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O material abaixo foi obtido durante a aplicação de um teste de Rorschach a uma paciente
de quatorze anos, vitima de quadro epilético, a quem atribuirei o pseudônimo de Rita. O teste foi
trazido a mim por uma aluna, basicamente, para exercitarmos a classificação formal das respostas.
O número de respostas dada ao teste era bastante acima da média1 e, inicialmente, escapou-me
que um bom número delas fornecia, cifradamente, riquíssimo material simbólico, dando a chave, ao
mesmo tempo, para a descoberta da etiologia de seu quadro nosológico. O objetivo principal deste
trabalho é expor uma matriz cognitiva inconsciente pouco explorada pela Psicanálise clássica.
Prancha I
1, 2 ...
3. (D6) Isto aqui parece que alguém está em algum lugar, nesse espaço escuro e aqui
duas mãos para fora;
4. (D4)Assim, nota-se mais uma coisa aqui: a mancha está escura ... faz o quadril de uma
mulher; há espaço bastante para ser mulher;
5 ...
6. (d6, posição “c”) Se a gente levasse em conta que aqui fosse uma montanha corroída,
podia parecer aqui um rosto, as pernas um pouco curvadas, dá impressão de ser uma pessoa que
chegou cansada e sentou;
7. (d6, posição “c”) Quando olho aqui, esse negócio parece o lugar por onde sai a criança.
Só.
Prancha II
1 ...
2. (Toda a parte negra da prancha) Parece osso da bacia;
3, 4, 5 e 6 ...
Prancha III
1, 2, 3 ...
4. (D1) Parece o osso da bacia novamente, esse meio vermelho;
1
5 e 6 ...
Prancha IV
1, 2 e 3 ...
Comentário de Rita (relativamente aos pequenos espaços vazios adjacentes a D4): -- Por
que todas as fotos têm esse orifício igual? Todas essas são assim, têm esse desenho, sempre a
gente nota isso ...
4 ...
Prancha V
1 ...
Prancha VI
1, 2, 3, 4 ...
5. (D1, lado direito, posição “c”) Daqui pela metade para cá (lado direito da prancha de
cabeça para baixo), é um bebê: linguinha, aqui uma cadeirinha, a mesinha, aqui desce. Talvez o
joelho, a mesa, vai descendo, o pé da mesa, da cadeira, o chuca-chuca aqui em cima;
6, 7 ...
Prancha VII
1, 2, 3, 4, 5 ...
Prancha VIII
1 ...
2. (D4?) Não agüento mais! Osso da bacia, aqui! Sempre aparece osso da bacia! Que
nervoso!
3 ...
4. (parte central de D7) Aqui parece uma vagina, no centro. Embolou tudo! Agora não
sei mais nada! (Fecha os olhos)
Embolou as cores, de repente! Que nervoso!
5. (parte central de D4) Isso aqui parece uma coluna, ... um pedacinho de uma coluna;
6 ...
2
particularmente notável. Veja-se a intensidade com que reage -- “não agüento mais!”, “não sei mais
nada!”, “que nervoso!” -- à idéia, que lhe persegue, de “osso da bacia”. Ora, “osso da bacia” é uma
clássica referência disfarçada a “órgão sexual feminino”, mais exatamente, “vagina”. Com efeito,
duas respostas adiante, ela perde de maneira mais completa a censura e se refere diretamente ao
que já mencionara mais de uma vez de maneira indireta: fala diretamente de “vagina” e sua reação
é de extrema confusão: “uma vagina, no centro. Embolou tudo! Agora não sei mais nada!”, etc.,
etc....
Por que essa reação tão intensa à vagina? O “medo à castração” freudiano? Deixemos
essa resposta para mais adiante. Um último comentário, antes de retornarmos ao texto das
respostas: A resposta “coluna”, como a mencionada “osso da bacia”, é também uma expressão
simbólica da atração-repulsa de Rita pela vagina. Esse fato, nos é sugerido não só pelas
semelhanças estruturais entre uma e outra3, mas, também, por “coluna” seguir imediatamente à
resposta “vagina”, altamente carregada de afeto4.
Prancha IX
3 Naturalmente, “coluna” também pode,-- e, talvez, inclusive, o faça com mais freqüência,-- representar o órgão sexual
masculino, mas, no caso em questão, o contexto aponta para uma ênfase à parte interna da coluna, como veremos a
seguir.
4 Em minha experiência, só o neurótico obsessivo-compulsivo -- que não é o caso da paciente -- graças ao mecanismo
do isolamento, consegue fazer seguir a uma resposta altamente carregada de afeto, outra que com ela não se relaciona.
