Você está na página 1de 8

REVISTA TOXICODEPENDÊNCIAS | EDIÇÃO IDT | VOLUME 17 | NÚMERO 1 | 2011 | pp.

53-60 53

5
Integração Social e Estratégias de Mediação
aLCINA LÓ

Artigo recebido em 11/01/11; versão final aceite em 21/02/11.

RESUMO ABSTRACT
O tratamento da toxicodependência é um processo lento e complexo, The treatment related to the drug addition is a slow and complex
onde a integração socioprofissional assume um papel central. A rela- process where the social-professional integration assumes a cen-
ção com o trabalho representa uma dimensão estratégica, facilitadora tral role. The work relation has a strategical dimension that facilitates
de um conjunto de aquisições com vista à autonomia dos toxicode- a set of acquisitions regarding the autonomy of the drug addicts in
pendentes em tratamento. treatment.
As organizações e as empresas aparecem como parceiros funda- The organizations and the business appear as an essential partner in this
mentais neste processo. Sem o seu envolvimento e participação, process. Without its involvement and participation, all the progresses
todos os investimentos realizados nas fases anteriores do tratamento reached during the treatment previous phases are fruitless.
são infrutíferos. In the case study, through qualitative and quantitative research, it
No estudo de caso, através de pesquisa quantitativa e qualitativa, was identified, more profoundly, the relation between the type of
identificou-se, mais profundamente, a relação entre o tipo de orga- work organization and the possibilities of success of interventions
nização do trabalho e as possibilidades de sucesso das intervenções targeted to the recovery and social-professional integration of former
orientadas para a recuperação e integração socioprofissional dos drug addicts. For that purpose it was studied the life histories of the
toxicodependentes, beneficiários do Programa Vida Emprego. Para beneficiaries of a specific State support program, the so-called “Life
esse efeito, foi estudada a história de vida dos beneficiários de um Employment Program”.
programa específico de apoio do Estado, o chamado “Programa Vida This is a pioneering program in Portugal aimed at supporting the
Emprego”, programa pioneiro em Portugal, destinado a apoiar a occupational reintegration of former drug addicts.
reinserção profissional de ex-toxicodependentes. It follows that the success or the failure of these interventions take
Conclui-se que o sucesso ou o fracasso destas intervenções ocor- place in differentiated organizational contexts, and it is clear that the
rem em contextos organizacionais diferenciados, emergindo como figure of mediation is the most decisive variable, through all the inte-
variável mais determinante a figura da mediação, que acompanha gration process, choosing and preparing the employers who hire the
todo o processo de integração, escolhe e prepara os empregadores drug addicts in treatment.
que contratam os toxicodependentes em tratamento. Key Words: Addiction; Social Integration; Social Organizacional Res­
Palavras-chave: Toxicodependência; Integração Social; Responsabi- ponsability; Social Mediation; Life Job Program; Employers; Work
lidade Social Organizacional; Mediação Social; Programa Vida Empre- Organizations.
go; Empregadores; Organizações do Trabalho.
RESUMEN
RÉSUMÉ El tratamiento de la drogodependencia es un proceso lento y com-
Le traitement de la depéndence aux drogues est un processus lent plejo, donde la integración socio-profesional asume un papel central.
et complexe, où l’intégration socio-professionnelle est un élément La relación con el trabajo representa una dimensión estratégica, que
central. La relation avec le travail représente une dimension stra- facilita un conjunto de adquisiciones con vista a una autonomía de los
tégique, qui facilite des eléments importants pour l’autonomie des drogodependientes en tratamiento.
toxicomanes en traitement.Les organisations et les entreprises appa- Las organizaciones y las empresas son parejas fundamentales en este
raissent comme des partenaires essentiels dans ce processus. Sans proceso. Sin su envolvimiento y participación, todos los investimentos
cette implication et participation, tous les investissements effectués realizados en las fases anteriores del tratamiento son infructíferos.
dans les phases antérieures de traitement sont infructueuses. Dans En el estudio del caso, a través de pesquisa cuantitativa y cualitativa,
l’étude de cas, on a identifié d’une façon plus profonde, à travers la se ha identificado, más profundamente, la relación entre el tipo de
recherche quantitative et qualitative, la relation entre le type d’organi- organización del trabajo y las posibilidades de suceso de las inter-
sation du travail et les possibilités de succès des interventions visant venciones orientadas para la recuperación e integración socio-pro-
à la récupération et l’intégration des toxicomanes bénéficiaires du fesional de los drogodependientes, beneficiarios del “Programa Vida
programme Vida Emprego. À cette fin, nous avons étudié l’histoire de Emprego”. Para eso, ha sido estudiada la historia de vida de los ben-
vie des bénéficiaires d’un programme spécifique de soutien de l’Etat, eficiarios de un programa especifico de apoyo del Estado, el llamado
le «Programa Vida Emprego», programme pionnier au Portugal, qui a “Programa Vida Emprego”, programa pionero en Portugal, destinado
comme but de soutenir la réinsertion des ex-toxicomanes. al apoyo de la reinserción profesional de ex-drogodependientes.
Nous concluons que le succès ou l’échec de ces interventions se Se concluye que el suceso o el fracaso de estas intervenciones ocur-
produisent dans des contextes organisationnels différents et que la ren en contextos organizacionales diferenciados, emergiendo como
variable la plus cruciale est la médiation, qui suit tout le processus variable más determinante la figura de la mediación, que acompaña
d’intégration, en choisissant et préparant les employeurs qui embau- todo el proceso de integración, escoge y prepara los empleadores
chent les toxicomanes en traitement. que contratan los drogodependientes en tratamiento.
Mots-clé: Toxicomanie; Intégration Social; Responsabilité Social Or- Palabras Clave: Drogodependencia; Integración Social; Respons-
ganisationnel; Médiation Social; Programme Vie Emploi; Employeurs; abilidad Social Organizacional; Mediación Social; Programa Vida Em-
Organisations du Travail. prego; Empleadores; Organizaciones del Trabajo.
54 Integração Social e Estratégias de Mediação

