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A solidão de rambo

Suspeitas de corrupção e conluio com as


milícias desmontam Wilson Witzel

Ao receber a notícia de que seu impeachment tomava


corpo na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, o
governador Wilson Witzel (PSC) passou a enfrentar a
mesma desorientação daquele verão longínquo quando
se perdeu no meio do mato. Tinha 23 anos e acabara de
chegar à Zona da Mata de Minas Gerais, onde o Batalhão
de Artilharia do Corpo de Fuzileiros Navais do Rio de
Janeiro faria um exercício militar que o jovem segundo-
tenente adorava: simular um combate na selva. Seus
superiores o chamavam de “tenente Uítzel”, mas, entre
os praças, seu apelido era “Rambo”, pelo seu hábito de
levar uma faca presa na panturrilha. Seriam quatro dias
exaustivos e excitantes, mas o tenente, encarregado de
liderar um dos grupos, saiu de lá enlameado e humilhado,
e no ano seguinte sua carreira militar estava encerrada.

No segundo dia dos exercícios, a equipe de Witzel


deparou com uma encruzilhada. Nessas circunstâncias, o
manual militar prevê que o líder escolha uma entre duas
alternativas: ou a equipe se divide em dois grupos para
que cada um vá numa direção, ou todos seguem um
mesmo caminho. Witzel, porém, tomou uma decisão
heterodoxa. “Vocês todos vão para aquele lado, e eu vou
sozinho por esse aqui”, disse, segundo a recordação de
um dos colegas, que hoje trabalha em Brasília e não quer
ser identificado para não se atritar com o governo. Horas
depois, os onze integrantes do grupo chegaram de volta
ao acampamento dos fuzileiros, mas o tenente estava
sumido. Passou-se um dia, e nada de Witzel aparecer. O
churrasco que deveria encerrar o exercício militar foi
cancelado.

O capitão de fragata Renato Lins Furtado, comandante


dos fuzileiros, já cogitava mandar toda a tropa de volta
para o Rio de Janeiro e providenciar uma operação de
busca e salvamento, quando, no segundo dia de espera,
o tenente Witzel surgiu no horizonte. Estava cansado,
coberto de lama, com fome e o semblante assustado.
Chegou explicando-se: “Escorreguei num barranco e
minha pistola saiu do coldre. Fui procurá-la e me perdi.”
O comandante Furtado estava furioso, pois tudo
começara com a decisão errada na encruzilhada, e
esbravejou: “Uítzel, quando chegarmos ao quartel, vou
comer a sua bunda!”

Pouco tempo depois, em julho de 1992, quando seu


contrato de três anos expirou, o tenente Wilson José
Witzel foi dispensado da Marinha. Seus serviços
militares, nas regras que disciplinam os oficiais do Centro
de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), poderiam
ter sido estendidos por mais cinco anos – era o que
Witzel desejava. Como sonhava em seguir a carreira
militar, a demissão precoce marcou sua vida. Casado
havia dois meses com uma capitã da Marinha, Sônia de
Souza Marques, doze anos mais velha, Witzel ficou sem
rumo. “Ele sempre gostou muito dos símbolos militares,
do modo de vida militar”, disse um parente próximo, que
não quer ser identificado para não abalar sua boa relação
com o governador. “Por isso, deixar a Marinha causou
nele uma frustração imensa, que ele só conseguiu
superar de alguma maneira quando entrou para a
política.”

Até reunir seu apoio eleitoral decisivo – da família


Bolsonaro e das milícias –, Witzel bateu em muitas
portas. Quando começou a pensar em trocar a
magistratura pela política, procurou a cúpula do MDB. Na
época, ele presidia a Associação dos Juízes Federais do
Rio de Janeiro e do Espírito Santo (Ajuferjes). Com esse
cartão de visitas, teve encontros com o ex-governador
Sérgio Cabral, com seu sucessor Luiz Fernando Pezão e
com o presidente da Assembleia Legislativa, Jorge
Picciani – todos hoje varridos do mapa político pela
Operação Lava Jato. Os contatos não prosperaram como
Witzel pretendia, mas renderam-lhe uma aproximação
com o empresário Mário Peixoto, íntimo dos caciques do
MDB fluminense e dono de contratos fabulosos com o
governo estadual, que somavam mais de 1 bilhão de
reais.

Sem sucesso com a turma do MDB, Witzel recorreu a


uma figura que conhecera em Brasília, quando presidia a
Ajuferjes: o pastor evangélico Everaldo Dias Pereira,
presidente do PSC, que lhe abriu as portas do partido
para abrigar a candidatura ao governo do Rio. Em março
de 2017, Witzel filiou-se ao PSC e, onze meses depois,
deixou a magistratura. “O pastor Everaldo anteviu que a
figura do juiz de direito teria muita projeção naquela
disputa eleitoral, por causa da Lava Jato e do juiz Sergio
Moro. Por isso, acreditou no Witzel”, disse um integrante
da campanha do governador. Na época, a opção de
associar-se à família Bolsonaro nem era cogitada. Ao
contrário. Como na década de 1990 até tentou filiar-se ao
PSDB (mas foi barrado pelo tucanato), Witzel ensaiou
apoiar Ciro Gomes, então pré-candidato presidencial
pelo PDT.

No início de 2018, Witzel encontrou-se com o presidente


da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Propôs ser
candidato a vice numa eventual chapa com o ex-prefeito
Cesar Maia, pai de Rodrigo. O presidente da Câmara não
lhe deu bola. (Depois da eleição, o DEM de Rodrigo Maia
aderiu ao governo Witzel: comanda uma secretaria, a de
Infraestrutura e Obras, e uma autarquia, a Imprensa
Oficial.)

Witzel não desanimou, pelo contrário: exalava


autoconfiança e já se imaginava como cabeça de chapa.
Conseguiu uma planta baixa do Palácio das Laranjeiras,
residência oficial do governador fluminense, e marcou a
caneta o quarto que cada membro da família ocuparia.
Em busca de apoio, procurou até o ex-prefeito Eduardo
Paes, que viria a ser seu adversário na eleição de
outubro, e o ex-governador Anthony Garotinho, que se
encontrava solto, entre uma prisão e outra. Não
conseguiu nada e continuou candidato de si mesmo. No
dia 20 de agosto, menos de dois meses antes do
primeiro turno, uma pesquisa do Ibope mostrava que
Witzel tinha 1% das intenções de voto. No dia 19 de
setembro, a vinte dias da eleição, outra pesquisa do
Ibope informava que o ex-juiz agora tinha 2% dos votos.
Com seu candidato naufragando, o PSC resolveu
contratar a Agência Yxe de Comunicação e Eventos,
empresa de marketing digital que pertence a Gutemberg
de Paula Fonseca, um ex-árbitro de futebol.

