Você está na página 1de 95

Uma Mulher Indomável

Anne Ashley

Julia Época – Vol. 7

Copyright © 1999 by Anne Ashley


Originalmente publicado em 1999
pela Harlequin Mills & Boon Ltd., Londres, Inglaterra
Título original: Lady Jane's Physician
Copyright para a língua portuguesa: 2001
EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.
Tradução: Sulamita Pen
Editor: Janice Florido
Chefe de Arte: Ana Suely S. Dobón
Paginador: Nair Fernandes da Silva
EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.
Rua Paes Leme, 524 - 10a andar CEP: 05424-010 - São Paulo - Brasil
Fotocomposição: Editora Nova Cultural Ltda.
Impressão e acabamento:
DONNELLEY COCHRANE GRÁFICA E EDITORA BRASIL LTDA.
DIVISÃO CÍRCULO - FONE (55 11) 4191-4633

1
Este livro faz parte de um projeto sem fins lucrativos.
Sua distribuição é livre e sua comercialização estritamente proibida.
Cultura: um bem universal.

Digitalização: Palas Atenéia


Revisão: Evany

Um homem prudente…
Uma mulher indomável!

Lady Sthephanie Beresford ficou feliz em aceitar o convite para visitar a


prima, lady Elizabeth Knightley. Sua alegria, porém, foi toldada pela presença
do dr. Thomas Carrington. Avesso às etiquetas sociais e como modos
ligeiramente indelicados, deixou Sthephanie irritada muito além da conta!
Mas quando ela necessitou de seus serviços profissionais para ajudar um
amigo, descobriu a verdadeira face de Thomas Carrington. Só precisava
mostrar-lhe que não era pretensão demais apaixonar-se pela filha de um
conde!

2
3
CAPÍTULO I

Desde a infância, ensinaram lady Sthephanie Beresford a manter a serenidade


diante de quaisquer circunstâncias, como convinha a uma aristocrata. Por isso ela não
deixou que lhe pressentissem a alegria, ao ver o marco quilométrico que indicava a
próxima chegada.
A demonstração de emoções era considerada vulgar ao extremo. De certo
modo, lady Sthephanie invejava as pessoas de classe social mais baixa, que podiam
exprimir seus sentimentos à vontade.
Suspirou, descontente. Como filha do conde de Eastbury, fora mimada e
privilegiada desde o berço, além de ter acesso a tudo o que o dinheiro podia comprar,
como roupas finas e jóias. Então por que se mostrava insatisfeita com seu quinhão?
Por que necessitava, cada vez com maior freqüência, afastar-se de sua existência
previlegiada e dos laços que a prendiam a certos membros da família, cujo único
interesse nos últimos quatro anos fora exibí-la no mercado matrimonial?
Não era possível que seu futuro fosse apenas casar-se com um cavalheiro,
dirigir uma casa e criar filhos. E sem isso, o porvir parecia-lhe ainda mais solitário.
Recusando-se a acompanhar os pais em uma viagem à Itália, dera o primeiro
passo no caminho da abençoada autonomia. Dali a um mês, quando atingisse a
maioridade, Sthephanie se tomaria financeiramente independente, livre, portanto,
para viver onde e com quem quisesse.
Mesmo sem fazer planos, não pretendia ficar em Kent.
Embora a residência fosse enorme, fora de seus antepassados e então abrigava
seus familiares, não gostava de vê-la cheia de gente. Em particular quando seu irmão
e a cunhada permaneciam ali muito tempo ou quando as irmãs apareciam com os
maridos e as proles.
Quando o cocheiro diminuiu a marcha da parelha, Sthephanie virou-se para a
silenciosa acompanhante.
— Fevereiro não é a melhor época para viajar para longe, Latimer. Alegro-me
de haver seguido seu conselho e aceitado o convite de minha prima para ficar em
Knightley Hall.
— Milady, a senhora não demonstrou muita vontade de permanecer em Kent,
nem de ficar com suas irmãs — a criada respondeu, com olhares furtivos. — Milady
sempre falou com afeto de sir Richard e lady Knightley. Pareceu-me a solução óbvia
a seu problema de onde ficar, enquanto seus pais excursionam pelo continente.
— Ficaremos em Hampshire apenas algumas semanas. Depois iremos para a
casa de minha tia, lady Templehurst, em Bath.
Não houve resposta.
— Espero que não ache muito cansativo viajar, Latimer.
— Em absoluto, milady.
Fora um diálogo mais longo do que o habitual. Em geral, nunca trocavam mais
de uma dúzia de palavras. Que saudade da boa e velha Fenwick! Pelo menos, podia-
se manter com ela uma conversa decente. Não, Latimer não era o protótipo da dama
de companhia!
Quando Fenwick se aposentara, por motivos de saúde, Sthephanie ficara feliz
4
em poder acompanhá-la uma das jovens servas da mansão de seu pai. Mas a mãe não
concordara. Padrões precisavam ser mantidos e, sem consultar a filha, a condessa se
encarregara de procurar uma substituta para Fenwick.
Sthephanie, com seus olhos amendoados, espiou o perfil atraente de Latimer.
Mesmo tendo se mostrado uma empregada eficiente naqueles dois meses de trabalho,
Sthephanie não conseguia manter com a moça a mesma harmonia sempre presente
com Fenwick.
Não sabia o que tanto a incomodava em Latimer, apesar de a serviçal ter sido
recomendada por lady Fairfax, para quem trabalhara por mais de dez anos. Mas
reconhecia ter um certo… ressentimento contra a atraente jovem.
— Até que enfim! — Sthephanie exclamou, quando o veículo alugado parou
em frente a uma imponente mansão de pedra e ela desceu da carruagem.
Olhando de viés para a construção em estilo georgiano, foi até a porta de
entrada, que se abriu, antes que a alcançasse, por um lacaio vestido com uma libre
preta e prateada.
Assim que Sthephanie estendeu a capa debruada com pele ao criado, lady
Knightley saiu de uma das salas, atravessou rápido o hall e abraçou-a com alegria.
As duas mulheres eram muito parecidas, o que atestava seu parentesco.
Mesmos olhos, cabelos e mesma compleição física. Quando meninas, ambas se
encontravam em reuniões da família Beresford. Mas só nos últimos três anos se
visitavam com mais freqüência; e tornaram-se muito amigas, embora possuíssem
muito pouco em comum.
A vida de lady Elizabeth Knightley girava em torno do marido, das duas
crianças pequenas e da sobrinha. Sthephanie passava a maior parte do tempo
envolvida em compromissos sociais com a aristocracia britânica.
— O verde fica-lhe muito bem, minha querida — lady Knightley elogiou,
admirando a prima, segurando-a com os braços estendidos. — Como sempre
acontece com os trajes que escolhe.
Elizabeth, muito esbelta, nem parecia que dera à luz fazia apenas três meses
um menino, que herdaria a magnífica residência campestre e a maior parte da fortuna
do pai.
— Por sua alegria, Elizabeth, presumo que Louisa e o bebê Stephen estão bem,
assim como sua adorável sobrinha, Juliet.
Sthephanie ainda se lembrava daquela manhã terrível, havia quase quatro anos,
em que lera no matutino a notícia da morte trágica, em acidente de carruagem, de sir
Charles Knightley, sua esposa e seu filho mais velho. Juliet, que na época era um
bebê e estava em casa de parentes, passou a ser criada por seu tio. Richard jamais
cobiçara o título, embora se mostrasse capaz de seguir os passos do irmão. Ele e
esposa foram verdadeiros pais para a menina.
— Ah, sim! Eles estão fortes e saudáveis, graças a Deus! Nem vou elogiá-los
demais para não parecer uma mãe coruja. Minha prima terá ocasião de ver por si
mesma.
— Ela ficará doente e não verá ninguém, se continuar parada neste hall cheio
de correntes de ar. — Era a voz quente e profunda de primo Richard, um homem
muito bem-apessoado, que chegava ao saguão.
5
Sir Richard Knightley era um dos poucos cavalheiros com quem Sthephanie
sentia-se à vontade. Sem hesitar, aproximou-se dele sorrindo e foi envolvida por dois
braços fortes e musculosos.
Sthephanie gostara dele desde a primeira vez em que o vira, logo após o
casamento com Elizabeth. Nem dera importância aos boatos de que o matrimônio
apressado desti-nar-se-ia ao fracasso. Bastava fitar o casal e concluir que sir Richard
era apaixonado por sua jovem e bela esposa, e que ambos eram muito felizes.
Embora fosse um homem muito bonito e atraente, era sobretudo a inteligência
e a simpatia que o tornavam ainda mais cativante. Mas Sthephanie, por Richard ser
casado, colocava-o atrás de uma parede de vidro, de onde o poderoso charme
masculino não produzia o menor efeito afrodisíaco nela.
As três temporadas de eventos sociais em que Sthephanie fizera muito sucesso
e fora cortejada por dezenas de solteiros qualificados, e outros nem tanto, poderiam
ter-lhe virado a cabeça. A grande popularidade, entretanto, ao contrário do esperado,
fez com que se tornasse, talvez, um pouco mais fria e ciente de que jamais aceitaria
um estranho, apenas pelo aspecto manifesto.
O jeito reservado que Sthephanie adotava em presença de desconhecidos,
sobretudo do sexo oposto, granjearam-lhe uma fama injusta.
Uma parte da sociedade considerava-a arredia e arrogante, mas sir Richard
sabia que não era verdade. Da família de sua esposa, Sthephanie era o membro de
convívio mais fácil. Uma mulher calorosa e solícita, dona de maneiras
irrepreensíveis.
Richard conduziu-a até uma poltrona ao lado da lareira, na sala de estar
confortável e elegante.
— Ficamos admirados por não ter acompanhado seus pais na excursão e ter
deixado de usufruir das delícias de Veneza e Roma, milady. Mas estamos felizes por
ter aceitado nosso convite. — Richard serviu um vinho Madeira à visitante e se
sentou em um sofá, ao lado de Elizabeth.
— Acha mesmo que sou uma pessoa tão frívola? — Sthephanie deu uma risada
e reparou nos trajes refinados dos primos. — Como os dois estão elegantes! Não deve
ser em minha honra. Esperam outras visitas suponho.
— Sim, minha jovem observadora — ele retrucou, bem-humorado.
— Um pequeno jantar, apenas, Sthephanie. Nada de grandioso, lhe asseguro.
Marquei esse compromisso antes de saber que ficaria conosco, querida. Eu aguardava
ansiosa esse meu primeiro evento social depois do nascimento de Stephen. Mas não
se sinta constrangida. Se estiver indisposta ou cansada, não precisa participar.
Richard e eu entenderemos.
— Imagine! Acha mesmo que sou tão frágil a ponto de entregar-me após
algumas horas de viagem? Claro que os acompanharei!
— Que bom! — Elizabeth esboçou um largo sorriso. — Tive de convidar lorde
Pentecost e a mãe. Seria difícil excluí-los, sendo nossos vizinhos mais próximos.
Richard franziu a boca, em desagrado.
— Como deve saber, Sthephanie, lady Pentecost não é muito querida. O pobre
Perry parece estar arrasado após a morte do pai. Será que a incomodaria se eu
destinasse a ele um lugar a seu lado? Brincavam juntos, quando crianças.
6
Sthephanie fitou o copo e lembrou-se das travessuras de lorde Pentecost.
— Não vejo Perry desde que ele recebeu o título. Adorarei saber das
novidades.
Richard pareceu não apreciar a perspectiva de ter como convidados o novo
lorde Pentecost e a mãe.
— A viúva lady Pentecost é amiga de mamãe — Sthephanie comentou — e
Perry visitava-nos sempre, quando menino. Minha mãe chegou a considerar a sério a
possibilidade de um casamento entre nós.
Richard ergueu as sobrancelhas, como se achasse a idéia ridícula. Eles não
combinavam, em sua opinião.
— Mamãe nunca primou pela sensatez, Richard. — Sthephanie piscou. — Mas
jamais houve a mais remota chance de uma união entre as duas famílias. Embora eu
goste de Perry, nunca dei importância a isso. Aliás, meu pai jamais concordaria com
um enlace desses.
Sthephanie suspirou, com tristeza nos belos olhos verdes.
— Papai considera Perry um tanto lerdo para compreender as coisa. Porém,
acreditem, isso é uma injustiça. Ele é muito tímido, um pouco inseguro e faria
qualquer coisa para evitar uma disputa. No entanto, decerto não é tolo, e é outra
pessoa quando está longe daquela mãe odiosa. Podem ficar certos. Perry é um dos
poucos que eu gostaria de ter a meu lado esta noite.
De acordo com os costumes do campo, ali em Hampshire, o jantar seria
servido cedo. Assim, Sthephanie subiu em seguida e foi até o lindo quarto de
hóspedes a ela destinado.
Em pouco tempo, vestiu um traje de noite elegante de veludo verde-escuro e
voltou a reunir-se a seus anfitriões.
Sthephanie, desde menina, fora instruída quanto à arte das conversas polidas de
salão, e o casal não se preocupou em deixá-la fazer o que quisesse, enquanto
recebiam os convidados.
Logo o salão encheu-se de vozes alegres e pouco sussurrantes. Elizabeth estava
quase abandonando seu posto ao lado da porta de entrada, quando um homem alto, de
andar descuidado e cabelos castanho claro entrou, impediu-a de sair e deu-lhe um
sonoro beijo no rosto.
Sem se importar com a saudação nada convencional, Elizabeth fitou o
convidado retardatário com afeição.
— Vejam só! Sinto-me honrada por sua respeitável presença em nossa pequena
reunião informal, dr. Carrington! — caçoou.
—A senhora sabe muito bem que jamais recusaria um jantar em sua casa, sem
uma boa razão. — Ele virou-se e perscrutou o ambiente com seus olhos cinzentos,
claros e vivazes.
Elizabeth conhecia o dr. Thomas Carrington havia muitos anos e considerava-o
um irmão muito querido, embora lhe reconhecesse os defeitos. Thomas tinha
maneiras bruscas, às vezes até rudes, e uma linguagem mordaz que não procurava
atenuar nem na presença das mulheres. Na verdade, elas é que o irritavam, quando se
preocupavam com frivolidades.
Suas maneiras abruptas não o faziam granjear a afeição do sexo oposto. Mas as
7
senhoras ficavam muito satisfeitas quando usufruíam de seus serviços profissionais,
dignos do médico renomado que ele era.
Thomas vivia fazia muito na região e conhecia a todos. Franziu a testa
inteligente ao ver uma estranha no meio deles.
— Quem é aquela que está falando com os Pentecost? Alguma parente? —
perguntou, notando a semelhança nas fisionomias.
— Sim, é lady Sthephanie Beresford, minha prima. Lembra-se de eu ter-lhe
dito que ela viria hospedar-se aqui?
— Não… Outra aristocrata? Os franceses têm razão em querer livrar-se desse
flagelo. Embora devêssemos ser honestos: apesar de tudo, a senhora e sir Richard são
muito aceitáveis.
Elizabeth fitou-o, exasperada, mas com carinho. Já conhecia muito bem suas
opiniões depreciativas sobre os nobres, e não se ofendia. Na verdade, muitas vezes
concordava com Thomas.
Mas o que pensaria sua prima tão bem-educada?
Não havia como negar que lady Sthephanie Beresford era a síntese de uma
dama de alta classe, acostumada a todas as atenções e cortesias. Thomas, entretanto,
não refletia exatamente a imagem de cavalheiro galante, apesar de sua convivência
com pessoas de fino trato.
Elizabeth não chegou a apresentá-los, pois o mordomo entrou para anunciar o
jantar, que estava servido. De braços dados, Thomas escoltou-a até a sala de
refeições.
Não muito afeito a cerimônias, Thomas não cumpriu as regras da etiqueta em
relação à necessidade de ser apresentado primeiro. Acenou com um gesto de cabeça
para Sthephanie, que vinha de braço com lorde Peregrine Pentecost. Em resposta,
recebeu um olhar frio coroado por um cenho franzido, enquanto ela era levada até seu
lugar à mesa.
— Que dama arrogante! — Thomas murmurou, sentando-se à direita da
anfitriã. — Lizzie, minha querida, a semelhança entre ambas acaba na aparência
física. Talvez essa moça devesse baixar um pouco a crista e aprender alguns
costumes básicos.
— Não sei se o senhor é a pessoa indicada para criticar alguém, dr. Carrington
— Elizabeth contestou, em defesa de Sthephanie.
— E quando foi que minha prezada amiga ouviu-me ser rude com alguém sem
motivo?
— Muitas vezes! Minha prima é educada ao extremo, ainda mais no trato com
pessoas de classe inferior. Nunca a vi fazer pouco de quem quer que seja, nem
mesmo dos servos.
— Sempre há exceções. — Thomas inclinou-se para a frente e fitou, sorrindo,
o rosto requintado da parente de sua amiga.
Sthephanie, que fitava o arranjo floral em cima da mesa, tornou a franzir as
sobrancelhas.
Embora Thomas não soubesse, a expressão sisuda de Sthephanie nada tinha a
ver com ele. Ela nem mesmo chegara a perceber seu cumprimento. Estava mais
preocupada com as drásticas mudanças ocorridas com seu amigo de infância.
8
Elizabeth não exagerara ao dizer que Perry mudara muito nos últimos dozes
meses, desde que tomara posse do título herdado de seu falecido pai, aos vinte e três
anos. Durante a conversa breve que tiveram, Sthephanie pôde comprovar que Perry
estava mais retraído do que nunca, quase fechado em um mundo só dele.
— Perry, o que há de errado? — ela indagou, com ternura. Desanimou, porém,
ao ver-lhe o sobressalto, a ponto de quase deixar cair o garfo. — O que o está
perturbando?
— Nada, estou bem. — O sorriso artificial não alcançou os olhos azuis e
bondosos.
— E deliciado por encontrá-la de novo. Não sabia que pretendia visitar
Hampshire.
— Permanecerei aqui apenas por algumas semanas. Eu poderia ter ficado com
uma de minhas irmãs ou com meu irmão e minha cunhada, que voltaram a ocupar a
residência de meus pais. Mas a atitude superprotetora de minha família às vezes é
irritante.
— Ah, é mesmo… — Peregrine riu, mais aliviado. — Seus familiares sempre a
trataram como uma boneca de porcelana, desde menina. Milady era uma pequena
intrépida, sempre pronta a fazer travessuras. Acho natural que eles se preocupassem,
sendo você muito mais jovem do que eles. Eu gostaria de ter irmãos e irmãs.
— Perry, considera-me sua irmã?
— De certo modo, sim. Mas sobretudo como uma amiga querida e sincera. E
uma das poucas pessoas com quem me sinto à vontade, Sthephanie. Sempre franca e
honesta, incapaz de dizer uma palavra que machuque. Sem dúvida, Hetta também é
assim.
— Nós nos conhecemos há bastante tempo e não vejo razão para não sermos
sinceros um com o outro. Mas quem é Hetta?
Ao perceber-lhe a retração, Sthephanie entendeu que fora um tanto indiscreta e
mudou de assunto.
Elizabeth não demorou a perceber como o barão Pentecost se descontraía, à
medida que o falar com Sthephanie prosseguia.
Quando as mulheres voltaram ao salão de estar e deixaram os homens
saboreando o conhaque e o vinho do Porto, ela aproximou-se de Sthephanie.
Agradeceu-lhe por ter distraído o convidado, cuja introspecção às vezes se tornava
pesada.
— Como eu já lhe disse, Perry fica bem quando está fora da influência de sua
mãe. — Sthephanie olhou na direção de lady Pentecost.
Lady Sthephanie jamais gostara daquela mulher e nunca entendera como sua
mãe podia ser amiga de uma megera tão mexeriqueira e intrigante. Relanceou um
olhar na direção das senhoras, a maioria desconhecida para ela.
— Quem é Hetta? — Sthephanie quis saber, achando que fosse uma garota
tímida e bonita, esbelta, de olhos azuis, com cerca de dezessete anos e o rosto
emoldurado por cachos dourados.
— A srta. Henrietta Dilbey, sobrinha de um proprietário rural da região. Ela
não está presente. Veio morar com seu tio alguns meses depois da morte da mãe.
— E não foram convidados? Não são de boa cepa? Elizabeth deu uma
9
risadinha ante o comentário indelicado. Embora as maneiras de lady Sthephanie
fossem impecáveis em público, ela não media as palavras com quem tinha
intimidade.
— Nada disso! O tio é muito respeitado por aqui, e a sobrinha é encantadora.
Entretanto, o pobre homem está sofrendo de gota, e Hetta enviou-me um carta muito
bem escrita, declinando do convite. Minha querida, agora que sua curiosidade foi
satisfeita, que tal entreter as damas tocando piano, enquanto esperamos pelo chá?
Sthephanie concordou em demonstrar mais uma vez seu talento, não com
entusiasmo, mas com uma complacência de quem estava acostumada a tais
solicitações.
Era ainda pequena quando a condessa de Eastbury encorajou a filha caçula a
desenvolver o apurado dom musical que nela percebera. A partir daí, as reuniões
familiares eram sempre acompanhadas desses pequenos recitais.
Sthephanie também tocava em ocasiões mais formais, quando personagens
ilustres visitavam a mansão paterna. Era quase uma regra reproduzir uma seleção de
músicas country, quando os Beresford mais jovens queriam divertir-se com alguma
brincadeira de improviso.
Dessa forma, após o carrinho de chá ser retirado, ela nem se espantou com o
pedido unânime para tocar de novo. Sentou-a à frente do belo instrumento, distraiu as
senhoras com melodias populares e depois acompanhou Elizabeth em um dueto.
Com suas vozes afinadas, as primas cantavam uma balada romântica quando
sir Richard entrou no salão, acompanhado dos cavalheiros. O dr. Carrington, que
vinha logo atrás do anfitrião, ficou de imediato cativo da performance perfeita.
Thomas admitiu que não se tratava de um daqueles entretenimentos
corriqueiros e enfadonhos de após o jantar, com jovens senhoras que desafinavam ao
piano ou tocavam harpa. Isso não lhe proporcionava a diversão favorita. Em geral, ele
evitava tais reuniões como se fossem uma praga.
Naquele momento, porém, para sua surpresa, foi incapaz de se desviar daquele
encantador canto da confortável sala de visitas.
Sempre considerara Elizabeth um padrão de beleza e graça feminina. Mas foi a
moça talentosa que vibrava as teclas quem chamou sua atenção.
A primeira vista, a semelhança entre as duas era indiscutível. Contudo, havia
diferenças fundamentais. Os cabelos castanhos de lady Sthephanie eram mais
avermelhados. Os olhos amendoados eram de um verde mais intenso que os da prima.
Os lábios bem-feitos eram mais cheios, e o nariz, sem sombra de dúvida, mais
aristocrático. Ambas tinham faces delicadas, queixos arredondados e eram muito
semelhantes.
Ao final da canção, elas agradeceram os aplausos entusiasmados e recusaram-
se a fazer mais uma apresentação. Cederam o lugar para outras convidadas
demonstrarem seus dons musicais.
Elizabeth pretendia levar a prima até o criado que trazia taças de vinho em uma
bandeja de prata. Parou ao ver o médico e amigo vindo na direção delas.
Nos últimos três anos, Elizabeth se empenhara em apresentar jovens casadoiras
ao dr. Thomas, mas ele nunca demonstrara interesse por nenhuma. Ela até concluíra
que ele devia ser destinado a ficar solteiro. Até estranhou o fato de Thomas procurar
10
ser apresentado a uma jovem dama da nobreza com quem, ao que tudo indicava, nada
tinha em comum.
Depois de fazer as apresentações, Elizabeth afastou-se para falar com as outras
convidadas e rezou para que Thomas, uma vez na vida, se comportasse como um
cavalheiro. Sem muitas esperanças.
Sthephanie afastou a mão daqueles dedos fortes e gentis, sentindo-se
examinada sem o menor pudor.
— Dr. Carrington, o senhor é amigo de minha prima faz muito? — Ela
quebrou o silêncio desagradável que se seguiu à saída de Elizabeth.
— Sou, sim, milady. Moramos juntos em Bristol por alguns anos, antes de ela
casar-se com Richard.
Sthephanie piscou, imaginando se ele compreendia o significado daquela
afirmação. Seu autocontrole impediu-a de rir da conjectura, pois conhecia muito bem
a formação de Elizabeth e, na certa, nada havia acontecido entre os dois.
— Ah… sim. Lembro-me de que minha prima foi morar com a avó materna,
depois da morte do pai. O senhor também vivia lá?
— Mas não foi o que eu disse? — ele questionou, impaciente, o que irritou
Sthephanie, que não estava acostumada a ser tratada daquela maneira.
— Não, senhor. De fato, quase deu a entender que o senhor e minha prima…
— Interrompeu-se, embaraçada, mas divertida. — Ora, sim, claro que sim… —
terminou, confusa.
Thomas também não sabia o que pensar dela. Lady Sthephanie era adorável,
mas ele temeu ser apenas isso o que a recomendasse. Conhecia muitos casos, alguns
de conseqüências trágicas, de famílias fidalgas que mantinham uma moça segregada
do mundo real. Mas pareceu-lhe que lady Sthephanie não era uma dessas moscas-
mortas que infestavam os salões elegantes.
—Até quando pretende ficar aqui com os Knightley, milady?
— Até meados de março. Depois, quero ir para Bath. O senhor gosta de viajar,
dr. Carrington?
— Depende. Acho que o inverno, quando o tempo é tão imprevisível, não é a
melhor época de andar pelo país. Que bobagem a senhora perguntou-me!
Como ele ousava censurar-lhe os atos? Não se lembrava de ter sentido
semelhante antipatia por um desconhecido. Até ficou aliviada quando viu lady
Pentecost aproximando-se.
— Minha querida, vejo que já está familiarizada com nosso bondoso médico.
— A viúva fez uma insinuação, assim que a distância permitiu que sua voz fosse
escutada: — Ele fez um bom nome por aqui.
“Como uma pessoa grosseira”, Sthephanie disse para si mesma, mas os anos de
comportamento rigoroso fizeram-na responder com doçura:
— O que, sem dúvida, é bem merecido.
— Eu lhe asseguro, queridíssima Sthephanie — lady Pentecost comentou, com
um sorriso falso nos lábios finos — que só ouvirá excelentes comentários a respeito
do dr. Carrington.
— A senhora exagera, milady — Thomas contestou, aborrecido com o rumo da
conversa.
11
— Se não fosse pelo fato de o dr. Clarence Fieldhouse, outro valoroso
profissional da região, ser o médico da família há anos, eu não hesitaria em solicitar
os serviços do dr. Carrington. Contudo, Sthephanie, ao contrário de muitos que irá
encontrar esta noite, prefiro permanecer leal àquele que serviu bem a minha família.
— Aplaudo sua sensibilidade, milady. — Thomas ergueu uma sobrancelha. —
A lealdade é sempre recomendável, mas só até o ponto de não se tornar idolatria.
Com um breve aceno de cabeça, ele deu as costas para as duas. Deixou a viúva
indignada e a filha mais nova do conde de Eastbury sem saber o que dizer dele.
Sthephanie observou o andar elegante do médico, que se afastava a passos
largos, incapaz de conter a admiração pela zombaria com que enfrentara a terrível
viúva Pentecost. Foi forçada a admitir que ele crescera em seu conceito, embora fosse
só por esse fato.
Já de pé, Sthephanie? — Bem vestida como sempre, a prima saudou-a com
alegria na manhã seguinte, quando entraram na sala para o desjejum. — Espero que
tenha dormido bem. Richard e eu ficamos contentes por ter estado conosco a noite
inteira.
— Minha querida Elizabeth, um dia de viagem e uma recepção até meia-noite
não podem cansar-me. Esqueceu-se de que sou uma contumaz moça da alta
sociedade, acostumada a dormir às quatro da manhã?
— Sei que seu estilo de vida é muito diferente de minha paz e quietude aqui no
campo. Não imagino de onde tira essa energia toda, meu bem. Já não me acostumaria
mais na cidade.
Elizabeth serviu a prima de uma xícara de café, antes de continuar:
— Sei que deve ter achado estranha a falta de compostura de alguns de nossos
convidados. Por exemplo, o dr. Carrington. Ele é muito nosso amigo, mas tem às
vezes maneiras um pouco… diferentes do usual.
“Rudes, seria melhor dizer”, Sthephanie refletiu, tomando um gole da infusão.
Mas não fez outros comentários, visto que o doutor era querido de seus primos.
A manhã estava seca e convidativa. Assim, após a refeição matinal, Sthephanie
acompanhou a prima em uma visita às crianças, e depois voltou ao quarto para trocar-
se. Pretendia cavalgar, uma de suas formas preferidas de exercitar-se.
Como não tinha intenção de sair dos limites da propriedade, dispensou o
cavalariço e atravessou o parque em direção ao bosque. Soprava um vento frio do
leste, e o céu sem nuvens circundava o sol fraco de fevereiro, que fazia o possível
para iluminar a paisagem.
Nessa época, os campos não demonstravam sua pujança e verdor. As árvores
ainda estavam sem folhas e nem mesmo as sempre-verdes davam ânimo à área.
Sthephanie encorajou a égua de Elizabeth a atravessar um córrego raso, cheio
de galhos e folhas. Alcançou uma trilha que, supôs, a levaria a uma outra parte
daquelas terras. Nisso, ouviu risadas femininas seguidas e uma voz grave e
ressonante, masculina.
Devia ser um casal das vizinhanças aproveitando para usar um atalho nas terras
de sir Richard, que, sendo bondoso, decerto não se incomodaria. Muitos aldeões que
moravam nos vilarejos nos arredores da propriedade de seu pai faziam o mesmo. De
qualquer forma, não os denunciaria, e tratou de afastar-se dali.
12
Mas, antes de que o fizesse, uma entonação familiar chamou-lhe a atenção:
— Ah, Hetta! Que engraçado!
No mesmo instante, surgiu lorde Pentecost acompanhado por uma jovem, cuja
esbeltez estava oculta por um manto cinza. Ambos saíram detrás de um denso
pinheiral. Entre-tidos na conversa e conduzindo as montarias, não perceberam de
imediato a presença de Sthephanie. Pelas risadas espontâneas, ela deduziu que ambos
estavam muito à vontade na companhia um do outro.
Sabendo que não passaria despercebida por muito tempo, Sthephanie fez a
égua marchar devagar em direção ao casal e acabou por atrair a atenção do lorde.
— Sthephanie! Que surpresa agradável!
Apesar da saudação alegre de Perry, Sthephanie desconfiou que ele teria ficado
mais feliz se não houvessem sido descobertos. Mas não podia ir embora dali sem
cumprimentá-los. Desse modo, tirou o pé do estribo e deslizou até o chão. Caminhou
até eles e notou que Perry examinava o bosque atrás dela, como se esperasse ver mais
alguém.
— Sozinha, Sthephanie?
Ante a anuência da amiga, o lorde tranqüilizou-se e apresentou-a à
acompanhante, Henrietta Dilbey.
— Perry falou muito em milady e disse-me que viria passar uma temporada
com os Knightley. — Um par de olhos calorosos e castanhos acompanhou a
mãozinha estendida e a voz melodiosa. — Estava ansiosa por conhecê-la, lady
Beresford. Ele só não me falou que era tão bonita.
Sthephanie poderia ter retribuído o cumprimento. A srta. Dilbey era miúda e
parecia uma fada. As feições suaves eram emolduradas por uma massa de cachos
castanhos. A primeira vista, parecia uma criança, mas a expressão correta e digna
faziam prever que tivesse mais idade.
— Hetta veio morar aqui por estes lados há alguns meses — Perry explicou.
Sthephanie concluiu que o casal combinava muito bem. Perry, loiro e de
feições aristocráticas, era magro e de altura média, e a cabeça da diminuta srta.
Dilbey chegava-lhe aos ombros.
— Minha prima contou-me ontem à noite — Sthephanie respondeu e virou-se
para a moça. — Mora com seu tio, srta. Dilbey?
— Sim. Após a morte de minha mãe, titio, por sua grande bondade, convidou-
me para viver com ele. Argumentou que eu já sofrerá muito com a insensatez de meu
pai e com a teimosia orgulhosa de mamãe. E nem queria que eu ficasse à mercê de
companhias pagas.
Puseram-se a caminhar, conduzindo as montarias.
— Papai era um homem adorável, milady, mas não entendia muito de
negócios. Mamãe era uma mulher orgulhosa e recusou ajuda, depois da morte de
papai. Ela vendeu nossa linda casa para pagar os débitos e foi forçada a alugar
acomodações. Não pudemos mais permitir-nos o luxo de ter criados, e conseguimos
sobreviver à custa da mais restrita economia.
— Acho que a senhorita é uma heroína — Perry comentou, com respeito —
por manter a jovialidade depois de tudo o que aconteceu.
— Bobagem, Perry! Tenho mais sorte do que muitas pessoas. Muitas senhoras
13
de classe são obrigadas a encontrar trabalho para viver, mas eu fui abençoada com
um tio bondoso. Ele me estraga com tantos mimos, e me envergonho de dizer que
adoro tudo isso.
Sthephanie admirou o discernimento da jovem e imaginou se ela mesma se
resignaria com tanto ânimo e tanta compreensão diante de uma situação semelhante.
Concluiu que não. Ela, lady Sthephanie Beresford, filha de um rico par do reino, que
possuía todo o conforto e luxo que o dinheiro podia comprar, muitas vezes ficava
insatisfeita com a sua existência.
Por quê, afinal, aquelas crises de melancolia? O que realmente esperava da
existência que ainda não alcançara?
Suspirou e voltou à realidade, pára constatar a descontração de seu amigo de
infância. Perry parecia outra pessoa, falante, seguro de si e feliz. Mas ela logo
entendeu que se tratava de mera aparência.
— Receio que terei de deixá-las — ele disse, assim que chegaram a uma
pequena estrada, ao sair da floresta. — Prometi levar mamãe para visitar um vizinho.
Não devo atrasar-me, senão terei de agüentar uma de suas reprimendas. Sthephanie…
por favor, não mencione o encontro de hoje. Mamãe poderia ficar sabendo, e me
submeteria a interrogatórios todas as vezes que eu desejasse sair. Não quero
desperdiçar os poucos prazeres que tenho.
Perry despediu-se, montou no cavalo e partiu em direção a seu lar.
— Veja só que animal deplorável o dele! E milorde, que é um exímio
cavaleiro, é obrigado a montá-lo. — Hetta esboçou um sorriso débil. — Se eu
conseguisse impor minha vontade, um dos primeiros objetivos seria encorajá-lo a
adquirir uma montaria mais adequada a suas habilidades.
— Eu não me admiro, srta. Dilbey. Deve ser a maneira que a mãe dele
encontrou para controlá-lo. Assim, Perry não poderá ir muito longe.
— Milady, que conhece da família há anos, achou a explicação exata. Moro na
região faz pouco, e só vi lady Pentecost algumas vezes. Mesmo assim, percebi que
ela é muitíssimo desagradável e dominadora.
— E sempre foi assim. Mas Perry não é mais uma criança. Já tem vinte e
quatro anos e é o senhor de sua casa.
— Será que é mesmo, milady?
Hetta sugeriu que cavalgassem um pouco, e Sthephanie aceitou a sugestão.
— Nunca encontrei o pai de Perry — Henrietta contou. — Ele morreu antes de
eu vir morar com meu tio. Mas, segundo ouvi dizer, era como o filho: tímido e
introspectivo. Preferia a solidão da biblioteca a falar com amigos e vizinhos, embora
visitasse titio com freqüência. Segundo tio Silas, lorde Pentecost era um exímio
jogador de xadrez. Perry também é. Milady, o que mais sabe sobre a família dele?
— Não muita coisa. O pai de Perry casou-se tarde, aos quarenta anos. Lady
Pentecost não era nenhuma jovem, mas trazia um dote substancial, o que, de certa
forma, viria compensar sua natureza dominadora.
Hetta achou graça da observação mordaz e depois ficou séria.
— Milady já ouviu menções sobre a insanidade entre os Pentecost? É verdade
que o irmão do falecido lorde Pentecost morreu louco?
— Sei que ele faleceu ainda moço, mas nunca soube de referências quanto a
14
seu estado mental. Quem lhe disse isso?
— Foi Perry, mas não sei quem lhe contou. E o medo de haver herdado a
doença o faz mergulhar em angústia. Hoje ele estava em um de seus raros momentos
de bom humor. Já o vi em tal estado de depressão que mal falava.
— Mas Perry não é louco — Sthephanie surpreendeu-se. — É apenas
envergonhado e inseguro.
— O que não é de estranhar, dadas as circunstâncias. Como Perry poderia ser
decidido e seguro, sendo dominado por uma mãe ditadora que deve ter ridicularizado
todos os seus atos e criticado todas as suas palavras? O pai fez pouca coisa para
melhorar a situação do filho. O que o teria levado a fazer um testamento tão ridículo?
— Para falar a verdade, não acredito que o barão tenha deserdado Perry. Por
outro lado, a propriedade é um legado inalienável.
— Ah, sim! E inegável que as terras e o título são de Perry. Mas ele não pode
tocar em um pêni da riqueza particular de seu pai antes dos trinta anos, ou se
porventura casar-se antes. Pelo que Perry me disse, não poderá escolher a esposa por
vontade própria. Deve casar-se com uma jovem bem-nascida e só com a aprovação
da mãe, para ter direito à herança.
Hetta, preocupada, fez uma pausa e suspirou.
— Se é verdade que o falecido lorde Pentecost gostava do filho, na certa não o
favoreceu, insistindo no consentimento da esposa na escolha de Perry.
— Tem razão, srta. Dilbey. E, pelo que vejo, o bem-estar de Perry a preocupa
muito. A senhorita gosta dele, não é mesmo?
— Gosto. Mas luto desesperadamente para não aprofundar minha afeição.
Sthephanie já percebera que Hetta não era pessoa de intimidar-se com uma
pergunta direta.
— Acredita que a escolha de Perry não encontre acolhida por parte da mãe?
Hetta riu.
— Apesar de lady Pentecost e eu termos nos encontrado poucas vezes,
somos… como dizer? Pessoas de opiniões diferentes. A família Dilbey é antiga e
respeitável. Porém, mesmo que eu fosse uma herdeira, ela não me veria com bons
olhos. Pelo simples fato de eu não ser uma mulher a quem poderia dominar.
Sthephanie ficou perplexa. O casamento entre ela e Perry chegara a ser muito
desejado, e, com certeza, mesmo sendo de temperamento maleável, não concordaria
com os ideais da sogra.
Lembrou-se de quando a mãe, dois anos antes, em uma noite calma, sugerira a
união das duas famílias. Diante da recusa incisiva de Sthephanie, nunca mais voltou-
se a tocar no assunto.
A condessa não protestara quanto aos sentimentos da filha. Mas como lady
Pentecost, que desejava tanto a união, havia aceitado com tanta facilidade a derrota?
Ou teria sido o pai de Perry o mais interessado naquela união?
— Acha mesmo que lady Pentecost deseja uma nora que possa dominar, como
faz com o filho?
— Às vezes penso desse modo, mas em outras… — Henrietta balançou a
cabeça, em dúvida. — Há uma família muito rica, os Boddington, que mora perto
daqui. A filha mais velha, Louise, é bonita e dócil. Uma combinação admirável para
15
ser esposa de Perry. Pois eu lhe digo, com toda a honestidade, que nunca ouvi
nenhuma sugestão a respeito por parte de lady Pentecost. De fato, testemunhei, em
uma ou duas ocasiões, a mãe dizendo palavras depreciativas sobre o filho, para quem
quisesse ouvir.
Ambas ficaram alguns segundos em silêncio.
— Para ser sincera, milady, não sei quais os propósitos daquela mulher. Não
me surpreenderia nada descobrir que ela não quer que o filho se case. Afinal, é lady
Pentecost quem manda em tudo. Enquanto Perry for solteiro, ela continuará
usufruindo da liberdade de fazer o que bem quiser.
Hetta deu uma súbita risada.
— Oh, Deus, estou ficando igual a Perry, com essas minhas suposições! Ele
tem certeza de que os servos da mansão o vigiam. Não sei se é verdade ou não.
Porém, lady Pentecost aposentou a maioria dos criados antigos, um pouco antes da
morte do marido, substituindo-os por pessoas de sua própria escolha.
— Ela bem que seria capaz disso.
— É o que receio. E, pelo que Perry contou-me, eles são muito leais a lady.
Deve ser horrível morar naquela casa, temendo ser espionado. Não me admira que
Perry tenha pedido para não dizer que o encontrou hoje, milady. Ele deve temer
perder os preciosos momentos de tranqüilidade.
— Mas, srta. Dilbey, Perry nunca será livre. Está atado à mãe pelo testamento
que o pai fez e por seus próprios receios… Embora os grilhões possam ser quebrados.
— Sthephanie hesitou por algum tempo. — Perry já discutiu a preocupação pela
saúde com alguém? Com seu médico, por exemplo?
— Não tenho certeza, mas talvez o tenha feito. Entretanto, o dr. Fieldhouse é
amigo particular de lady Pentecost. Se Perry consultou-o, é de prever-se que a viúva
tenha ficado sabendo. Gostaria que Perry falasse com o dr. Carrington, que é muito
respeitado por aqui.
— Foi o que me disseram — Sthephanie respondeu, com total falta de
interesse.
— Por acaso, o dr. Carrington estava entre os presentes ao jantar de lady
Knightley ontem à noite?
Sthephanie fez um ar de quem não gostara da pessoa e Henrietta achou graça.
— Ah, milady… Pelo jeito, o doutor não lhe causou muito boa impressão. Ele
é médico de meu tio, e já o encontrei várias vezes. E um tanto lacônico, mas gosto
dele. É um homem sincero, honesto e um ótimo profissional.
— Isso também me disseram. Bem, voltemos ao que interessa. Em geral, não
costumo interferir nos assuntos que não me dizem respeito, mas Perry é meu amigo e
não posso recusar-me a ajudá-lo. Estou mesmo preocupada com ele.
Henrietta animou-se, preparada para escutar a nova amiga.
— A primeira coisa a fazer é tentar descobrir a verdade sobre Cedric Pentecost.
Não estou convencida de que ele fosse louco, senão eu teria ouvido falar a respeito.
Não será tarefa fácil solucionar o enigma. Cedric morreu há muitos anos, mas deve
haver alguém aqui no distrito que se lembre dele.
— Era o que eu pensava fazer, milady. Apenas achei que seria estranho eu sair
por aí questionando sobre alguém que não está conosco há mais de vinte e cinco
16
anos. Além do que, Perry contou-me o caso em confiança. Não pretendo espalhar
boatos. O pobre já tem problemas suficientes.
— Claro. Mas pode estar certa de que eu serei a discrição em pessoa. Mas, se a
senhorita não tiver objeção, acho que seria interessante falar com os Knightley.
Minha prima Elizabeth não é nenhuma tola, e gosta de Perry.
Sthephanie não disse que sir Richard, embora não fosse da mesmíssima
opinião, não se recusaria a colaborar.
Aquela altura, elas já haviam percorrido uma boa distância. O bosque de
Richard fora deixado para trás, e as duas se viram em campo aberto. Henrietta deteve
o animal em uma encruzilhada e desculpou-se, sorrindo.
— Aqui devemos separar-nos. Espero não tê-la importunado muito. Milady
deve achar esquisito uma desconhecida falar assim tão sem reservas, mas eu não
sabia o que fazer, e achei ótimo que tivesse vindo para cá.
— Não se entusiasme demais, srta. Dilbey. Não posso garantir que conseguirei
ajudar. Mas farei uma visita à fazenda e verei se consigo conversar com Perry em
particular. Contudo, antes, será que poderia ajudar-me a encontrar o caminho de volta
a Knightley Hall? Não creio que seja necessário dizer, mas não tenho a menor idéia
de onde estou.
Hetta indicou-lhe a direção certa, elas se despediram e foram para lados
opostos.
Sthephanie mal percorrera duzentos metros, quando a égua começou a mancar.
Desmontou e examinou as ferraduras. Pareceram-lhe intactas. Entretanto, havia algo
errado.
A pé, passou a conduzir o animal para onde Hetta apontara como sendo a
direção do portão principal de Knightley Hall.
Sthephanie andou pela pastagem, pensado na situação de Perry. Não percebeu
que o solo estava cheio de tocas de coelhos, e o inevitável aconteceu. Ela tropeçou e
caiu na grama úmida.
Tentou levantar-se e maldisse sua inabilidade. O tornozelo direito doía muito e,
quando alcançou o outro lado do campo, cada passo tornara-se uma tortura.
Aproveitou o marco quilométrico para descansar, pensando em sua situação
difícil. A entrada principal de Knightley Hall não devia estar longe, mas não teve
certeza de que conseguiria chegar até lá. Teve até esperança de ser encontrada por sir
Richard, que deveria estar voltando. Seu primo saíra bem cedo pela manhã, rumo ao
mercado próximo.
Nisso, Sthephanie escutou um tropel.
O cavaleiro montado estava um pouco distante, e ela não distinguiu quem era.
Mas não se tratava de Richard.
Elizabeth dissera que ele saíra na carruagem leve de duas rodas, puxada por
dois animais. A abordagem de estranhos em lugares isolados por mulheres solteiras
não era aconselhável. Porém, em determinadas circunstâncias, as conveniências
teriam de ser esquecidas.
Quando o homem alto e forte aproximou-se, Sthephanie não teve dúvidas em
chamá-lo. Afinal, não se tratava de total desconhecido.
— Bom dia, dr. Carrington — saudou-o, assim que ele fez um cumprimento
17
com o chapéu. — Acho que precisarei de seu auxílio.
Thomas deteve o animal castrado, desmontou e fitou em silêncio a aparência
saudável de Sthephanie.
— Qual o problema, milady? — indagou com indiferença, depois de alguns
instantes.
Ela teve vontade de mandá-lo embora.
— Acho que torci o tornozelo direito. Está doendo bastante. — Irritada,
percebeu que ele não se abalava, mas assim mesmo contou o que acontecera.
Thomas ajoelhou-se na frente dela e, sem nenhuma simpatia, desamarrou o
cordão da bota.
— Milady e a montaria de Elizabeth são duas meninas desajeitadas.
Como não costumava ser tratada daquela maneira, Sthephanie pensou em
responder à altura. Mas desistiu ao ver que o médico já estava absorto na tarefa de
tirar a bota de couro.
Aliás, Thomas nem percebeu o olhar gélido de que era objeto. Mas ela teve de
admitir que ele executava a tarefa com extrema gentileza.
— E apenas uma distensão, mas milady precisará ficar em repouso por uns
dias.
Embora não fosse vingativo, Thomas teve a satisfação perversa de saber que
Sthephanie estaria confinada, mesmo que por pouco tempo. Seria bom que
aprendesse, pois, como membro de classe social privilegiada, estava acostumada a
fazer o que tivesse vontade e a qualquer hora. “Isso ensinará a essa dama jovem e
mimada a olhar onde pisa!”
Ela também não está muito machucada — Thomas afirmou, após ter erguido e
examinado a pata dianteira da égua. — Há um pedaço de pedra encravada no casco. É
uma pena, mas não tenho nada para extraí-la. Assim, não me resta alternativa a não
ser levar a senhora de volta à residência de Elizabeth.
“Alternativa?!” Sthephanie não teve certeza se escutara direito. Então ela não
passava de um transtorno?
— Não se preocupe comigo, dr. Carrington. Darei um jeito de voltar sozinha.
— Não duvido. O que demonstraria uma espantosa falta de bom senso, sem
mencionar a da boa educação, pois tive a bondade de oferecer-lhe meus préstimos,
não é verdade?
Thomas levantou-a como se ela fosse uma pluma e sentou-a na traseira do
cavalo robusto e de pernas curtas. Sthephanie admitiu, atônita, que não desgostara do
episódio.
— Pelo amor de Deus, relaxe, mulher! — Thomas admoestou-a, sem rodeios,
ao montar atrás dela. Passou um braço pela cintura estreita, para agarrar as rédeas.
Com a outra mão, apanhou as da égua. — Milady está segura. Não a deixarei cair.
Thomas Carrington podia ser um dos esteios da comunidade e um médico
conceituado. Mas Sthephanie esqueceu tudo isso, com a perna forte e musculosa dele
encostada em sua coxa, e o peito largo pressionando-lhe as costas estreitas.
Teve medo de respirar, para que ele não ouvisse o bater frenético de seu
coração. Era um homem perigoso. Atraente, másculo e dominador. Uma ameaça a ser
evitada!
18
Mancando, Sthephanie agradeceu em silêncio ao homem que a amparava, ao
caminhar em direção à porta.
— Sua senhora está em casa, Medway? — Thomas perguntou, quando
chegaram ao saguão da frente.
— Sim, sir. No quarto das crianças — o mordomo respondeu.
— Então será melhor conduzir lady Sthephanie a seus aposentos e avisar lady
Elizabeth que a prima sofreu um leve acidente. — Sem esperar resposta, Thomas
ergueu-a no colo e subiu a escada, seguindo o mordomo.
Mesmo sendo esbelta, Sthephanie entendeu que a tarefa não seria fácil para
uma pessoa que não fosse muito robusta. Thomas nem mesmo ofegava, quando a
deitou na cama confortável. Sentou-se a seu lado e mais uma vez tirou-lhe a botinha.
Mas Sthephanie encolheu a perna, quando ele levantou-lhe as saias e tentou tirar-lhe
a meia.
— Não seja ridícula, milady! Sou médico, e por isso estou acostumado a ver
pernas nuas todos os dias.
— Não duvido, dr. Carrington, mas acho que minha criada ou Elizabeth
deveriam estar presentes, enquanto o senhor faz o exame.
— Elas chegarão logo. — Thomas divertiu-se com a demonstração de
modéstia virginal. — Deixe-me assegurar-lhe que sua virtude será preservada. Não
tenho o hábito de desencaminhar donzelas inocentes, muito menos pela manhã ou
quando estou no exercício de minha profissão.
O olhar fulminante de Sthephanie deixou claro que não estava acostumada com
provocações.
— Graças a Deus que estava no caminho, Thomas! — Elizabeth entrou no
aposento, esbaforida. — A pobrezinha poderia ter ficado por lá durante horas! Aquela
é uma estrada um tanto deserta.
O remorso de Sthephanie por não haver ao menos agradecido desvaneceu-se
com a resposta do médico:
— Ah, sim, mas ela reconheceu? De jeito nenhum. Tive de manter-me em
silêncio até aqui. E até agora, sua prima comportou-se como uma gata furiosa. Essa
ingratidão é suficiente para destruir os sentimentos de qualquer bom samaritano.
Sorrindo ao ver a expressão de Sthephanie, Thomas levantou-se.
— Elizabeth, mantenha uma compressa fria no tornozelo dela. Não é grave,
mas milady precisará repousar por uns dois dias. O que não lhe fará mal nenhum.
Dará a ela a oportunidade de ler um livro de boas maneiras.
— Essa é boa! — Exasperada, Sthephanie não mais se conteve, assim que
Thomas saiu do quarto. — Ele teve a audácia de chamar-me de mal-educada! Esse
homem pode ser seu amigo, Elizabeth, mas permita-me informar-lhe que é a criatura
mais impertinente que já encontrei em minha vida!
A resposta da prima foi cair na gargalhada.