1 – INTRODUÇÃO podem estar na origem de percursos de integração


O presente artigo debruça-se sobre o estudo empírico sustentados e duradouros, constituiu o objectivo da
“Contextos de Trabalho e Percursos de Integração de pesquisa.
Toxicodependentes”, que se propôs avaliar a relação
entre os percursos de inserção de consumidores pro- 2 – Enquadramento teórico
blemáticos de substâncias psicoactivas e a realidade No que diz respeito à integração social e com base
e características organizacionais dos empregadores em autores como Anthony Giddens3 e Rui Pena
que contratam estes indivíduos. O artigo começa por Pires4, a integração social não pode ser analisada fora
focar os conceitos que alicerçam o estudo referido e, do contexto de integração, uma vez que se reporta
após enunciar os procedimentos metodológicos, alude sempre a uma determinada ordem social. Esta ordem
às evidências alcançadas e às conclusões produzidas. é fruto das articulações entre a parte e o todo, que
O programa governamental1 de descriminação positiva, se traduzem numa padronização da vida social, na
de incentivo à contratação de toxicodependentes em aceitação e interiorização dos padrões vigentes em
processo de inserção profissional, Programa Vida determinados contextos e na sua reprodução.
Emprego, merece um enfoque especial, uma vez que Deste modo, os sistemas sociais têm uma ordem
constitui o campo de observação e análise do estudo própria, regras, rituais, rotinas, papéis, status definidos,
desenvolvido. função normativa e coerciva. A rotinização é a forma
Este estudo questiona a crença de que o sucesso como os actores repetem no tempo as acções, sem
do tratamento e reinserção de toxicodependentes uma intenção consciente, reflectida e elaborada,
depende exclusivamente dos indivíduos, do esforço e limitando-se a repeti-las sem antecipar as respectivas
vontade pessoal e das características de personalidade. consequências. A rotinização acaba por vincular os
Revelam-se, de facto, pelo menos como igualmente indivíduos e os sistemas a determinados quadros de
importantes, os atributos qualitativos dos sistemas referência e de funcionamento, e é entendida como
sociais, nomeadamente, e neste caso, os contextos a continuidade da personalidade do agente, aquilo em
organizacional e cultural. que o agente se torna. Este funcionamento, portador
A assunção clara da toxicodependência como uma de elementos securizantes, transmite a segurança do
doença e do dependente como um doente que care- conhecido e permite a organização das sociedades,
ce de apoio, que decorre da política governamental configurando um factor tranquilizador na vida dos
portuguesa consagrada pela Estratégia Nacional de indivíduos, conduzindo ao que Giddens (1989) chama de
Luta Contra a Droga2, reflectiu-se no enquadramento segurança ontológica, factor que condiciona a mudança
legal de descriminalização do consumo e posse para e a integração em contextos diferentes.
consumo de substâncias psicoactivas, actualmente em Pena Pires (1999, p. 35) define integração social como
vigor em Portugal, e consequentemente nas políticas, «os modos de incorporação dos actores individuais
nos programas e nas respostas adoptadas e imple- em novos quadros de interacção, em consequência
mentadas. Cada vez mais se constata que o paradigma de episódios de mudança social e de deslocamentos
descriminalizador conduz a respostas humanistas, intra-sistema de ordem…». Estes modos não são mais
inclusivas, de aproximação dos indivíduos aos serviços, do que processos de reparametrização, de inclusão
de apoio incondicional a cada um e de desmontagem de numa nova ordem interactiva. Esta reparametrização
estereótipos perpetuadores de situações de exclusão, acontece em momentos e situações críticas, onde a
numa lógica de mobilidade social. regularidade e a rotinização das práticas sociais são
Contribuir para a compreensão do problema da integra- total ou parcialmente abaladas. Uma fase de adaptação,
ção profissional de toxicodependentes em tratamento, negociação e aceitação na nova ordem social, surge
identificando as interdependências e as dimensões que como elemento que acompanha o processo de socia-
REVISTA TOXICODEPENDÊNCIAS | EDIÇÃO IDT | VOLUME 17 | NÚMERO 1 | 2011 | pp. 53-60 55

