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José Claudinei Lombardi
10-0124/BFE
Título em inglês : Reflections on education and teaching in the work of Marx and Engels
Keywords : Marx, Karl, 1818-1883; Engels, Fridriech, 1820-1895 ; Education – History;
Education – Philosophy; Marxism philosophy
Unidade: Faculdade de Educação / Departamento de Filosofia e História da Educação
Data da defesa: 11 e 12/03/2010
e-mail : zezo@unicamp.br
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Aos meus filhos Maíra (e Serginho), Warody
e Araê: amor presente e esperança num
futuro melhor.
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II - O problema de se ao pensamento humano corresponde uma
verdade objetiva não é um problema da teoria, e sim um problema
prático. É na prática que o homem tem que demonstrar a verdade,
isto é, a realidade, e a força, o caráter terreno de seu pensamento.
O debate sobre a realidade ou a irrealidade de um pensamento
isolado da prática é um problema puramente escolástico.
III. A doutrina materialista de que os seres humanos são produtos
das circunstâncias e da educação, [de que] seres humanos
transformados são, portanto, produtos de outras circunstâncias e
de uma educação mudada, esquece que as circunstâncias são
transformadas precisamente pelos seres humanos e que o
educador tem ele próprio de ser educado. Ela acaba, por isso,
necessariamente, por separar a sociedade em duas partes, uma
das quais fica elevada acima da sociedade (por exemplo, em
Robert Owen).
XI. Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras
diferentes; a questão, porém, é transformá-lo. (Marx, Teses sobre
Feuerbach)
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................. 11
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Introdução
Enfim, o trabalho de pesquisa está pronto e enfrento o desafio de, a posteriori,
escrever um texto que possibilite ao leitor conhecer as análises aqui presentes .O resultado
da pesquisa vai na forma de minha tese para concurso de livre-docência na Faculdade de
Educação da Unicamp. O concurso poderia ter sido feito há alguns anos, com base no
currículo e memorial, mas minha decisão foi completar os estudos da obra de Marx e
Engels, com o objetivo de entender melhor os fundamentos materiais da educação, a
articulação entre modo capitalista de produção e educação. Isso tomou alguns anos, pois
não houve como me dedicar exclusivamente a tais estudos, já que as atividades docentes,
como preparação de aulas e acompanhamento das turmas, a orientação de pós-graduandos,
notadamente a colaboração na produção das dissertações e teses, e a articulação do Grupo
de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” (HISTEDBR), exigindo
atenção prioritária e “ação bombeira” (apagando focos de incêndio Brasil afora). Além
disso, também tive que me dedicar ao desenvolvimento de outras pesquisas e que acabam
tomando grande parte de minha dedicação exclusiva. Como decorrência dessas muitas
frentes de trabalho acadêmico, o currículo foi crescendo, com muitos escritos publicados,
em decorrência da participação em eventos e outras demandas de pesquisa.
Não deu mais para ir adiando a colocação de um ponto final no trabalho que
hora apresento, em função das mudanças políticas que vêm ocorrendo nas Universidades
Públicas do Estado de São Paulo, particularmente as mudanças na Carreira Docente da
Unicamp. Tive que, forçosamente, acelerar o encerramento de minhas análises, ainda que
desejando continuar a pesquisa, fazendo as anotações (eletrônicas) das descobertas e
completando os fichamentos das obras lidas. Recordo sempre a observação de Marx, no
“Posfácio da Segunda Edição” d’Capital, que me orienta metodologicamente os caminhos
que a pesquisa deve adotar:
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Por isso mesmo, sei que o material ora apresentado, formalmente, ainda é o
resultado do método de pesquisa, pelo qual fui rastreando as questões que se apresentavam
a partir dos estudos empreendidos, certamente que tendo o objetivo de entender melhor os
fundamentos materiais da produção filosófica e científica, base para o entendimento mais
amplo da educação e da pedagogia. Isso só foi feito a partir do aprofundamento de meus
estudos sobre a obra de Marx e Engels, que me dão a orientação teórica para entender as
transformações do modo capitalista de produção. Na deliciosa e surpreendente viagem que
tenho empreendido pela elaboração intelectual historicamente produzida e acumulada pela
humanidade, no campo da filosofia, das artes e das ciências, não consigo resistir à tentação
de percorrer as picadas que se abrem a partir da estrada principal. E tenho consciência que
foram muitos os caminhos e as picadas percorridas. Voltar ao leito da estrada principal nem
sempre é tarefa fácil.
Considero que ainda não cheguei ao fechamento da pesquisa, tendo uma
exposição densa e articulada para expor o movimento real, a partir de suas conexões e
relações. Relendo o conjunto dos escritos, decorrência da necessidade de costurar as partes,
dando aos capítulos e itens um ordenamento e uma articulação, e apesar desse esforço,
considero que as três partes do texto, bem como muitos dos capítulos, podem ser
perfeitamente publicados à parte, tendo começo-meio-fim. Mas isso não implica em
concordância com a retirada de qualquer parte deste “relatório de pesquisa”, como se isso
em nada prejudicasse uma visão de conjunto do percurso percorrido. A tese que apresento
se articula a partir de três partes, que chamo de “ensaios analíticos”, com seus capítulos,
mas que só têm sentido articulados em função dessa tese.
A tese é simples, até mesmo óbvia para o marxismo, qual seja: que a educação
(e o ensino) é determinada, em última instância, pelo modo de produção da vida
material; isto é, pela forma como os homens produzem sua vida material, bem como as
relações aí implicadas, quais sejam, as relações de produção e as forças produtivas são
fundamentais para apreender o modo como os homens vivem, pensam e transmitem as
idéias e os conhecimentos que têm sobre a vida e sobre a realidade natural e social.
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Estou afirmando, portanto, que para o marxismo não faz o menor sentido
analisar abstratamente a educação, pois está é uma dimensão da vida dos homens que, tal
qual qualquer outro aspecto da vida e do mundo existente, se transforma historicamente,
acompanhando e articulando-se às transformações do modo como os homens produzem a
sua existência. A educação (e nela todo o aparato escolar) não pode ser entendida como
uma dimensão estanque e separada da vida social. Como qualquer outro aspecto e
dimensão da sociedade, a educação está profundamente inserida no contexto em que surge
e se desenvolve, também vivenciando e expressando os movimentos contraditórios que
emergem do processo das lutas entre classes e frações de classe.
Como se sabe, Marx e Engels não se preocuparam em analisar especificamente
a educação ou o ensino, e muito menos em discutir ou propor uma teoria pedagógica. As
observações sobre a educação, o ensino e a qualificação profissional encontram-se esparsas
no conjunto da obra, geralmente aparecem mescladas às críticas das teorizações e práticas
burguesas, como a crítica da economia política e, antes dela, a da filosofia alemã e as das
várias matizes de socialismo; essas anotações também se encontram mescladas ao
entendimento sobre as condições de vida e trabalho da classe trabalhadora, como na obra
de Engels sobre A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, ou no contexto em que
analisavam a situação e exploração da classe trabalhadora sob o modo capitalista de
produção, como em O capital de Marx.
Os estudos em torno dessa tese foram estruturados em três partes: tomei os
embates marxistas como meu ponto de partida e que se encontram na primeira parte; na
segunda parte, face à necessidade de entendimento das várias explicações e análises dos
fundamentos da educação, fiz uma longa incursão para estudar os princípios das
concepções filosóficas e científicas; na terceira parte, por fim, as anotações dos estudos da
obra de Marx e Engels, particularmente centradas sobre a problemática educacional, sobre
o ensino e a qualificação profissional.
Feita essa explicação inicial sobre o conjunto do trabalho, em seguida
explorarei mais detidamente o conteúdo, fazendo uma exposição invertida do texto. O
conteúdo principal da tese encontra-se exposto na terceira parte do texto, e que assim
denominei: “Marx, Engels e a questão educacional”, guardadas as suas articulações
fundamentais com as outras duas partes, como já apontei
Sendo assim, a exposição formal dessa terceira parte do texto encontra-se
dividida em seis capítulos complementares e articulados: o primeiro, intitulado “Burguesia
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Grécia à época moderna, com os diferentes encaminhamentos filosóficos e científicos que
resultaram do confronto entre a burguesia e o proletariado; finalmente, no quinto capítulo,
faço uma exposição das questões metodológicas e teóricas que considero fundantes para a
concepção materialista dialética da história, daí o título dado: “Minhas referências de
análise: as balizas do marxismo”.
A primeira parte da tese, em função da opção científica e política pelo
marxismo, é uma retomada dos embates recentes com que tenho me defrontado. É uma
continuidade de meus “acertos de contas”, ao mesmo tempo em que aproveito para
aprofundar algumas questões prementes ao marxismo. A esta primeira parte denominei “Os
embates marxistas como ponto de partida”, dividindo o texto em cinco capítulos: o
primeiro é um início de conversa, pelo qual coloco “Marx e Engels como ponto de
partida... ou de chegada”; o segundo é uma retomada ampliada das críticas que tenho feito
à pós-modernidade e sua crítica à razão moderna; o terceiro, é uma dívida teórica que tenho
com alguns colegas e aproveito para adentrar no debate sobre a elaboração de Jameson e
de Castoriadis; no quarto capítulo entro na polêmica quanto à importância da elaboração de
Marx na contemporaneidade, daí o título “Marx morreu! Viva Marx!”; onde polemizo
sobre a relação de trabalho entre Marx e Engels e a questão da continuidade ou ruptura na
obra marxiana. Nesta parte também dou uma resposta àqueles que “carimbam” a ortodoxia
intelectual como dogmatismo; finalmente, o quinto capítulo é um escrito conjuntural sobre
a crise econômica, social e política atual, no qual evidencio que é a própria crise que tem
colocado em relevo o pensamento de Marx: “Marx manda lembranças. Numa conjuntura
marcada pela crise, Estados buscam salvar o capitalismo da ação predatória dos
capitalistas”.
A inclusão dessa primeira parte na tese, colocando-a como um ponto de
partida, objetiva dar destaque ao fato de que continua forte o discurso antimarxista. Ainda é
relativamente comum a publicação e a divulgação de críticas ácidas quanto à esquerdização
da escola, promovida por fiéis defensores de uma perspectiva de franca oposição ao
marxismo. Apenas para tomar como exemplo, esse tema recebeu grande destaque em
matéria especial da Revista Veja, em edição da semana de 20 de agosto de 2008, e que
trouxe na manchete de capa: “O inssino no Brasiu è ótimo” (numa montagem que traz um
“aluno” escrevendo no quadro negro, seguida da chamada “Os erros não são só dele. Os
estudantes brasileiros são os piores nos rankings internacionais, mas... mais de 90 % dos
professores e pais aprovam as escolas”). Respaldando as matérias são apresentados dados
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uma de suas idéias ainda levada a sério hoje – a Teoria da Alienação –,
exige muito esforço para ser compreendido. [...] (Idem, ibidem)
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O link é: http://www.escolasempartido.org/
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Citação do site: [http://www.escolasempartido.org/index.php?id=38,1,topico,2,22,new_topic ]
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O acesso à lista de artigos é feita a partir do seguinte link:
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Centro de Educação da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Essa pesquisa debruçou-
se sobre o Curso de Pedagogia como espaço de formação do educador, num contexto em
que os cursos ministrados em universidades públicas convivem com cursos
“flexibilizados” de formação pedagógica e que visam “qualificar em massa os professores
das redes estaduais e municipais de ensino” (Jimenez e Barbosa, 2004, p. 205). A pesquisa
coletou, através de questionário, as opiniões dominantes quanto ao papel do curso de
Pedagogia, concluindo que predomina a visão que atribui grande importância à educação
para o desenvolvimento do país, seguida pela defesa da importância de uma formação
crítico-reflexiva do professor e, na seqüência, pela “formação para a cidadania e pelo
desenvolvimento de habilidades e competências” (Idem, p. 219). Tomando por base os
dados de pesquisa com os alunos, os autores não têm dúvida quanto ao significado das
arraigadas opiniões sobre a educação:
http://www.escolasempartido.org/?id=38,1,topico,2,1,new_topic,,
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aqueles que promovem o divórcio entre o Marx filósofo, teórico do capitalismo, e o Marx
pensador revolucionário, comprometido com a construção estratégica do comunismo. Esse
último aspecto é ancorado no entendimento de que o marxismo sofreu, nas últimas
décadas, um de seus maiores ataques ideológicos, “Fruto de uma contra-ofensiva político-
ideológica levada a cabo pelos ideólogos, partidos, líderes políticos e meios de
comunicação do imperialismo” e que “se estendeu às universidades refletindo-se no avanço
de ideologias reacionárias” (Cerdeira, 1999, p. 131). Assim, ao mesmo tempo em que se
aponta a atualidade da análise de Marx sobre o capitalismo, este é condenado como
“defensor da revolução socialista, do internacionalismo, da organização da classe em
partido e do potencial revolucionário da classe operária”, do que conclui que “Ao separar o
Marx analista do Marx revolucionário procura-se esterilizar o próprio marxismo” (Idem,
ibidem).
Tratando das concepções que norteiam a formação de professores, a
pesquisa aponta para a hegemonia da perspectiva crítico-reflexiva que explicita seu
desacordo com o marxismo no que diz respeito à relação entre educação e prática social.
Para Jimenez, essa postura pode ser exemplificada com o livro Escola Reflexiva e Nova
Racionalidade (2001), organizado por Isabel Alarcão, da Universidade de Aveiro
(Portugal), centrado na defesa de uma suposta necessidade de “adequar a educação às
novas exigências postas pela sociedade global e tecnológica contemporânea, por meio de
uma mudança paradigmática que conduza a escola na direção da formação reflexiva”
(Jimenez, 2006). Na referida obra, Alarcão (2001, p. 22) é uma enfática defensora do
ideário cidadão, pelo qual à escola reflexiva caberia não só preparar para o exercício da
cidadania, mas, principalmente, praticar e viver a cidadania. É nesse aspecto que Jimenez
foca sua crítica: “tal paradigma elege a cidadania como o eixo por excelência da
propositura pedagógica”, circunscrevendo-se num sentido “oposto àquele embutido numa
abordagem marxista da educação” (Idem). Delimitando a cidadania ao horizonte da ordem
burguesa, ideologicamente esta categoria é tomada como sinônimo de emancipação,
pretensamente esvaziando a perspectiva revolucionária do marxismo.
Encerrando esta introdução, gostaria de explicar aos membros da banca que
o texto foi sendo escrito muito gradativamente, pari passu aos estudos para a preparação de
palestras e conferências, com muitos desses textos posteriormente publicados, bem como
para a preparação de aulas. Disso resultou o uso de uma multiplicidade de obras, de
diferentes traduções e edições, bem como na referência a citações iguais, mas com dados
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bibliográficos diferentes. Fiz um esforço por uniformizar as referências, mas muitas ainda
permaneceram como estavam mesmo após a revisão final. Oportunamente, quando da
publicação do presente trabalho, essas questões estarão resolvidas.
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PARTE I - Os embates marxistas como ponto de partida
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de análise de caráter macroscópico, privilegiador das regularidades sociais, com uma lógica
vinculada à tradição da modernidade, de fé na razão, etc. Enfim, trata-se de um tipo de
pensamento racionalista e determinista há muito ultrapassado e em crise insuperável. Nesse
raciocínio, a defesa da razão, da ciência, da objetividade, da verdade, do progresso e da
revolução, faz parte das perspectivas intelectuais cultuadoras da modernidade e, portanto, a
um "velho" e ultrapassado modo de pensar; ao contrário deste, os movimentos sociais,
culturais e intelectuais de crítica à sociedade realmente existente e que tendem para a
valorização do fragmentário, do microscópico, do cotidiano, do singular, do efêmero, do
imaginário, são ligados ao novo e, mais que isso, ao diversificado movimento intelectual de
crítica à modernidade e à razão moderna. Nesse sentido, não tive dúvidas em vincular tal
onda novidadeira ao movimento artístico e intelectual que se autodenomina pós-
modernidade.
Já em meados da década de 1980, a absorção da suposta crise dos paradigmas
filosóficos e científicos delineava o cenário que viria a seguir: a instauração de um novo
movimento, articulando a velha dicotomização entre o novo (ou pós) e o velho. Com isso o
discurso novidadeiro foi se fortalecendo e, com ele, o espaço educacional (também o
artístico, filosófico e científico) foi sendo tomado pela ênfase no particular, no cotidiano,
no efêmero, no imaginário, na cultura, na memória. Na trilha de afirmar a existência de
uma profunda crise dos paradigmas, essas elaborações foram sendo impregnadas pelo
irracionalismo, pelo subjetivismo e, enfim, no limite, pela perda da própria perspectiva
histórica.
Penso que, hoje, esse movimento conquistou hegemonia no campo
educacional. Atualmente reduziu-se a força dos chamamentos da pós-modernidade e nem
mais se fala muito sobre o assunto. Tenho a impressão que a onda, o modismo, do
movimento pós-moderno está passando, não sem antes ter o discurso novidadeiro
conseguido penetrar fortemente na Filosofia, na Ciência e na Educação, tornando a ênfase
no particular, na subjetividade, no discurso e na memória, uma presença hegemônica na
pesquisa e na prática educacional.
Apesar da dúvida quanto à continuidade desse modismo pós-moderno, que se
autodenomina “pós”, usando o prefixo de origem latina que exprime a noção de
posterioridade no tempo e no espaço, penso que ainda é importante registrar (ou retomar),
de maneira mais detalhada o debate pós-modernista e a crítica que fazem ao marxismo.
Essa crítica pós-moderna geralmente coloca como ponto de partida uma suposta
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insuficiência analítica do marxismo para dar conta da "realidade social da atualidade".
Entendem que, como não é somente a análise teórica do marxismo que não é suficiente
para apreender a complexidade dos tempos pós-modernos, abrangendo o conjunto das
concepções metodológicas e teóricas forjadas na modernidade, abriu-se uma profunda crise
dos paradigmas filosóficos e científicos da modernidade.
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ontológica" de toda sociedade burguesa (Idem, p. 14). Como a teoria marxista está imersa
no modo típico de pensar dos séculos XVIII e XIX, suas análises estão baseadas em
formulações "racionalistas" e "deterministas" que o levam a interpretar de modo
determinista e mecanicista todo processo histórico-social (Idem, ibidem). Como as demais
formulações racionalistas e objetivistas, também o marxismo tornou-se uma teoria marcada
pela “defasagem entre suas teses constitutivas e a realidade social efetiva” (Idem, ibidem),
assim sintetizada pelo autor:
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Com a pós-modernidade, nomes como os de Nietzsche, François Lyotard,
Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Jean Baudrillard, Jürgen Habermas, Gilles Lipovetsky,
passaram a povoar o ambiente intelectual, como os “grandes profetas do apocalipse” e
grandes baluartes de um novo tempo. Os conceitos e a teorização filosófica e social variam
conforme os autores, mas todos querem expressar que se adentrou numa nova era – daí os
termos pós-moderna, hiper-moderna, modernidade líquida. Também passaram a ser
referência obrigatória os nomes de Fredric Jameson e David Harvey que, mantendo o
marxismo como referência de suas análises, de forma não necessariamente explicita
acabaram aderindo de modo crítico à pós-modernidade.
Como observou Perry Anderson, em As Origens da Pós-Modernidade (1999), a
noção de "pós-modernismo" surgiu, pela primeira vez, no mundo hispânico, na década de
1930, com uma geração de antecedência de seu aparecimento na Inglaterra ou nos EUA.
Conta Anderson que Frederico de Onís, um amigo de Unamuno e Ortega, usou o termo
pela primeira vez, para descrever um refluxo conservador dentro do próprio modernismo.
Entretanto, é praticamente unânime considerar-se que o uso contemporâneo do conceito de
pós-modernidade foi introduzido por Jean-François Lyotard, em seu livro A Condição Pós-
Moderna, originalmente publicado em 1979. Nessa obra o autor utiliza o conceito de
"jogos de linguagem", desenvolvido por Ludwig Wittgenstein, como característica da
experiência pós-moderna, assim como a fragmentação e multiplicação de centros, e a
complexidade das relações sociais dos sujeitos. Para Lyotard a condição pós-moderna
caracteriza-se pelo fim das metanarrativas, quando os grandes esquemas explicativos
caíram em descrédito, não mais havendo garantias, de espécie alguma, pois até mesmo a
"ciência" já não poderia ser considerada como a fonte da verdade (Lyotard, 1987).
Fui levado a um maior aprofundamento4 do tema com a organização dos
debates e, posteriormente, a publicação do livro Globalização, pós-modernidade e
educação (Lombardi, 2001). A sistematização de Sanfelice (2001, p. 3-12), para este livro,
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Aprofundamento, pois já vinha trabalhando com o tema sobre a pós-modernidade, a partir das reflexões
feitas por Saviani, em Educação e questões da atualidade (SAVIANI, D., 1991). Para Saviani, a
emergência dos "pós" ou "neos" está relacionado ao período de decadência ideológica e cultural da
burguesia, caracterizado pela contradição entre o avanço material e uma espécie de estagnação cultural (Idem,
p. 23). Num quadro marcado pela contradição, o papel da pós-modernidade é de obscurecer os paradoxos,
pois em lugar de desvendar a sociedade capitalista (em seu período monopolista), sua preocupação "é o
deleitar-se com a informatização da sociedade, com os processos da digitação". A partir de tal entendimento,
Saviani deu uma interpretação interessante quanto à pressuposta passagem da modernidade à pós-
modernidade: "... se a era da modernidade foi inaugurada com aquela frase de Descartes 'cogito, ergo sum'
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(penso, logo existo) a era da pós-modernidade parece substituir aquela frase por esta outra: 'digito, ergo sum'
(digito, logo existo)" (Idem, p. 24-25).
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assumida, era de uma forma ou de outra, apanágio da direita. A democracia liberal
passou a ser o horizonte insuperável da época (década de 80) e não podia haver
nada mais que o capitalismo. O pós-moderno passou a ser uma sentença contra as
ilusões alternativas. (Sanfelice, 2001, p. 5)
Abrindo parênteses: (Penso que proximamente será importante me debruçar para estudar
mais profundamente o pensamento de dois outros autores, certamente imersos na
(des)construção do pensamento contemporâneo, mas que preferem evitar o termo pós-
modernidade e cujos exemplos emblemáticos são Zygmunt Bauman e Gilles Lipovetsky. O
sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925) foi um dos principais popularizadores do
termo pós-modernidade, no sentido de forma póstuma da modernidade. Ao longo da
década de 1990, entretanto, foi preferindo usar a expressão "modernidade líquida",
buscando assim expressar uma realidade ambígua, multiforme, e que ele expressou
tomando uma clássica marxiana: tudo o que é sólido se desmancha no ar. Bauman tornou-
se conhecido por suas análises das ligações entre a modernidade e o holocausto, e também
a modernidade e o consumismo pós-moderno. Autor de prodigiosa produção intelectual,
muitas de suas obras foram publicadas no Brasil (pela Jorge Zahar Editor), todas de grande
sucesso editorial, dentre as quais se destacam: Modernidade e Holocausto (1989),
Modernidade e Ambivalência (1991), Modernidade Líquida (2000), Amor Líquido: Sobre a
Fragilidade dos Laços Humanos (2003), Vidas Desperdiçadas (2004), Vida Líquida
(2005), Medo líquido e Tempos líquidos (ambos publicados em 2006).5
O outro autor obrigatoriamente relacionado à temática é o filósofo francês
Gilles Lipovetsky (1944) que analisa em sua obra A Era do Vazio (1983) uma sociedade
pós-moderna, segundo ele marcada pelo desinvestimento público, pela perda de sentido das
5
Esse necessidade de aprofundamento foi aguçada pela leitura de uma entrevista de Bauman à Revista
eletrônica Tempo Social, vol. 16, no. 1, São Paulo, June 2004. Acesso através do seguinte link:
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grandes instituições - morais, sociais e políticas - e por uma cultura aberta na qual
predominam a tolerância, o hedonismo, a personalização dos processos de socialização e a
coexistência pacífico-lúdica, marcada por antagonismos - como violência x convívio,
modernismo x conservadorismo, ambientalismo x consumo desregrado, etc. Dessa posição
o autor busca outro tratamento para as visões da sociedade, usando o conceito de
hipermodernidade para expressar que não houve, de fato, uma ruptura com os tempos
modernos. Segundo Lipovetsky, os tempos atuais são "modernos", com uma exarcebação
de certas características típicas de sociedades modernas, tais como: individualismo,
consumismo, ética hedonista, fragmentação do tempo e do espaço.
