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O que Mário Quintana pode nos ensinar sobre gestão

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Foto: John Salvino for unsplash

"Se nunca nasceste de ti mesmo, dolorosamente, na concepção de um poema...


estás enganado: para os poetas não existe parto sem dor."

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Mário Quintana

A formação do gestor escolar exige novos paradigmas? Eu posso apostar que muitos de
nós, gestores escolares, não só nos fazemos esta pergunta como também nos esforçamos
para continuar acreditando na possibilidade de reinvenção do nosso papel na Educação.
Ainda que apostemos na importância da atuação dos gestores escolares na superação dos
dilemas existentes na Educação brasileira, nós não podemos ignorar dois aspectos que, se
não inviabilizam o nosso trabalho, dificultam imensamente o nosso fazer cotidiano, quais
sejam, a ausência de políticas públicas de longo prazo, com investimentos adequados, e
a quase inexistente política de formação.

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Nós sabemos que nos dias atuais já se reconhece a importância da nossa atuação na ação
estratégica da educação, na organização, na administração e na articulação do trabalho
pedagógico da escola. Outro dado importante é o fato de as escolas reconhecidamente
inovadoras e/ou com bons resultados nos indicadores nacionais serem dirigidas por
profissionais que igualmente se destacam e gozam de reconhecimento.

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professor

Invariavelmente, os materiais de formação destinados aos gestores escolares informam


que a concepção de gestão escolar pressupõe a consideração do elemento humano, a
participação, a natureza coletiva do trabalho pedagógico, a democracia, a desconcentração
e descentralização do poder. Isso tem mudado as exigências e, consequentemente, o nosso
perfil profissional desde a década de 1990. Não há mais lugar para um profissional com
perfil meramente burocrático e centralizador.

O contexto histórico
Desde 1847, a legislação brasileira reconhece a necessidade do diretor de escola, segundo
estudo da professora Rosmeiri Antunes. Nessa perspectiva, o Manifesto dos Pioneiros de
1932 também exerceu considerável influência para a criação do curso de Pedagogia em
1939, culminando com a habilitação de administração escolar na reformulação de 1969.
No entanto, mesmo a Lei de Diretrizes e Bases (LDB 4.024/61) afirmando no seu Artigo
42 que o diretor de escola deverá ser um profissional qualificado, foi na LDB 5.692/71 que
o cargo de diretor escolar foi instituído.

A partir da redemocratização, na segunda metade da década de 1980 e mais intensamente


na década de 1990, com a Constituição de 1988 e a LDB 9.394/96, os aspectos da
democracia e da autonomia na escola passaram a ser correntes no discurso educacional. A
abertura política e a volta do regime republicano consolidaram a necessidade de se pensar
a Educação nessa mesma perspectiva, e como direito fundamental.

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No plano mais geral: as políticas públicas
É importante não perdermos de vista que a nossa atuação profissional não está
desprendida das diretrizes políticas da educação nacional. Nesse sentido, se analisarmos o
projeto de Educação de longo prazo usando como parâmetro a galeria dos profissionais
que têm ocupado historicamente o cargo de Ministro da Educação, veremos que há algo,
no mínimo, revelador. Desde o início do processo de redemocratização (1985) até hoje,
considerando uma série histórica de três décadas, as formações dos nossos ministros
variam de advogados a economistas. Desde 1985 até hoje o cargo de ministro da Educação
foi ocupado seis vezes por advogados, quatro vezes por economistas, duas vezes por
administradores, duas vezes por engenheiros, uma vez por um médico, uma vez por um
físico, uma vez por um matemático e uma vez por um filósofo, sendo que este último
permaneceu no cargo por quase seis meses e o matemático foi ministro interino por quase
um mês apenas.