lização, com repercussões ao nível da personalidade um emprego proporcionam contextos de socialização


dos actores, fruto de quadros e estruturas normativas facilitadores da apropriação de sistemas relacionais.
diferentes. A formação profissional dirigida a toxicodependentes
Nesta fase importa preparar a macroestrutura. Con- em tratamento assume uma importância fulcral na
comitantemente com o processo de mobilidade dos criação de condições objectivas e subjectivas para que
actores, as instituições devem criar mecanismos de a integração em meio laboral seja bem sucedida.
adaptação a uma nova ordem, que sejam facilitadores O emprego surge como uma dimensão obrigatória para
dos processos de inclusão. a integração social de grande parte dos indivíduos5. A
Neste enquadramento, a integração social do toxicode- aquisição e a manutenção de um emprego representam
pendente inicia-se no momento em que este procura factores desencadeadores de mecanismos internos de
ajuda, onde se começa a desenvolver uma intervenção valorização pessoal, de melhoria da auto-estima e do
integrada conjunta, negociada e contratualizada, no auto-conceito. Ter um emprego representa a possibili-
sentido de inverter modos de funcionamento e de vida dade de aceder a um conjunto de bens, aumentando o
incorporados. grau de autonomia e de liberdade, e constitui um meio
No percurso de dependência, particularmente com uso facilitador dos processos de socialização, proporcio-
de heroína, assiste-se a uma progressiva substituição nando um conjunto de experiências sociais e relacio-
dos quadros de valores de referência, à desagregação nais, fundamentais ao desenvolvimento dos indivíduos
dos laços familiares e de amizade, com a escola, a e dos sistemas.
empresa e outras instituições. Verifica-se, em grande Apresenta-se, assim, como evidente, que as organiza-
parte dos casos, um afastamento do toxicodependente ções de trabalho constituem parceiros fundamentais e
do exercício dos direitos e deveres de cidadania, e a sua podem determinar percursos de inserção conseguidos,
integração num sistema social cuja estrutura se alicerça particularmente quando se trata de uma população
num padrão sociocultural específico, organizado para a desfavorecida, que deseja promover mudanças nas
exclusiva procura, oferta e consumo de drogas. suas vidas. Ao proporcionar e permitir que estes indiví-
Face a este quadro, a intervenção a preconizar passa duos passem por experiências profissionais dignifican-
pela reparametrização das rotinas quotidianas e das tes, por via do exercício de uma profissão enquadrada
práticas sociais dos indivíduos em tratamento, para por regras e rotinas estabelecidas, está a facilitar-se a
uma nova ordem de funcionamento, de que o uso e apropriação, por parte destes, da cultura, dos valores,
abuso de drogas não fazem parte. da ética e dos referenciais da organização. O contexto
Contudo, os obstáculos extrínsecos ao indivíduo exis- laboral representa por excelência um espaço de apren-
tem. A falta de preparação dos sistemas sociais para dizagem, de aquisição de competências para o desem-
a compreensão deste fenómeno e das suas idios- penho das tarefas, para as relações interpessoais e
sincrasias, e o confronto sistemático com a falta de para a vida em sociedade. Para além de constituírem
resultados, produz efeitos na construção e reforço das um sistema técnico e económico, são, também, um sis-
representações negativas sobre estes indivíduos e, tema social6, com uma herança e uma história própria,
consequentemente, na pouca participação e implicação princípios e valores centrados no trabalho, identidades
das entidades nas respostas e soluções. É por isso individuais e colectivas em interacção com o meio. Os
fundamental implicar a macroestrutura nas soluções, membros de uma organização, fruto das suas relações
preparar as estruturas comunitárias para potenciarem diárias, criam sistemas de representações partilhados
a transformação dos quadros disfuncionais individuais, ou de definição colectiva e controlada da situação, que
facilitando o desenvolvimento e a manutenção de per- constituem a cultura da organização. Esta, uma vez
cursos de inserção sustentados. estabelecida, prescreve modos de crer, pensar e agir.
A formação e qualificação profissional e a obtenção de Existe de facto uma dinâmica cultural entre o contex-
56 Integração Social e Estratégias de Mediação