Thomas contemplou a mulher deitada a seu lado, na cama. Os cabelos


brilhantes, escuros e ondulados estavam em desordem e, apesar dos olhos cerrados,
ele percebeu que ela não dormia.
Os lençóis amarfanhados deixavam descobertas as formas curvilíneas, mas a
19
jovem não se envergonhava. E por que o faria? Naqueles dois anos de
relacionamento, Thomas a vira nua várias vezes. Era uma mulher atraente, leal e
apaixonada, e o convívio fora satisfatório.
Pobre Margaret… Ele suspirou. Era uma viúva moça e com um filho para
criar. Se não fosse a bondade de Dilbey, ela teria sido despejada da cabana, após a
morte do marido. Além de tudo, o bom Silas baixara o valor do aluguel.
Thomas conhecera Margaret muito doente, sob um ataque virulento de gripe.
Seu filho pequeno, Ben, andara seis quilômetros até Melcham para procurar ajuda
médica, um luxo ao qual não podiam permitir-se. Com onze anos, Ben prestara
serviços na casa alugada de Thomas, para pagar a dívida. Thomas continuou a
empregar o garoto, em pequenos serviços.
Margaret em breve se casaria com o ferreiro, um viúvo com duas filhas, e o
romance teria um fim. Ben aprenderia um bom ofício, e sua mãe não teria mais de
costurar sob a luz de velas, para ambos terem o que comer.
Margaret Ryan não era uma prostituta, Thomas repreendeu-se, com remorso,
embora a tratasse como tal. Visitava-a de acordo com a própria vontade e pagava por
seus prazeres.
Gostava dela, mas a ligação deles fora um pouco mais que uma transação
comercial. Talvez fosse egoísmo tê-la usado de tal maneira, mas o dinheiro extra
sempre era bem-vindo para ela.
Saiu do leito, procurou as roupas e, sem se dar conta, pôs a mão no bolso. Mas
lembrou-se das palavras dela:
— Esta vez será apenas para o amor.
O interlúdio apaixonado que se seguira teve um sabor de despedida trágica
para Margaret. Thomas não iria ofendê-la. Sem deixar as moedas na penteadeira,
saiu, sem ao menos desejar-lhe boa sorte. Ela iria preferir assim.
Fechou o manto para proteger-se do frio, apanhou o cavalo no pequeno
estábulo e fitou o chalé pela última vez, antes de ir embora.
Thomas não podia dar a segurança do casamento de que Margaret necessitava.
Ela o satisfazia fisicamente, mas era só isso. Nenhuma mulher, nem mesmo
Elizabeth, despertara-lhe aquela ternura indescritível que diziam acompanhar o amor.
Parou em frente a Knightley Hall e pensou em ver como estava passando a
prima de Elizabeth. Divertiu-se ao recordar como perturbara a jovem fidalga e o olhar
dardejante com que fora brindado antes de sair de seus aposentos.
Sob a redoma da reserva fria, lady Sthephanie escondia uma grande porção de
fogo, que era muito estimulante. Thomas teve o cuidado de não demonstrar, mas ela o
atraía muito.
Entretanto, lady Sthephanie Beresford estava tão acima dele como ele de
Margaret.
Deus, como odiava a diferença de classes que impunha barreiras entre as
pessoas! Para lady Sthephanie Beresford, que pertencia à nata da aristocracia,
Thomas não passava de um simples médico do interior, com quem se poderia apenas
trocar alguns gracejos educados. O melhor seria nem pensar mais na adorável dama.
Seria perigoso para sua paz de espírito.
Esporeou o cavalo para a frente e foi para casa.
20
No dia seguinte, Sthephanie refletiu que era um alívio o dr. Carrington não ter
vindo visitá-la. O tornozelo ainda doía. A prima insistiu em chamar o médico, mas
Sthephanie recusou a oferta.
NO segundo dia de repouso, sentiu-se aborrecida pela falta de interesse por
parte dele. Creditou sua irritação ao fato de estar confinada no dormitório e no leito.
Durante os dois dias de inatividade, pensara na conversa com a srta. Dilbey.
Não duvidava da sinceridade de Henrietta, mas, antes de tomar uma atitude, teria de
falar com Perry.
No terceiro dia, a dor cedeu, e Sthephanie aventurou-se a sair do quarto.
Resolveu guardar segredo de seus propósitos.
Desse modo, deixou a casa sem informar aos anfitriões o que pretendia fazer.
Mesmo assim, e sem culpá-la pelo que acontecera à égua, Richard emprestara-lhe um
dos capões premiados. O primo insistira, porém, para que Sthephanie fosse
acompanhada por um jovem cavalariço que conhecia bem a região.
Sthephanie visitara uma só vez, oito anos atrás e com a mãe, a herdade
Pentecost, e não se recordava de muitas coisas. A residência elegante situava-se em
meio a acres de pastagens abertas. Qualquer mulher ficaria contente por ser a dona de
tão bela casa. Não era à toa que lady Pentecost lançava mão de estratagemas os mais
diversos para não abdicar daquela posição.
Sthephanie foi recebida por um mordomo de olhar ladino e uniforme preto.
Talvez um dos tais novos criados da mãe de Perry.
— Seu patrão está em casa?
— Qual deles, moça? — foi a resposta mal-humorada.
— Quando o senhor dirigir-se a mim, será melhor fazê-lo com mais civilidade.
Por favor, diga a lorde Pentecost que lady Sthephanie Beresford veio vê-lo!
— O patrão mais novo não está — respondeu, obsequioso. — Mas a senhora
está recebendo na sala de visitas.
Sthephanie nem deu tempo para o mordomo anunciá-la. De queixo erguido,
entrou no salão. Um cavalheiro estava sentado, muito à vontade, em uma poltrona ao
lado da lareira.
— Minha querida! Que prazer inesperado!
— Inesperado? Milady devia saber que minha mãe não ficaria satisfeita se eu
não visitasse uma de suas amigas mais antigas, agora que estou hospedada perto
daqui.
Sir Willoughby Wentworth, tão corpulento quanto lady Pentecost, levantou-se
e estendeu a mão num cumprimento.
— Conhece meu irmão, é claro. Ele está passando uns tempos conosco.
— Sim, já o encontrei várias vezes, milady. — Sthephanie fez um aceno
polido.
— Temos outro hóspede — a dama informou-lhe, com um sorriso satisfeito. —
O honorável Simon Fairfax apareceu ontem para as condolências. Ele pretendia ficar
em Bristol com amigos, mas convenci-o a vir para cá por uns dias. Simon prometeu
voltar para meu baile da primavera. Eu lhe garanti que poderíamos contar com sua
presença, Sthephanie querida. Ficarei desapontada se voltar para Kent antes. Minha
pequena reunião é considerada quase um evento por aqui.
21
— Não voltarei a Kent. Devo ir a Bath e fazer um pouco de companhia para
minha tia, lady Templehurst, mas terei o maior prazer em aceitar seu convite.
Não que lhe agradasse o fato, mas dar-lhe-ia oportunidade de ver o tipo de vida
que Perry levava.
— Sir Willoughby, o senhor também ficará para a festa de sua irmã?
— Ah, sim, claro, lady Beresford! Tenho de dar meu apoio. Posar de anfitrião,
sabe como é…
— Receio não haver entendido, sir. O papel não caberia a Perry, como senhor
da casa?
— E verdade — lady Pentecost interveio. — Mas, nos últimos tempos, meu
querido Perry tem se mantido em uma introspecção exagerada. Milady não observou
o fato no jantar dos Knightley? Eu não poderia exigir de meu filho o sacrifício de
atuar como anfitrião, ainda mais que seu tio, com tanta gentileza, ofereceu-se para a
tarefa.
Então Henrietta não se enganara. Com que astúcia a odiosa lady Pentecost
fingia consideração para com o filho. Seria mais um ótimo motivo para solapar a
posição de Perry como senhor da herdade. Henrietta estava certa. A megera queria
mostrar aos outros que Peregrine era incapaz.
Talvez ela conseguisse persuadir a imponente viúva de que não seria adequado
que o lugar do filho fosse ocupado por outrem.
— Milady, percebi alguma diferença em Perry, o que deve ser normal, nas
atuais circunstâncias. Algumas pessoas são mais sensíveis à morte do que outras. A
senhora sabe que o falecimento do pai foi um duro golpe para ele.
— Claro. E justo por ele não estar bem, não posso pedir-lhe para receber os
convidados em meu baile de primavera.
— A senhora demonstra grande consideração por seu filho, milady. —
Sthephanie fitou o retrato da antiga senhora Pentecost, pendurado na parede atrás da
viúva. — Infelizmente nem todos a entenderão.
— Não sei o que pretende dizer, minha querida — a lady irritou-se. — Por
favor, explique-se.
— Deve lembrar-se, milady, da insistência da viúva lady Merrivale em querer
que o filho, um jovem visconde, fosse o anfitrião do suntuoso baile da temporada
para mais de quinhentas pessoas. Apesar de pouco afeito a reuniões sociais, e sendo
gago, ele teve de cumprir com seu dever. A tarefa é muito mais simples em seu caso,
em se tratando de um evento campestre para amigos e vizinhos.
Ela esperou a viúva digerir as palavras, antes de continuar:
— Entretanto, conhecendo Perry, duvido que ele vá apreciar o encargo. Mas é
melhor que o faça a contragosto do que a senhora ser acusada de egoísta pelos
maldosos, por não querer apoiá-lo.
Pela expressão da viúva, Sthephanie entendeu que essa possibilidade não lhe
ocorrera. Nisso, Perry entrou na sala, acompanhado do atraente Simon Fairfax.
— Olá, Sthephanie! Que prazer em revê-la!
— Vim visitar sua mãe. Além disso, gostaria de falar-lhe, Perry.
Sem explicar o assunto, Sthephanie ergueu-se do sofá e saudou Simon, o belo
Adônis de olhos azuis e cabelos loiros, considerado o homem mais bonito da
22
sociedade. Apesar de sua polidez e da aparência impecável, Sthephanie nunca o
apreciara, mesmo sem atinar com as razões. Ocultou suas reservas e perguntou-lhe
sobre os pais.
— Em geral estão bem, milady. Apenas meu pai sofre com seus freqüentes
ataques de gota. Por isso decidi pagar sozinho visitas aos amigos que moram perto de
Bristol.
— Fico feliz que tenha vindo até aqui, Simon — a viúva afirmou, melíflua.
— Não poderia passar tão perto sem saber como estava passando, milady, e
aproveitar para reiterar minhas condolências pessoais por sua perda.
Só agora Simon se lembrara de trazer os cumprimentos?, Sthephanie
perguntou-se. Fazia um ano que o pai de Perry havia morrido. Além do mais, a
propriedade Fairfax ficava em Berkshire, e a principal estrada de posta de Londres ao
oeste ficava a mais de trinta quilômetros da herdade Pentecost. Se a intenção era ir
até Bristol, Simon não teria por que passar perto de Pentecost.
— Queria falar comigo, Sthephanie? — Perry interrompeu-lhe o raciocínio.
— Ah, sim! — Ela sorriu, com simpatia. — Hoje de manhã, sir Richard
mencionou a intenção de vender um de seus cavalos. Lembrei-me de você. Será que
isso lhe interessa?
— Não é o cinzento, é, Sthephanie? — A animação de Perry era visível.
— O próprio, Perry.
— Ele é de primeira qualidade!
— Que ótimo! — a mãe desaprovou, apesar das palavras de anuência. — Sir
Richard está sempre renovando o plantel. Mas não acho que necessite de mais uma
montaria, meu filho.
Sthephanie não sabia o que a aborrecia mais: se eram as ordens implícitas da
mãe, como se fossem lei, ou a atitude submissa de Perry, que nem ao menos tentava
discutir.
— Que pena! — Sthephanie insistiu. — E um animal perfeito para você,
mas… parece que sir Richard não quer vender-lhe.
A mentira atingiu o alvo.
— E por que não? — lady Pentecost indagou, de queixo erguido.
— Bem, milady, ele parece achar que Perry não saberia montar o capão.
— O quê?! — o tio indignou-se. — Pode dizer a sir Richard que está muito
enganado! Meu sobrinho tem seus defeitos, mas é um perfeito cavaleiro.
Willoughby virou o corpanzil na direção da irmã.
— Isso é o que dá, Sophia, manter cavalos velhos no estábulo. O menino nem
ao menos tem uma montaria decente!
— Será que poderíamos dar apenas uma espiada no animal? — Fairfax quis
saber, no silêncio que se seguiu à explosão do baronete.
Lady Pentecost admitiu a derrota e, impertinente, anunciou que o filho poderia
fazer o que quisesse. Sthephanie teve a impressão de que Simon entendera muito bem
o jogo que ela engendrara.
— Combinado! — Sthephanie virou-se para o amigo. — Agora devo ir-me
embora, Perry. Direi a sir Richard que o espere pela manhã.
Sthephanie despediu-se, pediu a Perry para acompanhá-la ao estábulo e deixou
23
a atmosfera desagradável da sala.
— Você não falou toda a verdade, não é, Sthephanie?
— Como assim? — retorquiu, com inocência.
— Há meses, tive ocasião de experimentar o capão cinzento na presença de sir
Richard, e ele me disse que monto muito bem.
— Tem razão, mas a armadilha funcionou, não é mesmo?
— E como! Por isso não a desmenti. Sabe, mamãe não se importa com o que
diz sobre mim, mas não gosta que os outros tenham má impressão sobre a família.
Sthephanie mudou de assunto e comentou sobre a visita de Fairfax.
— Não gosto muito dele, Sthephanie. Conheço-o há muitos anos e nunca
fomos amigos próximos. Sabe-se lá por que Simon apareceu aqui. Com certeza não
foi para apresentar condolências. Dissimulado, isso é o que ele é. Oxalá mamãe não o
tivesse convidado para ficar!
Perry não era o tolo que todos pensavam que fosse, Sthephanie concluiu.
— É uma pena que não exerça um pouco mais sua autoridade, Perry.
— Isso não iria adiantar em nada.
— Pelo amor de Deus! Essa bela propriedade é sua, e já é tempo de assumir a
responsabilidade. Pode muito bem administrar seus bens e tomar suas próprias
decisões, Perry, sabe disso.
— Sei. O problema é que posso tomar gosto, e quando chegar a hora de
abandonar…
Sthephanie tocou-lhe o braço. Viu a expressão desolada no semblante do
amigo e, sem opções, resolveu falar, mesmo que isso implicasse trair a confiança de
Hetta:
— Perry, acredita mesmo que possa ser portador de algum distúrbio mental?
Isso seria absurdo!
— Será, Sthephanie? Então por que você se recusou a casar-se comigo? Sei de
tudo, mamãe contou-me.
— Bem, não vou desmentir. Mas há de convir que não passamos de bons
irmãos. Crescemos juntos. Não poderia vê-lo como um marido em perspectiva. Mas
isso não quer dizer que não o ache saudável e normal. Não sei como sua mãe
conseguiu incutir-lhe idéia tão ridícula!
— Não foi ela. Foi meu pai.
— Seu… pai?!
— Sim. Papai falou comigo alguns dias antes de morrer. Disse que eu me
parecia muito com tio Cedric e que fora uma bênção ele ter morrido jovem, pois
senão teria acabado em um asilo.
— Isso não quer dizer que ele achava que o filho teria o mesmo destino.
Lembre-se de que o barão estava muito doente, e talvez até um pouco confuso. Você
discutiu o assunto com mais alguém?
— Falei com Hetta, é lógico. Foi ela quem lhe contou, não foi?
Sthephanie anuiu com um gesto de cabeça.
— Mamãe confirmou o fato, mas disse para eu não me preocupar, que ela
tomaria conta de mim. Inclusive falei com o dr. Fieldhouse, alguns meses atrás.
— E o que ele disse?
24
— Que eu havia sido um menino fraco e que sofrerá de convulsões e febres
altas.
— Bem, e daí? Isso não é incomum em crianças.
— Mas não se pode negar que não primo pela normalidade. Mamãe sempre me
disse isso. Não me sinto à vontade com estranhos. Não consigo falar e, quando o
faço, só digo coisas erradas.
— Acredite, Perry, você não é o único que age assim. Praticar um pouco é tudo
de que se necessita para superar o problema. Além do mais, seu comportamento com
amigos é bastante diverso. E apenas uma pessoa reservada, não um doente mental.
Enquanto caminhavam até o estábulo, Sthephanie fez todo o possível para
convencê-lo disso. Porém, a semente da dúvida fora plantada em seu próprio íntimo,
ao saber que fora lorde Pentecost quem dissera tudo aquilo. O falecido gostava muito
do filho e jamais faria nada para feri-lo.
Na verdade, não conhecia a história da família Pentecost, nem os meandros da
insanidade. Entretanto, para o bem de seu amigo, estava determinada a descobrir tudo
o que pudesse a respeito.
Thomas nem escutou as primeiras batidas na porta, tão entretido estava em
suas anotações.
Havia dias em que a aldrava não tinha sossego. Era uma fila interminável de
pacientes que vinham à procura de seus cuidados médicos, embora a maioria não
pudesse pagar.
Como ele tinha por princípio jamais pressionar o pagamento, o povo pobre de
Melcham e o das redondezas não se acanhava em solicitar-lhe os serviços
profissionais. A remuneração não vinha de imediato e muitas vezes nem em moeda
corrente. Thomas se acostumara a encontrar coelhos, aves de caça ou mesmo sacos
com verduras à porta.
Quem seria dessa vez?, perguntou-se e foi atender. Era lady Sthephanie,
elegante como sempre.
— Milady! Mas que prazer! — Ele afãstou-se, para ela entrar no consultório,
mancando um pouco. — Seu tornozelo ainda não sarou, não é?
— O quê? Oh, não de todo… Acho que o forcei demais hoje. Mas não é por
isso que estou aqui. — Sentou-se na cadeira em frente à escrivaninha. — Embora isso
me lembre que ainda não paguei seus honorários, dr. Carrington.
Thomas sentou-se atrás da mesa e fitou-a, sem entender por que não podia
pensar nela como paciente. Nunca lhe ocorrera isso, nem com as mais belas mulheres
que tratara ao longo de sua carreira. Por que acontecia tal fato com aquela jovem
adorável?
— Acredito que mencionei estar com o espírito do bom samaritano em
funcionamento naquela manhã.
— Muita generosidade sua, dr. Carrington. Contudo, posso pagar, e preferiria
fazê-lo. — Sthephanie imaginou por que ele a fitava com tanta intensidade, como se a
avaliasse.
E, pelo jeito, ele não gostara do último comentário.
— Vou precisar mais uma vez de seus serviços e não posso aceitá-los
gratuitamente, doutor. Mas vamos ao que interessa. O senhor tem familiaridade com
25
doenças mentais?
Thomas ficou atônito. Não esperava uma pergunta dessas e, pelo visto, não se
tratava de nenhuma brincadeira. Os lindos olhos de lady Sthephanie estavam sérios e
compenetrados.
— Quando trabalhei em Londres, visitei um ou dois asilos de doentes mentais.
No consultório, tive ocasião de defrontar-me com casos raros e exemplos de
deterioração natural do cérebro pela idade. Mas não sou especialista no assunto,
embora possa reconhecer, é claro, os sintomas mais óbvios.
A preocupação de Sthephanie fez com que ele tivesse vontade de confortá-la e
de ajudar no que pudesse.
— O que é que a preocupa, milady? Tem sofrido de fortes dores de cabeça? Ou
talvez tenha tido alguma perda de memória… Ouve vozes ou tem visões?
Sthephanie gostaria de bater nele. A impertinência das questões era clara.
Thomas acreditava que ela viera até ali para advogar em causa própria. Se não fosse
por Perry, não suportaria tal insulto.
— O senhor não me entendeu, dr. Carrington — assegurou, irritada, mas
contida. — Não sou eu quem está precisando de um diagnóstico. Para evitar enganos
futuros, eu é quem deveria fazer as perguntas.
Divertido pelo ressentimento visível, Thomas admirou-se pelo autocontrole de
Sthephanie. Quando mais a conhecia, mais interessante ela se tornava. Seria
agradável desvendar o que se escondia atrás do verniz de refinamento daquela dama
da nobreza que não ficava bordando ao pé da lareira ou lendo romances.
Recostou-se no espaldar, pronto para responder a qualquer indagação oriunda
daquela boca deliciosa. Mas, antes de Sthephanie começar a falar, ouviram um
estrondo de batidas na porta.
Assustada, Sthephanie viu-o sair da sala e imaginou que deveria tratar-se de
alguém bêbado ou desesperado. Depois de um diálogo nervoso e ininteligível, o dr.
Carrington voltou ao consultório, seguido de um homem enorme, quase um gigante,
que trazia um garoto em seus braços.
Sthephanie levantou-se da cadeira, sem saber o que fazer. Era evidente que o
médico a esquecera. Hesitou entre ficar ou sair sem ser notada.
Por sobre o ombro, Thomas pediu ao senhor corpulento uma bacia com água e
toalhas. O estranho, que tirara o chapéu enorme, apertava as grandes mãos, muito
nervoso.
Sthephanie percebeu que ele começava a empalidecer e deduziu que devia
tratar-se, apesar de sua força e tamanho, daquelas pessoas que não suportavam ver
sangue.
— Por que não se senta? — Ela indicou a cadeira livre, e ele agradeceu com o
olhar. — Pode ficar aí. Deixe que eu pego a bacia. O dr. Carrington, decerto,
precisará de repostas a algumas questões.
Sem conhecer a casa, Sthephanie levou alguns minutos para localizar a cozinha
espaçosa. Não demorou a encontrar o que precisava. Tirou o chapéu e a jaqueta e
enrolou para cima as mangas de sua blusa de seda. Vestiu pela cabeça um avental que
encontrou sobre uma das cadeiras e voltou rápido ao consultório.
— Onde foi que o encontrou, Sam? — o médico perguntou.
26
— Na propriedade dos Pentecost. Eu estava na carroça, depois de terminado o
trabalho que fizera para eles. Achei o jovem Ben na entrada da floresta. Pelo jeito,
esteve ali a noite inteira. Por sorte, conseguiu arrastar-se até lá, senão eu nunca o teria
visto.
— Menino tolo! — Thomas grunhiu, enquanto tirava a bota do rapaz, que se
contorcia de dor. — Teve uma sorte danada por ter sido Sam quem o achou, e não o
guarda-caça.
Sthephanie pôs a bacia e as toalhas na mesa ao lado de Thomas. Ao observar a
perna direita dilacerada do garoto, entendeu o que acontecera. Fora vítima de uma
armadilha para gente, um dispositivo desumano e terrível que seu pai jamais
permitira em suas terras.
— Dê-se por muito feliz, Ben, por a arapuca estar defeituosa. Por isso não se
fechou de todo. Senão, teria perdido o tornozelo. — Thomas limpou um pouco do
sangue. — Ainda assim, o estrago foi grande.
Sthephanie teve pena de Ben. Não teria mais de treze anos, e decerto invadira
propriedade alheia durante a noite.
— Não será necessário avisar alguém do ocorrido?
Ao ouvir Sthephanie, Thomas a encarou, como se só naquele instante se
lembrasse da presença dela.
— É, suponho que sim. Sam, poderia falar com Margaret por mim? Tente não
alarmá-la. O tornozelo não está quebrado, mas Ben terá de ficar aqui por uns dias,
para observação.
— Pode deixar, doutor. — O homem ergueu o corpanzil da cadeira e foi até a
saída. — Esse danado precisava levar umas palmadas, pela preocupação que causa a
sua querida mãe!
— Sinto negar-lhe isso, meu amigo, mas esse prazer será meu! — Thomas
fitou o rapaz, como quem prometia um castigo para depois de ele sarar.
— Fo… foi a primeira vez que fiz isso, dr. Carrington — Ben respondeu,
nervoso, depois de Sam sair. — E foi só por brincadeira.
— Irei buscar mais água. — Sthephanie apanhou a bacia e apressou-se a sair,
antes de Thomas dar vazão a sua ira.
Ao voltar, o ar ainda estava carregado com a reprimenda.
— Precisa de mais alguma coisa, doutor?
— Naquela gaveta — Thomas apontou um gabinete alto. — Estão ali as
ataduras enroladas. No armário, encontrará láudano, e também preciso daquele frasco
que está na prateleira.
Depois de limpar a ferida e aplicar as bandagens, Thomas levou o menino para
fora da sala.
Sthephanie escutou os passos do médico no andar superior, enquanto ela
limpava o consultório e levava a bacia com as toalhas para a cozinha. Acabava de
baixar as mangas e vestir a jaqueta, quando Thomas entrou, com expressão tenebrosa.
— Milady pôde comprovar o que sua classe social tem prazer em causar aos
outros! O garoto teve uma sorte incrível de não perder parte da perna. Já fui forçado a
fazer amputações mais de uma vez!
Ele fitou-a com desprezo.
27
— Mais uma jovem vida poderia ter sido arruinada, e para quê? Para salvar
algum coelho ou um faisão. Deve ficar orgulhosa de seus confrades gananciosos!
Sthephanie nunca enfrentara uma hostilidade tão direta. Afinal, ela não fizera
mal nenhum a ele. Entendia a raiva de Carrington pelo ferimento do garoto, mas por
que descontar nela? Pensou em explicar que não era bem assim, mas as palavras não
saíram.
Novas batidas à porta fizera Thomas sair do consultório, deixando-a imersa em
emoções conflitantes entre a zanga e a mágoa.
Sthephanie apanhou o chapéu com mãos trêmulas e foi até o corredor, a tempo
de vê-lo abraçando uma mulher muito atraente. Thomas a confortava com uma
ternura que Sthephanie até então não ouvira. Supôs que fosse a mãe do adolescente, e
o desespero dela pareceu-lhe natural. Mas intuiu uma intimidade entre os dois. Como
se fossem amantes.
O casal passou por ela e subiu a escada. Sthephanie não esperou o retorno de
Thomas e saiu, sem fazer ruído.
E um sentimento novo envolveu-a. Nunca sentira aquilo, e temia dar-lhe um
nome.
Ao se preparar para o jantar, Sthephanie refletia sobre os acontecimentos
daquela manhã, e esforçou-se para esquecer o abuso verbal de que fora vítima. Tinha
de concentrar-se em Perry, que, sem dúvida, precisava de auxílio.
— Assim está ótimo, Latimer — falou com a criada, que acabava de arrumar-
lhe os cabelos. — Obrigada.
Fitou a imagem no espelho, levantou-se e apanhou o xale.
— Ah! Esqueci-me de contar que tive o prazer de conhecer o filho de seus
últimos empregadores. Ele ficará com os Pentecost por uns dias e deverá inspecionar
amanhã cedo alguns cavalos de sir Richard, com lorde Pentecost.
— Amanhã cedo, a senhora disse? — a moça, em geral tão lacônica, indagou,
com um lampejo de euforia no olhar que Sthephanie não percebeu.
— Isso mesmo. Por quê? Esperava encontrá-lo?
— Claro que não, milady. Eu… não nego que o aprecio. Sir Simon sempre foi
muito bondoso comigo. Ele é… um cavalheiro amável.
— Devo confessar-lhe, Latimer, que essa faceta benevolente de seu caráter é
uma surpresa para mim. Pensei que ele, sempre preocupado consigo mesmo, não
tivesse tempo para os outros.
Sthephanie também não viu o olhar furtivo da moça.
— Pode arrumar tudo, Latimer. Não preciso de mais nada por hoje.
Sthephanie sentou-se para jantar apenas com os anfitriões. Com seus pais, que
eram de alta classe social, nunca fazia a refeição noturna com menos de uma dezena
de pessoas à mesa.
A comida estava deliciosa. Sthephanie ocupou-se em experimentar os vários
pratos e respondeu com monossílabos às questões. Richard atendeu ao apelo mudo da
esposa, dispensou o vinho do Porto e acompanhou as damas até o salão, onde
tomaram chá, e foi direto ao assunto:
— Está preocupada com alguma coisa, Sthephanie? Quase não conversou
durante o jantar.
28
— Estou, sim, Richard — Ela viu-o ocupar o assento em frente, comovida com
a atenção. — E você pode ajudar-me. O que sabe sobre a família de Perry? Conhecia
o pai dele?
— Bem… — Acomodou-se na poltrona. — Era um homem introspectivo.
Mostrava-se amável quando nossos caminhos se cruzavam, mas não era uma pessoa
sociável. Sempre me deu a impressão de que ficaria mais contente se fosse um
eremita.
— E sobre o irmão?
— Não sei muita coisa. Cedric morreu muito jovem e eu ainda era um menino.
Acho que caiu de um cavalo. Parece que nunca mais recuperou por completo a
consciência.
— Tem certeza de que Cedric morreu em conseqüência de um acidente? —
Sthephanie surpreendeu-se.
— Tenho, embora não me lembre dos detalhes. Por que esse interesse súbito,
Sthephanie?
— Porque Perry foi levado a crer que seu tio morreu louco. E ele tem um medo
mórbido de haver herdado a doença.
- — Bom Deus! E a primeira vez que ouço falar nisso!
— Que absurdo! — Elizabeth corroborou. — Perry é apenas muito tímido.
— E o que também acho, prima. Mas, de tanto lhe dizerem o contrário, ele
acabou por acreditar.
Sthephanie relatou a conversa que tivera com o amigo.
— O estranho é que foi o pai quem lhe contou — Sthephanie concluiu. — E
acho que a mãe está manipulando os temores do pobre Perry.
— E para quê?
— Não posso imaginar, primo. Talvez eu esteja fantasiando porque não gosto
dela, nem acredito em suas boas intenções. Contudo, veja. Eu mal chegara à herdade,
e lady Pentecost já dera um jeito de dizer que o comportamento de Perry era estranho.
— É… ela disse-me algo parecido, quando nos encontramos outro dia, em
Melcham. — Elizabeth meneou a cabeça.
— E deve ter dito isso para muitas outras pessoas. E aquele seu irmão, sir
Wentworth, está morando na fazenda. E tomando conta de tudo, como se fosse dele!
Mas o que mais me enfureceu, Richard, foi o fato de aquela mulher odiosa ter a
audácia de proibir Perry de comprar seu cavalo.
Sthephanie baixou as pálpebras, envergonhada.
— Tenho de desculpar-me com você, primo. Precisei dizer que milorde tinha
Perry em conta de um péssimo cavaleiro, para forçar lady Pentecost a reconsiderar a
proibição. Perry percebeu o estratagema na hora.
— Então ele não é o tolo que dizem ser. Portanto, deveria ter mais autoridade
em sua própria casa.
— E, mas Perry é de natureza condescendente, o que, entretanto, não o torna
incapaz de tomar decisões. Tenho certeza de que teria sucesso, se administrasse sua
propriedade. Receio que, enquanto tiver essa nuvem negra pairando sobre sua cabeça,
continuará sob o domínio da mãe.
— O que posso fazer, sem interferir nos problemas alheios, é falar com alguns
29
de nossos vizinhos mais antigos. Mas, se está mesmo disposta a ajudar seu amigo,
acho que deveria conversar com Thomas Carrington. Ele poderá responder-lhe
qualquer pergunta sobre doentes mentais.
— Pensei nisso e cheguei a procurá-lo de manhã, Richard. No entanto, minha
visita foi interrompida por um caso urgente.
Sthephanie decidiu não relatar o que ocorrera. Não pretendia deixar Ben em
apuros. Afinal, invasão de propriedade alheia era um crime sério.
— Não creio que esse médico amigo de vocês possa resolver alguma coisa,
mas, para o bem de Perry, voltarei a enfrentar o urso em sua toca.
Élizabeth e Richard esconderam os sorrisos.
Mesmo nada entusiasmada com a perspectiva, Sthephanie dirigiu-se na manhã
seguinte para Melcham, a pequena cidade dos mercados, acompanhada do mesmo
jovem e confiável cavalariço.
Fevereiro chegava ao fim, assim como os dias úmidos e tristes. A temperatura
se elevava e as prímulas desabrochavam em toda parte.
Nos arredores de Melcham, Sthephanie reparou em uma casa que lhe passara
despercebida na véspera. Era encantadora e de bom tamanho. Fora construída em
estilo georgiano, e Sthephanie refletiu que seria agradável morar ali.
Apesar de gostar muito da família, vinha pensando em viver sozinha. Tinha
poucas coisas em comum com a mãe, que às vezes se mostrava um tanto frívola. Na
verdade, não era feliz a não ser que estivesse com a mansão cheia de convidados.
Além disso, Sthephanie também não pretendia dividir o mesmo teto com as
irmãs. Ela era a mais nova, e sempre fora tratada como criança. A superproteção das
mais velhas parecia-lhe claustrofóbica, e seus conselhos bem intencionados, mas
nunca requeridos, eram irritantes.
Em menos de um mês, chegaria à maioridade e tomar-se-ia financeiramente
independente. A herança lhe daria a liberdade de escolher onde se instalar, e uma
casa daquelas lhe conviria. Era grande o suficiente para receber os convidados, mas
não a ponto de ter inúmeros quartos supérfluos.
As cortinas fechadas no andar térreo sugeriam que o imóvel estava vazio, no
momento. A quem pertenceria? A um advogado de sucesso ou a um próspero
mercador? Nisso, seu coração disparou, ao ver quem vinha em sua direção.
— Lady Sthephanie! — Thomas saudou-a com o chapéu preto de feltro e a
desenvoltura de um dândi. — Que surpresa agradável!
Confusa, Sthephanie fitou o sorriso na fisionomia atraente e de traços
marcados. Havia menos de vinte e quatro horas, Thomas fora tão rude com ela! Era
uma pessoa enigmática, sem sombra de dúvida.
— Eu ia visitá-lo, dr. Carrington.
— A vida é cheia de coincidências, não é mesmo? Eu tinha intenção de fazer-
lhe uma visita hoje. — Ele confundiu-a ainda mais. — Já que o tempo está favorável,
que tal fazermos um pequeno passeio?
Sthephanie não teve motivos para recusar, e permitiu que Thomas a ajudasse a
desmontar.
— Pode levar o cavalo de lady Sthephanie até minha residência — ordenou ao
cavalariço atento. — Minha governanta ficará feliz em oferecer-lhe uma caneca de
30
cerveja e uma fatia da deliciosa torta de maçã que fez, enquanto espera nossa volta.
Sthephanie observava-o com um misto de curiosidade e suspeita.
— Tratei-o bem, não é mesmo? Agora a senhora pode acusar-me à vontade
sobre meu péssimo comportamento de ontem, sem que ninguém escute.
Pelo visto, Thomas ficara com a consciência pesada e pensava em redimir-se.
Sthephanie não imaginava que um indivíduo que a provocara desde o primeiro
minuto fosse capaz de tal galanteria. A vida era cheia de fatos inesperados!
Vacilou e tentou dizer-lhe que tal coisa nem lhe passara pela cabeça, mas
Thomas não a deixou prosseguir.
— Não mereço sua cortesia, milady. Eu estava fora de mim! Minha atitude foi
imperdoável, e só posso implorar por seu perdão.
As desculpas generosas e sinceras tocaram o coração de Sthephanie.
— Não se preocupe, dr. Carrington. O senhor tinha motivos para estar
exasperado. Aquele menino foi ferido de uma maneira cruel e desnecessária. Quanto
a isso, estamos de pleno acordo. Eu, assim como meu pai, abominamos as armadilhas
para pessoas, e acreditamos que seu uso deve ser abolido. O que não implica aprovar
a invasão de terras alheias. A maioria que faz isso não se preocupa com as vítimas.
Em muitos casos, os animais sofrem uma morte lenta e dolorosa. E há aqueles que
dirão que o rapaz sofreu um castigo merecido.
— A senhora não está entre eles?
— Não. — Sthephanie não notou, mas Thomas passou seu braço no dele. —
Deus é testemunha de que as colheitas têm sido deficientes e ninguém pode culpar
um homem por desobedecer à lei, com o propósito de alimentar os filhos. Entretanto,
nem sempre o caso é esse. Há bandos organizados que roubam animais de caça,
visando apenas o lucro. Mesmo assim, considero as penalidades muito severas,
embora me sinta solidária com os proprietários que têm seus bens espoliados.
— Apesar de tudo, milady, começo a pensar que temos mais coisas em comum
do que eu podia imaginar.
Sthephanie espantou-se com aquilo, e mais ainda quando percebeu que
andavam de braços dados, como dois namorados, pelo caminho privativo da casa que
ela admirara um pouco antes.
Sthephanie enrubesceu e, com um pesar inexplicável por ter de fazê-lo, soltou-
se dele. Jamais estivera tão consciente da aura poderosa de um homem, que a atraía e
ao mesmo tempo intimidava-a.
— Por que estamos aqui, dr. Carrington? O senhor deveria ter me dito que ia
atender a um chamado, e eu o teria esperado em sua casa.
— Calma, milady. Não estou em nenhum atendimento profissional. Apenas
resolvi dar uma espiada no lugar, na ausência do dono, que é meu amigo.
— Tirou uma chave
do bolso e destrancou a porta da frente.
— A mãe dele esteve doente e morreu há alguns meses. A partir daí, John tem
viajado pela Europa. Em sua última carta, informou-me que pretende voltar à
Inglaterra na primavera, mas não tem intenção de continuar morando aqui, pois
adquiriu um imóvel em Londres, e achou que eu talvez quisesse comprar este. John
sabe que sempre gostei do lugar.
31
— É mesmo? — Sthephanie se arrepiou. — E pretende comprá-la, dr.
Carrington?
— Não nego que estou tentado, embora não saiba o que fazer com uma casa
deste tamanho, por mais encantadora que possa ser. Venha ver. — Escancarou a
porta, por onde entraram em um hall bastante grande. — Se me permite, enquanto
fazemos um tour, milady poderá dizer-me o que pretendia comigo hoje.
Sthephanie nem sonhou em recusar, embora não fosse adequado entrar em uma
residência desocupada com um quase estranho. Ainda mais que lhe ocorrera adquiri-
la.
— Eu gostaria de continuar a conversa de ontem, quando o senhor foi
interrompido por assuntos mais urgentes. — Esperou até Thomas afastar as cortinas.
— E, por falar nisso, como vai passando o pequeno infrator?
-— Com dores, se bem que é isso o que o danado merece! Acho que Ben ainda
não entendeu a sorte que teve. Se Sam não o houvesse encontrado, ele poderia ter
sido levado até o magistrado local, e agora estaria sendo brindado com uma sentença
de prisão. Tentei fazê-lo entender que não adiantaria testemunhar que ele não
pretendia invadir seara alheia. Só o fato de estar lá seria o suficiente para condená-lo.
Com a fúria sob controle, Thomas observou Sthephanie percorrer a sala com a
graça de uma dançarina nata. Admoestou-se de novo pela grosseria da véspera.
Sthephanie fizera o possível para ajudar, e ele não entendia por que a raiva o
acometera, quando a vira abotoar as mangas da blusa cara de seda, antes de vestir a
jaqueta do elegante traje de montaria. Talvez pelo fato de que só a vestimenta de
milady pudesse alimentar uma família pobre durante semanas.
Não havia como negar que lady Sthephanie representava tudo aquilo que
Thomas considerava mais injusto na sociedade. Ela pertencia a uma classe mais do
que abastada. Uma casta que governava o país e aprovava leis que protegiam os
próprios privilégios, em detrimento da maioria. Uma camada social egoísta, que
mantinha os pobres oprimidos, forçando-os a trabalhar duro para levar uma existência
miserável.
Tinha de reconhecer que existiam muitos deles que eram justos e bondosos,
que aceitariam uma mudança e uma melhor distribuição da riqueza. Como Richard,
para citar um, mas que, infelizmente, fazia parte de uma minoria. A maior parte
queria manter o padrão a todo custo.
Então, por que sentir-se atraído por aquela mulher? Seria apenas atração física
ou algo mais profundo?
Tentou afastar os pensamentos perturbadores e esforçou-se por voltar à
conversa do dia anterior.
— Se não me falha a memória, milady estava preocupada com a saúde mental
de um… parente, é isso?
— Não se trata de um parente, mas de um amigo. — Resolveu ser sincera. —
Lorde Pentecost.
Thomas não pôde evitar de sorrir com escárnio.
— Sei que no momento o senhor não terá boa vontade com ele, mas…
— Para não dizer coisa pior. — Abriu a porta de uma sala de estar espaçosa. —
Em vista do que ocorreu ontem.
32
— …duvido que Perry seja responsável por aquela engenhoca desumana em
suas terras. E porque lhe disseram que Perry é como o tio, agora está convencido de
que terá o mesmo fim.
— Se a doença do tio era um caso isolado, então eu poderia dizer que é
improvável. Contudo, se houver outras instâncias em gerações passadas, pode-se
dizer que a preocupação é procedente. A senhora sabe se algum de seus ancestrais
teve algum tipo de problema semelhante?
— Não sei, nem tenho como descobrir. Nem posso pensar em perguntar a sua
mãe. Desconfio de que ela está tirando vantagem dos receios de Perry.
— Em que sentido?
— Meu amigo está convencido de que não tem futuro. Por esse motivo, não
pensa em casar-se, e deixa a administração da propriedade para a mãe. O senhor
costuma encontrar lorde Pentecost, não é mesmo? Alguma vez suspeitou de que
possa haver alguma coisa além de sua grande timidez?
— Nunca. Afinal, por que lorde Peregrine não tem uma conversa com o dr.
Fieldhouse? Ele tem sido o médico da família há anos, e deve conhecer-lhe o
histórico.
Thomas percebeu que a sugestão não agradara a Sthephanie. Ele mesmo tinha
suas reservas a respeito do médico. Era um homem tolo e intolerante, que se recusava
a empregar métodos modernos de tratamento. Além de ser uma vergonha para a
medicina, pois só atendia a quem pagava em moedas de ouro.
— Se Perry quiser, poderá consultar-se comigo, milady. Se eu achar que há
motivos para preocupações, darei a ele o nome de um colega especialista em Londres.
— O senhor faria isso, dr. Carrington?! — Sthephanie olhou-o com gratidão.
— Ficarei mais aliviada se o senhor falar com ele.
Thomas espantou-se ao descobrir que se mostrava desejoso de cooperar, não
tanto para aliviar as preocupações do barão, mais para restituir a paz de espírito a
Sthephanie.
— Terei o maior prazer em colaborar com milady. Mas não podemos nos
esquecer de que ele é paciente do dr. Fieldhouse, e seria anti-ético eu ir até a herdade
a pedido da senhora. Entretanto, se o barão vier até meu consultório, o assunto
assumirá outra feição.
— Entendo. Terei uma conversa com Perry.
Não importava a opinião pessoal sobre Thomas Carrington. O importante era
que confiava nele como médico.
Entretida na conversa, Sthephanie não notara que haviam subido a escada de
madeira entalhada e entrado em um dormitório.
— Oh, Deus! — murmurou, alarmada. — Acho que não deveríamos ficar aqui
a sós, dr. Carrington.
Ele gargalhou, o que só aumentou o embaraço dela.
— Minha prezada senhora, se eu tivesse pretensão de seduzi-la, já teria usado o
sofá grande da sala. Nem precisaria do conforto de um leito de baldaquino!
De repente, nada mais foi engraçado para Thomas. A alguns passos, havia uma
mulher muitíssimo atraente e desejável. Foi preciso um controle férreo para não
tomar nos braços aquele corpo virginal que despertava para os jogos do amor.
33
Seria preciso não ter o mínimo senso de honradez para macular aquela
inocência, ainda mais em se tratando de uma moça de alta classe.
Uma jovem daquela não era para ele, mas sim para um aristocrata rico que
aguardaria com paciência a noite de núpcias. Um médico pobre deveria contentar-se
com mulheres simples como Margaret. Uma triste verdade.
— Perdoe-me, milady, mas durante minha vida profissional convivi com um
grande número de moças nas mais variadas circunstâncias, sem nunca ter me
aproveitado disso. Mas às vezes esqueço os refinamentos sociais.
Sthephanie, sentindo-se uma tola, saiu do quarto e desceu a escada. Como
explicar-lhe que encontrava dificuldade em vê-lo de maneira impessoal? E, a menos
que estivesse muito enganada, Thomas também não a via como paciente.
— E um belo imóvel, dr. Carrington — Sthephanie afirmou, alguns minutos
depois, quando ambos se encontravam no hall. — O proprietário não terá dificuldade
em vendê-la, mesmo que o senhor não venha a comprá-la.
— Tem razão. Mas eu me pergunto: para que preciso de seis dormitórios?
— No momento, não, é claro. Mas, se resolver casar-se algum dia e tiver
filhos, verá a conveniência de mais espaço.
A mudança de atitude dele foi imediata.
— Milady, é melhor não ficarmos mais aqui — ele avisou, seco.
Sthephanie seguiu-o para fora, indagando-se o que teria dito ou feito para
magoá-lo tanto. Thomas era mesmo uma criatura insondável.
Sthephanie voltou para Knightley Hall e ficou sabendo que Perry viera falar
com Richard e já fora embora. A prima estava na sala de estar.
Subiu a escadaria, com a intenção de trocar de roupa, antes de falar com
Elizabeth. Estava feliz por Perry ter se decidido a ver o cavalo. Sinal de que não
perdera o interesse completo pela vida.
Estava no último degrau, quando percebeu Latimer correr pelo hall em direção
à cozinha, alisando as pregas da saia. Mesmo a distância, pôde ver o rosto afogueado
da moça.
Alguns momentos depois, Simon Fairfax surgiu da sala da frente. Se não
estava enganada, Latimer também saíra dali. Que estranho! Por que não podiam falar
diante de Elizabeth, no hall?
Já no quarto, Sthephanie mandou chamar a criada. Enquanto ela a ajudava a
trocar de roupa, perguntou-lhe quanto tempo durara a visita de lorde Pentecost.
— Não sei, milady, eu estava ocupada com suas roupas na lavanderia.
Sthephanie percebeu um sorriso dissimulado e refletido no espelho do canto.
Por que motivo a moça mentia?, perguntou-se, ressentida.
Apanhou o xale azul, antes de sair dos aposentos. Seria uma megera a ponto de
suas criadas terem medo de confessar haver passado alguns momentos de prazer
inocente com o filho do antigo empregador?
Quando estivesse em sua própria casa, daria preferência a pessoas mais
confiáveis. Desde o começo, não simpatizara com Latimer. Na volta a Kent, trataria
de despedir a moça, não sem antes dar-lhe tempo de encontrar um novo emprego.
Entrou na sala. Richard e Perry haviam voltado. Fairfax entretinha os
hospedeiros com os últimos boatos da cidade.
34
Perry concordara em ficar com o cavalo e aceitara vir jogar xadrez, uma noite
qualquer.
“Era um belo progresso!”, Sthephanie alegrou-se. Contudo, não haveria
mudanças significativas, enquanto o amigo não se livrasse do medo que o afligia.
Quando os cavaleiros estavam para deixar os Knightley,
Sthephanie aproveitou um momento a sós com Perry, para contar-lhe sobre a
conversa com Thomas.
— De nada adiantará eu falar com ele, Sthephanie. Como a maioria das
pessoas, o dr. Carrington há de querer que eu me interne.
— Que bobagem, Perry! Sir Richard e lady Elizabeth não pensam assim, e
muito menos o dr. Carrington. Conhece mais algum caso semelhante na família, além
de seu tio?
— Meu pai nunca falou muito nos antepassados. Talvez mamãe saiba.
— E melhor não perguntar a ela.
— E por que não?
— Bem… lady Pentecost pode ficar preocupada em ver a ansiedade do filho.
Será melhor tentar descobrir sozinho.
— Bom, também não perderei nada se eu falar com dr. Carrington sem contar a
minha mãe. Ela não gosta mesmo dele.
Sthephanie conteve a vontade de dizer que a viúva não gostava de ninguém.
— Já é tempo, Perry, de começar a controlar sua própria vida. Como espera
conseguir o respeito de seus vizinhos… de seus criados… de qualquer pessoa, se
mostra tanto servilismo perante sua mãe? Pelo amor de Deus, aprenda a tomar as
próprias decisões!
Dito disso, Sthephanie voltou para a mansão, já arrependida das palavras duras.
Porém, elas se mostraram necessárias. Perry tinha de aprender a fazer valer seus
direitos. Senão, de nada adiantaria a ajuda de quem quer que fosse.

