.
— Será que algum grande componente da culpa que você alimenta está
relacionado ao seu afeto crescente pela Jesmyn?
— Pode ser. — É um pouco mais do que “pode ser”, mas não preciso
revelar o quanto exatamente esse cara entrou na minha cabeça.
— Nem todas as experiências precisam nos ensinar a mesma coisa. Não
tem problema se o dia de despedida do Eli permitiu que você confrontasse
um lado diferente de seu ser emocional do que o dia de despedida do Blake.
— Acho que sim.
— Então… Me conta uma história?
— Quero que você me diga exatamente como lidar com a questão da
Jesmyn.
— Queria ter uma resposta simples. Não estou apenas sendo recatado aqui.
— Eu aceitaria até uma resposta complexa — murmuro. — Qualquer
resposta.
— Estou seguro de que alguma vai se apresentar no devido tempo. Às
vezes, as respostas surgem por um processo de eliminação.
Dou uma risada triste.
— Estou me esforçando bastante em eliminar todas as respostas que me
permitam me sentir um ser humano normal e feliz. Mas quer ouvir algo
curioso?
Ele arqueia as sobrancelhas e assente para eu continuar.
— Quando o pai do Eli me falou que me considera responsável, eu não
quis aceitar a responsabilidade como fiz com a avó do Blake.
— O que você estava sentindo?
— Queria contar pra ele sobre Billy e Hiro. Apesar de ser idiota e eles não
existirem. — Lágrimas turvam minha visão.
O dr. Mendez me dá um momento para eu me recompor. Depois se recosta
na cadeira e se acomoda.
— Que tal me contar uma história?
Suspiro e olho dentro da geladeira da minha imaginação por alguns
segundos.
— Então, tem um cara chamado… Jiminy Merdeira.
TRINTA E CINCO
Agora, além de todo o resto, Jesmyn também não sai da minha cabeça. O dia
de despedida do Eli abriu uma porta que não consigo fechar de novo.
Não que eu tenha me esforçado muito.
TRINTA E SEIS
— Não, espera aí. Você não vai pra um show esgotado do Dearly com uma
garota bonita vestido feito um Ernest Hemingway deprimido — Georgia fala.
Dou de ombros.
— Ah.
— Ah, nada. Você tem a sorte de eu, Maddie e Lana termos vindo de
Knoxville a tempo de resolver isso. O show começa às oito. Vamos levar
você pro shopping Opry Mills.
Diminuo minha voz para um sussurro rouco; consigo ouvi-las conversando
e rindo no quarto da Georgia.
— Maddie e Lana sempre me assediam sexualmente.
— Ah, faça-me o favor! Você adora a atenção de garotas universitárias.
— Não, não adoro. Parece que elas sempre estão me zoando.
— Elas estão.
— Viu?
— Mesmo assim, você adora.
A fila de autógrafos é quilométrica, mas está claro que não vamos sair até
Jesmyn ter um pôster assinado.
Finalmente, chegamos à frente da fila, onde Dearly está sentado atrás de
uma mesa, assinando camisetas, pôsteres, CDs e uma ou outra parte do corpo.
Jesmyn compra um pôster e o entrega para Dearly com as mãos trêmulas.
Ele exala uma confiança tranquila. Imagino que eu teria a mesma confiança
se fizesse o que ele faz na frente de multidões de fãs gritando seu nome.
— Oi. Espero que tenham se divertido hoje — ele diz, com um traço súbito
de timidez ao encarar os olhos dela.
Jesmyn ri e passa a mão no cabelo.
— Ah, sim, total. Foi incrível — ela balbucia.
O jeito como está toda nervosa e sorridente olhando para ele. Meu
estômago se revira de novo.
— Semana passada a gente estava perto de onde você cresceu — Jesmyn
diz enquanto Dearly assina seu pôster.
Ele ergue os olhos com um pequeno sorriso triste.
— Ah, é? Não vou muito pra lá.
Jesmyn arruma uma mecha de cabelo atrás da orelha.
— Então… eu também sou musicista.
— Legal — diz Dearly. — Toca o quê?
— Piano clássico. Mas também componho e gravo músicas.
— Cara, a música era meu refúgio quando eu tinha a sua idade.
— Eu adoraria tocar teclado pra você depois que terminar a faculdade —
Jesmyn diz.
O tom meloso dela faz meu sangue ferver.
Dearly se vira para um homem atrás dele, conversando com algumas
moças bonitas que parecem VIPs.
— Will? Ei, Will? Me dá seu cartão. — O homem dá um cartão para
Dearly.
Dearly se vira e passa o cartão para Jesmyn.
— Quando terminar a faculdade, entre em contato com o Will. Ele é meu
empresário. Mas só quando terminar a faculdade, hein?
— Tá — Jesmyn diz, sem ar. — Então. Mais uma coisa. Aquela música
que você tocou para o seu amigo significou muito pra gente. Acabei de
perder meu namorado, que era o melhor amigo dele. — Ela aponta para mim.
Constrangido, passo o peso de um pé pro outro, tentando parecer relaxado.
— Sinto muito — Dearly fala baixo. — Já passei por isso. — Um
sentimento diferente substitui seu acanhamento. — Espero que encontrem
paz em algum momento.
— Você encontrou? — Jesmyn pergunta.
Dearly está com um olhar distante e saudoso.
— Ainda não.
— Alguma dica? — Jesmyn ignora a impaciência evidente das pessoas
atrás de nós.
Dearly também ignora.
— Continue com as pessoas que você ama e que amam você. Continue
com a música.
— Parece um bom conselho — Jesmyn diz. — Enfim, o show foi incrível.
Obrigada.
Dearly nos agradece pela presença e saímos, abrindo espaço para os
próximos devotos na fila receberem a Comunhão.
— Tá, estou, tipo, vibrando agora. Acho que vou passar a noite inteira
acordada tocando. Foi muito intenso — Jesmyn diz.
— Sim, foi legal — digo sem convicção nenhuma, fingindo me concentrar
na estrada.
— Tipo, não achou alucinante?
— Pshiu. — Faço um movimento como se minha cabeça explodisse.
— Como alguém consegue ser tão talentoso?
