Você está na página 1de 34

CURSO DE ANTROPOLOGIA MODERNA

ERIC R. WOLF
da Univenidado de Michigan

SOCIEDADES
CAMPONESAS
' ,1
1 '
Tradução de
Osw-ALno CALDEIRA e. DA S1LvA

.'1 Revisãó técnica de


GILBERTO VELHO

segunda edição

''ª
llllllll lllllli111111111111111

t .. : 1· .... • • ' ••

ZAHAR EDITORES
RIO DE JANEIRO
r..
'

Tftufo original:

Peasants
lNDICE
Traduzido da -primeira edição, publicada cm 1966 por
., PRENTICE-HALL INC., de Englewood Cliffs, New Pre/1kio . . . . .. .. . . .. . . . . . . . . . .. . . .. . . . . .. ... .. . . . .. . 9
1 Jersey, Estados Unidos da Am~rica, na súie Pou11tÜlions
o/ Modem Anthropowi,, organizada por MilsHALL D. Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
SAHLINS
1. O CAMPESINATO E SEUS PROBLEMAS . .. .. . .. .. .. .. .. 13
Camponeses e Primitivos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . l!
Civilização .'. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
Mlnimo Cal6rico e Excedentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
Excedentes Sociais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20
© Copyriih1 1966 by Pre11lice-H.U Inc. O Papel da Cidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24
O Lugar do Campesina/o na Sociedade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
r O Dilema Camponês . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
L DEDALUS - Acervo - FFLCH
1 2. ASPECTOS ECONôMICOS,00 CAMPESINATO . . . . . . . . . . 35
1

.1 lll~~I H~ll!~~l~I~ ~~~~~


20900014848
Bcótipos Camponeses . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Ecótlpos Paleotécnicos .... . ...... ... .. . .. .. ...... .... . , . . .
Ecótipos Neotünicos .. .. . . . . . . . . . .... .. ... . ..... , . . . . . . .
35
37
56
•· A Provisão de Bens e Serviços Complementares . . . . . . • . . . . . . . 59
·1 capa de A Disposição dos Excedentes Camponeses . . . . . . . . . . . . . . . . . 74
Jh1co Tipos de Domlnio ........ .. ...... . .. .... .. --· . . . . . . . . . . . . 76

3. ASPECTOS OCIAIS DO CAMPESlNATO . . . . . . . . . . . . . . . 88


O Grupo Doméstico 110 Carnpesi11ato . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88
Tipos de Familia Camponesa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
Padrões de Herança ... .......... . ... ...... ..... ._. . . . . . . 103
Pressões Seletivas e Estratégias De/emivas . . . . . . . . . . . . . . . . . . 108
Coalizões Campo11esas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113
1976 Coalizões Camponesas e Ordem Social Envolvente . . . . . . . . . . . . 12}

J Direitos para n língua portuguesa· adquiridos por 4 . O CAl'@ESINATO E A ORDEM IDEOLóGICA . . . . . . . . . . 130
ZAHAR EDITORES Cerimonial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130
Caixa Postal 207, ZC-00, Rio
q!_le se reservam a propriedade desta vers.ão Níveis de Tradição Religiosa • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 134
Movim entos CampotJeses .... ... .. .. .. .. . . . , . . . . . . . . . . . . . . . 142
lmpreBBO -no Brasil Referências Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147
1. O Campesinato e seus Problemas

·•;.,
Este livro estuda os camponeses com uma abordagem an-
tropológica. Apesar de ter a Antropologia Iniciado suas pes-
quisas entre os chamados povos primitivos do 111undo, ultima-
.mente os antropólogos têm-se mostrado cada vez mais interessa-
dos nas poim lações ry,r.ais, que fazem parte de_Áocie9-adesmãfo-
re~_.e mais complexª-s. Onde se via antigamente um antropólogo
exa~ õ os meios de vida de uµi bando errante de caçado-
' ·.\ res do deser.to ou de cultivadores rnigratótios que ocupam uma
povoação em alguma floresta tropical, vê-se agora, . com bastante
~reqüência, o mesmo pesquisadot interessado em um1,1 pequena
· cidade da Irlanda, índia ou China, ou seja, áreas do globo que
abrigaram durante muito tempo uma variada e l'ica tradição 'cultu-
ral, abrigada por uma grande divetsidade de tipos humanos. En-
tre estes, os cultivadores rurais constituem apenas um segmen-
to - ainda que muito importante. Assim, os tipos humanos
atualmente colocados sob exame antropológico permanecem em
contínua interação e comunicação com outros grupos sociais. O
que está acontecet;1do em Gopalpur, na índia, ou em Alcalá de
la Siena, na Espanha, não pode ser explicado nos termos de
cada uma dessas vilas isoladamente; a explicação implica tam-
bém considerações que incluem tanto forças externas· que atuam
sobre essas vilas como as reações de seus componentes ·àquelas
forças.

Camponeses e Primitivos

Nossa primeira preocupação será, portanto, responder o que


distingue os camponeses dos primitivos mais freqüentes estuda-
dos pelos antropólogos. Já falamos dos ca.!ll~ - como çµlt1
vadores rurais; ou seja, eles cultivam e criam gado no campo e
n'âo em estufas construídas no centro da cidade ou em canteiros
de lírios em peitoris de janelas. Mas ao mesmo tempo não po-
.(
,,
1
14 o CAMPESINATO E SEUS PROBLEMAS 15
Norte. Mas é muito mais comum encontrarmos tribos pri_ m m-
1t-~/.: vas que mantêm relações com seus vizinhos, Até mesmo -os sim-
•"':.-',;
': ~ '
r
ples caçadores e coletores dos desertos australianos mantêm la-
ços de união entre grupos espalhados, às vezes em grande área,
através de um permanente intercâmbio econômico·~ ritual. As
tribos da bacia amazônica, aparentemente isoladas em bolsões s~-
parados da floresta tropical, comerciam umas com as outras, rea-
lizam casamentos entre seus membros ou guerreiam entre si, pois
a guerra também é uma forma de relacionamento. Devemos a an-
tropólogos como Bronislaw Malinowski, o autor de Argonauts
of the W estern Paci/ic ( 1922), descrições e análises do comér-
cio que une a extremidade leste da N0va Guiné aos arquipélagos
adjacentes através de uma rede de transações cerimoniais e co-
merciais . Igualmente, os índios da planície dos Estados Unidas,
como podemos perceber agora, são parte integrante da história
americana, sendo influenciados pelos avanços na fronteira e aca-
1
bando por influenciá-los também.
't., •,• .... A d~tins_~o entre Erimitiyos e camponeE.U]ão repousa, por-
/~.-., \ ',.•\•. \
\'', ''· ',
Ir~• \
:':.
1,,
1
tanto, no maior ou menor envolvimento exter.\Q.r..s.o.frid.Q_Qoú um
~) 1
ou outro, mas no caráter desse envolvimento. Marsha D.
As principais regiões camponesas do mundo. '
Sahlins caracterizou o mundo econômico e social dos povos pri-
,f, 1
;~ )
mitivos da seguinte maneira:
' J

deremos chamá-los de / azend-eiros ou empresários 0.gricolas, pe- Nas economias primitivas, a maior parte da produção está estrutu-
rada em função das necessidades dos produtores ou do desencargo
lo menos no sentido em que são conhecidos nos Estados Unidos. de obrigações de parentesco e não em função do comércio ou do
A fazenda norte-americana é ,fundamentalmente uma empresa de lucro. . Deduz-se daí que o controle efetivo dos meios de produção
negócios, que combina fatores de produção comprados no mer- na sociedade primitiva está descentralizado, unto local como fa.
cado para obter lucro, vendendo-os vantajosamente no mercado miliarmcntc. As proposições que se seguem implicam, portanto:
1) as relações econômicas coercitivas e de exploração, assim como
de produtos. O camponê~ entretanto não realiza um eoipreen- as relações sociais correspondentes de dependência e domínio, não
dimen o no sentidÕ econômico ele sustêOta uma famili~o estão· presentes no sistema de produção; 2) diante da ausência do
uma empresa, Nlasexistem também povos primitivos que vivem incentivo provocado pela troca do produto por uma grande quan-
tidade de bens em um mercado, existe uma tendência a limitar a
no campo cultivando e criando gado. O que ~istingue, então, produçiio npenas aos bens que podem ser diretamente utilizados
~ --- ----------
o camponês d9 cultivador primitivo?
:------
--
Uma forma de abordar essa questão é a que diz que os cam-
pelos produtores. l

poneses fazem parte de uma sociedade mais vasta e complexã , ó Portanto, na sociedade primitiva os produtores controlam q,s
qúe nao á ~ i os e os- bandos" primitivos. Tal meios de produção, iriclusíveseupróprio trabalho, e trocam-no,
~- ·-------
resposta não resolve, no entanto, a questão; na verdade, os po-
vos primitivos raramente estão isolados. Existem exceções, co- 1 Marshall D. Sahlins, "Political Power and the Economy in Primi-
mo os esquim6s polares, que estiveram afastados de qualquer tive Society", em Essays i11 tbe Science of Culture: ln Hono; of Leslie
contato exterior até serem redescobertos para o resto do mun- A. White, de Gcrtrudc E: Dole e Robert L. Carneiro (Nova York: Tho-
do pelo Almirante Peary, em sua tentativa de chegar ao Pólo mas Y. Crowell Company, 1960), p. 408.
0 CAMPESINATO E SEUS PROBLEMAS 17
16 SoCIEDADES CAMPONESAS
locidade variável, tomando diferentes direções, sendo adapta-
junto com seus produtos, pot· bens e serviços definidos cultural- do às exigências dos novos climas e novas situações sociais. Mas
mente como equivalentes a outros. No entanto, durante o pro- nem todas as áreas do mundo foram alcançadas de maneira se-
cesso da evolução cultural, sistemas t fo simples como estes vão melhante por esse processo. Os habitantes de certas regiões nun-
dando lugar a outros, nos quais o controle dos meios de produ• ca chegaram a aceitar o cultivo da terra ou o fizeram com relu-
ção, inclusive a distribuição do trabalho humano, transfere-se tância, enquanto outros tomavam a dianteira para alcançar no-
das_ mãos dos produtores primários para as de grupos que não vos níveis de pi:odutividade e organização social, que permitissem
estao encarregados do processo de produção, mas que assumiram o desdobramento da divisão funcional do trabalho entre os que
funções executivas e aélministrativas, baseados no uso da força. cultivam e detêm o poder, o que definimos como marco da ci-
A constituição de uma sociedade desse tipo não estará mais ba- vilização.
seada nas trocas diretas de bens e serviços equivalentes entre um'
grupo e outro; mas tanto bens como serviços serão fornecidos
primeiramente a um centro e só depois redistribuídos. Nas so- Mínim,o Calórico e Excedentes .
ciedades primitivas, os excedentes são trocados diretamente pe-
-I~s gru~os ou por s~us 1:1embros; os camponeses, no entanto, . ,-'J Já se. disse algumas vezes que a sustentação de uma divisão
sa~ cultivadores rut·a1s cuJos excedentes são transferidos para as / funcional do trabalho entre os que cultivam e os que governam
maos de ':11:11 grupo dominante, constituído pelos que governam, é uma simples conseqüência da capaciclade que uma sociedade
~e ?s ~t1lizam para assegurar seu próprio nível de vida, e par (/' tem de produzir excedentes acima do mínimo necessário para
d1str1bu1r o restante entre grupos da sociedade que não cultiva manter a vida. Esse mínimo pode ser definido cpm bastante ri-
ram a terra, mas devem ser alimentados dando em troca ben g9r, em termos fisiológicos, como o consumo diário de calorias
específicos e serviços. ' alimentares exigido pau compensar o desgaste de energia que o
homem despende em seu rendimento diário de trabalho. Esse .
montante pode ser avaliado, aproximadamente, entre 2.000 a
Civili:wção 3 .000 calorias por pessoa em cada dia de trubalbo. Não será
errado afirmar que esse mínimo ainda não se alcançou na maior
O ?~~olvimen_!<:>_Je_ umiu>.!:_de'!.1 soci~l complexa, basea- parte do mundo. Cerca da metade da população mundial tem,
d_a na d~v1sao ~re <:5 que overnam ~ os ql.l~Ç!U!Yam Qtodu- em média, uma ração per capíta diária de menos de 2.250 calo-
zmd~.3lim~!1,!_~s, é gera mente apontado como o desenvofvirr1en- rias. Essa faixa inclui a Indonésia ( com 1.750 calorias), a Chi-
t~~-ó ria civiliz~ ão. A civilização tem uma hístórfa- Ioí:igu na ( com 1.800 calodas) e a índia ( com 1.800 calorias). Dois
e co~plicada; os registros arqueológicos indicam uma grande di- décimos da população mundial incluem-se na categoria que rece-
versidade nos processos que permitiram ao homem, nas diversas be, em média, uma ração entre 2.250 e 2.750 calorias per capita;
partes do mundo, fazer a transição de primitivos ara came,one- esse grupo inclui a Europa mediterrânea e os países balcânicos.
s~. É bem verdade que grãncles parce as esse processo nos.. ef>- Somente três décimos da população mundial - os Estados Uni-
dos, os domíhios britânicos, a Europa ocidental e a União So-
capam.. N~ Velho !"fu~do, por exemplo, o cultivo agrário e a
domesttcaçao de anuna1s parecem ter existido no Sudoeste da viética - conseguem ficar acima de 2. 750 calorias. 2 Mas até
Ásia por volta de 9000 a. C., sendo provável que vilas agrícolas mesmo essa conquista deve ser examinada dentro de uma pers-
sedentárias se tenham estabeleci-do em 6000 a. C. De modo se- pectiva histórica. No século XVII, por exemplo, a França -
~~l?an te, descobertas no Nordeste do México indicam que se que forma agora' entre os privilegiados dos três décimos - al-
m~c1aram por volta de 7000 a. C. experiências na produção de
alimentos, tornando-se um cultivo pleno e firmemente estabeleci- 2 Jean Fourastié, The Causes of Wealth (Glencoe: The Free ·Press,
do em torno de 1500 a. C. A partir desses centros originais e 1960), pp. 102-103.
alguns outros semelhantes, o cultivo da terra expandiu-se com ve-

.: l
0 CAMPESINATO E SEUS PROBLEMAS .19

como excedente, uma vez que se destinava à manutenção dos


Preparando-se para lan- instrumentos de produção. O cultivador tinha que economizar
çar sementes de cen-
teio, de invento, no tempo e esforços .para serem despendidos no reparn de suas fer-
solo não-aradq antes de ramentas, para afiar suas facas,. vedar seu depósito de armaze-
revolvê-lo com o ara- nagem, pa~a cercar seu curral, para colocar ferraduras em seus
do: Sainl Véran, Alpes animais de trabalho e talvez até mesmo para construir um es-
franceses, 011/ono de
1954. (Foto de Robert pantalho que manteria os pássaros mais atrevidos fora de seus
K. Burns. ) campos. Além disso, ele devia cons~rtar várias coisas, tais como
um telhado defeituoso, um vaso quebrado ou suas próprias rou-
pas q uando elas se rasgavam. Os gastos necessários para a res-
tauração desse equipamento mínimo, tan~o para a produção co-
: 1 mo para o consumo, eram o seu .fundo de · manutenção.
É importante que pensemos nesse fundo de manutenção em
termos não apenas técnicos, mas também culturais. Os instru-
mentos e técnicas que constituem um~ tecnologia específica são
resultantes de um prolongado processo de acumulação cultural
que vem do passado. Existem tecnologias sem cerâmica, depósi-
tos para armazenagem ou animais de trabalho. No entanto, des-
de que uma determinada tecnologia passou a indu\r esses itens,
cançou a maréa de 3 .000 calorias por pessoa ( representada por eles passam a fazer parte da vida de cada dia, tomando-se cultu•
meio pão por dia) em apenas um em cada cinco anos. No século ralmente necessários. Como o filósofo grego Diógenes, um ho-
XVIII, essa proeza tornou-se possível em um para cada quatro mem pode abrir mão de sua última taça desde que ele não sinta
anos. Em anos mais distantes, a ração média diária ficava cla- sede por causa disso - poderá fechar suas próprias mãos em
ramente abaixo das exigências mínimas. ª concha, fazendo delas uma taça com qu<; poderá beber água.
Os cultivadores não precisam apenas consumir um mínimo Mas uma vez que os copos de barro já estão completamente in-
de ração calóri<;a; deverão também providenciar alimentos aci- tegrados nas solicitações culturais de um homem, eles passam a
ma deste mínimo, para conseguir um númçro suficiente de se- significar mais que um simples meio de se beber água - trans-
mentes que possibilitarão uma boa safra no ano ·seguinte, assim formam-se em um comprometiménto, diante do qual o homem
como de alimentos adequados para o gado. Por isso, uma fa- deverá .desdobrar-se para obter. Em conseqüência, uma seca,
zenda de 40 acres em Mecklenburg, no Nordeste da Alemanha, uma invasão de gafanhotos ou qualquer outra desventura que
por exemplo, produzia, durante os séculos XIV e XV, 5.000 qui- põe em perigo o fundo de manutenção, ameaçam não somente
los de sementes para plantações, dos quais 1.600 quilos tinham sua existência biológica mínima, m as 'também a capacidade de
de ser colocados de lado para serem novamente semeados e satisfazer suas necessidades culturais.
1.400 quilos para a alimentação de quatro cavalos. Mais da me- Existem casos em que um cultiv_a dor pode paralisar seus
tade do total produzido era então recolhida adiantadamente para esforços de produção desde que estejam assegurados o seu míni-
semear e alimentar. • Esse montante não pode ser considerado mo de calorias e o seu fundo de manutenção . · É o que acontece,
por exemplo, com os índios Cuicuros_ da Amazônia, que têm
s lbid., p. 41. condições para garantir o seu mínimo de calorias e suprir as
4 Wilhelm Abel, Geschichte der deutsche11 La11dwirtschaft vom exigências para manutenção, trabalhando somente três horas e
frühen Mittelalter bis zum 19. Jahrhundert, Deutsche Agrargeschichte II meia por dia, sem nunca ultrapassar esse período. Não existem
(Stuttgart: Eugen Ulmer, 1962), p. 95.
---
razões técnicasy i sociais ue justifi uem um esforç"Oãaicional
----.........
20 SOCIEDADES CAMPONESAS

a essa quota diária de trabalho. 0 Produzir além do mínimo de


calorfas necessárias e do ntvel exigido pelo fundo de manutenção
ocorre somente quando existem regras ou incentivos sociais nesse Montagem dos fogos d~ arti-
fício para ttma festa religiosa.
sentido. Está em jógo o maior ponto de controvérsia da Antro- Etla, Oaxaca, Mixico. (Foto
pologia econômica. Alguns argumentam que o aparecimento de de Joseph Seckcll(Jorf.)
excedentes promoveu o desenvolvimento; outros sustentam que
excedentes em potencial são uma presença universal e o que
conta são os meios instituídos para mobilizá-los.