Caroline Westbridge é aquela dama atraente que me foi apresentada no jantar


— Sthephanie comentou, sentada em frente aos Knightley, na carruagem. — Ela é
sua vizinha mais próxima, é viúva e tem um filho que estuda em Oxford.
— Que memória! — Elizabeth admirou-se. — Eu a apresentei a uma dezena de
pessoas, naquela noite. Como pode lembrar-se dos detalhes?
— Prática, minha prima. Desde a infância, minha mãe ensinou-me a recordar
as particularidades das pessoas. As conversas tornam-se mais fáceis, e há mesmo as
que no primeiro encontro causam uma boa impressão.
O mesmo Sthephanie não poderia dizer de um médico muito bonito a quem
não via desde o encontro em Melcham. Apesar disso, não deixara de pensar nele, e
queria convencer-se de que isso se devia às preocupações com Perry, que também lhe
ocupavam a mente. Gostaria de não ter sido tão rude com o amigo.
Sthephanie achava que Perry não podia continuar aceitando que os outros
tomassem decisões por ele. Mas e quanto a ela? Também se submetia aos desejos da
família. Vivia uma vida inegavelmente satisfatória, mas inexpressiva, onde tudo o
que interessava era a busca do prazer pessoal. Mesmo o plano de ter sua própria casa
passava pela questão: seria mais feliz do que agora?
35
Na verdade, não estava em posição de criticar Perry.
Pelo menos ele tinha um motivo para agir daquela forma: o medo da
insanidade. E qual razão ela teria para ficar descontente e desanimada?
Devia desculpas a Perry pelas palavras duras que proferira. Sem dúvida ele
estaria entre os convidados de Caroline, e então poderia encontrar alguns minutos
para falar com o amigo a sós.
Entretanto, não foi isso que ocorreu. Ao chegar à bela mansão senhorial em
estilo Tudor, Sthephanie foi informada por Caroline de que lady Pentecost estava
adoentada, e a família resolvera não comparecer. Entristeceu-se com o fato, mas logo
teve a satisfação de ver Henrietta Dilbey entre os convivas.
Mesmo sem ser convidada, sentou-se ao lado da moça no sofá e cumprimentou
seu tio. Depois explicou a Hetta que conversara com o médico e… com Perry.
— Fico aliviada ao ouvir que Perry não é assim fora do lar. Embora eu não
acredite em sua insanidade, às vezes acho-o neurótico em certas idéias. Como essa,
por exemplo, de que as pessoas o vigiam.
— Acho que, quanto a isso, ele tem razão. O mordomo deles é muito
desagradável e deve ser um daqueles contratados há pouco. Não me parece nada
confiável. Isso não altera o fato de Perry ter de assumir que é o senhor em sua
propriedade. E tenho receio de ter-lhe dito isso com muita aspereza.
— Eu sei. — Hetta sorriu. — Ele contou-me, quando veio mostrar o cavalo. E
esse é um passo na direção certa. Foi tão bom vê-lo montado com decência! Teve
toda a razão em dizer-lhe o que disse. Espero que Perry tenha o bom senso de atender
a seu aviso e também de procurar o dr. Carrington.
— Será que ele fará isso?
— Não sei. Talvez tenha receio de ver seus temores confirmados. Uma pena
Perry não ter vindo esta noite. Assim poderíamos conversar os três.
Um barulho à porta chamou-lhes a atenção.
— Mas vejam só! — Hetta animou-se. — É o dr. Carrington! E numa
elegância! O que será que aconteceu? Sei que a sra. Westbridge é amiga dele, mas o
doutor em geral não aceita convites para jantar. Só sua prima é quem conseguia
afastá-lo do trabalho.
Muitas pessoas também se espantaram, pois Thomas não costumava ser
rotulado como “sociável”. Atravessou o amplo salão a passos largos em direção à
anfitriã. A roupa impecável valorizava o físico perfeito e musculoso.
Sthephanie escondeu o rosto corado atrás do leque e perguntou-se o motivo
daquele calor inesperado.
Sir Richard não estranhou a presença do médico, ao vê-lo. Caroline
Westbridge era uma pessoa encantadora e muito querida. Afinal, Thomas, ela e o
filho eram amigos desde a chegada dele ao distrito.
Só mais tarde, durante a refeição, é que sir Richard reparou nos olhos cinzentos
e penetrantes que fitavam uma certa dama. Ela não demonstrou o menor sinal de
haver percebido a atenção insistente.
— Está quieta esta noite, Sthephanie. Alguma coisa a perturba.
Claro que ela não iria admitir que era por sua reação à presença inesperada do
dr. Carrington.
36
— Eu esperava ver Perry hoje, Richard. Acho que estou com remorso. Fui
muito rude com ele no dia em que foi comprar o cavalo.
— Ontem seu amigo pareceu-me bastante bem, quando fui exercitá-lo na nova
montaria. Garanti que vai tornar-se um excelente cavaleiro.
— Perry estava sozinho?
— Sim. Entendi que os hóspedes foram embora, mas voltarão na semana que
vem, para o baile. — Richard tomou um gole de vinho. — Segundo boatos, o velho
lorde Fairfax está lutando para tirar os credores de sua porta.
— Não me surpreenderia se isso fosse verdade. Ele é promíscuo e um jogador
inveterado. — Sthephanie abaixou o tom, sem esconder a censura. — Um homem de
sessenta anos, que deveria descansar ao pé da lareira, desperdiça o pouco de energia
que lhe resta perseguindo prazeres frívolos e desastrosos que mal pode sustentar…
— Pode ser que o lorde espere que o filho restaure a fortuna. Não há como
negar que Simon Fairfax é bastante atraente. — Richard reparara no escrutínio frio e
calculista a que Sthephanie fora submetida, quando Simon fora com Perry visitá-los
em Knightley Hall. — Não há dúvida de que o jovem procura uma herdeira,
Sthephanie.
Ela percebeu a advertência de Richard.
— Decerto não hei de ser eu. Encontrei Simon várias vezes nas três últimas
temporadas em Londres. Não há como negar que é belo, mas acho que suas maneiras
são estudadas demais para meu o gosto. Além do que, ele apresenta tendências de ser
tão devasso como o pai.
A jovem prima de Elizabeth, sem dúvida, não era tola, e não se deixaria iludir
por pessoas que tinham só valor aparente. Mas, ao mesmo tempo, Richard se
perguntava se as imperfeições que Sthephanie percebia com tanta facilidade no sexo
oposto não seriam, em parte, motivadas por ela ser uma adorável moça, abençoada no
rosto e nas formas, mas que não pretendia casar-se.
Se Sthephanie esperava que o sr. Perfeito cruzasse seu caminho, terminaria
seus dias como uma tia solteirona. Não, Sthephanie era inteligente e sabia que tais
modelos de perfeição não existiam.
Richard suspeitava, contudo, que ela ainda não havia encontrado nenhum
candidato de seu agrado durante as temporadas de eventos a que comparecera.
Um pensamento ocorreu-lhe. Tão novelístico que era até ridículo. Fitou uma
figura muito bem vestida sentada um pouco mais adiante. Tomou o último gole de
vinho. Já era tempo de convidar o médico e amigo para um jantar em família. E para
um jogo de cartas depois.
Uma noite poderia ser muito esclarecedora…
Sthephanie perguntava-se por que tão excessiva preocupação com a aparência.
Depois de mudar de roupa três vezes, decidiu-se pelo vestido de veludo verde que
usara na Primeira noite na residência da prima e que lhe realçava a cor dos olhos e
cabelos.
E tudo isso porque o detestável dr.Thomas aceitara vir para jantar. Não entedia
por que os primos tinham em tão alta consideração um homem tão indelicado. No
jantar de Caroline, ele mal lhe dirigira a palavra!
Com isso em mente, e portanto aborrecida, ela entrou no salão e encontrou-o
37
acomodado, muito à vontade, em uma das poltronas. Usava uma roupa bastante
informal, um cachecol um tanto amassado e botas de cano alto. Quase um insulto.
Thomas, divertido pela desaprovação no olhar de Sthephanie, ergueu-se.
— Milady, peço que me desculpe por minha aparência. Fui atender a um
paciente no fim da tarde. Se eu fosse trocar de roupa em casa, chegaria atrasado para
a reunião.
Ela deu de ombros.
— Se minha prima não se opõe… Elizabeth está tão contente por o senhor
condescender em aceitar o convite que nem se incomodará com as etiquetas sociais…
ou com a falta delas.
Elizabeth, sentada perto, disse para si mesma que nunca ouvira Sthephanie ser
tão mal-humorada com alguém, e decerto isso não se devia à vestimenta inadequada.
Será que o médico a ofendera com atos ou palavras? Conhecendo-o, não se
surpreenderia.
Richard disfarçou, sem interferir, e foi até as garrafas de bebidas.
“Homens!” Elizabeth suspirou e decidiu melhorar o estado de espírito de
Sthephanie, para evitar o fracasso da noite.
— Venha sentar-se a meu lado, Sthephanie — ela convidou. — Como foi o
passeio até os Dilbey, hoje à tarde?
— Ótimo. Gosto muito da srta. Dilbey. Ela é encantadora.
— Concordo. — Richard tinha uma taça do Madeira nas mãos. — É uma
jovem sensata e bonita, e faria qualquer homem feliz.
— Alguém em particular?
— Não, minha querida. Não tenho por hábito imiscuir-me na vida privada de
ninguém. A menos, é claro, que as pessoas em questão me preocupem de alguma
forma. Só um alguém conseguiu afastar-me desse princípio.
— E quem possui essa força de caráter para afastá-lo de seus pontos de vista?
— Nada menos de que a bela lady Sthephanie.
— Eu?! E como fui que fiz isso, meu primo?
— Preocupando-se com a felicidade dos outros, minha querida. Esta manhã fui
visitar o general sir George Lansdowne. É um velhinho falastrão que adora contar
sobre sua vida no exército. Deve ter uns oitenta anos, e sua propriedade fica a menos
de um quilômetro da dos Pentecost. Se há alguém que sabe alguma coisa sobre os
vizinhos sem dúvida é ele.
— E o que descobriu? — Elizabeth quis saber.
— Não muita coisa. Mas foi como eu lhe disse, Sthephanie. O tio de Perry
morreu em conseqüência de um acidente.
— Então não sabemos se ele era portador de alguma doença mental, na época.
— Como já afirmei, nunca ouvi falar nisso. Lansdowne acha que Cedric estava
doente, e por isso o falecido lorde Pentecost foi buscá-lo em Oxford. Contudo, ele
não recorda os detalhes. — Richard terminou de beber o vinho. — Se Perry quiser
saber mais, terá de fazer perguntas.
— Acho que ele o fará — Thomas interveio. — O barão foi ver-me, hoje pela
manhã. Tivemos uma longa conversa. Deu-me todas as razões para supor que, de
agora em diante, pretende consultar-se comigo. Não posso revelar as confidencias de
38
um cliente, mas devo dizer que Peregrine Pentecost não tem muito com o que se
preocupar.
A animosidade de Sthephanie cedeu. Suspeitou que a revelação fora feita para
deixá-la mais tranqüila.
— Isso ficaria ainda mais interessante — Elizabeth comentou, com um sorriso
travesso — se o senhor fosse visitar a herdade.
— Se lorde Pentecost chamar-me, então eu irei.
— E se for convidado para o baile da primavera?
— Não creio que a viúva irá se preocupar com isso, Lizzie. E também não
perderei noites de sono por ter sido excluído, de qualquer modo, eu nem poderia ir.
Pretendo viajar a Wiltshire na próxima semana e fazer um estágio com o eminente
cirurgião William Denton, que foi premiado com a classe dos cavaleiros, por seus
serviços durante a guerra.
— Mas que pena! Ficaremos sem a companhia agradável. Sthephanie também
vai deixar-nos. — Elizabeth virou-se para a prima. — Será que não poderia adiar sua
viagem, minha querida? O tempo passou tão rápido!
— Eu adoraria, mas não será possível. Prometi a lady Templehurst que
passaria meu aniversário com ela.
— Nesse caso, terá mesmo de ir. Sei como você gosta de tia Augusta. Não a
vejo há anos, desde o funeral de meu pai — Elizabeth recordou. — Imagine que
bobagem! Quando criança, eu tinha medo dela! Tia Augusta nunca se esquece de
mandar uma lembrança quando aniversário. Devo-lhe uma visita, ou quem sabe
convidá-la para vir aqui. Acha que ela viria, Sthephanie?
— Com certeza. Lady Templehurst deve ter seus sessenta anos, mas, fora um
pouco de reumatismo, é bem saudável e capaz de viajar por longas distâncias. E
sempre gostou muito das sobrinhas, e também sempre preferiu seu pai ao meu.
— Ela lhe disse isso? — Elizabeth arregalou os olhos.
— Tia Augusta sempre foi muito franca. Todos na família a temiam, inclusive
papai. E Deus sabe quanto! A única maneira de lidar com pessoas azedas é enfrentá-
las. Não é mesmo, dr. Carrington?
— Em muitos casos, sim. — Ele sorriu, entendendo a indireta. — Mas não é
aconselhável provocar a fúria na velhice. Lizzie, lembra-se de Josiah Peacemore,
aquele senhor avarento? Depois de um ataque de raiva, ele teve uma apoplexia que o
levou.
— Verdade? — Sthephanie indagou, inocente. — Será que isso aconteceu
depois de o senhor visitá-lo, doutor?
— Jovem impertinente! — Thomas murmurou. Richard percebeu o olhar de
ternura que acompanhou a resposta nada cortês e preocupou-se.

A carruagem de sir Richard era luxuosa. O interior acolchoado com veludo


amortecia o impacto das pessoas contra o balanço do veículo nas estradas estreitas e
sinuosas.
Já escurecera um pouco, e Sthephanie não enxergava direito a paisagem
daquela bela parte da Inglaterra. E nem a veria ao final da primavera e no verão,
quando a zona rural se mostrava mais exuberante. Lamentava ter de encerrar tão cedo
39
a visita aos primos, mas tinha um dever a cumprir. Era uma mulher de palavra, e teria
de ir para a casa de sua tia Augusta.
Era uma pena que houvesse sido privada da companhia dos parentes na
penúltima noite. Elizabeth, com gripe, passara os últimos dois dias fechada em seus
aposentos, para não fazer disseminar o problema. As crianças, ao contrário de
Richard, não apresentavam os sintomas.
Ele acordara naquela manhã com fortes dores de cabeça e garganta. Apesar
disso, insistira em levá-la ao baile da primavera dos Pentecost, mas Sthephanie não
permitiu. O primo teria de ficar em sua residência e descansar.
E também não havia necessidade de acompanhá-la. O chefe das estrebarias
conduzia o veículo, e o jovem cavalariço, que sempre a acompanhara, vinha junto.
Sthephanie contava ainda com a presença da criada pessoal. Estava segura, portanto.
— Quando pretende partir para Bath, milady? — Latimer quis saber, depois de
rodarem por algum tempo em silêncio.
— Combinei para a diligência postal estar em Knightley Hall logo depois do
desjejum, depois de amanhã. Espero chegar a Bath a tempo de jantar. — Embora
pretendesse dispensar a criada, não a tratava com frieza. — Está ansiosa para
empreender a segunda parte de nossa viagem, Latimer?
— Estou, milady.
Sthephanie não deu importância à rara demonstração de ânimo da moça.
— Espero que não tenha se aborrecido durante a estada em Hampshire.
— De jeito nenhum, milady. Encontrei trabalho suficiente para ocupar-me —
afirmou, com uma certa melancolia saudosa. — Ninguém pode acusá-la de ser uma
senhora exigente, e eu tive oportunidade de fazer vários passeios pela propriedade.
Mas devo confessar que estou pronta para a mudança.
Elas se juntaram à fila de carruagens que aguardava para deixar os passageiros
à entrada magnífica de colunata. Quando chegou a vez delas, as duas desceram.
Sthephanie dirigiu-se ao grande salão de baile, e Latimer juntou-se às outras criadas
no pavimento superior, onde passariam o tempo em conversas ociosas e fazendo
observações sobre os rasgões acidentais nos vestidos caros de suas senhoras.
O salão estava lotado com o que deveria ser a nata da sociedade de Hampshire.
Perry se encontrava ao lado de sua mãe, em pé à porta. Muito elegante, vestia
fraque preto e calções justos de cetim preto, até o joelho. Sthephanie ficou contente
por ver que ele demonstrava descontração ao cumprimentar os convidados, uma
incumbência que decerto não lhe agradava.
— Está se saindo muito bem, Perry — ela gracejou, quando a fila chegou a sua
vez de saudá-lo.
— Bondade sua, Sthephanie. Sei que tio Willoughby empresta seu apoio a
minha mãe, mas ela insistiu para eu cumprir meu dever.
— Talvez eu tenha culpa no episódio — murmurou, para não ser ouvida. —
Não posso conceber a idéia de seu tio usurpar sua posição.
— Então é a você que devo agradecer por este transtorno. —- Ele tentou
mostrar severidade. — Mais tarde acertaremos a conta, milady. E não se esqueça de
reservar-me uma dança.
Sthephanie viu, com satisfação, o esforço do amigo de infância para enfrentar
40
uma situação que antes o constrangia. Mas não se iludia. A transformação de Perry
não seria definitiva, e isso, a bem da verdade, a deixava satisfeita.
Entretanto, sem dúvida, uma carga pesada havia sido retirada dos ombros de
Perry, graças ao dr. Carrington.
Opinião essa que foi corroborada pela srta. Dilbey, que estava à espera da
chegada de Sthephanie.
— Ele está bem mais tranqüilo, depois de falar com o médico — Henrietta
afirmou, ao se sentarem em duas poltronas perto da parede. — Porém determinado a
consultar-se com o especialista em Londres, quando for para lá, na primavera.
O que também concorreria para não afastá-lo da srta. Dilbey!
Uma pena que ela já se decidira a não participar da temporada naquele ano,
Sthephanie refletiu. Seria interessante acompanhar o progresso da amizade entre os
dois, já que Perry sentia-se mais liberto.
Fitou Hetta com olhar aprovador. A moça usava o mesmo vestido cinza da
festa de Caroline. Sthephanie desejou que a amiga houvesse herdado o orgulho
teimoso da mãe e que o tio lhe comprasse roupas novas em Londres. Seria bom vê-la
usar cores mais vibrantes, depois de terminado o período de luto.
— Como lady Pentecost encarou a mudança de atitude do filho? Ela sabe que
Perry pretende ir a Londres?
— Sim, ele contou, mas não disse o motivo. Milady não gostou de Perry ter ido
ao consultório do dr. Carrington. Perry aborreceu-se por ela tentar descobrir do que se
tratava e tratou de convidar o clínico para o baile, mesmo sabendo que a mãe não
gosta dele.
Sthephanie ergueu um ombro.
— E o doutor, óbvio, não aceitou.
— Que nada! Confirmou que viria.
— Mas o dr. Carrington disse que teria de ir a Wiltshire.
— Pois é, mas veio com o grupo da sra. Westbridge. Acho que o vi há pouco,
acompanhando-a ao salão de jogos.
Sthephanie ficou alegre. Desde o jantar na casa dos primos, ela não o vira. Na
véspera, Thomas fora chamado para examinar Elizabeth, mas Sthephanie encontrava-
se fora, cavalgando. Uma circunstância que a deixou mais aborrecida do que ousaria
admitir.
— Boa noite, lady Sthephanie — a voz de Simon Fairfax interrompeu-lhe as
divagações. — A senhora me daria a honra da próxima contradança?
Quanta cortesia e charme naquele Adônis loiro! Com certeza, metade das
mulheres ali presentes invejavam-na.
Sthephanie, com os dedos na manga imaculada do fraque de Simon,
acompanhou-o à pista de danças, sem a mínima emoção. Por que preferiria estar em
companhia de um certo cavalheiro de modos não tão refinados?
— A senhora vai viajar logo, não é mesmo, lady Sthephanie? — Simon
indagou, enquanto eles se colocavam na roda.
— Sim, depois de amanhã.
— Se minha memória não me falha, milady irá para Bath e não para Kent.
Como é que ele sabia?, Sthephanie estranhou. Mas lembrou-se de haver
41
comentado o fato com lady Pentecost, que devia ter passado a informação.
— Irei visitar minha tia, lady Templehurst, e retornarei a Kent em abril.
— Milady, isso quer dizer que nos privará de sua incomparável presença na
próxima temporada?
— Ainda não sei bem, sir, mas é pouco provável que eu esteja na capital na
primavera.
— Os jovens fidalgos ficarão desolados por sua ausência. A senhora tem sido
uma das luzes mais brilhantes das três últimas temporadas.
“Meu dinheiro foi que cintilou”, ela disse para si mesma. Os Simons deste
mundo não a enganavam. Eram todos vazios e sempre munidos de declarações
insípidas. Sthephanie preferia agüentar os comentários provocantes e desaprovadores
do dr. Carrington. Era uma pessoa de rudeza irritante, mas pelo menos era honesto!
A música chegou ao fim, mas o alívio de Sthephanie durou pouco. Seguiu-se
uma fileira de mancebos elegantes, todos com conversas tolas e sem nenhuma
importância, porém mestres em fazer cumprimentos destinados a produzir calores em
qualquer donzela, mas não em Sthephanie Beresford, que já recebera tantos desses
elogios falsos que nem mais a afetavam. O único de seus parceiros que não a
aborreceu foi Perry, que mostrou-se um dançarino competente e agradável.
Ele conduziu-a de volta a seu lugar e tirou Hetta para dançar. Por alguns
momentos, Sthephanie acompanhou a evolução de ambos no salão. Depois, prestou
atenção à volumosa lady Pentecost, perto de uma das altas janelas francesas. Ela
conversava com uma senhora de meia-idade e estatura elevada. Ambas fitavam os
dançarinos, mas Sthephanie não soube precisar quais eram eles.
Esperava que não fossem Perry e Hetta, embora a confiança recém-adquirida
de Perry não o deixasse cometer uma indiscrição. Pelo menos por enquanto eles
deveriam manter a grande amizade em segredo. Se a viúva viesse a desconfiar de
algo, sem dúvida daria um jeito para desanimar a jovem. A sobrinha de um
insignificante proprietário rural não lhe interessava como sucessora.
— O que a está preocupando tanto, milady? Sthephanie estremeceu.
— O senhor assustou-me, dr. Carrington, aproximando-se dessa maneira, sem
o menor ruído! —- Disfarçou o contentamento em vê-lo e saber que ele não
procurava evitá-la.
Sem esperar convite, Thomas sentou-se na cadeira vazia ao lado dela.
— Será talvez porque a senhora teme que um jovem casal traia os sentimentos?
Bom Deus, como ele era astuto! E aquela franqueza era um refrigério, depois
do desfilar de trivialidades e insinuações que fora obrigada a agüentar desde sua
chegada.
— É verdade -— admitiu, com igual sinceridade. — No entanto, devo
confessar que estou surpresa por saber que Perry resolveu confiar ao senhor, com
tanta facilidade, uma particularidade de sua vida.
— Ele não o fez. Mas eu os tenho visto juntos com freqüência quando vou à
propriedade Dilbey. E preciso ser muito tolo para não perceber uma ligação tão
florescente.
— Espero que alguém não se intrometa entre os dois. Thomas fitou a viúva
Pentecost e depois o rosto delicado de lady Sthephanie. Por que essa dama, às vezes
42
tão altiva, tinha o poder de afetá-lo?
— Aquela bruxa pode mesmo ser causa de preocupação.
— Thomas tentou controlar as emoções e fitou Sthephanie.
— Assim como a ausência de Richard me deixa inquieto. Não me diga que
veio sozinha!
— Não, minha criada acompanhou-me.
— Claro, como sou idiota! Uma serva. A melhor intimidação para um possível
atacante! — Suspirou. — Não sei onde Richard estava com a cabeça ao deixá-la vir
sem escolta!
— Meu primo queria acompanhar-me, mas não permiti. Imagine, ele
contaminou-se com a gripe de Elizabeth. Além do que, o chefe das estrebarias e o
cavalariço vieram bem armados.
— Milady deve dar-se por satisfeita por eu não ser responsável por sua
segurança. Não a deixaria divertir-se de maneira tão leviana. Já é tempo de cortar-lhe
as asas!
Sthephanie não se aborreceu com o tom arbitrário dele. Pelo contrário, sentiu-
se satisfeita por saber que seu bem-estar era uma preocupação para Thomas. Mas
jamais admitiria uma coisa dessas.
— Diga-me, dr. Carrington, o senhor saiu do salão de jogos e veio até aqui só
para atormentar-me? Se for isso, pode voltar ao que estava fazendo!
— Não é nada disso, milady. Vim procurá-la para fazê-la levantar-se. Por falar
nisso, começaram a tocar uma valsa.
Sthephanie sorriu, e os dois se dirigiam para a pista.
Claro que não passara pela cabeça de Thomas que ela poderia não aceitar.
Embora não gostasse de vê-la viajar sem escolta masculina, não se prendia a outras
regras determinantes do comportamento de donzelas, por achá-las ridículas e não
merecedoras de atenção.
“Que homem complicado!”, Sthephanie pensava, enquanto Thomas a girava no
meio do salão. Não conhecia nenhum outro que a perturbasse tanto. Em um
momento, Thomas a aborrecia, em outro, deixava-a numa felicidade sem precedentes.
Não havia como negar que Thomas podia ser rude, de uma maneira
desconcertante. E pior: esses contrasensos é que a atraíam. Procurou ignorar a ligeira
pressão da mão dele em sua cintura.
Thomas era dono de um físico atraente que fazia ainda mais elegante o mesmo
traje social que usara na festa de Caroline Westbridge, mas é lógico que ele não se
importava com a aparência. A gravata, embora engomada, estava um tanto frouxa. As
pontas da camisa, baixas demais. O colete não seria aprovado nos padrões da moda
elegante da sociedade.
Não havia a mais remota ostentação em sua roupa, e Sthephanie concluiu que
preferia aquela sobriedade aos estilos vistosos demais usados pela maioria dos
cavalheiros de Londres.
Não entendia como alguém tão atraente, de traços fortes, confiável e decente,
chegara aos trinta anos solteiro. Quem sabe não seria o temperamento irrascível o
motivo da fuga das mulheres? Não, devia ser a dedicação à medicina que o mantinha
sozinho.
43
Sthephanie ficaria admirada ao saber quantas vezes o assunto “casamento”
viera à mente de Thomas nos últimos tempos.
Thomas seria o primeiro a admitir que as moças sempre representaram uma
pequena parcela em sua existência. Supunha que, egoísta, utilizara-se delas somente
para aplacar as suas necessidades físicas. Nunca pensara em nenhuma delas com
maior profundidade. Só Elizabeth e a avó, suas bondosas benfeitoras, ocupavam um
lugar em seus afetos. Chegara mesmo a acreditar que possuía uma imunidade natural
à ternura. Até aquela noite, três semanas antes, quando aceitara o convite para jantar
com os Knightley.
Quanto mais conhecia lady Sthephanie Beresford, mais se sentia atraído por
aquela jovem que, apesar de aristocrática, compartilhava suas idéias.
Sentiu um aperto na boca do estômago. Tentara o impossível para resistir à
vontade crescente de ficar perto dela. Era loucura supor um futuro para duas pessoas
que pertenciam a mundos tão diferentes. Precisava afastar-se de Sthephanie quanto
antes, para sua vida retornar à pretensa normalidade. Ainda assim, não podia ir para
Wiltshire sem estar com ela ainda uma vez. Imaginar que os caminhos deles não se
cruzariam tão cedo o fez errar um passo.
— Perdoe-me a inabilidade. Não danço com freqüência.
— Pelo contrário, sir. Para um homem alto, o senhor dança muito bem —
retrucou, alegre por ele haver quebrado o silêncio constrangedor. — É mesmo uma
surpresa saber que não se dá ao luxo de praticar sempre e veio até aqui esta noite.
Achei que estivesse a caminho de Wiltshire.
— Prezada milady, acha que eu resistiria à tentação de ver a reação de nossa
estimada anfitriã ao ter-me frente a frente? Acredite, o convite de última hora não foi
escrito com gosto.
Sthephanie não pôde deixar de rir, e vários casais se viraram para fitá-la.
— E o senhor ficou desapontado?
— Pelo contrário. Poderei saborear a imagem da expressão atônita pelo ultraje
cometido durante um bom tempo. Seu único consolo deve ter sido que, ao engasgar
com os cumprimentos que fora forçada a agüentar, poderia dividir o encargo com
Perry.
Sthephanie divertiu-se com os comentários maliciosos que Thomas fez a
respeito de outros esteios da comunidade presentes, e nem percebeu quando a música
chegou ao final.
Sthephanie retornou à cadeira ao lado de Hetta, triste por Thomas não pedir-lhe
para dançar mais uma vez. Ressentida, viu-o evoluir no salão com uma jovem muito
bonita que usava um vestido de seda cor de alfazema.
Aproveitou para sair, enquanto Hetta conversava com dois vizinhos. Sentia
necessidade de ficar sozinha um pouco. Não fazia sentido aquela onda de ciúme que a
invadia. Caminhou até uma das janelas francesas que estavam abertas, para
neutralizar o calor provocado pela centena de velas acesas.
O caro xale de seda não a protegia contra o frio de março, mas Sthephanie não
se intimidou. Foi até o terraço deserto e depois desceu alguns degraus de pedra até
chegar ao jardim, onde lanternas coloridas enfeitavam o espaço ao redor da
residência.
44
Não andara cinco metros, quando ouviu passos. Escondeu-se atrás de um
grosso tronco de árvore, pois não queria conversar com ninguém. Esperou que
alguém passasse, mas nada.
Nisso, escutou um som atrás de si, um pouco à direita.
— Sabe mesmo o que fazer e para onde ir? — uma voz masculina perguntou.
—: Sim — uma mulher, que lhe soou familiar, sussurrou.
— Tenha mais um pouco de paciência, meu amor, e ficaremos juntos. Nossos
problemas estão por acabar. Na próxima semana, a essas horas, depois de cruzaremos
o Canal, estaremos aproveitando as delícias que Paris tem a oferecer.
Seria um encontro entre amantes que planejavam uma fuga? Sthephanie sentiu-
se uma intrusa, e teve receio de mover-se, para não assustá-los. Eles conversaram
mais um pouco, sem que ela captasse o sentido das palavras. Em seguida, um
farfalhar de roupas, frases de encorajamento e gemidos de prazer.
Apesar da educação severa, Sthephanie não era ingênua, e sabia muito bem o
que se passava a poucos metros dali.
Envergonhada, receou ser descoberta e saiu na ponta dos pés, enquanto os
amantes estavam distraídos. Quase chegava à mansão, quando percebeu que a
observavam do terraço.
De imediato reconheceu o homem alto. Respirou fundo para recuperar o
autocontrole e subiu os degraus de pedra.
— Dr. Carrington! O que está fazendo aqui?
— Eu poderia fazer-lhe a mesma pergunta. Não está se sentindo bem? Por que
está tão corada?
“Droga de homem! Nada lhe escapa!”
— E… eu estava com um pouco de calor e saí para tomar ar.