to laboral e o meio em que a organização se insere, cionalização deste conceito traduz-se na promoção do
influenciando-se e transportando nos dois sentidos desenvolvimento de estratégias integradas de actuação
crenças, valores e regras7. em cada um dos actores e na relação entre eles. A
Consideram-se socialmente responsáveis as organiza- intervenção deverá focar-se, também, nos aspectos
ções que se comprometem a desenvolver, numa base psicossociais das toxicodependências e inverter o peso
voluntária, modelos de gestão integrada que promovam dos factores de ordem subjectiva, pois os preconceitos
actividades que contribuam para o bem-estar dos tra- e tabus face ao fenómeno da toxicodependência consti-
balhadores e das comunidades onde se inserem, que tuem um forte entrave ao surgimento de oportunidades
revelem preocupações ambientais, criando e mantendo e às possibilidades de integração.
um ambiente mais limpo, superando o estritamente exi- O papel da mediação passa por inverter o comporta-
gido na letra de lei. Também nas práticas quotidianas de mento defensivo dos toxicodependentes em tratamen-
interacção com os clientes, fornecedores e outros par- to, fruto da experiência de modos de vida marginais e
ceiros, as empresas socialmente responsáveis devem da recusa do valor do trabalho, da falta de informação
exigir destes o cumprimento das leis e privilegiar a rela- sobre oportunidades de emprego e de formação e da
ção com aqueles que também estão formalmente com- acomodação à situação. Assim, a mediação social deve
prometidos com o conceito de responsabilidade social. contribuir para a criação de condições de empregabili-
Neste contexto, ganha particular relevância o conceito dade, no apoio, na aquisição e desenvolvimento de fer-
de responsabilidade social organizacional (RSO), que ramentas de valorização pessoal, social e profissional,
surge no âmbito do papel fulcral que as organizações que esbatam o sentimento de insegurança e promovam
de trabalho têm vindo a assumir nas sociedades de um comportamento e uma atitude positiva, de progres-
hoje, na procura de soluções para os problemas siva confiança em si e nos outros.
ambientais, para os problemas sociais emergentes e A mediação social surge como um instrumento faci-
para o bem-estar das populações8. litador e potenciador do sucesso de outros objectivos
Nesta perspectiva, uma organização de trabalho que específicos: as terapias, o restabelecimento dos laços
incorpora nas estratégias de gestão a RSO, está, à familiares, a criação de condições habitacionais e os
partida, mais receptiva a contratar trabalhadores em cuidados de saúde. O acompanhamento na adaptação
situação de desfavorecimento social. Por outro lado, por ao contexto de trabalho, a aquisição de competências
força de uma cultura organizacional com características pessoais e sociais com vista ao relacionamento inter-
humanistas, preocupada com o desenvolvimento dos pessoal com colegas e chefias, constituem acções que
trabalhadores e a promoção do bem-estar geral, estas se enquadram no domínio da mediação social. Este
organizações proporcionam contextos facilitadores do apoio de retaguarda é suficientemente abrangente e
desenvolvimento pessoal e social. prevê o recurso a estruturas de apoio diversas, de
Foram, igualmente, alvo de análise e de avaliação, no forma a suprir necessidades e facilitar o acesso à qua-
que respeita à influência nos percursos de integração lificação e a empregos dignos.
estudados, as condições do posto de trabalho, nomea- Os sistemas sociais, nomeadamente as organizações
damente as condições físicas e ambientais, o conteúdo de trabalho, os empregadores, carecem igualmente de
e condições de execução das tarefas, condições organi- acompanhamento e intervenção continuada, tendo em
zacionais, factores psicossociais e de natureza social. vista uma atitude menos preconceituosa em relação à
Face à evidente dificuldade de aproximação do toxico- toxicodependência e a potenciação das experiências
dependente em recuperação ao mundo do trabalho, a profissionais. Coloca-se o enfoque na selecção, na
mediação social aparece como uma estratégia negocial preparação e na sensibilização das organizações para
de concertação entre os indivíduos e os empregadores, a realidade com que se vão confrontar, e para o papel
facilitadora do entendimento e da interacção. A opera- que podem desempenhar como condicionante central
REVISTA TOXICODEPENDÊNCIAS | EDIÇÃO IDT | VOLUME 17 | NÚMERO 1 | 2011 | pp. 53-60 57