5 A idéia de voltar ao útero, por sua vez, é, por vezes, representada pela idéia de descer uma montanha, morro ou
ribanceira (principalmente quando a descida é lenta e perigosa) e pela idéia de sepultamento. O seguinte sonho ilustra
bem essas equações simbólicas: A. P., uma mulher, sonha que está tentando subir a encosta de uma montanha com
muita dificuldade, quando começa a sentir que uma força intensa começa a atraí-la cada vez mais irresistivelmente para
baixo. Olha para trás, na direção do ponto para o qual está sendo atraída, e vê que o que lhe espera é ... seu próprio
caixão. Sua angústia cresce cada vez mais à medida que é arrastada para o seu destino até que, para sua surpresa, ao
cair definitivamente dentro do caixão, tem a sensação de angústia substituída por uma vivência de extrema beatitude.
Este sonho ilustra com extrema clareza a equação simbólica “morte = passagem angustiosa pela vagina + recuperação
da situação intra-uterina”. Revertere ad locum tuum!
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uma coluna (= vagina), querem entrar (= nascer), mas não podem, porque a coluna é muito
resistente (= falta de dilatação da mãe), e não podem voltar (= desistir de nascer), morrendo (=
vivência de angústia6), por falta de mantimentos (= anóxia). Frente a esse material, passei a minha
supervisionanda a opinião de que a epilepsia de Rita era provavelmente devida a uma anóxia
perinatal. Foi-me, então, informado que a paciente tivera um parto extremamente difícil, que exigiu
uma cesariana de emergência, confirmando minha hipótese.
Se voltarmos, agora, nossa atenção para as respostas que foram dadas desde a primeira
prancha, podemos ver que, esparsas entre o grande número das demais respostas que dera ao
teste, Rita, desde o início, estava-nos comunicando seu trauma em relação ao momento de nascer:
I: “Isto aqui parece que alguém que está em algum lugar, nesse espaço escuro e aqui
duas mãos para fora”;
... “o quadril de uma mulher; há espaço bastante para ser mulher” (esta críptica resposta,
agora, pode ser desvendada: é uma óbvia realização de desejo; o que houve, na verdade, foi
insuficiente dilatação do que deveria ter sido sua passagem para o nascer);
“Se a gente levasse em conta que aqui fosse uma montanha corroída (essa deve ter sido a
palavra que a paciente tentou evocar, sem sucesso, quando, na prancha IX, fala da “evolução” da
montanha), podia parecer aqui um rosto” ... “uma pessoa que chegou cansada e sentou” (= parto
laborioso, mas, afinal, bem sucedido);
“Quando olho aqui, esse negócio parece o lugar por onde sai a criança” (mesmo lugar
onde viu a “montanha corroída”, reforçando a equivalência “montanha = genitália feminina”);
IV: “Porque todas essas fotos têm esse orifício igual?” (note-se que, ao longo de toda
minha experiência com o teste, jamais vi tamanha ênfase dada a esses brancos simétricos da
prancha IV, que, aliás, via de regra, não são sequer notados);
VI: ... “um bebê: linguinha, aqui uma cadeirinha, a mesinha” (a paciente se refere
àquelas cadeirinhas de pé alto, com tampo superior móvel, que, abaixado, ao mesmo tempo em que
lhe serve de mesa, prende,-- dificuldade de nascer,-- a criança à cadeira,-- cadeira = quadris!,--
brilhante “resposta de complexo”, indicando, de maneira extremamente disfarçada, o traumatismo de
parto de que foi vítima a paciente).
6 Lembremos o fato, que aqui cai como uma luva, de que o termo “angustia”, em latim, significa “passagem estreita”,
“desfiladeiro”.
4
Quanto a “um homem tirando fotografia”, entendo como um deslocamento defensivo, para
o nível visual, dos impulsos frustrados de penetração da vagina com o próprio corpo.
Mas voltemos à montanha da prancha IX. Rita, como sugeri anteriormente, cometeu um
lapso, substituindo a palavra “corrosão” pela palavra “evolução”. O que estaria recalcando, ao
cometer esse lapso? “Corrosão” é algo destrutivo; foi substituído por, “evolução”, algo de natureza
oposta: permito-me concluir que ela está tentando afastar de sua consciência seus impulsos
agressivos em relação à vagina, impulsos, aliás, mais do que compreensíveis, vista sua traumática
experiência com aquela, ao nascer. Essa disposição agressiva em relação à vagina vai emergir
claramente nas respostas dadas à prancha X7. Entretanto, antes de seguirmos em nossa análise,
voltemos à pergunta que tinha sido deixada em suspenso após a descrição das respostas dadas à
prancha VIII -- “Por que tão intensa repulsa à vagina?” – pergunta a que, na verdade, cabe
acrescentar outra – “Por que uma tão grande atração por ela?” – visto que, houvesse só repulsa, ela
não estaria coalhando esse teste, de forma implícita e explicita. Por agora, não obstante, iremos nos
interessar em responder apenas a primeira delas:
7 Vale lembrar que, em meu primeiro contato com esse material, a análise simbólica das respostas foi feita exatamente
na ordem que está sendo seguida aqui: as respostas eram muitas e eu estava atento à sua classificação, não a seu
significado; só na prancha VIII comecei a ficar sensível à contínua referência, direta ou indireta, à vagina, obtendo uma
compreensão mais global dessa referência a partir da segunda resposta à prancha IX, o que me levou a rever todo o
teste e desvendar as referências ao nascimento que vinham sendo feitas desde a prancha I. Daí, prossegui, como
faremos em seguida, para a análise da prancha X.