Se por um lado a formação dos nossos ministros não os desabona para o exercício no
Ministério da Educação, por outro, isso evidencia de maneira veemente a descrença na
capacidade dos gestores escolares e dos educadores de carreira para assumirem esta
responsabilidade. De fato, a cadeira de ministro da Educação nunca foi ocupada por um
pedagogo ou por um professor vinculado às faculdades de educação das nossas
universidades. Esta situação instala um paradoxo, porque é precisamente nas faculdades
de educação que é feita a formação voltada para a constituição da identidade desse
profissional.

Como resultado disso, presenciamos a clara tentativa de transferência de


responsabilidade da educação básica para os estados e municípios, de modo que o
processo de municipalização do ensino foi a ação mais flagrante no âmbito da política
educacional brasileira, explicitando o viés economicista da política educacional. Não me
parece que será no campo da economia ou da administração que encontraremos
caminhos mais auspiciosos para a educação brasileira.

No contexto da formação: o que nos é reservado


Em relação à formação dos gestores escolares o debate se restringe às duas modalidades
mais comuns: a formação inicial, em nível de graduação/licenciatura, e a formação
continuada, entendida como formação em serviço, em cursos de curta duração ou, ainda,
em cursos de especialização (lato sensu).

No que diz respeito à formação inicial, as universidades vêm adequando os seus


currículos para atender às novas exigências colocadas pelo processo de universalização da
educação, como tem sido o caso das disciplinas ou habilitações para os educadores da
Educação de Jovens e Adultos (EJA) e para a Educação Especial, para citar apenas dois
exemplos.

No campo da formação continuada, além das iniciativas das nossas redes municipais e
estaduais de ensino, muitas vezes em parceria com as universidades públicas, outra
iniciativa de formação continuada que merece destaque é o curso Progestão, criado e
oferecido desde 2001 pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed),

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voltado para a formação de gestores das escolas públicas brasileiras. Esta iniciativa tem
sido objeto de estudo em pesquisas de mestrado e doutorado que apresentam resultados
otimistas.

Apesar disso, sabemos que esses cursos são escassos e de pouca abrangência. Geralmente
não contemplam todos os gestores de uma mesma rede ou de uma mesma unidade. Assim
como eu muitos colegas jamais tiveram a oportunidade de frequentar cursos específicos
de formação de gestores, nem na nossa própria rede e nem no Progestão. Ademais,
devemos questionar se o debate sobre a nossa formação deve versar exclusivamente sobre
o binômio da formação inicial versus formação continuada.

O diretor Claudio Neto e sua equipe na EMEF Infante Dom Henrique Foto: Acervo pessoal

É possível fazer diferente?


Arrisco-me a dizer que sim e vou um pouco mais longe. Nos meus 28 anos de carreira na
Educação, a minha experiência profissional pode ser dividida da seguinte maneira, até
assumir o cargo de diretor de escola há oito anos: foram 16 anos como professor (alguns
dos quais concomitantes como o cargo de coordenador pedagógico até o ano de 2006),
três anos como coordenador pedagógico, dois anos como supervisor escolar, um ano
como assistente de diretor de escola e um ano como orientador educacional. Nesse
sentido, a experiência conta, pois acho que realmente tive 28 anos de experiência e não
“um ano de experiência repetido 28 vezes”.

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Outro fator que considero significativo é a formação acadêmica (stricto sensu). O fato de
eu ter me tornado Mestre em Educação e de estar cursando o Doutorado também em
Educação me permitiu ter o olhar informado sobre aquilo que acontece no cotidiano
escolar. Eu sou capaz de apostar mais uma vez que muitos dos meus colegas de profissão
fariam o mestrado e o doutorado, se tivessem essa oportunidade. Contudo, a nossa
realidade não tem sido muito fácil. Estudar e trabalhar 40 horas semanais sem
afastamento do serviço é muito complicado, sem falar na falta do apoio financeiro por
meio de bolsa de estudos.