— É, pensei que você fosse pedir o Dearly em casamento. — Espero que
ela perceba o comentário como uma piada, para que eu possa falar de maneira
inconsequente. Mas até eu noto que minha risada é um pouco cáustica.
Se Jesmyn fosse uma personagem de videogame, sua “barra de
exuberância” teria zerado depois desse golpe.
— Hum. Não.
— Eu estava brincando — murmuro.
— Então eu não passo de uma groupie idiota que quer ficar com um
rockstar?
— Não. Mas, tipo, você se ofereceu pra ser tecladista dele. — Eu deveria
calar a boca, mas não consigo. É como quando você mijava nas calças
quando era criança: você sabia que estava fazendo uma coisa errada e
nojenta, mas não conseguia parar depois de ter começado.
Ela inspira fundo pelo nariz.
— Querer tocar teclado na banda de alguém não é querer casar com ele.
Além disso, ele é um homem adulto. Com namorada.
— Ah, que bom que você pesquisou.
Ela revira os olhos.
— Por que você está sendo horrível comigo agora? Depois do melhor
show da minha vida, você está seriamente falando muita merda pra mim.
— Só estou conversando.
— Não o tipo de conversa que eu teria com o Eli depois de um ótimo
show.
— Eu não sou o Eli.
— Olha, dá pra parar com essa esquisitice toda? Não sei qual é o seu
problema ou por que está agindo desse jeito, mas dá pra parar, por favor?
— Beleza.
Percorremos o resto do caminho num silêncio tenso. Em um momento,
fazemos contato visual e trocamos sorrisos breves e duros.
Tem tanta coisa que eu queria dizer para ela e tem tanta estática no meu
cérebro. Não tenho uma linha clara de pensamentos.
Paramos na casa dela com minha cabeça ainda a mil.
— Então tá. Bom. Obrigada — Jesmyn diz, levando a mão à maçaneta da
porta. — Vou…
— Jesmyn.
Ela olha para mim, esperando.
— Eu… — Não diga que gosta dela de outro jeito. Se fizer isso, se
sucumbir, use qualquer frase menos essa. — Gosto de você de outro jeito.
Gosto gosto de você. Tipo, mais do que como amiga.
A expressão dela me diz na hora que não era isso o que ela esperava ouvir.
O ar fica tenso.
Ela balança a cabeça e cobre os olhos com as mãos, abaixando a cabeça e
gemendo baixo.
— Carver. Carver.
Meu sangue acelera.
— Não escolhi que isso acontecesse.
— Eu sei que não, mas não posso. Você deve saber disso. Simplesmente
não consigo.
Não sei nem se eu posso. Mesmo assim. Estou nessa agora. A única saída é
do outro lado.
— Por que não?
— Por que não? Sério?
— Quero dizer, o motivo óbvio eu sei.
— Bom, certo. O motivo óbvio é o motivo. — Ela cobre o rosto com as
mãos, abafando a voz.
— Você não sente nada por mim?
— Você é meu amigo. Eu gosto de você.
— Não foi isso o que eu quis dizer e você sabe disso.
Ela ergue as mãos à frente dela como se segurasse uma caixa invisível.
— Carver, eu não posso. Não posso lidar com isso agora. Tenho que me
preparar pra audição da Juilliard. Meu namorado, seu melhor amigo, morreu
há dois meses e meio. Não estou pronta pra outro relacionamento.
— Mas com o Eli você estava pronta em três dias.
— Ai, meu De… Você jura que não vê a diferença? Eu não fiquei com o
Eli depois que meu último namorado tinha acabado de morrer.
Estou desmoronando; me estilhaçando.
— Como assim? O que há de errado comigo?
— Não há nada de errado com você.
De repente me sinto ridículo nas minhas roupas novas. Como se Jesmyn
enxergasse através da minha fantasia.
— É porque não sou tão talentoso quanto o Dearly? Ou o Eli?
— Seu talento não é o problema. De jeito nenhum. Eu li o conto que você
me deu.
— E claro que você não comentou nada sobre ele.
— Não fico por aí dizendo pras pessoas o quanto elas são talentosas. Eu
mostro pra elas. Mostrei pra você o respeito que tenho por você, o que, pelo
jeito, você não tem por mim.
— Você não teve problema em dizer pro Dearly que ele era talentoso.
— Bom, eu e ele não almoçamos todos os dias.
— Não que você não queira.
— É sério que você está com ciúmes de um dos meus músicos favoritos?
Fico boquiaberto, tentando entender como dizer que não, mesmo que a
resposta seja sim.
— Não — digo. Isso está indo muito mal. Mas não consigo parar. Uma voz
malévola está me dizendo para botar fogo na minha vida. — Eli não era tão
incrível assim. — As palavras queimam meus lábios ao saírem. O que você
está fazendo?
Jesmyn me encara como se eu tivesse dado um tapa na cara dela.
— Você está se ouvindo? — Ela ergue um indicador. — Uma semana atrás
a gente estava fazendo um dia de despedida pra ele. Uma semana. — A voz
dela é fraca e cheia de lágrimas.
Ficamos nos encarando sem dizer nada. Jesmyn balança a cabeça. Seca os
olhos.
— Eli iria querer que ficássemos juntos se ele não estivesse mais aqui. —
Falo isso mais para mim mesmo, na esperança de que ela não escute para não
me fazer repetir.
Ela vira para mim, os olhos em chamas. Aponta um dedo trêmulo na minha
cara.
— Eu não sou uma coleção de selos que alguém deixa num testamento,
entendeu? Não sou uma propriedade pra ser passada adiante.
Veja sua vida queimar. Veja sua vida queimar.
— Não quis dizer que…
Mas ela já abriu a porta. Vira para mim.
— Preciso dizer pra não me mandar mensagem, não me ligar nem falar
mais comigo? — Ela sai e bate a porta com tanta força que fico surpreso pela
janela não ter se estilhaçado.
Ela dá alguns passos em direção à casa dela antes de se virar e voltar. Abre
a porta. Uma onda de esperança ilógica e infundada me perpassa. Ela vai
dizer: “Olha, nós dois estamos emotivos demais agora. Vamos esquecer que
tudo isso aconteceu e continuar amigos”.