no percurso de integração dos toxicodependentes. O Programa estimula fortemente a componente da


Deixa de se estar apenas centrado na correcção dos oferta de oportunidades para a reinserção, pela via
comportamentos e das atitudes dos toxicodependentes, da negociação com os empregadores, que começa
para se actuar na transformação, não menos profunda, por assentar na persuasão e no apelo ao sentido de
das instituições, dos agentes sociais e económicos. responsabilidade social. Esta negociação tem em conta
Em Portugal, uma parte significativa dos percursos de as necessidades do futuro trabalhador e assegura que
integração profissional de toxicodependentes faz-se as condições mínimas de qualidade do emprego estão
com recurso a um programa governamental de apoio garantidas.
à contratação de toxicodependentes em processo de A forma como se estrutura a evolução do contacto
integração, o Programa Vida Emprego9 (PVE), que com o emprego, a formação profissional e relacional
visa potenciar a reinserção social e profissional de que proporciona, o acompanhamento de que beneficia
toxicodependentes. o trabalhador desde a fase de formação especial ou de
Este Programa é a tradução operativa do conceito de estágio, permite, para além da aquisição de competências
mediação social, promovendo estratégias de articula- profissionais e relacionais, a recuperação da confiança
ção entre os sistemas de reinserção e do emprego, e e da auto-estima. Permite, ainda, acompanhar de
constitui o objecto empírico do presente estudo. Como forma atenta e pedagógica o processo de transição
já se referiu, não é eficaz actuar separadamente sobre de uma situação de ruptura com os sistemas sociais,
estas duas dimensões, de um lado a toxicodependência caracterizada por um modo de vida de exclusão e de
e os toxicodependentes, e do outro o emprego e os acomodação face à dependência, para uma progressiva
empregadores, mas na relação que se estabelece entre aquisição de autonomia. Neste percurso estão
eles e a benefício de ambos. implicados diversos actores com responsabilidades
Esgotadas as possibilidades de integração correntes, distintas: o toxicodependente, os serviços de reinserção
o Programa Vida Emprego dispõe de um conjunto de que garantem o acompanhamento e o apoio num
medidas substantivas, específicas, de apoio à integra- processo que é complexo e relativamente prolongado, e
ção socioprofissional, que se traduzem na comparti- as entidades empregadoras que, sentindo-se apoiadas
cipação dos encargos decorrentes da contratação, e no plano técnico, participam solidariamente, com
no acompanhamento técnico da implementação das benefícios próprios, pelo alargamento do campo de
medidas de apoio, actuando directamente sobre os recrutamento dos seus colaboradores.
factores de risco associados às recaídas e ligados ao
acesso ao emprego. 3 – Métodos e resultados
As medidas específicas previstas no PVE10 podem Tendo como pano de fundo estes conceitos, procurou-
suceder-se, permitindo a mobilidade de medida para ‑se analisar e correlacionar a realidade dos percursos
medida. Um indivíduo pode começar por beneficiar da de integração dos toxicodependentes com as caracterís-
medida estágio de integração11 e, terminado o período ticas organizacionais, e dos sistemas de trabalho onde
de apoio, transitar para a medida apoio ao emprego e decorreram os processos de integração profissional.
assim sucessivamente. O Programa impõe algumas O Programa Vida Emprego assumiu um papel instru-
restrições a esta mobilidade, nomeadamente não per- mental de variável de contexto e foi no quadro do seu
mite que se acumulem as mesmas medidas para os funcionamento que se realizou a análise aprofundada
mesmos indivíduos e determinando que não se veri- do objecto empírico da pesquisa, os contextos de tra-
fique a ocupação dos mesmos postos de trabalho por balho onde ocorreram os processos de integração.
beneficiários sucessivos. Igualmente não é permitida A selecção dos quinze estudos de caso foi realizada
a substituição de postos de trabalho existentes por procurando garantir a homogeneidade das situações de
beneficiários do PVE. partida dos indivíduos apoiados, numa tentativa de con-
58 Integração Social e Estratégias de Mediação