O conceito de hipermodernidade surgiu na década de 1970, mas passou a ser
usado para expressar o momento atual da sociedade humana, o que se deu com a
publicação do livro Os tempos hipermodernos (Lipovetsky, 2004). O termo “hiper” é
utilizado em referência a uma exacerbação dos valores criados na modernidade que, para o
autor, caracterizam-se por uma cultura do excesso, do sempre mais, onde tudo se torna
intenso e urgente. O movimento constante é a marca das mudanças que ocorrem em um
ritmo quase esquizofrênico, determinando um tempo marcado pelo efêmero, no qual a
flexibilidade e a fluidez aparecem como tentativas de acompanhar essa velocidade.
Nessa sociedade, tudo é elevado à máxima potência, como hipermercado
hiperconsumo, hipertexto, hipercorpo... Os títulos de suas obras, cujas referências
encontram-se na internet6, expressam a perspectiva com que Lipovetsky trata a sociedade
contemporânea: A Felicidade Paradoxal; O Império do Efêmero: a Moda e Seu Destino
nas Sociedades Modernas; A Inquietude do Futuro: o tempo hiper-moderno; O Luxo
Eterno: da Idade do Sagrado ao Tempo das Marcas; Metamorfoses da Cultura Liberal; A
Sociedade da Decepção; A Sociedade Pós-Moralista; Os Tempos Hipermodernos; A
Terceira Mulher.). Fechando parênteses.
[http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-20702004000100015&script=sci_arttext´]
6 Ver, por texemplo, o verbete biográfico do autor na biblioteca digital aberta:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Gilles_Lipovetsky
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mais sintética, encurtando caminhos para melhor entender esse movimento novidadeiro de
nosso tempo e a matriz com que concebe o mundo (isto é, sua matriz ontológica) e a
possibilidade de conhecimento sobre ele (sua gnosiologia):
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desejo de nada, morte em vida, falta de valores para agir, descrença em um sentido
para a existência. A desconstrução pretende revelar o que está por trás desses
ideais maiúsculos, agora abalados, da cultura ocidental.
[...] A pós-modernidade entrou nessa: ela é a valsa do adeus ou o declínio das
grandes filosofias explicativas, dos grandes textos esperançosos como o
cristianismo (e sua fé na salvação), o Iluminismo (com sua crença na tecnociência
e no progresso), o marxismo (com sua aposta numa sociedade comunista). Hoje, os
discursos globais e totalizantes quase não atraem ninguém. Dá-se um adeus às
ilusões. (Santos, 1987, pp. 71-72)
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se fundem num todo. No dizer de Santos, é o viver agora, entre simulacros em espetáculo
para seduzir o desejo.
A exposição de Santos bem caracteriza o que venho chamando de perspectiva
novidadeira da pós-modernidade: o novo é oposto a tudo o que se considera velho e
superado. Em termos filosóficos, se trata da defesa do irrealismo, do irracionalismo, do
subjetivismo, do fim da história; não se trata de uma concepção, mas de um movimento
eclético que faz uma liquificação, uma mistura geral, de várias tendências e estilos; é
avesso a unicidade, tendo por perspectiva um pensamento aberto, plural e em permanente
metamorfose. É o culto pragmático do indivíduo e do presente, sem referência ao passado e
sem projetos para o futuro. É o assumir uma perspectiva aparentemente sem parâmetros e
sem opções; mas como a ausência de posicionamento também é um assumir de posição,
trata-se de mais um modismo reacionário e imobilista, perfeitamente adequado ao gosto de
uma burguesia ávida pelo máximo de consumo, animada por uma produção frenética,
transformando tudo em máxima acumulação.
Penso que o conjunto dessas observações sobre o movimento da pós-
modernidade, torna extremamente atual a análise de que o capital é um mundo regido pelo
fetichismo da mercadoria; jamais fez tanto sentido, como agora, o entendimento da
ideologia como teorização falseadora das relações reais, mas plenamente correspondente
aos interesses de uma classe; impressionante como é atual a teoria da alienação e como esta
recoloca a problemática da emancipação.
Trata-se ademais de uma concepção negadora da História, o que aparece até
mesmo quando se pretende fazer História. Pretendendo rejeitar as idéias da história como
desenvolvimento, como progresso e como triunfo da razão, grande parte dos autores pós-
modernos acabam fazendo coro às perspectivas negadoras da historicidade, sob o
argumento de que é necessário eliminar os ranços de se pensar causalmente a história,
propondo-se a “descausalização da história” (Evangelista, 1992, p. 22). A história é
pensada a partir de uma absoluta contingência final, com o acaso assumindo o posto
dirigente dos acontecimentos e da vida dos homens. Os fatos e acontecimentos não mais
devem ser encarados em termos de causa e efeito, mas como seriais e imprevisíveis. É
exatamente pela história não ter ou fazer qualquer sentido que o cotidiano, o particular, o
microcosmo do sujeito, é colocado como centrais na análise sobre o social. Como bem
observa Evangelista,
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(...) Como a história não tem sentido, o cotidiano substitui o futuro como
preocupação. O imediato toma o lugar do mediato. A revolução, a luta pelo poder
do Estado..., a transformação macroscópica e de milhões, é substituída pelas
‘pequenas lutas’, pelas infindáveis transformações ‘moleculares’, sem centro, sem
coordenação, sem estratégia central unificada. (Idem, ibidem)
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marxismo, com a publicação de O Inconsciente Político: a narrativa como um ato social
simbólico, assumiu como slogan "Sempre historicize" (1981), propondo que a literatura
deve rigorosamente apreender com detalhes a relação entre as circunstâncias históricas de
um texto e seu conteúdo.
Os estudos sobre a historicidade da narrativa o levaram a iniciar análises sobre
o pós-modernismo. Em um artigo publicado em 1984, no jornal New Left Review, "Pós-
modernismo, ou a lógica cultural do capitalismo tardio", posteriormente ampliado e
transformado em livro, iniciou uma série de análises sobre pós-modernismo de um ponto
de vista da dialética idealista. Entendeu o "ceticismo com relação a metanarrativas" como
um "modo de experiência", uma “lógica cultural” que se origina das condições do trabalho
intelectual impostas pelo capitalismo tardio, conforme definido por Ernest Mandel.
Contrapondo-se aos pós-modernistas que afirmavam a superação da
modernidade e buscavam a relativização de supostas verdades, Jameson argumentou que as
várias questões com que se defrontavam podiam ter sido entendidas a contento a partir da
própria estrutura modernista. Para o autor, a união pós-moderna de todo discurso em um
todo indiferenciado, resultava da colonização da esfera cultural por um novo capitalismo
corporativista organizado, isto é, pelo capitalismo tardio. Retomando as análises de Adorno
e Horkheimer sobre a indústria cultural, tratou desse fenômeno em suas discussões críticas
sobre filosofia, arquitetura, filmes, narrativas e artes visuais.
Penso que as análises de Jameson sobre o pós-modernismo buscavam situá-lo
como um movimento historicamente lastreado. Rejeitou explicitamente qualquer oposição
moralista à pós-modernidade como um fenômeno cultural, continuando a insistir numa
crítica imanentemente hegeliana. Sua recusa em retirar o pós-modernismo da agenda de
debates, foi entendida por muitos como uma aprovação implícita de alguns dos
pressupostos pós-modernos.
Ao longo dos anos noventa, aprofundou e desenvolveu suas críticas ao pós-
modernismo - como em As Sementes do Tempo (1994), nas suas palestras na biblioteca
Wellek na Universidade da Califórnia, e no seu livro O Método Brecht (1998) –
respondendo negativamente às críticas que o colocavam como um intelectual simpatizante
do pensamento pós-moderno. Para tanto, se voltou novamente a Adorno e Horkheimer,
buscando contribuições para a construção de um modelo teórico contemporâneo para a
dialética marxista.
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36
... essas novas máquinas podem se distinguir dos velhos ícones futuristas de duas
formas interligadas: todas são fontes de reprodução e não de ‘produção’ e já não
são sólidos esculturais no espaço. O gabinete de um computador dificilmente
incorpora ou manifesta suas energias específicas da mesma maneira que a forma
de uma asa ou de uma chaminé. (Anderson, 1999, p.105).
36
A biografia em português de Castoriádis7, o coloca como filósofo da
imaginação social, co-fundador do lendário grupo e jornal Socialisme ou Barbarie, crítico
seminal e pensador político, inspirou os eventos de Maio de 1968 na França. Foi
economista da “Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico” (OCDE),
psicanalista, distinguido sovietologista e crítico consciente da esquerda internacional.
Traçando o percurso de Castoriádis para o obituário de seu site internacional8,
o biógrafo David Ames Curtis relembra que, nascido em Constantinopla, na Grécia,
recebeu uma bolsa de estudos e mudou-se para a França em 1945, onde viveu sob
pseudônimos para fugir da deportação. Ainda na juventude, na Grécia, aderiu à Juventude
Comunista; porém descobriu que o "comunismo não era tão comunista assim", o que
levou-o a entrar em contato com os trotskistas, mas logo depois, na França, rompeu com
esse movimento. Juntamente com Claude Lefort criou a revista Socialisme ou Barbarie em
1949. Conseguiu cidadania francesa somente nos anos 1970.
Com críticas ao marxismo real, ao totalitarismo soviético e teorizando as
instituições imaginárias da sociedade, Castoriadis se tornou uma figura intelectual de peso
no cenário ocidental. Caracterizando a trajetória do autor como um “navegar contra”, o
biógrafo afirma que ele acabou navegando por todos os "mares": da crítica ao marxismo à
psicanálise. Mas o ponto focal é a perspectiva autonomista de Castoriádis, assim registrada
em seu obituário:
37
38
comum possa governar sua própria vida e instituir a autogestão sem chefes,
gerentes, políticos profissionais, líderes de partido, padres, especialistas,
terapeutas ou gurus. Não havia pois "Deus que fracassava" em lugar da ausência
de Deus , nem "Razão da História", nem "processos dialéticos inevitáveis" que
garantissem o êxito ou que salvassem às pessoas da loucura que ela havia criado
ou da tragédia. (Curtis, 1997, [s.p.])9
38
publicado em As encruzilhadas do labirinto, III: O mundo fragmentado, no qual tratando
sobre as metamorfoses do tempo, assim se posicionou:
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40
40
propriedade privada, a nacionalização dos meios de produção e a planificação – pela
gestão operária da economia e do poder (Idem, ibidem)
[...] o programa da revolução socialista não pode ser outro senão o da gestão
operária. Gestão operária do poder, ou seja, poder dos organismos autônomos das
massas (sovietes ou Conselhos); gestão operária da economia, ou seja, direção da
produção pelos produtores, organizados também em organismos do tipo soviético.
[...] A revolução proletária só realiza seu programa histórico na medida em que ele
se inclina, desde o início, a suprimir tal divisão, eliminando toda classe dirigente e
coletivizando, mais exatamente, socializando, integralmente, as funções de
direção. [...] Torna-se desde logo evidente que a realização do socialismo por um
partido ou uma burocracia qualquer em nome do proletariado é um absurdo...
(Castoriadis, julho de 1955, [s.p.])
[...] Todavia, permanece no marxismo uma parte importante (que foi crescendo
para os marxistas das gerações seguintes) de herança ideológica burguesa ou
41
42
42
das massas armadas e a instauração da gestão operária da produção. Mas a
revolução deverá imediatamente se dedicar à reconstrução das outras atividades
sociais, sob pena de morte. (Idem, ibidem)
... não pode ser efetivamente, doravante, mais do que ideologia no sentido forte da
expressão, invocação de entidades fictícias, construções pseudo-racionais e
princípios abstratos que, concretamente, justificam e encobrem uma prática social-
histórica. (Castoriadis, 1985, p. 76 e 77).
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44
uma sociedade com diferenças profundas entre as classes sociais, para uma sociedade sem
classes e igualitária.
45
46
remonta ao tempo de Marx e Engels. Não podia ser diferente: o próprio processo de
produção da concepção materialista dialética da história, marcado pela confrontação crítica
e pela intencional superação da filosofia clássica alemã, do projeto e literatura socialista e
da economia política inglesa, delimitavam por si mesmo uma polêmica aberta com essas
correntes e com seus principais representantes. A obra toda de Marx e Engels é evidente
nesse sentido e, para aqueles que quiserem aprofundar, ver principalmente: A Ideologia
Alemã; Manuscritos Econômicos e Filosóficos; Grundrisse; O Capital...; Anti-Dühring; Do
Socialismo Utópico ao Socialismo Científico e Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia
Clássica Alemã.
Somente para ilustrar o conhecimento que Marx tinha da contestação de sua
elaboração, ver o "Posfácio da 2a. Edição" d'O Capital, datado de 24 de janeiro de 1873,
onde Marx observou que seu método de análise não havia sido "bem compreendido"
(Marx, 1982, p. 13). Se o conjunto da obra de Marx e Engels (do qual o "Posfácio da 2a.
Edição" d'O Capital é apenas uma ilustração), revelam essa confrontação crítica com outras
concepções, algumas poucas referências feitas pelos fundadores do marxismo já davam
conta da existência de interpretações equivocadas sobre o novo método, de manuseio
estreito e limitado da nova concepção teórico-metodológica e, já naquela época, de desvios
diversos. A carta de "Engels a Schmidt", datada de 5 de agosto de 1890, exemplifica
adequadamente isso: nela Engels manifestou sua inconformidade com as acusações de
alguns autores quanto aos desvios economicistas existentes no marxismo e, indo ainda mais
longe, estendeu essa crítica a outras pessoas que, se dizendo marxista, o deturpavam de
outras formas, deixando registrada a posição de Marx a esse respeito:
46
conheciam os princípios básicos da nova concepção), Engels contestou um desses autores
(Paul Barth) nos seguintes termos:
... esse homem não compreendeu ainda que, embora as condições materiais de vida
sejam a causa primeira, isso não impede que a esfera ideológica reaja por sua vez
sobre elas, ainda que sua influência seja secundária, esse homem não conseguiu
entender de modo algum a matéria sobre a qual escreve. (Idem, p.282-283).
... nossa concepção da história é, antes de tudo, um guia para o estudo e não uma
alavanca destinada a erguer construções à maneira hegeliana. É necessário estudar
novamente toda a história, - e estudar, em suas minúcias, as condições de vida das
diversas formações sociais - antes de fazer derivar delas as idéias políticas,
estéticas, filosóficas, religiosas, sobre o direito privado, etc., que lhes
correspondem. Até hoje,, tem-se feito muito pouco nesse terreno... (Idem, p. 283).
47
48
(...) Face aos adversários, éramos forçados a sublinhar este princípio fundamental
que eles negavam e nem sempre dispúnhamos de tempo, de espaço e de
oportunidade para dar a importância devida aos demais fatores que intervém no
jogo das ações e reações.... (Idem, p. 286)
Esse reconhecimento de Engels não o impediu de ser menos duro com esses
"jovens marxistas" ou "novos marxistas", apontando para a necessária compreensão dos
fundamentos metodológicos e teóricos da concepção materialista e dialética da história.
Alertava que “infelizmente, acontece com muita freqüência que se pense ter compreendido
totalmente uma nova teoria e que se possa manejá-la, sem mais nem menos, pelo simples
fato de haver-se assimilado... suas teses fundamentais...” (Idem, ibidem).
Recomendava o estudo da concepção materialista dialética da história "nas
fontes originais e não em obras de segunda mão" (Idem, p.285). O estudo da concepção
marxista em suas "fontes originais" levaria os que a criticam a lutar "contra moinhos de
vento", conforme observou na carta de "Engels a Schmidt", datada de 27 de outubro de
1890:
... quando Barth afirma que negamos toda e qualquer reação dos reflexos políticos,
etc., do movimento econômico sobre esse mesmo movimento econômico, luta
contra moinhos de vento. Bastará ler O 18 Brumário de Marx, em que ele trata
quase exclusivamente do papel particular desempenhado pelas lutas e
acontecimentos políticos, nos limites, é claro, de sua dependência geral às
condições econômicas. Ou O Capital, em particular o capítulo que trata da jornada
de trabalho, onde a legislação - que é um ato político - exerce uma influência tão
radical. Ou, ainda, o capítulo dedicado à história da burguesia (capítulo 24). (...)
(Idem, p. 291).
48
marxista, e que marca igualmente a crítica do dogmatismo em seu interior, desde a última
década do século XIX começaram a aparecer críticas sistemáticas ao marxismo, tanto em
relação à sua proposta ontológica, epistemológica e axiológica, quanto ao seu corpus
teórico ou com relação a aspectos específicos das teorizações de Marx e Engels10.
De modo geral, pode-se afirmar que essas críticas internas ou externas à teoria
marxista, por seu conteúdo e não necessariamente por sua forma, têm se repetido ao longo
do tempo. Impossível explorar todas as questões do embate marxista, mas gostaria de
delinear meu posicionamento em torno de três questões: a) sobre a contribuição de Engels
e de Marx à construção da concepção materialista dialética da história; b) quanto ao
processo de construção da obra marxiana e engelsiana; c) sobre o assumir uma perspectiva
ortodoxa ou dogmática da concepção marxista.
10 Não se tem por objetivo, no presente trabalho, estudar a evolução histórica do marxismo. Um breve
histórico do marxismo e de seus desdobramentos pode ser consultado em: BOTTOMORE, Tom (ed.) e
outros. Dicionário do Pensamento Marxista, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1988. Uma análise mais
detalhada, rica e diversificada pode ser encontrada nos 12 volumes de: HOBSBAWM, E. e outros. História
do Marxismo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980-1989.
49
50
11 As afirmações entre parênteses são de Hans-Georg FLICKINGER, em Marx e Hegel: o porão de uma
filosofia social, para quem: “(...) Este o passo ao profundo mal entendido de, por exemplo, F. Engels, que
produziu o ridículo ingênuo da argumentação da Dialética da Natureza... É sintomático que a luta contra o
espiritismo ocupe várias páginas da Dialética da Natureza, pois... a concepção engelsiana de movimento abre
as portas para ele. (...) A história da recepção da teoria marxiana e, mais ainda, a visão mecânica do
materialismo dialético , com suas conseqüências políticas, do 'socialismo real existente' dão uma idéia dos
danos políticos causados por esta simplificação da 'dialética'." (FLICKINGER, H.G., 1986, p. 84).
50
Engels, em 1939. O primeiro foi escrito em 1844 e o segundo supõe-se que entre 1878-
1882.
Tirando os trabalhos de seus respectivos contextos e processos de produção, o
que seria suficiente para caracterizar que são trabalhos redigidos em períodos, motivações e
perspectivas diferentes, essas duas obras passaram a ser consideradas provas suficientes da
existência de uma profunda diferença entre os dois fundadores da concepção materialista
dialética da história. Engels considerado mecanicista, positivista e economicista; Marx,
dialético e anti-dogmático.
No embalo dos embates da III Internacional (a Internacional Comunista),
Engels passou a ser acusado de ter criado os pressupostos teóricos e políticos tanto do
reformismo social-democrata, quanto do stalinismo. Referenciando-se em seus textos
filosóficos, Engels foi acusado de construir um problemático entendimento da concepção
materialista e da dialética, uma vez que buscava universalizar a materialidade e
dialeticidade ontológica de todas as coisas, inclusive buscando demonstrar a existência de
um movimento dialético também na natureza. Com isso Engels foi acusado tanto de tentar
naturalizar a história humana, quanto de humanizar a natureza.
Para reforçar a argumentação, esses críticos buscavam se utilizar da própria
modéstia de Engels para atacá-lo, argumentando que ele próprio se considerava, em todos
os aspectos, um pensador inferior a Marx. O argumento é buscado no próprio Engels que,
metafórica e humildemente, traçando comparação com Marx, se referiu a si mesmo como
um “segundo violino”, na conhecida Carta a Hohann Philipp Becker, de 15/101884:
Meu azar é que, desde o momento em que perdemos Marx, cumpre-me ter de
representá-lo. Ao longo de minha vida, fiz aquilo para que fui talhado, i.e. tocar o
segundo violino, e creio ter realizado meu papel de modo inteiramente tolerável.
Tive sorte por haver tido um primeiro violino tão famoso como Marx. Porém, se
agora devo representar, em questões de teoria, a posição de Marx, isso não poderá
transcorrer sem que incida em alguns equívocos e ninguém percebe isso mais do
que eu mesmo. Apenas quando os tempos ficarem algo mais movimentados,
tornar-se-á bem sensível para todos nós então o que é que foi que perdemos com
Marx. Nenhum de nós possui aquela sua visão de conjunto, consoante a qual
haveria de tão rapidamente agir, em determinado momento, adotando sempre a
decisão correta e indo imediatamente ao ponto decisivo. Em tempos de calmaria,
ocorreu, possivelmente, de os eventos terem-me dado razão em relação a Marx,
porém, nos momentos revolucionários, seu julgamento era praticamente infalível.
(apud Lenin, 1895, nota 17)12
12
Cf. ENGELS, FRIEDRICH. Brief an Johann Philipp Becker (Carta a Johann Philipp
Becker)(15.10.1884), in: Marx und Engels’ Werke, Vol. 18, Berlim : Dietz Verlag, Vol. 36, pp. 218 e ss.
51
52
Exatamente essa passagem acabou citada por Lênin nesse ensaio necrológico
(de 1895). Com o título “Friedrich Engels” (Lênin, 1982), Lênin elogiava a humildade de
Engels e seu carinho por Marx, enfatizando que “o proletariado da Europa pode dizer que a
sua ciência foi criada por dois sábios, dois lutadores, cuja amizade ultrapassa tudo o que de
mais comovente oferecem as lendas dos antigos” (Idem, p. 33). Mas outras passagens de
Engels, na qual fala sobre sua contribuição ao marxismo e sobre a grandeza e genialidade
de Marx, são as referenciadas como fundamento para que se considere a diminuta
participação engelsiana. Veja-se, por exemplo, a passagem que segue, extraída de Ludwig
Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã:
52
Também me perfilo entre os intelectuais que entendem que a concepção
materialista dialética da história é obra comum e conjunta de Marx e Engels, discordando
das críticas que imputam a Engels um papel secundário e problemático. Para mim, o
marxismo que hoje conhecemos, simplesmente não existiria sem a contribuição teórica e
prática de Engels. Analisando o conjunto das obras desses dois intelectuais, que iniciaram a
colaboração e trabalho conjunto em 1844, não encontraremos nenhuma obra ou trecho que
prove diferenças significativas de posição sobre quaisquer dos temas centrais tratados por
eles. Ademais, não se pode esquecer que Marx era um intelectual exigente, e mesmo
intransigente, na luta de idéias, tendo rompido com vários interlocutores, pois não era
homem de fazer concessões metodológicas, teóricas ou políticas. Ao contrário de terem os
amigos posturas diferenciadas, concordo que havia uma consciente e assumida divisão do
trabalho entre ambos, como destacado por vários textos biográficos, como bem expressa
Augusto Buonicuore, como segue:
É sobre A dialética da natureza que recai as mais pesadas críticas. Essa não foi
uma obra acabada, mas manuscritos nos quais Engels foi sistematizando os estudos
solicitados pela social-democracia alemã, num quadro de embate teórico com o
materialismo mecanicista, no contexto da segunda metade do século XIX. Engels passou
vários anos (presumivelmente foram oito anos) estudando os avanços e as contribuições
das diversas ciências naturais. O trabalho ficou inconcluso, vindo a público somente em
53
54
1925. Nos manuscritos, discutindo sobre dialética e ciência, Engels criticou duramente os
que advogavam uma “concepção naturalista da história”:
Concluiu que “os homens fazem a sua história” (Idem, p. 198), tema que
também aborda numa carta a Bloch, escrita em 1890, na qual afirmou: “Segundo a
concepção materialista da história, o fator que em última instância determina a história é a
produção e a reprodução da vida material” e que nem Marx nem ele nunca afirmaram,
“uma vez sequer, algo mais do que isto”. Acrescenta na seqüência que “Se alguém
tergiversa... dizendo que o fator econômico é o único fator determinante, converterá aquela
tese em uma frase vazia, abstrata e absurda”, registrando assim sua discordância de
qualquer determinismo economicista, mas se isso estava ocorrendo, a responsabilidade era
deles mesmos que, frente aos adversários idealistas, tinham que sublinhar o princípio
negado por eles:
54
A responsabilidade de que, às vezes, os jovens dêem ao aspecto econômico um
peso maior do que o devido, deve cair parcialmente sobre Marx e sobre mim.
Frente aos nossos adversários, era preciso sublinhar o princípio essencial negado
por eles, e então nem sempre tínhamos o tempo, o lugar, nem a ocasião para fazer
justiça aos demais fatores que intervêm na ação recíproca. (In: Marx e Engels.