Apesar dos péssimos números de Witzel, Fonseca achou


que havia ali um grande potencial e procurou Flavio
Bolsonaro, então candidato ao Senado, seu conhecido de
outras campanhas. “Eu disse ao Flavio que o perfil do
candidato Witzel era o melhor para ele se associar: ex-
juiz, ex-militar. Tinha tudo a ver com os Bolsonaro”,
contou ele, em conversa com a piauí numa tarde de
janeiro. Flavio gostou da ideia. Em fevereiro de 2017,
recebera a visita de Witzel em seu gabinete, mas nunca
mais o vira. Fez então uma reunião com Witzel e aprovou
a aliança. Concordava que um juiz de passado militar
tinha tudo para dar certo. Fechado o acordo, Flavio,
então candidato ao Senado, começou a levar Witzel em
seus atos de campanha. Neles, o ex-juiz distribuía
folhetos em que aparecia ao lado do presidenciável Jair
Bolsonaro e do próprio Flavio.

O marketing digital da campanha de Witzel criou então


cerca de 850 grupos no WhatsApp para divulgar vídeos e
mensagens do candidato. Intensificaram-se as entradas
ao vivo no Facebook e no Instagram. Witzel adotou as
camisetas amarelas, passou a incentivar a abertura de
escolas militares e prometer “defesa jurídica” a policiais
que matassem em confronto. No domingo anterior ao
primeiro turno, participou do ato em que dois
bolsonaristas partiram uma placa de rua simbólica, que
levava o nome da vereadora assassinada Marielle Franco.
Um dos presentes, Rodrigo Amorim, candidato a
deputado estadual pelo PSL que também atuara na
aproximação do ex-juiz com Flavio, festejou em
bolsonarês castiço: “A gente vai varrer esses
vagabundos. Acabou Psol, acabou PCdoB, acabou essa
porra aqui. Agora é Bolsonaro, porra”, disse. Enquanto a
plateia vibrava ao fundo da imagem, Witzel, que filmava
tudo com o celular, virou o aparelho para a sua direção e
declarou: “É isso aí, pessoal, olha a resposta.” (Semanas
mais tarde, Witzel pediu desculpas à família de Marielle.
Com 140 666 votos, Amorim foi o deputado mais votado
do Rio de Janeiro.)

Com o apoio dos bolsonaristas, incluindo milicianos,


Witzel começou a crescer nas pesquisas. No dia 25 de
setembro, duas semanas antes do primeiro turno, tinha
entre 4% e 7% dos votos. No dia 3 de outubro, a quatro
dias da votação, oscilava entre 7% e 9%. Fonseca decidiu
então acionar nas redes sociais cerca de 200 mil robôs –
ou “equipamentos de inteligência artificial”, nas suas
palavras. Ao mesmo tempo, simpatizantes de Witzel
conseguiram o apoio da Igreja Universal do Reino de
Deus. A dois dias da votação, pastores da igreja
receberam quatro picapes carregadas de material de
campanha e distribuíram a propaganda em 350 templos
no estado. A milícia também mostrou serviço. Em
Gardênia Azul, na Zona Oeste do Rio, os paramilitares
contrataram moradores locais para agitarem bandeiras e
distribuírem santinhos de Witzel e Bolsonaro. Na véspera
da votação, Witzel tinha cerca de 14% das intenções de
voto. Abertas as urnas, explodira: teve 41,28% dos votos.

No segundo turno, que disputou contra Eduardo Paes,


Witzel deu um passeio. Elegeu-se com 59,87% dos votos
válidos. Ganhou em 89 dos 92 municípios do Rio, mas
perdeu na capital.

Quando foi dispensado pela Marinha, em 1992, Wilson


Witzel começou a dar aulas de informática para crianças,
entrou no curso de direito do Instituto Metodista Bennett
e dedicou-se a fazer concursos públicos. Passou para
analista do Instituto de Previdência do Município do Rio
de Janeiro (Previ-Rio), cargo que exerceu de 1994 a
1998. Diplomado em direito, foi aprovado para defensor
público e trabalhou como tal de 1998 até 2001, quando
passou no concurso para juiz federal, profissão que
abraçou por dezessete anos. Foi juiz na cidade do Rio de
Janeiro, em Itaperuna, no interior do estado, em Vitória,
no Espírito Santo, e em São João de Meriti, na Baixada
Fluminense. Durante alguns anos, combinou a carreira de
juiz com a de professor de direito em universidades
públicas e particulares no Rio de Janeiro, em Nova Iguaçu
e em Vila Velha, Espírito Santo.

Como professor, era sofrível. Faltava demais e nem


sempre tinha se preparado para o assunto do dia. “Por
duas vezes, ele usou servidores da Justiça Federal para
nos aplicar prova”, disse um ex-aluno, hoje advogado,
que pediu o anonimato para evitar prejuízos ao seu
escritório de advocacia em decisões judiciais, área em
que o governador preserva certa influência. Na
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), deixou a
disciplina de Teoria Geral do Processo a pedido dos
próprios estudantes, que reclamavam do despreparo do
professor. Como juiz, era correto. Das suas 123
sentenças que chegaram ao Tribunal Regional Federal da
2ª Região, 42,3% foram alteradas em parte ou no todo,
um índice alto mas não vexaminoso. Ao contrário do que
declarou durante a campanha eleitoral, não era uma
“máquina de sentenciar”, elogio que disse ter ouvido da
juíza Valéria Caldi Magalhães, da 8ª Vara Federal Criminal
no Rio. (Na época, a juíza emitiu nota negando a autoria
da frase.)

Apesar do fim da carreira na Marinha, Witzel nunca


perdeu o éthos militar que também capturou seus
irmãos. Terceira geração de uma família de alemães que
migraram para o Brasil no século XIX, Witzel nasceu em
Jundiaí, no interior de São Paulo, mas, quando ainda era
bebê, seus pais se mudaram para Marília, onde passou a
infância. Só voltaram a morar em Jundiaí quando Witzel,
um garoto tranquilo e aplicado nos estudos, já tinha 10
anos. José Witzel, metalúrgico aposentado, e Olivia Vital
Witzel, dona de casa, tiveram quatro filhos, dos quais o
governador, nascido em 1968, é o segundo. A
primogênita, Marília, casou-se com um oficial da PM.
Alexandre, o terceiro filho, é primeiro-tenente do
Exército. O caçula, Douglas, é policial militar. Na infância,
Witzel aprendeu a tocar trompete, um instrumento
popular no meio militar, hábito que mantém até hoje.
Concluiu o ensino médio em uma escola técnica, onde
cursou agrimensura. Com planos de seguir a carreira
militar, mudou-se para o Rio em maio de 1989, aos 21
anos, para fazer o curso de fuzileiro naval.