— Mas milady afastou-se muito. — Olhou-a com a severidade de um guardião.
— Parece que tem mesmo propensão a perambular por aí sozinha.
— E o que poderia acontecer-me? Estava apenas dando uma volta em um
jardim particular.
Thomas ergueu-lhe o queixo.
— Não tenho certeza… Mas sempre pode acontecer alguma coisa.
Sthephanie nem se lembrou de que o casal no jardim poderia vê-los. Só tinha
consciência dos dedos fortes em sua pele, dos olhos cinzentos que fitavam os seus e
depois sua boca.
Quase hipnotizada, cerrou as pálpebras, antecipando o contato com aqueles
lábios sensuais e que o destino não lhe permitiu desfrutar.
As janelas francesas foram escancaradas e Hetta saiu para o terraço a tempo de
crer que interrompia o idílio de um casal de apaixonados.
— Ah, dr. Carrington, o senhor encontrou-a! Pensei tê-la visto sair.
— Estava procurando por mim? — Sthephanie quis saber, já recomposta.
— Sim. Vim perguntar-lhe se me permitiria acompanhá-la no jantar e na
próxima música.
— Que acaba de começar — Hetta disse e voltou para dentro. Com sua
arrogância peculiar, Thomas tomou a quietude como aquiescência e, para falar a
verdade, Sthephanie nem se importou que assim fosse.
45
Ela não podia entender o que estava acontecendo. Nas três últimas temporadas,
enfrentara várias vezes situações um tanto comprometedoras, desencadeadas por
algum jovem e por outros nem tanto, desejosos de demonstrar a paixão masculina.
Um olhar gelado fora em geral suficiente para acalmar-lhes o ardor. Se houvesse
falhado, Sthephanie não teria hesitado em dar-lhes um tapa ou um chute na canela. E
sua honra teria permanecido intacta.
Naquele momento, porém, nada previsível acontecia. Uma sensação diferente,
um misto de desejo e apreensão, tomava conta de Sthephanie, que foi forçada a
admitir que não responderia por si, se continuasse a sós com o dr. Thomas
Carrington.
Não experimentava nenhuma vontade de reprimir avanço algum. O oposto é
que era verdadeiro. Desejava demais ter aqueles braços fortes a apertar seu corpo.
Ansiava por aqueles lábios bem-feitos nos seus. Teria ficado satisfeita com um
abraço ou, como a mulher do jardim, teria encorajado maiores intimidades?
Esforçou-se por controlar as emoções que a atordoavam, e Thomas, notando
isso ou não, comportou-se como um perfeito cavalheiro.
Falaram pouco durante a dança e, quando esta terminou, dirigiram-se a uma
mesa, junto com Perry e Hetta. Thomas provou ser um ótimo contador de fatos
engraçados e até Perry, descontraído, participou ativamente das conversas.
Thomas não saiu do lado de Sthephanie pelo resto da noite, o que foi notado
por vários presentes. Na hora de ir embora, levou-a atá a carruagem de Richard, que
esperava do lado de fora.
Sthephanie percebeu-lhe as mãos trêmulas, quando Thomas agasalhou-a com a
manta sobre os joelhos. Despediu-se dela com um vacilar na voz atraente e profunda.
Desejou-lhe uma boa viagem até Bath e disse esperar que se encontrassem da
próxima vez em que ela viesse a Hampshire.
Ele fechou a portinhola da carruagem de repente e desapareceu dentro da
mansão. Sthephanie sentiu uma grande desolação e deu graças a Deus pelo mutismo
da criada. Mesmo que quisesse, não conseguiria falar.
Na estrada para Bath, a angústia de Sthephanie aumentava à medida que os
quilômetros percorridos a afastavam mais de Hampshire. Nem mesmo o excelente
almoço que forçou-se a comer na refinada estalagem melhoram seu ânimo. O
abatimento era total!
Durante quase um mês, se permitira fazer o que lhe agradava. Ficar na casa dos
Knightley mostrara-se uma bênção, depois de anos de confinamento. Os primos
desdobraram-se em atenções, muito mais do que as irmãs faziam, sem entretanto
sufocá-la. Devia ser por isso que relutava em deixar um lugar onde experimentara o
gosto doce da liberdade.
Um gemido baixo a seu lado atravessou as camadas de melancolia que a
envolviam.
— O que foi, Latimer?
— Devo ter comido alguma coisa que me fez mal, milady — a criada
respondeu, em voz quase inaudível.
— Não acho que seja por isso. Almoçamos a mesma comida, e eu estou
sentindo-me bem.
46
— A senhora não comeu a torta de carne. — Latimer levou a mão à barriga, à
altura do estômago, por baixo do manto, sem empalidecer.
— Gostaria de parar um pouco? Alguns minutos de ar fresco serão benéficos.
Latimer, com esforço evidente, inclinou-se para a frente e espiou pela janela.
— Acho que sei onde estamos. Quando trabalhava com lady Fairfãx, passei
várias vezes por aqui. Em uma ocasião, tivemos de procurar abrigo em uma
hospedaria não longe daqui, por causa de um pequeno acidente com o coche. Não
quero causar-lhe transtorno, milady, mas gostaria de descansar por algum tempo.
Sem demora, Sthephanie abaixou a janela e chamou o cocheiro. A carruagem
parou, e um dos cavalariços veio ver qual era o problema. Ela perguntou-lhe onde
encontrar uma estalagem próxima.
— São poucos quilômetros até Calne, milady. Creio que será melhor irmos
direto até lá.
— Ah, milady, não creio que agüentarei até Calne! Estou um pouco tonta.
— Tem certeza de que há uma hospedaria aqui perto, Latimer? — Tornou a
espiar do lado de fora. — Só vejo campos sem fim.
— Sei que é por ali — a criada confirmou, olhando pelo outro lado. — Veja!
Há uma casa mais à frente. Que tal pararmos lá e perguntarmos?
Relutante, e apesar de estar convencida de que não havia nenhuma estalagem
por perto, Sthephanie concordou.
A habitação de tijolos vermelhos, não muito distante da estrada, era circundada
por terras aráveis. Como havia espaço diante da construção em mau estado, o
cocheiro virou a diligência, e, pela fumaça da chaminé, deduziram que não estava
vazia.
Sthephanie pensou, pelo menos, conseguir um copo com água para Latimer e,
com esse intuito, desceu do veículo.
A porta da frente abriu-se, e uma mulher macilenta e de meia-idade saiu,
alvoroçada.
— Ouvi o barulho dos cavalos e achei que fosse milorde. — Esboçou um
sorriso falso. — Não temos muita gente viajando por aqui.
A julgar pelos trajes, a desconhecida devia ser uma empregada de categoria,
talvez uma governanta, embora o avental estragado sugerisse outra coisa.
Nem a residência era bem-cuidada. A pintura estava rachada e descascada, e o
jardim precisava de cuidados urgentes. O isolamento da moradia fazia supor que o
dono seria um recluso que não queria ou não se animava a fazer os reparos.
— Pode informar-me onde poderíamos encontrar um hospedaria perto daqui?
Minha criada não se sente bem.
— A mais próxima fica a alguns quilômetros, mas eu não a recomendo. Não é
um lugar que lhe agradará, milady. Não passa de uma taverna cercada. — A mulher
olhou para dentro do coche. — Ah, coitadinha! Venha comigo. Vamos descansar um
pouco. Está com tão mau aspecto…
Sthephanie achou-a muito corada, com os olhos brilhantes, e concluiu que as
aparências podiam ser enganosas. Latimer fora eficiente e cumpridora de seus
deveres, enquanto servira a família Beresford. Seria injusto não permitir que
repousasse um pouco, antes de prosseguir viagem.
47
Sthephanie ordenou aos rapazes que virassem a carruagem e esperassem
ordens. Entrou também, e encontrou um homem magro, também de meia-idade, que a
aguardava no hall escuro e pequeno. As mãos grandes e enrugadas denunciavam que
ele não era apenas empregado da casa, o que não a espantou.
Mas como o proprietário de um lugar tão abandonado podia dar-se ao luxo de
ter dois criados?
— A mulher levou a moça lá para cima, para descansar — ele informou-a e
fechou a porta.
Entraram uma sala diminuta que cheirava a bolor e urina de animais, embora
houvesse um bom fogo aceso na grelha.
— Sente-se e fique à vontade. A mulher não vai demorar. Dito isso, o estranho
a deixou, e Sthephanie nem teve tempo de avaliar o ambiente, pois logo a
desconhecida entrou.
— Como está minha criada?
— Indisposta. Diz que foi alguma coisa que comeu. — Dirigiu-se até as
cortinas descoradas e ajeitou-as, lançando uma nuvem de poeira no ar. — Acho que
devemos tomar uma providência quanto à carruagem, milady. Não temos lugar para
os cavalos no estábulo, e os homens ficarão sem fazer nada até a senhora poder
viajar. Talvez seja melhor que esperem na estalagem em Calne. Meu patrão deve
chegar logo. Ele é muito bondoso e mandará conduzi-la até Bell, uma vez que sua
criada se recupere.
— Agradeço muito, mas…
— Não se preocupe. Milorde ficará contente por encontrá-la aqui. Se a moça
não estiver em condições de viajar até Bath amanhã, ele sem dúvida conseguirá um
quarto em Bell para a senhora.
Sthephanie não queria ficar, mas não tinha alternativa. Em uma hora, Latimer
estaria recuperada, mas precisaria pensar na possibilidade de continuar a viagem
sozinha e deixar dinheiro para a criada ir até Bath quando sarasse.
— Espere aí, como é que a senhora conhece nosso destino?
— É… foi sua criada quem informou-me, lady Sthephanie.
Para quem era tão pouco falante, Latimer revelara demais: o destino e a
identidade de sua senhora. Resolveu conversar com Latimer, antes de tomar qualquer
decisão.
A seu pedido, a mulher levou-a para cima, por uma escada poeirenta.
— Por aqui, milady. — Girou a maçaneta, no final de uma passagem estreita.
Sthephanie teve tempo de ver que não havia ninguém ali, antes de ser
empurrada com força para dentro. Logo alguém a agarrou por trás, arrancou-lhe o
chapéu e amordaçou-a com ou pano. Depois, ataram-lhe os pés e as mãos com
violência, e atiram-na na cama.
A rapidez deixou-a sem fôlego, e Sthephanie quase não conseguia erguer a
cabeça. Contudo, o que a fez gelar não foi o casal de empregados, mas sim a presença
de Latimer, completamente recuperada, à soleira.
— Bem, nós fizemos nossa parte, Rose. Agora temos de esperar a chegada do
patrão.
— Ainda não, sra. Talbot. — Latimer não deixava de fitar Sthephanie. —
48
Ainda há os homens que vieram conosco. É melhor que cuide disso, Ralph.
Latimer esperou o casal sair, curvou-se para apanhar o chapéu e a bolsa de
Sthephanie, e seguiu-os.
Sthephanie escutou-a girar a chave na fechadura e depois ouviu os passos no
corredor. Alguns minutos depois, ouviu o barulho da carruagem que se afastava.
Concluiu que os rapazes iam embora, levando consigo qualquer esperança de
Sthephanie de escapar dali.
Tentou sentar-se, sem compreender nada. Acabou por conseguir seu objetivo e
fitou a prisão improvisada. Como na sala debaixo, a mobília era miserável e suja. Os
lençóis, pelo menos, pareciam mais ou menos limpos.
Não havia dúvida de que o rapto fora planejado, mas quem estaria por trás
disso? Decerto não era Latimer, embora ela houvesse desempenhado muito bem seu
papel. Até a mulher mencionar Bath como destino, Sthephanie não desconfiara de
nada. Como fora tola!
Irada e com desejo de vingança, lutou para retomar o controle de suas idéias
turbulentas.
Quais seriam os motivos? Monetários, lógico. Mas por quê? Se queriam
dinheiro, por que esperaram o conde ausentar-se do país? Quem pagaria o resgate?
Os captores teriam de mantê-la escondida por várias semanas, antes de receber o
maldito lucro. Não, isso não fazia sentido. Eles queriam mais do que moedas. O que
seria?
Logo escutou o barulho de um veículo leve que chegava. Depois, vozes
embaixo e passos nos degraus. Alguns minutos depois, a porta foi destrancada e
aberta, e então Sthephanie entendeu tudo.
— Minha querida! Meus empregados foram rudes demais com você. Permita
que a deixe mais à vontade.
Com um puxão, a mordaça foi arrancada. Mas Sthephanie nem ao menos se
alegrou ao ver a presunção no belo rosto que a olhava por cima. Conteve a ira e a
vontade de vingar-se e utilizou um sorriso tão falso quanto o de lady Pentecost.
— Mas se não é o honorável sr. Simon Fairfax! Eu deveria saber!
— Calma, minha querida. Não deve ser malcriada com seu futuro marido.
Isso confirmou os piores receios de Sthephanie, quando o viu. O casamento
asseguraria a Simon toda a fortuna e a certeza de que a família aceitaria o enlace
forçado, para evitar um escândalo monumental. Ele continuaria a freqüentar a
sociedade, com a reputação intacta.
Mas primeiro Simon teria de levá-la ao altar, e se o patife pensava que
Sthephanie aceitaria a imposição, pelo jeito subestimava a presa.
Simon sentou-se na beira do leito, apoiou as mãos de unhas bem-feitas uma de
cada lado de Sthephanie e encarou-a com satisfação.
— Deus! A senhora é cativante quando está desalinhada. Tive bom gosto ao
escolhê-la como minha noiva.
Sthephanie não tentou mexer-se sobre o monte de travesseiros, apesar da
proximidade do corpo suado.
— O senhor pode ter escolhido, sr. Fairfax, mas o que o faz crer que
concordarei em ser sua esposa?
49
O sorriso dele fez aumentar a animosidade que ela sentia.
— Meu anjo… Se pensar um pouco, verá que não há escolha. Simon voltou-se
para a corda que lhe amarrava os tornozelos e encontrou dificuldade em um nó.
— Estou certo de que terá a sensibilidade de não sair correndo por aquela
porta. Acredite, seria inútil. Eu a apanharia antes que pudesse chegar à escada. A
única opção seria ruína social depois de haver passado vários dias… e noites… em
minha companhia.
— E o senhor, é claro, se incumbiria de assegurar-se de que tudo seria levado
ao conhecimento público. — Sthephanie teve vontade de dar-lhe um pontapé nas
partes íntimas escondidas pelo traje bem-cuidado.
— Milady está cometendo uma injustiça. Eu jamais desceria ao ponto de
enlamear o nome de uma dama. Entretanto, não respondo pela discrição de meus
servos.
Tão bonito e tão desprezível! Sthephanie jamais gostara dele.
— E de Latimer, é claro, que está entre os que lhe oferecem devoção.
— Isso mesmo.
— Nesse caso, milorde está em débito com meu pai. Ele vem pagando seus
criados há três meses.
— Estou certo de que um cavalheiro tão íntegro não fará pressão para receber,
em virtude de eu vir a fazer parte da família, em breve.
Sthephanie virou-se, para ele desamarrar-lhe os pulsos.
— Espero que reconsidere a idéia errônea de que eu possa preferir casar-me
com o senhor à ruína social, Simon Fairfax.
— E eu tenho esperança de que a senhora aceite o fato de que não tem escolha.
— O tom cortante denunciou que o desprezo o atingira, mas a satisfação de
Sthephanie durou pouco. — Tenho comigo uma licença especial. Amanhã milady
atingirá a maioridade. Poderá casar-se sem o consentimento de seu pai. Até lá, terá de
aceitar seu destino, Sthephanie.
Simon levantou-se e foi até a janela. Ela deduziu que ele não tinha medo de
que escapasse. Evidente que um de seus servos estava a postos no hall. Mas, por ora,
Sthephanie não pretendia fugir. Pelo menos até ter a certeza do sucesso da
empreitada.
— Milady terá oportunidade de ver que não sou um marido irracional. Não
farei exigências desnecessárias, mas pretendo fazer deste um enlace de verdade.
Jamais forçarei ser aceito, e serei paciente, contanto que não me force a usar os meios
essenciais para persuadi-la a concordar com a união.
A ameaça estava implícita.
— O que quer dizer que milorde deveria ser mesmo repulsivo o suficiente para
rebaixar-se e cometer o estupro para atingir seus fins — Sthephanie murmurou,
escondendo o medo, mas não o menosprezo.
— Então eu é que não teria escolha, minha querida — declarou, com um certo
pesar.
Simon voltou até o leito e fitou-a, mas Sthephanie não ergueu a cabeça,
embora soubesse que teria de fazer isso pelo resto da vida. A menos que conseguisse
escapar daquela armadilha!
50
Se ao menos tivesse escutado o irmão e vindo com uma das carruagens da
família, acompanhada pelos servos leais e confiáveis! Se houvesse aceitado a oferta
de Richard para escoltá-la até Bath!
Mas não, pois queria provar a todos que sabia resolver qualquer situação,
inclusive tomar conta de si mesma. E até onde a levara a teimosia do orgulho!
Estremeceu. Não era hora de recriminar-se. Teria até o dia seguinte para
encontrar uma maneira de sair de tamanha embrulhada. Não mais do que isso.
Portanto, precisaria ser esperta e infundir em Simon um senso falso de segurança.
Teria de fazê-lo acreditar que estava começando a aceitar seu plano. Assim, esforçou-
se para fitá-lo.
— Parece que milorde está com todas as cartas na mão, mas não deve esperar
que eu me entusiasme com o que a vida reservou para mim. Não é nada lisonjeiro
saber que o senhor se interessa apenas pela minha riqueza.
—- Minha querida, não se desmereça. Há muitas herdeiras disponíveis no
momento, algumas até mais belas do que você. Mas seu quê especial a torna diferente
de todas. Graça, postura e encanto… chame isso como quiser. Eu já a vinha
admirando há tempos, até entender que tinha pouca consideração para comigo.
Contudo, não perdi o sono por causa disso, por saber que milady tinha a mesma
opinião sobre outros tantos. Nesses anos todos, desde que a conheci, nunca a vi
mostrar preferência por nenhum cavalheiro da sociedade.
A imagem de Thomas Carrington surgiu diante de Sthephanie, e a voz grave
que a advertira repercutiu em seus ouvidos. Como desejava ter aceitado as suas
reprimendas quanto a viajar sozinha!
Fairfax percebeu a expressão triste.
— Parece que estou errado… Existe alguém. Deus do céu! Será que terminarei
trespassado pela espada de algum rapaz enciumado durante a cerimônia?
— Não, não será. — Sthephanie ergueu-se, e ele não a impediu. — Milorde
quer fazer o favor de deixar-me sozinha? Como deve entender, preciso chegar a um
acordo com o que me foi destinado.
— Claro, meu bem. Mas primeiro quero pedir-lhe que escreva uma carta
desistindo da carruagem alugada. Eu irei até Calne, pegarei suas malas e efetuarei o
pagamento.
Sabendo que não adiantaria protestar, Sthephanie sentou-se à mesa, onde se
encontrava papel e pena, e escreveu o que Simon ditou.
— Obrigado, milady. Fico feliz por ter-se decidido a colaborar. Isso torna as
coisas mais agradáveis, não é mesmo? — Guardou a missiva no bolso e foi até a
saída. — Sinto deixá-la nesta residência deplorável. Sei que não está acostumada,
mas será só por uns dias. Herdei a casa de um parente distante e trouxe os Talbot para
cá, quando armei o estratagema. A sra. Talbot é relaxada, mas faz uma boa comida.
Jantaremos quando eu voltar.
Sthephanie esperou-o sair, foi até a janela e descobriu que a mesma estava
lacrada. O aposento situava-se nos fundos da construção. Embaixo, havia um jardim
malcui-dado, cheio de ervas daninhas, e duas ameixeiras sem frutos. Para além das
grades, uma planície de campos sem fim com raros arvoredos.
Perto do muro, via-se um pequeno alpendre que só poderia ser alcançado do
51
quarto próximo. Se Sthephanie conseguisse alcançar o telhado de meia-água, poderia
chegar ao chão?
O som da chave na fechadura interrompeu-lhe as conjecturas. Ao ver Rose
Latimer, seu olhar cintilou hostilidade, só em pensar em como fora enganada!
Caíra na armadilha como uma menina ingênua e tola. Por que não a despedira
várias semanas antes? Desde o começo não a apreciara. Que isso lhe servisse de
lição. Dali para a frente, escolheria seus próprios criados.
— Lorde Simon disse para eu trazer-lhe isto. O jantar vai demorar, e ele achou
que a senhora poderia estar com fome.
Latimer colocou a bandeja com uma tigela de caldo fumegante sobre a mesa,
ao lado do material de escrita, e não pôde deixar de perceber a expressão pouco
amigável da antiga patroa. Paciência. Ela nem mais se considerava uma serva, e só
aceitara ficar ali até a ida para Paris, onde seria recompensada pela ajuda a Simon, e
então um novo ciclo se iniciaria.
— Milorde foi a Calne buscar seus pertences. Decerto a senhora irá querer
trocar de roupa para a refeição. Se for preciso, eu a ajudarei.
“Essa era boa!”
— Pode estar certa de que não precisarei mais de seus serviços, Latimer, de
agora em diante. Mas, antes que vá embora, quero que me diga uma coisa. Fui uma
patroa má? Eu a tratei tão mal que foi levada a esse tipo de vingança?
Rose baixou as pálpebras e fitou o tapete gasto. Já experimentara o remorso
por ter ajudado no rapto da filha do conde. Mas o que lhe reservaria o futuro, se
recusasse auxílio a Simon?
Aos dezesseis anos, quando fora trabalhar com a família Fairfax, acreditou que
o amava. Àquela altura, mais velha e mais inteligente, sabia que Simon jamais se
casaria com ela. Os excessos do pai arruinaram os Fairfax, e Rose não culpava Simon
por temer o que viria pela frente. Latimer aceitara a oportunidade oferecida por ele de
livrar-se de uma vida de servidão.
Seu trabalho consistira em informar Simon dos movimentos de lady
Sthephanie, para que ele pudesse pôr o plano em ação no momento adequado. A
consciência não a atormentara. Lady Sthephanie era uma mulher adorável, e Rose
não duvidou, nem por um instante, de que Simon a desejasse. Afinal, a filha do conde
de Eastbury teria de se casar um dia, e o honorável Simon Fairfax era uma boa opção.
Bonito e charmoso, embora não se pudesse imaginá-lo como o protótipo do marido
fiel, não era tampouco um modelo cruel.
Por isso tudo, achando que não fizera nenhum mal a lady Sthephanie
Beresford, Rose mostrava-se tranqüila, mesmo depois de haver mantido um
interlúdio amoroso com Simon no baile dos Pentecost e dele ter recebido instruções.
Mais tarde, quando ela e a senhora voltavam a Knightley Hall, Rose
experimentara o sentimento de culpa.
A menos que estivesse muito enganada, lady Sthephanie estava a ponto de
apaixonar-se, embora nem ela mesma soubesse disso. Lera isso no olhar da patroa,
quando o médico voltara para dentro da mansão Pentecost. E fora exatamente a
mesma expressão que vira no rosto do dr. Carrington.
Mas, sem dúvida, seria um amor destinado ao fracasso. Lady Sthephanie era
52
refinada, elegante, fidalga, e poderia escolher um marido de alta classe. O dr.
Carrington não passava de um médico obscuro do interior. Não era pobre, mas não
podia competir com a riqueza dela.
Simon Fairfax era muito mais conveniente para lady Sthephanie, e Latimer
convencera-se de que fizera um grande favor a sua lady.
— Ninguém, milady, poderia acusá-la de não ser uma excelente empregadora
— Rose afirmou, com sinceridade.
Na verdade, era impossível deixar de admirar e gostar de uma jovem tão
bondosa e que tratava a todos, ricos ou pobres, com igual gentileza.
— Mas eu sempre quis melhorar de vida, e Simon ofereceu-me a chance de
fazer meu sonho de tornar-me milionária uma realidade.
“Com meu dinheiro”, Sthephanie concluiu, embora se permitisse admirar a
ambição da jovem.
— E quando começará essa ventura?
— Depois… da cerimônia. Simon prometeu que eu a acompanharia a Paris e
ali faria o que quisesse. Ele afirmou que os franceses lideram o campo da moda.
O que pretendia Simon Fairfax? Claro que o relacionamento entre eles ia além
daquele do de patrão e empregada. Rose pronunciava o nome dele como se fosse uma
bênção e via-se que se devotava a ele por inteiro.
Simon devia saber que havia poucas possibilidades de a moça alcançar sucesso
em Paris. Sthephanie deduziu que Rose devia ser uma ótima amante e que Simon não
dispensaria os serviços dela. Seria o momento de semear uma dúvida no íntimo da
jovem?
— Ele falou uma verdade, Latimer. Os franceses são muito refinados, mas não
gostam de ingleses. Recebem-nos de braços abertos quando vamos gastar lá nosso
dinheiro. Mas outra coisa é esquecer os muitos anos de guerra entre os dois países e
prestigiar um negócio dirigido por uma inglesa. Ainda mais porque eles têm ótimas
modistas. Acredite, o sr. Fairfax não lhe fará favor nenhum em ajudá-la a estabelecer
um negócio em Paris. O sucesso, nesse caso, será bastante remoto. Seria muito
melhor que ficasse aqui, em uma de nossas cidades que se desenvolvem nos
condados centrais ou do Norte.
— A senhora não gosta de lorde Simon, não é, milady?
— Não é de se surpreender, em vista do que ele planeja para mim. Eu esperava
não casar-me jamais com um homem a quem não amasse e respeitasse, mas parece
que os céus me reservaram outra coisa. Não, eu não gosto dele e, depois do que fez,
jamais poderia confiar em Simon. E você seria uma tola se o fizesse. Se quer meu
conselho, não o perca de vista até que lhe entregue a recompensa prometida por seus
inestimáveis serviços. Sem sua ajuda, Simon não teria completado o plano
desprezível.
— Sei disso… Milady deve odiar a terra onde piso. Espero que a senhora possa
perdoar-me algum dia.
Por mais estranho que pudesse parecer, Sthephanie tinha pena da moça, e nem
a recriminava. Apenas se melindrava com os meios que a criada usara para chegar
aos fins.
— Não a odeio, Rose. Só gostaria… que pudéssemos termos nos conhecido
53
melhor. Eu já tinha decidido que seria vantagem encontrar um novo lugar para você.
Desde o começo senti um forte ressentimento de sua parte.
— Mas não era contra a senhora.
— Fico contente por isso. Se eu soubesse de suas ambições, a teria ajudado a
embarcar nessa sua nova carreira. Mas oferecer-lhe meus préstimos agora seria
subestimar sua inteligência. Contudo, não lhe desejo mal em seus projetos, embora
não possa me alegrar com sua sorte. Suas esperanças para o futuro serão
concretizadas em detrimento do meu.
Latimer não respondeu, e saiu do quarto.
Sthephahie teria de esperar o anoitecer, o que se mostrava uma tarefa difícil.
Será que a escuridão poderia trazer-lhe algum benefício? Teria de alcançar uma
habitação, onde alguém pudesse ajudá-la. Mas não conhecia a região, e ficaria
andando em círculos, arriscando-se a ser recapturada.
Para começar a pôr em prática uma estratégia, teria de, primeiro, sair daquele
aposento.
Foi até a porta. Por sorte, Simon não reformara a casa. A madeira estava
comida por cupins e a fechadura cederia com facilidade, se tivesse alguma
ferramenta. Uma faca! Poderia consegui-la durante o jantar. Quando todos estivessem
dormindo, realizaria seu intento. Era uma pequena chance, senão a única.
Examinou a fechadura para avaliar as possibilidades e teve uma surpresa. Ao
colocar a mão na maçaneta, a porta abriu-se.
Teria Latimer esquecido de trancar ou fora proposital? Ah, não havia tempo de
pensar nisso…
Espiou o corredor. Deserto. Poderia haver alguém de guarda no hall. Fechou a
porta e foi, pé ante pé, até o outro quarto. Era maior e, pelas roupas finas em cima da
cama, suspeitou que o local estivesse sendo usado por Fairfax.
A janela rangeu, mas abriu-se com facilidade. Como Sthephanie suspeitava,
dava acesso fácil ao telhado em de-clive. Escalou o parapeito e pôs os pés nas telhas,
mas não havia como segurar-se. Não se amedrontou, porém. Escorregou até a beirada
podre e, apesar do tornozelo que ainda a incomodava, e munida de coragem, pulou
sobre o que outrora deveria ter sido um gramado.
Alcançou a grade raquítica, esquecida da dor. Esgueirou-se pela laterais dos
campos, rezando para a cerca viva esconder sua fuga. Correu como pôde e só parou
quando alcançou o arvoredo, sempre olhando por sobre o ombro, para ver se não
estava sendo seguida.
Graças a Deus não percebeu vivalma! Ninguém devia ter voltado a seu quarto
e dado por sua falta. Mas isso não demoraria a acontecer. Simon levaria pouco mais
de uma hora para chegar a Calne e retornar.
Sthephanie calculou que ele já deveria estar voltando. Podia contar com uma
meia hora, não mais.
Simon começaria por procurar nos caminhos próximos à residência, o que
daria a ela alguma folga, pois dificilmente ele cruzaria os campos cerrados com sua
carruagem. Mas poderia ter cavalos no estábulo. E quantos criados teria trazido? Ela
só vira um, Ralph Talbot, mas decerto devia haver outros.
Calculou que precisava afastar-se de qualquer estrada quanto pudesse. Se
54
continuasse sempre na mesma direção, com sorte encontraria uma aldeia onde pedir
ajuda. Simon não imaginaria que ela pudesse ir tão longe a pé.
Deixou a proteção relativa das árvores e apressou-se, ignorando as nuvens
ameaçadoras a oeste. Nem queria imaginar o que aconteceria se Simon a encontrasse.
Não temia que ele fosse chegar a extremos de força, mas sem dúvida a vigiaria com
mais rigor, e Sthephanie não teria alternativa, nesse caso, a não ser aceitá-lo por
marido. Não deixaria isso acontecer!
Parou um momento para descansar e olhou ao redor. Não sabia onde se
encontrava, mas as terras planas e aráveis tinham dado lugar a pastagens com
elevações suaves, onde ovelhas preocupavam-se em comer, ser dar-lhe a mínima
atenção. No horizonte, viam-se densas áreas de florestas.
Por quanto tempo poderia continuar andando? Estava cansada e, se não
quisesse dormir ao relento, teria de arriscar-se até uma estrada e achar um abrigo.
Já fora forçada a atravessar vias secundárias, meras trilhas usadas por
fazendeiros para chegar a seus campos. Com medo, andou por uma delas até
encontrar uma passagem na sebe, e chegou a uma estrada mais larga do que as até ali
enfrentadas. Por ela, conseguiria chegar a uma aldeia ou cidade. Para a direita ou para
a esquerda?
Nisso, ouviu o trotar de um cavalo. Escondeu-se de imediato atrás da cerca
viva. Seria Simon ou Talbot?
Arriscou uma espiada para o caminho. O cavaleiro solitário fez a curva e…
Oh, não podia ser! Não acreditava no que via!
Com a vista toldada pelas lágrimas, Sthephanie saiu do esconderijo, agitando
as mãos e gritando. Quase tropeçou, na aflição de alcançar a abençoada proteção ao
lado do cavaleiro.