Obras Escolhidas, Volume 3, p. 286)
55
56
[...] foi exatamente no curso do século XIX, em especial na segunda metade, que,
pela primeira vez na história, teorias científicas foram aplicadas à produção,
configurando o que chamamos de tecnologia para distinguir das técnicas onde não
há essa aplicação consciente de princípios científicos. As indústrias químicas e
elétricas estão entre as primeiras beneficiadas por essa interação. Apenas para
realçar essa característica inovadora, é bom lembrar que a revolução industrial,
tendo à máquina a vapor o carro chefe, não foi antecedida pela ciência; pelo
contrário, o surgimento da disciplina termodinâmica pelas mãos do engenheiro
francês Sadi Carnot, no início do século XIX, sucedeu ao uso em larga escala da
máquina a vapor. Desnecessário frisar... a contemporaneidade do papel da ciência
na produção dos bens materiais. A luta política em curso no mundo, e nesses dias
no Brasil em particular, em torno da questão das patentes, nos diz claramente que
ninguém subestima esse papel da ciência. As reflexões engelsianas sobre as
ciências da natureza são, portanto, atuais, e por isso clássicas, por se tratarem de
56
reflexões sobre os problemas atuais, contemporâneos. Resta agora examinar o
valor intrínseco dessas reflexões. Mas, antes, comento algumas razões mais
conjunturais que levaram Engels à sua preocupação com as ciências da natureza.
(Freire Jr., 1995, [s.p.])
57
58
Somente para concluir, concordo com Buonicore (2007) que, usando da ironia
marxiana, questiona como um crítico contumaz do positivismo e do economicismo no
interior do movimento socialista tenha sido, posteriormente, acusado de ser seu principal
introdutor e incentivador na concepção que ajudou a arquitetar - o marxismo. Tendo
consciência dos desvios mecanicistas e economicistas, combateu a posição daqueles que
acreditavam ser a sociedade um simples reflexo mecânico da economia, reforçando, ao
contrário, o caráter complexo e mediatizado da determinação econômica sobre as demais
instâncias estruturais da sociedade, bem como da importância das outras esferas sociais,
políticas e ideológicas sobre a economia.
58
obra de Marx não é nova e tem sido usada quer por marxistas que se julgam “ortodoxos”,
como também por aqueles que se posicionam revendo os problemas encontrados na
elaboração original e, notadamente, pelos críticos do materialismo dialético.
O reconhecimento das continuidades e rupturas existentes na obra decorre de
uma leitura atenta do próprio Marx. No conhecido e citado "Prefácio" da Crítica da
Economia Política traçou as linhas gerais de seu percurso desde a jurisprudência, à qual se
dedicou "como disciplina complementar da filosofia e da história", até os estudos
econômicos, deixando claro que o relato feito revelava a evolução de seus estudos e que
tinham por objetivo mostrar que suas opiniões eram o resultado de longas e conscienciosas
pesquisas:
59
60
60
para além da história. Enveredo por essa discussão para registrar minha compreensão de
ortodoxia, composição de duas palavras de origem grega (orthós = reto, direito; doxia =
opinião; orthódoxia = conforme a doutrina original), que em filosofia foi incorporada para
se referir aos princípios originários de uma determinada escola ou concepção, isto é: à sua
origem e aos seus princípios articuladores. Com a incorporação da filosofia à teologia, na
Idade Média, ortodoxia passou a ser usada no sentido de absoluta conformidade com a
doutrina religiosa (isto é, com os ensinamentos professados pela Igreja Católica). Mas esse
é o sentido etimológico da palavra dogmatismo (dogma = verdade inquestionável; + sufixo
ismo = princípio, doutrina) que tem o preciso significado de estar em conformidade com os
pontos fundamentais e indiscutíveis de uma doutrina religiosa determinada, daí o
significado de doutrina e que é professada pelos que admitem, como verdade
inquestionável, como um ato de fé, um conjunto de explicações (verdades).
É no sentido de ortodoxia que estou entendendo, ancorado em vários
estudiosos, notadamente em Antonio Gramsci (1981, p. 186-187), que há no marxismo um
conjunto de pressupostos que se referem aos seus fundadores – Marx e Engels – e que estes
são definidores dessa concepção, historicamente datada e situada. Ortodoxo no sentido de
estar em conformidade com os pressupostos estabelecidos pelos fundadores da concepção.
Sobre a questão de se buscar entender as premissas teórico-metodológicas da
concepção materialista dialética a partir de seus fundadores, é conveniente que se esclareça
que não se está considerando o marxismo como uma obra acabada, cabendo à posteridade a
sua admiração e/ou mera aplicação. Igualmente, não se adota aqui a pressuposição da
correção absoluta (e, por isso mesmo, dogmática) das análises teóricas e históricas dos
clássicos do marxismo. Concordo, de modo geral, com os que admitem a existência de um
processo de desenvolvimento e de contribuições expressivas na construção da concepção;
mas isso não significa, porém, aceitar e reconhecer como materialismo dialético desvios e
revisões desenvolvidas (e ainda em desenvolvimento), pois se tratam, dadas suas bases
ontológicas e epistemológicas, de construção ou elaboração de referenciais que, mesmo
guardando uma relação de proximidade com o marxismo, possuem (ou deveriam possuir)
existência própria.
Mesmo reconhecendo possíveis contribuições e avanços às elaborações dos
fundadores da concepção materialista dialética da história, através das quais o próprio
processo histórico e os avanços das mais diversas áreas do conhecimento científico foram
sendo elucidados e integrados à concepção marxista, é necessário ainda tomarmos a
61
62
discussão das premissas esboçadas por Marx e Engels. Em primeiro lugar, face aos
próprios desvios, interpretações equivocadas ou falaciosas e arranjos teórico-
metodológicos diversos, é preciso ainda hoje, passado quase um século e meio desde as
"descobertas" de Marx e Engels, buscar a partir dos próprios formuladores as premissas
básicas que possibilitaram a análise da sociedade capitalista e deram sustentação ontológica
e epistemológica à nova concepção, em relação às outras então existentes e que foram
objeto de crítica e contestação.
Não esqueçamos a referência já feita a Engels que, em setembro de 1890, em
sua "Carta a Bloch..." (In: MARX, K. e F. Engels. Obras Escolhidas - Volume 3, p. 284-
286), apontou para as distorções e análises errôneas que alguns supostos marxistas estavam
cometendo a partir do uso inadequado do método materialista dialético, obrigando-o a
explicitar de forma mais sistematizada os fundamentos do novo método. A partir dessa
observação não fica difícil reconhecer que muitas das acusações que o marxismo recebe -
de análise economicista, de abordagem mecânica, de dogmatismo, etc. - têm fundamento,
mas que se trata de desvios metodológicos e teóricos das formulações originais.
Como entender, então, a originalidade das formulações dos fundadores da
concepção materialista e dialética da história?
Entendo que Marx e Engels não promoveram uma incorporação acrítica das
várias contribuições de seu tempo, isto é, não produziram uma nova concepção pela síntese
eclética da contribuição da filosofia alemã, do socialismo francês e da economia política
inglesa. Meu entendimento é que a concepção materialista e dialética da história foi
formulada como uma síntese crítica13 produzida em contraposição a outros autores,
métodos e teorias que objetivavam a análise da natureza, do homem e da sociedade.
Ampliando os estudos e o engajamento político, a nova concepção foi forjada a partir da
crítica contundente das concepções filosóficas, científicas e políticas de seu tempo.
Exercitaram a crítica como base para a análise das concepções com que se confrontavam
nos estudos filosóficos, econômicos, sociais e políticos, expressando o processo pelo qual
se indica os limites dos interlocutores, mas também valorizando suas contribuições. Neste
sentido, a rejeição ou a incorporação de pressupostos faziam parte de um mesmo e único
processo pelo qual Marx e Engels elaboravam o método de análise e o referencial teórico
13
Estou tomando o conceito de crítica (do grego de “kritikos” = separar, decidir = "capaz de tomar decisões")
que na filosofia foi incorporada em seu sentido etimológico de examinar, apreciar, apontar méritos e
deficiências.
62
que possibilitavam o entendimento das leis de funcionamento do modo capitalista de
produção.
Novamente é preciso perguntar se, mesmo após terem Marx e Engels
evidenciado os limites e as deficiências de outras concepções usuais no ambiente filosófico
e científico daquele tempo histórico (Alemanha de meados do século XIX), por aqui esses
mesmos métodos não deixaram de existir ou de continuarem a ser propagados como
formulações científicas e neutras? Da mesma forma, como as premissas desses métodos e
do próprio materialismo dialético ainda permanecem válidas e em vigor, por que não se
buscar na própria origem (isto é, em Marx e Engels) as premissas que fundamentaram o
novo método e a sua contraposição em relação aos demais?
Nessa discussão sobre a reconstrução das questões que envolvem um método, a
partir da forma como foi exposto por seus fundadores, considero muito interessantes as
observações feitas por Gramsci que caracterizou Marx como o marco de um novo período
histórico, já que “Marx inicia intelectualmente uma idade histórica que provavelmente
durará séculos, isto é, até o desaparecimento da sociedade política e o advento da sociedade
regulada." (Gramsci, A.. 1981, p. 94).
Entendendo Marx como o iniciador de uma nova "idade histórica" ou como o
fundador de uma nova "concepção do mundo", salientou que o estudo de "uma concepção
do mundo que jamais foi exposta sistematicamente por seu fundador" deve buscar a
coerência de seu pensamento de forma global e “não em cada escrito singular ou série de
escritos, mas no desenvolvimento global do trabalho intelectual múltiplo, no qual os
elementos da concepção estão implícitos.” (Idem, ibidem).
Esse trabalho, que Gramsci denominou de "trabalho filológico minucioso",
deve ser conduzido "com o máximo escrúpulo de exatidão", "de honestidade científica",
"de ausência de qualquer preconceito ou apriorismo" (Idem, ibidem) de forma a que, ao
buscar a coerência do pensamento do autor, se reconstrua o seu processo de
desenvolvimento intelectual e sejam determinados seus elementos básicos.
63
64
... o que mais interessa é precisamente a superação das velhas filosofias, a nova
síntese, o novo modo de conceber a filosofia, cujos elementos estão contidos... nos
escritos do fundador da filosofia da práxis, os quais, precisamente, devem ser
investigados e coerentemente desenvolvidos. Teoricamente, a filosofia da práxis
não se confunde e não se reduz a nenhuma outra filosofia: ela não é só original
enquanto supera as filosofias precedentes, mas notadamente enquanto abre um
caminho inteiramente novo, isto é, renova de ponta a ponta o modo de conceber a
própria filosofia. (Idem, p. 188-189).
64
de O Capital e dos últimos trabalhos de Engels (Luxemburgo, 1984, p. 53-54), a autora
conclui que tal circunstância não decorre de ser a concepção materialista dialética história
um método de pesquisa demasiadamente rígido ou completamente acabado (Idem, p. 54).
A aparente estagnação do materialismo histórico decorre, por um lado, dos limites e
barreiras que a classe trabalhadora encontra para continuar a criar uma cultura intelectual
completa, dadas as condições sociais existentes em toda sociedade dividida em classes:
65
66
Será que faz algum sentido tratar Marx e Engels como busquei delinear
anteriormente? Em outros escritos adentrei nessa questão desde um ponto de vista lógico e
histórico, mas face ao anuncio bombástico de que o capitalismo vive uma profunda e grave
crise internacional, recorrerei a uma argumentação conjuntural e estrutural, tecendo
algumas notas sobre a atual conjuntura, marcada por mais uma grave crise do modo de
produção de capitalista.
Estou aqui retomando o conceito de crise em seu sentido etimológico14,
adequando para o uso que os marxistas fazem, referindo-se aos processos e períodos de
desequilíbrio e conflito, no âmbito econômico, social, político e ideológico (Bottomore,
1988, p. 82 e ss.). Há autores que trabalham com o entendimento que há uma teoria das
crises em Marx; outros que falam em teorias da crise (no plural). Mas não acho que essa
seja uma questão relevante para se discutir neste momento, em que a crise se apresenta
empiricamente e aparece estampada num grande conjunto de matérias e análises,
publicadas e amplamente divulgadas pela internet.
Para o marxismo a crise é entendida como o colapso dos princípios básicos que
regem o funcionamento de uma determinada formação social ou de um determinado modo
de produção, geralmente fazendo-se a distinção entre as crises parciais ou conjunturais,
características dos ciclos de desenvolvimento econômico, daquelas que expressam
depressões e colapsos mais profundos e que conduzem a uma transformação profunda,
estrutural, das relações econômicas e sociais características de um determinado modo de
produção (Bottomore, 1988, pp. 83-85 e 85-89). As crises gerais se expressam no
enfraquecimento das relações societais organizativas das relações econômicas, sociais e
políticas; sua manifestação se expressa no esgotamento de um determinado padrão de
acumulação. É nesse sentido que os estudiosos dos ciclos econômicos apontam para
dezenas de crises conjunturais e algumas poucas e profundas crises estruturais.
14 Lat. crise < Gr. Krísiss. Alteração, desequilíbrio repentino; estado de dúvida e incerteza; tensão, conflito
(Cunha, 1986, p. 228). Manifestação violenta e repentina de ruptura de equilírio; Fase difícil, grave, na
evolução das coisas, dos fatos, das idéias; Tensão, conflito; Transição entre uma época de prosperidade e
outra de transição; situação de um governo que encontra dificuldades muito graves em se manter no poder;
Situação grave nos acontecimentos da vida social, etc. (Ferreira, [s.d.], p. 402)..
66
Nos Estados Unidos da América, por exemplo, embora tenham ocorrido 35 ciclos
econômicos e crises nos 150 anos decorridos de 1834 ... [no período de 1834 a
1984], apenas duas – a Grande Depressão de 1873-1893 e a Grande Depressão de
1929-1941 – podem ser classificadas como crises gerais. [...] (Bottomore, 1988,
pp. 83-85 e 85-89)
A teoria das crises é como “irmã siamesa” da teoria das revoluções (assunto
que voltarei a analisar na parte terceira deste trabalho). Esse é um aspecto patente nas obras
de Marx e Engels, notadamente naquelas em que buscaram explicar acontecimentos
políticos contemporâneos a eles. Basta lembrar a síntese feita por Engels das lutas de 1848
à década de 1870, colocando relevo no embate entre as classes e frações de classe,
concluindo que “as condições mudaram na guerra entre povos”, o mesmo tendo ocorrido
na luta de classe (Engels. Introdução – As lutas de classes na França de 1848 a 1850, p.
97). Engels faz uma autocrítica profunda das análises que fizeram, observando que “a
história nos desmentiu... [e] demonstrou que o estado de desenvolvimento econômico no
continente ainda está muito longe do amadurecimento necessário para a supressão da
produção capitalista” (Idem, p. 99).
Mas estou aqui fazendo um gancho para entender a crise contemporânea,
buscando teoricamente expressar o que vem ocorrendo desde a reorganização internacional
pós-segunda grande guerra, quando o capitalismo teve uma prolongada fase de expansão
econômica. Mesmo tendo a instabilidade econômica se manifestado no fim da década de
1960, ela somente irrompeu com força na década de 1970, causada por dois choques
sucessivos nos preços mundiais do petróleo e que trouxeram sérias dificuldades para a
conversibilidade do dólar em ouro, marcando o colapso do acordo de Bretton Woods e
provocando o endividamento dos países subdesenvolvidos que buscavam, em plena crise
petrolífera, manter a importação dessa fonte energética e que havia se tornado fundamental
67
68
15 A exposição que segue sobre a crise sintetiza, em linhas gerais, o texto de GUTIÉRREZ, Alberto Anaya,
Virgilio Maltos Long e Rodolfo Solís Parga. Teses sobre a crise do capitalismo e a conjuntura mundial.
Comunicação apresentada no VIII Seminário “Os partidos políticos e uma nova sociedade”, promovido pelo
Partido do Trabalho, realizado na Cidade do México, 5-7 de Março de 2004. Original pode ser encontrado
em formato eletrônico [http://www.cubasocialista.cu/texto/viiiseminario/csviiis13.htm] e também em
[http://resistir.info/mexico/anaya_8_seminario_mar04_port.html].
68
Além da ideologização neoliberal e sua propalada característica globalizante,
assuntos que tive oportunidade de analisar em duas coletâneas – Globalização, pós-
modernidade e educação: história, filosofia e temas transversais. (LOMBARDI, 2001) e
Liberalismo e educação em debate (LOMBARDI e SANFELICE, 2007) – é preciso
registrar que a ofensiva da ideologização burguesa, visando à conquista dos corações e
mentes em escala mundial, foi a emblemática mistificação de Francis Fukuyama com “o
fim da história, expresso, primeiramente, através de artigo publicado em 1989, com o título
"O fim da história"16, seguido do livro “O fim da história e o último homem” (Fukuyama,
1992). Com essas publicações Fukuyama elaborou uma abordagem da história, de Platão a
Nietzsche, passando por Kant e Hegel, e que teve por objetivo revigorar a tese de que o
capitalismo e a democracia burguesa constituem o coroamento da história da humanidade.
Superando “totalitarismos” de direita e de esquerda, no final do século XX, a humanidade
atingiu o ponto culminante de sua evolução com o triunfo da democracia liberal ocidental
sobre todos os demais sistemas e ideologias concorrentes.
Neoliberalismo, globalização e fim da história, com o fim das disputas
históricas, foram instrumentos ideológicos da contra-ofensiva do capital, mais
precisamente do capital financeiro, notadamente de seu mais novo rebento, sedento por
uma acumulação rápida e pura expressão do capital em seu ciclo financeiro de acumulação:
o capital especulativo. Essa contra-ofensiva usou de todos seus instrumentos políticos e
financeiros para implementar seus objetivos fundamentais: derrotar a classe operária,
bloqueando as possibilidades de sua ofensiva, inclusive desmantelando as estruturas, as
instituições e as conquistas resultantes do Estado de Bem-Estar Social; reestruturar o
capitalismo internacional, abrindo espaço para a livre operação do capital financeiro
especulativo, das grandes corporações transnacionais e das potências capitalistas;
possibilitar o livre fluxo de investimentos e de comércio de bens e serviços; garantir o
controle e a apropriação de recursos naturais estratégicos – fontes de energia, água e a
biodiversidade – viabilizando a exploração de força de trabalho barata, em nível global;
implementar uma reorganização internacional, com a formação de megablocos econômicos
que repartam entre si os recursos, os territórios, a força de trabalho e os recursos
financeiros; estabelecer alianças estratégicas para controlar os mercados globais,
16
O artigo de Francis Fukuyama "The end of history” apareceu em 1989, na revista norte-americana The
national interest; Em 1992 ocorreu o lançamento do livro The end of history and the last man, editado no
Brasil no mesmo ano com o título “O fim da história e o último homem” (Fukuyama, 1992).
69
70
70
exemplificados pelos casos da Venezuela, do Equador, do Brasil, da Bolívia, da Argentina,
do Uruguai, da Colômbia e de El Salvador. Como em outros períodos da história em que a
combinação de crise cíclica com crise estrutural do capitalismo gerou as condições
necessárias para a emergência de vigorosos movimentos populares e políticos alternativos à
dominação capitalista, este parece ser um momento privilegiado neste sentido. Talvez o
amadurecimento da luta conduza à formação de uma frente ampla que articule as forças
anticapitalistas e revolucionárias. Ao menos as análises marxistas voltaram a circular nos
meios de comunicação de massa. Assim, contraditoriamente, nestes tempos de crise, tal
qual a Fênix, voltam a circular uma quantidade expressiva de matérias jornalísticas e textos
analíticos sobre o assunto17. Na impossibilidade de aqui sintetizar o debate que se realiza,
vou apenas tomar alguns textos como referência, com o objetivo de expressar o quanto a
atual crise recoloca a atualidade da produção marxiana.
A nova grave crise estrutural, “sistêmica”, do modo capitalista de produção,
tem sido divulgada pela imprensa burguesa, através de matérias que dão conta da
profundidade do está sendo chamado de crash de 2008. A gravidade é tamanha que este
crash está sendo considerado mais grave que o de 1929, nos seguintes termos: “o mundo
está passando hoje por uma crise sistêmica que só tem paralelo com o crash de 1929 e
ninguém sabe qual será a extensão desse terremoto” (Barros, 2008, [s.p.])18.
O atual crash (2008) manifesta-se por uma grande turbulência no mercado
financeiro dos EUA e que é constante desde a eclosão da crise do crédito imobiliário (em
2007), agravada pelo anúncio de concordata de um dos maiores bancos de investimento - o
Lehman Brothers. Com uma economia mundializada, simultaneamente a crise tornou-se
internacional, com os investidores promovendo a venda de ações, em busca por ancorar-se
em dólares. Para amenizar os efeitos do desequilíbrio financeiro, os bancos centrais do
mundo todo injetaram mais de US$ 500 bilhões no mercado ao longo da drástica semana
de 2008 (a imprensa refere-se à ao período de 15 a 19 de setembro de 2008). Para “salvar o
capitalismo dos capitalistas”, a economia ícone do liberalismo e da defesa do mercado
protagonizou alguns episódios de intervenção que causaram surpresa aos analistas. Numa
17
Impossível dar conta da multiplicidade dessa produção que tem circulado em livros e revistas impressas e
digitais. É preciso registrar, entretanto, que há acumulo de textos de excelente qualidade e que, de modo
plural, contribuiem para ampliar o debate analítico para o atual contexto histórico de crise estrutural do modo
capitalista de produção, com múltiplas indicações de perspectivas e saídas para a construção de novas
relações societárias.
18 Frase de Guilherme Barros, na matéria “Para Nathan Blanche, BC agiu corretamente”, publicada na
coluna “Mercado Aberto”, da Folha de S.Paulo de 19 de setembro de 2008.
71
72
19 Informação publicada na Folha OnLine de 19/09/2008 - 12h31 – com o título: “Intervenção em mercados
é essencial para conter crise, diz Bush”. [http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u446710.shtml]
72
a favor e 38 contra, uma votação apertada que encerrou a tramitação do Plano no
Congresso (Estadão on line, 14/02/2009)21. O próprio presidente Obama expressou o
entendimento americano quanto ao plano: "Há quem tema que não poderemos implementar
eficazmente um pacote dessas dimensões e alcance", advertindo que "este passo histórico
não será o último dado para superar a crise, mas apenas o primeiro", pois era preciso que se
entendesse que "Os problemas que nos levaram a essa crise são extensos e arraigados, e
nossa resposta deve estar à altura da tarefa" (Idem).
Apesar de prever centenas de bilhões de dólares em cortes de impostos e
investimentos federais, favorecendo sobremaneira as indústrias de energia e tecnologia, a
nova legislação foi considerada desalentadora para as empresas, pois era insuficiente para
minimizar os prejuízos provocados pela crise. Mas é preciso convir que as informações são
muito desencontradas, pois o secretário do Tesouro, Timothy Geithner, informou em 10 de
fevereiro que os bancos americanos receberam um pacote de ajuda do Tesouro no total de
US$ 1 trilhão que, somado as ações voltadas ao crédito para o consumidor e para as
empresas, supera US$ 2 trilhões (Estadão on line, 10/02/2009)22.
Wall Street não está afundando, está em crise. Os efeitos dessa crise vão depender
de sua duração. A situação não é fatal: estamos à beira do abismo, mas ainda não
caímos nele. O mercado continua a funcionar. Mas nos últimos dias surgiu um fato
20 Chrystia Freeland, do "Financial Times", no artigo “Réquiem para a era Reagan”, reproduzido na Folha de
S.Paulo de 20 de setembro de 2008.
21
A imprensa brasileira também noticiou o assunto, por exemplo pode-se verificar o conteúdo de matéria on
line, de 14/02/2009, pelo site do estadão, com o título “Congresso aprova plano anticrise; Obama elogia
‘conquista real”, acessada pelo seguinte endereço eletrônico:
http://www.estadao.com.br/economia/not_eco323852,0.htm
22
matéria on line, de 10/02/2009, pelo site do estadão, com o título “Entenda o novo plano dos EUA para
resgatar bancos”, acessada pelo seguinte endereço eletrônico:
http://www.estadao.com.br/noticias/economia,entenda-o-novo-plano-dos-eua-para-regatar-
bancos,321553,0.htm
73
74
Soros reconhece que foi o próprio capitalismo que provocou o seu colapso.
Para além dessa afirmativa, também reconhece que a atual crise expressou o
“fundamentalismo do mercado”, afirmando que o laissez-faire e a “auto-regulamentação
dos mercados” não passam de ideologia. Para os baluartes da liberdade de um mercado
auto-regulável e da não intervenção do Estado na economia, George Soros foi mais longe:
“A grande diferença entre hoje e a crise de 1929 é a atitude das autoridades. Elas
compreenderam que é preciso sustentar o sistema, mesmo que isso seja complicado e custe
caro, e mesmo que não seja parte de sua cultura promover intervenções do Estado” (Idem,
ibidem). Essa posição, manifestada quando do início das notícias sobre a crise, foram
reiteradas e aprofundadas depois, com George Soros afirmando que o “Sistema financeiro
está se desintegrando; é pior que a Grande Depressão e não há sinal algum de que
estejamos perto do fundo do poço.”24. Essas afirmações, feitas em 20 de fevereiro de 2009,
em um jantar na Columbia University, foram noticiadas por aqui em curta matéria do
Jornal O Estado de São Paulo, de 21 de fevereiro de 2009, registrando que o
megainvestidor afirmou que o sistema financeiro mundial estava efetivamente se
desintegrando e que não há perspectiva de solução a curto prazo para a crise, já que a
turbulência é mais severa que durante a Grande Depressão e essa situação é comparável ao
desmantelamento da União Soviética.25
23 Os trechos estão na matéria "Wall Street não afundou", afirma Soros, publicada no caderno Dinheiro, da
Folha de S. Paulo de 20 de setembro de 2008.