Ela se inclina na porta aberta.
— Mais uma coisa. Você poderia ter uma chance. Poderia. Talvez. Mas
agora? — Com mais uma batida da porta de tremer a janela, ela vai embora.
Fico catatônico por um momento. É o mesmo estupor de quando descobri
o que havia acontecido com a Trupe do Molho. Me questiono se estou
imaginando o que aconteceu, porque é horrível demais pra ser verdade.
Enquanto a porta da frente de Jesmyn continua fechada e escura, a dor
começa a me inundar como nos filmes em que um submarino está afundando.
Um pequeno jato de água. Depois outro; maior. E outro. Vão ficando mais
grossos. Impossíveis de consertar. Até, finalmente, o mar entrar com tudo,
sedento e preto, para matar todos que ainda estão vivos.
Sinto ódio do meu amigo morto Eli.
Ainda mais que isso, sinto ódio de mim.
Chego em casa onze minutos depois do meu limite da meia-noite, mas não
ligo muito. O que meus pais vão fazer? Me proibir de sair com os meus
amigos?
Entro no quarto deles e dou abraços de não-andei-bebendo-nem-fumando-
maconha e depois vou pro meu quarto. Mas então ouço risos roucos da porta
de Georgia e reconsidero. Nunca que vou conseguir dormir.
Saio e sento nos degraus da entrada, apoiando os cotovelos nos joelhos.
Não faço ideia de quanto tempo fico lá porque não tenho um relógio de pulso
nem — no momento — um celular.
O som da porta da frente se abrindo me assusta. Olho por sobre o ombro.
— Ei — Georgia diz. — Você está aí. Quando chegou?
— Faz um tempinho. Cadê a Maddie e a Lana?
— Lá dentro. Bêbadas, mandando mensagens para os ex. A gente trouxe
uma garrafa de vodca da faculdade.
— Que bom, porque realmente não consigo lidar com elas agora. Mesmo.
— Espera aí — Georgia diz. Ela entra e volta alguns minutos depois com
uma coberta. Senta e nos cobre, aproximando-se de mim, trêmula. — Pronto.
Desembucha.
— Não quero falar sobre isso.
— Jesmyn?
— É.
— Você está muito a fim dela.
— Tô.
— Tá na cara.
— Que ótimo.
— Mas ela não está a fim de você agora porque é esquisito demais.
— É.
— Só isso?
— Não é o suficiente?
— Sim. Mas é só isso?
Suspiro e aperto os olhos fechados.
— Eu estraguei tudo. Falei o que sentia pra ela. Disse um monte de coisas
idiotas. Ela está bem puta.
Georgia abraça meu braço e apoia a cabeça no meu ombro.
— Ah, Carver.
Esfrego a lateral da minha cabeça como se estivesse tentando tirar uma
mancha.
— Ela era tudo o que eu tinha. Era a minha única amiga aqui.
— Eu sei.
— Estou muito solitário.
— Aposto que sim.
— Quero ser feliz de novo antes de morrer. É tudo o que eu quero.
Ficamos ali por um longo tempo, sem falar nada, sob o círculo de luz
melancólico e desconsolado da varanda, tremendo e ouvindo a canção
moribunda dos grilos na escuridão fria. O ar está pesado com o orvalho
quando finalmente terminamos nossa vigília vazia.
TRINTA E SETE
Me sinto ingrato aos deuses do destino por não estar mais feliz com o fato de
a lâmina do processo não pender mais sobre meu pescoço. Fantasiei sobre
isso. Mas quando contava com a presença de Jesmyn na minha vida. Também
quando contava que eu não passaria um dia inteiro com a segunda pessoa que
mais me odeia no mundo.
Na escola, algumas pessoas me cumprimentam ao passar por mim nos
corredores. Suas expressões transmitem uma espécie de: Não sei direito como
parabenizar você por não ter sido incriminado, mas fico mais à vontade em
cumprimentá-lo agora que legalmente você não é um assassino.
Minha professora de literatura inglesa avançada me chama de lado depois
da aula e diz como está contente com a notícia. Minha escola foi bem
imparcial durante essa história toda — basicamente só falaram comigo
quando os policiais estavam lá para confiscar meu celular e meu notebook.
Acho que estavam com medo de me mandar conversar com o orientador da
escola e eu o envolver numa investigação de homicídio.
Não sei por quê, mas isso tudo me deixa ainda mais deprimido. Então já
estou com um humor péssimo na minha hora de almoço solitária. Quando o
almoço está quase acabando, percebo que vinha me permitindo uma centelha
de esperança de que Jesmyn cederia e viria me procurar para pelo menos me
dizer que estava contente por eu não ir para a prisão.
Mas talvez ela não esteja contente. Talvez esse seja o grau do ódio dela por
mim agora.
Vou até o meu armário pegar meus livros para a próxima aula. Abro e uma
nuvem fina de cinzas escuras ataca meu rosto. Espirro e pisco com os olhos
lacrimejantes.
Tenho quase certeza de que isso não é o Eli. Tem um cheiro forte e
amadeirado. Tipo de madeira queimada na lareira de uma casa chique.
Os Bauer têm uma lareira.
O interior do meu armário está coberto de cinzas. A engenhosidade para
fazer isso… Alguém deve ter dado um jeito de soprá-las pelas aberturas do
armário.
Vejo um pequeno cartão de cor creme no fundo do armário. Pego e mais
cinzas caem dele. Não é um cartãozinho porcaria. Parece caro. Em uma fonte
simples e elegante, diz: ASSASSINO.
Consigo sentir o olhar de Adair e dos outros queimando minhas costas.
Estou observando o meu armário imundo com atenção, como se contivesse a
resposta a uma pergunta, segurando o cartão, fantasiando em entrar e fechar a
porta atrás de mim. Esperar até poder sair sem vê-la.
— Cara, o que aconteceu? — alguém pergunta. Ignoro e, deliberadamente
com cuidado, guardo o cartão no bolso da camisa. Sobre o coração. Espero
que ela me veja fazer isso.