Era dia de mercado em Devizes, e a cidade fervilhava de gente. As ruas


principais estavam cheias de diferentes tipos de carroças, carruagens e animais.
Pessoas vendiam e compravam, ou apenas observavam.
Thomas acordou cedo com o barulho e desistiu de voltar a dormir. Encostou-se
na janela do quarto e fitou a rua, onde pessoas começavam a acotovelar-se.
Os dias de mercado eram importantes para a gente da cidade e redondezas. Era
quando tinham esperanças de ter uma recompensa financeira para os trabalhos
pesados que enfrentavam. Mas também eram dias de festa. Amigos que não se viam
fazia tempo reuniam-se para contar histórias e mexericos.
As lojas e tavernas tinham muito movimento. Antes de Thomas terminar o
desjejum, a estalagem onde estava hospedado encheu-se de homens, muitos dos quais
despertos desde o amanhecer, querendo matar a sede.
Thomas passou horas visitando os arredores e examinado as mercadorias à
venda nas inúmeras tendas. Havia muito para ser visto e que lhe interessava. De
quando em quando, uma jovem de cabelos avermelhados ou outra vestida com mais
apuro despertavam-lhe a memória pungente. E a tristeza aumentava. Na hora de sair
para jantar com sir William Denton, seu entusiasmo era diminuto.
— O cavalo está encilhado e a sua espera, sir — a mulher do estalajadeiro
avisou, quando ele desceu a escada e entrou na sala do café.
55
— Obrigado, sra. Pegg. Espero não me demorar muito. A senhora e seu marido
tiveram um dia estafante.
— Não se preocupe com isso, dr. Carrington. Costumamos ficar abertos até
tarde, em dias de feira. Sempre há aqueles que não sabem a hora de parar com as
comemorações. O tempo piorou na última hora, mas não acho que vai chover. Mas se
a borrasca despencar e o senhor quiser dormir na casa de sir William, eu entenderei.
Embora a bela residência de campo de sir William Denton ficasse situada a
oito quilômetros de Devizes, ele era uma figura muito conhecida na cidade, e sua
hospitalidade era famosa.
Sir William tinha três filhas solteiras e sem o menor atrativo físico. Assim, a
sra. Pegg achou que o eminente cirurgião não deixaria o jovem cavaleiro ir embora
tão cedo.
— Se o senhor não voltar até depois de amanhã, eu alugarei o quarto.
Thomas nem refletiu sobre a hipótese improvável. Foi até a estrebaria e
montou no cavalo alugado. Seguiu as instruções da hospedeira e rumou para o leste.
A estrada principal estava cheia de gente, que vinha com os braços carregados
e, decerto, com os bolsos vazios.
Carrington virou na rodovia mais estreita. Pegg assegurara que essa o levaria
direto até a casa de sir William.
Quase sozinho na estrada, Thomas voltou a pensar na prima de Elizabeth.
Não conseguia evitar a atração que sentia por ela. Achou que tinha feito a coisa
certa ao não tentar vê-la de novo antes de deixar Hampshire, na manhã seguinte ao
baile dos Pentecost. Mas seu coração dizia-lhe o contrário. Pela primeira vez na vida,
entendeu que estava apaixonado.
Se não fosse tão doloroso, Thomas teria rido daquele absurdo. O sensato e
equilibrado dr. Carrington, cuja dedicação e maneiras corretas haviam conquistado o
respeito da comunidade de Hampshire, caíra vítima da flechada de Cupido. E levaria
muito tempo para a ferida sarar, se é que algum dia isso iria acontecer.
Contudo, tinha de prosseguir com seu destino, e ele se atiraria ao trabalho com
vigor renovado. Seria o melhor remédio. Sentia pena de si mesmo por desejar o que
não podia ter. Não adiantava iludir-se. Essa tristeza não o deixaria. Qualquer
semelhança acionava a memória agridoce. Ao contornar a curva, o destino
encarregou-se de confirmar essa convicção. Uma jovem mulher de cabelos castanho-
avermelhados revoltos e caídos sobre os ombros surgiu do nada. Thomas cerrou as
pálpebras, para afastar a miragem. Uma voz clara, muito amada e que o chamava,
forçou-o a erguê-la.
— Deus do céu! — Recusou-se a acreditar no que via a seu lado. — Estou
sonhando ou é a senhora mesma?
— Claro que sou eu! — Sthephanie ergueu o braço, e ele foi obrigado a ajudá-
la a montar. Sentou-a a sua frente, ainda confuso. — Seria demais perguntar o que
milady está fazendo neste lugar e… ainda mais sozinha?
— Thomas, acreditaria se eu lhe dissesse que fui raptada? Um descaramento!
Com a mais desejável das mulheres sentada em seu colo, ele ficou ainda mais
perturbado.
— Mas por quem, em nome de Deus?!
56
— Simon Fairfax. Oh, por favor, vamos embora daqui! O miserável deve estar
a minha procura.
Ela mal terminava de falar, quando ouviram o ruído de uma carruagem.
Minutos depois um veículo leve veio balançando na direção deles.
— Thomas, é ele! Vamos! Voltemos ao campo, onde Simon não poderá seguir-
nos.
— Não! Não vou sair correndo. Eu o enfrentarei… Ei, o que há, minha jovem?
Sem vontade de discutir, Sthephanie tomou o assunto, ou melhor, as rédeas nas
mãos e incitou o cavalo a cruzar a passagem da sebe.
Uma vez no campo, ela foi até a floresta do outro lado. Escutou um tiro, e
mesmo assim, não se deteve. Só diminuiu a marcha ao chegar à trilha no meio da
mata cerrada.
—Aqui eles não poderão seguir-nos — ela afirmou, satisfeita.
Foi quando Sthephanie virou a cabeça e viu. O sangue vertia de uma ferida na
coxa esquerda de Thomas.
— Céus! O senhor está ferido!
— Está tudo bem — Thomas mentiu. — É apenas um arranhão. Se eu puser as
mãos no vilão que usou a pistola…
— Foi Simon?
— Não. O patife que vinha ao lado dele.
— Deve ser o criado, Ralph Talbot.
Sthephanie viu-o tirar um lenço e amarrá-lo na perna. Pela mancha que
aumentava no calção, deduziu que a ferida não era tão pequena como Thomas queria
fazer crer.
Continuou a marcha em linha reta na floresta que parecia não ter fim. A
escuridão era sinistra. A chuva começou a cair, leve a princípio e torrencial a seguir.
Como se não bastasse, uma ferradura quebrou-se.
Sthephanie recusava-se a dar-se por vencida. Tinha de agradecer ao Senhor por
ter escapado das garras de Fairfax. Além do mais, estava em companhia de Thomas.
Preocupado, ele não participava desse otimismo. Sabia que Sthephanie, já
bastante cansada, teria de ficar no comando do animal. No caso de os raptores
reiniciarem o ataque, era imprescindível que ele conservasse as forças. Mas,
perdendo sangue naquela proporção, por quanto tempo se manteria consciente? Não
muito, com certeza.
A sorte pareceu voltar. Avistaram uma grande clareira, uma cabana e vários
anexos. Pelo menos, um abrigo contra a tempestade e, quem sabe, uma ajuda.
Ninguém apareceu à porta, apesar das batidas insistentes de Sthephanie. Com
muito esforço e gemendo, Thomas desmontou. Nenhum sinal de vida, mesmo depois
de seu grito.
— Tente a porta.
Embora temendo que fosse um esconderijo de assaltantes, Sthephanie
obedeceu, por causa das condições de Thomas, e ergueu a tranca. Adentraram uma
cozinha ampla e limpa, com mesa e bancos de madeira. Thomas atirou-se sobre um
de espaldar alto e arca sob o assento.
Ele relanceou o olhar pelo recinto, enquanto Sthephanie fechava a porta.
57
— Se não se importa, acho que vou precisar de milady para tirar as botas e os
calções.
Sthephanie percebeu-lhe a careta de dor ao descalçar a bota esquerda e corou
muito quando fez o mesmo com os calções.
Horror ou fascinação? Jamais vira um homem desnudo, e a masculinidade a
atordoou. Thomas divertiu-se ao constatar o fato, mas resistiu à vontade de provocá-
la e pediu uma tigela com água.
Thomas examinou a ferida, após a limpeza do sangue. Não era grave, mas o
local impedia o acesso para remover a bala. Sem dizer nada, Sthephanie abriu
armários e gavetas, à procura de alguma coisa para executar, ela mesma, a inevitável
tarefa.
A remoção do projétil, difícil e dolorosa para ambos, foi completada com
sucesso em relativo pouco tempo. Thomas, exausto, observou-a enfaixar-lhe a perna
com tiras de um lençol. Depois, Sthephanie ajudou-o a ir até o quarto ao lado.
Sthephanie tirou a camisa molhada de Thomas e o fez deitar-se na cama ampla
e confortável. Foi para a cozinha e procurou na despensa um paliativo para a dor.
Voltou com uma dose generosa de conhaque em um copo.
Thomas bebeu o líquido ambarino de um só gole. A bebida logo fez efeito, e
ele não tardou a adormecer.
Quando acordou, havia apenas uma réstia de luz debaixo da porta. O pânico
tomou conta dele.
Sthephanie não demorou a entrar, assustada com o berro de Thomas.
— Então já está acordado, hein? — Ela acendeu algumas velas. — Esperava
que o doutor dormisse até de manhã.
— Sua tolinha! Não deveria ter-me deixado adormecer. O que faria se o
canalha de Fairfax viesse até aqui?
— Estava preparada. — Com calma enervante, ela sentou-se na beira da cama.
— Mas, como pode ver, ele não veio. E também, nenhuma outra pessoa. Não sei por
quê, tenho a impressão de que aconteceu alguma coisa com o dono desta casa. Sei
que o povo da zona rural costuma deixar as portas destrancadas, mas não quando
pretendem ausentar-se por muito tempo. Quem mora aqui deve ser
um lenhador e por certo não deve estar trabalhando até esta hora da noite. São
quase dez! E a esposa, onde estará?
— O que a faz pensar que há uma?
— Pelo amor de Deus, dê uma olhada! O lugar está muito limpo! Não quero
dizer que os homens não sabem limpar, mas são raros os que se lembram disso. E
veja só isso. — Apontou um vaso com flores silvestres na mesa-de-cabeceira.
— E, acho que tem razão.
— Creio que eles pretendiam voltar logo. Ninguém deixa galinhas e patos
soltos à noite, para serem apanhados pelas raposas. Além disso, a sopa está
preparada, pronta para o jantar. Vou trazer-lhe uma tigela. Eu já tomei. Está deliciosa.
Sthephanie voltou e pôs no colo de Thomas, que já estava sentado, uma
bandeja com o caldo e uma grande fatia de pão duro.
Depois de saciada a fome, ele pediu detalhes do que acontecera, desde que ela
deixara Knightley Hall.
58
— É no que dá viajar desprotegida, minha jovem! — ele disse, após ouvir a
história. — Milady é bela demais para andar por aí sozinha. É uma pena que o
cérebro não acompanhe a aparência! Graças ao bom Deus que sua criada se esqueceu
de trancar a porta.
— Não sei, não… — Sthephanie não pareceu incomodar-se com a reprimenda.
— Acho que ela o fez de propósito, depois da conversa que tivemos. Alguma coisa
do que eu disse deve ter-lhe doído na consciência. Ou talvez tenha se convencido de
que Fairfax é um crápula não confiável. Latimer gosta dele, mas não é burra nem
cega.
— Fairfax deve ter planejado o rapto há tempos.
— Com certeza. Nossas mães são amigas faz anos. Minha mãe deve ter dito a
lady Fairfax que eu estava procurando uma nova criada. Simon deve ter-se apressado
a sugerir Latimer para o posto. Aí, foi só dar prosseguimento aos planos.
— Presumo que, para evitar um escândalo, milady não queira informar as
autoridades… Ah, mas seu eu puser as mãos nele…
— Devo confessar que me aborrece imaginar que Simon sairá impune, mas
não há muito o que eu possa fazer. Não quero causar problemas para minha família.
Além do mais, como o senhor mesmo disse, só posso culpar a mim mesma. Se não
fosse a procura de um pouco de independência para soltar as amarras que me
confinavam desde o berço, nada disso teria acontecido. Pode acreditar, doutor, ser
uma herdeira nem sempre é agradável.
Aquela afirmação o fez crer que deveria ter imaginado tudo. Desde que a
conhecera, Sthephanie provara ser uma pessoa bondosa, sensata e que se preocupava
com os semelhantes. Perry e Ben estavam ali para comprovar.
A maioria da mulheres, independente da classe social, não teria suportado com
tanta bravura um dia como aquele. Sthephanie era, sem a menor sombra de dúvida,
uma jovem excepcional, possuidora de muitos talentos escondidos em virtude das
restrições de sua posição social elevada.
Thomas quase podia entender a necessidade de aspirar a um pouco de
liberdade, mas não lhe diria isso, para evitar riscos futuros.
— Dessa vez, não ocorreram danos maiores. Porém o perigo ainda não passou.
Pode ter escapado das garras de Fairfax, mas está nas minhas… Um destino pior,
minha cara, posso assegurar-lhe.
Ela gargalhou.
— Oh, não, dr. Carrington, o senhor não me assusta. Sei que estou segura a seu
lado. Embora não seja um nobre como Fairfax… possui a honradez de um cavalheiro.
Aliás, o que o senhor é, na realidade.
— Mas não a ponto de ceder a cama para a senhora, por exemplo.
— Nestas circunstâncias, nem esperaria isso. Contento-me com a cadeira
confortável da cozinha. — Sthephanie assoprou todas as velas, menos a da mesa-de-
cabeceira. — Estou cansada. Uma boa noite, doutor. Eu o verei pela manhã, com um
belo desjejum a sua espera.
Thomas ficou olhando Sthephanie sair do quarto.
— Não duvido que fará isso — ele falou sozinho. — Milady superou minhas
expectativas… Só espero ter força de caráter suficiente para corresponder as suas.
59
Thomas acordou na manhã seguinte ao som de uma voz maviosa. Que mulher
extraordinária! Tudo nela era fora do comum. Até mesmo o otimismo resignado com
que aceitava a situação inevitável.
O aroma de pão assado era delicioso, e o fez lembrar-se de que sentia fome.
Suas roupas estavam secas e passadas, sobre o espaldar da cadeira. Nunca imaginara
que uma dama da nobreza e com mil servos a sua volta, exceto Elizabeth, fosse capaz
de executar tarefas tão banais.
Talvez tivesse de aprender mais sobre a aristocracia, conjeturou, ao tentar
apoiar a perna esquerda no chão.
Vestiu as roupas. Abriu a porta do quarto e viu Sthephanie curvada sobre o
fogão. De avental e mangas arregaçadas, mostrava os braços salpicados de farinha.
Cantarolava, e estava tão à vontade que se tornava difícil acreditar que a preparação
do desjejum não fosse para ela uma tarefa rotineira e agradável.
Sthephanie sentiu-se observada e virou-se. O sorriso em sua boca deliciosa foi
espontâneo e irresistível.
— Estou feliz por vê-lo em pé, mas não será arriscado abusar de sua perna?
— Não tenho intenção de exagerar. Porém, se continuasse inativo naquele leito
confortável, daqui a pouco eu viraria um urso.
— Como de costume, não é?
— Bobagem! — murmurou, bem humorado. — Sou tão intratável assim?
- Eu não diria o contrário — afirmou, com franqueza.
Thomas teve de admitir que fora injusto com Sthephanie. Talvez fosse um
mecanismo de autodefesa disparado pela sabedoria inata do homem, ao deparar-se
com uma mulher que poderia representar uma ameaça a sua existência tranqüila de
solteiro. E sua armadura se mostrara inútil contra aqueles maravilhosos encantos:
beleza unida à inteligência.
Teria de conter-se. Estavam a sós. Não lhe causaria mais problemas.
Sthephanie precisava de seu apoio e, pelo que pudera inferir, confiava nele sem
reservas. E Thomas não estava certo de poder corresponder-lhe as expectativas.
Afinal, era apenas humano, e ela, uma jovem adorável e gloriosa, muitíssimo
feminina e desejável.
Quando Sthephanie veio ter com ele à mesa, Thomas precisou de toda a fleuma
para não tomá-la nos braços e sujeitá-la a uma demonstração de paixão viril. Em vez
disso, pediu-lhe para contar sobre seus dias em Kent.
Embora não pretendesse conversar, logo estava absorto no relato. Concluiu que
Sthephanie desfrutara até certo ponto de uma infância feliz, porém muitas vezes
solitária, e por essa razão procurava a companhia dos servos. Talvez por esse motivo
soubesse como falar com as pessoas de classe social inferior.
— Suas visitas à cozinha, pelo jeito, foram proveitosas — ele comentou,
servindo-se de mais ovos e do terceiro e delicioso pãozinho.
O cumprimento foi recebido com um sorriso de gratidão.
— Hoje em dia temos um cozinheiro francês que não admite a invasão de seus
domínios. Mas antes, a sra. Blagdon reinava absoluta na cozinha. Era uma boa alma,
e ensinou-me muitas coisas sobre a arte de preparar os alimentos. Eu nunca me
aborrecia quando conseguia escapar da governanta e ia esconder-me atrás de suas
60
saias.
— Seus irmãos eram mais velhos?
— Sim. Minha mãe teve quatro filhos em seguida. Depois, esperou dez anos
até eu nascer. Minha irmã Cristina é a mais nova dos quatro. Gosto muito deles,
mas…
— …se ressente por continuarem a tratá-la como a criança — ele deduziu,
perspicaz. — Isso chega a ser cansativo, não é mesmo?
— Nem diga!
Na verdade, Sthephanie não gostaria de experimentar tais sentimentos pela
superproteção de sua família. Afinal, tratava-se de uma atitude normal, embora
sufocante.
Ali, naquela cabana, o fato de realizar suas próprias tarefas mostrava-se um
refrigério, e ela estava adorando a experiência, embora sentisse remorsos por
Thomas. Era a responsável por seu ferimento, e, sem querer, forçara-o a assumir o
papel de protetor. O que, por mais estranho que pudesse parecer, não a desagradava.
Muito pelo contrário. E receou que ele pudesse ler-lhe os pensamentos.
— Bem, já falamos muito sobre mim. Agora, conte-me sobre o senhor.
Pelo sorriso zombeteiro de Thomas, Sthephanie deduziu que ele descobrira o
porquê da mudança de assunto.
Elizabeth já lhe contara alguma coisa. Ainda menino, ele perdera os pais. A
avó de Elizabeth, por quem Thomas tinha grande admiração e respeito, o criara. O pai
fora farmacêutico. A mãe, membro da pequena burguesia rural, viera para o
casamento com um dote suficiente para permitir que o jovem marido comprasse o
primeiro negócio no centro de Bristol.
Depois da morte da mãe, Thomas passou a manter contato apenas com a
família dela. Sthephanie perguntou-lhe se o pai era filho único.
— Era, e meus avós paternos morreram antes de eu nascer.
— Seu avô também era farmacêutico?
— Não. Foi um clérigo. Primeiro, morou em Norfolk e depois em
Gloucestershire. Achei que Elizabeth houvesse lhe contado.
— Sobre o quê?
— Meus avós paternos.
Pela expressão de surpresa, Thomas entendeu que Elizabeth nada revelara.
Embora não costumasse tocar no assunto, por algum motivo inexplicável sentiu
vontade de relatar-lhe os acontecimentos ocorridos fazia mais de meio século.
— Meu avô, Percival Carrington, descendia das classes profissionais. Era um
homem inteligente e resolveu fazer carreira na Igreja. Foi-lhe oferecida uma grande
propriedade em Norfolk. Vovô apaixonou-se pela filha mais velha de seu benfeitor, e
eles se casaram, contra a vontade do pai dela, que deserdou-a e vingou-se de meu avô
entregando a moradia dele para outrem. Minha avó não teve mais contado com a
família dela. Morreu cedo, depois de dar à luz meu pai. Para ela, acostumada ao luxo,
a pobreza deve ter sido terrível.
— Qual o nome de solteira de sua mãe?
— Davenham.
— Meus Deus! Não é para admirar que o senhor nunca tivesse tocado no
61
assunto. Eu também não sairia contando para o mundo se tivesse algum parentesco
com o marquês de Fencham. O atual é o indivíduo mais presunçoso e detestável que
conheço, e sua mulher não lhe fica atrás em nada. Pode ter certeza, dr. Thomas, que
jamais falarei a ninguém sobre seu parentesco.
Ele soltou uma gargalhada. Sthephanie entendera que Thomas é quem
desprezava a família nobre, e não o contrário. Se alguma vez sentira amargura pela
completa indiferença dos familiares aristocráticos, decerto naquela hora isso perdia o
sentido.
— As vezes você me assombra, Sthephanie! Nenhum dos dois notou, mas
tratavam-se com a familiaridade só permitida a pessoas muito íntimas.
— Perdão se fui rude, Thomas, mas é que não gosto daquela gente.
— Não se desculpe, minha querida. Você é como um sopro de ar fresco.
Sentindo o perigo de romper a vontade férrea e tomá-la nos braços, Thomas
seguiu-lhe o exemplo de instantes antes e mudou de assunto:
— Devo dizer-lhe que este lugar é um tanto suntuoso para moradia de um
lenhador. E a mobília, mesmo não sendo em estilo Chippendale ou Hepplewhite, é
muito bem-feita.
— Ah, sim! Eu até ia comentar sobre isso. — Sthephanie tornou a encher a
xícara dele com café, antes de servir-se.
— Hoje cedo, antes de soltar os patos e as galinhas, dei uma olhada ao redor.
Atrás do galinheiro há uma grande construção lotada de coisas que vão de berços até
brinquedos, cadeiras, bancos e mesas. Tudo o que se possa imaginar. O dono daqui
não é um lenhador, mas sim um carpinteiro. E dos bons. Entretanto, onde ele se
esconde permanece um mistério.
Thomas ergueu os ombros largos. Não que isso lhe fosse indiferente, mas já
tinha preocupações bastantes para nelas acrescentar um marceneiro errante.
— Mais cedo ou mais tarde nosso benfeitor voltará.
— Espero que esteja certo. Andei pelo bosque hoje de manhã e…
— Você fez o quê?! Com todas as tolices que já cometeu! Se não é demais
perguntar, o que teria feito se houvesse encontrado Simon Fairfax?
Sthephanie não se abalou. Bebeu mais um gole, antes de defender-se.
— Não sou tão idiota a ponto de andar por aí desarmada.
— Apontou o aparador galés, onde estava uma pistola usada pelos soldados de
cavalaria. — Pode ser uma lembrança da guerra. Sabe-se lá onde nosso anfitrião a
obteve. E está em ordem. Ontem à noite eu a limpei e carreguei. E fiz o mesmo com o
rifle que está ali no canto.
A ira converteu-se em uma mistura de espanto e admiração relutante.
— Quer fazer-me supor que é capaz de manejá-los?
— Evidente. Esqueceu-se de que tive uma juventude desperdiçada? Meu irmão
sempre me levava para caçar com ele e ainda faz isso. Meu pai orgulha-se de ter pelo
menos uma filha que não ignora o manejo de armas de fogo.
Bebeu mais um pouco.
— Sinto muito se o choquei, Thomas. Entendo que está empenhado em salvar
vidas. Pode acreditar, eu não atiraria em ninguém por vontade própria. Nem mesmo
no abominável Simon Fairfax. Mas, se o encontrasse na mata, não teria hesitado em
62
enfrentá-lo. No entanto, em nenhum momento pensei que isso pudesse acontecer.
Simon pode ser um velhaco miserável, mas não é bobo. Já foi embora com meu
dinheiro, toda minha roupa e minha caixa de jóias. O que me lembra uma coisa…
Sthephanie procurou no bolso do avental manchado e tirou um pequeno
broche, um requintado círculo de pérolas montado em prata.
— Achei isto ao lado do banco, esta manhã, quando varria o chão. Parece
antigo e valioso. O que me leva a crer que nossos anfitriões não são gente que passa
necessidade.
— Bem, na verdade isso é meu. Pertenceu a minha avó, uma relíquia de seu
passado de abundância. A pobrezinha teve de vender a maioria das jóias, mas por
algum motivo não se separou dessa. Se estou com vontade, uso-o em minha gravata.
— Sorriu, maroto. — Pretendia deslumbrar sir William com minha elegância.
O que fez Sthephanie lembrar-se de que Thomas não poderia caminhar e muito
menos cavalgar sem perigo de ter a ferida aberta. Ela teria de achar um ferreiro para
consertar a ferradura do cavalo, depois ir até a cidade mais próxima e alugar uma
carruagem.
Thomas não gostou da idéia de ela ir sozinha para longe, mas Sthephanie
acabou por convencê-lo. Caso contrário, teriam de passar mais uma noite na cabana.
Tudo correu bem a princípio. O sol da manhã de primavera era agradável.
Sthephanie apanhou o cavalo do estábulo e enveredou pela trilha estreita que
contornava a mata e saía em um caminho rural.
A sorte favoreceu-a. Um habitante local vinha em sentido contrário e
informou-a de que o ferreiro mais próximo ficava na aldeia, a uns três quilômetros da
cidade. Foi lá que a boa fortuna começou a abandoná-la. O ferreiro estava fora e só
chegaria por volta da hora do almoço.
Sthephanie aceitou o revés com resignação, deixou a montaria no pequeno
galpão e foi andar pelo lugarejo. Voltou para a forja por volta de uma hora. O homem
ainda não retornara. A esposa dele, uma criatura bondosa, convidou-a para esperar
dentro da casa. Sthephanie aceitou, e a senhora ofereceu-lhe pão caseiro, queijo e um
pedaço de uma deliciosa torta de maçãs. Enquanto Sthephanie comia, a nova amiga
contava, com muito bom humor, fatos da vida da pequena Wiltshire.
Disse-lhe que nascera ali, conhecia todos e era aparentada com muitos.
— Então a senhora deve conhecer quem mora naquela cabana encantadora com
telhado de colmo, a uns três quilômetros daqui — Sthephanie deduziu.
— Deve ser a casa de Percy e Alice Price, em Bencham Wood. Conheço-os,
sim. Ele é carpinteiro. O velho Percy é muito talentoso com as mãos. E um lugar
pequeno e muito bonito, mas eu não me acostumaria a viver naquela solidão. Eles
moram lá há anos.
— Estranho que não estivessem na casa hoje de manhã, quando os chamei, não
é mesmo? — Ante o olhar suspeito da outra, Sthephanie tratou de inventar uma
história convincente. — Estou hospedada com amigos que moram a alguns
quilômetros daqui. Decidi cavalgar um pouco e aproveitar a bela manhã. A ferradura
quebrou-se quando eu estava na floresta e fui até a cabana perguntar onde havia um
ferreiro. Mas o lugar pareceu estar deserto.
— Ah… — A mulher se satisfez com a explicação. — Eles devem estar na
63
mata. Alice sempre vai com o marido à procura de uma árvore apropriada para o
corte. Exceto nos dias de mercado, quando vão para Devizes, ou quando visitam a
filha, que mora em uma fazenda perto da cidade, eles nunca se aventuram para muito
longe.
O que fez Sthephanie suspeitar de que havia acontecido alguma coisa com os
Price. Mas não soaria o alarme. Talvez eles estivessem mesmo visitando a filha e, por
algum motivo, houvessem se demorado mais do que o previsto.
Fitou o carrilhão, que, a um canto da sala, indicava o passar do tempo. Ela já
devia estar em Devizes alugando uma carruagem. Mas, enquanto o ferreiro não
voltasse, nada poderia fazer. Thomas já deveria estar muito preocupado com sua
longa ausência.
Thomas já satisfizera a fome com os alimentos encontrados na despensa e
ainda não estava muito preocupado. Mesmo contra a vontade, teve de deixá-la ir. Mas
se Sthephanie não conseguisse alugar uma carruagem, por ser uma época em que
muitos viajavam, ele iria para Devizes na manhã seguinte, com ou sem perna
machucada.
A medida que transcorriam as horas, e eles continuavam juntos, Sthephanie
comprometia-se sempre mais. Thomas não a salvara das garras de Simon para forçá-
la a casar-se com ele. Quanto antes ela chegasse à residência da tia, em Bath, tanto
melhor.
Pensar que logo a deixaria mergulhou-se na tristeza. Deu uma volta ao redor da
casa e das dependências, mas voltou logo. A perna esquerda doía muito. Teria de
aguardar o retorno de Sthephanie com paciência.
Consultava o relógio de bolso sem parar. A tarde avançava, e nem sinal dela.
Sua inquietação tomava vulto. As nuvens negras e ameaçadoras que se formavam a
oeste aumentavam a sua angústia.
Não suportava mais a espera. Decidiu-se a sair e ir à procura dela de qualquer
maneira. Nisso, escutou o ruído das patas de um cavalo.
Mancou até a porta. Sthephanie, enlameada e suja de relva, enfrentou a fúria de
Thomas, proveniente da explosão de ansiedade.
Ela jamais fora repreendida daquela maneira, o que aumentou seu raro mau
humor.
— Onde acha que eu estive, seu idiota?! Passei o dia inteiro esperando para
consertar a ferradura do cavalo. Nunca antes tinha estado em Devizes… E você ainda
ousa censurar-me dessa maneira?!
— Minha jovem, saiba que merece mais do que isso! — ameaçou-a, com os
olhos brilhantes.
— Thomas Carrington, se disser mais uma palavra, eu… eu vou lhe atirar
alguma coisa!
Vê-la tão decidida divertiu-o, e sua raiva começou a ceder. Thomas mirou-a
com atenção. Gotas de água escorriam pelo manto manchado, e as botas estavam
encharcadas. Sthephanie tremia de frio ou raiva.
— Venha aquecer-se, milady.
Ela assentiu, deixando pegadas marrons no chão de pedra até o fogão. Thomas
persuadiu-a a tirar o manto, a peliça e as botas. Mas, quando sugeriu que Sthephanie
64
tirasse o vestido, ela o encarou como se estivesse louco.
— Não vou ficar de anágua, dr. Carrington!
— Ah, é sim o que vai fazer, minha querida. Você está ensopada até os ossos, e
não permitirei que fique com febre.
Pela determinação de Thomas, ela entendeu que, se não lhe obedecesse, ele
mesmo tomaria a atitude. Sthephanie esperou-o entrar no quarto, antes de começar a
desabotoar os ganchos do vestido. Thomas voltou para a cozinha, trazendo um
cobertor.
— O quê? Ainda não terminou? Precisa de ajuda?
— Não! — Sthephanie teve vontade de esmurrá-lo. — E tenha a bondade de
virar-se. Não pretendo me despir na sua frente.
Thomas fitou-a com impaciência, mas atendeu-lhe o pedido.
— Devo lembrar-lhe de que sou um médico, e por isso acostumado a ver
pessoas sem roupa.
— Eu sei. — Sthephanie apressou-se a tirar a calça comprida que usava sob as
saias e enrolou-se no cobertor, antes de sentar-se ao lado do forno. — Entretanto,
você não é meu médico. Tudo bem, pode virar-se agora.
Thomas sorriu, achando aquilo ridículo, e apanhou as peças molhadas.
Pendurou-as no anteparo do fogão e, apesar dos protestos dela, apoiou os pés
delicados em seu joelho direito para massagear os membros gelados.
Sthephanie não relutou, por medo de deixar cair a manta. Fez o possível para
ignorar as mãos quentes que a esfregavam com vigor das coxas até os tornozelos e
voltavam pelo mesmo caminho.
— Muito bem. — Thomas levantou-se e beijou-lhe a perna direita com
carinho. — Vou buscar alguma coisa para você comer. E não saia daí!
A cozinha aquecida devolveu a Sthephanie o bom humor usual, e o tom
autoritário dele não mais a aborreceu. Ela esboçou um sorriso, recordando que não
era daquela maneira que pretendia celebrar a chegada da maioridade, e externou seu
pensamento.
— Seu aniversário?! E verdade! Você mencionou o fato no jantar dos
Knightley. Por que não me lembrou?
— Se quer saber, só me recordei disso na volta, quando a chuva desabou. E
tive muita pena de mim mesma. — Aceitou o pão com queijo que ele lhe oferecia.
A seguir, Thomas trouxe uma garrafa de delicioso vinho caseiro. Eram gestos
que Sthephanie agradeceria até o fim da vida.
Thomas enfiou a mão no bolso do calção e tirou o primoroso broche de
pérolas.
— Feliz aniversário — ele disse, com simplicidade, e pôs a jóia nas mãos de
Sthephanie.
Por alguns instantes, ela foi incapaz de articular uma sílaba sequer.
— Thomas, não posso aceitar isto. Foi de sua avó, e é a única lembrança que
tem dela.
— Eu não a conheci, Sthephanie, por isso ele não tem valor sentimental para
mim. A maior parte do tempo o broche fica na gaveta. Tenho certeza de que vovó
gostaria de vê-lo em um lugar apropriado. Por exemplo, enfeitando o vestido de uma
65
dama nobre.
Após um silêncio profundo de alguns instantes, Thomas voltou a usar o tom de
mando:
— Você passou por maus pedaços. É melhor deitar-se cedo. Amanhã teremos
de sair com o raiar do sol, se quisermos alcançar Devizes a tempo de conseguir uma
carruagem que a leve a Bath. Hoje, deve ficar com a cama, milady. Estarei muito bem
nesta poltrona, com os pés sobre o banco.
Sthephanie nem tentou discutir. Estava exausta e emocionada pela
generosidade do presente. Acendeu uma vela e foi para o dormitório, direto para o
leito.
Dali a pouco, Thomas bateu na porta e entrou. Viera perguntar se ela precisava
de uma camísola.
Como ele sabia ser atencioso! Aquele homem era mesmo um enigma.
—Acho que me aqueceria bastante, obrigada.—Sthephanie sorriu, um tanto
pesarosa. — Mas acho que já tomamos liberdade demais, mesmo sem usar as roupas
da sra. Price.
— Price… é o sobrenome deles?
— E o que parece. A mulher do ferreiro conhece todos por aqui. Mas, fora as
viagens esporádicas a Devizes, parece que os Price nunca vão a lugar algum, o que