trolar o mais possível variáveis que podiam condicionar não, e em abstinência, e (c) dois casos de integração não
e enviesar os resultados do estudo empírico. conseguida – recaídas com abandono do PVE.
Para este efeito foram definidos como critérios de
selecção dos casos a estudar: (1) consumo de heroína, 4 – Discussão e conclusões
(2) tempo de dependência superior a cinco anos, (3) Do ponto de vista da análise produzida, comecei por
vários tratamentos e recaídas prévias, (4) idades entre constatar que, à excepção de um caso de integração
os 28 e os 45 anos, (5) último tratamento em regime de não conseguida, todas as organizações têm um ambiente
comunidade terapêutica com modelo biopsicossocial. psicossocial contentor e positivo e os trabalhadores
Desta forma, na medida do possível, isolou-se um apoiados são bem aceites.
grupo de indivíduos com perfis semelhantes, no que Em treze12 casos identifiquei culturas organizacionais
diz respeito à história de dependência e com trabalho de apoio, baseadas no modelo humanista, em que se
terapêutico recente idêntico. valorizam e respeitam os trabalhadores, que conco-
Quanto à qualificação da amostra, no que respeita ao mitantemente têm características dos modelos de
enquadramento familiar dos toxicodependentes, do objectivos, de regras ou de processos. Esta concilia-
ponto de vista dos recursos socioeducacionais e socio- ção proporciona, por um lado, ambientes contentores
profissionais, estamos perante uma amostra relativa- e compreensivos e, por outro lado, funciona como
mente homogénea, maioritariamente caracterizada por referência pedagógica e estruturante na integração no
indivíduos e famílias com baixos recursos educacionais mundo do trabalho. Num dos casos de integração não
e profissionais, que se traduzem em fracos recursos conseguida, a entidade empregadora tem uma cultura
materiais e simbólicos de existência e posicionamento organizacional de processo, com características muito
social. Os casos contrários, minoritários, ilustram a conservadoras, centralizadoras e autoritárias.
ideia de que a toxicodependência, sendo interclassista, Constatei que nos casos estudados não existe uma rela-
não constitui factor de risco idêntico para todas as ção entre a RSO, tal como é definida, e os processos de
categorias sociais. integração de toxicodependentes em tratamento. Efec-
No que concerne às organizações de trabalho, (1) tivamente, nenhuma organização cumpria os requisitos
80% eram de pequena ou micro dimensão, (2) 60% definidos no conceito de RSO. Contudo, à excepção
pertenciam ao sector de prestação de serviços à da organização que contratou uma das situações
colectividade, serviços sociais e serviços domésticos, de integração não conseguida, todas as organizações
e as restantes pertenciam ao sector da agricultura, da tinham práticas involuntárias que se podiam enquadrar
construção civil e obras públicas e do comércio. (3) no âmbito do conceito de RSO, apesar de não existir
Cerca de 47% eram sociedades e associações privadas comprometimento formal e uma intencionalidade na
de interesse público, cerca de 30% eram privadas, e as operacionalização e formalização do conceito.
restantes eram autarquias. Do ponto de vista das motivações das organizações para
Cada estudo de caso implicou a realização de entrevistas a contratação de toxicodependentes em tratamento,
junto dos actores com participação directa – o técnico verificou-se que existe conciliação entre a componente
mediador social, um elemento designado pela entidade económica e a de solidariedade.
empregadora e o trabalhador apoiado. À excepção de uma situação de não integração, todos
Foram definidas três categorias de resultados dos per- os outros casos têm alguma autonomia na execução
cursos de integração, com a seguinte distribuição: (a) dez das tarefas, conhecem e participam na dinâmica orga­
casos de integração conseguida – indivíduos integrados nizacional. A mesma relação se aplica à estrutura
profissionalmente e em abstinência, (b) três casos de organiza­cional, simples, e à cultura e dinâmica organi-
integração em vias de ser conseguida – indivíduos a bene- zacional com características humanistas, de valorização
ficiar do apoio do PVE na medida Apoio ao Emprego, ou dos recursos humanos.
REVISTA TOXICODEPENDÊNCIAS | EDIÇÃO IDT | VOLUME 17 | NÚMERO 1 | 2011 | pp. 53-60 59