Com os olhos baixos, saio do prédio, vou para o estacionamento, entro no
carro e vou embora. Nunca matei aula antes. Ninguém se dá ao trabalho de
entrar na AAN para matar aula.
Chega um momento em que você percebe que nunca vai poder fazer
alguém gostar de você, nem mesmo parar de odiar você, e a única defesa
possível é a maior de todas — cagar pra aquilo. Mas isso exige cagar pra
aquilo, e ainda não cheguei a esse ponto. Então estou indefeso.
Quando chego em casa, vou ao banheiro e olho no espelho.
Ainda tem cinzas no meu cabelo.
Ainda tem cinzas no meu rosto.
QUARENTA
O juiz Edwards vai até a cozinha. Volta um momento depois com uma
caixa de sacos de lixo brancos e uma de pretos.
— Imagino que você saiba onde fica o quarto de Thurgood.
Faço que sim.
— Preto é para caridade. Qualquer coisa que alguém possa usar. As
roupas, mas não os sapatos. Ele desenhava neles como uma criancinha.
Mars nos contou que o único motivo por que o pai dele o deixava usar All
Star era porque eram os tênis que o avô de Mars usava. Mars disse ser um
tributo, e o juiz Edwards acreditou, sabe-se lá como.
Fico paralisado, segurando as caixas.
— Branco é para lixo. As ilustrações são lixo — o juiz Edwards diz.
Ouvir ele dizer isso me corta como lascas de aço embaixo das unhas.
— Em caso de dúvida, opte pelo lixo. Estarei no escritório quando
terminar.
— Tem alguma coisa que o senhor queira guardar?
— Branco é para o lixo. Preto, para a caridade. Está vendo uma terceira cor
nas suas mãos? — ele diz como se falasse com uma criancinha ingênua e
teimosa.
— Não, senhor.
— Mais alguma pergunta?
Balanço a cabeça e subo a escada com dificuldade. Queria mostrar o
quanto ele já ganhou em todos os aspectos. Físico. Mental. Agora está
atacando o emocional. E já vejo que vai funcionar.
Paro diante da porta do Mars por um momento, juntando coragem. Então
entro. O odor de roupas sujas e comida velha ataca minhas narinas, como se
essa porta não fosse aberta há meses. Talvez não tenha sido. É um forte
contraste com a ordem e a esterilidade desumanas do restante da casa. Parece
ruim, mas não é. O quarto do Mars meio que sempre teve esse cheiro. Esse
era ele. Esta era a sua ilha — agora deserta. Sinto um baque de nostalgia.
O juiz Edwards fez questão de que, mesmo nos momentos em que
estivéssemos separados, eu continuasse sofrendo.
Tiro a gravata, depois o paletó, e os deixo em cima da cama desarrumada
do Mars. Arregaço as mangas e começo com as roupas limpas no chão.
Uma dessas camisetas pode ter sido a que ele estava usando no dia em que
a Trupe do Molho ganhou um nome.
Uma ele pode ter usado no rodeio de esquilos.
Ele pode ter derrubado pedaços de seu sanduíche em uma enquanto Blake
nos mostrava um de seus vídeos novos.
Antes de jogá-las num saco preto, levo-as ao rosto e inspiro. Suor limpo e
alegre misturado a desodorante masculino e sabão em pó. Imploro à parte
olfativa do meu cérebro para lembrar, para me permitir evocar esse cheiro de
novo, porque nunca vou ter outra chance.
Todas as roupas jogadas no chão me lembram um fantoche de contos de
fadas sem vida. Em pouco tempo, guardo todas as roupas do chão nos sacos.
Depois vêm as da cama.
Enquanto tiro coisas debaixo da cama, encontro um pote de manteiga de
amendoim mofado. Era o lanche favorito do Mars. Ele misturava manteiga de
amendoim com xarope de bordo e mergulhava o pão nisso. Morremos de rir
quando descobrimos.
— Cara, é o lanche mais triste que já vi — Eli disse enquanto recuperava
o fôlego, se contorcendo de dar risada.
— Sério — eu disse —, por que você não come uma lata de cobertura de
bolo de uma vez?
— Pelo menos não estou comendo espaguete com ketchup e mostarda que
nem vocês, seus nojentos — Mars disse.
Blake olhou para mim e deu de ombros.
— Contei pra ele da receita que a gente inventou. Estava boa.
— Cara, nunca mais conte isso pra ninguém.
Jogo o pote num saco branco.
Tiro as histórias em quadrinhos das prateleiras e as deixo nos sacos pretos
para caridade.
Alinho os sacos no corredor para ter mais espaço para trabalhar.
É isso que deixamos para trás.
E então começo a vasculhar as gavetas. Mais roupas. Mais sacos pretos. A
penúltima está cheia de materiais de arte usados. Saco branco.
Abro a última gaveta. Ela transborda com desenhos do Mars. Eu sabia que
encontraria isso. Fico surpreso por não ter encontrado antes. E ainda não
estou pronto para vê-los. Se as roupas eram seu corpo, agora estou lidando
com a alma de Mars.
Me recosto na sua cama, coloco o rosto entre as mãos e choro. Peço
desculpas para Mars de novo. Folheio os desenhos — página após página e
caderno após caderno de esboços de personagens. Ele praticava
constantemente. O juiz Edwards tinha razão: ele adorava se superar. Não era
de desistir.
Encontro um desenho dos irmãos do Mars.
Desenhos de algumas garotas da escola.
Um desenho da Trupe do Molho.
Então um desenho que não reconheço. Parece um projeto em andamento,
unificado e coeso — algum tipo de história em quadrinhos. Chama O Juiz. Eu
folheio as páginas. Parece sobre um juiz afro-americano que enfrenta o
submundo do crime como uma espécie de super-herói numa cidade corrupta
à la Gotham.
Minha mente logo se lembra de Hiro. Mas não voando pelo céu no carro
com as asas mecânicas da grua. Em vez disso, vejo-o confrontando o
presidente da Nissan com a ideia que pensa que vai salvar vidas. Vejo-o
fazendo seu apelo com as mãos cheias de papéis.
Pra mim chega.
Cansei de ser destruído.