não deixa de ser preocupante. Acho que deveríamos informar as autoridades amanhã,
não é?
— Isso seria a última coisa que deveríamos fazer, depois de usar a propriedade
deles. Apesar de, até agora, eu não estar alarmado.
— Como assim?
— Enquanto você esteve fora, dei uma volta ao redor da casa. — Sentou-se na
beira da cama. — Há marcas de rodas de uma carroça, acho, indo e saindo do
estábulo grande. E pegadas de um só cavalo. Ontem foi dia de mercado em Devizes,
e é aonde imagino que nossos benfeitores foram. O mistério reside, no entanto, no
fato de eles ainda não terem regressado.
Thomas fitou os olhos verdes e intensos e a massa de cabelos ainda úmidos.
Algumas mechas finas caíam pela testa, e o restante cascateava sobre os ombros,
perfeitos e níveos, que apareciam acima das cobertas. Percebeu-lhe a pulsação da
veia do pescoço. A curva do queixo era suave, e a simetria do traçado da boca,
irretocável.
Thomas esqueceu-se de que era médico, e o controle férreo foi substituído pelo
forte desejo que sentia pela adorável mulher a sua frente. Um sentimento tão novo
para ele quanto para ela, pois trazia o amor a reboque. Abaixou a cabeça e beijou-a
com suavidade a princípio, e depois com fúria.
Sthephanie nem pensou em resistir e, por instinto, abriu os lábios para receber
os do homem por quem se apaixonara perdidamente. Coração, corpo e alma estavam
em completo acordo, quando Thomas deixou-lhe a boca e passou a explorar com o
lábios a suave curvatura dos seios.
Dedos ternos acariciaram-lhe a pele macia entre as coxas, e as sensações de
prazer pareciam não ter fim para Sthephanie. A necessidade urgente de sentir-lhe os
contornos do físico que ela imaginava musculoso fez com que gemesse.
66
Desajeitada, puxou as lapelas para tirar-lhe o casaco. Thomas desvencilhou-se
dela, ergueu-se e jogou longe o agasalho, a gravata e a camisa, deixando à vista os
magníficos ombros largos e o belo tórax.
Sthephanie estendeu a mão, ansiosa por tocá-lo, e ele agarrou-a, virando o
rosto. Ela de imediato sentiu a mudança. Thomas soltou-a, se afastou da cama,
apanhou as roupas espalhadas e caminhou até a soleira.
— Não ouse sair daqui esta noite por motivo nenhum! — ele gritou, antes de
sair e bater a porta.
Sthephanie ficou arrasada, achando que a demonstração de seu amor o afastara.
Sthephanie acordou na manhã seguinte com os raios de sol penetrando a fenda
da cortina. Desolada, refletiu que tudo mais parecia um terrível pesadelo.
Será que não soubera decifrar os sinais? Tudo bem que Thomas não
pronunciara uma só palavra de amor, mas ela teve certeza de ter lido esse sentimento
em seu olhar terno, antes de ele se transformar naquele ser frio e bruto que mal a
fitava.
Podia decerto entender os motivos de uma mudança tão drástica. Havia a
possibilidade real dos sentimentos dele, quaisquer que fossem, não serem tão fortes e
por isso resistirem com tanta facilidade ao poderoso apelo da satisfação mútua. Ou
não deviam ser tão sinceros a ponto de Thomas fazer o que tinha de ser feito e depois
casar-se com ela.
As lágrimas amargas que derramara depois da saída de Thomas não ajudaram a
diminuir a dor da rejeição. Mas Sthephanie recusou-se a continuar a dar vazão àquela
evidência de fraqueza feminina.
Por sorte, depois de um sono agitado, recuperara um pouco do amor-próprio.
Afinal, era lady Sthephanie Beresford, filha do conde de Eastbury. Fora ensinada,
desde a mais tenra idade, a não cair na vulgaridade de demonstrar emoções. E, pela
primeira vez, abençoou tais ensinamentos. Tinha de encarar Thomas, e o faria com
dignidade e cabeça erguida.
Pulou da cama e viu suas roupas dobradas com cuidado sobre o espaldar da
cadeira.
Alguns minutos depois, Sthephanie entrou na cozinha e encontrou Thomas
absorto na comida em seu prato, que parecia intacta, como se ele houvesse acabado
de sentar-se ou estivesse sem apetite. Seria tristeza o que via em suas íris cinzentas?
Ah, que nada! Já tivera sua lição, e não interpretaria mais expressões de
ninguém. Devia ser por uma noite sem dormir, mal acomodado na poltrona, mas
nunca pelo remorso por seu comportamento.
Não era verdade, a voz da consciência advertiu-a. Thomas não era um homem
insensível. Claro que se arrependia do que acontecera, mas devia deplorar sua
fraqueza em não controlar seus instintos básicos. Porém Sthephanie recusou-se a
aceitar a esperança tola de que se tratasse de algo como paixão.
— Pão e queijo de novo… — ela comentou, quanto ele a fitou, mudo. —
Quando eu sair daqui, não poderei nem sentir mais o cheiro disso.
— E, fica cansativo comer sempre a mesma coisa, mas não pretendo perder
tempo cozinhando. Temos de ir embora o mais rápido possível.
— Concordo. — Sthephanie falava com todo o orgulho do sangue nobre de
67
seus antepassados que corria em suas veias. Jamais demonstraria como estava ferida.
— Preciso chegar hoje a Bath. Saberá Deus o que minha tia deve estar imaginando!
Ela deve estar louca de preocupação.
— Sthephanie… Sobre ontem à noite…
— Prefiro não falar sobre isso. — Pegou o bule de café com a mão trêmula. —
Foi lamentável, e é melhor que seja esquecido.
— É, talvez… Mas…
— Não, Thomas! — A entonação ríspida foi mais para controlar a própria
histeria.
Bom Deus! Por que ele a atormentava daquele jeito? Será que não percebia
quanto a magoara e humilhara? Ou pensava que ela era uma leviana?
Sthephanie queria apenas fugir dali, mas escutou um ruído do lado de fora.
Thomas também ouviu, e levantou-se.
— Os donos da casa devem ter voltado — ele disse e espiou pela janela, a
tempo de ver uma carroça pesada parar e dela descer uma mulher de meia-idade.
Sthephanie desejou que a terra a engolisse. Mais uma humilhação: ter de
explicar sua presença naquela cabana. Às vezes a vida era mesmo muito cruel. Mas
Thomas antecipou-se e saiu.
— Por favor, senhora, não se assuste.
Foi só o que Sthephanie pôde ouvir. A seguir, uma eternidade recheada de
murmúrios ininteligíveis. Por fim, a porta tornou a abrir-se, e a dona da casa entrou.
— Ah, sra. Carrington, pobrezinha! Que coisa terrível! Atacada por bandidos,
e seu irmão, ferido!
Devia ser a sra. Price, ela concluiu. Bondosa e sensível… O que lhe teria dito
seu “irmão”? Sthephanie ergueu-se, e a senhora apressou-se a abraçá-la.
— E verdade, senhora. Que contratempo! Precisamos agradecer-lhe pela
generosidade de não incomodar-se de encontrar sua casa encantadora invadida por
estranhos.
— Não se incomode, minha filha. Fico feliz por haver me esquecido de trancar
a porta. Nós saímos apressados para o mercado em Devizes.
Sthephanie olhou a saída de relance, aflita pelo retorno de Thomas. Ela já não
sabia mais o que dizer, por isso tentou um assunto neutro:
— Imaginei que a senhora estivesse em Devizes. Falei com a mulher do
ferreiro na vila, e ela me disse que a conhecia. Deve ser a sra. Price, não é?
— Isso mesmo, minha querida. Não há o que ela não saiba. Deve ter falado
sem parar.
— E verdade, mas isso foi enquanto esperávamos pela volta do marido, que
chegou tarde. Nem deu tempo para eu ir até Devizes alugar um coche. Já estava
escurecendo.
— Não deixe que isso a perturbe, meu bem. Meu marido levará a senhorita e
seu irmão até a cidade, se não se incomodar de andar de carroça.
— Viu quanta gentileza, Sthephanie? — Thomas entrou na cozinha e percebeu
a aflição da lady. Apontou para um homem muito magro. — Eu estava dizendo ao sr.
Price que perdemos um de nossos cavalos no ataque e viemos em minha montaria
alugada.
68
Sthephanie apenas sorriu. Falar menos seria mais tático. Não tinha idéia do que
o “irmão” tão criativo dissera.
— Eu estava escoltando minha irmã para a casa de nossa tia, em Bath —
Thomas explicou para o sr. Price. — Passamos a noite em Devizes, e resolvi fazer
uma visita a um amigo, sir William Denton. E, como já lhe disse, fomos vítimas de
ladrões atrás da minha bolsa, acho, e assim não chegamos a nosso destino.
Os Price pareciam aceitar a história.
— Evidente que os reembolsarei pelas provisões que consumimos, sra. Price.
— Que nada! — Ela descartou a idéia com um aceno da mão gorducha. — O
que são uns poucos víveres? Afinal, se não tivessem tomado conta de minhas
galinhas à noite, posso garantir-lhes que a raposa teria se regalado. Eram só elas que
me preocupavam. Mas o que eu podia fazer se o primeiro bebê de nossa filha
resolveu vir mais cedo?
Thomas receou que a conversa sobre netos e recém-nascidos se prolongasse e
lembrou a Sthephanie que tinham mesmo de ir embora.
Dali a pouco, embarcaram na carroça do sr. Price, e a mulher ficou na entrada,
acenando adeuses.
Quando o marido voltou, ela tratou de perguntar se o casal já tinha ido para
Bath.
— Ouvi-o dizer que iria alugar uma carruagem. Quando chegamos a The
Swan, o rapaz afirmou que ficaria lá, porque a estalajadeira o conhecia. Engraçado…
— Cocou a cabeça grisalha. — Ela não pareceu conhecer a jovem dama.
— Eu sabia! — A sra. Price bateu palmas. — Suspeitei disso desde o começo.
— Não me diga que eles eram ladrões, Alice! — o marido alarmou-se. — Deus
do céu! O que está faltando?
— Nada, seu velho tolo — respondeu com ternura. —
Não se tratava de larápios, mas também não de irmãos! Deduzo que são um
casal de fugitivos.
— Das autoridades?
— Não, Percy. Mas é curioso… A cama estava desarrumada de um lado só, e
havia um cobertor dobrado sobre o banco, onde o doutor deve ter dormido.
— Do que está falando, mulher?
— Acho que estavam tentando esconder os próprios sentimentos um do outro.
Mas eles não me enganam! Só um cego não vê que estão apaixonados!
Em Upper Camden Place, lady Augusta Templehurst percebeu que a história
do atraso contada pela sobrinha era incompleta. Também não acreditou que o roubo
de seus pertences feito por um servo desleal fosse responsável pela melancolia de
Sthephanie. Contudo, não insistiu nas perguntas. A sobrinha acabaria por fazer o
relato, no decorrer de sua estada em Bath.
Nos dias que se seguiram, lady Augusta concentrou esforços para repor os
trajes roubados. Com alegria, foi com Sthephanie às lojas elegantes e tratou de
encontrar uma nova criada, muito habilidosa e prestativa, para substituir Latimer.
Augusta adorava a companhia da sobrinha. As duas visitavam diariamente
Pump Room e passavam as noites em Assembly Rooms ou em recepções. Sua
satisfação só era toldada pela certeza de que Sthephanie não se divertia.
69
Lady Augusta era conhecida por sua inteligência e franqueza, uma poderosa
combinação, mas ninguém poderia acusá-la de ser vingativa ou cruel. Contudo,
sempre fora a primeira a admitir que não recebera a bênção de uma grande dose de
paciência. E depois de quase duas semanas de convívio com as mudanças repentinas
de estado de espírito de Sthephanie, a tolerância chegava ao fim.
O desenlace deu-se em uma manhã, na hora do desjejum. Lady Augusta
acabava de ler em voz alta uma carta que recebera do filho e herdeiro de seu irmão.
Nisso, reparou que Sthephanie estava em um de seus muitos momentos de abstração,
com o olhar fixo na janela.
— O que houve, querida?
— Nada, titia. Estou contente por George e Matilda estarem bem.
— Sthephanie, tenho certeza de que não ouviu uma palavra do que eu disse!
Sei que também acha as cartas de seu irmão tediosas, minha querida. Não me
arriscarei a pedir-lhe que a leia sozinha.
A tia pôs a missiva perto do prato, antes de continuar.
— Em sua arrogância habitual, meu sobrinho houve por bem tomar certas
decisões e incluí-la na comitiva familiar. George pretende ir a Paris encontrar-se com
o pai, que já saiu da Itália.
Lady Augusta deu uma tossidela.
— George está informando que mandou a carruagem do conde de Eastbury
buscá-la na próxima semana. Em circunstâncias normais, eu não hesitaria em mandar
o cocheiro de volta a Kent, com o veículo vazio. Entretanto, em vista de seus modos
letárgicos atuais, concluo que é indiferente ser desventurada em Paris ou em Bath, ou
em qualquer outro lugar.
Sthephanie achou por bem convir que o sarcasmo da tia era bastante
justificado. As visitas a Bath eram sempre acompanhadas por muita alegria. Mas
dessa vez… Ainda tinha de encarar o fato de que não era perita na arte da
dissimulação. Não enganava ninguém, muito menos lady Templehurst.
— Tenho sido uma péssima companhia, não é mesmo? — desculpou-se.
— E verdade, minha querida.
— Sinto muito…
— Sei disso, mas acontece que as desculpas não irão melhorar as coisas para
você. Quem sabe um relato verdadeiro do que aconteceu durante a viagem…
— Tia Augusta, o que lhe contei antes é um amontoado de mentiras. —
Sthephanie fitou a parente com afeto e admiração. — Latimer não fugiu, e eu não
passei a noite na estalagem, para descobrir na manhã seguinte que meus pertences
foram roubadas. Nem fiquei lá mais um dia para informar as autoridades.
Sthephanie acabou contando tudo o que acontecera.
— Essa minha sobrinha demonstrou ser um osso duro de roer! — Augusta
elogiou.
— Eu não teria escapado com tanta facilidade se Latimer não houvesse
deixado a porta destrancada. Acredito que foi proposital.
— Isso é um ponto a favor dela. Agora posso entender sua relutância em avisar
as autoridades. Porém, devo confessar que a impunidade de Simon Fairfax me faz
mal. E… tal pai, tal filho.
70
— Acontece que lady Fairfax é amiga de mamãe. Imagine só meu dilema.
— Sua mãe sofre as conseqüências não só da escolha errada dos amigos,
Sthephanie. Bem, mas continue, meu anjo. E depois que escapou da casa?
Lady Augusta percebeu a mudança na sobrinha, que tornou-se tensa, a
expressão longínqua e desolada. Mas assim mesmo Sthephanie terminou o relato.
— Acha que o amigo dos Knightley é confiável e não irá espalhar o fato de que
passou duas noites em sua companhia?
— Acho.
— Parece muito certa disso, Sthephanie.
— E estou. O dr. Carringtom é um homem honrado.
— Uma raridade, eu diria. — Augusta sorriu. — E tão grande que conquistou
seu coração, não é mesmo, minha querida Sthephanie?
Sthephanie rompeu em soluços e foi abraçada pela tia, que a afagou como se
faz com uma criança.
— Eu me reservo o direito de emitir meu parecer quando vier a conhecer esse
modelo de perfeição. — Lady Augusta deu-lhe um beijo quando Sthephanie parou de
chorar. — Não antes. Sei que entende minha relutância em ficar satisfeitíssima com
sua escolha. Apesar de tudo, o médico tem uma posição social muito diferente da sua.
Mas pode estar certa de uma coisa, minha menina. Se eu gostar dele e acreditar que
ambos combinam, então poderá casar-se com o dr. Carrington e levar todas as minhas
bênçãos. E alguém da família que ouse impedir essa união!
— Nem por um instante duvidei que seria minha mais fiel aliada, titia. —
Sthephanie, caindo em prantos de novo, fitou Augusta com afeição. — Não é a
oposição de minha família que temo, contudo. Acontece que Thomas não me ama o
suficiente para casar-se comigo.
Thomas anotou uma visita à mulher do reitor para aquela tarde. Ultimamente
era imperioso que marcasse, para não esquecer. Só não lhe saía da lembrança contar
os dias que o afastavam de Wiltshire. Três semanas que mais pareciam três anos!
Suspirou, em dolorosa resignação. Deus era testemunha do quanto lutava para
esquecer o passado recente. Em vão. Mesmo o trabalho, ao qual se atirara com vigor
renovado, se mostrara um remédio ineficaz para acalmar a alma torturada por
imagens de uma lady aristocrata e adorável. Jovem essa cujo espírito indomável e
apurado senso de humor haviam cativado seu coração para sempre.
A governanta abriu a porta do consultório, interrompendo suas reflexões
amargas.
— Visita para o senhor, doutor.
Thomas fez um esforço para mostrar-se alegre na presença da querida amiga,
lady Knightley, que entrou em seguida.
— Sente-se, Lizzie. Por seu aspecto saudável, devo concluir que não veio em
busca de meus serviços profissionais.
— O que é verdade. Tive de vir vê-lo, já que você não aparece em minha casa
desde que voltou de Wiltshire.
Thomas desviou o olhar daquela que o lembrava de alguém mais, com a
desculpa de guardar o diário na gaveta.
Elizabeth o conhecia muito bem e era muito perspicaz, mas não podia imaginar
71
o que o atormentava.
— Tenho andado muito ocupado. Meu jovem farmacêutico é esforçado, mas
não pode resolver tudo quando estou ausente.
— Sei disso, Thomas. Mas às vezes é preciso relaxar. Você está se tornando
cada vez mais anti-social. E não sou só eu que reparei nisso.
— Tenho certeza de que os boateiros estão em ação desde a sexta passada,
quando estive na festa de casamento de Margaret e Sam.
Ele levantou-se e começou a arrumar os papéis em cima da escrivaninha.
— Um médico tem muito pouco tempo para si mesmo. Sendo assim, poderia
desculpar-me?
Elizabeth recebeu o pedido para retirar-se sem mover um só músculo da face.
Mas ficou muito magoada com a indiferença do amigo. Às vezes Thomas era
irascível e rude, mas nunca se comportara com tal incivilidade. Pelo menos, não com
ela. Alguma coisa séria o perturbava.
Elizabeth confessou as desconfianças, logo depois, quando reuniu-se ao marido
na carruagem leve, puxada por dois cavalos.
— Desconfiei disso quando o encontrei por acaso na outra semana. Pensei que
tivesse a ver com o casamento de Margaret Ryan, mas acho que me enganei.
O marido sorriu, tímido.
— Ah, vamos lá, Richard! Acha que sou tão ingênua a ponto de acreditar que
Thomas, mesmo sendo solteiro, pratica o celibato? Durante anos ele e Margaret
foram muito mais do que bons amigos. Não duvido nada que tenha ficado pesaroso
por perder uma amante pelo visto satisfatória. Mesmo assim, não creio que seu atual
estado de ânimo seja conseqüência disso.
— Uma dama de sua estirpe não deveria fazer tais conjecturas, e muito menos
falar delas. — Richard fingiu estar chocado, antes de rir pelo olhar fulminante da
esposa. Depois, ficou sério. — Também notei que Thomas tem estado ensimesmado.
Mas não tenho a mínima intenção de intrometer-me em seus assuntos privados, se é
isso que a senhora minha mulher está sugerindo.
Elizabeth sabia que não adiantava continuar discutindo. Embora Richard fosse
muito generoso, interferir na vida alheia era um de seus tabus. Ela reconhecia o
acerto dessa postura, o que não a impediu de ficar preocupada.
Sem esquecer o assunto, Elizabeth acompanhou a perícia do marido
conduzindo o veículo por entre os dois pilares sólidos de pedra ao entrar em sua
propriedade. Dali a instantes, eles notaram uma berlinda antiga parada em frente à
residência.
— Bom Deus! Quem será o dono dessa velharia? O senhor meu marido
convidou alguém para hospedar-se aqui e não me avisou?
— Faço-lhe a mesma pergunta. — Richard parou atrás do coche antigo e
observou dois de seus servos carregarem bagagens para dentro de residência. — Pode
descer, querida. Serei generoso e permitirei que satisfaça a curiosidade primeiro.
Elizabeth não se fez de rogada. Deixou Richard conduzir seu veículo para o
estábulo e entrou no hall. Espalhadas pelo chão, viam-se vários tipos de malas. O
jovem mordomo, em geral muito eficiente, mostrava-se um tanto inquieto.
— Milady, peço desculpas pela confusão, mas a visita acabou de chegar. A
72
senhora esqueceu-se de avisar-me que esperávamos convidados, e fiquei em dúvida
sobre qual quarto destinar a ela.
— Ela, Medway?
— Lady Augusta Templehurst, milady. Sua tia está na sala de visitas.
Apesar de não demonstrar surpresa, Elizabeth ficou atônita ao saber de quem
se tratava. Deu instruções para que a bagagem da tia fosse levada aos aposentos
verdes e seguiu direto ao salão.
Encontrou a parente que ela não via fazia quase dez anos confortavelmente
sentada em uma poltrona perto da lareira.
— Mas que prazer, milady!
— “Susto” seria o termo adequado, não é, minha sobrinha? E “impertinência”,
por vir sem avisar. Eu entendo. Venha cá, minha querida, deixe-me apreciá-la.
Elizabeth, embora em sua própria casa, obedeceu ao comando de Augusta. Mas
não se ofendeu, e deu um beijo no rosto rosado da tia.
— E verdade. — Lady Templehurst examinou as feições da sobrinha. —
Elizabeth e Sthephanie são as beldades da família. A mulheres Beresford sempre
sobressaíram. As outras…
Elizabeth deu uma risadinha diante o comentário desairoso, e admitiu que
Sthephanie não exagerara ao comentar sobre os modos diretos da tia. Sentiu-se
atraída por sua honestidade e perguntou-se por que, na infância, a temia.
— Minha bela sobrinha deve estar se perguntando o que me trouxe aqui —
lady Augusta falou, assim que Elizabeth sentou-se em frente. — Eu não a via desde o
funeral de seu pai, e tinha muita vontade de vir visitá-la. Pelo menos, nesse tempo
todo, me mantive em contato por intermédio das cartas.
— Milady, mesmo que sua presença não fosse esperada, não deixa de ser bem-
vinda. Na verdade, estou encantada.
Richard entrou na sala, e Elizabeth aproveitou para requisitá-lo e corroborar o
que acabara de dizer.
— Claro que sim, milady. Sthephanie sempre fala da senhora com muito afeto.
Estou contente por, enfim, poder conhecê-la.
— Muita gentileza, meu filho. — Lady Templehurst aprovou o encantador
baronete, cujo charme e finura eram famosos. — Conheci muito seu pai. O senhor se
parece bastante com ele, que era muitíssimo bonito. Elizabeth é uma mulher de sorte.
Espero que Sthephanie também seja tão afortunada.
Com a intuição de que lady Augusta viera até ali por um motivo específico,
Richard serviu-lhe um cálice de Madeira e indagou-lhe por quanto tempo eles teriam
o privilégio de sua companhia.
— Dois dias. Três no máximo — afirmou, depois de experimentar um gole do
vinho excelente. — Não pretendo aborrecê-los muito com minha presença.
— A senhora será bem recebida para ficar quanto quiser, titia.
— É muita bondade sua, Elizabeth, mas não abusarei de sua hospitalidade.
Preciso chegar a Kent até o final da semana, para ficar com Sthephanie. George,
aquele meu sobrinho arrogante, teve a ousadia de pedir à irmã que voltasse mais cedo
de Bath. George e a cabeça-de-vento da mulher dele irão a Paris, e pretendiam que a
irmã os acompanhasse. Sthephanie não se entusiasmou com essa perspectiva. E quem
73
pode culpá-la por não querer passar várias semanas junto com os pais, o irmão, a irmã
mais velha e os respectivos cônjuges?
— E por que ela não ficou em Bath com a senhora?
— Porque sou uma velha egoísta, minha querida. Dou-me bem com meu
irmão, mas preferia seu pai. Nunca fiz segredo disso. Dez minutos na companhia da
condessa é o limite que se pode agüentar. Fora Sthephanie, que de longe é a melhor
deles todos, não me agrada a companhia de ninguém. Desse modo, aproveitarei a
ausência deles para visitar a casa de meus antepassados pela última vez.
Augusta ajeitou-se na poltrona.
— Desde que Sthephanie saiu de Bath, venho pensando em levá-la a Londres.
Ela anda muito desanimada e achei que algum tempo na capital poderia alegrá-la.
— Mas minha prima estava com ótima disposição quando saiu daqui, milady.
O que será que aconteceu? Só se… — Elizabeth virou-se para o marido. — Bem, ela
estava preocupada com lorde Pentecost.
— E, Sthephanie contou-me sobre isso. — Lady Augusta entendeu que os
Knightley ignoravam por completo o que acontecera com Sthephanie, depois de ter
deixado a residência deles. — Jamais gostei de lady Pentecost. Mulher odiosa! Por
isso quero ir a Londres. Pretendo falar com sir Bartholomew Rudge a respeito do
assunto. Conhece-o, sir Richard?
— Claro, sua fama o precede.
— Se alguém quiser descobrir alguma coisa, ele é a pessoa indicada. Não há
quase nada que sir Rudge ignore.
Após terminar o vinho, lady Templehurst levantou-se com a ajuda de uma
bengala de ébano e pediu para Elizabeth indicar-lhe o quarto, para que pudesse trocar
de roupa para o jantar.
— Será que posso visitar a sala das crianças? Tenho vontade de conhecê-las.
Nada dava mais prazer a Elizabeth que, mãe orgulhosa, não se cansava de
elogiar os filhos.
Mais tarde, durante a refeição, lady Augusta divertiu Richard com as críticas
severas sobre a maioria dos membros da família Beresford.
Depois, eles foram jogar na sala de estar. A noite continuou agradável até que
lady Templehurst anunciou que não estava se sentindo bem. A princípio, recusou a
idéia de chamarem um médico, mas acabou por aceitar a oferta.
Quando Thomas chegou e entrou no quarto, ela já estava deitada.
Seria difícil dizer qual dos dois observou o outro com maior curiosidade.
Em instantes, lady Templehurst teve de aceitar o fato de Sthephanie ter-se
apaixonado. Julgou-o um homem muito atraente, mas de aspecto um tanto rude, e
cujo trajar poderia ser descrito como bastante informal.
— O que a senhora está sentindo, milady?
— Uma palpitação excessiva e um peso no estômago. Deve ser má digestão,
que me acomete com freqüência, e Elizabeth insistiu em chamá-lo.
Thomas sentou-se na beira do leito e tirou da maleta um cilindro de madeira de
cerca de vinte centímetros de comprimento.
— O que é isso?
— Um estetoscópio, milady. — Thomas encostou uma ponta no peito dela e
74
auscultou com atenção. — Foi inventado por René Laènnec, um médico francês. É
muito mais eficiente que escutar com a orelha.
Augusta deu uma risada.
— Na minha idade, eu ficaria muito feliz se um jovem colocasse o ouvido em
meu peito!
— Sua sobrinha disse mesmo que a senhora é um tanto brincalhona.
— Refere-se a Sthephanie, não é? Elizabeth não teria coragem de dizer-lhe
isso. — Augusta sentiu-lhe a tensão, e o olhar emocionado revelou o que ela
precisava saber. — Aliás, preciso aproveitar a oportunidade para agradecer-lhe pelo
que fez por Sthephanie. Não, não se espante. Ela me contou tudo, quando chegou a
Bath.
— Isso é irrelevante, milady. O importante é que lady Sthephanie tenha
chegado a seu destino sã e salva.
Thomas terminou o exame em silêncio e levantou-se.
— Seu coração está bem, milady, mas deixarei algo que a ajudará a dormir.
Amanhã enviarei uma poção que a aliviará dos transtornos após as refeições.
Alguns minutos depois de Carrington sair, Elizabeth bateu na porta e entrou.
— Graças a Deus! Thomas me falou que não é nada sério. Como está se
sentindo agora?
Lady Augusta dispensou a criada e acenou para Elizabeth sentar-se junto dela.
— Quero falar-lhe sobre algo. Elizabeth, eu vim até aqui por causa de
Sthephanie.
— O que está acontecendo com ela?
— Tenho receio, minha querida, que nossa menina esteja apaixonada.
Sthephanie está convencida de que o objeto dessa paixão não lhe corresponde. Mas
está errada. Agora, tendo-o conhecido, não duvido de que também a ama.
— E Thomas, não é mesmo? Por isso ele anda tão infeliz, desde a volta de
Wiltshire.
— Pelo jeito, o doutor não contou nada a ninguém, o que só lhe credita
honradez. Deixe-me dizer-lhe o que aconteceu.
Elizabeth ouviu o relato em silêncio.
— Agora posso entender por que Thomas não confiou em ninguém. Se o
fizesse, arruinaria a reputação de Sthephanie.
— Sthephanie assegurou-me que ele não a seduziu. Para lhe falar com
franqueza, eu me sentiria humilhada por passar sozinha duas noites em companhia de
um jovem tão
atraente e ele não tentasse armar uma sedução. Desculpe-me, Lizzie, o caso
não é para rir. Eu deveria mais é preocupar-me com dois jovens que estão sofrendo.
Não entendo… Se Carrington a ama, por que não a pediu em casamento?
— Acho que é porque Thomas não se acha digno dela, minha tia.
— Então, terá de ver o erro de suas premissas.
— Tia Augusta, isso é mais fácil dizer do que fazer.
Lady Templehurst não lamentou ter ido a Londres nem de ter aceitado a oferta
generosa de sir Richard para usar a casa dele da cidade. Não lhe agradara a
perspectiva de ficar na mansão dos Beresford em Grosvernor Square, pois uma das
75
irmãs de Sthephanie já ali se instalara com o marido.
Lavínia, como sua mãe, adorava o burburinho das agitações sociais, e
Sthephanie não estava em condições psíquicas de acompanhá-la.
Lady Augusta parou de bordar e fitou a sobrinha favorita, que estava sentada
no vão da janela, observando a rua. Apesar de não haver voltado a seu bom humor
habitual, Sthephanie mostrava-se mais contente por poder desfrutar da companhia de
lorde Pentecost e da srta. Dilbey, embora houvessem comparecido a poucas festas.
Entretanto, enquanto Augusta não a visse alegre como antes, sabia que não
teria paz. Desde a chegada delas, Sthephanie nem mesmo tocara no nome do dr.
Carrington, o que não lhe pareceu um bom sinal.
— Está muito quieta, minha filha. No que está pensando?
— Se, como a senhora disse, Hetta e Perry acabarão por casar-se.
— Ao que tudo indica, sim. E eu seria a primeira a aplaudir o matrimônio.
Hetta é uma jovem bondosa, bonita e muito sensível. Saberá enfrentar os problemas e
será a esposa ideal para ele.
Augusta deu mais alguns pontos no bordado e ergueu o olhar.
— A visita dele, ontem, ao advogado da família foi reveladora. Ao querer
inteirar-se sobre o teor do testamento de lorde Pentecost, demonstrou que está
pensando no futuro. Perry não só estava sofrendo pela morte do amado pai como por
achar que um dia iria tornar-se insano. Por isso pedi a meu velho amigo sir
Bartholomew Rudge para visitar-nos. Ele poderá trazer alguma luz a essa questão
intrincada.
Sthephanie conhecia o baronete, e não gostava muito dele. Lady Augusta
pareceu ler o pensamento da sobrinha.
— Sir Bartholomew pode parecer um bufão, Sthephanie, mas não é. Possui
uma memória privilegiada. Pode lembrar-se em detalhes de acontecimentos passados
em detalhes. Muito pouca coisa escapava de sua observação acurada. Se milorde
ignora fatos ocorridos na sociedade, é porque, sem dúvida, eles não têm importância.
Sthephanie viu a carruagem elegante que parava à entrada.
— Bem, tia Augusta, logo descobriremos se sua fé é justificada. Parece que seu
amigo chegou.
Dali a minutos, um cavalheiro corpulento entrou na ensolarada sala de visitas.
Vestia uma capa berrante e trazia um ramalhete ridículo na lapela da jaqueta. Todo
sorrisos, caminhou até lady Templehurst e deu um beijo estalado em uma de suas
faces.
— Mal pude acreditar quando recebi seu recado, minha velha amiga Gussie!
Você está ótima!
— Já não posso dizer o mesmo de você, Bart — afirmou lady Templehurst,
com a franqueza permitida a uma longa amizade. — Sente-se e tire o peso desse
corpanzil de seus pés.
Sem se mostrar ofendido, Bartholomew aceitou a oferta, mas fez menção de
erguer-se, ao ver Sthephanie.
— Perdão, querida. Eu não a vi.
— Por favor, fique à vontade. — Ela quis poupá-lo do esforço de se levantar.
— Posso oferecer-lhe uma bebida?
76
— Não, obrigado, meu bem. Não tomo nada antes do almoço. — Virou-se para
lady Augusta. — Que prazer em vê-la de novo na cidade! Mas o que está fazendo
aqui, na casa de lorde Knightley?
— Sir Richard teve a bondade de oferecer-me seu uso, enquanto eu
permanecer em Londres. Aqui é bem mais agradável do que a mansão Beresford.
Porém, vamos ao que interessa, Bart. Pedi-lhe que viesse até aqui porque desejo saber
se conheceu o falecido lorde Pentecost.
— Claro que sim. Apesar de termos poucas coisas em comum, fomos bons
amigos. Estivemos juntos em Eton e em Oxford. Nos últimos anos, não nos
encontramos muito. O barão tornou-se um recluso. Mas também, casado com aquela
harpia, quem não se tornaria um? Acho que, se não fosse pela morte do irmão, ele
nem teria se casado.
— O que sabe sobre isso, Bart? Ouvi falar que Cedric sofria das faculdades
mentais.
— O quê?! Que absurdo! Ele era um rapaz quieto, reservado. Apenas isso.