Levando em consideração todo esse conjunto, é fácil perceber que a minha defesa é pela
perspectiva de uma formação que considere a formação inicial, a formação continuada, a
experiência profissional e a formação acadêmica (stricto sensu). Considero fundamental a
conjugação de todas essas modalidades e acredito em pelo menos três dimensões
importantes na formação dos gestores escolares e dos educadores em geral: a dimensão
técnico-pedagógica, a dimensão política e a dimensão intelectual. A primeira seria
relativa ao conhecimento das técnicas e dos fundamentos da educação e da profissão; a
segunda diz respeito à compreensão de mundo; e a terceira refere-se à erudição, que vai
do acesso e apropriação de outras linguagens como a literatura, o cinema, o teatro etc., até
a formação acadêmica.

Voltando à nossa epigrafe: o que Mário Quintana tem a nos dizer?


A crença na eficácia da formação inicial e continuada dos gestores escolares não está em
discussão, mas há dois componentes a serem considerados e que na minha prática
profissional adquirem estatuto de verdade: o valor da democracia e a natureza coletiva da
Educação. Pensar um modelo de gestão escolar pressupõe pensar em um modelo de
sociedade, caso contrário, a reprodução social é o que restaria a ser feito.

Nesse sentido, a construção da identidade do gestor escolar passa pela constituição de


noções importantes em direitos humanos, especialmente no que tange ao direito à
Educação, à liberdade de aprender, o respeito à dignidade humana e o princípio da
igualdade de oportunidades. Para tanto, a escola tem que se reinventar e criar
mecanismos que assegurem esses direitos.

Nascer de si mesmo, de sua realidade e da realidade social mais ampla implica, algumas
vezes, em arriscar a fazer política pública para não cair no vazio. Sobre isso, posso dizer
que nos inventamos como gestores e professores quando resolvemos oferecer curso de
português para estrangeiros e pessoas em situação de refúgio, quando os falantes de
língua árabe começaram a chegar à nossa escola. Para assegurar a qualidade e efetivar a
perspectiva da Educação ao longo da vida nós criamos um cursinho preparatório para
ingresso em escolas técnicas de nível médio para todos os alunos do 8º e do 9º ano. Com
o objetivo de superar o preconceito e a discriminação contra os alunos estrangeiros, nós
criamos um grupo de trabalho que se reúne quinzenalmente para discutir a condição
deles na escola.

Isso tudo só se tornou possível porque há a compreensão de que as capacidades de


articulação política e de ação no território passam a ser características importantes na
atuação profissional dos gestores escolares e isso não deve ser visto como algo intuitivo ou

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espontâneo. São as noções incorporadas a partir das três dimensões de formação que
possibilitam a compreensão dessa função tão primordial na escola. Assim, a construção de
parcerias torna-se fundamental para viabilizar as ações da gestão escolar e da escola de
modo geral.

Agindo desta maneira, o gestor estabelece o sentido do seu papel profissional, o que o
poupa da crítica da “hipertrofia da gestão” e, ao mesmo tempo, reconhece a sua
“importância”, a exemplo do que postulava Ricardo Henriques, superintendente-
executivo do Instituto Unibanco e ex-secretário da Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade (Secad), no 3º Seminário Gestão Escolar, realizado em
setembro de 2017, ao falar da formação do gestor escolar.

Nascer de si mesmo, dolorosamente, à moda de Quintana é recusar a lógica da


inevitabilidade histórica. É admitir que a poesia pode emanar das circunstâncias mais
áridas e hostis, sem, no entanto, perder a capacidade de lutar e de reivindicar os direitos.
É acreditar que a “justiça social pode ser implantada antes da caridade” e que a escola, os
educadores e o gestores precisam se reinventar a partir dos dilemas que se descortinam
no cotidiano.

Claudio Marques da Silva Neto é diretor da EMEF Infante Dom Henrique, em


São Paulo. Tem experiência em direitos humanos, formação docente,
cultura escolar, indisciplina, violência e gênero. É mestre e doutorando em
Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e autor do
livro Indisciplina e Violência Escolar: dilemas e possibilidades.

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