Excedentes Sociais
Fundo Cerimonial

• Há dois conjuntos de imperativos sociais. O primeiro ocor-


re em quãlquer sociedade. Mesmo em !ligares onde o qomein
é ~auto-suficiente para conseguir seus bens e alimentos, ele deve
nter relações sociais com seus companheiros. Eles deverão,
por exemp o, casar Õt·a da família em que nasceram, e esta exi- ao modelo ideal daqui!~ que os casamentos - to'dos os casa-
gência significa que eles serão obrigados a ter contatos sociais mentos - representam·para as pessoas e como as pessoas devem
com aqueles que são seus pãrer:itcs atuais ou em potencial. T am- comportar-se uma vez que se casaram. Todas as relações sociais
bém precisarão unir-se a seus companheiros para manter a or- estão cercadas 2or um cerimonial semelhante; esteêfeve ser_pago
dem, assegurando a aceitação rudimentar de certas regras de con- por meio<letrabalho, bens ou dinheiro. Portanto, s'é os -homens
duta para manter a vida possível e tolerável. Além disso, terão têm""pretensoes apãfficip ãi:"'das- re1ações soçJais, deverão traba-
de recorrer uns aos outros durante algumas fases da luta pela lhar para a criação de um fundo visando às despesas por tais ati-
alimentação. Mas as relações sociais, de qualquer espécie, nunl 1 (/ vidades. Podemos denominá-lo fundo cerimonial.
ca serão exclusivamente utilitárias ou instrnmentais. Toda re {} · O fundo cerimonial de uma sociedade - e conseqüente-
lação social está sempre cercada de construções simbólicas qu \ mente o fundo cerimonial de seus membros - pode ser grande
servem para explicá-Ja, justificá-la e regulá-la. Assim, o matri pu pequeno, mas o tamanho será uma questão relativa. Nas
mônio, que não consiste meramente na passagem de· um cônjuge vilas índias do México e Peru, por exemplo, os fundos cerimo-
de uma casa para outra, implica também a aceitação de boa von- niais são muito grandes em comparação aos seui; índices caló-
tade da esposa pretendida, assim como a de seus familiares; de- ricos e seus fundos de manutenção, já que naquela região um
verá ser ainda um ato público, no qual os participantes demons- homem despende uma grande quantidade de esforço e bens para
tram, de maneira que todos possam ver, que os cônjuges atin- promover cerimônias que dão ênfase e ilustram a solidariedade
giram a idade tanto para se casar como para as redefinições so- da comunidade a que pertencem. 0 Despesas com cerimônias,
ciais que o casamento envolve; além disso, deverá corresponder
0
Na Américo Central há evidência de que um homem pode gastar
li Robert L. Carneiro, "Slash-and-Bum Cultivation among the Kuikuru pelo. menos o equivale~te ª. um salário _local anual para atuar como pa-
and its Implications for Cultural Development in the Amazon Basin", trocmador de u ma cerimôma da comumdadc. Gastos de duas a vinte
em The Evolution of Horticultura[ Systems in Native South America: v~~es maiores que aquela quantia poderão existir em comunidades espe-
Causes and Consequences, ed. Johannes Wilbert, A ntropologica, Suple- c1ficas. Para exemplos, ver Ralph Beals, Cherán, a Sierra Tarascan Villa-
mento, n.º 2 ( 1961 ), p. 49. ge, Smithsonian lnstitution, Institute -of Social Anthropology, Publication
Ü CAMPESINATO E SEUS PROBLEMAS 23
22 SOCIEDADES CAMPONESAS

torna mais complexa - que os níveis de troca das unidades de


ou seja, rituais, dependem da tradição cultural, variando de cultu-
alimentos e unidades de bens não sejam traduzidos em equiva-
ra para ~ultura. Além disso, em to1qs os l_ugares onde houver lências determinadas por negociações de produtor e consumidor,
a necessidade de se estabelecer e •'rírànter uin · fundo cerimonial,
feitas frente a frente, mas por níveis assimétricos de troca, de-
êste resultará na produção de excedenées·•acima aó functoc1e· ma-
nutenção discutido. ;:-:- -. . - - . - - . terminados por condições externas. Onde as redes de troca são
restritas e localizadas, os participantes devein ajustar os preços
A esta altura, é importante record~'tque os esforços na vida de seus bens ao poder aquisitivo de seus fregueses potenciais.
de um camponês não são regulados exclusivamente por exigên- Mas onde as redes de troca são mais abrangentes e obedecem a
ci~s relacionadas ao se~ modo de _vida. O c~ ~o semp.re pressões que não levam çm consideração o poder aquisitivo da
e;i:1s e ntro de um s1s~ _maior, Em conseqüência, a quan- população local, um cultivado1· terá que aumentar de muito a sua
t1dade de esforço que evera seraespendido para sustentar seus produção p1ra obter a quantia necessária para a. manutenção.
meios de produção ou para cobrir as despesas cerimoniais estará Sob tais condições, uma porção considerável do fundo de.-m-a-
condicionada à maneira pela qual o trabalho está dividido na so- ~utenção do camponês poderá tom.a r-se o "fundo_sle ,'lucro'' <!e
ci~dade a qu~ .º_ camponês pertence, ·bem como às regras que
º:tentam- a d1v1sao do trabalhó.. Sendo assim, em algumas ·so- º~~-
c1edad~s a quantidade de ~sforço requerido para alcançar suas
necessrc!?des pode ser bastante pequena. Tal é o casei, por exem-
plo, de uma sociedade onde um homem alimenta-se do que plan- Fundo de Aluguel
ta e faz seu próprio equipamento básico. Para ele o excedente
requerido para obter artigos de fora é reduzido· na verdade é Existe ainda um conjunto de imperativos sociais que pode
idêntico ao fundo de manutenção. Isso é verd~de também ~m produzir excedentes além do mínimo calórico e do nível de ma-
sociedades onde diferentes famílias manufaturam -objetos diver- nutenção. A relação do cultivado!' com profissionais de outras
sos ou oferecem diferentes serviços que são trocados por rela- especialidades pode ser simétrica, como vimos acima. Eles po-
~ões recíprocas equivalentes. Se um planta sementes, mas não dem trocar diferentes produtos, ainda que em níveis tradicio-
faz c~bertores, pode trocar certo número de sementes por uma nais e estabelecidos há muito tempo. Entretanto, em socieda-
quanudade .c onespondente de cobertores. Assim, o fabricante des mais complexas, existem relações sociais que não são simé-
de cobertores obterá alimentos em troca do seu trabalho. Em tricas, sendo baseadas de certa forma no exercício do poder. No
situações como essas, os homens conseguem os bens através de caso da fazenda de Mecklenburg, mencionado acima, os 2.000
trca§., mas - e isso é muito importante - a quantidade de quilos de sementes postos à parte, depois que o cultivador de-
a imentos que eles precisam extrair da terra para obter os cober- duziu o fundo de manutenção recolhido para/ semear e alimen-
tores ou vasos necessários ainda está sujeita à extração para o tar, não eram consumidos somente pelo cultiv;ador e sua família.
fundo de manutenção, muito embora seja indireta a maneira pela Mil e trezentos quilos, isto é, mais da metade do produto lí-
qual êles repõem os bens não-produzidos por eles próprios. Mas quido, destinavam-se ao resgate das dívidas para com um senhor
é possível - e cada vez mais o é, à medida que a sociedade se q ue mantinha a jurisdição lilu o domínio sobre a terra. Somente
700 quilos restavam para a alimentação do cultivador -e de sua
família, rendendo uma ração diária per capita de 1.600 calo-
N.º 2 (Washington, D. C.: United States Government Printing Office, rias. 7 Para manter um nível calórico mínimo, portanto, o culti•
1946), p, 85; Calixta Guiteras-Holmes, Perils of the Sou!: The World vador era obrigado a buscar fontes adicionais de calorias., tais co-
View of a Tzotzil Indian (Nova York: The Free Press, 1961), p. 58; mo as que derivavam de sua horta ou do gado de sua proprieda-
Sol Tax, Penny Capitalism: A Guatemdlan lndian Economy, Smithsonian
Institution, lnstitute of Social Anthropology, Publication N.• 16 (Washington, de. Assim, esse camponês estava sujeito a relações• assimétricas
D. C.: United States Government Printing Office, 1953 ), pp. 177-178. Para
os Andes, ver William W. Stein, Hualcan : Li/e in the 'Highlands of Peru
( Ithaca, Cornell University Press, 1961 ), pp. 52, 236, 255.
7 Abel, Geschichte der deutschen Lan_
dwirtschaft, p. 95.
24 SOCIEDADES CAMPONESAS
Ü CAMPESINATO E SEUS PROBLEMAS 25
de poder, o que lhe acarretava um ônus permanente em sua pro-
dução. A esse ônus, pago mediante exigências que não vieram pesinato bahutu de Ruanda Urun~i.. Ou então os que .gover~am
de seu trabalho na terra, chamaremos alugue], seja ele resgatado podem ter vívido em centros rehg10s0s, como :ep~lctos e san-
em trabalho, bens ou dinheiro. Em todos os lugares onde hou- tuários, que foram construídos às custas _dos propr~os campon<;:
ver alguém exercendo um P,Od~uEerior d~_Éto, ou {of!!.!!J.iO, ses No antigo Egito, o Faraó estabelecia sua capital t etnpora
sobre um cultivador, este devera produzir um fundo de aluguel ria ·per to da pirâmide que esta~a ~en?o _c?nstruída em :ua honr~;
: JI:Tssctp~ de um
fundo de aluguel roque-distingue, 0 papel das cidades per?1anecia_ ms1gmf1cante.
Maya a integração políuca efetivou-se sem o surgimento <l_
E~tre os P e ~e1~
d zJ
r cnticamente, o camponês do cultivador primitivo. Essa produ-
ção, por outro lado, é impulsionada pela existência de uma or- 'b
nas ur anas
densamente povoadas s A crescente complex1 a e
' . ·· . d 'd d
dem social que possibilita a formação de um grupo de homens de uma sociedade poderá ptovocar o surgtn~ento a ct a e, 1_nas
que, através do poder, exigem pagamentos de outros, resultando nem sempre isso · sera' mevttave
· · ' ·1. EJu gostarta, de pensar na. c1da-_
na transferência da riqueza de uma parcela da população para de como um local habitado no qual se exerce uma combmaçao
outra. O que é perda para o camponês é ganho para os deten~ de funções tornando-se útil, porque com o tempo se co:1segue
~2~~j~ p.9.der, pois ◊--fundo de aluguel levamado péfo camponês uma eficiêi;cia maior através da centralização des'sas funçoes em
é parte elo i'1-fündo de poder" através do qual os dominadores se um ponto determinado. .
aümentam. Ainda hoje, existem difet en~ . ~l~_?s_ ~_e_ ç1d~~es_. ~ ecen~e-
É importante assinalar, porém, que existem diversas manei- mente, na t noa l• foram, enconttãêlas povoações onde d sed vrnm am••
ras diferentes pelas quais o fundo de aluguel é produzido e di- da castelos e todo o aparato que representa o _P~ er . os gover-
versas maneiras pelas quais é absorvido do estrato camponês pa- nantes 1111·1·t
1 ares e c1,·, 1 e set"Íam
, , . de centros admm1strat1vos.
. . Ou-
ra as mãos do grnpo dominante. Já que as distinções no exercí- tras locais de famosos santuários, funcionaram pnr~ell'a~1ente ~~­
cio desse poder têm efeitos estruturais importantes na maneira mo 'centros religiosos, atraindo devotos em peregrmaçoes per~o-
pela qual se organiza o campesinato, há vários tipos de campesi- dicas aos templos. Finalmente, outras :ram pontos de especia-
nato e não somente uma forma de vida camponesa. Indo mais listas literatos; especialistas na elaboraçao de algum aspe~tod ~a
além, vê-se que o termo "cgro~ " denota nada mais nada me- .~ m
tra d1çao - , do país . O Somente onde uma ou outra
· te lectlial _ , es•
nos que uma relação estrntural assimétrica entre produtores de sas funções ofusca as outras, exercendo poderosa ~traçao, e que
excedentes e o gr~ê9-·do.ailnante; dito de outr o móâõ,- feremos elas tendem a concenn·ar-se sob um só teto e um só _loca:, Mas
ainda que- fõi:iritilãr algüinas questões acerca das diferentes séries ·
existem áreas onde n"ao ' cr·escem tais· centros
· de
- domtnaçao,
1 · 1· per-
de condições que manterão esse relacionamento estrutural. manecenc - 1o as fu . 11ço"es pol1'ticas' religiosas ou mte ectua1sN e tsper-
sas na zona rural. O País de Gales, por exemplo, e a oruega

p. , d .-o de ocuj)ação da terra tipo \Vatusi e Bahutt:, v~r


O Papel da Cidade . 8 B arGa o ll)a 'Trnh Play fo·r l)ower: DescrÍf)tion of a Commumty tn
Pierre , · rave , e ·
Eastern Ruanda (_Ann ~rbor:6r)eparrb~lt oi t;l:~]IO~:r
• . 1 U · . ·t of
o~~;~rtF::~kiort,
'e N y D bl day
O desenvolvimento da civilização tem sido comumente iden-
tificado cbmoctes.~ volvimento das cidades. Em conseqüência,
tem-se definido o c~~ como um éu~ivador qu_!?__ t_e!E.. U.JTI re-
Michigan Ph. D. The5is, l9 ·
The Birth of Civilization in t~e Near 1 ;t1(&;tclen
0 i.e o

and Company, 1956), pp. 97-98, e 1o n . 1 son, 1)


Tht%'cuitm:~ ot1Àn:íent
37 97-98
E · 1 (Chi "I •o· University of Chicago Press, 195 , P· , PP· ·
lacioQ.~!!}~f\_to dtgadouro ÇRD'l a cidade: E: inegável que durante
o curso da evolução ci.iltmal os .governantes ficavam geralmente
fYP
Sobre os Maya vet
c,g_ · . G . 1 l., "''')ley
ore on '· w 1 •
"Mesoamerica", em Courses
w·n (Ch'
Urban Li/e, de Robert J. Brnidwood e Gord~n R.l c~/~'Soci~~ªf;polog;
Towar~
Aldt

estabelecidos efl} centtos especiais que se convertiam freqüente-


andPuhblis~Ii,ng
ne t e wp1ca , , c~;t;~:tive. Stt1dies in Society
ores t19c6fv)i·ül~~i~~'~J
~olm(FJan_y,
mente em cidades. Existem ainda, em algumas sociedades, os ,md History, IV, n.º 1 (1961), p. 66. 1 l C ..
governantes que "acampam" simplesmente entre os camponeses,
como é o caso dos W atusi, até há bem pouco tempo entre o cam-
o McKim Mariott e Bernard C. Cohn, "Netw.0 r:s
the Integration of Indian Civilizatíon", ]ournal o/ 5 ocia1 esearc
1r' ehtel~a:;
' -
chi, Bíhar, India), I, n.º l (1958).
26 SOCIEDADES CAMPONESAS Ü CAMPESINATO E SEUS PROBLEMAS 27

são regiões em que muitas funções permanecem dispersas no Ao lado disso, tanto apresenta sociedades nas quais o camponês
campo, semfo bastante débil o desenvolvimento das cidades. A é o principal produtor de reserva~g_~_!iquezas soei~!~ comoãque-
pr~ença_ ou ausê~ ~e ci~ s certamente af~_tará o p!!_drão de 1 ,/ ' lãsem que seu papel- fõl- rctegª-®-,L.S!:gunâo plano. Existem
uma sociedade; mas o local onde o pod~r_e_su.~. inf11.1~!)cia se co~ V ainda grandes regiões d o globo em que os camponeses que culti-
lo~ _ r u ;__\!.1!1ª fasedoseutistaoelecimento e não constitui ~ i vam a terra com suas ferramentas tradicionais não só constituem
Sll.?, totalid?~~· . Utn-piàno é um instrumento usado pai-a compor \.~ f a esmagadora maioria da população como fornecem ainda os fun-
n~uska ·põ11fomca; mas é possível compor música polifônica sem !J,, ;'Í dos de a.luguel e lucro _que sustentam toda a e~t~utura social. Em
pianos. Igualmente, a cidade é apenas uma forma - bastante \' tais sociedades, todos os outros grupos , sociais dependem dos
c~m~m emb?ra - n~ rc~ da influ~rwlª, mas y'1 · camponeses, tanto para a alimentação como para conseguir q~al-
nao e exclusiva, nem mesmo decisiva. · ' quer outro rendimento. ' Existem outras sociedades, no entanto,
_.7 orta1~to, ~ que -;~e_.pà:ã disti~guir a forma primitiva da em que a revolução industrial c;riou um vasto complexo de má-
c1v-1ltzada e mais a cnstalizaçao do poder executivo do que o quinas que produze~1 bens quase índepern;lentemente dos cam-

I
probl~ma ~e s,aber. se o controle do poder está localizado aqui
ou .3)1. Nao e a cidade, mas o Estado que constitui o critério
dec1s1vo para o reco~h~cimento da civilização, sendo o apareci-
poneses. Se há algum camponês em tais sociedades, eles qcupam
uma posição ·s ecundária na criaçã,o de riquezas. Além disso, o
vasto e crescente número de trabalhadores industriais que mane-
mento do Estado o limiar da transição entre cultivadores de ali- jam as máquinas criadoras de riquezas precisa ser também alimen-
mentos _e m geral : .camponeses. Portanto, é somente quando tado. Na maior parte das vezes, a provisão de alimentos para
um cultivador esta integrado em uma sociedade com um Esta- esses trabalhadores não depende mais dos camponeses que tra-
do -;- ,ist? é, some~te quando o cultivador g_assa a e.§.tar_._gij.eito balham em pequenas unidades de terra com técnkas tradicionais,
a ~ ~ ~-~s_4e_9~ t~n!_.or~s do eQfl~r,__ ~xteriores a seu mas das novas "fábricas do campo", que aplicam a tecnologia da
es~ oczal - que podemos falar ' aprÕpdadamente- âe uiii ciun-' revolução industrial no cultivo de ,,1tmentos em grandes fazen-
pesmato·:- .......... das, fortemente capitalizadas e plan ficadas científicamente. 10
- · ' Ê, sem dúvida, difícil situar esse limiar da civilização em Essas fazendas não são mantidas por camponeses, mas por tra-
termos de, tempo e espaço. Contudo, baseados em elementos balhadores agrícolas, que recebem salários pelo seu trabalho da
que possuimos agora, podemos fixar os primórdios do Estado e mesma forma que um trabalhador industrial é pago para man-
co~seqüentemente, do campesinato por volta de 3500 a. C. n~ ter em funcionamento um alto-forno ou uma máquina de fiar.
Onente Próximo e por volta de 1000 a. C. na América Central Os d..9is tipos de sociedade ameaçan,i._.2..,_c!!ffiponês, representadas
~evem,os_ deixar claro que os processos de construção do Estad~ por exigências de exceaentes oúp°efa competição,_que podem tor-
sao ~mltiplos e co11:plexos.. Diferent~s áreas foram integradas ná-lo economicamente inútil.
e~ Es~ados de maneiras mudamente diferentes e em épocas tam- O DU.ema Camponês
b~m diferentes. Em algumas regiões do mundo, esses processos
a111da nem sequer ocorreram e em poucos lugares podemos tes- Para um observador de fora, o camponês poderá asseme-
te munh~i: o 7onfronto entre cultivadores primitivos e sociedades lhar-se a uma ovelha que é periodicapiente despojada de sua lã:
em que Ja existe o Estado, que pl'essiona o primitivo e tenta sub-
metê-lo a seu controle. 10 Para uma discussão sobre a plantation, ver Eric R. Wolf e Sidney
W. Mintz "Haciendas and Plantations in Middle America and the An-
tiles" Sol'.ial and Economic Swdies, VI, n.º 3 (1957), é Plantation Sys-
tems 'o/ the New World, Papers and discussion summaries of the Semi-
O Lugar do Carnpesinato na Sociedade nar held in San Juan Puerto Rico, Social Science Monographs, VII, Pan
American Union, Washington, D. C., 1959. Para um bom .estudo tle
caso de substituição de camponeses por plantations, ver Ratmro Guerr_a
Nosso mundo tanto contém primitivos que estão proxtmos y Sánchez, Sugar and Society in the Caribbean (New Haven: Yale Um-
1~::._rri_~ em em carnpones~omo camponesespfenôs. versity Press, 1964).
28 SOCIEDADES CAMPONESAS Ó CAMPESINATO E SEUS PROBLEMAS 29