Mesmo como juiz, Witzel continuou a cultivar símbolos e


chegou a se envolver com o mundo policial. No seu
primeiro cargo, como juiz substituto na 8ª Vara Federal
Criminal no Rio, usava toga em todos os interrogatórios e
exigia que advogados e procuradores se levantassem em
sinal de respeito sempre que entrava na sala de
audiências. Em 2008, quando era juiz da 2ª Vara Criminal
Federal em Vitória, no Espírito Santo, alegou que estava
recebendo ameaças de morte do narcotráfico, passou a
andar com escolta policial e pediu transferência para a 3ª
Vara de Execução Fiscal, também em Vitória. O caso nem
foi investigado. Colegas da época suspeitam da alegação
de Witzel porque não havia em sua vara qualquer
processo sensível contra o crime organizado. A piauí
examinou as sentenças de Witzel da época. Não
encontrou uma única decisão penal contra
narcotraficantes.

Trabalhando numa vara fiscal, em que a presença física


do juiz é menos requisitada do que em varas criminais,
Witzel ganhou o tempo que desejava para fazer mestrado
em direito processual civil na Universidade Federal do
Espírito Santo (Ufes). Sua dissertação, segundo
levantamento do site da BBC News Brasil, tem 63
parágrafos copiados de seis autores, dos quais apenas
um consta das referências bibliográficas. Em 2015, já
transferido para ser juiz na 2ª Vara de Execuções Fiscais
em São João de Meriti. Witzel começou a fazer um
doutorado em ciência política na Universidade Federal
Fluminense (UFF). Em seu currículo acadêmico, informou
que cursara parte de seu doutorado na Universidade
Harvard. Em maio de 2019, o jornal O Globo descobriu
que era mentira. Witzel tirou a informação falsa do
currículo.

Na campanha eleitoral, dando vazão a seu espírito militar,


Witzel apresentou-se como dublê de juiz e xerife,
recorrendo ao discurso da lei e da ordem. Com o mote
“Mudando o Rio com juízo”, prometeu “acabar com essa
bandidagem no nosso estado” durante um encontro na
Associação de Oficiais Militares Estaduais do Rio de
Janeiro. “E não vai faltar lugar para colocar bandido.
Cova a gente cava, e presídio, se precisar, a gente bota
navio em alto-mar”, disse. Eleito, defendeu que contra
suspeitos criminosos o negócio era “mirar na cabecinha
e… fogo!”

Para a cerimônia de posse, mandou confeccionar uma


faixa azul e branca, as cores da bandeira fluminense,
com o brasão do estado no centro. Presidiu sua primeira
reunião de secretariado com o adereço atravessado no
peito. No exercício do cargo, posou para fotos segurando
uma metralhadora Browning M1919, calibre .30, apareceu
vestido com uniforme do Bope, treinando tiro com um
fuzil calibre 7.62 mm e fazendo flexões com os pulsos
cerrados, junto a policiais.

Em maio do ano passado, antes de embarcar em um


passeio num helicóptero da Polícia Civil sobre a cidade
litorânea de Angra dos Reis, gravou um vídeo dizendo
que ia participar de uma operação “para acabar de vez
com essa bandidagem que está aterrorizando a nossa
cidade maravilhosa de Angra dos Reis”. Durante o voo, os
policiais que o acompanhavam dispararam dez tiros
contra uma tenda no meio da mata, confundindo-a com
esconderijo de criminosos. A tenda servia para abrigar
peregrinos religiosos. Por sorte, estava vazia naquela
manhã, evitando uma chacina de inocentes.

Na manhã de 20 de agosto, Witzel deixou-se filmar


saindo de um helicóptero pousado sobre a ponte Rio-
Niterói, no meio de uma cena de crime. Tudo
coreografado. O primeiro a descer do helicóptero foi o
secretário de Governo e Relações Institucionais, Cleiton
Rodrigues, que, com celular em punho, filmou a descida
do governador. Witzel pisou no chão, abaixou o corpanzil
até sair do raio das hélices em movimento, sorriu, ergueu
os braços e desferiu socos no ar em comemoração:
vibrava com os atiradores de elite da polícia fluminense
que, minutos antes, tinham abatido o sequestrador de
um ônibus. A operação acabara com os últimos 31 reféns
sãos e salvos, mas a empolgação do governador, no
centro de uma tragédia, virou símbolo da falta de
compostura.

O pendor bélico-militar de Witzel estimulou a polícia a


apertar o gatilho. Em 2019, os policiais do Rio mataram
10,5 pessoas para cada 100 mil habitantes, a maior taxa
do século. Em São Paulo, nem os criminosos mataram
tanto – foram 7,2 pessoas por 100 mil habitantes. Nas
áreas controladas por milícias, o fenômeno é outro. Assim
que caem nas mãos de bandidos milicianos, as
comunidades vivem uma aparente pacificação. Os
tiroteios desaparecem, os crimes violentos caem. Em
2019, os homicídios diminuíram 28% nessas áreas, de
acordo com dados do Instituto de Segurança Pública,
uma autarquia vinculada ao governo estadual. A “pax
miliciana”, no entanto, é enganadora. Logo depois que
tomam o comando, os bandidos milicianos começam a
exibir seus métodos de opressão, extorsão e violência,
embora os índices de criminalidade se mantenham mais
baixos.

“O Rio é um caso curioso em que a criminalidade cai não


pelo sucesso das políticas públicas, mas pela maior
organização do próprio crime, na forma das milícias”,
disse o deputado federal Marcelo Freixo (Psol-RJ), que
presidiu a CPI das Milícias na Assembleia Legislativa do
Rio, em 2008. Para um procurador do Ministério Público
Federal, que preferiu o anonimato para não se indispor
com as autoridades estaduais, a política de segurança
pública do governo Witzel quer sufocar o tráfico de
drogas, que ele chama de “narcoterrorismo”, com o apoio
à expansão de outra organização criminosa – as milícias.
“Denúncias contra a milícia, em geral, são mais emotivas
do que aquelas contra as facções. O cidadão se angustia
por não ter onde reclamar: a delegacia mais próxima,
afinal, pode estar dominada por milicianos”, afirmou José
Antônio Borges Fortes, coordenador do serviço Disque-
Denúncia no Rio.

Além da família Bolsonaro, as milícias desempenharam


um papel relevante na eleição de Witzel. Uma pesquisa
realizada pela Fundação Getulio Vargas (FGV), a pedido
da piauí, comparou a votação de Witzel em áreas
controladas pelas milícias e nas áreas fora da influência
miliciana. Constatou que, nos locais dominados pelas
forças paramilitares, Witzel teve 12% a mais de votos do
que na média do estado. O apoio teve consequências.