24
Citado em Carta Maior, acessado em 22 de setembro de 2009, pelo site:
http://www.cartamaior.com.br/templates/index.cfm?alterarHomeAtual=1
25 Matéria intitulada “Soros não vê fundo do poço do colapso financeiro mundial”, na Sessão Economia, no
site do Jornal O Estado de São Paulo, estadão.com.br, acessado em 22/02/2009, pelo seguinte endereço:
http://www.estadao.com.br/economia/not_eco327883,0.htm
26 Luiz Gonzaga Belluzzo, “Nada de novo”. Folha de S. Paulo, Caderno Dinheiro, de 21 de setembro de
2008.
74
americano, Nicholas Brady, Eugene A. Ludwig e Paul Volker, recomendaram medidas
drásticas e urgentes para brecar o avanço da mais devastadora crise financeira desde a
Grande Depressão de 1930. Para estes “na ausência de uma ação corajosa, as coisas podem
piorar” pois, mais que isso, entendem que “medidas de emergência já tomadas pelo Fed e
pelo Tesouro, ainda que necessárias, são insuficientes para domar a crise" (Belluzzo,
21/09/2008, [s.p.]). Para os “três figurões” das finanças “o sistema financeiro americano
exige uma reestruturação profunda que o habilite a funcionar de forma mais adequada no
futuro”, mas é preciso imediatamente livrar o mercado "do enorme volume de lixo tóxico
hipotecário que não será honrado nos termos acordados”. A citação de Belluzzo é, por ela
mesma, elucidativa:
75
76
Para ajudar o leitor a entender o que está se passando, Belluzzo traça o percurso
que desembocou na atual crise, pontuando que, após a crise de 1930, as reformas
introduzidas pelos Estados Unidos e Europa, no chamado consenso keynesiano,
possibilitaram três décadas de crescimento e estabilidade, com controles sobre os sistemas
financeiros. Às lutas sociais nos países desenvolvidos, correspondeu à “proteção dos
direitos econômicos e sociais dos trabalhadores e assalariados em geral” (Idem). No final
dos anos 1960, a recuperação econômica européia pós-guerra e o reerguimento japonês
provocaram “uma mudança de sinal na balança comercial dos Estados Unidos”, com
sucessivos déficits na balança de pagamento, agravados com a crescente ampliação das
despesas militares. Como toda a economia internacional estava lastreada no dólar, passou a
ocorrer uma verdadeira hemorragia das reservas de ouro. Em 1971 o então presidente
Richard Nixon decretou unilateralmente a incorversibilidade do dólar em ouro, lastreando a
moeda americana em títulos da dívida do governo americano. No final dos anos 1970 os
europeus tentavam substituir o dólar por um ativo emitido pelo Fundo Monetário
Internacional (FMI), os Direitos Especiais de Saque, mas a reação dos americanos foi de
promover um choque de juros, levando a uma quebradeira geral das economias nacionais,
notadamente dos países endividados. O resultado da crise foi a vitória das posições liberais
mais conservadas, como a vitória de Thatcher em 1979 e de Reagan em 1980, com a
radical desregulamentação e liberalização da economia, com o máximo de liberdade de
mercado e Estado mínimo. Conforme Belluzzo:
... a crise deu força aos que trabalhavam sem descanso para dar um fim .... as
instituições criadas na posteridade da Segunda Guerra para impedir que o
capitalismo repetisse experiências catastróficas, como a crise de 1929. A idéia era
desregulamentar, liberalizar, promover a desrepressão financeira. Nesse ambiente,
com o dólar fortalecido, os Estados Unidos começaram as idéias e as regras do
conjunto de proposições ditas neoliberais. [...] (Belluzzo, fevereiro de 2008, p. 14).
[...] Por quase 30 anos despejou-se sobre a sociedade uma peroração cotidiana que
reafirmava a virtude dos mercados desregulados para promover o crescimento, a
inovação, a modernidade, a eficiência, a liberdade, orgasmo e a cura para a
calvície.
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Jornalões, colunas e colunistas, em especial nas editorias de economia,
funcionaram esse tempo todo como uma espécie corregedoria ideológica do fim da
história. Dentro e fora das redações, cuidavam de vigiar, punir e desqualificar
quem ousasse argüir o mainstream, bem como o perímetro por ele reservado à
democracia. (Lebron, 2009, [s.d.])
Mas voltemos a Belluzzo, para quem esse ambiente neoliberalizante, com uma
suposta liquidez e segurança, fizeram com que os títulos americanos passassem a lastrear
as operação de crédito que passaram a ser “securitizadas”, com os títulos não mais ficando
nas carteiras dos bancos, mas sendo negociados diariamente nos mercados financeiros
internacionais. Foi essa a política adotada nas duas décadas seguintes (1980 e 1990),
promovendo amplo crescimento da bolha financeira, com os bancos concedendo crédito
lastreado na negociação dos títulos. Foi como que absolutizar a circulação de dinheiro para
a obtenção de mais dinheiro.
Também nesse quadro de crise foi publicado o artigo de César Benjamin, “Karl
Marx manda lembranças”, também na Folha de S.Paulo, de 20 de setembro de 2008, e que
teve grande alarde na internet27. A epígrafe não poderia ser mais feliz para ilustrar o quadro
posto e exemplarmente caratecterizado por Soros. Vale a pena citar para registro: “O que
vemos não é erro; mais uma vez, os Estados tentarão salvar o capitalismo da ação
predatória dos capitalistas.” (Benjamin, 2008, [s.p.]). Achei a afirmação a mais correta
expressão do que está se passando, colocando-a como subtítulo desta presente parte de meu
trabalho.
27
César Benjamin, “Karl Marx manda lembranças”. Folha de S.Paulo, 20/09/2008.
[http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi2009200824.htm]. Também em vários sites, como por exemplo:
[http://www.diap.org.br/index.php/artigos/5066-cesar_benjamin_karl_marx_manda_lembrancas]
77
78
Iniciando pela afirmativa de que nas economias modernas não mais tratam de
dispor de valores de uso, “mas de ampliar abstrações numéricas”, o autor entende que se
criou um novo conceito de riqueza, o que recoloca a atualidade da análise marxiana nos
termos que seguem:
78
civilização – “abolindo-se os trabalhos cansativos, mecânicos e alienados, difundindo-se as
atividades da cultura e do espírito”; pelo outro chega-se à barbárie - “com o desemprego e
a intensificação de conflitos”. Assim, quanto “Maior o poder criativo, maior o poder
destrutivo” (Idem).
César Benjamin fecha o artigo lembrando que o que está acontecendo “não é
erro nem acidente”, mas é resultado do próprio sistema. Vencendo os adversários, o
sistema buscou “a sua forma mais pura, mais plena e mais essencial”, com predominância
da acumulação D - D". Com isso:
28 Trata-se do artigo de Rick WOLFF, Capitalist Crisis, Marx's Shadow, publicado em Mr Zine, Monthly
Review, de 26/09/2008. Acesso [http://mrzine.monthlyreview.org/wolff260908.html], em 27/09/2008.
79
80
29
Essa entrevista de Eric Hobsbawm a Marcelo Musto, intitulada “A crise do capitalismo e a importância
atual de Marx”, foi publicada na Carta Maior, em 29 de setembro de 2008, e encontra-se disponível em:
[http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=15253]
80
É também esse o sentido posto por Daniel Bensaïd, na primeira página de seu
Marx, o intempestivo - e que merece o registro: “Enquanto o capital continuar dominando
as relações sociais, a teoria de Marx permanecerá atual, e sua novidade sempre recomeçada
constituirá o reverso e a negação de um fetichismo mercantil universal.” (BENSAÏD, 1999,
p. 11-12).
Para fechar essas observações, que são meramente pontuais neste trabalho,
pensava em recorrer a Marx e Engels – no Manifesto do Partido Comunista - sobre a
derrocada do capitalismo e a construção de um novo modo de produção. Também fiquei
tentado a citar Lênin e sua arguta análise sobre o Imperialismo, a fase decadente do
capitalismo e as transformações que dele decorreram. Entretanto, resolvi recorrer a duas
matérias que circularam com a eclosão da crise. Uma matéria identificada com a direita
traz algumas passagens de Thomas Fingar, presidente do Conselho Nacional de
Inteligência dos EUA, que vaticinou o declínio norte-americano com colorações fortes
(Rodrigues, F., 2008)30. Afirma o maioral do serviço secreto do país que:
30 A matéria leva o sugestivo título “A erosão do império”, assinada por Fernando Rorigues, que traz trechos
de conferência de Fingar a agentes e analistas do setor de informações norte-americano. Foi publicada no
Caderno Mais, da Folha de S. Paulo de 21 de setembro de 2008.
81
82
31
O artigo de Saul LEBLON, “A esquerda enfrenta a dura carpintaria da história”, encontra-se disponível em:
[http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=15703].
82
Como perguntar não ofende, sendo uma dimensão fundamental do exercício
infindável de melhor entender o processo de transformação histórica, lá vai: Será que não
há mesmo nenhuma força social que, sob os escombros do velho modo de produção,
reverta a barbárie em andamento, redirecionando a humanidade no caminho da construção
de uma nova e superior civilização?
É exatamente essa discussão que a dimensão da atual crise recoloca. Recoloca
que Marx tinha razão em prognosticar que o modo de produção capitalista seria compelido
a revolucionar incessantemente a produção, a aumentar a massa de mercadorias,
igualmente mercadorizando todas as coisas, todas as relações e, enfim tudo sendo
transformado em mercadoria. O brutal desenvolvimento das forças produtivas, a constante
transformação da produção, ampliará incessantemente a esfera de influência do capital,
assim como do espaço geográfico do circuito mercantil e da acumulação de mais riquezas e
mais populações participando do processo. O aumento da potência produtiva, a expansão
do espaço da acumulação, a revolução técnica incessante, todo o planeta, todos os setores
econômicos, todas as empresas, transformadas em monopólios e oligopólios, passam a ter
seus destinos igualmente cada vez mais interrelacionados.
O rompimento de qualquer elo dessa cadeia, como a falência de um grande
oligopólio, com fortes vínculos internacionais e conformados dominantemente pelo capital
financeiro, tem implicações para numerosas empresas, para o circuito financeiro de modo
ampliado, gradativamente provocando um efeito dominó e levando de roldão todo o
circuito no qual se encontra envolvido, as bolsas de valores ao redor de todo o mundo...
Grandes e pequenos Estados nacionais, grandes e pequenos impérios. Enfim o
imperialismo nunca deixou de ser tema tão atual! (Foster, 2002, [s.p.])
São essas questões que reacendem as possibilidades de transformação profunda
de todo o modo de existir dos homens. Após as experiências tenebrosas do século XX, nas
quais nenhum vestal à direita ou à esquerda está em condições de lançar pedra alguma,
dificilmente pode-se pressupor que a revolução venha a resultar de um evento, de um golpe
de Estado ou da derrubada insurrecional do poder do Estado. Reacende, porém, o
entendimento da revolução como um processo de transformação, como a implosão de todo
edifício social característico de velhas bases e relações marcadas pela exploração do
trabalho pelo capital, com a emergência progressiva de novas e revolucionárias relações,
identificadas com novas bases e fundamentos societários. Ainda nesse contexto, será
83
84
Por isso tenho insistido que é preciso abrir ainda mais o debate, mantendo
acesa a perspectiva de construção revolucionária de uma nova sociedade, mais justa e
igualitária. É com esse projeto que, como educadores, precisamos lutar para que todos os
homens tenham acesso a uma educação que os prepare para além do capital; que possibilite
a todos o acesso aos conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade; e, enfim,
que todos os homens possam usufruir de uma educação crítica, voltada ao atendimento de
toda a sociedade e centrada nos conteúdos historicamente produzidos pela humanidade, no
interior de uma perspectiva política de transformação social (Lombardi, 2005, p. xxvii).
84
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86
tipo de conhecimento que ultrapasse o sujeito que o produziu; enfim uma gnosiologia de
ceticismo absoluto, negadora de qualquer possibilidade de conhecimento e que, por isso,
beira a um agnosticismo metafísico e religioso; o culto à extrema individualidade, ao
consumismo e à ética hedonista, não há como deixar de registrar que trata-se de uma
axiologia imobilista e politicamente derrotista.
Com essa análise não objetivei desqualificar os problemas e questões que
animam as reflexões pós-modernas. Entendo que são problemas sociais e filosóficos
produzidos desde a segunda metade do século XIX, expressos nas reflexões de Nietzsche,
Kierkegaard, Spengler e Freud, e que, a partir do desencanto com a modernidade, animam
os embates até a contemporaneidade com Lacan, Lyotard, Foucault, Derrida, etc.. como
bem expressa Ellen M. Wood, não se trata de negar os problemas e temas tratados pelos
pós-modernistas, referindo-se ao “otimismo iluminista” e a importância de outras
“identidades”, além da de classe, como as “lutas contra a opressão sexual e racial”, ou das
“complexidades da experiência humana em um mundo instável e mutável” ou ainda o
ressurgimento de outras “identidades”, como o nacionalismo, “como forças históricas
poderosas e freqüentemente destrutivas” (Wood, 1999, p. 17). Diz a autora que não é
preciso aceitar os pressupostos da pós-modernidade para entender os problemas e os novos
embates colocados pela contemporaneidade. Ao contrário, colocar na ordem-do-dia do
materialismo histórico a diferença e a diversidade, bem como a aceitação da pluralidade
das lutas contra os vários tipos de opressão, “não nos obriga a descartar todos os valores
universais aos quais o marxismo... sempre esteve ligado, ou a abandonar a idéia de uma
emancipação humana universal” (Idem, p. 18). Muito ao contrário, é assumir com
radicalidade um método a um só tempo materialista, dialético, histórico e revolucionário.
Embora os próprios pós-modernos se considerem defensores de uma concepção
que rejeita qualquer tipo de princípio e de enquadramento, demonstrei que todos os
posicionamentos sempre articulam um conjunto de princípios filosóficos, sistematizados
no âmbito da ontologia, da gnosiologia e da axiologia. Para organizar minhas reflexões
elaborei o texto que segue, com o objetivo de servir de suporte para a discussão
introdutória da disciplina “Leituras das obras de Marx e Engels”, e que venho trabalhado
no Programa de Pós-Graduação em Educação da UNICAMP, na Área de Concentração:
História, Filosofia e Educação. Inicialmente a preocupação foi mais didática, mas
sucessivamente várias turmas de alunos de pós-graduação expressaram uma forte
preocupação com a explicitação dos elementos conformadores de tantas e diferenciadas
87
88
32
Apresentei publicamente essa discussão em conferência no III Colóquio do Museu Pedagógico,
17/11/2003, na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Vitória da Conquista – BA. Encontra-se
publicada em: LOMBARDI, J.C.. História e historiografia da educação no Brasil. In: Revista HISTEDBR On-
line. Número 14, junho 2004. [http://www.histedbr.fae.unicamp.br/art4_14.pdf]
33
Foram vários os trabalhos, dissertações e teses produzidos com essa orientação, mas não convém citá-los,
pois a memória poderá me trair. Busquei fazer o registro, ainda que parcial, desse percurso na
“Apresentação” à publicação da tese de doutorado de Marcos Francisco Martins, Marx, Gramsci e o
conhecimento: ruptura ou continuidade? (Lombardi, 2008; in: Martins, 2008).
88
cristaliza nas representações e na ideologia, nos mitos e nas religiões, enfim, nas opiniões,
na Filosofia e nas ciências.
Fizemos (no passado) e continuamos a fazer (no presente) praticamente os
mesmos questionamentos sobre o mundo, a vida, o tempo, o homem, a sociedade, as ações
dos homens e também quanto ao conhecimento, quanto às virtudes morais e a busca do
bem dos homens, quanto à política e a busca do bem de toda a coletividade, e quanto às
coisas e questões divinas, e quanto as causas e finalidades de tudo o que existe,
notadamente quanto a natureza e o homem. A resposta a essas perguntas levou à
construção de quadros explicativos, mais ou menos sistemáticos, primeiramente expressos
pelos mitos e poemas. A necessidade de uma formulação mais sistemática e articulada das
respostas fez com que a filosofia e, mais recentemente, as ciências ocupassem o lugar do
mitológico e do sobrenatural. O desenvolvimento material e intelectual dos homens
demandava explicações demonstradas logicamente e comprovadas empiricamente.
Gradativamente essas formulações conformaram as diferentes posições metodológicas e
teóricas que, na Filosofia e nas Ciências, apresentam-se como formas de manifestar a
existência humana, porém, constituindo-se em produtos da própria existência e das
relações humanas.
O conhecimento, como processo e como resultado de um fazer proprio e
característico do ser humano, é a forma pela qual o homem expressa abstratamente as
relações que mantém com o mundo circundante e com outros homens. Sendo, pois, produto
da existência humana, tal qual outros aspectos dessa própria existência, também as formas
assumidas pelo conhecimento transformam-se historicamente, estando submetidas às
mesmas determinações históricas que as demais idéias produzidas pelos homens. Assim, as
idéias constituem a representação daquilo que o homem faz, da sua maneira de viver, da
forma como se relaciona com outros homens, do mundo que o circunda e das suas próprias
necessidades. É dessa forma que entendo a afirmação de Marx e Engels e nada melhor que
recorrer à lapidar passagem em que tratam do assunto, em A Ideologia Alemã:
89
90
(...) Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que
determina a consciência. (Marx e Engels. A Ideologia Alemã... - Volume
1, p. 25-26).
90
contraditoriamente os antagonismos sociais. Por isso mesmo, embora as representações de
uma determinada formação social ideologicamente representem predominantemente as
idéias da classe dominante, a possibilidade de produção de idéias que expressem a
realidade e as relações naturais e sociais do ponto de vista das classes dominadas, por sua
vez, apontam para a possibilidade de transformação radical e profunda da própria realidade
social.
91
92
[...] Quer nas primeiras formas de organização social, quer nas sociedades
atuais, é possível identificar a constante tentativa do homem para
compreender o mundo e a si mesmo; é possível identificar, também... a
inter-relação entre as necessidades humanas e o conhecimento produzido:
ao mesmo tempo em que atuam como geradoras de idéias e explicações, as
necessidades humanas vão se transformando a partir, entre outros fatores,
do conhecimento produzido.
A ciência caracteriza-se por ser a tentativa do homem entender e
explicar racionalmente a natureza...
Tanto o processo de construção de conhecimento científico quanto seu
produto refletem o desenvolvimento e a ruptura ocorridos nos diferentes
momentos da história. Em outras palavras, os antagonismos presentes em
cada modo de produção e as transformações de um modo de produção a
outro serão transpostos para as idéias científicas elaboradas pelo homem.
(ANDERY et al., 1988, p. 13).
92
científico quanto seu produto” resultam da ação dos homens nos diferentes momentos da
história, dos “antagonismos presentes em cada modo de produção e as transformações de
um modo de produção a outro serão transpostos para as idéias científicas elaboradas pelo
homem” (ANDERY et al., 1999, p. 13).
Sobre a problemática do conhecimento, tenho me posicionado no sentido de
que qualquer que seja o entendimento de ciência – e particularmente da Ciência da História
- e, também, qualquer que seja a opção do pesquisador quanto ao fazer cientifico (na
História), não se pode desvinculá-lo dos contraditórios interesses da sociedade e do tempo
histórico em que vive. Sendo o conhecimento historicamente produzido e datado, nenhum
pesquisador é neutro, nenhum procedimento científico é asséptico e muito menos o
conhecimento produzido por ele é dotado de neutralidade em relação às questões de seu
tempo. Muito ao contrário, todo conhecimento produzido implica e pressupõe métodos e
teorias que embasam o processo (método) e o resultado (teoria) da construção do
conhecimento cientifico, sendo estes igualmente produtos sociais e históricos. Mesmo
quando não se explicita o referencial metodológico e teórico utilizado, é evidente que,
apesar dessa dimensão ficar subjacente ao texto, não se deixa de adotar princípios
ontológicos e gnosiológicos, posto que estes permeiam toda produção de conhecimentos,
todo processo e resultado do pensar do homem.
Mas nem todas as chamadas correntes filosóficas e históricas (e estou
particularmente pensando na produção da pesquisa educacional no Brasil) possuem claras
pressuposições paradigmáticas que possibilitem a sua clara identificação. Também há
elaborações que recusam qualquer embasamento metodológico e teórico, mas nesse caso
trata-se da penetração da velha e surrada matriz agnóstica, irracionalista e cética, em suas
várias vertentes.
Para aprofundar essa discussão, tenho procurado diferenciar o que é uma
concepção, daquilo que tenho denominado como movimento. Tenho usado o termo
Concepção34 num duplo sentido: 1) para me referir ao processo e resultado de produção e
criação de métodos e teorias filosóficas e científicas; 2) mas também para designar a
34
CONCEPÇÃO (etimologicamente do lat. conceptìo,ónis 'ação de conter, de abranger, o que é contido,
concepção, idéia, noção', rad. de conceptum, supn. de concipère 'conceber') – entende-se o ato ou efeito de
conceber; ação ou efeito de gerar um ser vivo. Por extensão, também passou a ser usado para a obra da
inteligência; produção, criação, teoria; ao trabalho de criação; projeto, plano, idéia e também as respostas a
questões filosóficas básicas, como a finalidade da existência humana, a existência de vida (e castigo ou
recompensa) após a morte etc.; visão do mundo, cosmovisão (HOUAISS, 2002; ABBAGNANO, 1962, p.
156).
93
94
35
CORRENTE (lat. currens,entis part.pres. de currère 'correr') s.f. no sentido figurado de série continuada de
idéias, pessoas ou coisas (concretas ou abstratas) interligadas de alguma maneira; de arcabouço teórico de
uma doutrina, de uma escola ou o pensamento dominante que nela existe e que de alguma maneira a
diferencia e caracteriza em relação as demais; termo também referido ao grupo de pessoas que se destaca por
apresentar alguma afinidade (ética, política, filosófica etc.) entre seus componentes. O termo designa o
movimento próprio do ar ou das águas; correnteza; a série ou cadeia de argolas interligadas, feitas geralmente
de ferro, usado para cingir, atar fortemente (alguém ou algo); grilhão (HOUAISS, 2002)
36
DOUTRINA – (lat. doctrína,ae 'ensino, instrução dada ou recebida, arte, ciência, doutrina, teoria, método',
do v. lat. docére 'ensinar'): conjunto coerente de idéias fundamentais a serem transmitidas, ensinadas;
conjunto de conhecimentos possuídos; ciência, erudição, saber; princípio, crença, ou conjunto de princípios
ou crenças que tem um valor de verdade absoluta para os que o(a) sustentam e seguem, e que é, no entender
destes, o(a) único(a) aceitável; conjunto das idéias básicas contidas num sistema filosófico, político,
econômico etc. ou das opiniões de um pensador, de um filósofo; conjunto de princípios adotados num
determinado ramo do conhecimento; teoria devidamente formulada que se fundamenta em fatos (ou pelo
menos não é por estes invalidada) e que tem o apoio ou a sanção de uma autoridade no assunto [...]; as
crenças e dogmas da fé católica; catecismo [...] (HOUAISS, 2002)
37
SISTEMA (lat. systéma,átis 'reunião, juntura, sistema', do gr. σύστηµα - sustéma,atos 'conjunto, multidão,
corpo de tropas, conjunto de doutrinas, sistema filosófico') Termo de uso desconhecido na filosofia clássica,
só passou a ser incorporado modernamente para designar uma totalidade dedutiva de discurso; ou qualquer
totalidade ou todo organizado (como sistema solar, sistema nervoso); também como qualquer teoria,
científica ou filosófica; conjunto de regras ou leis que fundamentam determinada ciência, fornecendo
explicação para uma grande quantidade de fatos; teoria [...] (HOUAISS, 2002)
38
PARADIGMA (gr. parádeigma,atos 'modelo, exemplo', do v. paradeíknumi 'pôr em relação, em paralelo,
mostrar', pelo b.-lat. paradígma,átis 'id.'; a acp. de ling.est é emprt. ao fr. paradigme 'id.') tem
etmologicamente o sentido de exemplo que serve como modelo; padrão; como conjunto de formas
vocabulares que servem de modelo para um sistema de flexão ou de derivação (p.ex.: na declinação, na
conjugação etc.); padrão. (HOUAISS, 2002) Em sentido ampliado, tem sido usado como conjunto de
conhecimentos coerentes, ou idéias fundamentais, possuídas e ou transmitidas, por uma escola ou sistema
filosófico ou científico.