"Três sacos cheios - um para meu Patrão, um para minha Se- de seus .membros; estes deverão ser atendido~ com inúmeros ou~
nhora e um para o meu Menino que mora lá na vlla". * Mas tros serviços. Tal é o caso das crianças que são criadas e prepa-
para o camponês, seu mínimo calórico e seu fundo de manuten- radas de acordo com as exigências do mundo adulto. Os velhos
ção serão primordiais juntamente com os gastos para cerimônias precisam de cuidados, muitas vezes até morrerem, e seus fun:•
indispensáveis à garantia da ordem social de seu pequeno mun- rais são pagos com retiradas do estoque de riquezas de sua um-
do. Essas necessidades, como foi indicado acima, são cultural- dade. O casamento possibilita à satisfação sexual, e as relações
mente relativas; certamente serão diferentes na China e Porto dentro dessa unidade geram afeições que ligam todos os mem-
Rico. Além disso, terão, lógica e funcionalmente, prioridade so- bros .entre si. Empregando o seu fundo cerimonial, a unidade
bre as exigências vindas de fora, sejam do senhor ou do comer- paga os "gastos · de representação'.' em qu~ seus membr~s _incor-
ciante. Essa atitude é revelada claramente na velha canção, en- reram dentro da comunidade maior. Assim, ela contnbu1 com
toada durante os levantes camponeses dos fins da Idade Média trabalho à medida que é necessário, em , uma série de contextos
européia: diferentes; suas despesas' não são ditadas diretamente pela exis-
tência de um sistema econômico governado ,por preços e lucros.
Quando Adão arou e Eva fiou
Quem era o senhor? Na verdade, estamos fa~iliarizados com esse tipo de con-
duta econômica em nossa própria sociedade. Uma mãe manter-
-se-á de pé durante toda a noite com uma criança doente ou co-
As necessidades do camponês - as exigências para manter um zinhatt'do uma refeição para a familia, sem levar em conta o custo
mínimo .calórico, o fundo de manutenção e os fundos cerimoniais de seu .trabalho. · U~ pai poderá fazer reparos menores na casa;
- entrarão freqüentemente em choque com as exigências coloca- um filho adolescente pode aparar a grama. Obtidos no merca-
das por quem está de fora.
do, tais serviços custariam bem caro. Foi calculado, por exem-
Além disso, se é correto definir a existência de um meio plo, que em nossa sociedade um homem pode economizar anual-
camponês fundamentalmente por seu relacionamento subordina- mente de 6 a 8 mil dólares em pagamentos por serviços, se ele .
do a grupos dominantes exteriores, também será correto afir- .se casar, de'ixando de chamar. profissionais que cobrariam de acor-
mar, como conseqüência dessa definição, que os camponeses se- do com os preços correntes no mercado. D'entro de uma família
rão obrigados a manter o equilíbrio entre suas próprias necessi- tais trabalhos afetivos são desempenhados prontamente, sem a
dades e as exigências de fora, estando sujeitos às tensões provo- necessidade~de despésas.
cadas pela luta para manter um eguilibrio. Para quem está de
As famílias camponesas funcionam de forma semelhante.
fora, o canfponês - rvisro;-·fu:n<lãínenfalmente, como uma fonte
Certamente, os camponeses estão conscientes do preço do tra-
de trabalho e béns, com os quais o grupo superior poderá au- balho e dos· bens do merciado _._ sua sobrevivência econômica e
mentar ·seu fundo de poder. Mas o camponês é, a um só tempo,
social depende disso. A sagacidade dos càmponeses é prover-
um agente econ'ômico e -o cabeça de uma família. Sua p~ -
bial. Vários antropólogos, sem . dúvida, concordariam com Sol
de tanto é uma unidade econômica como um lar.
-... ~---·~·-··--·-··~-.-,~~-~-··--,_,~--~-~ Tax ·que concluiu, num estudo sobre camponeses índios na Gua-
A unidade camponesa não é, portanto, somente uma organi- temala, que "o comprador escolhe o mercado de acordo com o
zação pro_d utiva formada por um determinado número de "mãos" que quer comprar e _com o tempo que será obrigado a gastar pa-
prontas para o trabalho nos campos; ela é também uma unida- ra conseguir esses bens mais baratos •e mais próximos de sua
de de consumo, ou sei~, ela tem 'tanto "bocas" para alimentar fonte". 11 No entanto, .levando em conta que as posses de um
quanto "mãos" para trabalhar. Além disso, uma unidade cam- camponês constituem as -provisões de um grupo de pessoas, toda
ponesa n~o estará preocupada exclusivamente com a alimentação decisão tomada em termos de mercado externo tamb_ém terá seu
aspecto doméstico. · ·
* Parte de uma velha canção chamada Bah-Bah,Black Sheep ( O
Balido do Carneiro Negro). ( N. do T.) u Sol Tax, Penny Capítalism, p. 14.
30 Soc1~bADES CAMPONESAS Ô CAMPESINATO E SEUS PROBLEMAS 31

Esse fato levou o economista t usso A. V. Chaianov a falar derivada do salário anual de seus membros,_ a familia camponesa
pode empregar o excedente de trabalho ~um. cultivo mais inte~sivo
de um tipo especial de economia camponesa. Ele explicou esse de sua terra. Déssa maneira, ela pode incrementar a renda ~nua!
conceito nos seguintes termos: de seus membros ativos, mesmo q_ue a remuneração por urudade
de trabalho seja menor. . . Pela mesma razão, a famíli~ d~ cam-
A primeira característica fundamental na economia da fazenda de ponês freqüentemente aluga terra por utn_ p~eço extraordinar!a~en-
um camponês é que se trata de uma eçonomia fl!fililiar. SÜa or, te alto não-lucrativo de um ponto de vista puramente cap1tahsta
ganização está determinada pelo tamanho e composição da família e compra terra por um preço consideravehnente acima do aluguel
e pela coordénação entre suas ex . igências de consumo e o núine.ro capitalizado. I sso é feito com o intuito de encontrar-se um ·uso
de mãos aptas para o trabalho. Isso explica por que a concepção para o excedente de trabalho da familia, o qual não poderia ser
de luc,ro na economia camponesa difere da concepção de lucro den- utilizado de outro modo sob condições de escassez de terra. 12
tro da economia capitalista e por que está última não pode ser
\ transportada parà aquele outro contexto. O lucro caplt!!}ista · é
claramente• computado pela subtraçãQ _das_despesa.s. ~ ptodqçi1>~ao O eterno a vida do ca~onês consiste, portan-
total da renda:-·-u --a1_mputo do lucro, dessa forma, é inaplicável à. to em contrabalançar a.Lexigêucia o mundo exterior, em re-
ecomimla camponesa, porque nesta os elementos que participam
das despesas de produção estão expressos em unidades incompa-
ráveis às de uma' economia capitalista.
Na economia camponesa, assim como na economia capitalista,
laç'a-o às ~ i d ades que ele encontra no aten imentó às neces-
sidades de seus familiares. Ainda em relação a esse problema
básico, o camponês pode s~guir duas estratégias diametralmente
ópostas. A primeira delas é in~r!!mentat a produção; a se~unda,
)x
.•· · - ._,
o grosso da renda e das despesas de material pode ser expresso
em rublos; mas o trabalho despendido não pode ser expresso nem
reduzir o consumo.
medido por rublos ou salários pagos, mas .somente pdo própr io Se o camponês escolhe a pdmeira estratégia, deverá elev_ar
esforço de trabalho da família camponesa. Esses esforços não po- o rendimento do trabalho às suas próprias custas, tendo em v1s-
dem ser subtraídos ou ·adicionados a unidades monetárias; podem
ser, no máximo, confrontados em rublos. A comparação de valor t~ levantar a produção e o aumento da produtividade, com que
de certo esforço da família com o valor do rublo seria bastante entrará no mercado. Sua capacidade de fazer isso dependerá da
subjetiva; variaria de acordo com o nível em que as necessidades facilidade com que puder mobilizar os fatores de produção ne-
da família são satisfeitas e com o gr11u de sacrifício que o próprio cessários - terra, trabalho, capital' .( seja em forma de econo-
esforço de trabalho acarretou, assim como com outras condições.
mias em moeda ou crédito) - e das condições gerais do mer-
Na medida em que as exigência;; da família do camponês não cado'. Recordemo-nos que para o camponês os fatores de pro-
são satisfeitas, . desde que a significação subjetiva dessa satisfação
esteja avaliada acima da carga de trabalho necessária para tal · sa- dução geralmente estão sobrecarregados de compr?,missos. prio-
tisfação, a família do camponês trabalhará por uma pequena re- ritários, especialmente sob a forma de ~~cedentes Jª antecipada-
~- munernção que seria decididamente antilucrativa ern.·u.·ma economia mente destinados para despesas cerimoniais e pagamentos de alu-
ri . capitalista. Vma vez que o príncipal , objeto da e_cé:Wº'·nia campo- guel. É muito difícil, se não impossível, para um homem_ l~van-
. nesa é a s~ r u m a L < k . consuiiiod~ ,- o -fãtor
\ cfe maior interêsse nao é a remuner~ ídade de trabalho tar sozinho às suas próprias custas, um nível de produtrv1clade
( a jornada <le trabalho), mas a remuneração akimçada pelo traba- adma e alé~ do exigido pelos pagamentos obrigatórios. É tam-
lho de um ano inteiro. . :B claro que se já existe abundância . de bém difícil para a maior parte dos camponeses consider~r suas
terra .Qualquer unidade de trabalho despendida pela familia ten- posses em um contexto econômico divorciado do abastecrmen~o
derá a receber a recompensa má!!.ÍP.!a, seja numa eçonomia carnpo-
nesa ou cãptfâl~obtiisCondíções, a economiª--._ggi_e<>nesa' fre- de seu grupo doméstico. Um pedaço de terra, uma casa, nao
querltementerêsulta num cult@-1llil!L~ens1vo do que o··-aa eco. são meramente fatores de produção; eles também estão canega-
nomia . da terra cuja propriedade é privãêra- (empresarialmente). dos de valores· simbólicos. As jóias da família não são simples-
1 1
Haverá ~ / 1 de uma unidade de terra, mas sal~ ais mente u~ valor em si; são muitas vezes uma herança cheia de
altos. para uma unidàde de trabalho. Mas quando o montante de
terrf disponível está limitado e se encontra aba'ixo de um nível
normal de cultivo, a famflia do camponês não pode empregar todas 12 A. V. Chaianov, "The Socio-economic Nature of Peas~n_t. Farm
as suas forçàs de trabalho. em sua própria terra se e!a pratica o Economy", A Syrtemalic Source Book ín Rura~ Soci~logy, d~ P1tmm A:·
cultii;o extensivo. · Possuindo um excedente de tais força.s e achan- Sorokin, Carie C. Zimmerman e Charles J. Galpm (Mmneapohs: The Uru-
do-se incapaz de assegurar todas as suas necessidades com a renda versity of Minnesota Press, 1931), II, pp. 144-145.
1
lp

1 i '
1 '
l
32 SOCIEDADES CAMPONSAS Ü CAMPESINATO E SEUS PROBLEMAS 35
sentimentos. Nossa análise pode revelar-nos ainda em que si- camponês pode reduzir seu consumo de calorias restrin13indo sua
tuações um número crescente de camponeses seguirá a estratégia alimentação apenas aos alimentos mais básicos; pode limitar suas
do incremento da produção. compras no mercado ao essencial e, em vez disso, pode confiar
Isso se torna possível, em primeiro lugar, quando se rela- tanto quanto possível na capacidade de seu grupo doméstico de
xam as tradicionais hipotecas sobre os fundos de aluguel do cam- produzir tanto os alimentos . corno os objetos ·necessários, sem
ponês - uma condição que tem grandes possibilidades de ocor- precisàr sair dos limites de sua terra. Tais esforços para equili-
rer quando a estrutura do poder através da qual os soberanos tta- brar a .balança do orçamento pelo subconsumo explicam, parcial-
dicionais absorvem esses fundos se torna ineficaz. Em segundo mente, por que os camponeses temem o novo como se vissem a
lugar, podemos esperar esse. fenômeno sempre que for possível pr6pria tentação: qualquer novidade poderá abálar seu precário
ao camponês escapar de responsabilidades que pesam sobre ele equilíbrio. Ao mesmo tempo, tais camponeses sustentarão tam-
e que têm a finalidade de assegurar - mediante despesas ceri- bém a manutenção das relações sociais tradicionais, inclusive as
moqfüis - os laços sociais tradicionais que o unem a seus com- despesas exigidas .c om os fundos cerimoniais. . Se for necessário
panheiros. Se ele se recusar a empregar seus excedentes em que tudo isso se mantenha, uma comunidade camponesa ~de
gastos cerimoniais, poderá então usar os fundos assim liberados precaver-se contra quaisquer outras exigências e pressões exter,
para ajudar sua ascensão econômica. As duas mudanças ocorrem nas, .forçando, ao mesmo tempo, seus membros mais afortunados
geralmente ao mesmo tempo. Se a cúpula do poder tem sua es- a compartilh_ar uma porção de seus bens e de seu trabalho com
trutuça enfraquecida, muitos laços sociais tradicionais perdem os vizinhos menos aquinhoados.
também suas sanções específicas. A comunidade camponesa, sob Portanto, em muitas partes do mundo - mesmo naquelas
tais circunstâncias, testemunhará a ascensão de camponeses mais em que o camponês foi relegado a um papel secundário na or-
abastados, que abrirão caminho afastando seus companheiros me- dem social global - deparamos com o fenômeno de camponeses
nos afortunados, até alcançarem e preencherem a lacuna deixada desdobrando-s~ara sobreviver sem compromi_ssos excéssivõsfom
pelo afastamento daqueles que ocupavam o poder: No curso o sis~·_qui _os:envõlve'. -· Ao mesmo tempo, devenio-no·s -iem-
dessa ascensão, eles transgridem freqüentemente as expectativas brar que em muitas situações - especialmente durante épocas
tradicionais a respeito das relações sociais - e como elas devem de ~~~Em. ~ depres_s_ões - as propriedª.<k~- Cª!QP..Qnesas__ repre-
ser conduzidas e simbolizadas - usando o poder recentemente sentam__te.fúgiQL~iant~ __da devastação 9.ue atinge os--habitantes
adquirido para enriquecer às custas dos vizinhos. Assim agiram
os ascendentes yeom~n na Inglaterra 90 século XVI, os ricos
da cidade e dos centros incfüsüiãis~-- Um hõmem com 40 'àcres e
uma· mula tem um osso dürocle roer, mas consegue pelo menos
camponeses da China, os kulaki ou "fists" da Rússia pré-tevolu- certo rendimento de calorias, enquanto outros são obrigados a
cionar1a. Em outros casos, um grande n~mero de camponeses buscar seus alimentos nas l11tas de· lixo das cidades. . Com seu
pode encerrar seus compromissos cerim01úais, como aconteceu coi:t_r~l~ ..da..~!~!Lç_a_s~<:id!l,cl~__4e__çJ,JJ~iyfla, o camp_~_§_s con•
entre muitos grupos indígenas da América Central, que abando- serva tanto sua autonomia como s~~!!P.ªddad~ _d~.-~obreviver,
naram seus rituais católicos populares - com seu alto custo pago enquanto OU!~~. mais sutilm.entê 'êfépendentes da __s.9çiec[a_~e, têm'
com a finalidade de sustentar organizações e acontecimentos re- essa sobrevivência bastante_díHcultada.
ligiosos - passand~ a um protestantismo s6brio para o qual não
se exigiam tamanhas despesas. 18 Apesar de as duas estratégias oferecidas à ação camponesa
apontarem para direções diferentes, não devemos pensar que
A estratégia que se apresenta como alternativa é a de solu-
elas se excluem mutuamente. Já vimos que a predominância de
cionar o problema básico através_ da redução do consumo. O uma ou de outra depende, em grande parte, do contexto social
maior, em que o camponês vive e de onde deve extrair os meios
ia Ver, por exemplo, June Nash, "Protestantism ín an fndian Villa- para sua sobrevivência. Levando em conta que uma ordem so-
ge in the Western Highlands of Guatemala", The AJpha Kappa Delta11, cial evolui entre altos e baixos, o camponês optará por uma ou
XXX, n.º 1 ( 1960), p. 50.
outra estratégia, e até mesmo, em alguns casos, controlará as
li
ASPECTOS SOCIAIS DO CAMPESINATO 89

mentar todos esses grupos nucleares. Uma tercejra variante é a


da família extensa que consiste em um conjunto de unidades
nucleares, pertencendo à mesma geração, como Juando o irmã?
mais velho e o mais moço, ambos casados, mantem uma comuru-
dade de recursos e trabalho.
Vimos que a família nuckílr consiste num homem, sua E!_U-
3. Aspectos Sociais do Campesinato lher e sua prole. A maioria das pessoas considera como "natu-
raÍ1' a famíliãnuclear - fenômeno encontrado· em toda parte,
em todas as -sociedades e •em todos os tempos - entendendo-a
também como uma sustentação' do fenômeno mais complexo do
1 ! Ao lidar com os aspectos econômicos do campesinato, começa-

1
parentesco. Nesse sentido, são endossadas pbr alguns antropó-
mos com a família do camponês em sua capacidade como ~i- logos. 'Entretanto, nossa análise crescer~ consid~ravelmente .n?
dade produtivã e continuamos a traçar suas várias l~gafÕes em momento em que perguntamos se essa umdade pode ser subd1v1-
têrmos de envolvimento econ6mko Com outras _f_!l_R!!!1a!!_. em ter- dida conceptualmente ainda mais e se essas subdivisões não ocor-
mos horizontais; em termos vêrticais, · áiialisândo os d~tentores rem "naturalmente". Assim, a familia nuclear existe para in-
~ r . Neste capítulo, onde trataremos da organização so- cluir-se diversos itens de relações entre duas pessoas ( ou diádi-
cial do campesinato. repetiremos esse procedimento, começando C(IS) . . Primeiramente, esrá a relação do coito entre o homem e
pela mais restrita e íntima unidade em que yjy_e .urunp_c:>_11ês: a a mulher: é a ~ sexual. · É socialmente duradoura quando é
família. Consideraremos, a seguir, unidades mais amplas do que santificada ou "licenciaâa" pela sociedade e nesse caso ,podemos
esta,- que o afetam também. No fim, faremos uma discussão so- chamar-de díacle conjugal. A relação mãe-filho é a díade mater-
bre a ordem social mais am la na qual se movem !!S famílias e nal. · Há relações diádicas entre membros do mesmo sib entre
grupos camp?neses._ irmãos e irmãs. Finalmente, há a díade paternal entre filho e
pai. As três primeiras díades estão baseadas em atividades bio-
lógicas. Entretanto, a díade paternal não está assim fundada:
O Grupo Dorné,tico no Campe1inato ela é um relacionamento binário de tipo diferente; não existe em
virtude de uma correlação bioMgica, mas em virtude das outras
Na tentativa de compreender a família camponesa - ou fa- díades. 1 Uma sociedade pode ou não atribuir assim funções eco-
mílias em outros lugares - devemos recordar-nos de que estas nômicas maiores e também outras a esta díade. Ela poderá de-
existem· nos mais diversos tipos. Dividem-se basicamente em legar essas funções a outra.s díades ou outras estruturas da so-
nuclear ou conjugal, ·queconsiste em homem e mulher casados ciedade.
e M prole, e famílias extensas, que agrupam em uma única es-
trutura certo número de famílias nucleares. Há variantes da fa. Mas em um tipo de caso limite, uma aliança temporária en-
mília extensa: consiste num varão com muitas mulheres e seus tre um homem e uma mulher resulta em filhos, mas o homem
acha-se impossibilitado eco1;omicamente de mantê-los. Nesse ca-
fiÍhos. . Diversos grupos nucleares têm em comum nesse caso o
so, as díades maternal e sexual estão estabelecidas, mas a dfade
cabeça da família (macho). Pode consistir em famílias nuclea-
paternal é fraca ou inexistente. Estamos acostumados a essas
res pertencentes a diversas gerações tal como quando uma uni-
situações como fatos secundários ou transit6rios em nossa cultu-
dade familiar contém o camponês e sua mulher, seus parente.s de
mais idade que são outro grupo nuclear e, muitas vezes, o filho
mais · velho do camponês que mora com a mulher sob o teto pa- 1 Richard N. Adams "An Inquiry into the Nature of the Family",
terno; em outras palavras, outro grupo nuclear. Essa organiza- em Essays in thc Science 'ot Culture: In Honor of Le,slie A. White, de
ção caracteriza a Europa tradicional, a China e a índia, embora Gertrude E. Dole e Robert L. Carneiro (Nova York: 1homas Y. Crowell
somente nas famílias mais ricas que possuíam recursos para ali- Company, 1960), p. 40.
' 1

>I'
90 SOCIEDADES CAMPONESAS

Gerações de uma família indiana extensa. (Foto de Frank Horvat.)

ra, mas trata-se de uma situação regular e majoritária em algu-


mas sociedades. Raymond Smith relata-nos que .entre os negros
da Guiana, onde a díade paternal é fraca porque os pais estão
impossibilitados economicamente de con.tribuir ou de dar pres-
tígio à família, as crianças nada têm à ganhar mantendo laços ·,
com eles. 2 Inversamente, a fraqueza da díade paternal leva a ·:.
uma ênfase maior na díade maternal, composta de um grupo de
mulheres, normalmente avó, mãe e filha, que formam uma uni- ,. :.~.•{.j
dade "matrifocal". Essas unidades foram também encontradas 4
, .'I
entre grupos urbanos economicamente comprimidos. como os ha-
bitantes da classe pobre da cidade do México ou entre os habitan- 1,,
tes do leste de Londres ou ainda famílias negras pobres nos Es- J
tados Unidos. '1
Mas o apoio econômico não é o umco fator envolvido na
ênfase da díade materna em detrimento da paterna:· Como no-
tou Richard Adams 4 na Guatemala, os camponeses índios e os
não-índios (ladinos) podem viver toscamente em níveis econô-
micos semelhantes; ainda que os índios tenham famílias nuclea-
res com ênfase na díade paternal, enquanto os ladinos têm suas
famílias lideradas pelas mulheres. Ou ainda entre os índios do
Leste da Guiana Inglesa que, vivendo em circunstancias gerais

2 Raymond T. Smith, The Negro Family i11 British Guiana: Fam/Jy


Structure and Social Stat11s in the Villages (Londres: Routledge and Kegan
Paul, 1956 ).
iJ Ver Oscar Lewis, The Children of Sanchez: Autobiography of a
Mexican Family (Nova York: Random House, 1961); Michael Young e
Peter Willmott, Famíly and Kinship in East London (Harmondsworth:
Penguin Books, 1962), p. 182; E. Franklin Frazier, The Negro Family
in the U11ited States ( Chicago: University of Chicago Press, 1939).
4 Adams, op_. cit., pp.. 43-44.