Assim que tomou posse em janeiro de 2019, Witzel


mudou a estrutura de combate ao crime. Querendo ter
contato direto com as polícias, sem intermediários,
acabou com a Secretaria de Segurança Pública, órgão
que existia desde 1995. No lugar, criou duas secretarias,
uma para cada polícia, implantando um modelo que só
encontra equivalente em Santa Catarina, e escalou uma
turma da pesada. No comando da Secretaria de Polícia
Militar, entrou o coronel Rogério Figueredo de Lacerda,
notório pela sua passagem no 18º Batalhão da Polícia
Militar. A chefia da Secretaria da Polícia Civil ficou a cargo
de Marcus Vinicius Braga, que, antes de assumir,
escolheu seu braço direito: Allan Turnowski, dono de um
histórico de acusações de corrupção e de envolvimento
com bicheiros e milicianos.

Com esse arranjo, as áreas da cidade controladas pela


bandidagem miliciana ganharam um refresco. Entre 2018
e 2019, período em que a letalidade policial disparou, os
policiais mataram 21% menos nas áreas tomadas pelas
milícias. Uma pesquisa do Centro de Estudos de
Segurança e Cidadania (CESeC), da Universidade
Candido Mendes, também realizada a pedido da piauí,
constatou que a polícia fez no ano passado onze vezes
mais operações em áreas do narcotráfico do que em
regiões de grupos paramilitares. “Hoje a política de
segurança pública do Rio baseia-se em uma parceria
velada com a milícia”, acusou o promotor Luiz Antônio
Ayres, que acompanha os grupos milicianos fluminenses
desde os seus primórdios, em 2001. Em compensação,
nas áreas em que não há milícia a polícia matou 34% a
mais em 2019, na comparação com o ano anterior,
segundo dados do Instituto de Segurança Pública.

Na Cidade de Deus, por exemplo, uma comunidade que


está há mais de uma década sob controle do Comando
Vermelho – a maior organização criminosa em atuação no
Rio –, houve 268 tiroteios em 2019, quase um por dia, de
acordo com o Fogo Cruzado, um laboratório de dados
que acompanha a violência armada nas regiões
metropolitanas do Rio de Janeiro e do Recife. O próprio
governador disse, em entrevista coletiva em 2019, que se
tivesse autorização da ONU “jogaria um míssil” na
comunidade. “Com Witzel, a Polícia Militar virou linha de
frente dos milicianos”, disse um tenente da PM que pediu
para ficar anônimo para evitar uma punição
administrativa por criticar a própria corporação. “Nós
expulsamos os traficantes para que, em seguida, a milícia
tome conta da área”, disse ele.

A parceria clandestina entre a Polícia Militar e as milícias


apareceu já em janeiro de 2019, logo no primeiro mês da
gestão de Witzel. Na ocasião, policiais militares do 35º
Batalhão uniram-se a milicianos para combater o
narcotráfico em Itaboraí, na Região Metropolitana do Rio.
A operação teve um saldo macabro. Houve mais de cem
mortos, entre traficantes e moradores do local, segundo
estimativa da Polícia Civil divulgada pelo jornal Extra. A
maioria dos corpos nunca foi encontrada. Especula-se
que tenham sido enterrados em cemitérios clandestinos,
uma prática comum de bandidos milicianos. Um dos
policiais chegou a ganhar um carro de luxo BMW de
presente pelos bons serviços prestados aos
paramilitares. Quatro policiais militares foram presos e
respondem a ação na Justiça por associação criminosa e
homicídio.

Os exemplos se sucedem. Em junho do ano passado, um


grupo miliciano chefiado por Danilo Dias Lima pagou
propina de 15 mil reais a policiais do Batalhão de
Operações Policiais Especiais (Bope) para que
reforçassem as tropas paramilitares na guerra contra o
Comando Vermelho pelo controle de duas favelas em
Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. O confronto durou
dois dias e deixou um morto, o Bope cumpriu sua parte e
o batalhão da PM da área ficou de braços cruzados.
Desde então, as pichações com a sigla “CV”, que
representa a organização criminosa expulsa do lugar,
deram lugar ao número “5.5”, código militar para
comunicação via rádio que indica “alto e claro”, do qual a
milícia se apropriou para indicar as áreas sob seu
controle.

Os líderes da nova estrutura das polícias no Rio de


Janeiro pareciam tocar seu trabalho sem se preocupar
com a exposição de suas conexões com as milícias. Mas
um depoimento prestado por um preso no Rio Grande do
Norte, ao qual a piauí teve acesso, ameaça abalar essa
tranquilidade.

O depoimento começou na tarde de 26 de dezembro de


2018, às vésperas de Witzel tomar posse. Naquele dia,
um ex-policial militar no Rio de Janeiro chamado Orlando
Oliveira Araújo, de 46 anos, sentou-se diante da
procuradora Caroline Maciel da Costa, do Ministério
Público Federal, em Mossoró, no Rio Grande do Norte, e
desandou a falar. Queria defender-se da acusação de
que fora o mandante do assassinato da vereadora
Marielle Franco, ocorrido havia nove meses. Conseguiu
comprovar sua inocência, mas contou outras coisas. Seis
meses depois, em 19 de junho, voltou a depor e fez
novas revelações. A leitura das setenta páginas dos dois
depoimentos traz detalhes das relações subterrâneas
entre a bandidagem miliciana e as mais altas autoridades
policiais do governo Witzel.

Orlando Oliveira Araújo foi preso por homicídio e


associação criminosa no Rio de Janeiro, e por razões de
segurança foi transferido para um presídio em Mossoró,
onde está desde 2018. Até 1997, ele trabalhava como
policial militar no Rio, quando foi flagrado dirigindo um
carro usado em roubo de cargas. Expulso da corporação
no ano seguinte, decidiu criar uma milícia em Curicica, na
Zona Oeste do Rio, o que lhe valeria o apelido pelo qual
ficou conhecido: Orlando Curicica.

Sua milícia cresceu e se expandiu para bairros vizinhos,


como Jacarepaguá e Recreio dos Bandeirantes. A lista de
atividades criminosas de Curicica não era muito diferente
daquilo que toda milícia faz: obriga os moradores a pagar
“taxas de segurança”, explora ilegalmente os serviços de
transporte público, gás de cozinha, água, tevê a cabo e
construção civil, faz venda de cigarros contrabandeados,
de munição e de armas de fogo, instala ligações
clandestinas de energia elétrica e internet, promove
grilagem, invasão de imóveis para revenda e receptação
de veículos roubados, sempre impondo sua ordem na
base da intimidação, da extorsão e da violência.