39
ESCOLA - s.f. (do gr. skholê,ês 'descanso, repouso, lazer, tempo livre; estudo; ocupação de um homem com
ócio, livre do trabalho servil, que exerce profissão liberal, ou seja, ocupação voluntária de quem, por ser livre,
não é obrigado a; escola, lugar de estudo'; lat. schòla,ae 'lugar nos banhos onde cada um espera a sua vez;
ocupação literária, assunto, matéria; escola, colégio, aula; divertimento, recreio') atualmente é usado para
designar o estabelecimento público ou privado onde se ministra ensino coletivo; por extensão também
aplicado ao conjunto de professores, alunos e funcionários de uma escola; ao prédio em que a escola está
estabelecida. Também, por extensão, é usado para o sistema, doutrina ou tendência estilística ou de
pensamento de pessoa ou grupo de pessoas que se notabilizou em algum ramo do saber ou da arte; ao
conjunto de pessoas que segue um sistema de pensamento, uma doutrina, um princípio estético etc.; conjunto
de seguidores, imitadores ou apreciadores; termo também referido a determinado conjunto de princípios
seguido por artistas ; conjunto de conhecimentos; saber; aquilo que é adequado para transmitir conhecimento,
experiência, instrução; (HOUAISS, 2002)
94
sistematizadamente, apresentando peculiaridades em relação a uma determinada concepção
e diferenças significativas em relação às outras tendências da mesma.
No que diz respeito a essa classificação, considero pertinente e muito instigante
a análise feita por Antonio Joaquim Severino e que classificou e analisou a produção
filosófica brasileira, adotando o termo “tradição”, enquanto prefiro o uso de “concepção”.
40
MOVIMENTO (mover + -mento, prov. calcado no fr. mouvement 'id.'), etimologicamente ato ou efeito de
mover(-se), deslocamento, mudança de um corpo (ou parte de um corpo) de um lugar (ou posição) para outro.
Em sentido ampliado, usado para designar o conjunto de ações de um grupo de pessoas mobilizadas por um
mesmo fim; partido, agrupamento, organização que vise a mudanças políticas ou sociais; corrente do
pensamento que caracterize novidade ou evolução artística, histórica, filosófica, social etc. (HOUAISS, 2002)
95
96
41
ECLETISMO. Etimologicamente do grego eclektismós; incorporado ao frances como écletisme (CUNHA,
A.G. da, 1986, p. 283). 1 FIL diretriz teórica originada na Antigüidade grega, e retomada ocasionalmente na
história do pensamento, que se caracteriza pela justaposição de teses e argumentos oriundos de doutrinas
filosóficas diversas, formando uma visão de mundo pluralista e multifacetada; 2 por exensão qualquer teoria,
prática ou disposição de espírito que se caracteriza pela escolha do que parece melhor entre várias doutrinas,
métodos ou estilos; 3 ARQ tendência artística fundada na exploração e conciliação de estilos do passado,
usual especialmente a partir de meados do século XIX no Ocidente. (HOUAISS, 2002)
96
instituição universitária brasileira desde o final da década de 1960. É por isso que além de
caracterizar a produção científica a partir de suas concepções fundantes, ou de seus
paradigmas epistêmicos, também introduzi a diferenciação entre concepção e movimento.
Isso não significa que os movimentos não são importantes para alavancar, além dos
embates culturais e artísticos, o próprio fazer cientifico, inclusive do historiador.
Um exemplo talvez ajude a esclarecer essa distinção entre concepção e
movimento: certamente todos os historiadores concordam quanto à importância do
movimento de superação da história positivista, levado a cabo a partir do final da década de
1920 pela “Escola dos Annales”. O grupo dos Annales não se constitui como uma escola
que propugnava por um método ou uma teoria da história, mas como um movimento que
encorajava várias inovações no âmbito da História, mas que comportava várias matrizes
teórico-metodológicas em seu interior. Esse é o entendimento de Peter Burke, no Prefácio
de seu A Revolução Francesa da Historiografia: a Escola dos Annales (1929-1989).
Entende o autor que “’la nouvelle histoire’ ... é o produto de um pequeno grupo associado à
revista Annales, criada em 1929” (BURKE, 1991, p. 11). Apesar de conhecida como
Escola dos Annales, pois é “vista como um grupo monolítico, com uma prática histórica
uniforme, quantitativa no que concerne ao método, determinista em suas concepções,
hostil... à política e aos eventos” (Idem, ibidem), lembra Peter Burke que muitos de seus
próprios membros negavam a existência de uma “escola”, ressaltando as diferentes
contribuições individuais. Em lugar de escola, o autor sugere o conceito de movimento para
expressar a contribuição desse grupo de historiadores franceses: “Talvez seja preferível
falar num movimento dos Annales, não numa ‘escola’” (Idem, p. 12). Também é dessa
forma que tendo a caracterizar a chamada Nova História, como é conhecida a “Terceira
Geração” dos Annales quando, Braudel se aposentaria, em 1972, e Le Goff tornou-se o
Presidente da reorganizada École des Hautes Études em Sciences Sociales. Para Peter
Burke é difícil traçar um perfil dessa terceira geração, pois nele prevaleceu o policentrismo
e as fronteiras da história foram estendidas:
97
98
98
2. Concepções e Movimentos na Filosofia e na História42
Para aprofundar a discussão sobre as matrizes teórico-metodológicas da
filosofia e ciência contemporânea, nas disciplinas de pós-graduação tenho recorrido a três
autores e suas referências bibliográficas, com o objetivo de situar e clarear a discussão
sobre o assunto: Antonio Joaquim Severino, Adam Schaff e Ciro Flamarion Cardoso.
De modo geral, há entre esses autores um relativo consenso quanto as
principais e clássicas concepções que animam a prática filosófica e o fazer científico na
contemporaneidade, conforme expressou Antonio Joaquim Severino, em sua obra A
filosofia contemporânea no Brasil: conhecimento, política e educação. Aponta este autor
para quatro tradições: a metafísica (fortemente presente em sua tendência neotomista); a
positivista (com suas tendências: Cientificista; Neopositivista; Neoempirista;
Transpositivista); a hermenêutica (tendências: Fenomenologia; Culturalismo;
Existencialismo; Antipositivismo; Arqueogenealogia) e a dialética (em suas três
tendências: a dialética hegeliana, a dialética marxista; e a teoria crítica). Uma citação
sintética do autor é elucidativa quanto ao quadro das grandes tradições presentes na prática
filosófica brasileira, registrando as concepções e suas respectivas tendências:
42
Essa sistematização foi apresentada na mesa redonda “História e Historiografia da Educação no Brasil”,
realizada no dia 07 de julho de 2004, na IV Jornada do HISTEDBR, realizada entre os dias 5 a 07 de julho de
2004, na Universidade Estadual de Maringá (UEM) – em Maringá – PR, tendo como tema: “História e
Historiografia da Educação: Abordagens e Práticas Educativas”. Encontra-se: LOMBARDI, José Claudinei.
História e História da Educação: fundamentos teórico-metodológicos. In: SCHELBAUER, A.R. et. al..
Educação em debate: perspectives, abordagens e historiografia. Campinas, SP : Autores Associados, 2006, p.
73-97.
99
100
43
Os representantes mais significativos da renovação tomista no Brasil foram: Charles de Sentroul, Leonel
Franca, Roberto Sabóia de Medeiros, Antonio Alves de Siqueira, Aloísio Mosta de Carvalho, Maurílio
Penido, Antonio Castro Nery; mais recentemente, Alceu Amoroso Lima, Leonardo Van Acker, Alexandre
Correa, Geraldo Pinheiro Machado, Artur Versiani Velloso e Francisco Leme (Severino,1997, p. 39).
44
Com relação a inspiração neopositivista na filosofia brasileira, Severino identifica três vertentes: a primeira
é de caráter mais logicista, centrada nos fundamentos lógico-formais do conhecimento científico e
matemático, na qual sobressaem os nomes de Newton Carneiro Afonso da Costa, Ayda Ignez Arruda,
Lafayette de Moraes, Luis Carlos P. Dias Pereira, Luís Paulo de Alcântara, Elias Hunberto Alves, Jorge
Emmanuel Ferreira Barbosa, Walter Alexandre Carnielli, Ítala Loffredo D’Ottaviano, Renato Bussato Neto,
Helvécio Botelho Pereira, Maria Vilma Fernandes de Lucena, José Alexandre Guerzoni, Paulo Roberto
Margutti Pinto, Andréa M.A.C. Loparic.
A segunda vertente busca a construção de uma linguagem precisa e rigorosa do discurso, notadamente
científico, idenficada com a “filosofia analitica”, com destaque para Danilo Marcondes de Souza Filho,
Renato Machado, Vera Lucia Caldas Vidal, Balthasar Barbosa Filho, Marcos Barbosa de Oliveira, Eduardo
Oscar de Campos Chaves, Nelson Gonçalves Gomes, Paulo Farias e Arley Ramos Moreno.
A terceira vertente tem natureza mais epistemológica, com preocupação na especificidade do conhecimento
posto em prática pelas ciências, com destaque para Leônidas Hegenberg, Milton Vargas, Oswaldo Porchat,
Maurício Rocha e Silva, Rejane Carrion, Luiz Alberto Peluso, Michel Ghins e Zeliko Loparic. (Severino,
1997, p. 62-66).
100
análise da tendência transpositivista e de seus principais representantes45, com atenção ao
pensamento de Hilton Ferreira Japiassu.
Nos três capítulos seguintes analisa a tradição hermenêutica, com forte
valorização da subjetividade e do subjetivismo, com suas principais tendências: a
fenomenologia, o culturalismo, o existencialismo, o antipositivismo e a arqueogenealogia.
O capítulo quinto é centrado na fenomenologia inspirada em Husserl, Scheler e Merleau-
Ponty46, em Heidegger e na hermenêutica de Paul Ricoeur47, que teve uma ampla expressão
entre a intelectualidade brasileira, mas Severino optou por analisar Gerd Borheim como
represententante dessa perspectiva. O neo-humanismo é focado no sexto capítulo,
introduzido para explicar a importância de uma das tendências da tradição subjetivista e
que, em lugar de centrar-se sobre aspectos epistemológicos ou lógicos, debruçou-se
prioritariamente sobre problemas ético-antropológicos e que fundamentaram as reflexões
existencialistas e personalistas que colocaram primazia na existência do homem no
contexto da reflexão filosófica48, com destaque para Henrique Claudio de Lima Vaz, sobre
o qual recaiu o foco de análise de Severino. A fenomenologia é ainda a tradição que
animou a perspectiva culturalista49 que, tendo sua inspiração na filosofia transcendental
kantiana e na tradição idealista alemã, encontrou, ainda no século XIX, representante da
envergadura de Tobias Barreto e mais contemporaneamente em Miguel Reale que, para
Severino, foi seu representante mais significativo.
Os capítulos oitavo e nono são dedicados à dialética. Severino explicita
primeiramente a perspectiva marxista que se perfila na tradição inaugurada por Hegel e,
45
O transpositivismo tem presença na filosofia brasileira através de Constança Terezinha Marcondes César,
Marly Bulcão Lassance Brito, Carlos Alberto Gomes dos Santos e pelo Grupo de Ensino de Física da USP,
integrado por Luiz Carlos Menezes, João Zanetic, Demétrio Delizoicov, Marta Pernambuco, José André
Peres Angotti e Maria Cristina Dal Pian; também por Luiz Carlos Bombassaro (Severino, 1997, p. 85-87).
46
A fenomenologia inspirada em Husserl, Scheler e Merleau-Ponty teve grande importância na filosofia
brasileira, representada por Antonio Muniz de Rezende, Newton Aquiles Von Zuben, Creusa Capalho, Salma
Tannus Muchail, Telma Aparecida Donzelli, José Ozanan de Castro, Miguel Schaeffer, Maria Fernanda
Beirão Dichtchekenian. (Severino, 1997, p. 105-110).
47
A hermenêutica, notadamente a fundada em Ricoeuer, teve importância em nosso meio acadêmico também
pela expressão de Antonio Muniz de Rezende e de Augusto João Crema Novaski. (Severino, 1997, p. 110-
113).
48
O existencialismo e o personalismo tiveram grande influência nos meios filosóficos brasileiros, com
destaque para José Luiz de Souza Maranhão, Odone José Quadros, Irapuan Teixeira, Paulo Reglus Freire,
José Luiz Arcanjo, Baldoino Antônio Andreola, Aloísio Ruedell, Alino Lorenzon e o próprio Antonio
Joaquim Severino (Severino, 1997, p. 130-134)
49
O culturalismo influenciou os jusfilósofos, como Renato Cirtell Czerna, Luiz Luisi, Silveio Macedo, Djacir
Menezes, Paulo Mercadante, Evaristo de Moraes Filho, Antonio Machado Paupério, Nelson Nogueira
Saldanha, José Pedro Galvão de Souza, Ireineu Strenger, Lourival Villanova, Gláucio Veiga, Tércio Sampaio
101
102
depois da crítica profunda e radical, por Marx e Engels. Entre os construtores dessa
tradição situa, além de Marx, Engels e Lênin, uma ampla gama de autores que
conformaram tendências diversas nessa tradição – como Trotsky, Kautsky, Bernstein, Rosa
Luxemburgo, Mao Tse-Tung, Lukács, Adam Schaff, Doldmann, Althusser, Gramsci e
muitos outros. Referencia os intelectuais brasileiros que assumiram essa perspectiva50,
dedicando-se à análise de José Arthur Giannotti como principal expressão do marxismo no
Brasil. No capítulo nono trata da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, considerada como a
principal vertente da “dialética negativa” e da influência da reflexão frankfurtiana no
pensamento brasileiro. Enfatiza que não se trata de uma “escola” no sentido etimológico,
mas numa aproximação justificada por uma “perspectiva crítica de abordagem do projeto
filosófico da modernidade, com base na qual se propõem a pensar a contemporaneidade”
(Idem, p. 180). Severino entende que a teoria crítica foi apropriada em três grandes
orientações no pensamento filosófico brasileiro: primeiramente em sua versão
contracultural51, e que se constitui na apropriação da crítica dos movimentos de
contestação radical que floresceram na década de 1960 e 70, como os hippies, a
contracultura, o underground, os liberacionistas e as várias formas do misticismo; a
segunda é a centrada na temática da cultura e da dominação cultural52, tendo por
fundamento as análises de Adorno e Horkheimer sobre a indústria cultural; a terceira é a da
crítica à instrumentalidade da razão e que se dá com a apropriação da perspectiva
habermasiana e que no Brasil teve em Sérgio Paulo Rouanet seu principal representante,
sendo ele o focado na análise de Severino sobre a dialética negativa.
Ainda que tenha colocado a arqueogenealogia como tendência vinculada à
tradição hermenêutica, o décimo capítulo é dedicado à análise dessa nova orientação
filosófica que “não constitui uma forma monolítica de expressão filosófica” não
instaurando propriamente uma nova “escola”, não se atendo às fronteiras dos campos de
saber, se manifestando na obra de filósofos, psicólogos, psicanalistas, antropólogos,
Ferraz Júnior e Luís Washington Vita. O autor também perfila entre os culturalistas: Roque Spencer Maciel
de Barros, Antonio Luiz Machado Neto, Antonio Paim e Vamireh Chacon. (Severino, 1997, p. 148-149).
50
Apoiando-se em Chacon, Zilles e Antonio Paim, arrola Leônidas de Rezende (1899-1950), Hermes Lima
(1902-1978) e Castro Rabelo (1884-1970) na Faculdade Nacional de Direito; seguiram-se a estes, João Cruz
Costa (1904-1978) no Departamento de Filosofia da USP e Álvaro Vieira Pinto (1909-1987) na Universidade
do Brasil; são citados também os nomes de Caio da Silva Prado Junior, Leôncio Basbaum (1907-1969),
Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho e José Arthur Giannotti.
51
No Brasil o nome de Luis Carlos Marciel é citado como seu principal representante.
102
sociólogos, artistas e literatos (Idem, p. 196). Trata-se de uma reação à tradição da filosofia
moderna e que “considera exaurida a fecundidade do iluminismo”, com o sistema
naturalista do positivismo, o sistema idealista do hegelianismo e o historicista do marxismo
(Idem, p. 197). Trata-se de uma abordagem inspirada em Nietzsche e Freud e que tem sido
assumida, contemporaneamente, pelos mais diferentes pensadores, como Michel Foucault,
Lacan, Gilles Deleuze, Felix Guattari, Michel Maffesoli, Jean Baudrillard, Cornelius
Castoriadis, Maurice Godelier, Roland Barthes e muitos outros (Idem, pp. 199-203). Essa
tendência, foi crescendo no filosofar brasileiro a partir de 1986 pelos cursos livres de
filosofia do Núcleo de Estudos e Pesquisas da FUNARTE, estimuladores de uma filosofia
“de um ponto de vista novo” (Idem, 203). Severino trata de algumas das vertentes da
arqueogenealogia: como a que toma o sujeito desejante e a contribuição da psicanálise53, a
que entende a filosofia como pensar literário54, a que trata a filosofia como uma
antropologia do singular e a que assume a hermenêutica fenomenológica como um
instrumento significativo para a crítica e a revisão do iluminismo racionalista55. Para o
autor, o precursor e seu principal representante no Brasil foi Rubem Alves, objeto
particular de análise de Severino.
A análise de Severino sobre a filosofia no Brasil expressa o momento em que
foi produzida e, se fosse hoje realizada, certamente, trataria do amplo leque que abrange da
arqueogenealogia à pós-modernidade e suas principais expressões nos vários campos
intelectuais. Mas esse um assunto sobre o qual já nos estendemos suficientemente.
52
Essa abordagem fez escola no Brasil na década de 1970, animando cursos e disciplinas nos mais diferentes
campos do saber. São citados os nomes de Vamireh Chacon, Flávio Kothe, Luis Costa Lima, Otto Maria
Carpeaux, Carlos Nelson Coutinho, Gabriel Cohn, Renato Ortiz e Olaria Matos.
53
É referenciado o nome do filósofo e psicanalista Renato Mezan como representante dessa apordagem
tomada principalmente a partir da contribuição freudiana; em outra senda encontra-se Suely Rolnik que se
apóia em Félix Guattari e Gilles Deleuze.
54
Essa vertende encontra em Renato Janine Ribeiro sua expressão que busca re-unir a filoosofia à literatura,
buscando retomar e estudar a filosofia moralista com um olhar cético e crítico.
55
Para Severino os principais representante dessa vertente no Brasil são Marilena de Souza Chauí, Salma
Tannus Muchail e Rubem Alves.
103
104
104
conhece e que o objeto existe fora e independentemente do sujeito (Idem, p. 76); e que,
entretanto, é no sujeito que reside “o termo principal da relação cognitiva (Idem, p. 75-76).
Tomando Marx, nas Teses sobre Feuerbach, assume a “teoria do reflexo” ativista (ou
modelo objetivo-ativista), assim exposto:
105
106
106
Pressupõe em primeiro lugar que nenhuma interdependência existe entre
o sujeito que conhece (o historiador) e o objeto do conhecimento - a história como
res gestae.[...]
Pressupõe-se em seguida uma relação cognitiva conforme modelo
mecanicista, quer dizer que se aceita a interpretação passiva, contemplativa, da
teoria do reflexo.
Pressupõe-se enfim que o historiador, na qualidade de sujeito que
conhece, é capaz de imparcialidade não só no sentido corrente, quer dizer capaz de
superar diversas emoções, fobias ou predileções quando tem de apresentar
acontecimentos históricos, mas também de ultrapassar e rejeitar todo o
condicionamento social da sua percepção destes acontecimentos. (Idem, p. 102).
Era uma época marcada pela rebelião contra a filosofia especulativa e que tinha
como palavra-de-ordem a construção de um conhecimento positivo. Em relação à
historiografia especulativa, o positivismo representava um “progresso científico notável”,
levando a uma revolução científica nesse campo da ciência quanto às suas técnicas de
investigação, de coleta das fontes e de sua utilização (Idem, p. 103).
Apesar do positivismo constituir-se em concepção dominante ao longo dos
Séculos XIX e XIX, a crítica ao positivismo emergiu com grande contundência,
evidenciando que, contrariamente a uma história escrita sem parcialidade ou paixão, era
uma historiografia com evidente comprometimento social e político (Idem, ibidem). A
“rebelião antipositivista” foi contundente na crítica a todos os seus princípios
fundamentais, estabelecendo as bases para suas contraposições:
Adam Schaff tece algumas observações sobre Hegel, que era um idealista
absoluto, colocando-o como precursor das críticas à visão positivista e enunciando a
hipótese da possibilidade de influência de Hegel no pensamento de Benedetto Croce. Mas
é sobre o presentismo croceano que Schaff analisa essa outra concepção de história
contraposta à positivista. De acordo com o autor de História e Verdade, o pai do
presentismo, Benedetto Croce, concebe o mundo por um espiritualismo radical, pela negação do
materialismo; em sua filosofia a esfera espiritual engloba não apenas as atividades teóricas, mas
107
108
As compilações dos fatos são apenas crônicas, notas, memórias ou anais, e não
obras históricas; mesmo se os fatos foram submetidos à crítica, as fontes de todos
os dados mencionados e os testemunhos seriamente verificados, quaisquer que
sejam os esforços utilizados, é impossível ultrapassar o caráter exterior da fonte ou
do testemunho que ficarão sempre nos “diz-se” ou “escreve-se”, e nunca poderão
se tornar a nossa verdade. A história, pelo contrário, exige de nós uma verdade
extraída do mais interior da nossa experiência. (B. Croce. Die Geschichte als
Gedanke und als Tat. Apud: SCHAFF, 1986, p. 111).
108
conseqüências muito graves, conforme Schaff, não se podendo sequer falar de história,
porque o que existe é uma multiplicidade de histórias: “não só cada época possui a sua
imagem particular da história, como cada nação, cada classe social, mas também,
praticamente, cada historiador e mesmo cada indivíduo pensante” (Idem, p. 113). Com tal
fundamento há apenas um único critério de verdade: o indivíduo é "medida de todas as
coisas" (Idem, p. 114).
Feita essa caracterização do presentismo, Adam Schaff ampliou sua análise para
outros autores que guardam proximidade com essa concepção. Tratou primeiramente de R. G.
Collingwood, um Filósofo idealista que contribuiu para popularizar a obra de Croce, assumindo
a máxima de que “toda a história é história do pensamento” (Idem, p. 115). Para
Collingwood a reconstituição histórica do passado, é feita pelo historiador no contexto do seu
próprio saber, de modo que as atividades que estuda constituem para ele “uma experiência que
lhe é preciso reviver no seu espírito” (Idem, ibidem). Tratam-se, pois, de experiências objetivas,
mas somente na medida em que igualmente subjetivas como atividades pessoais do historiador.
Não importa a veracidade dos acontecimentos, pois a imagem histórica é o produto da imaginação
do historiador; por isso, “a obra do historiador difere da obra do romancista apenas na medida em
que a imagem criada pelo historiador é considerada como verdadeira” (Idem, p.115).
Para Schaff o presentismo continua tendo grande audiência na historiografia, em
particular na americana, onde conta com simpatizantes e adversários ferrenhos. Schaff
brevemente referencia vários autores, tomando por base Chester McArthur Destler, para quem a
principal referência do presentismo nos Estados Unidos foi John Dewey, traçando um
incontestável parentesco entre o presentismo de Croce e o pragmatismo deste. Dewey é
caracterizado como um liberal idealista, com clara posição de um presentismo subjetivista e
relativista (Idem, p. 120). Outro autor referenciado é Charles Beard, conhecido estudioso da
constituição americana e um dos principais animadores da “revolta antipositivista”. Trata em
seguida brevemente de J. H. Randall Jr, um especialista em metodologia da história, depois Carl
Becker e, ainda, Conyers Read.
Com relação a Charles Beard, este associava o relativismo a uma interpretação
econômica da história, atacava a tese de Ranke negando o caráter científico da história e
procurando alvejar o adversário no seu ponto mais sensível: o seu mito de
“imparcialidade”. Beard afirma que Ranke preconizava o ideal de uma ciência da história
“objetiva”, “positiva”, “imparcial” fundamentada apenas no estudo dos documentos, mas
que na realidade professava um singular panteísmo, concebendo a história como a
“revelação de Deus”. A partir desta crítica à historiografia positivista, este autor construiu
109
110
sua própria concepção da ciência da história, na qual distingue a história como “realidade
passada” e a história considerada como “o pensamento contemporâneo sobre o passado”.