ASPECTOS SOCIAIS DO CAMPESINATO 93
92 SOCIEDADES CAMPONESAS

'i 1
similáres à dos guianeses de origem africana, 5 retiveram o forte
papel do pai-marido. Tanto nos grupos guatemaltecos de ori-.
gem índia quanto nos grupos guianenses de origem hindu, o pa-
,j dades porão ênfase mais na ligação entre gerações sucessivas do
que nos laços de marido e mulher. O cônjuge que entra para
uma família desse tipo verá que nãº- casou C?_m u~a p~soa, mas
comm_n grupo de parentes. Além disso, aquele g_rup0 de p~en-
pel masculino tem prestígio na sociedade envolvente. O homêiií 1
·umilcõesão
te~ possui -- que ata ain_da mais fortemente o laço
de6eii'ipenl1a papé1ss.igriif1cativo~-ª--ri4a~sõc1"ãTe°Cerlm9niaLE m coni1.1:g~~- ------ ···-----
conseqüêncüi ,--0- papel de _marido-pai é reforçado na família por -- Tais agrupamentos, compreendendo inúmeras díades conju-
apoio gerado forn âestã.- Podemos m·terpretai:- ã posição dos ho- gais, podem conter também membros de díades desfeitas ( como
mens nas unidades familiares do Sul da Itália do mesmo modo. uma avó que perde o marido e que continua a viver com a fa.
Embora a incerteza e instabilidade econômica seja ainda um mília) ou então indivíduos solteiros, tios e tias nas mesmas con-
pouco maior do que na América Latina, o papel do macho é dições, irmãos e irmãs, filhos e filhas. Podem existir também
apoiado por fortes sanções no mundo ritual, jurídico, político empregad<:>_S que_ fazem_ parte do grupo econômico _dorµé_stico,
e social fora da casa; a díade paternal é também forte. 0 Vemos mas não são parie_do sistema de parentesco doipinante. · Assim,
que em alguns casos as díades paternais podem receber reforço uma família camponesa nos Alpes do Tirol austríaco· pode con-
adicional de fora da unidade familiar. Podemos chamá-lo, como ter membros casados da linha familiar que, CO,!Jl seus cônjuges,
fizemos em nosso capítulo inicial, de cerimonial. Acha-se exem- têm direitos primários' sobre a fazenda, tanto' quanto os mem-
plificado nas demonstrações públicas rituais que chamamos de bros solteiros da família, viúvos ou empregados que não são pa-
casamento e em atividades rituais posteriores de vários tipos, rentes, mas são pagos em dinheiro · ou espécie por seu trabalho.
que sublinham o papel masculino, dando-lhe uma importância Podemos também pensar na clássica unidade doméstica romana
que talvez não possuísse num campo puramente utilitário. que incluía membros de uma _patrilinhagem, membros' pelo casa-
Acham-se variantes da família camponesa não só onde uma mento, parentes adotados· e escra'vos. A unidade doméstica era
das relações da família nuclear é fraca ou ausente, como em mui- chamada originalmente de familia muito tempo antes__ deo _termo
tos casos já familiares aos anttop6logos, onde o núcleo acha-se se !.~tring.ir--ao- núcleo especíltco..de reprodução e_ sustento.
incrustado em outras relações, até o ponto em que ele se torna Assim, uma ur:iidade familiar pode consistir em uma qíade \
{
obscuro e irreconhecível. Esses casos levaram Ralph Linton a maternal ou .várias. Pode consistir em uma família nuclear com , -I
afirmar que a família nuclear "joga um papel insignificante n_a ou sen~-ma moldura de parentes sol.teiros . Ou ainda ser com- 1
vida de muitas das sociedades". 7 Onde, por exemplo, certo nú- posta ·de ·u ma· (amília extensa, novamente com uma periferia de -J
mero de·gruposàeniã"iidõ~mt11her-criança residem juntos em uma parentes e agr~~dos. Esses arranjos são importantes na vida
família, é a fa_!!illi~ a~ não a nuclear individual que _traba~ camponesa, ainda que freqüentemente encobertos por funcioná-
lha e se alimenta conjuntamente. O mesmo é verdade nas uni- l'ios do censo que não tomam as notas adequadas sobre as rea-
dâdes··sociàis que são man tida-s juntas por uma regra de descen- lidades da vida camponesa, ~las impõem categorias feitas de or-
dência; aqui o cerne da família pode consistir em muitos paren- ganização parental sobre os dados que coletam. Nossa informa-
tes ligados por linhas paterna ou matern:J é os direitos são pre- ção sobre a organização social camponesa é muitas vezes falsa
dominantemente marcados nesta ou naquela linha. Essas uni- ou enganosa.

is Cbandra Jayawardena, "Family Organization in Plantàtio'ns in -Bri-


tish Guiana", International Journal of Comparative Sociology, III, n .º 1 Tipos de Família Camponesa
. '
1 ( 1962) 1 pp. 62-64.
o Lçonard W. Moss e Walter H. Thomson, "The South Italian Fa- Voltamos agora a perguntar sob que condições podemos es-
mily: Literature and Observation", Human Organi:i:ation, XVIII, n.º 1 perar encontrar uma predominância de famílias extensas sobre
( 1959), pp. 35-41.
7 Ralph Linton, The Study of Man (Nova York: Appleton-Century,
famílias ·nucleares ou o inverso. Quais são os fatores subjacen-
1936), p. 153.

_.?___
94 SOCIEDADES CAMPONESAS
ASPECTOS SOCIAIS DO CAMPESINATO 95
tes à distribuição diferencial de tipos de famíliâs entre os cam- devem ser suficientemente produtivas para permitir isso. Essa
póneses?
O primeiro é a própria n~ureza do sugtimento de alimen- .
,·•,
con~Q_Ç__.J J.1ªi~. p~<:>vávet onde o grup_o_ doméstico controla .ª
mãloria ou mesmo todos os recursos naturais e hãbiHâáâês.. fe•
tos. Obviamente, onde o suprimento de alimento sso, queriaas para-suã manutenção,. e onde tCldos ou a gi:ii_oria d~Sj\':S
CM10 entre muitos poyos primitivos, uni~ ~Llt.1..!lio1~ s do que !. ··.•
··.:~'
recutsôs·saô e xtrâlêlos-·e elaborados dentro da unidade. Uma
a família nuclear terão dificuldades em manter-s~_jg_ntas ao mes- unidade doméstica de tal coinpfexidade poderá mostrar conside-
mo tempo. . E talvez convivam somente naquelas estações de ex- J rável divisão de trabalho. Enquanto alguns trabalham na pro-
cedentes temporários ou . com · algum objetivo específico como a 'l
'!,,,. dução, outros estão no processamento. Enquanto alguns traba-
caça coletiva com finalidades lúdicas. Por conseguinte, as ..!.ª.:... .1 · lham no cultivo, outros o fazem na pecuária. Alguns drenam
·:;-1,
mílias extensas e os grupos domésticos maiores gue a família nu- água, outros serram a madeira. Ao mesmo tempo muitas mãos
clear ocorrem mais freqiieiitemente enfre- os cultivadores, · onde podem conjugar-se para tarefas repetitivas .que tequerem massas
as tarefas de cultivo e a posse de especialidade que ocupa tem- consideráveis de trabalhadores, como a limpa de uma floresta ou
po parcial permit<;~ e req~~rem ~~ior força de_ t1:abalho. Essa uma colheita. Já falamos da zadruga da Esláv,ía do Sul, quando
associação de--família extensa com maiores suprimentos alimen- discutimos a distribuição de habilidades complementares nas so-
tares· -;;--éôm --éspeciãlidades- prog1:essivâmente_ 4ive_r~iJ!f,~.d.as re- ciedades camponesas. Nessas zadrugas, os homens aravam, cei-
cebeu confümação estatística_- 8 Não que o contexto cultural cir- favam; cortavam madeira, faziam móveis, trabalhavam nos vi-
cundan te seja irrelevante; ele é relevante de dois modos: pri- nhedos e nos pomares. As mulheres faziam a jardinagem, co-
meiro, as técnicas du .rndução, incluindo as de cultivo e artesa- l zinhavam, limpavam, bordavam, trabalhavam :J renda. · Os ho-
nato nece;sità11 .ser tais de modo a se beneficiarem com a pre- ! mens ajudavam as mulheres a tecer; estas os ajudavam a capinar
sen~ de trabalhadores ac.r ídoriais pe~:manentes. E m. segundo lu- e a colhêr. As crianças e às donzelas encarregavam'.se de alojar
gai:-:-as-co1;*çoe·s devéin ser fa vorá_~_e i~. à ac;11~ulação ~e tal . for- o gado ·e os velhos participavam de tarefas menores perto da
ça de traba . o permanente na unt~a(l_e _aõin~_st_t~ª· A ent ase nes- casa ou nos campos. Um especialista supervisionava o trata-
sas- dúãs- frãses estir-na -palavra permanente. Muitos tipos de mento e o pastoreio dos animais de tração e do resto do gado,
cultivo podem trazer benefícios pela adição de ma!s __ t_rab~½ ~.9:0- outros dirigiam a tecelagem.
r"es. Por ex~mpló, quando a~ culturas têm de ser desenvolvictas ¾
Em outra situação variante, o grupo ampliado (extenso) não
durante uma estação reduzida de colheita. Mas esta pode ser às
vezes realizada pelo aluguel de trabalhadores sazonais que ganham controla a maior parte dos recursos e habilidades tecnologica-
mente relevantes, mas precisa de dinheiro para adquiri-los. Não
. s~ps__~m:kn_ ~ -~ ab~i1don~m .11_ regiao,.§~ffpor· pá9r.õ es de- frahá~
lho cooperativo no qual os vizinhos se ajudam mutuam~11~ em obstante, o grupo ainda controla a tena e as casas. E estas, com
sitmi'ções consideri dãs ·critlcãs··aTn0ií-que-'i1ãÕ--p·articipem da mes- o dinheiro, formam o trampolim estratégico para suas operações.
Esse grupo poderá conjugar terra e dinheiro para sua vantagem,
ma unidade doméstica. Em ambos os casos, que são freqüentes,
os trabalhadores adicionais• não são membros permanentes do em formas que uma unidade nuclear fragmentada não poderia
•) · duplicar. Têm-sé assim algumas famílias extensas, mesmo onde
grupo doméstico.
os arranjos maternais e nucleares estão em maioria. Na China,
Os membros permanentes têm de ser alimentados, aloja- por exemplo, onde a família extensa era sustentada não somente
dos, vestidos e assistidos em outras necessidades num período de pelos fatores instrumentai~ discutidos, mas por forte ênfase ce-
tempo prolongado. Em conseqüência, as exigências técnicas da rimonial, podemos encontrá-la entre os chamados camponeses
economia doméstica requerem sua presença, ao mesmo tempo que médios, camponeses que estão "bem de.vida" e senhores de
terra. Mas era inexistente entre trabalhadores rurais ( assalaria-
s M. F. Nímkoff e Russell Míddleton, "Types of Family and Types dos) e camponeses pobres. Com essas condições, o volume per•
of Economy", Tbe Ameríca11 Jo11rnal o/ Soâology, LXVI, n.0 .3 ( 1960), manente de trabalho numa família é tanto um pré-requisito co-
pp. 215-225.
mo uma conseqüêucia do bem-estar econômico.
96 SOCIEDADES CAMPONESAS ASPECTOS SOCIAIS DO CAMPESINATO
€)
do o capital disponível para armazenagem. Ainda que surpreen-
Além disso, na China a família extensa atuava tanto como
uma organização para a concentração dos recursos e do trabalho dente, as famílias extensas em _p arte vivendo da terra, em parte
como para uma defesa contra um processo inevitável de declípio mandando descendentes para a indústria, per~istem até na União
que se segue à fragmentação. Devido à regra de herança preva- .J Soviética socialista, com.9 mostra um estudo recente da vila Vi-
lecente na China antes de 1947, as unidades de terra eram di-
·,
·r:, riatino, na fronteira do cinturão de terra negra. 0
vididas igualmente entre os filhos depois da morte do pai. A Embora a família extensa tenha vantagens a mais sobre a
regra de herança teria sido promulgada originariamente pelo Es- família nuclear, tem que pagar por sua condição. A família ex-
tado com o ·objetivo de maximizar o número dos pagadores de tensa cria tensões que não são evidentes na faiíillia nüêlear.
impostos. Os interesses da família camponesa, entretanto, são Primeiro, aquêlâs iensões'iilevffáve"is ·eufre gerações ·sucessivas";
11 atendidos da melhor maneira quando se mantém a maior quan- envólverido . o· pi:obl.emà -aa- mmsao ~<?! ~papéis ae deéisãõcla
tidade de terra possível pelo maior tempo possível. A famíli~ unidade f~!D-.il~~!·: ·g )~T&· êertã- idade queate aqui manejou
extensa pode ser vista como um meio de evitar as conseqüências os reêúrsos do grupo precisa passá-los a um de ·seus filhos. A
da partilha. Além disso, diz o provérbio chinês que "terra não mãe.madura que cuidou da casa e da cozinha precisa de substitu-
1 produz terra". Somente quando uma família que possui terras ta, geralmente a 1hulher do filho que chega ao lugar do pai. Ou-
1
, estabeleceu uma cabeça . de po"nte no comércio ou no funciona- tro tipo de tensão é aquele que envolve os sibs. Se a proprieda-
\ lismo pôde iniciar-se na acumulação de recurso_~.. nijo-pr.im:á.tigs- I ~: ..!, } de deve ser mantida intaéta, um dos filhos toma as decisões é os
! tais como bens comerciáveis e dinheiro. Poderia támbém man- outros devem segui-lo. Ainda a~sim_há_algumas áreas de ativi- _..-'
i dar um filho à escola para tornar-se um funcionário e fazer a li- dadés nas quais alguns ·parentes subordin.idos--·põâem.-dçs~ ,
gação da família com a estrutura governamental e suas fontes a autoriâacle do umãõ.'·~·finalmente;--ãs "tensões entre homem e
de receita. Eis não somente uma proteção contra o declínio co- imilher.-AT 1hullieres em geral são forasteiras, vindo, para a uni-
mo um trampolim para a mobilidade. dade familiar, de outras famílias localizadas em outras fazendas.
A riqueza adicional pode também ser conseguida enviando-se Num sistema de autoridade centralizada no macho, como preva-
filhos ou filhas bem dotados em busca de recur"sos fora do ambien- lece entre a maioria dos camponeses, as mulheres devem apren-
te camponês. Enquanto alguns membros mantêm sua ligação der a ajustar seus desejos aos desejos prioritários de seus maridos.
com a terra, conservando sua propriedade sob uma única admi- Por causa de tais tensões,! a família extensa chinesa trazia
nistração, outros a deixam, sazonal ou periodicamente, com o em si comumente uma luta silenciosa dos filhos contra o pai,
objetivo de adicionar a seu capital líquido doméstico injeções de especialmente amarga onde o pai se inclinasse a hábitos tradi-
fontes exteriores. Tal unidade tem também uma grande capaci- cionais, enquanto os filhos desejassem a introdução de novos mé-
dade de resistência em petíodo de declínio ou dificuldades eco- todos e costumes. Pearl Buck na sua novela T he Good Earth
nômicas, Ém épodisoe depressão ou guerra,·õs inembros· de ( A Boa Terra) fornece-nos um quadro literário · dessas tensões.
fora podem voltar ao rebanho para ali ficarem durante a atribu- Similarmente, a família chinesa sofria de amargo antagonismo
lação. A família exteJlS_ª P<?.9~.- aJ~i.ro..iuncionar. como t1m _a.ttifí- entre nora e sogra. A nora entrava para. o gmpo como uma es-
cio de -~g_urahça sodal bastante mais flexívd do que a _famíli.a tranha total. Era inteiramente subserviente à sogra, até que o
nuCleár, qu~ rãca p_~rqUesüa v1gênciá depénde ·aas habilidàctes marido conseguisse assumir o papel diretor da família e ela o
produtivas de um . menwro-·_:cie-·cacta ·sexo-.-·se mulher ou ·mariâõ papel diretor da casa e da cozinha. 10 Novamente temos na famí-
ficam doentes oü·se--o·-
homeni -ê üíií mãú cultivador, incapaz de lia extensa chinesa um costume segundo o qual as noivas devem
ganhar suplementos, o balanço econômico da unidade está amea- desviar-se para as necessidades da coesão familiar, deixando de
çado mais díi-etamente, a menos que mecanismos efetivos · para fazer suas reclamações aos futuros maridos; eram ensinadas, por
a segmança social ajam, conduzidos por alguiita organização _ex-
terna como o Estado. Isso para cobrir os orçamentos deficitá- o Dunn e Dunn, The Great Russian Peasant, pp, 329-.3.3J,
rios ou pelo menos criando meios para que seja institucionaliza- 10Fei, Peasant Li/e, pp. 45-50.
98 SOCIEDADES CAMPONESAS ASPECTOS SOCIAIS DO CAMPESINATO 99