Como chefe de milícia, Orlando Curicica conta que


conheceu e fez negócios com a cúpula da segurança
pública no Rio: Braga, Turnowski e Figueredo de Lacerda.
Em seu depoimento, ele revela que, em 2010, Braga e
Turnowski, que já então trabalhavam como delegados,
mandaram assassinar um sargento do Exército, acusado
de matar o filho de um bicheiro. O bicheiro, Rogério de
Andrade, procurou Braga e Turnowski, e encomendou a
morte do sargento ao preço de 2 milhões de reais,
segundo outra testemunha revelou à Polícia Federal.
Curicica afirmou em seu depoimento que o sargento foi
morto dentro de um hotel em Jacarepaguá.

Segundo Curicica, o então delegado Braga estreitou


laços com ele em 2015, quando o policial foi transferido
para a 16ª Delegacia de Polícia, na Barra da Tijuca. Na
época, disse Curicica, Braga recorreu aos paramilitares
para cumprir o seu próprio dever: pediu ajuda aos
bandidos milicianos para prender uma quadrilha que
assaltara um banco na região. “A gente chegou a montar
um cerco com a equipe do doutor Marcus Vinicius pra
pegar os ladrões. […] Eles apresentaram como uma
prisão deles, mas fomos nós da milícia que fizemos tudo”,
disse Curicica, que chama Braga de “doutor Marcus
Vinicius”.

Turnowski, por sua vez, recebia propina do jogo do bicho


para não apreender máquinas caça-níqueis espalhadas
pela capital, ainda de acordo com Curicica. Como
delegado, Turnowski trouxe para a sua equipe um grupo
de policiais militares na condição de adidos, algo comum
na época. Dois eram ligados a forças paramilitares – e um
deles se tornaria famoso mais tarde: chama-se Ronnie
Lessa, que hoje está preso pelo assassinato de Marielle
Franco. Em novembro de 2010, a Polícia Federal gravou
um telefonema de Turnowski, no qual ele parecia alertar
um inspetor da Polícia Civil, Christiano Fernandes, de que
estava sendo investigado. O inspetor, segundo o
Ministério Público, estava envolvido com a milícia e
recebia até armas apreendidas em operações “oficiais”
contra o narcotráfico. “Fica esperto aí porque nego da
Federal tá dizendo que caiu na escuta. […] Vê se não tem
ninguém mais agarrado. […] Confere suas equipes aí”,
avisou Turnowski. Mesmo com o alerta, quando a
operação finalmente aconteceu, três meses depois,
Christiano Fernandes, bem como seu irmão Giovanni,
foram presos. Entre os 45 detidos, estava o próprio
Turnowski, que, apesar de indiciado pela PF, não chegou
a ser denunciado à Justiça pelo Ministério Público.

Depois disso, Turnowski renunciou à chefia da Polícia


Civil e passou alguns anos atuando na área de segurança
empresarial da Cedae, a empresa estatal de saneamento
do Rio, até que retornou à cúpula da corporação pelas
mãos do amigo Braga, já no governo Witzel. Os irmãos
Christiano e Giovanni Fernandes, cujas demissões já
tinham sido anuladas pelo ex-governador Luiz Fernando
Pezão, estavam num limbo administrativo, sem função.
Em abril do ano passado, atendendo pedido de
Turnowski e Braga, Witzel reincorporou os dois à Polícia
Civil. Atualmente, trabalham na delegacia de combate ao
tráfico de armas. “Ainda mais agora com doutor Allan
Turnowski, esse pessoal chefiando a polícia, volta um
monte de bandido a ter poder no Rio de Janeiro”, disse
Curicica.

A relação de Curicica com o atual secretário da Polícia


Militar, o coronel Figueredo de Lacerda, era ainda mais
estreita. Entre 2015 e 2018, período em que comandou o
18º Batalhão da PM em Jacarepaguá, o coronel recebia,
disse Curicica, 3 mil reais por mês da sua milícia, “fora os
eventos”. No depoimento, o miliciano explica o que são
“os eventos”: “Se o batalhão precisasse de dinheiro pra
fazer uma festa, a gente tinha que ajudar. Se o coronel
quisesse trocar de carro, a gente tinha que ajudar.”
Mesmo com mandado de prisão em aberto, acusado de
homicídio, Curicica frequentava o 18º Batalhão. Segundo
contou, participava até dos tradicionais churrascos das
sextas-feiras.

Isso não era tudo. Quando queria ocupar uma área do


narcotráfico em sua região, Curicica pagava ao coronel
Figueredo Lacerda para ter o apoio dos policiais do 18º
Batalhão. No primeiro depoimento, disse que pagava 4
mil. No segundo, falou em 5 mil. “A polícia subia, nós
botávamos farda também, subíamos com eles. […] A PM
saía, ficava na parte baixa, e nós da milícia fazíamos o
enfrentamento com os traficantes lá em cima. Era feito
assim em todos os morros. Com isso, o coronel
Figueredo ganhou muita fama dos moradores por
combater o tráfico, mas ele não tava combatendo o
tráfico nada, quem tava combatendo o tráfico era a
gente. Só que a gente usava farda, porque subia de
viatura. Então a população achava que realmente era a
PM.”

Certa vez, o 18º Batalhão recebeu um carro, conhecido


como “Caveirão”, cuja blindagem, vencida, precisava ser
renovada. Curicica contou que a milícia se juntou a
empresários da região para custear os 160 mil reais da
reforma. Ele próprio, segundo disse, desembolsou “se
não me engano, 20, 25 mil pra ajudar”. A reforma foi feita.
Dias depois, o coronel Figueredo apareceu no batalhão a
bordo de um BMW, modelo X1, cuja versão zero-
quilômetro hoje custa mais de 200 mil reais. “Esse
comando foi famoso pelas extorsões, que foram
praticadas tanto na área do batalhão quanto dentro do
próprio batalhão”, acusou Curicica. Mensagens
encontradas pelo Ministério Público em um celular do
miliciano, apreendido em 2019, comprovam o pagamento
de propinas para policiais do 18º Batalhão na gestão do
coronel Figueredo.

Desde a posse de Witzel, o coronel é o secretário de


Polícia Militar. O 18º Batalhão que o coronel chefiou
durante três anos fez história. No ano passado, sete
policiais militares foram presos pela Polícia Civil, sob a
acusação de extorquir comerciantes na capital.
Examinando-se a biografia dos sete presos, descobre-se
que cinco deles trabalharam com o coronel Figueredo no
18º Batalhão, em Jacarepaguá. Já o secretário Marcus
Vinicius Braga, da Polícia Civil, deixou o cargo no dia 29
de maio. O governador pressionou pela sua saída, irritado
por não ter sido alertado sobre uma investigação policial
que, agora, ameaça seu mandato.