Nada havia de anormal, até sofrer o acidente.
— Que acidente?
— Ah, foi muito triste… Deu-se durante seu último ano em Oxford. —
Bartholomew meneou a cabeça. — Lembro-me como se fosse ontem. O falecido
agora lorde Pentecost tinha vindo para uma de suas raras visitas a Londres. Eu estava
com o barão, no White, quando ele recebeu a notícia de que o irmão estava ferido. O
rapaz ficou inconsciente por vários dias. Recuperou-se do acidente, mas nunca mais
foi o mesmo. Flutuava entre acessos de fúria insana seguida de períodos de
depressão. Deve ter morrido em conseqüência do ocorrido.
— O senhor conhece o atual lorde Pentecost? — Sthephanie indagou.
— Sim, sim. O estranho é que Peregrine me lembra muito o jovem Cedric
fisicamente. Acho que até herdou do tio a habilidade de montar. Pobre Arthur… Só
teve um filho e adorava crianças.
— Sim, mas o barão fez um testamento muito rígido. Pelo visto, Bart,
Peregrine não pode tocar em um centavo da herança do pai até completar trinta anos
ou casar-se. O que suceder primeiro. E a doce Sophia terá de aprovar a escolha, se o
rapaz resolver se casar antes dos trinta, ou o dinheiro ficará para o próximo detentor
do título!
— Hum… Que maçada, Gussie! Acho que Arthur estava tentando proteger o
filho das interesseiras.
— Creio que o novo lorde Pentecost tem bastante juízo e não se deixará levar
por um rostinho bonito. Na verdade, Perry está bastante íntimo de uma moça que eu
duvido ser do agrado da mãe.
— Pobre e gentil, por acaso?
— Nada disso! De boa família, aparentada com os Dilbey de Devonshire. Ela
não tem recursos, exceto o que poderá herdar do tio. Mas, nos demais aspectos, é
admirável. É uma jovem encantadora e gosta dele.
— Bem, se ela é tudo isso, por que Sophia Pentecost se oporia à união?
— Se me permite, sir — Sthephanie interveio —, acho que lady Pentecost não
quer renunciar a sua posição de senhora da herdade. Ela não aprovará nenhuma moça
77
como nora.
— Ora, existem soluções. Basta estragar os planos dela.
— Como assim, Bart? — Lady Augusta o encarou,
— Meu Deus, Gussie! Os anos passados em Bath afetaram seu raciocínio! —
Bartholomew percebeu o olhar fulminante da amiga com quem pretendera outrora
casar-se. — E muito simples. Basta reunir um número suficiente de velhos amigos
que aprovem o casamento, e Sophia Pentecost de modo algum tentará se opor.
Também poderei dar à senhora meu apoio. Jamais gostei mesmo dela…
— Por Deus, Bart! E isso mesmo! — Lady Augusta bateu palmas, muito
contente.
Na tarde seguinte, no parque, Sthephanie contou a Hetta o que na verdade
acontecera, baseada na revelação do amigo de sua tia.
— Desnecessário dizer que, se Cedric terminou seus dias em um asilo de
loucos, não foi por falha herdada.
Hetta, feliz por haver esclarecido o assunto, estava a ponto de contar as
próprias novidades, quando reparou na seriedade de Sthephanie. Lady Beresford
respondeu com frieza a um sorriso brilhante e a um caloroso acenar de mão do
condutor de uma carruagem leve que passava.
— Por sua resposta fria, lady Sthephanie, posso deduzir que não gosta muito
do honorável Simon Fairfax. Também não fiquei muito impressionada quando de sua
visita a Hampshire. Dizem que, desde que voltou de Paris, sir Fairfax tem feito a
corte a uma jovem rica.
— Desejo à moça que seja feliz com ele, mas, como disse, Simon não me
agrada.
Sthephanie tratou de mudar de assunto e perguntou por lorde Pentecost.
— Perry queria que nos casássemos no verão — Hetta explicou, sem
entusiasmo — mas prefiro esperar mais.
— Por quê? Não está certa de seus sentimentos?
—- Não se trata disso. É que… sei que a mãe dele não aprova a escolha do
filho.
— Lady Pentecost não estaria de acordo com nenhuma decisão dele.
— Pode ser. No entanto, seria melhor aguardar até os trinta anos de Perry,
quando ele poderá escolher sem a interferência da mãe.
— Mas ainda faltam quase seis anos!
— Nem eu nem Perry gostaríamos de adiar o matrimônio, milady. Ele até disse
que prefere a felicidade à riqueza. Quanto a mim… sei bem o que é viver sem luxo, e
isso não me afetaria. — Suspirou. — Só não quero ser responsável por privá-lo de
tudo a que Perry tem direito, mesmo estando certa de que viveríamos muito bem sem
riqueza. Perry quer falar com a mãe, no final da semana, quando ela chegar à cidade.
— Não concordo com isso.
— Então acha ser melhor esperarmos?
— Para falar com sua futura sogra? Com certeza! Por que os dois não vêm
amanhã cedo conversar com lady Templehurst? Não temos planos de desistir.
Durante a ausência de Sthephanie, lady Augusta foi obrigada a rever certas
providências, em virtude da chegada inesperada de lady Knightley. Contudo, a boa
78
senhora não viu motivos para Sthephanie declinar da recepção noturna para ficar com
a prima, e encorajou-a a jantar com sua irmã Lavínia em Grosvenor Square, como
fora planejado. Assim que a prima saiu, Elizabeth aproveitou para falar com lady
Augusta.
— Sthephanie parecia bem disposta quando chegou do passeio ao Hyde Park.
Deve ser por causa das boas novas de Hetta.
— Isso mesmo, minha querida Lizzie. Sthephanie está contente pelo jovem
casal, mas também por sua chegada imprevista a Londres.
— Para falar a verdade, eu estava muito impaciente. As crianças estão bem
cuidadas. Tenho uma ama seca muito eficiente e devotada, Ágata Stigwell. Milady,
será que Sthephanie suspeita que a senhora confiou em Richard e em mim?
— Ela soube, sem que ninguém lhe tivesse dito, no instante em que resolvi
passar duas noites em Knightley Hall. Sthephanie não é nenhuma tola, Lizzie. É só
falar no dr. Carrington para ela ignorar ou mudar de assunto. Acho que seria melhor
para minha sobrinha abrir o coração para outra pessoa, em vez de continuar tentando
esconder a infelicidade.
Naquele exato momento, Thomas estava no escritório de Knightley Hall,
jogando xadrez com Richard.
Sir Knightley compreendia que o amigo não desabafaria enquanto não tivesse
vontade de fazê-lo, e que não o faria na frente de Elizabeth. Após despedir-se da
esposa, que ia rumo a Londres, Richard mandara um bilhete ao dr. Carrington,
convidando-o para jantar. A resposta foi imediata e favorável.
A conversa fluiu agradável durante a refeição, mas logo Thomas cedeu a
momentos de abstração, nos quais sua mente duelava com fatos que ele daria tudo
para esquecer.
— O que é que o deixa tão distraído? — Richard quis saber, após mover um
peão.
— Nem é preciso que eu responda, não é mesmo? Lady Templehurst contou-
lhe?
— Sim. Ela confidenciou a mim e a Elizabeth, antes de ir a Londres. Mas
entendo que você se apaixonou por lady Sthephanie antes mesmo de viajar para
Wiltshire.
— Não imaginei que eu fosse tão transparente, Richard. — Thomas quase
sorriu.
— Meu amigo sabe que temos a mesma experiência, embora meus sofrimentos
sejam menos profundos que os seus.
Richard parou de jogar e bebeu um gole de vinho. Thomas esvaziou a taça e
tornou a enchê-la.
Thomas se excedia naquela noite, o que devia estar fazendo havia semanas, e
já começava a dar demonstrações disso. A tez ficara pálida e era acompanhada por
olheiras escuras que sublinhavam os olhos baços. O desleixo com a aparência
tornara-se mais marcante. Os cabelos desalinhados e um tanto longos encontravam a
gola do casaco vincado. A gravata parecia mais um trapo velho amarrado no pescoço.
— Não pode continuar assim, Thomas.
— Eu sei. Venho tentando afogar minhas mágoas, sem resultado. Recebi uma
79
carta de sir William Denton, convidando-me a passar uns dias em Londres para
assistir a algumas de suas conferências, que ele acha serem interessantes para mim.
— Se eu fosse você, aceitaria. Uma mudança de ares poderá ser benéfica. Por
que não vem comigo? Vou encontrar-me com Elizabeth no começo da próxima
semana.
— E por que não? — Thomas deu um riso amargo. — Tentarei tudo o que me
ajude a esquecer.
— É o que deseja? Esquecê-la?
— Não… Mas como pode haver um futuro para nós? Sthephanie é uma dama
da nobreza, enquanto eu… Oh, Richard! Com tantas mulheres na face da Terra, por
que tive logo de apaixonar-me por ela?
Richard imaginou a provação que o amigo enfrentara ao ficar a sós com
Sthephanie, por não se julgar digno de casar-se com ela, além de respeitá-la demais.
No entanto, se Sthephanie o amava de verdade, ainda existiam esperança. Ela
não se deteria, mesmo se tivesse de enfrentar oposição ao casamento.
Contudo, Richard não externou seus pensamentos.
Quando Thomas chegou, na hora aprazada, Richard alegrou-se por ver que o
amigo não só nao desistira da idéia, mas também dera o primeiro passo no sentido de
sua recuperação. Até mesmo cortara os cabelos.
A manhã estava seca e brilhante, ideal para viajar em carruagem aberta. Os
dois amigos pararam apenas para trocar os cavalos e almoçar em uma estalagem.
Alcançaram a periferia da cidade com tempo excelente, e Richard foi forçado a
reduzir a velocidade por causa do volume de tráfego.
— Tinha me esquecido de como a capital é apinhada de gente — Thomas
comentou, sem entusiasmo. — A menos que minha vida dependesse disso, nada me
faria ficar aqui por mais de poucos dias.
— Sei o que quer dizer. Elizabeth e eu passamos algum tempo em Londres na
primavera. Mas nunca ficamos tristes por deixar o barulho e o ar viciado para trás e
retornar a Hampshire.
— É verdade, mas você está fazendo a visita mais cedo este ano. Em geral
costuma vir no término da estação.
— Ah, não lhe contei? — Richard demonstrou surpresa. — Ofereci minha
residência para lady Templehurst ficar durante sua estada aqui. Elizabeth resolveu vir
e ficar uns dias com ela.
— Sthephanie também veio? — Thomas perguntou, depois de um período de
silêncio.
— Claro! — Richard não se incomodou com o olhar fulminante de Thomas. —
Veja bem, meu amigo, não pretendia enganá-lo. No entanto, deve admitir que nas
últimas semanas temos nos encontrado muito pouco. Eu gostaria que ficássemos
juntos, e tinha intenção de levá-lo para casa primeiro. Porém, se preferir ir direto ver
sir William, eu entenderei.
Não houve resposta.
— Meu camarada, você terá de encontrá-la mais cedo ou mais tarde — Richard
continuou. — Elizabeth e eu esperamos convencê-la a voltar a Hampshire no verão.
Não teremos sucesso na empreitada se Sthephanie suspeitar que a presença dela em
80
nosso lar o manterá afastado de nós.
— Bom Deus, eu não havia pensado nisso! Jamais teria intenção de deixá-la
constrangida. Tem razão. Vamos passar em sua casa primeiro.
Era difícil tomar aquela decisão, e Thomas sentiu-se dividido. Receava
defrontar-se de novo com Sthephanie e perder o controle. Por outro lado, se a evitasse
àquela altura, poderia nunca mais tornar a vê-la. E isso era mais do que poderia
suportar.
Havia ainda a possibilidade de Sthephanie não querer vê-lo. Depois do que
ocorrera, eles não haviam tido oportunidade de conversar em particular, nem no
trajeto de carroça dos Price até Devizes, nem antes de ela sair na carruagem alugada
com destino a Bath.
Estava convencido de que tomara a decisão certa em não aproveitar-se da
situação. Mas isso trouxera-lhe o arrependimento por não ter permanecido com
Sthephanie naquela noite.
Sem decidir ao certo se deveria ter vindo, Thomas desceu do veículo e seguiu
Richard até a mansão elegante.
As três o encararam com surpresa, mudas. Dali a instantes, Sthephanie ergueu-
se e, com toda a dignidade e graça, pelo que mais tarde lady Augusta, com lágrimas
nos olhos, confessou aos Knightley sentir-se orgulhosa de ser tia dela, foi
cumprimentar Thomas, com a mão estendida.
— Prazer em vê-lo, dr. Carrington. Não sabia que viria com Richard a
Londres.
Thomas segurou-lhe os dedos delicados.
— Na verdade, milady, foi uma decisão de última hora. Sir William Denton
convidou-me para assistir a palestras sobre tratamentos aperfeiçoados de algumas
doenças.
— Sempre o trabalho, dr. Carrington! — lady Augusta, enfim, conseguiu falar.
— O senhor nunca descansa? Espero que pelo menos encontre tempo para vir a nossa
festa, na noite de quinta-feira.
— Não posso prometer, milady, antes de saber o que sir William tem em
mente.
Thomas não se arriscaria a ter de ficar perto de Sthephanie. Naquele momento,
não apertá-la nos braços era um verdadeiro tormento. Como era adorável!
— Espero que minha receita tenha sido eficiente. Milady continuou com
problemas após as refeições?
O olhar de Sthephanie para a tia deu a entender que ela já desconfiava de que a
tia deixara Kent com o propósito de conhecê-lo.
— Sim — lady Templehurst respondeu à muda acusação de Sthephanie e ao
médico. — O remédio operou milagres, dr. Carrington. Desde aquele dia, não tive
mais problemas. Ia mesmo pedir-lhe que me receitasse um suprimento extra para
levar a Bath.
Elizabeth ofereceu-lhe bebidas para quebrar o embaraço da situação. Richard
recusou-se a prolongar a agonia do amigo e resolveu levá-lo à casa de sir Denton.
Richard não demorou a voltar, e encontrou as mulheres fazendo planos para a
próxima recepção.
81
— As senhoras parecem aquelas três velhas de Macbeth. Que coisa! O que
estão conspirando?
— Não sei se deveria dizer-lhe, depois dessa demonstração de impertinência
— Elizabeth disse, com indignação forçada.
— Não sei como poderá evitar de contar-lhe, cara prima, se é ele quem vai
fazer o pronunciamento. — Sthephanie já se mostrava mais animada.
— Posso perguntar que “pronunciamento” é esse?
— Ótimas notícias, Richard! — Elizabeth exclamou. — Perry pediu a mão de
Henrietta Dilbey, e ela aceitou.
— Tenho a impressão de que ainda não me contaram tudo. Aguardo
explicações.
Thomas acordou cedo na manhã seguinte, como era de seu costume. Não havia
palestras agendadas para aquele dia. Sir William tinha outros compromissos, e
Thomas tinha folga suficiente para fazer como lhe aprouvesse. Estava para sair,
quando Richard apareceu.
— Já que não tem compromisso, amigo Thomas, que tal acompanhar-me ao
alfaiate?
— Pelo amor de Deus, Richard! Já não possui trajes suficientes?
— Eu, sim, mas você, não!
— Talvez tenha razão… — Thomas fitou a manga da jaqueta confortável, mas
nada elegante. — Um ou dois itens de vestuário até podem ser necessários.
Richard, contudo, tinha outros planos. Quando deixaram a loja, Thomas já se
tornara um orgulhoso possuidor de meia dúzia de paletós elegantes, várias roupas
íntimas, camisas novas e uma ampla variedade de gravatas. Abismado consigo
mesmo, indagou a Richard se ele pretendia arruiná-lo.
— Você não é um pobre, Thomas. Além disso, já poderá estrear o casaco preto
na nossa festa de amanhã.
— Poderia, se tivesse intenção de comparecer, mas não tenho. E deve entender
por quê, não é?
Por algum motivo inexplicável, Richard não contou que a festa informal que
fora planejada havia se transformado em um baile para celebrar o noivado de Perry e
Hetta, nem chamou o amigo para dele participar. Apenas sugeriu parar no clube para
tomar um drinque.
Àquela hora, o White's estava quase deserto. Eles ocuparam uma das muitas
mesas vazias, e Richard preparou-se para fazer o pedido, quando entrou o visconde
Dartwood, um bom amigo.
O visconde e a esposa tinham visitado Knightley Hall em várias ocasiões, e
Thomas os conhecia. Não se encontravam fazia muito, e as novidades eram muitas.
O assunto girou em torno das alegrias da paternidade. Thomas não se
interessou pelos comentários e passeou o olhar pelo recinto. Foi o primeiro a notar a
entrada de um cavaleiro bonito e loiro. Quando Richard percebeu o que acontecia, já
era tarde.
Furioso, Thomas levantou-se e deu um soco no rosto do recém chegado, antes
de Richard ou o visconde poderem intervir. Richard tentou, contudo, segurar o amigo
pelos antebraços.
82
— Chega, Thomas! Você já o derrubou!
Richard pediu ajuda ao visconde para escoltar o amigo comum para fora, e
voltou-se para o garçom que havia acorrido ao ver a confusão.
— Não houve nada. O sr. Fairfax tropeçou e bateu na mesa. Traga conhaque!
—Não adianta proteger seu amigo, Knightley! Vou desafiá-lo!
— declarou Simon erguendo-se, com sua dignidade ferida.
— Tive a impressão de que era a você que eu protegia
— Richard retrucou, com toda a calma.
Arrumou as mesas e viu, sentado a um canto, o coronel Fitzpatrick.
— Encerremos o assunto por aí, Simon, e esqueça-o. Não seria nada agradável
se as razões dessa ligeira altercação viessem a público.
— Então conhece os motivos, não é? Também deveria saber que, para a dama
em questão, também não seria bom se a verdade aparecesse.
— Concordo. Mas haveria de ser muito mais prejudicial para você… E eu me
encarregaria disso. Desse modo, sugiro que me escute com atenção.
Richard não demorou mais que alguns minutos para convencer Simon a
desistir da desforra, não sem antes escutar-lhe as desculpas e as explicações. Depois,
saiu do salão e descobriu que só o visconde estava a sua espera.
— O que foi isso, Richard? Fairfax não me agrada muito, mas não se pode sair
dando murros em um clube de cavalheiros. A freqüência de Thomas será proibida,
mesmo antes de ele pleitear uma adesão.
— Ele teve um bom motivo para comportar-se daquela maneira, Dartwood,
porém, como há uma dama envolvida, não posso explicar do que se trata. Onde está o
jovem afrontado?
— Mandei-o esfriar a cabeça no Hyde Park.
— Oh, Deus!
As coisas iam de mal a pior. Sthephanie planejara cavalgar com Perry naquela
manhã, e Richard rezou para que ela não encontrasse Thomas no atual estado de
espírito.
O parque não estava cheio. Ainda não era hora de a sociedade mostrar sua
elegância ao mundo. Por isso é que Sthephanie gostava dos passeios matinais. Assim,
podia usufruir de seu exercício favorito sem ter de parar a cada minuto para
cumprimentar os inúmeros conhecidos.
Conversava com Perry sobre o anúncio do noivado no baile do dia seguinte,
quando viu Thomas caminhando a passos largos pela grama. Por ela, teriam mudado
o trajeto para não encontrá-lo. Mas Perry também o vira.
— Ora se não é o dr. Carrington! — ele exclamou, entusiasmado, antes de
saudar seu novo médico.
Thomas estacou e não teve alternativa a não ser ir ter com deles.
— Ainda na cidade? Imaginei que não gostasse da vida na cidade, lorde
Pentecost.
— Desta vez me alegrei com a visita, o que em parte devo ao senhor, dr.
Carrington. E desde que descobri, graças a Sthephanie e a lady Augusta, que a
perturbação mental de meu falecido tio foi resultado do acidente.
— Fico satisfeito em saber que o mistério foi desvendado. — Thomas fazia o
83
possível para não fitar Sthephanie, que não tirava os lindos olhos dele. — Por quanto
tempo ainda pretende ficar?
— Uma semana, no máximo. Minha mãe deve chegar por esses dias.
Sthephanie engasgou e deu uma tossidela. Por fim, eles se entreolharam, e ela
tentou interpretar a mensagem silenciosa. Queria desesperadamente acreditar que
Thomas a amava, mas precisava de respostas, antes de ousar confiar em seus instintos
outra vez.
Sthephanie estava a ponto de indagar se teriam o prazer de contar com a
presença de Thomas no baile dos Knightley, quando uma carruagem esportiva vindo
na pista de rolamento chamou-lhe a atenção. Era o futuro rei. De repente, apareceu
uma bola vermelha à frente do coche, e um menino correndo logo atrás.
Aterrorizada, ela escutou o grito lancinante da mãe e viu o regente tentando
virar o veículo à esquerda. No instante seguinte, Thomas atirou-se no caminho e
agarrou a criança nos braços. Foi um milagre. Ambos acabaram deitados na grama; o
menino assustado, mas ileso.
Perry apressou-se a desmontar e ajudar Thomas a erguer-se. A mãe apanhou o
filho pequeno e soluçou mil agradecimentos. O regente parou os cavalos fogosos
mais adiante, entregou as rédeas ao cavalariço e foi juntar-se ao grupo.
— Benza-o Deus, dr. Carrington! — Perry cumprimentou-o. — Que belo
trabalho!
— Na verdade, foi mesmo! — Sua Alteza concordou, abalado pela quase
catástrofe, e enxugou o suor da testa com um lenço de seda.
Sthephanie percebeu que Thomas não estava nada satisfeito com o excesso de
atenções e resolveu ir em seu auxílio. Desmontou e abriu caminho por entre os
curiosos que se amontoavam ao redor do cenário.
— Lady Sthephanie Beresford, sir — ela lembrou ao regente, apesar de já
terem se encontrado várias vezes. — Filha do conde de Eastbury.
— É lógico! Sim, lembro-me muito bem da senhorita, minha querida.
Sthephanie duvidou, mas não se ofendeu. Pelo número de pessoas que eram
apresentadas a ele, não podia esperar que se recordasse de todas. Virou-se para a mãe
transtornada e sugeriu que levasse o menino para casa. Depois, apresentou Thomas e
Perry ao regente.
— Um prazer enorme conhecê-lo, dr. Carrington — Sua Alteza tomou-lhe a
mão. — Nem sei o que teria acontecido se não fosse por sua pronta intervenção. O
senhor é um homem de coragem!
O regente virou-se para Sthephanie.
— Milady fez bem em mandar a mãe sair daqui. Não deviam trazer crianças a
este parque tão movimentado. O Green Park é muito mais tranqüilo.
— Se me permite sugerir, sir, eu o aconselharia a descansar um pouco —
Thomas recomendou, com um olhar profissional para o futuro soberano. — O
incidente lamentável deve tê-lo desgastado muito.
— Bem lembrado, dr. Carrington.
Sua Alteza tornou a agradecer e foi embora. A multidão dispersou-se.
Sthephanie percebeu que Thomas queria fazer o mesmo, e preparou-se para
montar.
84
— O senhor irá ao baile dos Knightley amanhã, não é mesmo, dr. Carrington?
Ficaríamos muito felizes se compartilhasse de nossas boas novas.
— Tenho receio de que não poderei comparecer, lorde Pentecost. Tenho outros
planos.
Dito isso, Thomas afastou-se depressa.
— Uma pena ele não poder ir… Se não fosse pelo dr. Carrington e por você, eu
não seria o homem feliz que sou hoje.
Perry fitou a amiga com olhar cúmplice.
— Deve ter compreendido que minha mãe sempre soube da verdade sobre tio
Cedric, não é, Sthephanie? Foi uma crueldade ela não ter-me contado, embora não se
pudesse esperar outra coisa. Mamãe nunca se excedeu em bondades comigo. Mas
jamais permitirei que ela faça isso com Hetta. Por esse motivo, aceitei a sugestão de
sua tia, para não revelar a ela nossas intenções. Uma vez o noivado oficialmente
anunciado, lady Pentecost não poderá alterar o desfecho. Estou felicíssimo por você
estar aqui para celebrar o momento conosco. Pena que o dr. Carrington não possa vir.
Tenho muita admiração por ele. Perry pensou um pouco, preocupado.
— Será que o ofendi, Sthephanie, por haver consultado o especialista aqui em
Londres, depois de ele ter-me dito que não havia razão para me preocupar?
— Não é isso, Perry. -— Os olhos dela se encheram de lágrimas. — A decisão
tem mais a ver comigo.
Sthephanie lamentou ter saído da festa, mas também não se alegrou por chegar
em casa. Não estava cansada, apenas deprimida. Só Elizabeth e a tia poderiam
entendê-la. Por sorte, ninguém fizera menção de retê-la na recepção de lady
Cossington.
Entregou a capa de veludo ao eficiente mordomo, cruzou o hall e parou ao pé
da escada. Sabendo que não dormiria, decidiu ir à procura de um passatempo.
A biblioteca dali, assim como a de Knightley Hall, era bem abastecida. Sem
dúvida acharia um livro de seu gosto.
— Richard! — Não escondeu o espanto por encontrar o primo ali. — Pensei
que iria ao clube esta noite.
— Resolvi ficar aqui e aproveitar a tranqüilidade noturna. Mas a solidão é
muito triste. Será que poderia fazer-me companhia?
Sthephanie sentou-se na cadeira do lado oposto da lareira, e Richard ofereceu-
lhe uma taça de vinho.
— A festa não lhe agradou?
— Não. Para falar a verdade, Richard, se não fosse por lady Templehurst, eu
teria ficado em Kent. Contudo, estou ansiosa pelo baile de amanhã, por razões óbvias.
A felicidade de Perry é muito importante para mim. Nem sei como agradecer-lhe por
haver permitido que tia Augusta fizesse uma festa tão grande em sua mansão.
— Não sente remorsos por estar usando de um subterfúgio? — ele caçoou.
— De jeito nenhum. Lady Pentecost não merece consideração. Mesmo quando
Perry era menino, jamais conseguiu agradar à mãe. Ele teve uma infância infeliz. Não
é de espantar que haja se tornado um adulto inseguro, embora agora tenha melhorado
bastante. Não podia ficar assistindo àquela malvada arruinar o resto da vida do filho
sem fazer nada.
85
— Você é uma jovem determinada, Sthephanie.
— Sou, quando acredito em meus objetivos. E creio com sinceridade na
bênção de uma união entre Hetta e Perry.
— E estou inclinado a concordar com isso. Poucos encontram o par ideal e,
quando isso acontece, não se deve perder a chance de ser feliz. Ele a ama,
Sthephanie.
Ela nem tentou disfarçar, e traiu seus sentimentos com um longo suspiro.
— Será mesmo, Richard? Se eu pudesse ter certeza…
— E o que a faz duvidar disso?
— Thomas não tentou entrar em contato comigo antes de vir a Londres, nem
mesmo por carta. E agora, quando tem a oportunidade de ficar a meu lado, se mantém
a distância. Nem mesmo virá à festa.
— Sei disso. Estive com Thomas hoje pela manhã. Cometi o erro de levá-lo ao
clube. Imagine quem chegou depois de nós. Simon Fairfax, em carne e osso.
— Sabia que o canalha estava por aqui! Eu o vi, há alguns dias, no parque.
— Patife! Fairfax teve a audácia de confidenciar-me que nunca pretendeu
causar-lhe nenhum mal e que gostaria de recompensá-la! Contou ainda que, depois de
procurá-la, voltou para casa e descobriu que a criada tinha fugido com o dinheiro e as
jóias que você havia deixado. Simon foi a Paris atrás dela, mas não encontrou nem a
sombra da moça.
— Que ótimo! Apesar de tudo, Latimer seguiu meus conselhos. E creia: não
estou aborrecida. As jóias, mesmo não sendo as peças mais caras, serão suficientes
para as necessidades dela, até que aprenda o ofício que desejar. Se não fosse por
Latimer, eu não teria escapado das garras de Simon.
— E se não fosse por ela, não teria estado metida naqueles apuros, Sthephanie.
Mas console-se. Um dos desafetos acabou de olho roxo.
— Ouvi mesmo rumores na mansão de lady Cossington de que alguém acertara
um soco no rosto de Simon. — Sthephanie achou graça. — A quem devo agradecer?
A você, meu primo?
— Não. Eu teria o maior prazer de obsequiá-la com a façanha, minha querida,
mas não em um clube de cavalheiros. Thomas, contudo, não teve tais escrúpulos.
Ele notou Sthephanie se entristecer.
— Não tento desculpá-lo pelo comportamento inadequado, mas ouso dizer que
Thomas não se considera bom o suficiente para você. E ainda há um fato a
considerar. Na certa iria enfrentar uma oposição firme de alguns membros de sua
família, Sthephanie.
— E acha que não pensei nisso, Richard? Mas conheço meu pai. Ele cederia se
viesse a conhecer a dedicação e a inteligência de Thomas. — Riu com amargura. —
Que ironia! Sempre tive receio de ser cobiçada por minha riqueza e acabei
encontrando um homem com que eu poderia ser feliz, mas, se o que você me disse é
verdade, para quem a fortuna representa uma barreira.
— Não tem de ser assim, Sthephanie.
— Nem deveria! Richard, se eu pudesse ter certeza de que Thomas me ama de
verdade, moveria céus e Terra para convencê-lo. Mas como fazer isso se ele nem ao
menos me olha ou fala comigo?
86
Apesar de sua certeza, Richard achou por bem não insistir no assunto no
momento.
Depois de Sthephanie haver saído, ele permaneceu mergulhado em suas
conjecturas, até as damas chegarem. Eli-zabeth veio vê-lo, antes de recolher-se.
— Como foi a noite, minha querida?
— É difícil aproveitar as horas, meu amor, quando se sabe como Sthephanie
está infeliz. Ela usa de toda a coragem para demonstrar normalidade.
— Eu sei. Esta noite, falei com ela pela primeira vez sobre o assunto.
Sthephanie enfrentou o diálogo com firmeza e não se derramou em lágrimas. Seria a
companheira ideal para Thomas. Estou convencido de que nossa prima o ama, tanto
quanto ele a ela.
— Oh, Richard… — Elizabeth comoveu-se e puxou o lencinho da manga. —
Será que não podemos fazer nada?
— Podemos, minha querida. E agora estou preparado para quebrar minha regra
de ouro de não interferir… e vou tentar!
Na tarde seguinte, depois de ouvir a primeira das palestras, Thomas voltou para
a casa alugada de sir William. O bom médico convidou-o para ir ao clube, mas
Thomas preferiu manter-se longe do White's.
Nem ao menos saiu, com medo de encontrar-se com Sthephanie. Mas a
imagem dela não lhe saía do pensamento.
Acabou por revisar as anotações que fizera durante a conferência. Estava no
escritório da frente, quando o mordomo anunciou a presença de Richard.
— Bom Deus! Não esperava vê-lo hoje. Achei que estaria ocupado com os
preparativos de última hora para o baile. Mas é desnecessário dizer-lhe quanto sua
visita me agrada. Sente-se. Quer uma taça de vinho?
— Não, obrigado, Thomas. Como você mesmo disse, ainda tenho muitas
coisas para fazer. Não posso demorar-me. Deixei as senhoras arrumando as flores.
Sei que vim até aqui por uma causa perdida, mas prometi que faria uma última
tentativa para fazê-lo mudar de idéia e vir à festa.
— Richard, sabe por que não posso. — Thomas suspirou.
— Mas Sthephanie gostaria muito que viesse para compartilhar a alegria dela.
Farei a participação às onze.
— Participação?
— Bem sei que ambos pretendiam manter segredo até esta noite, mas tenho
certeza de que não irão opor-se a eu contar-lhe. Vou anunciar o noivado deles.
Sthephanie está muito contente, e Perry, nas nuvens, por haver conquistado uma
jovem tão adorável. — Richard conteve-se para não gargalhar, por estar usando
aquele estratagema.
— Está brincando comigo! — Então, Thomas lembrou-se de Perry haver
mencionado uma celebração e falou, sem entusiasmo: — Não pode ser verdade.
— Mas é, meu velho. Elizabeth e eu achamos que eles formam um belo par e
combinam em tudo.
— Richard, não pode estar falando sério!
Thomas ergueu-se abruptamente e começou a andar de um lado para outro,
qual tigre enjaulado. Apesar de sua brilhante inteligência, não se encontrava em
87
condições de raciocinar, o que era muito bom na atual conjuntura.
— Graças a Sthephanie, passei a ter outra opinião sobre Perry. É um jovem
inteligente e tem uma visão sensível sobre vários assuntos. Passamos muitas noites
em minha mansão, e ele revelou-se um exímio enxadrista. Quase conseguiu ganhar
de mim!
— Xadrez? — Thomas parou de andar e passou os dedos nos cabelos. — O
que tem isso a ver com o resto? Ela não o ama… Você sabe disso.
— Como poderia fazer essa afirmação? — Richard não gostava daquele jogo,
mas tinha de continuar. — Deve recordar-se, Thomas, que pessoas de minha classe
em geral não se casam por amor. Respeito e consideração na maioria dos casos são
suficientes. Há exceções, como Elizabeth e eu. Mas muitos se enlaçam para unir as
famílias e ampliar o tamanho das propriedades.
Thomas, arrasado, recomeçou a andar. Richard resolveu ir embora, antes de
ceder a sua consciência e contar-lhe a verdade.
— Tenho de ir. Há muitas tarefas a minha espera. — Richard voltou-se antes
de chegar à porta. — Posso dar suas felicitações ao jovem casal?
— Não pode, não, infeliz! — A expressão era dura e ressentida. — Richard,
não pode deixar isso acontecer. Faça-a recuperar o juízo, pelo amor de Deus!
— Eu? — Richard fingiu surpresa. — Não sou eu quem pode fazer alguma
coisa.
— Então eu o farei! Sthephanie só se casará com Pentecost passando por cima
do meu cadáver!
Satisfeito com o resultado, Richard saiu e deixou Thomas entregue à
caminhada sem fim.