Nenhuma outra história vai morrer aqui hoje.
Meu medo se esvai como se eu tivesse uma hemorragia. Levanto rápido e
espero a vertigem passar. Pego O Juiz e alguns dos outros desenhos. Reúno
minhas histórias de Mars Edwards. E desço a escada com as pernas
vacilantes, sentindo a gravidade puxar minhas entranhas na direção dos meus
pés.
O juiz Edwards está sentado entre seus livros de couro, digitando
furiosamente em seu notebook. Ele sequer afrouxou a gravata desde a igreja.
Seus olhos continuam na tela quando paro no batente da porta.
— Terminou?
— Tem algo que acho que Vossa Excelência precisa ver.
Ele vira para mim em sua cadeira.
— Eu perguntei: terminou?
Estendo o maço de papéis, com O Juiz em cima.
— Mars fez esses desenhos e acho que o senhor precisa dar uma olhada
neles antes de eu jogar fora. Vai se arrepender se não fizer isso.
Ele se levanta e se assoma diante de mim. Seu rosto é uma máscara bruta e
incandescente de fúria derretida.
— Thurgood. O nome dele é Thurgood. Esse é o nome na lápide dele. E
como você ousa me falar de arrependimento? — Ele cospe as palavras como
se fossem veneno sugado de uma picada de cobra.
Perco o fôlego. Estou com medo e quero sair correndo. Mas não faço isso.
Você não tem nada a perder. Conte uma história pra ele.
— Ele odiava ser chamado de Thurgood. Queria ser chamado de Mars. A
gente o chamava de Mars. Ele se chamava de Mars. E ele fez essa história em
quadrinhos. Acho que é inspirada no senhor. Por favor, me deixa contar…
— Cala a boca. Cala essa sua boca imprudente e assassina. — Sua saliva
pinga fria em meu rosto. Ele inspira longa e furiosamente pelo nariz.
— Preciso contar para o senhor…
Ele aponta para a porta da frente com tanta violência que a manga de sua
camisa estala.
— Saia. Agora. Antes que eu decida meter um processo em você e em seus
pais para tirar todos os seus centavos.
— Não. — Ergo os olhos de maneira desafiadora para encará-lo. — Ainda
não, Vossa Excelência.
— Você está oficialmente invadindo minha propriedade. Saia ou vou tirar
você à força como é meu direito por lei.
— Não até você ouvir o que tenho a dizer.
Ele dá um passo veloz à frente e me pega pelo braço — o que está
segurando os papéis. Eles saem voando. Ele me gira tão rápido que quase
tropeço no meu próprio pé com a tontura súbita. A única coisa que me
mantém erguido é seu punho me machucando. Ele meio que me ergue, meio
que me empurra em direção à entrada.
— Senhor, por favor. Por favor. Me deixa transformar este dia num dia de
despedida de verdade. Me deixa contar pra você sobre o Mars que você não
conheceu.
— Fora.
— Posso contar pra você sobre ele. Posso contar as partes dele que você
não conheceu. Ele… — Minhas palavras se dissolvem num grito de dor. Ele
está pulverizando meu braço.
Com a outra mão, o juiz Edwards abre a porta da frente com tudo e me
empurra contra a porta externa de vidro. Está me lançando com tanta precisão
que consegue fazer a lateral do meu corpo bater na maçaneta para abrir a
porta externa sem estilhaçar o vidro. Depois me empurra com a força
explosiva de um pistão.
Desço voando os dois degraus, tropeço na lateral do meu sapato, caio no
cimento e escorrego de lado. Raspo a parte de cima da minha orelha
esquerda. Não sei como, mas consigo não acertar nenhum dos lugares que
machuquei na primeira queda. Fico caído ali por tempo suficiente para ver o
juiz Edwards fechar a porta de vidro com um clangor e depois bater a da
frente com tanta força que faz a porta de vidro abrir de novo.
Me levanto dolorosamente. Estou sangrando em alguns lugares. Está
encharcando minha calça. Usei esse terno em três velórios e numa das piores
experiências físicas, mentais e emocionais da minha vida. Eu deveria atear
fogo nele. Isso se recuperar o paletó um dia.
Vou mancando até o meu carro sem olhar pra trás, pisando em lindas
folhas mortas — algumas tão douradas quanto o sol cintilante de novembro
por entre as árvores.
Ele não pede desculpas e eu também não. Não se oferece para me absolver e
não peço isso. Aperta minha mão, tira do bolso do casaco um desenho que o
Mars fez da Trupe do Molho e me dá quando me deixa em casa, alguns
minutos antes da meia-noite.
Vou até o quarto dos meus pais e dou um abraço de boa-noite neles. Eles
devem sentir algo em mim. Ainda deitados, me abraçam entre eles —
quentinhos e sonolentos —, e choro como uma criança no quarto escuro dos
dois. As lágrimas são pesadas, carregadas pelo que tenho dentro de mim.
Quando paro, estou sossegado por dentro pela primeira vez em meses. Não
feliz, não livre. Como águas que não baixaram, mas que finalmente ficaram
tranquilas, tudo o que foi perdido e quebrado flutua logo abaixo da superfície
sob um céu sem nuvens.
Sento na minha cama, sem estar pronto para dormir apesar da exaustão ao
final deste dia que mais pareceu um ano inteiro.
Há algo na tranquilidade dentro de mim que está silencioso demais. Como
aves que não cantam numa noite de inverno, e o ar gelado abafa todos os
sons.
Tem mais uma coisa que preciso resolver.
Encaro meu reflexo na tela preta e inerte do celular. Se você sobreviveu a
este dia, consegue sobreviver a qualquer coisa. E o que você tem a perder?
Pego o celular e mando mensagem pra Jesmyn, imaginando que ela não
esteja acordada. Desculpa. Praia no outono.
Espero um minuto e não recebo nenhuma resposta. Por que receberia?
Vou ao banheiro, escovo os dentes e visto meu short de pijama. Apago a luz.
Com os olhos fechados, vejo um brilho branco pálido iluminar meu quarto.
Sento e vejo meu celular vibrar sobre a escrivaninha.