outro lado, a dirigi-las ao pai. As tensões i~Jkitas__J:i,a subor- _ Estudos recentes de cruzamento cultural no que toca às técnicas
dinação ~os1ª_~QS_conjugais-a~ !-~~~e~_~~r~ç~rial!l guat).- _ /d e socialização _12 dão base estatística às hipóteses de que as so-
do o pa1 morr!~. LO_g~upo de_1rm~os c{Im.g_~!J:~ herança.:..,_ Fre- _; ciedades que possuem um alto grau de habilidade em acumular
qí.íeiítem·e nte· era o pedkl~s esposas que levavàa c:lív1sao da ;recursos alimentares, como as sociedades camponesas, são mais.
unidade fatniliàr. Na medida em que cada mulher procurava · favoráveis àquelas técnicas ·que t~rnam seus me~bros depen-
cónseguir -vantagens_ para sua própria unidade conjugal, a coesão i dentes do grupo socializador, porque o adestramen~o _dependeu-
do grupo-falhava .ou até mesmo se_rompia. - ; te favorecerá a execução rotineira das tarefas rotineiras. Em
Utn--exemplo semelhante vem da índia: em Khalapur, u'Ína contraste, sociedades com baixo grau de habilidade no sentido
vila -Raíput loc;alizada na planície norte-indiana, tensões e discus- ·._ de ' acumular recursos alimentares, como as sociedades caçado,
sões entre mulheres ,serviam como a principal fonte de divisão ras e coletoras, tendem a favorecer técnicas socializantes produ-
do· grupo doméstico..· O processo de divisão ocorria em graus: ,, tc,ras de auto-segurança, que conduzem aos efeitos individuai~;
primeiramente, cada família nuclear· organizava· seu próprio lar, Isso presumivelmente para favorecer o controle de um supn-
ainda que o pai continuasse a cuidar da fazenda -e ;is mulheres mento alimentar ocasional · e intermitente. Mais . precisamente
mais velhas a distribuir a ração de comida diária a cada pessoa. ,1 ainda, parec~ haver uma tendência da parte das famílias extensas
Mais tarde,, ~ntretanto, a terra era dividida por um muro ou/ . 0
.de çlar ênfase à dependência dos membros no grupo doméstico,
proporcionando· aos filhos gratificações orais, por prolongados pe-
então a familia nuclear rebelde mudava-se para a nova casa. Essa ''
mudança significava divisão da propriedade móvel: gado leiteiro, , ríodos de tempo. Essa prática recompensa a busca ininterrupta
móveis e provisões. Por algum tempo, a tena ainda era trabª- de sustento econômico por parte da unida4e familiar e faz desta
Ihada unitariamente, mas cada nora encartegava-se da distribui- o principal agen,te no encontro de tais necessidades. Ao mesmo
ção de rações a cada um de sua família. Além disso, ela passa- tempo entretanto essas famílias mostram forte tendência a re-
va- a vender alguns pequenos estoques de grão e gastar dinheiro pritnir' demonstrações
, de agressão e sexualidade, tentando insu-.

em · miudezas sem pedir permissão a sua sogra. Finalmente a lar nas crianças o controle do impulso requerido para a coorde-
terra era dividida quando o pai morria e os irmãos cortavam os nação g_rupal. Tal socialização não só prepara a criança para
i.íltimôs laços. 11 tornar-se membro permanente de um grupo já existente como
também estabelece· as bases para os casamentos, nas quais os no-
Adicionemos a essas querelas · familiares as tensões advindas vos casais. constroem seu lar dentro do grupo tão duradouro.
das relações entre membros centrais do grupo doméstico em Em contraste, as famílias nucleares tendem a não dar ênfase à
relação aos parentes perifédcos como a de tios e tias solteiras do dependência oral e punir a agressão e a sexualidade co1n menos
pai ·e da mãe e as ·notórias dificuldades · nas relações entre ma-
rigor, permitindo ao individuo um jogo mais livre de relações
drasta e enteados, tanto quanto os problemas de relacionament9
cop1os outros, Onqe famílias extensas socializam para continui-
com servos e escravos.
daqe do grupo, as famílias nucleares socializam· para afinidade,
Levando em considei·ação ~ssás tensões, vê-se que u_ma so- p:ira o estabelecimento de uma díade nuclear nova e indepen-
ciedade que contém êsses tipos de família necessita de podérosos dente. · -
reforços pai:a manter a unidade. Podemós esperar encontrá-los Com apoio cerimonial e técnicas de socialização que "pre-
ha esfera cerimonial que contém não s6 recompensas para a param" os membros para a vida coordenada com a família ex-
·conduta apropriada quanto sanções para a irregular. tensa, essas..unidades podem manter-se em funcionamento en-
Por outro lado, essas unidades protegem-se contra a- disso- quanto a soma de recursos e trabalho se mostre funcional. Con-
lução, inculcando os padrões de conduta aprbpriada nos jovens. tudo, os grupos domésticos ampliados são também frágeis no

11 Leigh Minturn e John T. Hitchcock, "The Rajputs of Khalapur, l2 John W. Whiting, "Socialization Process and Personality", cm
India''., cm Six Cultures: Studies of Chi/d Rearing, de Beatrice B. Whiting Psycbological Anthropology, de Francis Hsu (Homewood: The Dorsey
(Nova York: John Wiley and Sons, 1963 ); p. 232. Press, 1961), pp, 355-380.
100 SOCIEDADES CAMPONESAS
ASPECTOS SOCIAIS DO CAMPESINATO 101
sentido de que devem sempre comprimir as tensQes c~mpl~as
·p ara as quais sejam insuficientes as sanções contra a d1ssoluç~o, Contudo, ao mesmo tempo, a crescente escassez ~os _re9_!E:_
pois de outro modo poderiam escapar do controle e até desm- sos da tern- fãfá crescer t;1ma tensaõ na sol1âãriêaãcICJãs tamí-
tegrar-se. Ji~ C~teiis~~ ~ntuando toaas as_!<:lJ.~Ç.!!9~~...frífÜgas ,9?,~ ! º ~·-
Contidás _sempre que ~ terra, e . ou_!~?L r~<:~rsc,,~ ~~~- s~J!,~!:,l}!_C,s ;1,.
Naqueles lugares onde as tensões fr~~m~tadoras. da fampia ·Além.dfssõ; na mediêlã ein ~que os membros dess~s familxas co-
extensa derivam fundamentalmente da filiaçao, ou seJa, da liga- . meçam a buscar alternativas várias para as tarefas que até agora
ção de pessoas à linhagem familiar, ou de conflitos entre ~em- comp~rtilharam, começam a possuir uma variedade de interesses.
bros do sib, as tensões da família nuclear cercam o do conJugal. Alguns deles desligar-se-ão do grupç, maior, às vezes com eleva-
Os filhos desta experimentar~o tensões ~ p~ssões _para libertar-se do custo . psíquico. Essas pressões adicionam-se às tensões exa•
\ dos pais, mas tratam de buscar ~e':1 propr!o _catnt~ho, for~an~o •.,; cerbadas dentro da organização m~sma, até que esta' se quebre
\ famílias separadas· e grupos domesttcos proprtos. E~sa eX1gênc1a ·"': · e seus membros se reconstituam em uma série de famílias nu-
1 se faz para alcançar independência, mas ao mesmo tempo· coloca
cleares.
j considerável responsabilidade sobre a nova familia. Sua conti-
nuidade é riJpidamente posta em questão se um dos pares con- O predomínio do t~abalho assalariado é uma .terceira con-
jugais por qualquer razão mostra-se inepto _e inoperante o~ cum- dição para a emergência da família nuclear. Tão cedo tornem-se.
primento de seus deveres para' com o ·cônJu~e ~ ~essas circ~s- os camponeses assalariados, tornam-se maiores os indícios se-
tâncias,. devemos esperar encontrar predommanc1a de familias gundo os quais a família nuclear prevalecerá, especialmente onde
nucleares em sociedades camponesas? o contrato de trabalho envolve troca de interesses unilateral,
de salários por trabalho produzido, sem nenhuma relação adicio-
Encontrá-las-emos em primeiro lugar como fenômeno tem- nal entre empregado e empregador. Nessas circunst~ncias, o tra-
{ porário em condições limites, onde. a terra. é a~u.ndan.te em re- . balhador é alugado somente para a tarefa e dispensado ap6s. As
1 lação à população e oferece oportumdade a Jovens casa1S q~e de- pessoas são empregadas por sua força de trabalho individual e
\>
~~t
!, seJam desligar-se de suas fa~as. Essas familias co_njugais po-
f il não de famílias inteiras. O processo de fragmentação em famí-
·.., dem mostrar-se temporárias, pois tornar-se-ão am' ias extensas
lias nuclea.res pode ser atrasado ou estancado onde o empregador
se as condições forem ,favoráveis;·
aceita a responsabilidade de manutenção de relações multiface-
Em segundo lugar, vamos encontrar a predominância da fa. tadas ·com o empregado, que em troca aceita um compromisso
-mília nuclear em situações onde a terra tornou-se tão escassa que perpétuo com o empregador como em muitas fábricas japone-
a familia não pode mais usar a propriedade da terra como base sas. 18 Essas relações não envolvem meramente o trabalhador
para consolidação posterior e deve voltar-s~ para outras fontes individual, mas o grupo doméstico como ,u m todo.
de renda para anular seus deficits. Isso pode ocorrer sempre Há ainda um quarto grupo de condições que favorecem a
que a propriedade familiar for subdividida várias vezes no pro- família nuclear em detrimento da ampliada:. são aquelas de um
cesso de herança, de modo que cada pedaço de terra se tor_n~ ~e- (•
cultivo altaJnente intensificado dentro de Uma familia nuclear
queno demais para cada núcleo familiar. Onde as subdiv1s~s apropriadamente equipada, que as faz produzir colheita suficien-
formam ·porções minúsculas, unidades maiores só. podem ser ena- te num pedaço de terra límitado. A terra produz o suficiente
das pela compra ou aluguel de terras adicionais, mas poucas fa. e mais: a família nuclear pode perfeitamente fornecer qualquer
1!
mílias terão recursos suficientes para pagar os preços corr.e ntes trabalho adicional para cobrir necessidades temporárias, alugan-
;
1'
1
pela terra ou aluguéis. Nessa s~tua~ão, entre~anto, haverá famí- do-s~ por t<:_mpo integral ou parcial. Essas condições são caracte-
j1 lias ricas tornando-se ainda mais ricas e maiores, enquanto as ' ' rísticas das fazendas neotécnicas de muitas partes do mundo,
famílias pobres se tornam mais pobres e sua unida?e famili?r ain-
da menor. As maiores, igualmente, possuem mais potencial pa-
ra a especialização artesanal conjugada com o cultivo. 1a James G. Ab<:sglcn, The Japanese Factory: Aspects o/ its Social
Orgamzation (Glencoe: The Frec Press, 1958).
102 SOCIEDADES CAMPONESAS ASPECTOS So.crArs DO CAMPESINATO 103

tanto as que produzem grãos ou que possuem culturas de alto trabalho é de tal modo organizado que ocupa menos homens, . a.
custo, como vinhedos concentrados e altamente capitalizados, necessidade de trabalho na agricultura decresce; Os excedentes
quanto no Reno,'nos vales ao sul do Passo de Bremer no Tirol produzidos por um ·pequeno número que permanece canalizam-se
meridional. para menos famílias: há, pois, um aumento da renda. Inversa-
Deixando temporariamente de lado os tipos de condição, mente, .o aumento da renda possibilita ao camponês comprar
podemos ver que os três últimos casos têm algo em comum. mais bens indttstrfais. Na verdade, eles terão que comprá-los,
Eles envolvem uma forma mais avançada de divisão de trabalho porque a imigração fez decrescer o número de especialistas que
na sociedade, comparadas com as sociedades camponesas domi- se dedicavam em tempo parcial a prover a família camponesa com
nadas· por famílias extensas: Estas últimas conduzem muito mais bens específicos.
processos produtivos conjugados na sua própria terra e prndu- Ao mesmo tempo, o deslocamento da demanda de produ-
zem muito m!lis itens do que consomem as famílias nucleares. tos industriais tem implicações importahtes para a existência con-
Estas podem ser carentes de terra e por isso não confiar priori- tinuada do campesinato. · Onde as condiç\)es sõciais, políticas e
tal'Íarriente no cultivo. Elas desenvolvem a divisão social do tra- econômicas o permitirem, o investimento do capjtal maciço na
balho, tomando a si especializações de tempo parcial ou total agricultura levará ao estabelecimento de. "fábricas do camp'ci" tão
para comprar comida, ou especializam-se em vender sua força logo a taxa de lucro derivada dessas empresas se 'iguale às da
de trabalho, tornando-se assaladadas. No cultivo intensivo, por it1dústria. Essa mudança da organização produtiv~ é por c.e rto
outro lado, a produção agrícola ergue-se ao ponto em que somen- 1
acompanhada de deslocamento 'simultâneo do. campesinató. Onde
te alguns produtos são cultivados em grandes quantidades, mas a taxa de lucro nos investimentos da agricultura é marcada~en-
a família nuclear deve confiar na venda proveitosa desses pro- te menor do .que a da indústria, o tamanho das fazendas perma-
dutos· para comprar a maior parte de sua comida e também pro- nece pequeno, contudo. Assim, a família nuclear será o gr.uJ;lo
dutos artesanais e industriais. Um fazendeiro de trigo que o social dominante .na lavoura camponesa.
cultiva intensamente não pode somente comer trigo, ainda que -------·-·· - · -..~· · - · · ~ · - · ··-·· -- . ' 1 ,--- .• p

ttansforme tudo e m pão. Um produtor de vinho não pode viver


somente de vinho; ele deve vendê-lo para obter alimentos e ou-
tras comodidades. Em conseqüência, podemos dizer que esta- Padrões d.e Herança
mos prestes a encontrar indícios de famílias nucleares onde a di-
visão do trabalho é acentuada na sociedade, mas não na família; O grnpo doméstico camponês não ,se acha exposto às ten-
enquanto as famílias extensas possuem acentuada divisão de tra- sões de conjugar todas as suas finalidades no tempo devido, ao
balho em si mesmas, mas não na sQciedade. mesmo tempo que mantém a sua solidariedade interna, mas tam-'
béni. precisa persistir através do. tempo. Ele sempre exµer.imen.:. ..
A divisão do trabalho é, pois, pésadamente acentuada com
o crescitríento .da indústria. A industrialização teve um efeito _;,µ,.en,.;iik~. I sso é mais evidente onde a càOeça a0 grupo dorp.és:
quase imediato num grande número de pessdas na agricultura. tico j~:-:,<:____~:! _substit~da per u111 suces·sor.,-~ ~ prole_ teivindica
À medida que os empregos na indústria se ampliaram, os subem- os recursos qg_e_.~ ÇQlfüQ_ou durante a sua vrai_w.va. · Cada'\
pregados ou que o fazem sazonalmente na agricultura emigram subs1itiíTçãode um membro _da velha geração por outrç, coloca -'Í<
para buscar trabalho nas fábricas. Essa migração reduz a popu- em questão .a existência da unidade familiar camponesa como
lação, deixando uma quantidade maior de terra e de capital per estava constituída· previamente. Como conseqüência, a sucessão ·
capita na área rural. O ef<;ito é o,de aumentar a produtividade é regulada por normas especiais. De grande importância, são
do trabalho, mesmo 'onde não ocorrem inovações tecnológicas de aquelas que governam a herança, regulamentando a pa~sagerri de
grande monta. Onde o capital é usado para aperfeiçoar a tecno- recursos sob seu~ ~õiilliile:~a_q vell:iõ- ao jovem. ·
logia da agricultura, o efeito é naturalmente aumentado. Na· Há, -bas·i~amente, 'dois si;'te~;~-·de herança. . primeiro o
m'edida em que· as máquinas assumem o papel do homem, ou o envolve a passa'gem dos recursos a um único. herdeiro. ou herança
104 SOCIEDADES CAMPONESAS
ASPECTOS SOCIAIS DO CAMPESINATO 10,
sem partilha. Este possui variantes: a propriedade pode passar Sempre que novos membros são adicionados ao grupo do-
para o p_rimogênito, ou para o caçula ou ainda para algum des- méstico por nascimento ou adoção, este simplesmente tomará a
, . nova terra até que um optimum seja alcançado, o qual se define
cendente solteiro designado pelo cabeça da família, fora dos já_
citados. O ·segundo corista de sistemas de herança envolvendo : pela quantídacfe de força de trabalho requerida e pela dificulda-
: de do governo interno do grupo. Tanto quanto a_unidadé man-
mais de um herdeir0 o~ ~t_errias de herança_EQL.11.artilh'[f Este
1 tém sua coesão interna, com· mais razão ela persistirá, mesmo
tem a vantagem de manter intacta a fazenda familiar. m her-
deiro recebe a parte produtiva· da propriedade; todos os outros que alguns de seus membros se retirem para buscar novas· for-
devem aceitar posições ·subordinadas nela ou consentir em aban- mas de emprego, sazonais ou periódicas, fora ·do cultivo do nú-
doná-la com ou sem compensações. Os sis'temas ' baseados na · cleo familiar. -Assim, é possível manter o grupo doméstico num
estado de partilha potencial, contanto que as tendências centrffu.
hs:riuiva-.p ~ g w n a..p_arte da propriedade an-
cestral ou alguma reivindicação quanto ao seu ren_dtroe.nto a to- . gas, representadas pelos migrantes tempo~ários, não excedam a
dos os membros da nova geraçjo. Eritrefántõ,-;;,sim proc:eCieU.:- pressão centrípeta dos elos sociais . constitutivos do grupo do-
méstico.
do-;süb""clivide-se a un~dade estabelecida, de modo ',l.Ue cada su-
cessor recebe uma combinação de recursos menos importantes do· Uma vez perdida essa coesão, a herança por partilha vem à
que aquela dirigida pela parte distribuinte. ··Os sistemas de he- luz. Ocorre tão logo os migrantes se tornefri"-cómple-tàmênte in- -
rança por partilha ou sem partilha podem ainda ser mais dife- dependentes. As condições estão maduras quando a fronteira de
renciados, dependendo de terem ou não direitos sucessórios ou- terra desaparece e um número cada vez maior de membros amea-
torgados a todos os filhos ou somente aos · varões. A sucessão ça acumular-se dentro do grupo doméstico, dirpinuindo a parte
restrita a estes somente é mais comum no geral das heranças, de cada herdeiro. · Mas ocorre também quando a terrra for al-
sendo que as filhas recebem geralmente compensações .na forma tamente produtiva, possuidora de culturas que trazem rendimen°
de dotes ou pagamentos monetários definitivos: to imediato, como por exemplo as vinhas européias, onde cada
A despeito de muitas inv~stigações detalhadas no que diz pedaço de terra fértil significa a existência independente de
respeito aos padrões de herança erh períodos e locais específicos, uma nova fam[lia nuclear.
as causas a eles subjacentes são ainda pouco compreendidas. De- '!' Mas a herança por partilha pode ser também influenciada
vemos tentar uma explicação preliminar de tipo funcional com pelos interesses dos detentores do poder que sugam os exceden-
a certeza de que um trabalho posterior pode qualificar mais acen- tes dos camponeses. Argumenta-se pois que o Estado chinês fa.
tuadamente as _nossas pl'Oposições. Para começar, as concomi- voreceu a partilh~, de modo a maximizar o número de pagado-
tâncias funcionais desJeS sistemas podem ser agrupadas em dois res de impostos no Reino. Ainda mais decisivo tem sido o in-
contexto_s princi~ais: o ecológico, que, lho~e a rel~ ã9 __~mrL teresse do Estado em evitar a expansão de grandes monopólios
e
~~nolog1a e ambiente; o tontexto_soc1a ~t(jil'~ que envol- da terra por funcionários. Pareceria nesse caso que, por serem
') I,
ve ã'relação··do grilpo--doméstico com outros: os mecanismos e as fortemente centralizados, os assim chamados Estados "despóti-
\ instituições econômicas e ·polítieàs superordénados. cos" que reivindicam domínio absoluto para o soberano também
É provável que a· pronta dispon'ibilidade da terra tal como favorecem o domínio prebendal mais do que o patrimonialismo,
uma região fronteiriça favoreça a herança por partilha, posto que porque também os funcionários pagos com prebendas dos co-
cada sucessor potencial tem terra suficiente a seu dispor. Nessas fres estatais estão assim ligados ao Estado e impedidos de cons-
circunstâncias, entretanto, o fator crítico não será a terra, mas a ' . .1,1
truir domínios rivais. Tal sujeição dos direitos humanos quan-
disponibilidade de outros recursos, como trabalho ou animais de to ao domínio pelo Estado resulta no qu.e Karl Wittfogel cha-
tração. Nas condições de fronteira, encontrar-se-á o grupo do- mou de "propriedade fraca". Na China, a regra de herança por
méstico. mantendo sua integridade; a herança por partilha da ter- partilha serviu para acabar com o complexo cumulativo de pro-
ra e de outros bens permanecerá mais potencial do que propria- priedade no curso de várias · gerações. Martin Yang descreveu
mente efetiva. bem esse processo numa vila do norte da China:
106 SOCIEDADE S CAMPONESAS ASPECTOS SOCIAIS DO CAMPESINATO 107
A .ascensão de uma família agrícola está .totalmente consumada pe-
la compra de terras; sua queda é. ocasionada por emergências que regra da ausência de partilha tiveram de sair e~ busca d ~· otit~o
forçam a venda da terra. É interessante notar que nenhuma fa. emprego na região ou rfora dela, fato que sublinha a .em1graçao.
mllía de nossa vila conseguiu manter a mesma extensão· de terra por dos irlandeses depois das grandes fomes dos meados do sé-.
três ou quatro . gerações. Geralmente, a familia trabalha muito
vive ·ftugaJmep.te até que começa a comprar terra, Os membro;
culo XIX.
da segunda geração desfrutam-na simplesmente, gastando muito e Contudo, o sistenta de um só herdeiro aparece também co-
ganhando pouco. · Nenhuma terra nova é comprada e gradualmen- mo resultado de pressões hierárquicas sobre os camponese~. Ar-.
te torna-se necessário vender. Na quar_ta geraçãoi a terra é véndi- gumenta-se que os senhores patrimoniais · fa~o.reciam · o st~tema
da até que a famflia cai na pobreza. O ciclo · leva menos de 100
anos ~ara se completar. Desaparecem os membros _extravagantes,
de único herdeiro, certamente contra os d,eseios. do campesma~o.
e os filhos voltam novamente a acumular propriedades. Como so- Tratava-se possivelmente de uma tentativa de tanto 1:1anter in-
freram, estão cónsciéntes do que 'qtierem, reconhecem a necessida- tacta a e·s trutura de pagamentos por aluguel como manter eco:
de do trabalho _árd~o e abstêm-se de m4itas coisaa, de modo 11 ·re- nomicamente viáveis as unidades de.sse tipo, Se-não, em cada re-
fazer a fortuna da. família. Nessa época, a familia_·original já dei-
xou de existir e em seu lugar há várias pequenas famílias pobres, ·14 partição, os débitos teri~m. que ser realoca.~os., Não som~nte a
unidade resultante estaria mapta a produzir os encargos -impo~-
tos de fora. para dentro como o custo da dir~ç.ão ~o empreendi-
 Os padrões da herança por partilha predominam na China,
na fndia, no Oriente Prôximo,. na Europa mediterrânea e na Amé- mento teria que responder às contínuas m6d1flcaçoes.