Desde o fim do ano passado, uma cópia do depoimento


do miliciano Curicica está nas mãos do Ministério Público
Estadual no Rio de Janeiro. Todos os implicados no
depoimento negam as acusações. Allan Turnowski afirma
que, durante seu período à frente da Polícia Civil, houve
um recorde de apreensão de máquinas caça-níqueis.
Marcus Vinicius Braga diz que nem conhece Curicica e
não participou da operação que resultou no assassinato
do sargento do Exército. “Minha carreira de dezoito anos
na Polícia Civil sempre foi pautada pela ética e pela
transparência”, disse. A assessoria da Polícia Militar
também defendeu a reputação do coronel Figueredo de
Lacerda. Em nota, disse que ele “realizou um comando
extremamente positivo à frente do 18º Batalhão
(Jacarepaguá), atuação esta que, junto às demais
posições eficientes ocupadas ao longo de sua carreira, o
credenciaram a ser escolhido para ocupar o posto
máximo da corporação”.

O governador Witzel não quis dar entrevista à piauí.

“Parabéns à Polícia Federal. Fiquei sabendo agora.


Parabéns à Polícia Federal”, disse o presidente Jair
Bolsonaro, festejando a operação contra Witzel realizada
no dia 26 de maio, uma terça-feira. Rompido com o
governador do Rio desde o ano passado, Bolsonaro
comemorava a desgraça do ex-aliado. As desavenças
vinham se acumulando, mas só se consolidaram no dia
12 de setembro de 2019, quando Witzel, em entrevista à
GloboNews, revelou suas pretensões de concorrer ao
Palácio do Planalto e esnobou o apoio de Bolsonaro na
sua campanha para o governo estadual. “Eu fui eleito no
Rio de Janeiro não pelo apoio do Bolsonaro, porque ele
nunca declarou voto em mim”, disse. “As pessoas me
escolheram por aquilo que eu sou na minha história.” Dias
depois, o senador Flavio Bolsonaro formalizou, por meio
de uma nota, o rompimento com Witzel, a quem chamou
de “ingrato” e disse que seu comportamento “beira a
traição”.

(Recentemente, Flavio Bolsonaro dirigiu-se a Witzel nos


seguintes termos: “Você ficava ligando pro Queiroz […]
pra ir atrás de mim na campanha. Sabia que o Queiroz
tava do meu lado, trabalhando. Um cara correto,
trabalhador, dando o sangue por aquilo que ele acredita.”
A frase não chamou a atenção pelo sabujismo que
imputa a Witzel, mas pelo elogio a Fabrício Queiroz, que
Flavio demitiu de seu gabinete pouco antes do segundo
turno da eleição presidencial, apesar de ser um “cara
correto, trabalhador” que dá “o sangue por aquilo que
acredita”. Acusado de ligações com a bandidagem
miliciana e investigado por participar da organização
criminosa que Flavio é acusado de liderar, Queiroz foi
preso em 18 de junho.)

No mês seguinte ao rompimento entre Witzel e


Bolsonaro, a tensão escalou para um salseiro público. O
presidente acusou o governador de ter vazado à TV
Globo o depoimento de um porteiro que o implicava no
caso Marielle Franco – semanas depois, o depoente
voltou atrás. Bolsonaro não apresentou nenhum elemento
para comprovar a acusação, e Witzel atribuiu-a ao
“descontrole emocional” do presidente. A inimizade
voltou às manchetes com a divulgação do vídeo da
reunião ministerial de 22 de abril, na qual Bolsonaro
reclama que suas tentativas de interferência na Polícia
Federal não vinham surtindo o efeito desejado. A certa
altura, Bolsonaro refere-se ao governador do Rio como
“aquele estrume”.

No dia 26 de maio, porém, o presidente estava feliz com


a Polícia Federal. Os agentes cumpriam mandados de
busca e apreensão em doze endereços. Entre eles,
estavam a casa onde o governador morou no bairro do
Grajaú, o escritório de advocacia de sua mulher, o Palácio
Guanabara, onde o governador despacha, e o Palácio das
Laranjeiras, a residência oficial. Witzel e a mulher
dormiam quando a polícia chegou às seis da manhã.
Ficaram perplexos e apenas acompanharam a ação
policial. Os agentes revistaram gavetas e armários, e
apreenderam todos os computadores e celulares do
governador e da mulher.
O cerco policial ao governador começou antes, no dia 14
de maio, quando o empresário Mário Peixoto, aquele com
contratos bilionários no governo, foi preso pela Polícia
Federal, em Angra dos Reis. Na mira da polícia pelo seu
envolvimento com o ex-governador Sérgio Cabral,
Peixoto está sendo investigado pela suspeita de
comandar um esquema que, azeitado pelo pagamento de
propina a autoridades estaduais, vem desviando dinheiro
público na área da saúde na gestão Witzel. O esquema,
suspeitam os investigadores, operou antes da Covid-19,
e se manteve ativo durante a pandemia.

A investigação chegou à porta do governador porque a


polícia encontrou, na casa de um operador financeiro de
Peixoto, cópia de um contrato de “consultoria jurídica”,
segundo o qual a primeira-dama receberia 540 mil reais
em 36 parcelas mensais. Helena Brandão é uma
profissional inexperiente, nunca advogou formalmente
para empresas e seu escritório de advocacia só fora
habilitado a emitir notas fiscais um mês antes da
assinatura do contrato. A suspeita dos investigadores é
que o documento seja o veículo das propinas ao
governador, estratégia que foi usada por Sérgio Cabral e
sua mulher Adriana Ancelmo, também advogada.
Brandão negou a suspeita em nota, mas a desconfiança
dos investigadores foi reforçada pela descoberta de que
ela e o governador, em data próxima ao início do
contrato, mudaram o regime de casamento para
comunhão universal de bens.
A piauí confirmou com três pessoas que trabalharam na
campanha eleitoral de Witzel que Peixoto bancou boa
parte das despesas do ex-juiz, embora seu nome não
apareça na prestação de contas entregue ao tribunal
eleitoral. Ao assumir, Witzel fechou seis contratos com a
Atrio Rio Service Tecnologia e Serviços, empresa hoje em
nome do filho de Peixoto. Dos seis contratos, quatro
foram feitos sem licitação. Para obtê-los, Peixoto
desembolsou um “cachezinho básico”, segundo disse um
operador do esquema em telefonema interceptado pela
Polícia Federal: “[Peixoto] tá pagando um cachezinho,
aquele cachezinho básico, 500 mil para um, 1 milhão para
outro. Ele não é brincadeira, não.” Peixoto, que até o fim
de junho permanecia preso no Complexo Penitenciário de
Gericinó (Bangu 8), mandou dizer à piauí que não
financiou a campanha de Witzel e não tem com ele
nenhuma relação ilícita. “Qualquer acusação neste
sentido é absolutamente descabida e irreal”, informou
sua defesa.