8 E até poderíamos acrescentar, desejo sexual, terciariamente.
9 Dizia Freud: “Muitos, antes de mim, namoraram a idéia da sexualidade como a etiologia das neuroses. Eu casei com
ela.” Com direito aos louvores e críticas que caibam por isso ... Freud namorou a idéia do nascimento como protótipo da
ansiedade. Rank casou com ela. Deixemos, portanto, a este os louros e críticas que a isso correspondem.
10 Nos pacientes nascidos por cesariana planejada (não de emergência, como no caso em pauta), esse trauma também
está presente, embora com seu componente mecânico,-- o trauma completo supões outros componentes: respiratório,
térmico, dérmico, auditivo, visual, etc.-- atenuado.
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A resposta, portanto, à pergunta de por que a paciente que vimos estudando tem repulsa à
vagina é porque nasceu e, à de por que sua repulsa é tão intensa é porque, no seu caso, o trauma
de parto foi particularmente intenso – com, inclusive, seqüela neurológica.
Como fica, então, o famoso “medo da castração”, de que fala Freud? Antes de tudo, é
necessário explicitar que essa expressão, na obra freudiana, recobre dois conceitos bastante
distintos: num, “medo da castração” significa “medo de ser castrado”; noutro, significa “medo à
visão da castração” – prototipicamente ilustrado pelo choque do menino ao ver o órgão sexual da
mulher. Interessa-nos, aqui, a discussão do segundo desses significados. O que se defende neste
trabalho é que o segundo desses medos não é, de forma nenhuma, à castração, muito ao contrário:
a teoria da castração – a idéia de que já houve um pênis ali – é uma defesa, idealizada com o fim de
obscurecer o fato de que, ali, existe um buraco 11 , a vagina, primeiro “cabide ideativo” para a
memória afetiva12 de angústia que ficou da experiência do nascimento. Em outras palavras, em seu
nível mais primitivo, o que assusta, na mulher, não é a falta de pênis: é a presença da vagina e
essa é uma correção essencial a ser feita nos critérios interpretativos da Psicanálise clássica.
É uma séria falha dessa última o haver permitido que a fantasia defensiva dos pacientes
fosse entronizada sob forma de teoria, ao nomear de medo da castração o que, na verdade, não
passa de uma forma travestida do medo à vagina, fundamental herdeiro ideativo do trauma do
nascimento.
Voltemos ao texto de nosso teste, cujo principal mérito é pôr às claras esse medo e sua
origem. Passo, doravante, a fazer meus comentários após cada resposta descrita:
Prancha X (7 respostas):
11 Um exemplo de como o “medo à vagina” é mal representado na mente humana é o fato de que Ewald Bohm, em seu
indispensável “Manual do Psicodiagnóstico de Rorschach”, diz que irá chamar o que deveria ser chamado de “choque
ao buraco” ( = choque à vagina, típico frente à prancha VII), de “choque ao branco”, “por razões de eufemia”! Um
interessante blending de decodificação simbólica com diplomacia!
12 “Affektbildung”, conceito introduzido por Freud e, desafortunadamente, pouco aproveitado por ele.
13 Uma de minhas pacientes, com problemática análoga à de Rita, afirmou, durante uma de suas sessões: “Quando
estou na cama com meu companheiro, somos três: eu, ele e a minha vagina. E nós dois, contra ela!” Mais claro,
impossível! No que diz respeito a Rita, infelizmente, não possuo follow-up que pudesse confirmar ou desconfirmar
minhas previsões.
6
3. (D12) Estou ficando sádica por bacia... O pior é que tenho a minha!
6 . (D5, posição “c”) Dá impressão de um útero com uma criança nascendo. Dá
impressão, não é? Tem perna, tem tudo, só que está nascendo errado, de cabeça para
baixo.
7. (D12, posição “c”) Útero onde fica o bebê. Os ovários de onde desce a menstruação.
Parece.
Como nossa interpretação geral caso se nos impôs quando vimos a segunda resposta da
paciente à prancha IX, suas respostas à prancha seguinte, ainda desconhecidas quando aquela
interpretação foi feita, servem de elemento de validação para essa última.
A tese geral deste trabalho é a de que o conjunto de dados aqui transcritos sustenta:
(1) A importância do trauma do nascimento;
(2) A fartura do material ideativo que diretamente o representa;
(3) A participação desse trauma na construção de um “medo à vagina”,
distorcidamente reconhecido por Freud sob a forma encobridora de “medo à
castração”.
Não conheço material clínico de pacientes sob análise que contradiga essas conclusões.