') ~ rica Latina; para onde foram levados pelos conquistadores me- Uma das cons~qüências do sistema de herdeiro_ único é a

·il
'1
1
I diterrâneos.
Em contraste, a herança sem partilha, de um único herdei-
divisão da sociedade camponesa em dois, grupos: herdeiros e de-
serdados. Essa divisão implica que o estágio estabelecido P,ara
1 0 desenvolvimento de um~ aristocracia c·a~ponesa, ~ntr,e ~queles
ro, é favorecida nas regiões de domínio "feudal" qa Eutopa e do
', 1 que necessitam manter· intactas suas proprtedades, e dommapt:.
Japão. Areas caracterizadas pelo forte desenvolvimento do do-
1) mínio patrimonial, em oposiç~o ao sistema prebendal. Em par- Desenvolvem-se fortes pressões que inibem os ~as~mentos. d~ f!.
lhos e filhas deserd;tdos. Ao mesmo tempo, diferentes _reivfnd1-
te, essa preferência é devídà a fatores ecológicos, onde o siste-
i1 cações sobre a terta vão ~ignificar que somente os herdeiros, p~s-
1' ma de único herdeiro atua para manter a combinação de recur-
. 1 suidores poderão ter famílias, geralmente escolhendo seu _conJu•
ri sos construídos no passado. Em algumas áreas montanhosas da
ge entre outros grupos domésticos do seu nível. Esse tipo de
Europa, os Pirmeus, norte da Espanha e Alpes, por exemplo, a
!i relação forja fortes alianças entre os. seus cómponentes: geral-
pr-0priedade característica deve incluir o~ prados, o pasto, a flo-
. ; mente dirigidas contra os seus colaterais e membros de srbs des-
!: resta. e os. campos de cultivo. Essa combinação ecológica ótima
possuídos. Os :,em-terra e os deserdados formam uma reserva
!: estaria ameaçada pela subdivisão. Ao mesmo tempo, tal unida-
de trabalho. f5e permanecem na comunidade camponesa, têm
qe não pode sustentar mais do que certo número dé pessoas. As que trabalhar para parentes aquinhoados. Se vão ~mbora, p~o-
normas que -gov~rnam a herança servem para ·eliminar. da suces-
curarão emri:ego em algum lugar. Alguns pe~qmsadores, tem
são todos aqueles cuja competição potencial diminuiria a capa-
enconuado u.1a· relação entre herança sem partilha e desenvol-
cidade latente da fazenda. Temos visto ~al mudança de herança·
vimento industrial. Na medida ·em que o campesinato formou
por partilha para herança sem partilha ·na Irlanda, onde os pa- ."v.
uma leva permanente de homens· e. mulheres ~es<;m~regados, es-
drões antigos de herança por partilhá abriram. caminho para o
tabelece-se um estágio do desenvolvimento da mdustna, que pode .
sistema de um único herdeiro em meados do-sécolo passado,'ten-
do ·como causa as pressões de uma forte superpopulação. Aque-
ª.
dan emprego contínuo e em grande escala uma pop_u~ação antes
desptovida de uma base social e ec~nôm1ca e sut1c1~ntemente
1 1 les que não se qualificaram para a sucessãó da propriedade sob a , numerosa pai-a manter o trabalho a baixo custo proporcionalmen-
j1 14
Martin Yang, A Chinese V.iltage: Taitou, Shantung Province
te a outros fatores.
A herança por partilha, de outro lado, pare~e en~orajar o
(Nova York: Columbia Uoiversit1 Pre~s,:i945); p. 132.
inverso. Não dará terra suficiente para um herdeiro viver, mas
108 SOCIEDADES CAMPONESAS
ASPECTOS SOCIAIS DO CAMPJ,SINATO 109
poderá dar a todos os membros da sociedade alguma terra. Assim Em segundo lugar, há as pressões que emanam do sistema
fazendo, dará a cada qual um elo contínuo no sistema de adapta- social de um campesinato. Algumas derivam da necessidade de
ção camponês. A venda de qualquer pedaço de tena poderá manter uma · unidade familiar trabalhadora em detrimento dos
não trazer grandes lucros, mas quase todas as pessoas desejam ' 1
desentendimentos pessoais e dos arrufos de independência. ~
adicionar um pequeno pedaço à propriedade original, não só por tras têm sua causa na pressão da população sobre a terra e a
pequenas compras de terra de vez em quando como casando-se tonseqüen te necessídaclê c:te·-}éclistríbu1r -• ~(J~í:rãesc~ssf Jri!re~"•
com alguém que tenha herdado uma pequena porção. Contras- vários ·reivindicantes ou de privar alguns reivindicantes poten-
tando com os regimes de herança sem partilha, que favoreceram ciais do acesso a ela. Otúrãs -pressões podem-sé ·devei a formaf
o crescimento da grande indústria ao fazer uso de grandes mas- rivais de empreendimemos, como quando unidades agrárias ne~-
sas com excedente de trabalho, essa situação de contínua divisão técnicas - plantations ·ou fazendas coletivas - fazem competi•
favorece a introdução da pequena indústria. Com parcelas de· ção pela terra e pelo capital com a el}lpresa p.!k,Q~aj~menor
terra suficientemente restritas para absorver o pleno emprego
de seus ocupantes, alguns empregos de tempo parcial podem co-
e mais frágil. , ,. ·f-.
Em terceiro lugar, há as pressões que emanam da socieda-
brir a margem econômica que tornou praticável a persistência de global da qual a propriedade camponesa faz pane. Elas po-
do camponês. É, pois, em áreas de herança por partilha que hoje dem ser econômicas e tomar a forma de exigência tributária,
encontramos também a pobreza rural de maior extensão. Por- aluguéis e pagamento de juros. Podem ser políticas, tomando a
que as pequenas indústrias, retrógradas e ineficientes, têm de torma: de interferência· legislativ.lLlla..autonom-ia- d0-campes-i nato:
competir com grandes indústrias, alijando do camponês sua mar- Ou podem ser militares, como quando o Estado chama os jovens
gem de segurança econômica. Enquanto as áreas de herança sem_ aptos, privando o cultivador de uma parte estratégica de _se~ su-
parúlha tenderem a modificar para uma organização neotécnica, primento de trabalho; ou como quando um Estado hostil _mva-
as áreas de herança com partilha, ameaçadas pela udesindustria- de uma região camponesa matando, roubando gado ou queiman-
lização" de seu fragmentado campo, enfrentarão o futuro com do suas colheitas mad1,1ras.
uma base paleotécnica manejada por uma população que cresceu Tais pressões atingem todos os membros do campesinato,
mais do que a capacidade da terià,
mas sempre uns mais que outros. Dessa maneira, um homem
que vive perto de um curso d'água e outro que cultiva pr6xi-
mo a uma região seca; é claro que ambos necessitam da água,
Pressões Seletivas e Estratégias Defensivas
mas o que está mais próximo dela a obtém mais regularmente,
com menos gasto de energia. De igual maneira, os gafanhotos
poderão destruir o campo de um deles somente. Alguns cam-
Vimos qúe o campesinato se expõe continuamente a toda
poneses terão menos filhos e mais terras, produzirão mais se-
uma gama de pressões que se chocam contra ele e desafiam sua
existência. mentes de cereal em um ano do que outros, perderão menos fi-
lhos no exército do que outros, ou· ainda terão mais parentes do
. Primeiramente, há aquelas que derivam do ec6tipo campo- sexo feminino. Em cada geração, portanto, as pressões que re-
nês específico. São produzidas pelo ambiente que os homens caem sobre a totalidade das pessoas são desiguais. Com o decor-
podem controlar de maneira parcial somente: quando a seca cres- rer do tempo, podemos esperar que alguns lares estarão mais
ta os campos nas áreas de chuva insuficiente ou :,;obrevêm inun- ~ - pressionados que outros. Essas pressões são seletivas, favore-
dações em áreas de chuva abundante. Ou quando gafanhotos in- ,.. ) , cendo a sobrevivência de algumas unidades em detrimento de ou-
vadem a terra e -pássaros devoram as plantas. De forma similar, tras e servindo para diferenciar a população camponesa.
os camponeses devem lutar contra as conseqüências da exaustão Como pode determinado grupo doméstico camponês me-
ou da superprodução. Ou ainda a erosão causada por seus pró- lhor sobreviver em face dessas pressões diferenciadoras? O
prios métodos. campesinato como um todo pode tentar resolver o problema
Uô SocrnoAOEs CAMPONESAS ASPECTOS SOCIAIS DO CAMPESINATO 111
movendo-se em direções contraditórias. Para alguns, a força da periodicamente, poucos cultivador~s farão melhoras duradouras
pressão seletiva pode ser reduzida pelo desenvolvimento de me- nele. O sistema reforça assim o cultivo tradicional e relativa•
canismos de partilha de recursos nos tempos . de necessidade. mente extensivo de colheitas anuais e desencoraja a introdução
Assim, se um grupo doméstico tem falta de faril).ha, pode tomar de colheitas perenes produzidas de forma intensiva.
emprestado de outro. Se precisa de sementes, fará o mesmo. Resultados similares são obtidos onde a comunidade não afe-
Ou se precisa de uni pedaço de terr.a adicional, tomará empres- ta o sistema de produção camponês, ·mas em vez disso corta os
tado ou alugará de outra propriedade que tem menos bocas pata excedentes produzidos po1· ela. Assim, por exemplo, entre o
alimentar. Poderá ainda chamar outros grupos domésticos para campesinato indígena da América Central e dos Andes é costu-
ajudar a suportar os encargos ou taxas ou partilhar igualmente me que os cabeças dos grupos domésticos contribuam com soma
'
o ônus dos impostos militares e governamentais. Isto é, o cam- corisideráveis de dinheiro, comida, presentes e fogos de .artifíci
pesinàtó. pode tentar refrear o efeito diferenciador das pressões etc. para o culto dos santos da comunidade. Na medida em qr·
sele.tivas que sóbre ele recaem nivelando seu impacto. No fun- o trabalho de sustento dos santos circula periodicamente ent '
1
damental, tal sistema coriclama os grupos domésticos mais bem os que são aptos a fazer pagamentos, a comunidade obtém meÍJS
sucedidos ·a conjugar-se diante do impacto de pressões, ajudan- cerimoniais de demonstrar e realçar sua solidariedade através de
do as mais problemáticas. É óbvio que, em tal situação, o ga- festas, ao mesmo tempo que nivela as distinções de dqueza en-
nho de alguns é obtido com a perda de outros. í'. tre seus membros.
A solução é apresentada na sua forma mais extrema por vá-
rios arranjos niveladores e igualitários, tal como a organização
do mir comum na Rússia pré-soviética e na Sibéria. Nela, o Precissão em Santa Maria Jesus, perto de Antigua, Guatemala.
t~ a- tetta-era....con rido à comunidade camponesa e naoaõ (Foto de Joseph Seckendorf, extraída de Sons of the Shaking
grupo doméstico individualrpente. Contu o, tõaosãs"membros Earth, obra publícada por The University of Chicago Press,
1959.)
chru:m mir tinham-direit<r-a··umápõrção na mesma base que uma
pr9priedade da família. Ela era então cultivada separadamente.
Ao mesmo tempo, a comunidade tinha direito à repartição pe-
riódica da terra entre os grupos domésticos constituintes. Tan-
1
to a freqüência de loteamentos de terra como os princípios de
~! '
i!
'1
governo sobre eles variavam de região para região. A terra
podia esr repartida em algumas áreas na base do número de
adultos ativos ·pot grupo doméstico, na base do número de va-
·rões por grupo doméstico, ou ainda na base do número total
do~ membros de todos os grupos domésticos. Outro modo é o
da comunidade decidir não lotear por um período de tempo, re-
tendo no entanto o direito último de fazê-lo. Essa terra lotea-
da _não podia ser vendida, hipotecada ou herdada. Nenhum.
membro da comunidade poderia recusar tal loteamento caso de-
sejasse, quando a cápacidade da terra em produzir excedente fos-
se menor que os tributos exigidos. Existem acertos similares em
outras partes do mundo, como a posse da terra denominada
musha'a no Oriente Próximo. . Ela impõe uma igualdade san-
cionada socialmente aos membros da comunidade, não s6 direta
como indiretamente, Onde um pedaço de terra muda de dono

1 '

! 1
' \
112 SOCIEDADES CAMPONESAS ASPECTOS SOCIAIS DO CAMPESINATO 11.3
. A solução oposta ao problema é deixar que as pressões. se- dem assim envolver não só relações entre eles mesmos, mas en-
letivas recaiam onde devem, maximizando o sucesso dos aqui- tre camponeses e superiores de outra origem.
nhoados e eliminando os que não conseguem subir. Essa tem
sido a solução adotada na Europa continental sob o domínio
~~ercantil, onde o campesinato paleotécnico foi substituído pelo
~ neotécnico num processo de seleção forçada por mais de 200 Coalizões Camponesas
anos. Em ambos os casos, a adoção da solução extrema foi tra-
zida por intensa pressão externa. Nosso critério para distinguir entre vários tipos de coalizão
camponesa são trê~: \ . · ·
A maioria dos campesinatos fica entre os dois extremos ci-
tados, possivelmente por razões óbvias, e deve buscar uma si- \\, 1. O grau no qual são formadas as coalizões entre pessoas
tuação de compromisso para seu problema. Essa tendência ao que ~o~p~rtilham muitos interesses ou entre IL~garuis...pol'.
compromisso deve-se talvez ao simples fato de que os problemas !!!!lJlruc0-mteresse. Chamaremos o primeiro tipo de multilínear
de um grupo doméstico camponês são possivelmente os mesmos e o segundo de unilinear.f A imagem subjadente nessa termtno-
dos demais. Mais ainda, um grupo doméstico que obteve um logi~ é .a de um êõrdaoq~e possui vários fios torcidos juntos ou
êxito temporário percebe ao voltar os olhós para vizinhos menos de um único fio. Uma aliança multilinear organiza-se pelo entre-
aquinhoados que, geralmente ( essa sorte é a "graça de Deus"), laçamento de muitos _laços. Cada um implica o outro,, como, por
contribuiu para seu êxito e para as dificuldades do ,vizinho; exemplo, _qua~![Oeas_..econômicas. implic~m parentesco, ami-
a situação inversa em uma outra época poderia trazer ·exatamen- 3 de ou ~unlian.ça. Essas relações de parentesco ·e . amfaíidê.. com
t: ~ contrári~. Essa ~b~rdagem é baseada muito menos nos prin-
cip10s da candade crista do que na percepção dura de que uma ~
a vizinhança implicam _!S.XistênGia- ~ e s leg~is JlJK...~S go-
m, Estas ~~~-~~~.. a exis:ârida. de.,~lmFos que as_~~fi>r~-
\... ajuda a um vizinho pode ser· uma forma simples de seguro coo- Ça1:!_l_ e rep resen_~~}]l....9.Utr.as- r~ç~ . As váriasrelãções~~~!~n-·
~tuamente. Uma ahança construída em termos de tal
\
.,,,.\' tra um dia negro. Ao mesi'no tempo, deve haver um limite para
a quantidade dos recursos de cada um g1,1e podem ser ,reunidos · variedade d~;o h~ e~fil!.rnn.ç_a_em..diíer.entes_contextos.... Nisso
aos de um vizinho para. que este· não seja arrastado pela falência está sua for · específica e sua fraqueza. Cada laço é sustentado
em potencial do outro. Em toda parte, os camponeses tendem ~or outros que a ele estão ligados e à maneira pela qual vários.
a e·ntrar em alianças que se mantêm frouxamente1 de modo a fios são ·entrelaçados para produzir um cordão mais forte. Ao
permitir a sua dispensa num período d~ provação sever·a. . Em- mesmo tempo, tal coahzão é relativamente inflex\vel. Existirá
bora as famílias camponesas tendam a aúment~.r _sJJa segurança somente quando os fios se mantiverem unidos. ·A eliminação de
a_m__pJ~~~~.Y~.. r_e~U!§.Cl~...C:Ql _be_ns ~'pessoasJ. Amm ..m!lme~ um deles enfraquece os outros. Em conseqüência, tais coaUzões
-·bé~ suhc1ente llUJ;Qnom1a funcional _par~ .~esguard_ar..sua~pt..6.Qria resistirão a forças cujo objetivo é ·desatar os fios. As alianças
sõ6revivênG-ia-;---- Chamarei de coalizões· tais alianças entendendo unilineares são mais· flexíveis e podem ser ativadas em contex-
'.'uma-
porissõ... combinação ·ou ligação entre pesso~s, facções e tos onde um único interesse pertinente predomina, sem ao mes-
Estados, em geral temporária". ~r mo tempo comprometer os participantes no envolvimento em
l , qualquer outra situação vital.
Mas os camponeses não s6 as constroem com seus compa- l 1