Meu coração bate com o que devem ser minhas últimas reservas de
adrenalina nas veias. Meu celular se apaga. Considero não olhar. Se for a
resposta que imagino, vai me deixar acordado a noite toda, com uma dor no
coração me tirando do meu sono leve entrecortado como aconteceu no
primeiro mês depois do Acidente.
Mas levanto para ver. Pego o celular.
Vem falar isso na minha cara.
Agora? Se a velocidade de
uma resposta mede a dignidade da pessoa, agora
tenho aproximadamente zero dignidade.
Agora.
Me visto como se estivesse fugindo de um incêndio.
Às vezes, quando estou em meio à natureza, fico imaginando como deve ter
sido plácido e idílico antes da chegada dos humanos. Uma calma tão
profunda que precisa de uma testemunha. É assim que me sinto diante do dr.
Mendez. Minha emoção lembra tanto a felicidade que um sorriso é a única
demonstração aparente que pode expressá-la.
O dr. Mendez retribui o sorriso.
— Você parece bem hoje.
Eu me debruço, cabeça baixa, e ergo os olhos para o dr. Mendez.
— Posso te contar uma história?
Ele apoia os cotovelos nos joelhos e entrelaça as mãos como uma prece.
— Por favor.
Falei antes de saber exatamente o que contar, mas queria contar alguma
coisa. Esfrego a palma das mãos. Depois esfrego a boca e o nariz. Fico
olhando para o chão e mordo a parte de dentro da minha bochecha.
— Desculpa — sussurro.
— Leve o tempo que precisar — o dr. Mendez diz.
— No dia, hum, 1o de agosto, Carver Briggs estava na livraria em que
trabalhava, guardando livros nas estantes. Seus três amigos, Mars Edwards,
Blake Lloyd e Eli Bauer, estavam no cinema e tinham marcado de encontrar
com ele depois. Eles sairiam para comprar milk-shakes e passear no parque, o
que era uma tradição deles. — Engulo em seco e inspiro trêmulo. — Eles
eram amigos desde o começo do ensino médio.
Minha garganta se aperta. Tusso e espero até ela relaxar.
— Ele sabia que eles viriam logo, mas eu… ele… estava impaciente.
Então mandou uma mensagem: “Cadê vocês? Me respondam”.
Começo a tremer e minha visão se turva com as lágrimas. O dr. Mendez
está completamente imóvel. Espero um soluço secar no meu peito, inspiro e
continuo, com a voz trêmula mas firme, sabe-se lá como.
— Pouco depois, ele descobriu que eles foram, hum, mortos num acidente
que aconteceu mais ou menos na hora em que ele mandou a mensagem para
eles. Para o Mars, na verdade. Ele mandou mensagem para o Mars, que
estava dirigindo, porque sabia que Mars responderia, como ele pediu. Mesmo
dirigindo. E ele sabia que Mars estava dirigindo.
Contenho outro soluço. Minhas mãos tremem violentamente. Cerro os
punhos e continuo.
— E Carver tem quase certeza de que causou o acidente mandando essa
mensagem, mas não tem certeza absoluta. O que ele tem certeza é que não
queria fazer mal a eles. Nunca. Jamais. Se soubesse o que aconteceria, nunca
teria feito isso. E ele sente muito. — Hesito. — Eu sinto muito.
Não consigo controlar meus tremores e começo a chorar. Me inclino tanto
para a frente que o dr. Mendez só deve conseguir enxergar o topo da minha
cabeça. Cubro os olhos com a mão e choro assim por um minuto ou dois. Dá
uma sensação boa. Como chorar num sonho. O dr. Mendez se debruça e
empurra a caixa de lenços para que ela fique ao meu alcance. Pego um, seco
os olhos e o aperto na mão.
Finalmente, me recosto na cadeira, exausto. Rio um choro-riso
congestionado.
— Desculpa. Pareço um bebê.
A expressão do dr. Mendez é solene. Ele balança a cabeça.
— Não. — Ele se recosta na poltrona e bate o dedo nos lábios. Olha fixo
por cima do meu ombro. Começa a dizer algo, mas se contém. Me encara nos
olhos. Nunca o vi com um olhar tão assombrado, como se tomado por uma
tempestade. — Agora eu quero te contar uma história — ele fala com um tom
de voz ameno. Quase como se pedisse permissão. — Não costumo fazer isso,
mas desta vez sinto que preciso.
Faço o gesto de “fique à vontade” do dr. Mendez. Ele sorri ao se
reconhecer. Vejo um leve tremor em seus lábios.
— Quando eu estava no ensino médio, tinha um amigo muito querido
chamado Ruben Arteaga. A gente ficou de sair numa noite e acabamos
brigando. Nem lembro mais o motivo. Algo idiota. Algo pequeno. Vamos
cada um pro seu caminho. Vou pra casa; ele vai para uma festa em Juárez do
outro lado da ponte.
O dr. Mendez balança a cabeça. Leva o dedo ao lábio como se para se
impedir de falar. Mas limpa a garganta e continua, com a voz nublada.
— Acordo no dia seguinte e, hum, o Ruben não está na escola. Fico
esperando que ele apareça; ele não aparece. Ligo pra ele depois da aula; nada.
Descubro que ele foi encontrado num beco atrás de um bar, depois de sofrer
uma surra violenta. Ele está vivo, mas por pouco. Aguenta um tempo com a
ajuda de aparelhos. Mas então…
Uma única lágrima escorre pela bochecha do dr. Mendez.
— Desculpa. Ainda é difícil pra mim. — Sua voz embarga. Ele tira os
óculos de armação azul-marinho e aperta a ponta do nariz.
Empurro a caixa de lenços para ele. Damos risada.
— Obrigado, doutor — ele diz. Ele suspira e volta a pôr os óculos. — Eu
tinha certeza de que havia matado o Ruben. Se ao menos tivesse engolido
meu orgulho e não tivesse brigado com ele… Se ao menos o tivesse impedido
de ir… Se. Se. Eu olhava pra lua e via o rosto do Ruben. Olhava pras nuvens
e via um dedo apontado pra mim.
— Pareidolia.
— Pareidolia.
— De todos os terapeutas do mundo, fui arranjar um que entende melhor
que ninguém — murmuro.