Apesar de lady Templehurst ter-se mudado para Bath dez anos antes, não
perdera a popularidade entre os membros da sociedade. Sua assinatura nos convites
foi suficiente para muitos cancelarem outros compromissos e comparecer ao baile dos
Knightley.
Por sua vez, sir Richard e Elizabeth faziam parte de um vasto círculo de
amigos, e todos fizeram questão de prestigiá-los.
Por volta das dez e meia, os dois salões contíguos do andar superior, ricamente
decorados para a ocasião e mais do que adequados para comportar todos os
convidados, começaram a lotar.
Desnecessário dizer que as anfitriãs ficaram satisfeitíssimas com os resultados
de seus esforços e consideraram uma verdadeira proeza organizar um baile em tão
pouco tempo.
Hetta estava encantadora, em seu vestido de seda amarelo pálido. Dançando
com o futuro marido, irradiava felicidade, o que tornava qualquer esforço despendido
bastante válido.
Desde a chegada de lady Pentecost à cidade, Perry e Hetta decidiram, com
acerto, evitar encontrar-se, para não despertar as suspeitas da viúva. Pelo jeito, a
tática dera certo. Lady Pentecost fitava-os sem interesse maior, como se Hetta fosse
uma convidada qualquer. Devia imaginar que o filho estava apenas sendo cortês com
a sobrinha de um vizinho.
88
O que era muito apropriado para o que estava para acontecer em menos de
meia hora, Elizabeth cismava, quando foi interrompida por mais uma convidada
retardatária.
Lady Fitzwarren, uma matriarca viúva, acabara de chegar à entrada do primeiro
salão. Mal trocara algumas palavras com os anfitriões, quando começou um pequeno
tumulto no andar inferior. Dali a instantes, um homem alto e atraente, feroz e de
cenho franzido, irrompeu escada acima. Passou por ela com tal fúria que por pouco
não a derrubou.
— Andem, me digam! Onde ela está?! — ele indagou, com rudeza.
— Lá na frente, à direita, conversando com a irmã — Richard respondeu, sem
a menor preocupação.
Sir Knightley observou-o cruzar o salão, agarrar o pulso de uma jovem dama e
puxá-la.
— Hetta, viu o que aconteceu? — Lorde Peregrine indagou, surpreso, quando
ficaram frente a frente.
— Sim e acho que muitos repararam. Um comportamento estranho, não é
mesmo?
— Nem tanto. Posso não ter feito grandes descobertas, querida, mas observo
tudo. Percebi que havia alguma coisa errada com Sthephanie, desde sua chegada a
Londres. E ontem, quando nos encontramos com o dr. Carrington no parque, entendi
que… Bem, Sthephanie está apaixonada por ele, Hetta. Aposto minha vida nisso! E
não me surpreenderia que o dr. Carrington nutrisse o mesmo sentimento por ela.
Hetta surpreendeu-se e fitou o noivo com um sorriso brilhante de admiração.
— Perry, você é notável! Isso jamais teria me ocorrido. Mas agora que
mencionou o assunto… Sim, acredito que tem razão. Meu Deus! Isso deixará muitas
sobrancelhas erguidas.
Lady Fitzwarren permanecia em pé, ao lado da porta, aturdida por aquele
comportamento nada convencional.
— Juro por Deus, nunca vi nada igual! Aquela não é a jovem Eastbury, sua
sobrinha, Augusta?
— É, sim. — Lady Templehurst tentou conter a animação que experimentava
pela chegada imprevista, mas muito gratificante, do dr. Thomas Carrington.
— Knightley, milorde não vai tomar providências? — lady Fitzwarren
perguntou. — Ele está parecendo um demônio! Pode até machucar a moça.
— Não creio nisso, milady — Richard contestou, imperturbável. — Lady
Sthephanie Beresford é uma jovem destemida e é mais do que capaz de controlar a
situação.
Richard não teria dito isso com tanta certeza se estivesse na biblioteca naquele
momento. Seria testemunha das sacudidas violentas de que a prima de sua esposa
estava sendo vítima. Veria ainda que o belo arranjo de flores que lhe enfeitava os
cabelos ameaçava despencar.
— Como ousa fazer isso, Thomas?! Onde já se viu arrastar-me até aqui e
tratar-me dessa maneira odiosa? Isso é inadmissível!
— E não use esse tom altivo comigo, minha jovem! — Thomas grunhiu, por
trás dos dentes cerrados, e tratou de conter-se para não repetir o gesto. — Não
89
permitirei que prossiga com isso, entendeu? Sofri os horrores do inferno para que
milady pudesse manter sua virtude! E não me venha dizer agora que se atirou em
cima do primeiro rapaz que a pediu em casamento!
Sthephanie observou-lhe a fisionomia tensa. Ainda indignada, escutou as
palavras, embora não entendesse seu significado.
— Quer fazer o favor de soltar-me? — ela pediu com suavidade, e ele acedeu.
Thomas continuou a vigiá-la, como um predador faz com a presa, enquanto
Sthephanie se sentava em uma das cadeiras.
— Acho que me deve uma explicação por ter invadido a festa desse jeito,
doutor.
Sthephanie percebeu que ele continuava irado. Mas também havia muita dor
naquele olhar cinzento.
— Milady sabe muito bem por que estou aqui. Não deve permitir que esse
casamento seja anunciado!
— Não? E por quê?
— Como é que pode perguntar-me isso?! Essa é boa! — Ameaçador, Thomas
deu um passo na direção dela.
Por um momento, Sthephanie imaginou que ele fosse sacudi-la de novo, mas
controlou-se.
— Tudo bem, talvez eu não devesse mesmo estar aqui. Afinal, não tenho o
direito de imiscuir-me em assuntos alheios. Apenas responda-me a uma pergunta:
você o ama?
— Quem?
— Pentecost, é claro! — ele gritou, no limite de sua resistência.
— Não, não amo Perry. Estou apaixonada por… Thomas Carrington!
— Deus! Sthephanie, não é possível! Não vê que sinto a mesma coisa? Que a
simples idéia de que irá casar-se com Pentecost ou com qualquer outro é suficiente
para estraçalhar-me?
O grande desespero de Thomas não impediu que a alegria de Sthephanie viesse
à tona.
Ele a amava! Tinha certeza disso! E dali para a frente ninguém impediria que
tivessem um futuro juntos.
— Mas não pretendo casar-me com Perry — ela afirmou, com voz clara como
água.
Thomas fitou-a, desconfiado.
— Mas Richard disse-me que iria anunciar o noivado esta noite.
Sthephanie começou a ligar os fatos. Ela vira Richard voltar para a mansão
muito alegre. Se o primo fora o responsável por trazer Thomas à festa, sem dúvida
lhe agradeceria pelo resto da vida.
— Richard vai anunciar o noivado entre lorde Peregrine Pentecost e a srta.
Henrietta Dilbey, Thomas.
Por um momento, ele pareceu não ter ouvido. Depois, passou a fitá-la com
muita atenção.
— Mas eu entendi Richard dizer que… Ah, que Deus me perdoe! Comerei o
fígado dele por isso!
90
— Não será preciso. — Sthephanie o olhava com a serenidade de quem
controlava a situação. Saber que eram destinados um para o outro permitiu-lhe fazer
uma pergunta direta: — Thomas, quando foi que se apaixonou por mim? A questão
pegou-o desprevenido. Ele daria tudo para negar, mas já era tarde demais. Seus atos
naquela noite haviam-no traído.
— Não sei dizer, Sthephanie. — Foi até a lareira e fitou a grelha vazia. —
Acho que foi naquele dia em que lhe mostrei a casa de meu amigo em Melcham.
Lembra? Você falou que a residência não seria grande demais quando eu tivesse uma
esposa e filhos. O problema era que eu só via Sthephanie Beresford como a rainha de
meu lar. Enquadrava-se tão bem ali…
Sthephanie sorriu. Recordava-se muito bem.
— Você foi mais rápido do que eu em perceber em que direção o vento
soprava, Thomas. Só descobri na segunda noite, na cabana, mas então…
Parou de sorrir. Thomas a amava, isso era um fato, mas algumas questões
precisavam ser esclarecidas.
— Qual o motivo de seu comportamento naquela noite, Thomas? Por que me
deixou daquela maneira, fazendo com que eu me sentisse rejeitada e ferida demais?
Por que não entrou em contato comigo durante essas semanas todas? E, depois de
chegar a Londres, por que não fez nenhuma tentativa de ficar a sós comigo?
Thomas fitou o chão por alguns instantes. Depois ergueu a mão e apontou o
maravilhoso corpete bordado do vestido dela.
— Por causa disso.
Confusa, Sthephanie fitou o busto, que aparecia do amplo decote.
— Está insinuando que há algo de errado comigo?
— O quê? Claro que não, tolinha! Você é perfeita! Esse é que é o problema.
— E do quê, em nome dos céus, está falando?!
— Desse broche que lhe dei. — Thomas pareceu ressentido ao fitar o círculo
de prata incrustado com pérolas que enfeitava o vestido de Sthephanie. — Naquela
noite, você deixou-o sobre a cômoda, e foi aí que me lembrei.
Sthephanie não compreendia mais nada.
— Eu lhe disse que a jóia pertencera a minha avó. Mas não lhe contei que ela
logo veio a arrepender-se do casamento precipitado com meu avô. Vovó sofreu
demais e culpava-o por arruinar-lhe a vida.
— Sei. — Sthephanie logo percebeu o que ele temia. — Teve receio de que um
dia pudesse acontecer o mesmo comigo, se não parasse naquela hora e fôssemos
obrigados a nos casar.
Ela nem esperou a confirmação. Ergueu-se da cadeira, com os olhos brilhantes
de censura amorosa e aproximou-se de Thomas.
— Alguns podem considerar uma atitude nobre de sua parte, Thomas. Eu
considero isso uma grande tolice, sem falar que é uma presunção arrogante. O que o
fez supor que, por eu pertencer à mesma classe social de sua avó, teria de comportar-
me de maneira idêntica? Meu temperamento é o mesmo que foi o dela? E o que o fez
crer que, mesmo estando preparado para ser infeliz, tivesse o direito de fazer o
mesmo comigo?
Thomas passou-lhe um dedo no rosto, antes de tomá-la nos braços.
91
— Minha querida Sthephanie, a infelicidade foi tão grande assim?
— Assustadora.
Todas as nobres intenções de Thomas capitularam sob a força do amor
refletido naquelas maravilhosas íris verdes. E ele soube, naquele instante, que a
existência sem ela seria miserável.
A princípio, beijou-a quase com respeito. Mas depois, dando vazão às emoções
contidas durante tanto tempo, com uma urgência que a deixou sem fôlego.
— Minha querida, isto é uma loucura — Thomas murmurou, em uma tentativa
de recuperar o autocontrole e fazê-la raciocinar. — E sua família? Sabe muito bem
que eles não aprovarão.
Relutante, Sthephanie desvencilhou-se do homem amado.
Thomas precisava de uma prova. Se houvesse a mínima possibilidade de
convencê-lo de que estava errado, ele teria de ouvir isso dos lábios da amada e ler a
confirmação em seus olhos.
— Thomas, não fingirei que não haverá oposição. Minha mãe e minhas irmãs
sempre alimentaram a idéia idiota de que eu poderia tornar-me duquesa ou marquesa.
Papai é mais sensato, e sei que ele gostará daquele que escolhi para ser meu marido.
Além do que, você já tem uma forte aliada na pessoa de lady Templehurst.
Aquelas afirmações trouxeram algum conforto, mas Thomas estava ciente de
que havia outras considerações a serem levadas em conta. Pelo menos uma: a que se
referia à diferença da situação financeira entre eles.
— Sthephanie, não sou um homem pobre e posso dar-lhe o conforto
necessário. Mas não há a mais remota chance de que poderei mantê-la no estilo de
vida a que está acostumada. Sei que é uma mulher de posses e… — Sorriu,
resignado. — …quando nos casarmos, não tocarei em um só pêni de seu dinheiro. Ele
será sempre seu, para que faça com ele o que quiser.
Sthephanie não achava o momento apropriado para discutir sua herança.
Thomas era um homem orgulhoso e queria ter certeza de que seria capaz de sustentá-
la. Não havia dúvida de que, no futuro, o assunto tornaria a vir à baila.
Ela poderia sugerir que sua fortuna ajudaria a educar os filhos e dar às filhas
um dote adequado. Afinal de contas, nem todos os homens eram tão teimosos e
orgulhosos como aquele que escolhera para passar o resto da existência.
— Não pretendo viver no luxo, Thomas Carrington — assegurou, com ternura.
— Quero apenas estar a seu lado. E, por favor, pare de procurar dificuldades onde
elas não existem. Em vez disso, por que não mostra a sua futura esposa o marido
amoroso que pretende ser?
Ao contrário de Sthephanie, Thomas previa águas turbulentas à frente. Mas
não duvidava de que, juntos, enfrentariam as correntezas e encontrariam um porto
seguro.

Desde o começo, ele intuíra que Sthephanie era uma pessoa muito especial, e o
tempo só viera confirmar isso. O amor deles transporia todas as barreiras sociais e
permaneceria forte para mantê-los unidos, independente de quantos obstáculos
pudessem encontrar.
Dessa forma, ele tomaria a si a agradável tarefa de provar quanto ela acertara
92
em deixar a felicidade em mãos certas e adoradoras. Thomas estava a ponto de
demonstrar mais uma vez quanto a amava, quando a porta da biblioteca foi aberta.
— Minha querida Sthephanie — Richard avisou, entrando com sua elegância
— lá em cima há várias pessoas preocupadas com seu bem-estar. Sua irmã, por
exemplo, está bastante preocupada, depois de vê-la sair de maneira forçada.
O anfitrião fitou o amigo com uma leve censura.
— Thomas, você não pode abandonar-se a tais ímpetos. Briga no White's,
rapto de donzelas em festas… — Ele parou para inalar uma pitada de rape. —
Lembre-me de ensinar-lhe algumas regras de boas-maneiras.
— E também de dar-lhe um soco no nariz — Thomas retrucou, ameaçador. —
O que pretendia, ao dizer-me que Sthephanie estava para casar-se com Pentecost?
— Sei que sou alguns anos mais velho que o senhor, dr. Carrington, mas ainda
não perdi a memória. Posso jurar que jamais afirmei tal coisa.
Sthephanie achou melhor intervir. Desvencilhou-se dos braços de Thomas e foi
na direção do primo.
— Bem, não sei o que você falou, nem me importo com isso. Mas, seja lá o
que for, tenho de agradecer-lhe do fundo do coração. Saiba que fez de mim a mais
feliz das mulheres.
Richard nem precisou ouvir aquilo. A prova estava estampada no semblante de
Sthephanie.
— Muito bem. Agora, tudo o que preciso saber é se terei de anunciar esta noite
um noivado… ou dois.
Thomas deu uma gargalhada.
— Você pode ser um sujeito inescrupuloso, Richard Knightley, mas sua
inteligência continua intacta. O que acha?
A boca de Richard abriu-se em um sorriso satisfeito.
— Então, posso ser o primeiro de muitos a dar-lhe as mais sinceras
felicitações? Meu amigo, conseguiu conquistar uma pérola rara, e espero que tenha o
bom senso de tratá-la sempre com carinho.
— Essa é minha intenção. — Thomas enlaçou os ombros da amada.
Satisfeito, Richard mirou-os por um momento, antes de recordar-se de seus
deveres.
— Mesmo relutante em demonstrar minha autoridade, tenho a honra de
proteger esta bela dama na ausência de seu pai. Por isso, preciso pedir que me
acompanhem.
Todos se voltaram na direção deles, quando Richard precedeu-os no regresso
ao salão lotado. Lady Templehurst percebeu a felicidade radiante da sobrinha e a
vaidade no rosto do médico. Tirou o lencinho de seda e enxugou o canto dos olhos.
Richard esperou apenas os músicos terminarem de tocar as danças regionais e
pediu a atenção dos convidados.
— Tenho o imenso prazer de fazer uma participação, esta noite. Aliás, duas.
Um burburinho na porta interrompeu-o. Seguiu-se um murmúrio geral de
excitação, e vários convidados reunidos afastaram-se e deram passagem a dois
cavalheiros imponentes, vestidos com roupas vistosas.
— Acho que interrompemos alguma coisa, Rudge — o mais alto comentou,
93
jovial. — Sir Richard, estamos atrapalhando?
— Pelo contrário, Alteza — o anfitrião assegurou e teve de erguer a voz acima
dos sussurros intermináveis. — Sua chegada é mais do que oportuna. Eu ia anunciar
o noivado de lorde Peregrine Pentecost e a srta. Henrietta Dilbey. E o não menos
gratificante noivado de meu bom amigo dr. Thomas Carrington e lady Sthephanie
Beresford.
Durante alguns instantes, fez-se um silêncio sepulcral.
— O senhor disse Carrington? Carrington! — A face redonda do regente abriu-
se em um sorriso prazeroso. — Mas eu o conheço! Excelente pessoa, claro!
Sua Alteza relanceou um olhar para os convidados, que se agitavam em meio a
muitas felicitações e aplausos entusiasmados.
— Gosto de casamentos. Mas não para mim, é claro — ele disse, em voz
baixa, para uma jovem que o fitava aterrorizada, e depois virou-se para seu
acompanhante. — Onde estão os casais felizes, Bart? Quero dar-lhes minhas
congratulações.
Sir Bartholomew acompanhou o futuro rei por entre a aglomeração e depois
saiu à procura de sua querida amiga. Lady Templehurst ainda não se levantara para
cumprimentar os noivos na outra extremidade do salão.
— E então, Gussie? Como foi que a perversa viúva enfrentou a novidade? —
Ergueu os óculos à procura de lady Pentecost. — Não consigo achá-la…
— Nem poderia. Sophia desmaiou e teve de ser carregada para um aposento.
— Lady Augusta riu. — Oh, Bart, não podia ter vindo em melhor hora! E ainda por
cima, junto com o regente! Agora ela jamais poderá opor-se ao enlace. Fez o serviço
completo, meu amigo!
— Eu lhe disse, minha cara, que lhe daria meu apoio. Mas não esperava o
segundo anúncio. Quem é esse Carrington? Nunca ouvi falar nele, mas Sua Alteza
parece conhecê-lo bem. — Observou os olhos da amiga marejados de lágrimas. — A
filha de Eastbury e um médico, hein? Um pouco chocante para, minha velha amiga?
— Pelo contrário, Bart. Foi uma surpresa felicíssima. Thomas foi o escolhido
por minha querida Sthephanie. E também a ama.
— Contudo, estou inclinado a acreditar que isso causará um certo alvoroço.
— Pode apostar. — Augusta deu uma risada. — Mas, agora que o regente em
pessoa aprovou o casamento, não haverá uma só alma que ousará opor-se! Mas que
noite! Não tenho palavras para agradecer-lhe, Bart. Estou quase tentada a mostrar-lhe
minha gratidão casando-me com você.
— Bem, bem, minha querida, não sejamos tão drásticos. — Sir Bartholomew
achou que a gravata de repente se tornara apertada. Na verdade, nunca se esquecera
de que havia perdido Augusta para lorde Templehurst. — Muito gentil de sua parte.
Sempre gostei muito de você. Durante esses anos todos… Mas dois noivados em uma
só noite são mais do que suficientes!

Fim

94
ANNE ASHLEY nasceu e foi criada em Lei-cester. Morou por muito tempo na
Escócia, mas atualmente vive no sudoeste da Inglaterra com dois gatos, dois filhos e
um marido dotado de um excelente — e necessário — senso de humor. Quando não
está escrevendo, ela gosta de descontrair-se em seu jardim, onde já realizou mais de
uma festa com renda em prol dos fundos da igreja do povoado.

95

Você também pode gostar