nheiros para neutralizar as pressões seletivas que· sobre eles re- <. ' i-· . 2. O número de pessoas envolvidas na coalizão. Ela pode
caem, mas também para neutraliza·r aq~elas de .tipo individual,
especialmen.te se emanam dos indivíduos de posição elevada, de
f]i,. \ ser diádica q_~ando envolve duas p.ess.o~s_ou_dqis~gnw.os de .P~.:
~ oi._i polu1ã1~a. q~!l_
i:!9.9.. ~mo.1:v.e...mu1tas~pe-ss0as- ou gr-up·os-.de
pessoas com mais poder militar, político ou econômico do que ~ssoas. 1
eles. Têm de buscar ajuda no mercado de seu produto com-. .3. O grau no qual são formadas as coalizões, tanto por
petindo c,om funcionários governamentais no cóntato com'o em~ pessoas çom as mesmas oportunidades de vida, ocupando a mes-
prestador de dinheiro. As coalizões envolvendo camponeses po, ma posição na ordem social, quanto por pessOas ocupando dife-
11
114 SOCIEDADES CAMPONESAS ASPECTOS SOCIAIS DO CAMPESINATO 115
rentes posições na ordem social. Tal como vimos, as coalizões
podem envolver camponês com camponês: a estas chamaremos Coalizões Unilineares
coalizões (forh.on!at's) Ou poâeffienvolver._camponeses:;-;;ksuQÇ- Vejamos agora mais de perto os tipos de relações unilinea-
riores fora dÕ..gi·upo: a estas chamaremo( ~a ·s. · res do campesinato. A permuta de nossos três critérios trans-
forma-se em quatro tipos de relações unilineares, que são:
Podemos encontrar coalizões multilineares acima de tudo em 1. Diádica e horizontal.
situações nas quais a propriedade camponesa é "individualizada" 2. Diádica e vertical.
nas suas relações com exigências exteriores. Por isso, entende-
3. Poliádica e horizontal.
mos os vários fatores da produção e as atividades levadas a cabo
dentro da propriedade camponesa como despidos de quaisquer 4. Poliádica e vertical.
embaraços e considerações que possam impedir a maximização
Tomando cada uma dessas possíveis relaçõe~,. pode.qios no-
da resposta às forças externas. Já vimos que isso pode dar-se
tar que os primeiros três tipos, importantes domo .são para a vida
sob três condições: primeiramente, quando a velha ordem se en-
camponesa, se vividos no contexto apropriado, produzem no má-
fraquece e famílias càmponesas Tndividuais aumentam seu con-
ximo coalizões muito• frouxas. As .díades horizontais unilinea-
trole de bens e serviços alijando seus vizinhos e entrando em
res estão melhor exempli{icadas pela relação de troca entre cam-
novas alianças com o mundo exterior em seu próprio interesse.
poneses· tomados iµdividual,tn~~t~_ ~..o..mercàdo. Já discutimos
Segundo, quando um aumento marcante da divisão social do
isso. Néssa relação, duas pessoas de status equivalente enc·on-
trabalho permite a novas famílias nucleares estabelecer proprie-
tram-se momehtaneámente envolvendo com i~so como única' in-
dades próprias e iniciar relações autônomas com intermedMrios
teresse a troca de bens. Nenhuma c'onsideração posterior man-
e patrões. Terceiro, quando mercados em rede penetram na co-
tém os dois participantes em contato. · No melhor dos casos, a
munidade camponesa transformando todas as relações para aque-
relação entre comprador e vendedor, como nos laços favoreci-
las de interesse único de indivíduos com bens para vender. Isso
dos de comprador e vendedor do Haiti, o pratik envolve-se em
converte os membros da comunidade em competidores de obje-
vantagens mútuas econômicas de longo alcance. Ela vai até cer-
tos que são avaliados primariamente em termos econômicos sem
consideração a valores não-econômicos. to momento, pois a relação não adquire interesses secundários
em adição ao que lhe deu origem, isto é, não redunda numa li-
Sob cada uma dessas condições ou sob todas elas juntas, os gação, mas permanece cotno uma relação de interesse único.
camponeses têm possibilidade de se encontrar em diferentes con- Isso é tainbém verdade para o segundo tipo de díade no desem-
textos sociais, lidando com diferentes indivíduos, engajados em i penho de um único interesse, aquele entre o camponês e o de-
diferentes atividades, estas por sua vez dirigidas a fins diversos. ,i tentor do poder.. Esse tipo acha-se exerrip1ificado por · relações
O resultado será que muitas. relações serão vividas a curto pra- entre o ·camponês e o emprestador de dinheiro e entre o cam-
zo, com os participantes encontrando-se apenas por breves mo- ponês e o coletor de impostos, sempre que a execução de uma
mentos. Onde contudo acontecer o contrário, ou seja, onde os tarefa particular está em jogo; Não são possíveis ligações diádi-
camponeses seguirem mais a estratégia de subconsumo do que a . cas até ·que a transação de interesse único seja suplementada por
de produção aumentada; onde a divisão de trabalho é forte den- considerações de "boa vontade" ou ajustamentos feitos na taxa
tro do grupo doméstico, mas fraca fora dele; e onde o sistema de juro ou na quantia da taxa. em pagamento por serviços ou fa.
de mercado é socialmente periférico ao invés de central, o cam- vares estranhos à transação dominante. Quando tal. acontece, as
pesinato manter-se-á enlaçado por numerosas relações multilinea- relações começam a ser providas de laços que as aproximam das
res. Nessas circunstâncias, pódemos encontrar grupos domésti-, multilineares.
cos fortes e duradouros, condições estáveis entre os grupos do-
mésticos e laços pluridimensionados com superiores e intermediá- O mesmo processo é verdadeiro para as relações poliádicas
rios, no plano econômico ou político. verticais, paseadas num interesse único. Elas estão ilustradas pe-
116 SOCIEDADES CAMPONESAS ASPECTOS SOCIAIS DO CAMPESINA'I'O 117

las relações hierárquicas ou relações entre supervisores e supervi- nida em termo~ de um número de membros computáveis e um te-
souro. robuste.c1do, em part_e,, relo menos, pela tributação regular.
sados numa repartição. Os camponeses tendem a esse tipo de · Possui uma liderança autoritaria, geralmente sob o comando unifi-
laço quando entram num emprego, numa plantação ou fábrica. cado de um f1:esidente: con:i tarefas especializadas delegadas aos
Mesmo aqui haverá tendência para converter os laços do interesse Hderes sec11ndar10s. Alem d1SS0, essas virtudes no nível da comu-
único prescritos pela organizàção formal em relações multilinea- nidade são duplicadas em nível regional e nacional pela incorpora-·
ção em associações parentais mais amplas, similarmente construídas.
res, n::s quais a boa vontade e os favores são trocados informal-
mente, de modo a fazer o processo de trabalho desenvolver-se
mais suavemente. Isso tende a fragmentar o limite de apoio po- As associações não agrupam apenas membros de uma comu-
liádico em várias díades mutuamente sustentadoras para a des- nidade em têrmos diferenciais, pois servem também para ligar
graça de · qualquer administrador que deseje aplicar regras for- esses grupos diferenciados a uma estrutura de poder e interesse
mais pura e simplesmente e sem mostrar favoritismo. mais amplos. Tal agrupamento poderá não somente ter relações
unilineares poliádico-horizontais, mas também conter laços multi-
As relações de quarto tipo, poliádicas e horizontais - que lineares poliádico-verticais.
ligam um número de pessoas em relações equivalentes e estão or-
ganizadas em torno de um único interesse - efetivam coalizões Ao mesmo tempo, sabemos que as assoc1açoes de interesse
duradouras. O melhor exemplo de tal coalizão é a confraria ou único, uma vez estabelecidas, tendem a assimilar objetivos se•
associação. Elas ocorrem em muitas sociedades, incluindo socie- cundários. Os membros de uma cooperativa vinícola bem suce-
dades camponesas de todos os tipos. Encontraremos clubes de dida podem exibir e solidificar seu prestígio patrocinando danças,
ajuda mútua, associação para enterro dos pais, grupos produto- e uma associação de criadores de gado pode contribuir para fun-
res de açúcar, sociedades de irrigação, sociedades de vigia para dos eclesiásticos e de caridade. Apesar disso, na medida em que
plantações como nas aldeias chinesas, ajuda mútua, associações o interesse dominante estrutura as relações estratégicas que sus-
de seguro e crédito como na Europa medieval. Entretanto, a for- tentam a associação, a sobrecarga de outras relações mantém-se
ma associativa aparece como dominante entre as coalizões de cam- periférica e secundária.
poneses da Europa transalpina; especialmente no despertar da
Revolução Industrial combinada com a Segunda Revolução Agrí- Coalizões Multilineares
cola. Robert T. e Gallatin Anderson, investigando as mudan-
ças sociais em Wissous ( Seine-et-Oise), uma vila perto de Paris, Distinguimos quatro espécies de relações de interesse uni-
chamaram a atenção para o crescimento rápido e a proliferação lineares que desempenham um papel na formação de coalizões
de associações nessa zona. lõ O que se passou nesse loca1 é típi- camponesas. Podemos distinguir. agor.~.-qu~tro. tipo~..<:Í~ _r.ela.çõ..e~
co de muitas outras comunidades camponesas. C0m cada família multil~neares, sob as quais podém ser $elados pactos sociais du-
exercendo domínio· mercantil sobre seus próprios recursos, den- tàdouros, que são: · · ·
tro de um mercado em franco crescimento, ·a aldeia acha-se dife- 1. Diádico e horizontal.
renciada em vários grupos de interesses, cada um voltado para a
2. Poliádico e horizontal.
estabilização e o fortalecimento de sua posição, criando sua pró-
pria coalizão de interesse único. 3. Diádico .e vertical. '
A estrutura organizacional de uma associação é eficiente. Toma pro-
4. PoHádico e vertical.
vidência para uma tomada · de decisões ordeira através de convoca-
ção regularizada, de associados disciplinados, ou utn corpo de fun- Relações de tipo horizo_ntal, diádicas e multilineares exem-
cionários que os representam. Têm uma base de poder bem defi- plificam-se por laços d~, a.~i.?~d~. ou vizinha_nç~ nas quais famílias
Hi Robert T,,Anderson e Gallatin Anderson, "The Replkate Social
se_~s~~~iam enj laços ~uit9 repetfdos de vários tipos,
desdé a1uda mutua lla pro.gu5.ão até a troca de favores. Na Amé•
q~e
_y~o
Structure", Soulhww~rn ]ournal of Anthropology, XVIII, n.• 4 ( 1962),
pp. 365-370. . rica Latina, por exemplo, esses laços "dé amizade sã'o formaliza-
118 SOCIEDADES CAMPONESAS ASPECTOS SOCIAIS DO CAMPESINATO 119

dos no que se chama co-parental ou relação de compadre entre Essas comunidades C<?!llQ~!L8-fil.J:;S~.l}.tam também mecanismos
. ".)· \ pes·soas do mesmo status. Tal relação é criada quando dois adul- tJelos~ S C.J!!Y~~!_ll as diferel!S~~ ~ -e ~~ m~~bfüs,~'i~~·to"por
tos concordam em apadrinhar uma cdança de um deles, o que periÕclicos reloteamentos de terra, como no mtr russo ou no
\ está geralmente ligado a algum cerimonial de etapas da vida. musha'a do Oriente Próximo, quanto pela sanção sobre o uso do
1
Primordialmente batismo, mas também a primeira comunhão, ca- excedente nos cerimoniais comunais como na América Central,
samento, colheita, mutilação da orelha, cons'trução da Igreja e Andes ou Java centre.l. A comunida~Mdi( sua ordem)nter~
assim por diante. Isso cria uma relação padrinho-afilhado que na, tanto por sanções formaísquiiõ.t o in_formais, como o cochi, ,
também constrói relação duradoura entre o primeiro e os· pais chõ; ias acüsações ·de feitiçaria e as acusações .diretas, Mas age
do afilhado, conhecidos desde então como compadres cerimoniais. tambemêõmo -grupo ·unitáriÕ face aos pédidos de al'i..guel vindos
Essas pessoas geralmente são a'migas ou buscam as vantagens da de fora. O aluguel de trabalho, espécie ou dinheiro é distribuí-
amizade. E o laço cerimonial gàrante a troéa de bens e serviços do 1guaup.ente entre os membros, tanto quanto se nivela o acesso
entre eles. aos recursos dentro dos limites da região. A comunidade adqui-
As relações multilineares podem também produzir coalizões re a forma de uma corporação, uma organização durável de di-
1poliádicas e horizontais. Já falamos delas em nossa breve dis- reitos . e deveres, mantida por um grupo de membros estável. E
'I
; cussão sobre comunidades niveladoras ou igualadoras. Para estas, tenderá a lutar contra mudanças e inovações tidas como ameaças
'!1 · o nome dado é de comunidades corporativas fechadas. Essas potenciais à ordem interna, que se esforça por manter.
I!
' · comunidades restringem os associados àqueles que nasceram e Essas coalizões multilineares, poliádico-horizontais, tende-
cresceram em seus limites.' Poderão reforçar essa restrição coa- ram a desenvolver-se em sistemas sociais que deixaram intacta a
gindo os membros a se casarem dentro dos limites da comuni- base de produção camponesa, mas que levantaram reclamações
dade. A comunidade, mais que o indivíduo, possui o domínio contra o fundo de rendas do campesinato, com uma importante
último sobre a. terra e este não pode vendê-la, hipotecá-la ou alie- cláusula: a comunidade mesma é que distribui o peso das dívil
nar sua parcela de terra comunitária em benefício de forasteiros. das, coleta-as e transmite-as ao verdadeiro reclamante. Em OU·
tras palavras, estamos próximos de encontrar tais comunidades
em ordens sociais dominadas por uma adaptação paleotécnica do
campesinato, combinando com formas de domínio indireto ou
prebendal. 16
Os tipos 1 e 2 de coalizões multilineares são horizontais,
envolvendo relações entre as classes, de camponeses para cam-
poneses. Os tipos 3 e 4 são entre as classes, envolvendo rela-
ções de camponeses a súperiores não-camponeses num conjunto
de laços verticais.
O tipo 3 está representado pela coalizão de tipo multilinear ·
Exemplo · de uma rela- diádico e vertical. Suá forma característica é a coalizão entre pa:
ção multilinear, diádica,
horizontal. Aqui os al- trão e empregado. Ela envolve uma pessoa superior social, po-'
deões trocam alimenio líticll e economicamente numa relação vertical com um inferior
e conversam em Saint nos mesmos moldes. Esse laço é assimétrico e é descrito como
Véran, França. (Foto
de Robert K. Bums.)
10 Eric R. Wolf, "Closed Corporate Peasant Communities in Me-
soamerica and Central Java", Southwestern Journal of Anthropology, XIII,
n.º 1 ( 1957 ), pp. 7-12.
120 SOCIEDADES CAMPONESAS ASPECTOS SoCIAIS DO CAMPESINATO 121
um tipo de "amizade torta", 17 Ao mesmo tempo, é multilinear. grupos de desceQdência são de dois tipos: grupos de descendên-
Os dois companheiros devem estar aptos a crer-se mutuanient~ cia loa1is ou grupos de descendência multilocais ou políticos.
e, na ausência de sanções formais, a relação de confiança envolve O primeiro é em essência o grupo doméstico camponês, mantido
uma compreensão niútua de motivos e conduta que não podem através do ·tempo. Já discutimos seus problemas especffi01:>s de
ser criados em um momento, mas crescem através do tempo e se manutenção. . O grupo de descendência multilocal ou político,
testam em vários contextos. Isso é verdade especialmente onde entretanto, é uma coalizão na forma de ·um grupo de parentesco,
não há sanções formais para reforçar o contrato. Em conseqüên- atuando para concentrar, manter e defender o poder contra pos-
cia, as relações patrão-cliente envolvem múltiplas facêtas dos seus síveis competidores, enquanto outros grupos c,o mo. ele ou órgãos
atotes e não metamente o interesse único segmental do momen- do Estado desejam truncar sua expansão. Trata-se de um gru-
to. Em tal relação, o patrão oferece ajuda econômica e prote- po poliádico, porque inclui muitas pessoas ligadas por laços de
ção con,tra extorsões legais ou ilegais das autoridades. Em tro- parentesco verdadeiros ou fictícios. É multilinear porque o pa-
ca, o cliente paga os bens não-materiais. Ele pode apoiar o rentesco implica a existência de interesses div:ersos, unificados
patrão com seu voto, uma expectativa que sublinha uma das va- num conjunto comum de relações. É vertical porque essa unida-
riantes da "lei do patrão" · (caciquismo) no mundo hispânico de de parentesco lembra uma associação com um comitê executi-
Ele pode manter o patrão informado das conspirações e maqui- vo. Eles diferem de uma associação, entretanto, porque seus exe-
nações alheias. Agradá-lo-á, ajudando a elevar seu status na co- cutivos são geralmente recrutados somente entre a nata do gru-
munidade. "Assim fazendo", diz Michael Kenny, "ele estimula po de parentesco, como os mais poderosos ou ricos·, ou uma li-
cotistantemente os canais da lealdade, cria a boa vontade, faz nha especial de descendência. Tal linha de descendência num
crescer o nome e a fama de seu patrão e lhe assegura uma espé- grupo mais amplo controlará prerrogativas especiais,, mas estará
cie de imortalidade." 18 Mas trata-se também da parte do con- investido também de responsabilidades de direção especiais. Pa-
trato segundo o qual ele deve agradar somente aquele patrão do ra o camponês, a filiação em tal coalizão multílinear poliádico-
i' qual recebe bens e· crédito. Ele deve oferecer mais do que pro- -vertical pode oferecer algumas recompensas às quais ele mobi-
'1'
1. testos de lealdade. Deve demonstrar a sua lealdade quando a
;1
lizará para ajudar os parentes que estão próximos do poder, en-
maré estiver baixa. Nos períodos de crise política, ele reanimará quanto os detentores deste se mobilizarão em troca para susten-
,, o patrão, ao qual está ligado por contrato informal e do qual re- tar o parentesco também numa luta para manter e exercer sua
cebe favores. Ao mesmo tempo, as crises constituem um desa- riqueza e -poder. Tal unidade de parentesco tem •assim uma re-
fio a estabelecer contratos, pois eles testam tanto a alma dos lação organizada patrão-cliente e representa uma contraparte de
ii
homens quanto seus bolsos. Um patrão que tem menos a ofere- tipo poliádico às relações multilineares diádico-verticais.
cer será abandonado por um em situação melhor. Um patrão Tais coalizões de parentesco, englobando camponeses e de-
cuja estrela declina perdetá seus clientes para um em ascensão. tentores do poder de outra origem, agem mais comumente em
Assim, esses homens competem, adquirindo apoio pela concesãÕ ·sociedades onde o Estado coleta e acumula excedentes signifi-
de favores em muitas dessas coalizões diádicas. cativos, ainda que pelas mãos de funcionários prebendais, como
1 foi o caso da China. Quando olhamos a aldeia chinesa tradicio-
As coalizões multilineares, construídas por laços poliádicos
verticais entre camponeses, ·acham-.se melhor exemplificadas na nal descobrimos primeiro todo um conjunto de grupos domés-
organização de parentesco chamada grupo de descendên_ç;ia,··_ Os tic~s, que vão desde a familia nuclear à extensa. Já vimos que a
riqueza é um pré-requisito da família extensa. Podemos notar
que as famílias que se tornam ricas em recursos e extensas na
11 Julian Pitt-Rivers, Tbe People of the Sierra (Nova York: Crite- composição social formam também uma coalizão chamada tsu ou
rion Book, 1954 ), p, 140.
clã. Ela é ativada pela invocação do princípio de descendência
1 8 Michael Kenny, A Spanish Tapestry: Town a11d Country in Cas-
,,: comum através dos ancestrais masculinos. A medéda que essas
tile (Bloomington: Indiana Univcrsity Press, 1961), p. 136. famílias se tornam ricas, solicitam a ajuda de especialistas para
122 SOCIEDADES CAMPONESAS ASPECTOS SOCIAIS DO CAM PESINATO 123