Apenas numa situação de integração não conseguida, o dor, funcionam como uma garantia, que lhe transmite
conteúdo das tarefas pode ter influenciado o abandono. segurança para aderir e permanecer no Programa.
As razões que podem estar na origem dos dois Face a tudo o que foi estudado, podemos afirmar que
casos de integração não conseguida estão associadas a integração socioprofissional de toxicodependentes
a um trabalho técnico de mediação social de menor em tratamento, contratados ao abrigo do Programa
qualidade: (1) insuficiente preparação dos indivíduos Vida Emprego, depende em grande parte da qualidade
em processo de integração, (2) conteúdo funcional do do trabalho de mediação social e do desempenho do
posto de trabalho ocupado desajustado, (3) falha na mediador.
selecção e na preparação da entidade empregadora, (4) O que ressalta do estudo realizado é que o sucesso
deficiente acompanhamento na adaptação ao contexto ou o insucesso da integração socioprofissional de
de trabalho. toxicodependentes em tratamento ocorre em contextos
A análise dos dados deste estudo vem confirmar a organizacionais diferenciados, emergindo, como variável
hipótese inicialmente colocada de que “integração mais determinante, a figura da mediação social.
socioprofissional de toxicodependentes em tratamento Por último, é de referir que os resultados deste estudo
está facilitada em contextos de trabalho que valorizem tiveram efeitos directos nas guidelines para a interven-
e promovam o bem-estar dos recursos humanos.” ção em reinserção, seguidas por todas as equipas de
Através dos resultados obtidos foi possível reafirmar e reinserção do IDT, I.P. a nível nacional, as quais pre-
demonstrar que a figura da mediação social constitui conizam e enfocam a acção nos termos aqui descritos:
uma componente fundamental para a sustentabilidade trabalhar no sentido da empregabilidade, intervir com o
dos processos de integração profissional. Ao mediador indivíduo e concomitantemente nos sistemas sociais, onde
social compete-lhe um papel transversal a todo o per- evidentemente se inclui a família, e desenvolver práticas
curso de integração socioprofissional. Cabe-lhe proce- sistemáticas de mediação e acompanhamento social.
der à avaliação das condições psicossociais do toxico-
dependente e assegurar que este está em condições de
iniciar este percurso ou prepará-lo para este efeito. É Contacto:
também neste momento que se realiza o diagnóstico e
Alcina Branco Ló
o balanço dos recursos pessoais e qualificacionais, das
Licenciada em Gestão de R. H e Psicologia do Trabalho, Mestre
motivações profissionais e da necessidade de forma- em Sociologia do Trabalho, das Organizações e do Emprego.
ção profissional prévia. Assume funções de coordenação nacional na implementação
Como se verificou, a selecção das organizações reveste- de programas de Prevenção, na Dissuasão. Actualmente, na
‑se de importância extrema na função de mediação Reinserção.
Responsável do Núcleo de Reinserção do Departamento de
pois nem todas as organizações reúnem condições
tratamento e reinserção, I.D.T..
para integrar nos seus quadros trabalhadores com esta alcina.lo@idt.min-saude.pt
problemática associada. Na sequência da prospecção de
mercado e da identificação das entidades interessadas,
o trabalho desenvolvido vai no sentido de estabelecer NotaS:
contactos regulares com as entidades empregadoras, 1 – Da responsabilidade do Instituto da Droga e da Toxico-
conhecer o perfil dos responsáveis, as dinâmicas e os dependência, I.P. e do Instituto de Emprego e Formação
contextos organizacionais, e as verdadeiras motivações Profissional, I.P.
da adesão. 2 – PRESIDÊNCIA DO CONSELHO DE MINISTROS (1999).
3 – GIDDENS, Anthony (1989).
A proximidade e o estabelecimento de relações de 4 – PIRES, Rui Pena (1999).
confiança com o trabalhador apoiado contribuem e 5 – Sabemos que para muitos toxicodependentes conseguir
facilitam o acompanhamento do caso. Para o emprega- um emprego é um objectivo demasiado ambicioso.
60 Integração Social e Estratégias de Mediação