— Você teve um pouco de sorte.
— Esse é o motivo das histórias?
— Foi só me envolvendo com outras histórias, histórias que me tiravam da
equação, que consegui fechar essa ferida e me cicatrizar. O universo e o
destino são cruéis e aleatórios. As coisas acontecem por inúmeros motivos.
Acontecem sem motivo nenhum. Carregar nas costas o fardo dos caprichos
do universo é demais pra qualquer pessoa. E não é justo com você.
— Então ainda tenho um longo caminho pela frente, hein?
— Este não é o fim de uma jornada, mas o começo. Agora sim você está
onde a maioria das pessoas que perdem um ente ou entes queridos começa.
Você cumpriu o trabalho de entender e contextualizar adequadamente seu
lugar nessa tragédia, mas existem mais coisas pra cicatrizar. Você venceu a
infecção na ferida, então agora ela pode se curar.
— Queria poder me sentir completamente bem de novo algum dia.
Os olhos do dr. Mendez, ainda que vermelhos e marejados, cintilam.
— Você não vai. E ao mesmo tempo vai. Lembro do sorriso de Ruben ou
sinto o cheiro de uma água de colônia que me lembra dele… como um monte
de adolescentes, ele sempre usava perfume demais. E, quando essas
lembranças batem, sinto aquela dor. Você também vai sentir. Mas sua vida
vai ser plena e grande o bastante para absorver isso, e você vai seguir em
frente.
Um momento se passa.
— Posso contar uma coisa? — pergunto.
— Claro.
Conto que vou fazer um dia de despedida com os meus pais num futuro
próximo. Mais um dia de conhecimento, na verdade. Para eles poderem ouvir
minha história. Para eu poder oferecer a eles tudo de mim que guardo sem
motivos atrás de muralhas.
Conto que acredito que somos histórias de respiração e sangue e memória
e que algumas coisas nunca terminam de verdade.
Conto que tenho esperança de que, depois de termos morrido, haja um dia
em que um vendaval volte a encher nossas histórias de vida e que elas
despertem de seu sono; e que eu escreva a melhor história possível — uma
que ecoe no vácuo das eternidades por pelo menos um tempo.
Conto que tenho esperança de rever meus amigos algum dia.
Conto que tenho esperança.
QUARENTA E CINCO
Embora Adair esteja cercada por duas de suas colegas de dança quando nos
cruzamos no estacionamento coberto de folhas, paro por um momento e me
abro com ela. Me ofereço, na verdade. Não tenho nada para falar; só quero
dar a ela a chance de dizer o que precisa dizer. Não bastava tirar meu irmão
de mim; você também tirou o casamento dos meus pais. Não bastava ele
estar morto; tenho que te ver saindo com a namorada dele. Não bastava você
nunca ter ido pra prisão; tenho que te ver todos os dias.
Acho que consigo aguentar isso agora. Seja pela terapia, pela medicação
ou pela soma dos dois, faz tempo que não tenho um ataque de pânico.
Consigo absorver o que ela tem contra mim e sobreviver. Qualquer que seja o
consolo, qualquer que seja a paz que isso traga a ela, quero que a tenha.
Tento dizer isso a ela com minha expressão.
Mas ela olha por cima do meu ombro, meio que me observando de cima a
baixo sem conseguir olhar na minha direção. Seus olhos cinza são tão duros e
quentes quanto uma febre. Da qual ninguém nunca se recupera inteiramente.
Que tira parte de você e nunca devolve. De que ninguém sobrevive por
completo.
Ao menos, eu entendo.
QUARENTA E SEIS
Estou na fila do mercado comprando uma coca-cola quando lembro que, uma
vez, a Trupe do Molho estava falando sobre como seria engraçado se
parabenizássemos as pessoas não por terem tido filhos, mas por terem
transado. Você teve um bebê? Que legal! Você transou! Parabéns por ter
feito um sexo tão da hora! As pessoas na igreja e no trabalho e tal diriam
essas coisas pra você.
Começo a rir ali mesmo na fila, como ri daquela vez.
Como ri tantas vezes.
Em alguns dias — os bons —, é assim que eles me visitam.
QUARENTA E OITO
Este livro não teria sido possível sem meus agentes incríveis, Charlie Olsen,
Lyndsey Blessing e Philippa Milnes-Smith, ou minhas talentosas editoras,
Emily Easton e Tara Walker. Minha gratidão imortal a todos vocês.
Obrigado a Phoebe Yeh, Samantha Gentry e a todos na Crown Books for
Young Readers. Obrigado a Barbara Marcus, Judith Haut, John Adamo,
Dominique Cimina, Alison Impey e Casey Ward da Random House
Children’s Books.
Minha eterna gratidão a Kerry Kletter. Seu livro fica ao meu lado quando
escrevo para me lembrar como devo fazer. Não sei como já escrevi sem sua
amizade, seu talento, sua sabedoria e seu olhar crítico.
E, por falar em olhares críticos, eu já estaria afundado sem o seu, Adriana
Mather. Você, sim, sabe contar uma história. É a única coisa que você faz
melhor do que fabricar canecas e criar porcos. Me perguntei várias vezes “O
que a Adriana faria?”, enquanto escrevia Georgia.
Nic Stone. Minha parceira do Working on Excelence e minha irmã da
Crown. Mal posso esperar para o mundo ver o seu talento em breve. Tenho
muito orgulho de conhecer você.
Natalie Lloyd, você me inspira com a magia de seus mundos e suas
palavras, e me faz rir todos os dias.
Becky Albertalli, David Arnold e Adam Silvera: nunca vou me acostumar
com a ideia de ser amigo de três das vozes mais poderosas que já escreveram
para os jovens. Vocês me deram um apoio enorme. Não consigo agradecer o
suficiente.
Amanda Nelson, você é uma inspiração com sua sagacidade e sua
inteligência vorazes.
Dr. Daniel Crosby e Amy Saville, tudo que acertei em relação ao dr.
Mendez foi graças a vocês. Tudo o que errei foi graças a mim. Devo muito a
vocês.