reconstruir as genealogias, organizando livros d~ clã que contam Nessa Ínstância, temos uma coalizão baseada no parentes-
os benefícios creditados de membros falecidos, tomam um cuida- co, que mantinha as famflias da aldeia u~idas horizontalmente
do especial com as tábuas ancestrais, 2.ara possuir conjuntos ce- numa associação, ao mesmo tempo que uma grupos camponeses
rimoniais e talvez para financiar um templo do dã. Um parente verticalmente numa coalizão com os detentores do poder, nos
proeminente da família pode para out ras familias ficar em par- vários níveis da hierarquia social e econômica.
te despido de sua proeminência no seu próprio clã. " Qua~do
um clã é próspero, as famílias são fortes; quando é decadente,
as famílias estarão aproximando-se da pobreza e desintegração. Coalizõe, Campone,a, e Ordem Social Envolvente
Um clã que funciona bem é um indicador de que a maioria das
famílias básicas do grupo se está desenvolvendo e não de- Agora que discutimos as características de coalizões abertas
clinando." 10 ao campeti.oato, em várias situações, é também i~p~rtan~e re-
Em algumas regiões da China, especialmente no Sul, onde conhecer que esses princípios de formação de .coa~s nao se
a riqueza mobilizável potencialmente nas plantações de arroz é encontram em oposição absoluta, mas numa s1tu.QÇao dada po-
talvez maior que no Norte, e onde o comércio estrangeiro trou- dem interpenetrar-se e cornple?1enta_r-s;.. Encont~are~os aquelas
xe fontes adicionais de riqueza, alguns tsu cresceram de modo a situações em que um ou outrq pn?cipio or~anuac1onal exerce
tornar-se corporações baseadas no parentesco, de grande porte e predorninilnc~a clara. Assim, na Chma, espec~lmente no Sul, o
interlocais. Quando isso aconteceu, outra feição do tsu tor- princípio de coaliroes por parentesco predo~m?u sobre~ out~os,
nou-se clara: sua divisão nas linhas familiares caracterizada pelo enquanto na área do Mediterrâneo os laços d1ád1cos pa~rao-die_n-
poder e riqueza diferenciais. Alguns membros da coalizão por te prevaleceram sobre out~ ~o~pe~dores.. A~esar disso, exis-
parentesco eram de fato muito ricos e poderosos e pertenciam tem áreas onde diversos pnnc1p10s sao func1ona1s em um_deter-
à pequena nobreza, na qual era recrutada a burocracia regional minado momento, embora em diferentes aspectos da vida ~u
e nacional. Um tsu tão importante poderia ter desse modo mem- di~rcnte~ níveis da estrutura social. Assim, na Europa medie-
bros no ápice da sua organização e cujos laços e esferas de in- val no norte dos Alpes combinou-se a organização comunal cor-
fluência se estendiam à área nacional de tomada de decisões. Con- po;ativà entre os camponeses com a ligação a um grupo de pa-
teria também famílias de nível econômico não-espetacular, mas rentesco nobre q\lC centraliza uma relação patrão-e1~pregado ":ªs
pelo menos bom, tanto quanto grupos domésticos pobres, cujo comunidades camponesas. Do mesmo modo, em reg1oes da fnd1a,
papel era ser dependente e subordinado, mas que mesmo assim organizam-se comunidades camponesas em torno de certos t_>On-
se·tnantétn fiel pela necessidade de segurança e apoio. Essa ne- tos. A comuníd11de local pode ter fortes aspectos corporativo_s
cessidade ocorria, permitindo ao grupo de parentesco cultivar porque está centtalizada numa casta dominante. -~<:ntudo, a fi-
terras tsu preferencialmente em relação a estrangeiros, fator im- liação a uma casta implica a presença de uma coalizao de paren-
portante etn áreas superpopulosas,. Os tsu também ganhavam· tesco com os .detentores do poder superiores, como qU1lndo uma
pelos aluguéis pagos aos seus próprios cofres em vez de a um vila dominada por um Jat como a Kishan Gari na planície norte
senhor de terra forasteiro. Similarmente, os membros pobres indiana de Uttar Ptadesh possui relações de parentesco com fun-
poderiam beneficiar-se pela associação •com um tsu poderoso, cionários e legishidores territoriais Jat. A_o mesm? temr~, fa.
sempre que necessitassem de apoio em disputas legais ou políti- mflias individuais da alta casta dentro da vila mantem o 1a1man-
cas com outros proprietários do mesmo tipo. Em troca, ganha- -kamin," ou seja, os laços patrão-cliente com unidades familiares
va-se força de trabalho, que se traduzia num poder político e eco- de especialistas típicas. Há trezentos anos passados, um grupo
nômico, prova de força nas querelas sobre recursos disponíveis de chefetes de Jat apoderou-se da região. Seus descenden~es
de riqueza ou espólios. obtêm rendimentos como líderes apontados pelo Governo nacto-
óal. São chefes de famílias com liderança em seus grupos de
JO Yang, Chi11ese Vil/age, p. 134. descendência localizados, ou seja, os principais proprietários das
124 SOCIEDADES CAMPONESAS
ASPECTOS SOCIAIS DO CAMPESINATO 125

QUADRO 1 tilineares poliádico-horizontais. No caso da fnclia, a comuni-


dade camponesa consiste numa série dessas coalizões, as chama-
Modelos Dominantes de Formação por Coalizão em SociedadeJ Camponesas das castas, organizadas hierarquicamente, sendo que as inferiores
servem: à dominante na comunidade. Essas três soeiedades fa-
Área Horizontal Verticaf vorecem de alguma maneira a continuidade da estrutura corpora-
tiva da comunidade através do tempo. São também sociedades
Europa feudal Poliáclicas, multllincares Diádicas, muitHineares em que as relações de. troca se acham mediadas ·ou por relações
!ndia Poliádicas, multilineares D iádicas e poliádicas, de serviço recíprocas ou por um sistema de mercado secional.
rnultilineares Apesar de haver mercados em rede, eles estão subordinados às
camadas superiores e são manipulados por elas.
Andes, América Poliádicas, multilineares Diádicas, relações unilinea-
Central pós-colom- res proporcionadas por coa-
Em contraste, .notamos a predominância de laços diádicos
biana Iizões multilineares diádi- horizontais no caso do campesinato do Mediterrâneo, Oriente
cas Próximo, China e Europa contemporânea. ,· No Oriente Próximo,
Mediterrâneo
essas séries estão a meio caminho entre o conjunto previamen-
Diádicas, unilineares Diádicas, relações unilinea-
res proporcionadas · por te descrito e o atual, devido à ocorrência do tipo musha'a e ou-
coalizões multilineares diá- tras entidades corporativas na área. Em contraste, as relações são
dicas diádicas, sendo multilineares ou unilineares, dependendo do grau
Oriente Próximo · Diádicas, unílineares a que chegaram os grupos domésticos em tei;mos de ajuda mútua
Diáclicas, unilineares pro-
porcionadas por coalizões e arranjos recíprocos. É notável que, em cada ~m desses casos,
rnultilineares diádkas e po- as relações de troca tendem para o padrão de mercado em rede
liádicas que reforça a tendência na direção de relações diádicas unilineares.
China Diádicas, unilineares Diádicas, relações de uni- · Quando nos voltarmos para os arranjos verticais que •ligam
Hneares proporcionadas por o nível local com hierarquias superiores, nossas séries dividem-se
coalizões multilineares diii- diferentemente da maneira que acabamos de apontar. Uma dis-
dicas e poliádicas tinção fundamental que emerge é a presença ou ausência de alian-
Europa contcmpo, Diádkas, unilinearcs Codlizões de unilineares, . ças multilineares, poliádico-verticais do tipo de grupo de pare~-
rânea diádicas e poliádicas tesco, ligando pessoas na comunidade camponesa aos detentores
do poder de- fora. Elas ocorrem na índia, Oriente Próximo ·e
terras das aldeias. Ao mesmo tempo, são quase-funcionários do China, mas não ocorrem na Europa feudal, América Central pós-
Estado. -colombina, na área andina, mediterrânea ou na Europa neotécni-
Se fixarmos nossa atenção nas formas dominantes de rela- ca, Novamente aparece o Oriente Próxim:o com caracterís~i~as
ções, podemos caminhar na análise das ordens sociais mais am- intermediárias. Essa distinção aparece para dividir sociedades
plas das quais o campesinato forma um segmento: baseadas no poder desp6tico e centralizado exercido largamente
Nosso primeiro passo nessa direção é repassar os olhos nas pela delegação de domínios prebendais em vez daqu<:les em que
sociedades que citamos ilustrativamente até agora, arranjando-as o poder está mais descentralizado. Os sistemas descentralizados
em séries de acordo com o grau em que favorecem um ou outro mostram dois subpadrões. O primeiro, característico do Medi-
terrâneo, está organizado amplamente em termos diádicos, .e m
tipo de relação social. Tomemos, primeiro, as relações que ca-
racterizam os grupos domésticos ao nível local ( ver Quadro _1 ) . relações patrão-cliente. O segundo, encontrado na Europa me-
dieval, nos Andes e na América Central depois da conquista es-
Notamos que nessas séries a Europa feudal, fndía, América Cen-
tral p6s-colombiana e a drea dos Andes são zonas fortemente do- panhola, geralmente subordina uma comunidade camponesa cor-
porativa a um proprietário predominante na vizinhança.
minadas por formas organizacionais que favorecem coalizões mul-·
126 SOCIEDADES CAMPONESAS ASPECTOS SOCIAIS DO CAMPESINATO 127
lJma segunda distinção fundamental separa todos os siste- que o campesinato desejava terra. Em tonseqüência, este pode-
mas do da Europa ncotécnica, que por sua ênfase em formas as- ria levantar-se por terra, mas esta, uma vez ocupada, cessaria
sociativas pôde construir relações verticais numa base unilinear, sua força revolucionária. "Apoiamos o movimento camponês",
mais do que mima multilinear. escreveu Lênin em setembro de 1905, "até onde é democrático
Em nossa discussão sóbre campcsinato, _ressaltam-se duas ~ e revolucionário. Estamos prontos ( fazendo isso agora e de uma
carac~erísticas da organi.~-ªçªº social: .erimeiro, a forte tendência só vez) para lutar contra ele no momento em que se tornar rc;a:
, à _ autonom_ia d.as_ famílias camponesas; ·segwi.âo;-a- tamõém fõrte cionário e antiproletário." 21 Ou ainda: "O campesinato ser~
tendência-a-fotn1ãfcÕãl1zões numa base mais· ciü meriêís--insfiWel vitorioso na revolução democrático-burguesa", escreveu ele em
,1 para·ol:>jetivos· ã curto puzo:---Em:l'mtclo numa coahzao, a tãmí- março de 1906, "e então cessará de ser revolucionário." 22
1 1fa- iiãõpode15erpetuar-se a si própria. Agindo numa coalizão, O moderno marxismo tem tratàdo o campesinato como ·um
mostrará uma tendência a subordinar os interesses mais amplos aliado potencial, mas um aliado que tem de ser organizado do
e a longo prazo aos mais estreitos e a curto prazo. Essa com~ nada. O que ao campesinato faltasse ·'ei:n organização potencial;
binação de aspectos tem sido perfeitamente compreendida pelas o partido revolucionário supriria com seu.' grupo treinado. Nas
personalidades políticas modernas, que percebem. o poder poten- palavras do Pr.imeiro Congresso dos Povos do Leste, realizado
cial do campesinato, quandq estimulado à ação conjunta, ainda em Bacu em 1920 (palavras que provaram ser proféticas'), o
que também estão cônscios de sua inabilidade em ·.manter-se or- campesinato seria a-"infantaria" da revolução com direção ade-
ganizados tanto na ação quanto depois dela. Assim escreveu quada fornecida pelos organizadores da revolução, ou seja, o
Marx sobre o campesinato da França: grupo especializado. Contudo, . o marxismo defrontou-se com ou-
O pequeno camponês forma uma vasta massa, cujos membros vivem tro problema criado pela Cirganização social camponesa; com sua
em condições semelhantes, sc;m cntr_ar contudo ·cm rcL.çõcs múlti- tendência a tornat-se acomodada tão logo tíves:ie conseguido se1,1s
plas entre si. Seu modo de produção isola-os uns dos outros cm objetivos: aquisição de terra pela reforma iigrária e sua distri-
vez de trazê-los a relações ·mútuas. . . A pequena propriedade, o
camponês e sua famfüa, mais adiante outra propriedade, outro buição. Testemunhamos tanto na União Soviética como na Chi-
camponês, outra famflia. Alguns deles constroem uma aldeia, um na Popular tentativas maciças de transmutar propriedades cam-
pequeno núcleo de aldeias constrói um departamento. Desse modo, ponesas em fazendas coletivas dirigidas ·por controle centraliza-
a grande massa da nação francesa· 6 formada pela simples adição do de cima. Os kolkhót.es e os sovkhot.es foram introduzidos na
de magnitudes homólogas, tal como batatas num saco formam um
saco de batAtas. Na medida cm que milhões de familias vivem _sob União Soviética "para evitar a liquidação da revolução" no cam-
condições e existência que dividem seu modo de vida, seus inte- po por um campesinato firmemente enraizado em seus pedaços
resses e sua cultura das outras classes e os colocam em oposição dê terra. Com o slogan "cultivo individual é capitalismo espon-
hostil a elas, eles formam uma classe. Na medida em que há uma tâneo", os camponeses chineses foram igualmente ôrganizados
simples interconexão· local entre esses pequenos campone&eS, e a
identidade de seus interesses não leva a nenhuma unidade, a ne- em comunas em grande escala.
nhuma união nacional e a nenhuma organização política, eles não As mesmas razões que levaram os revolucionários a contro•
formam uma classe. Eles são conseqüentemente incapazes de forçar lar e subjugar o campesjnato, puseram os tradicionalistas a favor
seu interesse de classe em seu próprio nome, seja pelo Parlamento da continuaçãc_> do cultivo familiar e da preservaç1fo do campesi-
ou por uma convenção. Não podem representar-se, tem de ser re-
presentados. 20 nato conservador na terra. A reforma agrária e os esquemas vi-
sando melhorar o quinhão do cultivador na terra muitas vezes
Os representantes russos do marxismo, Lênin, Trotsky e conseguiram efeito contrário aos desejados pelos revolucionários.
Stalin, perceberam as potencialidades do apoio do camponês na Reforro~ agrária não é panacéia. Se .há terra suficiente para to-
derrubada da ·ordem social, mas também sabiam perfeitamente dos nas gerações vivas, em apenas algumas gerações haverá de
21 Vladimir I. Lenin, Col/ected Works. (Londres: Lawrence and
20 Karl Marx, The Eightecnth Brumaire of Louis Bonaparte (Nova Wishart, 1962), IX, pp. 235-236.
York: International Publishers, 1957 ), p. 109. 22 Ibid., X, p. 259, nota.
1 !
1
1

i 1

128 SocJEDADES CAMPONESAS


! .
novo muitos reclamantes para pouca terra. É precisamente nos
piúscs mais necessitados de reforma agrária e de melhoramentos
que o crescimento de população tem sido particularmente forte,
tendendo a aumentar no foturo. A reforma agrária deve cami-
nhar pari passu com projetos de industrialização ou outros meios
de retirar as pessoas da terra. Dito de outro modo, o cultivo
camponês em pequenas propriedades pode ser fortalecido somen-
Membros da Brigada de Pro-
te pela redução do papel do camponês numa ordem social mais dtJção Hsiaoyuan, da Comuna
ampla. O que é ganho na estabilidade, dando terra aos campo- Popular Hochang, na Cbina
neses, perde-se nas transformações urbanas e industriais necessá- Central, debulhando arroz no
rias da sociedade. chão. A introdução da1 comu-
nas tende a mudar a lealdade
Nossa discussão das coalí2Ões camponesas também nos de- à família para a lealdade ao
safia a explorar a possibilidade de que alguns de seus tipos sejam Estado. (Eastfoto, foto de Uu
altamente compatíveis com a mudança social e econômica para Hsin-ning.)
uma ordem neotécnica, enquanto outras coalizões tendem a resis-
tir. O predomínio de associações unilineares organizadas hori-
:! zontalmente, como na Europa, sugere que a flexibilidade ineren-
te a esse tipo de coalizão foi tanto um resultado como uma con-
. ' 1
dição das mudanças que permitiram à Europa passar com tão
i1. bons resultados da base paleotécnica à neotécnica. Por outro la-
do, as coalizões multilineares poliádico-verticais, a comunidade
!
:1 1 1
corporativa e o grupo de descendência mostram-se particularmen-
1
te arredios à mudança, pois tendem a organizar o campesinato
ir
1
numa multidão de pequenos grupos enquistados ou então orga-
" •I nizando coalizões duradouras que exploram os recursos da socie-
dade em seu próprio benefício. Desse ponto de vista, o sucesso Igualmente, a sociedade modernizadora que deseja incremen-
da revolução mexicana, por exemplo, parece estar menos nos es- tar e diversificar a base de recursos no modelo neotécnico terá
forços de reforma agrária do que nas tentativas de romper as que transcender as coalizões multilineares do tipo patrão-cliente.
comunidades corporativas indígenas, truncando sua autonomia, Estas estão firmadas sobre a escassez; nelas, o poder do patrão
estabelecendo um elo entre a máquina política do Estado e os depende em larga medida de sua habilidade em distribuir al-
organizadores políticos das aldeias. Do mesmo modo, podemos guma porção do seu suprimento de bens e serviços, bastante li-
chamar a atenção para os esforços da China Comunista em abo- mitados. Como os grupos descendentes do tipo chinês, esses
:I lir os grandes grupos de descendência chineses com sua tendên- conjuntos patrão-diente tendem a explorar os recursos da so-
1 cia a favorecer seus membros às custas do Estado, entorpecendo e ciedade para seu próprio benefício: algo especial e altamente res-
dispersando o impacto do Governo central na organização do trito. A solução adotada por muitas sociedades modernizadoras,
! '~ campo. "A-s instituições que os comunistas atacam não são as embaraçadas nessa rede de relações multilineares, consiste na re-
1 ' 1 famíliares no sentido estrito, mas aquelas que se misturam com a colocação de patrões individuais com instituições centralizadas do
1 ' esfera nuclear da família.'' 2a Estado, que dispensam a figura patronal. Dando direitos patro-
nais à maioria das entidades burocráticas, tais Estados trabalham
1 23 Morton H . Fried, "The Family in China: The People's Repu-
1

blic"; em The Famíly: Its Functions and Destiny, de Ruth N. Anshen para a substituição do laço entre Estado e cidadão por uma alian-
,· ! (Nova York: Harper and Brothers, 1959), p. 166. ça personalizada entre patrões específicos e seus clientes.
..1 9

. ,,1

! li
' ;t

Você também pode gostar