Segundo este historiador, se a história é a percepção do passado feita pelo pensamento,
esta é sempre o produto de uma seleção: os fatos são escolhidos e reunidos pelo
historiador “de acordo com a sua maneira de pensar”. Apesar dessa posição, ele acaba
considerando a história é um ato de fé, logo uma criação subjetiva do historiador. (Idem,
p. 120-124).
Adam Schaff refere-se ainda a Carl Becker, outro fervoroso partidário da
“revolta positivista”, identificando a história com o pensamento sobre a história, e com a
ciência da história. Segundo Schaff, Becker é o autor da fórmula ao mesmo tempo mais
drástica e mais metaforizada do presentismo, sendo a qual a história “... é de preferência
uma criação da imaginação, uma propriedade privada que cada um de nós molda em
função da sua experiência pessoal, adapta às suas necessidades práticas ou afetivas e
ornamenta conforme o seu gosto estético” (Idem, p. 125). Também trata de Conyers Read
que coloca os historiadores diante da sua responsabilidade social e recomenda-lhes uma
atitude ativa na obra de “educação para a democracia”, tratada pelo autor a partir de
posições relativistas e presentistas.
Schaff traça uma crítica figadal a ambas as perspectivas históricas,
particularmente ao presentismo, rejeitando os seus fundamentos filosóficos. A primeira
crítica recai sobre o idealismo do presentismo, que é uma doutrina subjetivista. Para
Schaff é preciso distinguir a história objetiva (a história res gestae) a descrição desse
processo ou a historiografia (história rerum gestarum), admitindo duas ordens diferentes
de coisas: a realidade que existe objetivamente e o pensamento (do sujeito) sobre essa
realidade. Vale a pena a citação:
110
ambas fulminadas nos danificados caminhos do subjetivismo. Trata-se de um ponto de
vista que resulta na condenação da ciência, ao menos da ciência considerada como um
conhecimento objetivo, ainda que parcial, incompleto, imperfeito, etc. (Idem, p. 133-135).
A caracterização de Schaff do marxismo é longa e ocupa uma posição central
nessa obra do autor. Impossível nos limites do presente trabalho resumir a argumentação
de Schaff, só gostaria de registrar que para ele, o marxismo toma o conhecimento como
um processo infinito, não só porque o objeto que o conhecimento reflete é uma seqüência
infinita de transformações, mas também porque o objeto do conhecimento é infinito em
suas interações e correlações. Como o marxismo rejeita, de uma só vez, as premissas tanto
do positivismo como do presentismo, para Schaff o fundamental “não é medir a distância
que o separa desta ou daquela escola”, pois “ambas lhe são igualmente estranhas” (Idem,
p. 136). Para tratar do marxismo, Schaff adentra na problemática do caráter de classe do
conhecimento científico (Idem, p. 141) e que as perspectivas relativistas e céticas (isto é, o
presentismo) reduziu ao pressuposto de que a história sempre é escrita em função de um
presente qualquer; pressupondo, portanto, que os interesses e as necessidades sociais
condicionam a abordagem do passado, a seleção dos fatos e a “imagem” que se constrói
sobre esse passado (Idem, p. 141). Adentrando numa longa incursão sobre Karl Mannheim
e sua escola, com a sociologia do conhecimento, Schaff envereda para uma discussão que,
in fine, vincula a abordagem da sociologia do conhecimento ao relativismo. Busca,
entretanto, salvar a teorização mannheimiana, que originalmente se vincula ao marxismo,
notadamente a análise da produção científica a partir da categoria ideologia. Para Schaff a
sociologia do conhecimento fez uma síntese de duas teorias do materialismo histórico: a
teoria da base e da superestrutura e a teoria da ideologia (Idem, p. 166). Essa síntese,
porém, se apropriou fazendo uma interpretação que mantém semelhanças e diferenças das
teorias em relação à sua fonte original (Marx e Engels).
Para Schaff as teses fundamentais do materialismo histórico foram expostas
por Marx e Engels em uma série de escritos, do início da obra conjunta aos de caráter mais
teórico. O ponto de partida da concepção encontra-se em A Ideologia Alemã, na
pressuposição de que não é a consciência que determina a existência social, mas que, ao
contrário, é a existência social que determinada a consciência. Assinala Schaff que a
relação entre a consciência e a existência social não é de modo algum uma relação
unilateral de causa e efeito, como bem esclareceu Engels: a existência social é a base
sobre a qual, enquanto determinação em última instância, se eleva uma superestrutura –
111
112
112
evolução. No domínio do acontecimento dos fenômenos sociais, o historicismo de
Marx foi o equivalente da teoria de Darwin... (Idem, p. 191)
113
114
próprio processo histórico (a história res gestae), então está permanentemente sujeita a
constantes reinterpretações. Disso resulta que a história é ela própria um processo e não
uma imagem definitiva, acabada, absoluta. Sendo a história parcial, isso não significa que
ela não seja verdadeira e muito menos que haja objetividade da verdade histórica. (Idem, p.
277).
As análises de Schaff culminam com seu entendimento quanto a objetividade
da verdade histórica:
114
Para delinear o positivismo, Cardoso (1986, pp. 30-33) toma por base a
elaboração de Auguste Comte. Para o autor, o positivismo repousa sobre três "leis": 1) a lei
dos três estados (teológico, metafísico e positivo); 2) a lei da subordinação da imaginação à
observação; 3) a lei enciclopédica (ou de classificação das ciências). Sobre a segunda
dessas leis, observa que para positivismo “quaisquer proposição que não possa ser reduzida
à simples enunciação de um fato particular ou geral carece de sentido real e inteligível”.
Neste aspecto, segundo ele é importante que, para Comte, o "fato" não pode ser conhecido
em sua “essência”, mas somente no nível fenomênico. Assim considerava como atividades
das ciências: 1) o estabelecimento dos fatos; 2) sua explicação mediante leis (no sentido de
"relações constantes de sucessão e similitude existentes entre os fenômenos observados").
À pergunta sobre quais as conseqüências destas teses ou "leis" do positivismo
para a História, Cardoso responde que, em primeiro lugar, está a afirmação dos fatos - seu
estabelecimento através da crítica erudita das fontes - como tarefa primordial. Por outro
lado, um certo pessimismo quanto à possibilidade de explicar tais fatos através de leis. Na
lista de ciências de Comte não figura a História; os fatos históricos, a cuja coleta se dedica
o historiador, eram vistos como a matéria-prima da Sociologia, esta sim capaz de descobrir
nexos entre os fatos sociais. Como os fatos históricos eram considerados como fatos
únicos, passados e irrepetíveis, não poderia, por definição, haver lei do que é único e
irrepetível.
É verdade, porém, que muitos historiadores positivistas, ao contrário de Comte,
viam os fatos históricos como algo que tinha existência real, ontológica, externa ao
observador, e não a partir de uma concepção estritamente fenomênica ou empirista (no
sentido de Hume). Também é certo que vários deles se preocupavam com a problemática
da causalidade, em geral ligando "causas" e "conseqüências" ao fio de uma ordem
cronológica linear, à qual se atribui per se peso causal (ou seja, o que vem antes causa o
que vem depois: post hoc, ergo propter hoc). Apesar dessas interpretações diferenciadas
quanto à cientificidade da história, os historiadores positivistas (pós-Comte) consideravam
a História como ciência.
O historicismo é o segundo paradigma tratado por Cardoso (1986, p. 33) que o
caracteriza como uma corrente filosófica neo-kantiana e que professa a respeito da
cientificidade da história um pessimismo radical. Baden e outros “historicistas” (como os
"idealistas alemães": Windelband, Rickert, Dilthey) colocaram uma oposição irredutível
entre "ciências da natureza" (nomotéticas) e "ciências culturais" ou "do espírito"
115
116
116
historizante" ou "episódica", voltando-se à defesa de uma síntese histórica efetivamente
global.
Para Cardoso, o século XX teve duas escolas que tiveram importante papel na
construção da história como ciência: o marxismo e a Escola dos Annales. A concepção
marxista aparece como o terceiro paradigma abordado pelo autor (CARDOSO, 1986, pp.
34-37) e que possui alguns princípios que diferenciam esta concepção das outras duas:
56
No Brasil esse manual foi publicado meio século depois: Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos.
Introdução aos Estudos Históricos, trad. de L. de Almeida Morais, São Paulo, Editora Renascença, 1946
117
118
118
Cardoso destaca vários pontos comuns entre a concepção marxista e a do grupo
dos Annales. Também aponta as profundas diferenças entre elas, notadamente a ausência
nos historiadores dos Annales, de uma teoria da transformação social e da luta de classes
como o motor dessas transformações. Ciro Flamarion Cardoso conclui essa incursão sobre
as principais correntes da História, reafirmando “a força mais poderosa que age no sentido
de fazer da História uma ciência” (Idem, p. 39).
Metafísica Neotomista
Positivista Cientificista Modelo Positivismo Positivismo
Neopositivista mecanicista da
Neoempirista teoria do reflexo
Transpositivista
Hermenêutica Fenomenologia Modelo Presentismo Historicismo
Culturalismo idealista e
Existencialismo ativista
Antipositivismo
119
120
Arqueogenealogia
Dialética Hegeliana Modelo Marxismo Marxismo
Marxista objetivo ativista
Teoria Crítica
Escola dos Annales
Esse quadro permite uma visualização e síntese das concepções com base nas
coincidências apontadas, colocando como problema a ser (futuramente) investigado a
incidência – ou não – de aportes metafísicos no âmbito da historiografia educacional
brasileira; também merece ser colocado como problema de investigação as elaborações
“dialéticas” e que podem ser diversas em conformidade com a perspectiva adotada, como a
dialética hegeliana e sua perspectiva idealista, a dialética marxista e suas abordagens
materialistas; ademais há indicativas de que são várias as abordagens teóricas marxistas
presentes na produção científica brasileira. Penso que, além dessas concepções (ou
tradições) enquanto tais, também foram (e são) produzidas, metodológica e teoricamente,
vários ecletismos que, a rigor, são fusões ou articulações as mais diversas entre concepções
e autores diferenciados.
Mas então toda a produção científica no âmbito da história ou se encaixam nas
matrizes clássicas ou se constituem ecletismos? Isso é correto apenas parcialmente. É por
isso que além de caracterizar a produção científica a partir de suas concepções fundantes,
ou de seus paradigmas epistêmicos, também introduzi a diferenciação entre concepção e
movimento. Isso não significa que os movimentos não são importantes para alavancar, além
dos embates culturais e artísticos, o próprio fazer cientifico, inclusive do historiador.
Para me aprofundar mais sobre o assunto, tenho buscado desvelar os princípios
e os pressupostos que norteiam as concepções e os movimentos pelos quais concebemos o
mundo existente, o conhecimento construído sobre ele e a ação que exercemos no e sobre o
mundo e no e com os outros homens. Nessa direção, tenho enveredado meus estudos para a
discussão filosófica classicamente denominada de ontológica, gnosiológica e axiológica,
como já apontei.
120
3. Problema fundamental da filosofia e o problema do
conhecimento
Como considero a discussão sobre as concepções teórico-metodológicas de
grande atualidade, penso que devemos adotar alguns procedimentos que possibilitem uma
análise mais profunda dos princípios que norteiam o fazer filosófico e científico. O ponto
de partida dessa análise é como um “desmonte” desses fundamentos mesmos, e para esse
desmontar, tenho didaticamente usado a imagem da “desmontagem de uma máquina
complexa” com uso de ferramentas adequadas, ou mais simplesmente o uso da “cunha”,
como no desdobramento da madeira. Expresso, com isso, a necessidade de uso de algumas
“ferramentas” metodológicas que possibilitem esmiuçar os princípios (ou pressuposições)
fundamentais das concepções teórico-metodológicas (campo hoje mais conhecido como
epistemologia e as diferentes concepções de “paradigmas epistemológicos”). Essas
“ferramentas” tornam possível o entendimento dos princípios dessas concepções e que,
para serem analisados, devem sofrer um "desmonte" histórico que, seguindo as
transformações dos modos de produção, leve ao entendimento do processo histórico de
transformação do conhecimento. Por outro lado, entretanto, as concepções teórico-
metodológicas precisam sofrer um desmonte interno, a partir de seus próprios
fundamentos, a partir de seus pressupostos mais básicos e elementares. Para tanto, é
imprescindível iniciar a exposição situando desde onde estou falando.
Mesmo que no presente trabalho não haja a possibilidade de uma análise
acurada das principais concepções no âmbito da Filosofia e da História exercitada no Brasil
(principalmente na educação), bem como de seus principais autores, essa sistematização
constitui uma ferramenta importante para um mais profundo entendimento da concepção
materialista dialética da história, notadamente colocando em relevo os principais embates
e as principais diferenças do marxismo em seu cotejamento com outras concepções.
No meu entendimento, as principais questões teórico-metodológicas da
História, repetidas por praticamente (quase) todos os autores que se dedicam a debater
sobre os métodos e/ou teorias da Filosofia, da Ciência e, particularmente, da História,
levam para o campo da Filosofia. Quanto mais a incerteza, a dúvida e a apologia do
particular e da irracionalidade insistem em tornar supérflua toda produção acadêmica, mais
as ferramentas reflexivas e questionadoras da Filosofia renascem e ganham atualidade.
Com a Filosofia ainda se mantém a possibilidade de um mais profundo entendimento dos
121
122
fundamentos sobre os quais toda e qualquer concepção está alicerçada, quer os autores
explicitem ou não esses aspectos.
Assim procedendo, busco escapar das análises endógenas (e endogênicas)
produzidas por cada campo particular de conhecimento, como a historiografia, a sociologia
do conhecimento, e especializações similares em praticamente todas as disciplinas. Como
não se trata de aquilatar a produção sobre temas determinados, nem a revisão da produção
num campo investigativo específico, fazendo o que comumente se designa por “estado da
arte”, é central recolocar algumas questões quanto a concepção de mundo, de homem, de
sociedade que está a embasar o entendimento dos autores, questionando o próprio processo
de produção do conhecimento e os resultados obtidos. Mas por que questionar as análises
da produção no próprio campo de saber no qual se está inserido? Isso se deve
principalmente a dois motivos:
b) por questões sociais ou que dizem respeito à comunidade científica e que, como
já expressei anteriormente, dizem respeito à dimensão social e política que
também cientistas e pesquisadores vivenciam. Para além das questões mais
propriamente científicas, nas quais se colocam inclusive as disputas extra e inter
pares em torno de direitos pelas descobertas, autorias, procedimentos e
instrumentais científicos, também os pesquisadores partilham as disputas de sua
sociedade e do seu tempo, trazendo para o interior da “comunidade científica” a
disputa política e a luta por hegemonia. Em outras palavras, a comunidade
cientifica é também uma comunidade social, nela se conformando ações de
defesa corporativa de interesses e embates e disputas econômicas, sociais e
políticas.
122
complementação da ciência, ou uma meta-compreensão acima de tudo e de todos, como se
fosse o coroamento e síntese de todos os conhecimentos. A oposição ou
complementaridade entre Filosofia e Ciência foram temas datados da história da Filosofia
e da Ciência e só fazem sentido no movimento histórico em que as ciências foram se
constituindo como campos autônomos, buscando demarcar limites e diferenças quanto aos
objetos, quanto aos métodos investigativos, quanto aos procedimentos de construção dos
resultados da pesquisa.
A Filosofia não é, nem pode ser, nem complementar, nem oposta à ciência. Isso
por um motivo simples: a Filosofia é simplesmente Ciência, é episteme, recuperando a
própria etimologia do termo, em seu sentido grego (ἐπιστήµη [episteme], ciência,
conhecimento). Tomando conhecimento como o processo e o resultado da ação pela qual o
homem, social e individualmente, apreende o mundo que o rodeia, as relações que
estabelece e, enfim, sobre si mesmos, enquanto homem, não há fronteiras demarcadas que
separam o conhecimento de um tipo ou de outro, sobre uma coisa ou sobre outra.
Conhecimento é essencialmente de uma só natureza e, por isso mesmo, possui o mesmo
caráter, quer tomado como senso comum, ou como senso filosófico, quer como simples
observação ou como complexa sistematização. “Não há nenhuma fronteira marcada, ou
possível de marcar, nessa complexidade... pois o conhecimento científico de hoje será o
vulgar de amanhã” (PRADO JR, 1984, p. 14). É certamente válido e importante como
recurso didático diferenciar os vários níveis de conhecimento ou suas várias naturezas, uma
discussão que Gramsci (1981), desde o marxismo, sistematizou a partir da afirmação que:
123
124
[...] é preferível "pensar" sem disto ter consciência crítica, de uma maneira
desagregada e ocasional, isto é, "participar" de uma concepção do mundo
"imposta" mecanicamente pelo ambiente exterior [...] ou é preferível
elaborar a própria concepção do mundo de uma maneira consciente e
crítica e, portanto, em ligação com este trabalho do próprio cérebro,
escolher a própria esfera de atividade, participar ativamente na produção
da história do mundo, ser o guia de si mesmo e não mais aceitar do
exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade?"
(Gramsci, 1981, pp. 11-12)
57
Neste caso, particularmente, é importante o legado que recebemos de Dermeval Saviani que fez esse
exercício fenomenal em seu Educação: do senso comum à consciência filosófica (SAVIANI, 1980).
124
diferenciação é afirmativa do caráter e da natureza indiferenciada das coisas no âmbito do
conhecimento.
Essa é a dimensão do conhecimento como objeto de conhecimento e que,
apesar das muitas confusões criadas no percurso histórico-filosófico do próprio
conhecimento, gostaria de recolocar, enquanto problema fundamental da Filosofia, para
aprofundar a discussão em curso. É nessa dimensão que estou assim (re)afirmando o
entendimento do conhecimento como uma busca por apreender a totalidade das relações -
do universo, das coisas, dos homens, e das relações entre elas -, sendo que a totalidade de
conhecimento, entendida como uma construção histórica e, por isso mesmo, limitada,
incompleta, parcial. A isso se deu o nome de Filosofia, da antiguidade clássica à
modernidade e, a partir daí foi denominado de Ciência. Comte denominou de Ciência
positiva, usando de nominação então usual, e Marx, opondo-se à fragmentação do
conhecimento, ao idealismo e ao materialismo fenomênico, apontou na direção da
construção de uma única Ciência, uma Ciência da totalidade que deveria apreender as
relações naturais e sociais.
Para o homem, os questionamentos sobre o mundo existente correspondiam a
uma necessidade prática; dessa exigência societária, acompanhando a transformação da
própria sociedade humana, e sua conformação de classes sociais antagônicas, separando o
fazer do saber, o conhecimento passou a tomar por referência a própria necessidade de
conhecer as coisas do mundo e de suas relações. Penso que foi isso o que ocorreu
historicamente: a partir de certo ponto de desenvolvimento histórico, o conhecimento do
próprio conhecimento passou a fazer parte das indagações do homem. Em outras palavras,
ao se questionar sobre as coisas particulares ou universais, sobre a origem e destino do
mundo e das coisas nele existentes, o homem estava questionando seu conhecimento sobre
essas coisas e relações. Como se sabe, isso se deu na antiga Grécia, no final do século VII e
início do século VI a.C..
Diferentemente de uma História da Filosofia e que organiza a transformação do
pensamento numa cronologia, de certa forma tomando esse pensamento de modo
autonomizado das condições em que foi produzido, busco um entendimento
contextualizado da transformação da Filosofia. Parto do pressuposto que as idéias dos
homens correspondem ao modo como os homens produzem a sua existência, perspectiva
que é central e norteadora da perspectiva marxiana que estou defendendo. Na bibliografia
disponível, acho didaticamente bem equacionada a coletânea Para compreender a ciência:
125
126
uma perspectiva histórica, de Maria Amália ANDERY e outros, na qual fica evidenciado
que a transformação do método cientifica foi se produzindo como parte integrante e
articulada das transformações dos modos de produção (ANDERY, 1999).
Já nos primórdios do pensamento filosófico, os pensadores se colocavam
questões sobre as ocorrências do Universo e do Homem, conforme se pode verificar pelos
fragmentos dos pensadores chamados “pré-socráticos” (Os Pré-Socráticos, 1978),
preocupados, quase exclusivamente, com os problemas cosmológicos, buscando o
princípio (arché) de todas as coisas.
O mito e a religião davam explicações para todas as coisas, mas essas
explicações já não satisfaziam os que se indagavam sobre a origem de tudo o que existe, as
causas das transformações, da permanência, do desaparecimento e do ressurgimento dos
seres. Enquanto o mito narrava a origem de tudo como uma decorrência de forças divinas e
sobrenaturais, se prendendo a um tempo imemorial e fabuloso, os filósofos buscavam
explicar como e por que as coisas são como e o que são (Chauí, 1997, p. 31). As perguntas
que se colocavam os primeiros filósofos cobriam um vasto arco de dimensões do existir de
todas as coisas e das relações dos homens com elas58. Entender o mundo exterior nos
elementos que o constituem, em sua origem e em suas contínuas transformações, foram os
desafios colocados pelos vários pensadores e suas várias escolas. Por isso ficaram
conhecidos como filósofos da natureza (physis, entendida como realidade primeira,
originária e fundamental, em oposição ao que é secundário, derivado e transitório); tinham
por preocupação o problema cosmológico (ou cosmo-ontológico), e buscavam o princípio
(a arché) de todas as coisas (SPINELLI, 2006). Praticamente os questionamentos feitos
58
A diferenciação entre mito e filosofia feita por Chauí, reportando-se aos primeiros tempos da elaboração do
pensamento grego, é didaticamente muito interessante e, por isso, segue abaixo citada:
“Quais são as diferenças entre Filosofia e mito? Podemos apontar três como as mais importantes:
1. O mito pretendia narrar como as coisas eram ou tinham sido no passado imemorial, longínquo e fabuloso...
A Filosofia, ao contrário, se preocupa em explicar como e por que, no passado, no presente e no futuro (isto
é, na totalidade do tempo), as coisas são como são;
2. O mito narrava a origem através de genealogias e rivalidades ou alianças entre forças divinas sobrenaturais
e personalizadas, enquanto a Filosofia, ao contrário, explica a produção natural das coisas por elementos e
causas naturais e impessoais.
O mito falava em Urano, Ponto e Gaia; a Filosofia fala em céu, mar e terra. O mito narra a origem dos seres
celestes (os astros), terrestres (plantas, animais, homens) e marinhos pelos casamentos de Gaia com Urano e
Ponto. A Filosofia explica o surgimento desses seres por composição, combinação e separação dos quatro
elementos - úmido, seco, quente e frio, ou água, terra, fogo e ar.
3. O mito não se importava com contradições, com o fabuloso e o incompreensível... A Filosofia, ao
contrário, não admite contradições, fabulação e coisas incompreensíveis, mas exige que a explicação seja
coerente, lógica e racional; além disso, a autoridade da explicação não vem da pessoa do filósofo, mas da
razão, que é a mesma em todos os seres humanos.” (Chauí, 1997, p. 31)
126
pelos primeiros filósofos são os mesmos que ainda nos desafiam (sendo muito interessante
a atualização dessas questões para uma linguagem mais coloquial dos dias atuais, como o
exercício feito por Marilena Chaui, em seu Convite à Filosofia, deixando mais explícito ao
leitor o complexo arco de problemas que desafiavam os primeiros filósofos, e que ainda
nos desafiam59.
Não buscavam as coisas em si mesmas, pois o que estava em questão era o
conhecimento humano das formas e ocorrências do Cosmos, da qual foi surgindo a
problemática fundamental da filosofia que, gradativamente, foi se deslocando das coisas
para o ser das coisas, colocando-se relevo no conhecimento que, gradativamente, foi se
configurando um campo no qual se coloca em questão o próprio conhecimento do
conhecimento (PRADO JR, 1984, p. 19). A releitura filosófica desse primeiro movimento
sistemático - de busca do conhecimento do conhecimento - enfatizou que se tratava de uma
elaboração cosmológica, da qual resultava a separação entre a realidade física e a
possibilidade de conhecê-la, problemática que foi sendo transformada numa crescente
polarização entre ser e pensamento, tomados como categorias filosóficas diferenciadas e
que expressavam diferentes dimensões de todas as coisas.
Com o desenvolvimento da produção apoiada no braço escravo, do comércio,
do artesanato, das cidades (polis) e da ação militar organizada, Atenas se transformou em
59
Apesar de longa, a citação é esclarecedora:
“Por que os seres nascem e morrem? Por que os semelhantes dão origem aos semelhantes, de uma árvore
nasce outra árvore, de um cão nasce outro cão, de uma mulher nasce uma criança? Por que os diferentes
também parecem fazer surgir os diferentes: o dia parece fazer nascer a noite, o inverno parece fazer surgir a
primavera, um objeto escuro clareia com o passar do tempo, um objeto claro escurece com o passar do
tempo?