Brooks Benjamin e Jackie Benjamin, obrigado por sua loucura e por serem
duas das minhas pessoas favoritas.
Obrigado por sua comicidade em geral, Elizabeth Clifford.
Emily Henry, nunca poderia sonhar com uma amiga mais talentosa,
engraçada, descolada e acolhedora.
Matt Bauer, Matt Page, Rykarda Parasol, Corinne Hannan, Katie Clifford,
Wesley Warren, Jonathan Payne, Dylan Haney, Sean Maloney, Ashlee
Elfman, Olivia Scibelli, Chris e Elizabeth Fox, Maura Lee Albert-Adams,
Shane Adams, Melissa Stringer e Becky Durham, vocês são amigos incríveis
e geniais.
Chloe Sackur, obrigado por dar uma chance para um livro jovem adulto
com um pastor que manipula as pessoas com cobras. Não tive como
agradecer lá, então agradeço aqui.
Stephanie Appell e a equipe da Parnassus. Pessoas e lojas como vocês são
o motivo pelos quais as livrarias independentes são tão vitais para a paisagem
literária. Nenhum algoritmo ou computador nunca vai fazer o que vocês
fazem. Obrigado.
Obrigado aos meus colegas de escrita de Nashville: Jason Miller, Daniel
Carillo, Ed Tarkington, Ashley Blake, Kristin Tubb, Rae Ann Parker, Alisha
Klapheke, Courtney Stevens e Corabel Shofner.
Obrigado aos meus irmãos e irmãs de escrita mais velhos (em publicação)
que me apoiaram tanto: Nicola Yoon, Kelly Loy Gilbert, Sabaa Tahir,
Kiersten White, Benjamin Alire Sáenz e Rainbow Rowell.
Obrigado à minha professora de escrita do ensino médio, Clenece Hills,
por ter me ensinado a ter medo da voz passiva.
Obrigado de novo, Amy Tarkington e Rachel Willis.
Um obrigado eterno àqueles que acampavam e trabalhavam no Tennessee
Teen Rock Camp e no Southern Girls Rock Camp.
Obrigado a todos os meus colegas da Sweet Sixteener, em especial Nicole
Castroman, Marisa Reichardt, Laura Shovan, Amy Allgeyer, Jeff Garvin,
Kurt Dinan, Bridget Hodder, Julie Buxbaum, Kathleen MacMillan, Victoria
Coe, Laurie Flynn, Kathleen Glasgow, Melissa Gorzelanczyk, Shannon
Parker, Sonya Mukherjee, Darcy Woods, Jenn Bishop, Jessica Cluess, Sarah
Glenn Marsh, Catherine Lo, Kali Wallace, Lygia Day Peñaflor, Lois
Sepahban, Karen Fortunati, Randi Pink, Natalie Blitt, Kim Savage, Sarah
Ahiers, Roshani Chokshi, Kathleen Burkinshaw, Meg Leder, Janet McNally,
Brittany Cavallaro, Andrew Brumbach, Lee Gjertsen Malone, Julie
Eshbaugh, Parker Peevyhouse, Natalie Blitt, Heidi Heilig e Ki-Wing Merlin.
Gratidão aos blogueiros, livreiros e bibliotecários incríveis, em especial
Hikari Loftus, Owlcrate, Dahlia Adler, Mimi Albert, Caitlin Luce Baker,
Sarah Sawyers-Lovett, Eric Smith, Randy Ribay, Will Walton, Kari Meutsch,
Shoshana Smith, Ryan Labay, Sara Grochowski, Danielle Borsch, Demi
Marshall, Joshua Flores e Stefani Sloma.
Mãe e pai, vovó Z, Brooke, Adam, Steve. Amo vocês.
Meu lindo amor e melhor amiga, Sara. Escrever enquanto ouço você
praticar é o paraíso pra mim. Não é nenhum exagero dizer que eu não poderia
ter escrito este nem nenhum outro livro sem seu amor, seu apoio e a
felicidade que você me proporciona.
Meu menino querido, Tennessee. Você é o tesouro da minha vida. Nada
me traz mais alegria do que ver você crescer e me chamar de pai. Obrigado
por ser meu filho.
JAMIE HERNANDEZ
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor
no Brasil em 2009.
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Juntando os pedaços
Niven, Jennifer
9788543808062
392 páginas
Remy não acredita no amor. Sempre que um cara com quem está saindo se
aproxima demais, ela se afasta, antes que fique sério ou ela se machuque.
Tanta desilusão não é para menos: ela cresceu assistindo os fracassos dos
relacionamentos de sua mãe, que já vai para o quinto casamento.Então como
Dexter consegue fazer a garota quebrar esse padrão, se envolvendo pra valer?
Ele é tudo que ela odeia: impulsivo, desajeitado e, o pior de tudo, membro de
uma banda, como o pai de Remy — que abandonou a família antes do
nascimento da filha, deixando para trás apenas uma música de sucesso sobre
ela.Remy queria apenas viver um último namoro de verão antes de partir para
a faculdade, mas parece estar começando a entender aquele sentimento
irracional de que falam as canções de amor…
A verdade é que ninguém nasce herói. Mas isso não nos impede de salvar o
mundo de vez em quando.Num futuro em que o Brasil é liderado por um
fundamentalista religioso, o Escolhido, o simples ato de distribuir livros na
rua é visto como rebeldia. Esse foi o jeito que Chuvisco encontrou para
resistir e tentar mudar a sua realidade, um pouquinho que seja: ele e os
amigos entregam exemplares proibidos pelo governo a quem passa pela praça
Roosevelt, no centro de São Paulo, sempre atentos para o caso de algum
policial aparecer.Outro perigo que precisam enfrentar enquanto tentam viver
sua juventude são as milícias urbanas, como a Guarda Branca: seus
integrantes perseguem diversas minorias, incentivados pelo governo. É esse
grupo que Chuvisco encontra espancando um garoto nos arredores da rua
Augusta. A situação obriga o jovem a agir como um verdadeiro super-herói
para tentar ajudá-lo — e esse é só o começo. Aos poucos, Chuvisco percebe
que terá de fazer mais do que apenas distribuir livros se quiser mudar seu
futuro e o do país.