No fim da manhã em que a polícia bateu na sua porta,


Witzel convocou uma entrevista para acusar Bolsonaro
de usar a Polícia Federal para persegui-lo. No dia
anterior, em entrevista à Rádio Gaúcha, a deputada
federal Carla Zambelli (PSL-SP) dissera que a PF estava
prestes a deflagrar operações contra desvios na área da
saúde nos estados. “Já tem alguns governadores sendo
investigados”, informou a parlamentar. O anúncio prévio
por uma deputada bolsonarista de operações que
deveriam ser sigilosas levantou a suspeita elementar de
que Bolsonaro estava usando a PF para intimidar seus
inimigos políticos. Os governadores de nove estados,
numa nota divulgada dias depois, criticaram a operação e
dirigiram-se a Bolsonaro nos seguintes termos: “Após
ameaças políticas reiteradas e estranhos anúncios
prévios de que haveria operações policiais,
intensificaram-se as ações espetaculares, inclusive nas
casas de governadores, sem haver sequer a prévia oitiva
dos investigados e a requisição de documentos.”

As duas suspeitas – dos desvios de Witzel e da


manipulação de Bolsonaro – contaminaram a
investigação de tal modo que ficou difícil distinguir entre
bandidos e mocinhos. Na entrevista que deu logo depois
da batida policial, Witzel disse: “Quero manifestar minha
absoluta indignação com o ato de violência que, hoje, o
estado democrático de direito sofreu. […] Não vão
conseguir colocar em mim o rótulo da corrupção. […] a
Polícia Federal deveria fazer o seu trabalho com a mesma
celeridade que passou a fazer aqui no estado do Rio de
Janeiro, porque o presidente acredita que eu estou
perseguindo a família dele, e ele só tem essa alternativa,
de me perseguir politicamente.”

Os ex-aliados, que hoje trocam acusações mútuas de


manipulação policial, já estiveram juntos em
maquinações contra o comando da Polícia Federal no
Rio. Em abril do ano passado, uma investigação da PF
descobriu que policiais civis estavam extorquindo
empresários. O então secretário de Polícia Civil, Marcus
Vinicius Braga, irritado com a investigação da PF sobre
seus comandados, reclamou ao governador, que
concordou com o secretário. Juntos, bolaram um plano
para derrubar o então superintendente da PF no Rio,
Ricardo Saadi, e colocar no seu lugar um delegado
federal amigo, lotado no Espírito Santo. Witzel recorreu a
Bolsonaro, pois eram aliados ainda, e pediu o
afastamento de Saadi. Bolsonaro gostou da ideia e
encaminhou o pleito ao então ministro da Justiça, Sergio
Moro. Como se sabe, Moro não atendeu ao pedido de
Bolsonaro. A maquinação Witzel-Bolsonaro não deu
certo, mas, quatro meses depois, agora sem lobby do
governador, Saadi caiu.

Em sua carreira como juiz, Wilson Witzel envolveu-se em


algumas polêmicas. Em 2010, foi um dos organizadores
de um encontro de magistrados federais em um resort de
luxo na ilha de Comandatuba, no Sul da Bahia,
patrocinado por estatais e grandes empresas privadas,
como a Souza Cruz, em que pese a Emenda
Constitucional nº 45 proibir juízes de receber auxílios ou
contribuições de pessoas físicas e empresas. O episódio
ficou conhecido como “farra dos juízes federais”. Oito
anos depois, em janeiro de 2018, quando já preparava
sua candidatura ao governo do estado, ele deu uma
palestra para outros juízes, gravada em vídeo. A certa
altura, contou que recorria a uma mutreta para aumentar
seu salário por “acúmulo de função”. Disse o seguinte:
“Eu recebo [uma gratificação], expulsei o juiz substituto
da minha Vara, falei: ‘Ô, negão, ou você vai viajar lá para
ficar um ano fora, ou vou te expulsar da Vara.’
Brincadeira, adoro meu juiz substituto. Mas, se ele ficar,
eu não recebo. Aí a gente faz uma engenharia… Todo
mês, quinze dias por mês, o juiz substituto sai da Vara.”
Ou seja: todo mês, Witzel recebia um adicional de 4 mil
reais por acumular a função dele e a do juiz substituto. O
caso não lhe valeu nem uma reprimenda.

O outro episódio ocorreu no início de 2014, quando


Witzel pediu autorização para viajar à Espanha, onde
daria palestra em um congresso na Faculdade de Direito
da Universidade Complutense de Madri. O pedido foi
apresentado fora do prazo, e a autorização lhe foi
negada. Mesmo assim, Witzel embarcou. Aproveitando o
passeio para comemorar dez anos de casamento,
chegou à Europa cinco dias antes do evento em Madri.
Sua mulher postou no Facebook fotos em que aparecia
diante da Catedral de Notre-Dame, em Paris, marcando o
juiz no local. Witzel alega que só soube que a viagem não
fora autorizada quando já estava no exterior. Por isso,
voltou para o Brasil dois dias antes do fim do encontro
em Madri, ao qual acabou não comparecendo. O juiz foi
alvo de uma sindicância, que terminou sendo arquivada.

Depois de doze anos, o casamento de Witzel com a


militar Sônia Marques acabou em 2004. Pouco antes da
separação, Witzel achou que a casa em que moravam na
Vila Isabel, Zona Norte do Rio, não era adequada para
receber os amigos magistrados. Decidiu comprar um
imóvel mais amplo no Grajaú, bairro vizinho, ao preço de
770 mil reais, em valores de hoje. Sua sogra, cafeicultora
em Minas Gerais, emprestou 115 mil reais (valor
corrigido) para ajudar na aquisição. O negócio foi
fechado, o contrato de compra foi lavrado, mas, poucas
semanas antes da mudança para o novo imóvel, Witzel
pediu o divórcio. E passou a morar no imóvel novo com
Helena Brandão, treze anos mais nova, então sua aluna
de direito. A mãe da sua ex-mulher entrou na Justiça
cobrando a devolução do dinheiro e ganhou a causa. No
início de 2019, Witzel foi intimado a pagar a dívida.