Por que tudo muda? A criança se torna adulta, amadurece, envelhece e desaparece. A paisagem, cheia de
flores na primavera, vai perdendo o verde e as cores no outono, até ressecar-se e retorcer-se no inverno. Por
que um dia luminoso e ensolarado, de céu azul e brisa suave, repentinamente, se torna sombrio, coberto de
nuvens, varrido por ventos furiosos, tomado pela tempestade, pelos raios e trovões?
Por que a doença invade os corpos, rouba-lhes a cor, a força? Por que o alimento que antes me agradava,
agora, que estou doente, me causa repugnância? Por que o som da música que antes me embalava, agora, que
estou doente, parece um ruído insuportável?
Por que o que parecia uno se multiplica em tantos outros? De uma só árvore, quantas flores e quantos frutos
nascem! De uma só gata, quantos gatinhos nascem!
Por que as coisas se tornam opostas ao que eram? A água do copo, tão transparente e de boa temperatura,
torna-se uma barra dura e gelada, deixa de ser líquida e transparente para tornar-se sólida e acinzentada. O
dia, que começa frio e gelado, pouco a pouco, se torna quente e cheio de calor.
Por que nada permanece idêntico a si mesmo? De onde vêm os seres? Para onde vão, quando desaparecem?
Por que se transformam? Por que se diferenciam uns dos outros? Mas também, por que tudo parece repetir-
se? Depois do dia, a noite; depois da noite, o dia. Depois do inverno, a primavera, depois da primavera, o
verão, depois deste, o outono e depois deste, novamente o inverno. De dia, o sol; à noite, a lua e as estrelas.
Na primavera, o mar é tranqüilo e propício à navegação; no inverno, tempestuoso e inimigo dos homens. O
calor leva as águas para o céu e as traz de volta pelas chuvas. Ninguém nasce adulto ou velho, mas sempre
criança, que se torna adulto e velho. (Chauí, 1997, p. 25)
127
128
centro da vida social, política e cultural da antiga Grécia, vivendo um período de grande
importância para o futuro da Filosofia. Até então vivia-se um período em que dominavam
grandes famílias aristocráticas. O poder decorria da propriedade das terras e era exercido
pela força das armas. A divisão de classes gerava a necessidade da criação de uma
educação diferenciada, própria para a aristocracia, e que se diferenciava da socialização dos
saberes, normas, padrões e valores característicos de cada polis. Baseando-se nos dois
grandes poetas gregos, Homero e Hesíodo, o padrão educacional “afirmava que o homem
ideal ou perfeito era o guerreiro belo e bom... aprendendo as virtudes admiradas pelos
deuses e praticadas pelos heróis... (principalmente) a coragem diante da morte, na guerra”
(Chauí, 1997, p. 36). Tratava-se de uma preparação aristocrática, fundamental para a
sustentação da classe de proprietários no poder. A areté60 buscada era a excelência e
superioridade guerreira, própria dos aristoi61. Com a expansão das cidades e das atividades
econômicas, a classe proprietária foi ampliada e passou a exercer seu poder coletivamente,
de modo direto, através da participação de todos os proprietários nas decisões que a cidade
deveria tomar. Foi a emergência da figura política do cidadão, denominação para
especificar a posição sócio-política e que era específica da classe detentora dos meios de
produção, e da qual estavam excluídos os trabalhadores, em sua maioria escravos. A
implementação da democracia passou a exigir que os cidadãos discutissem, opinassem e
deliberassem nas assembléias, mudando o ideal de educação, que passou a ser a formação
do cidadão: formação do bom orador, que soubesse falar em público e que dominasse a arte
de persuadir os outros no exercício da democracia. A areté passou a ser a virtude cívica.
Nessa passagem do mito à filosofia, da formação do aristocrata para a formação
do cidadão, também houve grande desenvolvimento histórico das reflexões do homem.
Não se pode esquecer que isso se deu como parte do próprio movimento histórico,
acompanhando a aparente reflexão simples quanto ao conhecimento do homem sobre seu
conhecimento do Universo e que foi tomando a formatação de duplicidade de níveis em
que opera o pensamento elaborador do Conhecimento. Essa duplicidade se apresenta, por
60
“A palavra areté tem sido traduzida como virtude em praticamente todas as línguas ocidentais: virtue,
virtù, etc... Em que pese esse uso universal e consagrado, é inevitável, para nós, que a palavra virtude apareça
carregada de significados e conceitos cristãos que, obviamente, não poderiam ser aplicados ao contexto dos
gregos antigos sem causar sérios problemas de interpretação. Assim, sempre preferimos fazer a tradução da
palavra areté por excelência, ou seja, o ponto máximo de aperfeiçoamento que um determinado ser pode
alcançar.” (Tsuruda, Apontamentos para o Estudo da Areté [s.d.]). O significado mais adequado, portanto, é
usar areté no sentido de mérito ou qualidade pela qual alguém se destaca, e que era característico e
diferenciado em cada período histórica da Filosofia Grega.
128
um lado, como se fosse um primeiro ponto de partida, o nível do conhecimento direto e
imediato das feições e ocorrências da realidade que se trata de conhecer, isso é, aquilo que
ordinariamente entendemos simplesmente por “Conhecimento” e “Ciência do particular”.
Por outro lado, como se fosse possível existir um segundo nível de reflexão sobreposto ao
primeiro, “no qual o pensamento se ocupa já não diretamente com as feições e ocorrências
da realidade, mas com o Conhecimento acerca dessas feições” (Prado Jr, 1984, p. 21). A
realidade e o conhecimento que antes eram tomados como dimensões de uma mesma e
unitária dimensão, passou a comportar duas dimensões: num primeiro nível, o pensamento
era aplicado “à esfera objetiva e exterior ao ato pensante”, no outro, se aplicava “a si
próprio... como seu conteúdo, já desligado da Realidade que representa - conteúdo de
Conhecimento...” (Prado Jr, 1984, p. 21-22). Dessas reflexões resultou a diferenciação
entre a realidade exterior e o sujeito pensante e que, com o desenvolvimento filosófico, foi
se expressando na dicotomização entre sujeito e objeto.
Desses dois movimentos do pensamento resultaram confusões até hoje
aparentemente insuperáveis, e que giram em torno de colocar como opostos ser e
pensamento (como questão de fundo da ontologia) ou objeto e sujeito (como a questão
epistemológica fundamental). Caio Prado Jr. exemplifica essas confusões tomando um dos
conceitos fundantes da Filosofia, o conceito de “matéria” e que, ao longo dos séculos, tem
se constituído em divisor de águas do pensamento filosófico, no mais das vezes levado a
cabo “em infindáveis monólogos que se desenrolam paralelamente uns aos outros, e sem
correspondência no mais das vezes entre si” (Prado Jr, 1984, p. 23). A citação que segue é
esclarecedora da questão:
61
O termo foi utilizado para descrever os nobres na antiga Grécia, considerados superiores ao povo comum.
129
130
Hegel era idealista. As idéias de seu cérebro não eram, para ele, imagens
mais ou menos abstratas das coisas e dos fenômenos da realidade, mas
coisas que, em seu desenvolvimento, se lhe apresentavam como projeções
realizadas de uma "idéia", existente não se sabe onde, antes da existência
do mundo. Este modo de ver tudo subvertia, revirando pelo avesso toda a
concatenação real do universo. (Engels, 1979, p. 22)
130
todas as suas formas conteúdos característicos. No dizer de Caio Prado Júnior, é uma
perspectiva que mal disfarça os princípios idealistas que a fundamentam:
131
132
do universo. Era uma problemática a um só tempo ontológica, pela qual buscavam entender
o fator determinante e primeiro do universo, e gnosiológica, no âmbito da qual
expressavam a busca pelo conhecimento, pela explicação das regularidades, uniformidade
e estabilidade, de uma realidade concebida como variável e em permanente transformação.
Um tratamento simplista tenderia a tomar a filosofia pré-socrática de modo
homogêneo. Mas as escolas pré-socráticas não só foram diferenciadas, mas fincaram as
bases da multiplicidade das possíveis alternativas para a diferenciação ontológica e
gnosiológica. Penso que a cosmologia legada pelas diferentes escolas gregas, recebeu
diferentes e originais abordagens, inicialmente sintetizadas por dois pré-socráticos que nos
legaram seus dois principais e antagônicos encaminhamentos, praticamente
contemporâneos, expressos por Heráclito e Parmênides.
Partindo das elaborações das várias escolas pré-socráticas, a discussão
desembocou em Platão, sendo finalmente sintetizada por Aristóteles. Com a sistematização
aristotélica, o chamado “Problema Fundamental da Filosofia” adquiriu a formulação que
chegou até a modernidade, sendo tratado por campos diferenciados do saber que
culminavam na “Filosofia Primeira” – a Metafísica - à qual caberia o estudo do ser das
coisas, da óssea para usar o particípio presente do verbo ser, definida como “estudo do ser
enquanto ser”, isto é: estudo da essência das coisas, como algo separado de sua forma ou
aparência. Com Aristóteles a chamada “inversão idealista” consagrou a formatação
metafísica que bem conhecemos: os conceitos com os quais os sujeitos representam
mentalmente a realidade exterior ao pensamento, são considerados como uma dimensão da
própria realidade. Afirma Prado Jr que Aristóteles viciou “profundamente não só a
Filosofia subseqüente... [mas] Embaraçará ... a marcha da elaboração científica que
somente ganhará impulso quando modernamente se libera da Filosofia, ou antes da
Metafísica em que a Filosofia se envolvera” (Prado Jr, 1984, p. 43-44).
Mas é muito recente a separação da Ciência em relação à Filosofia, como se
fossem dois campos separados, justificando-se essa separação pelas supostas diferenças
entre objetos, métodos e resultados. Acompanhando as transformações das forças
produtivas e o crescente uso dos conhecimentos na produção, característico da Revolução
Industrial, as ciências particulares e seus supostos diferentes campos especializados de
saber, aliás, também foram se diferenciando sob a justificativa de diferentes objetos,
métodos e teorias. Acompanhando o revolucionar da base material da produção, a
estratégia do pensamento moderno foi de dividir e separar os objetos de investigação, o
132
que mostrou-se historicamente “produtivo”, pois a aventura humana de conhecer, desde
então, rapidamente deu saltos qualitativos e quantitativos, ampliando substantivamente o
conhecimento do homem sobre o mundo existente, sobre a organização e funcionamento
da sociedade e, enfim, sobre o próprio homem. Em apenas dois séculos a humanidade deu
um salto estupendo no conhecimento sobre os mais diferentes aspectos e dimensões da
realidade. Isso não teria ocorrido, entretanto, sem o longo e milenar percurso da espetacular
aventura de conhecer, de sistematizar e de aprender a aplicar o conhecimento conhecido.
Foi longa e complexa a estratégia de dividir o objeto de conhecimento, mas
isso propiciou ao homem um avanço substantivo no entendimento sobre as leis do
funcionamento do mundo existente, pois os conhecimentos foram transformados em
poderosas forças produtivas de bens e serviços, e que também têm se revelado em
poderosas forças destrutivas das condições de vida para o próprio homem. Como não se
quer conceber a história do pensamento como um movimento em si mesmo, da idéia,
descolado de sua base material, outro caminho é pressupor a articulação dialética da
totalidade do mundo existente como a totalidade de conhecimentos, e esta, por sua vez,
como totalidade de pensamento. Marx expressou isso na análise sobre o método correto e
que toma não o concreto empírico como ponto de partida para o conhecimento, mas o
concreto pensado, por ele tratado como síntese de múltiplas determinações (Marx,
Contribuição à crítica da economia política).
Como já me posicionei anteriormente, não pretendo fazer uma História da
Filosofia, mas reconhecer que a Filosofia está na História e que têm uma história,
recorrendo a essa relação quando necessário reforçar a argumentação, mas pressupondo o
conhecimento das determinações históricas. Como não se trata da defesa genérica e
idealista da Filosofia, penso que ainda cabe tomar dela os questionamentos que
historicamente os homens foram se fazendo e organizados na ontologia, na gnosiologia e
na axiologia. Cada um desses campos englobando as múltiplas questões colocadas pelos
homens e que se transformaram em conformidade com o modo como os homens
produziram(em) sua existência, mas abstratamente articulados em questionamentos
relativos à própria realidade existente (questões ontológicas), às possibilidades do homem
conhecer a realidade e questionar o próprio processo e resultado do conhecimento
(questões gnosiológicas) e, enfim, quanto aos valores do agir e do fazer dos homens
(questões axiológicas).
133
134
134
Essa discussão foi suscitada por Engels, em Ludwig Feuerbach e o Fim da
Filosofia Clássica Alemã, onde o "problema do conhecimento" se colocava como uma
questão relativa ou à relação entre o "ser" e o "pensamento" (Engels, em “Ludwig
Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã”, p. 178) ou como um problema quanto a
relação dos nossos pensamentos com o mundo existente, expressa na relação entre o sujeito
cognoscente e o objeto cognoscível (Idem, p. 179-180). Apresentava-se, assim, por um
lado, num "plano ontológico" e, por outro, num "plano gnosiológico". Sinteticamente
Engels expôs, na citada obra, que o encaminhamento até então dado ao problema
fundamental pela filosofia foi de, gradativamente, englobar tudo o que existe no mundo em
duas categorias gerais e abstratas: ser (ou "matéria" / "existência") como a categoria
filosófica para denominar todas as coisas materiais, como a matéria, a natureza, o mundo
exterior, a realidade e todos os objetos, os fatos e fenômenos materiais. A categoria ser era
concebida como unitária, mas que englobava a realidade exterior sob duplo aspecto: quanto
à existência e quanto à essência (que acabou se constituindo em outro conceito importante
e que dizia respeito à natureza dos seres, à sua "substância" - entendida como aspecto
indispensável e necessário). A outra categoria foi pensamento (ou "idéia" / "espírito "),
pela qual se designava tanto a consciência (o "pensamento") do sujeito, quanto o espírito , a
idéia ou a alma enquanto categoria geral e abstrata, independente da matéria.
Depois dessas análises, e como não vejo motivo para novidadeiramente passar
a usar outros termos (novos conceitos, novas categorias), sistematizarei as anotações que
tenho feito, com o objetivo de entender a obra de Marx e Engels, tendo como meta
aprofundar meus estudos fundados na concepção materialista dialética da história no
âmbito da filosofia e da história da educação. A sistematização desses três campos da
filosofia sempre acaba implicando em perda qualitativa, ou em excessiva sistematização de
tipo escolástico, motivo que me leva no presente trabalho a apenas introduzir esses três
campos, fazendo um exercício na direção de entender o processo de construção das
concepções filosóficas, pressupondo (mesmo quando não explicite) que o pensamento
sempre corresponde a condições materiais historicamente determinadas. O fio condutor da
exposição que segue busca situar historicamente as questões e respostas filosóficas,
sabendo que se trata de um exercício complexo e sempre incompleto.
135
136
62
Os termos metafísica e ontologia foram assim sintetizados por Chauí:
“A palavra metafísica foi empregada pela primeira vez por Andrônico de Rodes, por volta do ano 50 a.C.,
quando recolheu e classificou as obras de Aristóteles que, durante muitos séculos, haviam ficado dispersas e
perdidas. Com essa palavra – ta meta ta physika -, o organizador dos textos aristotélicos indicava um
conjunto de escritos que, em sua classificação, localizavam-se após os tratados sobre a física ou sobre a
Natureza, pois a palavra grega meta quer dizer: depois de, após, acima de.
Ta: aqueles; meta: após, depois; ta physika: aqueles da física. Assim, a expressão ta meta ta physika significa
literalmente: aqueles [escritos] que estão [catalogados] após os [escritos] da física. Ora, tais escritos haviam
recebido uma designação por parte do próprio Aristóteles, quando este definira o assunto de que tratavam:
são os escritos da Filosofia Primeira, cujo tema é o estudo do “ser enquanto ser”. Desse modo, o que
Aristóteles chamou de Filosofia Primeira passou a ser designado como metafísica.
No século XVII, o filósofo alemão Jacobus Thomasius considerou que a palavra correta para designar os
estudos da metafísica ou Filosofia Primeira seria a palavra ontologia.
A palavra ontologia é composta de duas outras: onto e logia. Onto deriva-se de dois substantivos gregos, ta
onta (os bens e as coisas realmente possuídas por alguém) e ta eonta (as coisas realmente existentes). Essas
duas palavras, por sua vez, derivam-se do verbo ser, que, em grego, se diz einai. O particípio presente desse
verbo se diz on (sendo, ente) e ontos (sendo, entes). Dessa maneira, as palavras onta e eonta (as coisas) e on
(ente) levaram a um substantivo: to on, que significa o Ser. O Ser é o que é realmente e se opõe ao que parece
ser, à aparência. Assim, ontologia significa: estudo ou conhecimento do Ser, dos entes ou das coisas tais
como são em si mesmas, real e verdadeiramente.” (CHAUI, 1997, pp. 209-210)
136
Filosofia, que exemplifica a mudança histórica de questões e de palavras para expressá-la,
da seguinte maneira:
137
138
mas trata-se de uma noção que não foi tomada de uma maneira única na história da
filosofia63
Ao ser se opõe o pensamento – ou a idéia (Gr. Idea ou eidea < do Lat. idea) -
de natureza imaterial, ideal, espiritual. O pensamento (ou idéia) é o conceito filosófico que
designa a consciência, a mente, o espírito, a alma e todos fenômenos ideais ou espirituais
que existem ou em si mesmo – como demiurgo e força espiritual que tudo rege - ou que
existente na consciência do sujeito - como sensações, percepções, representações,
sentimentos, emoções, idéias, conceitos, pensamentos, etc. Conforme Abbagnano (1982, p.
499 e ss.) o termo tem sido usado em dois sentidos principais: 1º. Como conteúdo
perceptível na multiplidade de formas - as idéias como modelos perfeitos das coisas, ou
como as próprias coisas em seu estado perfeito; 2º. Como representação das coisas no
pensamento humano. O primeiro significado foi usado por Platão, por Aristóteles, pelos
Escolásticos, por Kant e por toda a tradição neo-kantiana; no segundo tem sido usado pelos
empiristas, por Descartes, enfim pelas tradições filosóficas que buscam posicionamento
anti-metafísico. O primeiro sentido é o que fundamentou propriamente a ontologia e o
segundo a questão ontológica da gnosiologia. Mas trata-se de conceito usado de modo
63
“O filósofo grego Parmênides, no final do século VI a.C., formulou pela primeira vez a noção de um ser
único, homogêneo, infinito e imutável, que conteria em si tanto a ordem ideal quanto a material. Com base
nesse conceito, ele negou a existência do "não-ser" -- o nada -- e do movimento ou da transformação dos
fenômenos tais como percebidos pelos sentidos. Essa tese foi combatida pelos atomistas, que defenderam a
existência de um "não-ser" e postularam uma concepção dinâmica da realidade. Platão retomou-a no século V
a.C. Embora tenha admitido a existência de movimento no plano dos sentidos, Platão considerou o mundo
sensível uma cópia imperfeita da ordem imutável das idéias ou essências transcendentes, partícipes da
natureza do ser.
A fim de resolver essa controvérsia, fundamentalmente centrada em torno da oposição entre "permanência" e
"transformação", Aristóteles enfatizou a dupla natureza do significado do ser: por um lado, o fato de ser é a
única característica comum a todas as coisas; por outro, concebe-se o ser como princípio essencial da
realidade, sua própria "razão de ser". De acordo com o primeiro aspecto, só é cognoscível aquilo que se
manifesta no existente; de acordo com o segundo, o ser é imutável e eterno. Tal concepção foi resgatada pela
escolástica medieval mediante a distinção entre ens ("ente", em latim) e esse ("ser", em latim). O primeiro
termo alude ao que a realidade é, e o segundo, à causa de que a realidade seja.
A partir do século XVII a polêmica sobre a natureza do ser assumiu outro enfoque e passou a se concentrar
na afirmação ou na negação da existência real de uma substância, ou princípio fundamental da realidade.
Assim, os filósofos racionalistas e idealistas tenderam a postular tal existência, enquanto os pensadores
empiristas, positivistas e, em geral, todos aqueles que se filiaram a abordagens materialistas, consideraram
que noções como "ser" ou "substância" eram meras especulações abstratas.
No século XX, a progressiva rejeição às postulações metafísicas fez com que esse problema fosse aos poucos
abandonado. Várias correntes passaram a considerar a chamada "pergunta pelo ser" como uma falsa questão.
O filósofo alemão Martin Heidegger, no entanto, resgatou-a na década de 1920, ao considerar o ser como o
problema central de toda filosofia e ponto de partida para a compreensão plena da existência humana.”
(Enciclopédia de Filosofia: http://encfil.goldeye.info/ser.htm)
138
diverso na história da filosofia64, até hoje alimentando polêmicas entre as concepções
filosóficas e científicas.
Além dos conceitos de ser e pensamento para expressar a realidade, outros dois
conceitos ontológicos foram (e são) usados para o infindável debate quanto às
determinações e características e todas as coisas: existência e essência. O conceito de
essência (do grego eidos; o Lat. Essentia), etimologicamente significa aquilo que constitui
a natureza ou substância de uma coisa, considerado independentemente da sua existência.
Dizer o que é uma coisa é declarar a sua essência. Até Platão, a essência - eidos – tinha a
conotação daquilo que, numa coisa, é permanente e central, em oposição ao transitório e
acidental. Para Platão a essência era a verdadeira realidade das coisas, expressava sua
forma pura, subtraída das aparências que caracterizavam sua existência. Foi com
Aristóteles que o conceito de essência passou a designar ora a substância dos seres, que
para ele era a realidade verdadeira das coisas, ora uma qualidade determinada das coisas.
Mas as coisas existentes apresentavam-se, simultaneamente, em sua diversidade e em sua
unidade. Para responder a essa questão, posta pelos pré-socráticos e mantida por Platão,
Aristóteles entendeu que todos os serem articulavam dois princípios: a essência e a
existência. Comparando dois seres, por exemplo, um animal e uma árvore, verifica-se que
há entre eles um princípio em comum - ambos existem; entretanto, esses dois seres se
distinguem, pois um é um ser animal e outro é um ser vegetal – possuem diferentes
essências. A essência é o que é uma coisa, aquilo que a caracteriza e a distingue de
qualquer outra. A existência é o que põe em ato (atualiza) a essência e a realiza
efetivamente. Na perspectiva aristotélica, a essência e a existência são princípios
necessários à constituição dos seres, de tal maneira que um ser sem essência ou um ser sem
existência não são concebíveis. (cf. Abbagnano, 1982, p. 340 e ss.).
64
Para Platão, a ideia que fazemos de uma coisa provém do princípio geral, do «mundo inteligível», que
constitui a Ideia Universal, categoria que está na base da sua filosofia, o idealismo. Assim, a ideia da coisa é
uma projecção do saber : ao verem a coisa, os olhos, emitindo raios de luz, projectam a imagem dessa
mesma coisa, que existe em nós como princípio universal (extromissão). Esta doutrina é designada por
«idealismo».
Para Aristóteles, a ideia da coisa provém da experiência sensível, do «mundo dos fenómenos contingentes» :
as coisas emitem cópias de si próprias, através da luz, cópias assimiladas pelos sentidos e interpretadas pelo
saber inato ou adquirido (intromissão), doutrina que funda o conceito de «realismo».
Estas noções estão presentes em toda a filosofia ocidental, em particular no campo da ontologia, a ciência do
Ser. Condicionarão, durante séculos, o pensamento de filósofos, desde a escolástica até às doutrinas da
actualidade, em particular, no campo das chamadas «ciências cognitivas» ou «ciências do conhecimento»,
que cobrem as áreas da biologia, da cibernética, da robótica, da informática.
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Ideia)
139
140
[...] A distinção real entre essência e existência é uma das doutrinas típicas
da Escolástica do séc. XIII. [...] Seus criadores foram os Neoplatônicos
árabes e especialmente Avicena (sec. XI) que a expusera na sua
Metafísica... Mas quem deu à doutrina a sua melhor expressão foi S.
Tomás; o qual também a reportou ao significado que recebera de Avicena,
negando que a existência seja um simples acidente.[...]
S. Tomás entende a essência no significado (de) ... necessária ou
substancial. Ela é a “qüididade” ou “natureza” que compreende tudo o que
está expresso na definição da coisa; logo não só a forma, mas também a
matéria. [...] E assim entendida distingue-se o ser ou a existência da coisa
definida... Substâncias como o homem resultam, por isso, compostas de
essência (matéria e forma) e existência, separáveis entre si. [...] Somente
em Deus, porém, a essência é a própria existência, porque Deus “não só é a
sua essências, mas também o seu próprio ser” [...] (Abbagnano, 1982, p.
343-344).
140
existência sobre a essência, tenha sido objeto de discussão de Jean-Paul Sartre,
notadamente em sua obra O existencialismo é um humanismo.