6 – Sainsaulieu (1997, p. 179). European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction (1997).
7 – Idem. Drug Demand Reduction in Workplace, Netherlands, The Jelilinek
8 – Bento (2003). Consultancy and Alcon Foundation.
9 – O Programa Vida Emprego foi criado por uma Resolução
Instituto Português da Droga e da Toxicodependência (2008). Situação
do Conselho de Ministros (nº 136/98, de 4 de Dezembro).
do País em Matéria de Drogas e Toxicodependências. Vol. I – Informação
10 – Medidas específicas: Estágio de integração, Apoio à Estatística, Lisboa, Instituto Português da Droga e Toxicodependência.
contratação, Prémio de integração, Apoio ao auto-emprego.
11 – O beneficiário do PVE, na óptica de que o trabalho do Instituto Português da Droga e da Toxicodependência (2008).
mediador não se deve restringir às medidas do PVE, pode Situação do País em Matéria de Drogas e Toxicodependências. Vol.
já ter beneficiado de outras medidas gerais do Instituto de II – Actividades Desenvolvidas, Lisboa, Instituto Português da Droga
Emprego e Formação Profissional. e Toxicodependência.
12 – Num caso de integração conseguida, não foi possível
categorizar a cultura organizacional. Instituto Português da Droga e da Toxicodependência (2002). Relatório
de Actividades do Programa Vida-Emprego, Lisboa, IPDT.

Ló, Alcina Branco (2007). Contextos de Trabalho e Processos de


Referências Bibliográficas Integração de Toxicodependentes, Lisboa, Instituto da Droga e da
Toxicodependência, Colecção Estudos – Nº3.
Bento, Luís (2002). “Da CSR – Corporate Social Responsability à RSO
– Responsabilidade Social das Organizações. Alguns contributos para Neves, José Gonçalves (2000). Clima Organizacional, Cultura Orga­
a reflexão”, in Sociedade e Trabalho, nº 7/18, pp. 31-38. nizacional e Gestão de Recursos Humanos, Lisboa, Editora RH.

Giddens, Anthony (1989). A constituição da Sociedade, Brasil, Livraria Pimentel, Duarte (1988). “Sobre a cultura de empresa: contributo para
Martins Fontes Editora Lda. a clarificação de um conceito” in Sociologia: Problemas e Práticas, nº 5,
pp. 133-146.
Pires, Rui Pena (1999). “Uma teoria dos processos de integração” in
Sociologia, Problemas e práticas, nº 31, pp. 9-54.
Quartenaire Portugal (2005). Estudo de Avaliação do Programa
Vida Emprego, Lisboa, estudo encomendado pelo Instituto de
Presidência do Conselho de Ministros (1999). Estratégia Nacional de
Emprego e Formação Profissional e pelo Instituto da Droga e da
Luta contra a Droga, Programa de Prevenção da Toxicodependência
Toxicodependência.
– Projecto VIDA, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda.
Sainsaulieu, Renaud (2001). Sociologia da Empresa – organização,
cultura e desenvolvimento, Lisboa, Instituto Piaget, Colecção Sociedade
BibliogrAfia CONSULTADA e organizações/28.

Capucha, Luís (1998). “Exclusão social e acesso ao emprego: paralelas Sainsaulieu, Renaud e Seghrestin, Denis (1987). “Para uma teoria
que podem convergir” in Sociedade e Trabalho, nº3, pp. 60-69. sociológica da empresa” in Sociologia: Problemas e Práticas, nº 3,
pp. 199-215.
Capucha, Luís Manuel, et al. (1999). Grupos Desfavorecidos Face ao
Emprego – Tipologia e Quadro Básico de Medidas Recomendáveis,
Lisboa, IEFP, (Estudos e Análises, nº8).

Capucha, Luís et al. (1999). “Ter uma vida, ter um emprego”, in


Sociedade e Trabalho, nº 7, pp. 57-56.

Castel, Robert (2000). “Pensar a exclusão nos dias de hoje: não-


‑integração ou desintegração?, in SOULET, Marque Henry (Org.), Da
não–integração, Coimbra, Quarteto Editora.

Castel, Robert (2001). A metamorfose da questão social, Uma crónica


do salário, Traduzido por Poleti, Iraci D., Petropolis, Editora Vozes.

European Foundation for the Improvement of Living and Working


Conditions (2003). Towards a sustainable corporate social responsability,
Luxemburg: Office for Official Publications of European Communities.

Você também pode gostar