A separação litigiosa teve impacto no único filho do casal,


Erick, então com 10 anos (ele nasceu em corpo feminino
e começou a transição depois de fazer 18 anos). Logo
depois do divórcio, Witzel lhe contou que estava
apaixonado por Helena e que a nova mulher lhe daria um
filho homem. (Witzel e Brandão tiveram três filhos:
Vicenzo, Beatriz e Bárbara.) “Ele se afastou muito. Ele
não mostrava mais interesse [em mim]. Eu era criança.
Senti falta, muita falta. Chorei, chorei, chorei”, contou ao
jornal O Globo, em outubro de 2018, mês da eleição.
Quando disse ao pai pela primeira vez que se sentia
homem, Witzel reagiu mal. Confundindo transexualidade
com homossexualidade, citou trechos da Bíblia que
condenam as relações entre pessoas do mesmo sexo,
mas, com o tempo, acabou aceitando a condição do filho.
Às vezes, lhe dava tapas com alguma força no braço e
dizia, em tom de galhofa: “É assim que homem se
cumprimenta.”

Discreto, Erick não queria aparecer durante a campanha


eleitoral e irritou-se quando o pai mencionou sua
existência durante uma entrevista à rádio CBN. “Tenho
muito respeito por ele, mas não existe todo esse carinho
que ele diz ter por mim. É sujo você usar alguém. Eu me
senti usado por ele nas entrevistas que ele deu”, disse
Erick naquela mesma reportagem de O Globo. Em
meados do ano passado, Erick voltou a se reaproximar do
pai, a quem chama de “Vilson”. Sua relação com a
madrasta é fria mas cordial.

Os cuidados de Helena Brandão com a aparência – ela já


fez plástica no nariz e colocou silicone nos seios – se
estendem ao marido. No início do governo, assessores
tiveram dificuldade para contratar um fotógrafo oficial ao
gosto de Brandão, que invariavelmente reclamava de
como o governador aparecia nas fotos. Faz questão de
mantê-lo longe de presenças femininas e proibiu o uso
de decotes e alcinhas entre as funcionárias do Palácio
Guanabara. Uma policial militar que trabalhava na
antessala do gabinete do governador, e cuja beleza atraía
a atenção, foi logo transferida por ordem da primeira-
dama. Com o tempo, mesmo antes da ascensão ao
governo, Brandão tornou-se uma influência decisiva
sobre o marido, que não toma decisões relevantes sem
antes consultá-la. Ela participa de reuniões do
secretariado, para constrangimento de muitos titulares
das pastas, e interfere na articulação política. Era assim
até ser alvo da operação da Polícia Federal.

Com um ano e meio de governo, depois de uma eleição


vertiginosa, Witzel encontra-se na situação mais
calamitosa de todos os governadores do país. Quando
era juiz, seu objetivo era ser ministro do Supremo
Tribunal Federal, o posto mais elevado da magistratura
brasileira. Assim que tomou posse como governador, em
tom meio sério, meio brincalhão, revelou um segredo a
amigos próximos durante uma reunião noturna no Palácio
Guanabara em que bebiam uísque e fumavam charuto.
Disse que seu plano era eleger-se presidente da
República e, depois de cumprir o mandato – dois, de
preferência –, virar secretário-geral das Organizações
das Nações Unidas. Hoje, não há governador mais
solitário. Seu vice, Cláudio Castro (PSC), recolheu-se ao
silêncio, quebrado apenas quando escreveu meia dúzias
de palavras no Twitter fazendo uma tímida defesa de
Witzel.

Além de perder o apoio de Bolsonaro, perdeu também


sua base na bandidagem miliciana, que ficou insatisfeita
com sua defesa da quarentena e do isolamento social
para combater a pandemia da Covid-19, medidas que
levaram ao fechamento do comércio que os milicianos
extorquem. Perdeu ainda apoio na Assembleia
Legislativa, na qual chegou a compor uma base com mais
da metade dos setenta deputados. Na tarde de 10 de
junho, Witzel tornou-se um dos poucos governadores
eleitos na safra de 2018 a enfrentar a abertura de um
processo que pode levar ao impeachment. Em votação
simbólica, 69 deputados aprovaram a medida. Witzel não
teve o apoio nem dos deputados do seu próprio partido,
o PSC.

A implosão da base governista aconteceu quando Witzel


demitiu seu principal articulador político, André Luis
Dantas Ferreira, que se apresenta como “André Moura”.
Ele chegara ao governo oito meses antes. Foi deputado
federal pelo PSC, integrou a tropa de choque do ex-
deputado Eduardo Cunha e responde a três ações penais
no STF por desvio de verba pública e formação de
quadrilha, herança dos tempos em que foi prefeito de
Pirambu, cidade litorânea de Sergipe. (Numa das ações,
“André Moura” é acusado pelo Ministério Público de usar
verba da prefeitura para abastecer a geladeira de sua
casa com vodca, camarão, cerveja e vinho. Ele nega as
acusações.)

A articulação política ficou a cargo de Lucas Tristão do


Carmo, então secretário do Desenvolvimento Econômico,
Energia e Relações Internacionais. Tristão é ex-aluno de
Witzel, da época em que o governador dava aulas na
faculdade de direito em Vitória, e muito próximo do
empresário Mário Peixoto. É, também, um desafeto da
maioria dos parlamentares, além de estar sob
investigação em duas operações da Polícia Federal. Com
esse currículo, Tristão resolveu eliminar as críticas ao
governador por meio de ameaças aos deputados com
dossiês incriminadores – o que ele nega. Durou cinco
dias como articulador político. Na tentativa de salvar-se
do impeachment, Witzel o demitiu da articulação e da
secretaria. O impeachment foi aberto menos de duas
semanas depois. “O governo sempre foi uma disputa de
facções”, diz um interlocutor de Witzel, que pediu para
manter o anonimato com receio de represálias. “Nunca
foi um time de fato.”

Com o vendaval da polícia e do impeachment, Witzel já


trocou seis secretários e mandou acenos de paz para o
presidente, que lhe chamou de “aquele estrume”. Nas
seis semanas que anteciparam a operação dos agentes
federais no palácio, Witzel fez 25 tuítes críticos a
Bolsonaro. Entre eles, disse que o presidente era
grosseiro no trato com autoridades e jornalistas e
irresponsável na condução da crise do coronavírus. “A
falta de respeito de Bolsonaro pelos poderes atinge a
honra de todos. Sinto na pele seu desapreço pela
independência dos poderes. E espero que num futuro
breve o povo brasileiro entenda que, do que ele me
chama, é essencialmente como ele próprio se vê”, tuitou
em 22 de maio. Do dia 27 daquele mês em diante,
concluída a operação policial, Witzel calou-se. Fazendo
um balanço da jornada do governador até aqui, o
deputado Marcelo Freixo disse o seguinte: “Alçado ao
poder com apoio do Bolsonaro, Witzel cai como um
aprendiz do Sérgio Cabral.” No dia seguinte à batida
policial, a primeira-dama teve um pico de pressão e foi
internada no Hospital dos Bombeiros. O maior receio do
governador, o Rambo da juventude, é que sua mulher vá
para a cadeia.

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