A problemática ontológica não foi deixada de lado da elaboração de Marx e
Engels, como n’A Ideologia Alemã, notadamente quanto assumiram esclarecer o
antagonismo existente entre a visão que estavam a construir e a concepção ideológica da
filosofia alemã. Fizeram disso um "ajuste de contas com a... consciência filosófica
anterior", usando os termos com que Marx registrou esse início de colaboração, no
"Prefácio" da Crítica da Economia Política (MARX, K. "Prefácio" da Crítica da Economia
Política, Opus cit., p. 26). Com o explícito "ajuste de contas" com a trajetória filosófica
anterior, isto é, com a esquerda hegeliana, pretendiam demonstrar que a nova concepção
por eles defendida era um avanço - ou desenvolvimento - em relação às posições então em
voga nesse grupo intelectual; mais precisamente, a nova concepção era um avanço em
relação à concepção idealista hegeliana e, também, a materialista feuerbachiana.
Nesse acerto de contas empreendiam, por um lado, a crítica contundente às
várias vertentes ontológicas de então - do idealismo (hegeliano) e do materialismo
(feuerbachiano) - mas, de outro lado, expressavam o reconhecimento do mérito
metodológico e teórico de Hegel e de Feuerbach. A crítica radical, portanto, implicava que
a nova concepção deitava raízes históricas nos avanços filosóficos até então obtidos, mas
que para avançar ainda mais era necessário que os limites dessas duas concepções fossem
ultrapassados (MARX, K. e F. Engels. A Ideologia Alemã, ps. 29-33, 47-49 e 50-55, por
exemplo).
Em linhas gerais, Marx e Engels retomaram uma discussão circunscrita ao
problema fundamental da filosofia, colocando em questão a determinação do real, de
modo amplo, e a determinação do existir social dos homens, faces de uma mesma e única
problemática. Foi Engels, em Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã, que
afirmou que, em conformidade com o encaminhamento que os filósofos davam ao
problema fundamental, isso também se colocava no plano ontológico pela busca da
essência de todas as coisas e, ainda, pela busca por determinar o elemento primário do
conhecimento do ser: O que é primeiro, o ser ou o pensamento? a matéria ou a idéia? O
encaminhamento dado a essa problemática (cf. Engels, s/d, p. 179) dividiu, desde os
primeiros tempos, os filósofos em duas posições básicas, com suas inúmeras variantes:
idealistas (os que afirmaram a primazia do espírito em relação à natureza e admitiam, em
141
142
última instância, uma criação do mundo); materialistas (os que viram a natureza como o
elemento primordial).
Era esse o embate que se colocavam Marx e Engels e que, em linhas gerais,
sintetizava um longo e complexo percurso filosófico e que exigia deles uma tomada de
posição e uma nova propositura ontológica. Mas uma exposição mais sistemática do
posicionamento ontológico marxiano e engelsiano será feita proximamente.
No capítulo anterior busquei articular uma ampla discussão na qual o problema
fundamental da filosofia acabava sendo profundamente entremeado pelo problema do
conhecimento. Iniciando este capítulo, discorri brevemente sobre a dimensão ontológica do
problema do conhecimento; é preciso, ainda que resumidamente, expor a outra dimensão
do problema fundamental: a problemática gnosiológica, também denominada
epistemológica ou teoria do conhecimento. Trata-se da parte da filosofia que tem como
objeto o estudo da origem, da possibilidade, da natureza, dos limites, das formas e da
validade do conhecimento humano (problema da verdade). O termo Gnosiologia [do grego
gnosis = conhecimento e do latim logos = estudo, ciência] etimologicamente o termo
significa teoria do conhecimento), foi definido como o estudo da essência, da origem, e da
validade do conhecimento. As clássicas questões gnosiológicas perguntam: O que é o
conhecimento? O que podemos conhecer? Existe a verdade? Como podemos conhecê-la?
Qual é o critério de verdade? Qual é o valor dos nossos conhecimentos?
Fazendo os questionamentos que dizem respeito ao problema do conhecimento,
Jacob Bazarian assim se expressou com relação ao aspecto gnosiológico do problema
fundamental da filosofia:
... [o] problema consiste no seguinte: existe no vir a ser perpétuo das
coisas, na mudança permanente e na diversidade infinita das coisas, algo
de estável que o nosso pensamento possa captar? Ou estamos condenados
de modo inapelável a errar num mundo de aparências e ilusões? (Bazarian,
s.d., p. 78).
142
o objeto ou o sujeito? Que relação o pensamento mantém sobre o mundo? O pensamento é
realmente capaz de conhecer o mundo real? Pode-se, a partir das representações e conceitos
sobre o mundo real, formar uma imagem exata da realidade? (Engels, Ludwig Feuerbach e
o Fim da Filosofia Clássica Alemã, p. 179-180).
Certamente que o primeiro problema do conhecimento é responder o
questionamento quanto a possibilidade e essência do próprio conhecimento. Há vários
conceitos para esta palavra, que etimologicamente significa aquilo que se conhece de algo
ou alguém. Com relação ao problema do conhecimento, a sistematização disponível na
internet, na Enciclopédia de Filosofia, registra que:
Os filósofos antigos e medievais abordaram em muitas ocasiões e de
formas diversas o problema do conhecimento, mas foi a partir dos
racionalistas e empiristas que o tema ganhou importância no pensamento
filosófico. Conhecimento é o processo que ocorre quando um sujeito (o
sujeito que conhece) apreende um objeto (o objeto do conhecimento).
Esses dois pólos, sujeito e objeto, estão sempre presentes na relação de
conhecimento. O papel que se atribui a um ou outro varia
substancialmente, conforme a posição filosófica a partir da qual se
considera essa relação. Assim, enquanto os filósofos realistas admitem a
primazia do objeto, ou seja, sua existência independente do sujeito, os
filósofos idealistas defendem a primazia do sujeito, isto é, o objeto só
existe no entendimento do sujeito. Em alguns casos, o subjetivismo
transforma-se num solipsismo, isto é, na afirmação da impossibilidade do
sujeito sair de si para poder conhecer o objeto. O sujeito só pode apreender
as propriedades do objeto ao se transcender, ou seja, sair de si mesmo. O
objeto, pelo contrário, permanece em sua condição e não se altera, não é
modificado pelo sujeito. É este quem sofre modificação pelo objeto,
modificação que é o próprio ato do conhecimento. Se o sujeito representa
para si o objeto tal como é, o conhecimento será verdadeiro. No caso
contrário, o sujeito terá um conhecimento falso do objeto. (Enciclopédia
de Filosofia. In:
http://www.pfilosofia.xpg.com.br/geocities/encfil/epistemologia.htm)
143
144
144
uma questão prática, pois é na prática social e histórica dos homens que fica demonstrada a
veracidade da reflexão humana (Idem, ibidem). E o entendimento sobre essa prática fecha,
na 11ª. tese, esse esquemático texto de 1845: “Os filósofos não fizeram mais que
interpretar o mundo de forma diferente: trata-se porém de modificá·lo” (Idem, p. 210).
Afirmo que é essa a dimensão axiológica colocada por Marx: para além de meras questões
teóricas, abstratas, o fundamental é a práxis revolucionária, é a transformação do mundo
existente.
65
Estou tomando a Filosofia no sentido etimológico, originário, que de “amigo do saber” foi se tornando um
campo de síntese do conjunto do saber. Não convém esquecer que é palavra originária do grego Φιλοσοφία =
philos - amigo + sophia – sabedoria.
145
146
quanto existe na Natureza e de tudo o que n’Ela acontece, resultou na busca de uma força
natural, perene e imortal, denominada pelos primeiros filósofos com o nome de physis.
A ontologia como uma cosmologia66 era uma explicação racional sobre as
coisas da natureza, de modo amplo tratava sobre a matéria e energia do Universo, a physis.
[Ainda hoje a cosmologia constitui-se num vasto campo de estudos da Física.]67 Já em seu
nascedouro, a chamada filosofia pré-socrática foi praticamente toda ela uma espécie de
filosofia da natureza, expressando a preocupação que tinham em explicar como e do que é
feito o mundo, as transformações da natureza e temas correlacionados.
Poucos escritos pré-socráticos estão disponíveis, restando apenas fragmentos; o
conhecimento que temos sobre os filósofos pré-socráticos foram legados pelos escritos de
Platão, Aristóteles, Simplício e na obra de Diógenes Laércio (que no século III d. C.
escreveu uma “Vida e obra dos filósofos ilustres”). Um tratamento simplista, tenderia a
tomar a filosofia pré-socrática de modo homogêneo, mas a cosmologia legada pelas
diferentes escolas recebeu tratamento diferenciado por parte de seus diferentes e originais
filósofos, como os dois antagônicos, e praticamente contemporâneos, encaminhamentos de
Heráclito e Parmênides.
a) Heráclito de Éfeso68
Heráclito de Éfeso foi o filósofo pré-socrático69 que problematizou a questão
do devir (da mudança), fincando três princípios ontológicos fundamentais:
a) o princípio da materialidade ontológica, pela qual pressupunha a antecedência
e importância da matéria na determinação de tudo o que existe;
b) o princípio da permanente e dinâmica transformação da physis;
c) o princípio da contradição ou da permanente guerra entre opostos.
66
Cosmologia (do grego κοσµολογία, κόσµος="cosmos"/"ordem"/"mundo" + -λογία="discurso"/"estudo")
67
Nesta a cosmologia é definida como “... ciência que estuda a estrutura, evolução e composição do
universo” como explica Rogério Rosenfeld, do Instituto de Física da Unesp, no texto didático Cosmologia,
publicado em Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005, p. 31 e ss. , no qual faz uma apanhado panorâmico do campo
e das pesquisas desenvolvidas e em desenvolvimento.] [artigo acessado via internet, em 16/3/2007:
http://www.sbfisica.org.br/fne/Vol6/Num1/cosmologia.pdf]
68
Hράκλειτος Eφέσιος, nasceu +/- 540 a.C. - 470 a.C. em Éfeso, na Jônia.
69
Além da bibliografia que trata de Heráclito, nas aulas de graduação tenho aproveitado alguns bons verbetes
disponibilizados pela internet, como:
[http://pt.wikipedia.org/wiki/Her%C3%A1clito_de_%C3%89feso]+[http://www.ime.usp.br/~rudini/filos.hera
clito.htm]
146
entre os pensadores que defendiam a existência de um dinamismo universal da natureza.
Tales e Anaximandro, por exemplo, haviam percebido o dinamismo das mudanças na
physis, como o nascimento, o crescimento e o perecimento, mas não chegaram a
problematizar a questão. Heráclito, ao contrário, partiu do princípio de que tudo é
movimento, e que nada pode permanecer estático. Afirmava que "tudo flui", "tudo se
move", registrando seu entendimento de que “não entramos duas vezes nas águas do
mesmo rio”, pois “quando entro no rio pela segunda vez, nem eu nem o rio somos os
mesmo”.
A transformação de todas as coisas, a mudança, o permanente devir, é
entendido por ele como uma alternância entre contrários: “coisas quentes esfriam, coisas
frias esquentam, coisas úmidas secam, coisas secas umedecem”, etc. A realidade, assim,
não é uma escolha por uma das alternativas, que constituem apenas parte da realidade, mas
na guerra entre os opostos e que permite a harmonia e mesmo a paz, já que assim é
possível que os contrários possam existir: "A doença faz da saúde algo agradável e bom"
que, numa linguagem mais atualizada, seria o mesmo que afirmar que se não houvesse a
doença, não haveria porque valorizar a saúde... Esse novo entendimento da harmonia –
como uma unidade ou coincidência de opostos: o princípio e o fim, em um círculo, ou a
descida e a subida, em um caminho, são opostos de uma mesma coisa, pois o mesmo
caminho é de descida e de subida; o quente é o mesmo que o frio, pois o frio é o quente
quando muda, como se ambos, quente e frio, fossem "versões" diferentes da mesma coisa.
Como outros pensadores da época, também Heráclito estava empenhado em
encontrar uma arché, um princípio de todas as coisas; diferentemente de atribuir o
princípio de tudo o que existe a uma força sobrenatural, buscou ele um dos elementos da
natureza para explicitá-lo. E para Heráclito, o fogo foi considerado como o elemento
primordial de todas as coisas, pois tudo se origina por rarefação e tudo flui como um rio. O
cosmos é um só e nasce do fogo e de novo é pelo fogo consumido, em períodos
determinados, em ciclos que se repetem pela eternidade.
147
148
b) Parmênides de Eléia70
Parmênides de Eléia71 foi o primeiro pensador a afirmar que o cosmos é um
mundo ilusório, feito de aparências, sobre as quais os homens formulam suas opiniões. Seu
pensamento ficou registrado num poema intitulado Sobre a Natureza, dividido em duas
partes distintas: uma que trata do caminho da verdade (alétheia) e outra que trata do
caminho da opinião (dóxa), ou seja, daquilo onde não há nenhuma certeza. Para
Parmênides a filosofia era a Via da Verdade (aletheia), negando realidade à Via da Opinião
(doxa), pois esta se ocupa com as aparências, com o Não-Ser. De modo simplificado,
afirma-se que Parmênides foi quem fundou as bases da ontologia, estabelecendo seus
quatro princípios ontológicos fundamentais:
70
Também para Parmênides, além da bibliografia disponível, nas aulas de graduação tenho aproveitado
alguns bons verbetes disponibilizados pela internet, como:
[ http://pt.wikipedia.org/wiki/Parm%C3%Aanides ] + [ http://www.ime.usp.br/~rudini/filos.parmenides.htm]
71
nasceu em Eléia, Itália, cerca de 530 a.C. - 460 a.C.
148
o Ser é sempre idêntico a si mesmo, imutável, eterno, imperecível, invisível aos sentidos e
visível apenas para o pensamento. Foi Parmênides o primeiro a dizer que a aparência
sensível das coisas da natureza não possui realidade, não existe real e verdadeiramente, não
é. Contrapôs, assim, o Ser (On) ao Não-Ser (me On), declarando: o Não-Ser não é.
Comparou, por exemplo, a luz e a escuridão, e para ele essa segunda qualidade nada mais
era do que a negação da primeira. Tomando outros opostos (leve-pesado, ativo-passivo,
quente-frio, masculino-feminino, fogo-terra, vida-morte) aplicava a mesma comparação do
modelo luz-escuridão, pelo qual a luz era a qualidade positiva e a escuridão a qualidade
negativa. O pesado era apenas uma negação do leve. O frio era uma oposição ao quente. O
passivo em oposição ao ativo, o masculino em oposição ao feminino e, cada um apenas
como negação do outro. O mundo dividia-se em duas esferas: aquela das qualidades
positivas (luz, quente, ativo, masculino, fogo, vida) e aquela das qualidade negativas
(escuridão, frio, passivo, feminino, terra, morte). Mas em lugar das expressões “positiva” e
“negativa”, Parmênides usa os termos metafísicos de “ser” e “não-ser”. O não-ser era a
negação do ser.
Tem-se que essa foi a primeira grande e sistematizada formulação do princípio
da não-contradição, pela qual afirmou-se a impossibilidade de coexistência simultânea dos
contraditórios, no caso o ser e o não-ser. Se há ser, não pode haver o não-ser. O ser não
tem passado nem futuro, mas apenas presente... sem início, nem fim, eterno. A visão
ontológica de Parmênides é que o ser é imutável, imóvel, perfeito e acabado e, não tendo
necessidade de nada, permanece em si mesmo idêntico no idêntico. Ele é um contínuo
todo igual já que qualquer diferença implica o não-ser. Para ele, portanto, o ser é ingênito,
incorruptível, imutável, imóvel, igual e uno: o resto é apenas diferentes denominações da
mesma coisa.
Na busca pela determinação de tudo o que existe, Parmênides chegou à
proposição de um princípio essencialista que, sendo determinação primeira e última,
explicitava a existência de um Ser - Absoluto que, sendo a realidade imutável, estática, sua
essência era uma individualidade divina.. era um Ser-Absoluto que permeia todo o
Universo; um Ser onipresente, posto que qualquer descontinuidade em sua presença
implicava na existência de seu oposto – o Não-Ser. Esse Ser não pode ter sido criado por
algo pois isso implicaria em admitir a existência de um outro Ser. Do mesmo modo, esse
Ser não pode ter sido criado do nada, pois isso implicaria a existência do “Não-Ser”. O Ser
simplesmente é.
149
150
150
conhecimentos, formas próprias de demonstração e de prova. Nesse sentido, cada campo
do conhecimento era, na perspectiva aristotélica, uma episteme (do grego ἐπιστήµη
[episteme], ciência, conhecimento). Entretanto, antes de um conhecimento constituir seu
objeto e seu campo próprio, seus procedimentos próprios de aquisição, de exposição, de
demonstração e de prova, deveriam primeiramente conhecer as leis gerais que governam o
próprio conhecimento (gnosis = conhecimento – do grego γνῶσις [conhecimento]),
independentemente do conteúdo que poderia vir a ter. O campo de estudo das formas
gerais do pensamento, sem preocupação com seu conteúdo, era chamado de Lógica (do
grego λογική [logos], significando palavra, pensamento, idéia, argumento, relato, razão ou
simplesmente lógica ou princípio lógico), que Aristóteles não considerava como uma
ciência, mas como um instrumento para a ciência. Em outras palavras, a lógica era
considerada como um instrumento do conhecimento qualquer que fosse o campo do saber,
mas não se confundia com nenhum dos campos de conhecimento, com nenhuma ciência.
Por isso mesmo que a lógica não foi incluída na classificação das ciências feita por
Aristóteles, em sua obra Metafísica, como foi posteriormente denominada.
Ainda que de maneira esquemática, mais com preocupação didática, a
classificação aristotélica dos campos do conhecimento filosófico englobava as Ciências
Produtivas, as Ciências Práticas e as Ciências Teóricas.
As Ciências Produtivas englobavam os conhecimentos das práticas
produtivas, artísticas ou as técnicas, qual seja, as ações humanas cuja finalidade estava para
além da própria ação e que tinham por finalidade a produção de um objeto, de uma obra.
Englobava os seguintes campos de saber: a Arquitetura (cujo fim é a edificação de alguma
coisa); a Economia (cujo fim é a produção agrícola, artesanal, industrial... também o
comércio; portanto, que tinham por fim a produção para a sobrevivência ou para o acumulo
de riquezas); a Medicina (fim é produzir a saúde ou a cura); e as Artes (fim é a produção
artística, literária, oratória, etc. como: pintura, escultura, poesia, teatro, oratória, arte da
guerra, da caça, da navegação, etc.).
As Ciências Práticas compreendiam as que estudavam as práticas humanas
enquanto ações que tinham nelas mesmas seu próprio fim. Englobava: a Ética (ação
realizada pela vontade, por sua vez guiada pela razão, cujo fim era o bem do indivíduo e
que eram expresso pelas virtudes morais (como coragem, generosidade, fidelidade,
lealdade, clemência, prudência, amizade, justiça, modéstia, honradez, temperança, etc.); e a
Política (a ação guiada pela razão, tendo por fim o bem da comunidade ou o bem comum).
151
152
Nas Ciências Teóricas estavam incluídas as que estudavam coisas que existem
independente dos homens e de suas ações (theoria = contemplação da verdade). Mas que
coisas existem por si mesmas e em si mesmas, independentes da ação dos homens? São as
coisas da Natureza e as coisas divinas. As Ciências Teóricas foram, por sua vez,
classificadas por Aristóteles por graus de superioridade (indo do mais simples para o mais
complexo), como segue: Ciências das Coisas Naturais submetidas à mudança e ao devir,
como: Física, Biologia, Meteorologia, Psicologia (psychê = alma que, para o grego , era um
ser natural e que existia de formas variadas em todos os seres vivos). Ciências das coisas
naturais não submetidas à mudança e ao devir, como: Matemática e Astronomia (que para
os gregos tratavam dos astros e que eram eternos e imutáveis). Ciência da realidade pura e
que tratava do não é nem natural mutável, nem natural imutável, nem resultado da ação
humana, nem resultado da fabricação do homem; tratava do ser ou substância de tudo o
que existe, conformando uma ciência teórica que tratava do ser e dos seres (em grego on =
ser; ta onta = os seres), chamada de METAFÍSICA. Finalmente, a Ciência teórica das
coisas divinas, consideradas na visão aristotélica como a causa e a finalidade de tudo o que
existe na Natureza e no Homem. A última e mais complexa ciência nessa classificação,
Aristóteles a chamou de TEOLOGIA (theion = coisas divinas).
152
com a crescente conformação da Escolástica que, a partir do século XIII, promoveu uma
grande síntese filosófica que articulava a filosofia grega com os escritos dos Padres da
Igreja. Tomando como principal idéia filosófica a problemática da fé e da razão, foi se
articulando um sistema filosófico que pressupunha que “A fé conforta e auxilia à razão que
se lhe deve submeter como docilidade”, expressa em máximas latinas como: intelligo ut
credam, credo ut intelligam, ou fides quaerens intellectum (Franca, 1943, p. 136). Ao
contrário de constituírem campos opostos, ocorria total afinidade entre a fidelidade à
religião e a reflexão rigorosa. A legitimação dessa articulação era calcada na inexistência
de incompatibilidade entre argumentação lógica e fé (Nascimento, 1984, p. 38-39). Com a
escolástica tomista, mesmo mantendo a distinção entre Filosofia e Teologia, passou-se a
buscar o estabelecimento de uma relação profunda entre razão e fé, pela qual a teologia
deveria proceder ao estudo do dogma por autoridade (pela fé) e a filosofia pela
demonstração científica (pela razão). Santo Tomás entendia que a Filosofia não é a busca
da verdade, pois a verdade já foi encontrada pelos homens através da revelação, pela
própria palavra de Deus registrada nas Sagradas Escrituras (Idem, p.39). A filosofia cabia,
através da prova racional da existência de Deus, preparar o caminho para a teologia,
tornando o ato de fé eminentemente racional (Franca, 1943, p. 157).
Com a escolástica deu-se uma nova classificação da Filosofia, pela qual eram
delimitados três (3) campos de investigação da filosofia:
1) Ontologia - Na classificação de Aristóteles era formado pela metafísica e pela
teologia que, com a escolástica passam a ser faces de uma mesma e única moeda,
no âmbito da Filosofia. Na escolástica englobava a Metafísica, campo do
conhecimento da realidade última de todos os seres, ou da essência de toda a
realidade; a cosmologia, como estudo da finalidade interna de todos os seres e a
composição dos corpos de matéria, todas compostas por uma só forma substancial;
a teodicéia considerada como disciplina que deveria buscar a demonstração da
existência de Deus que, não sendo suscetível à demonstração a priori, deveria
buscar argumentos a posteriori que comprovassem racionalmente Deus. Sua
denominação permaneceu por referência à etimologia grega: on = ser, ta onta = os
seres + λόγος estudo, tratado, dai ontologia.
2) Gnosiologia – como o estudo do conhecimento, quanto a capacidade humana de
conhecer, ou o conhecimento do próprio conhecimento em exercício. Esse campo
também foi denominado por referência à etimologia grega: γνῶσις – gnosis + λόγος
153
154
estudo, tratado = conhecimento, daí gnosiologia. Esse campo foi conformado: pela
Lógica – tendo por objeto o estudo das leis gerais do pensamento; pela Teoria do
Conhecimento – estuda os procedimentos pelos quais o homem conhece; pelas
Ciências propriamente ditas, cada qual com seu objeto próprio de investigação;
pela Epistemologia e que estuda o conhecimento do conhecimento científico.
3) Axiologia - Também recebeu uma denominação por referência à etimologia grega:
άξιος valor, dignidade + λόγος estudo, tratado - etimologicamente significando
"Teoria do valor", "estudo do valor" ou "ciência do valor". Esse campo
compreende: a filosofia do bem = a Ética; a filosofia do belo = a Estética; a
filosofia do justo e das leis = Direito; a filosofia do bem comum = Política; a
filosofia do homem = Antropologia.
154
contexto de transição, como aponta Koyré (1986), foram se colocando três alternativas
ideológicas e intelectuais para a busca de certezas: a fé, a experiência e a razão.
Foi certamente um período de transição, de grandes embates de idéias, de
indefinições. Mas também foi um período marcado por profunda crise e que era, ao mesmo
tempo, econômica, social, política, religiosa e intelectual. Para Chauí três foram as
principais características gerais da Filosofia Moderna então afetadas: 1) o significado na
nova ciência da Natureza; 2) os conceitos de causalidade e de substância; 3) a idéia de
método ou de mathesis universalis, e a idéia de razão (Chauí, 1984, p. 69).
Com relação à nova ciência da natureza, ou Filosofia Natural, esta implicou na
passagem do conhecimento especulativo para uma ciência ativa, cujos conhecimentos
fossem empírica ou racionalmente verificáveis; na passagem da explicação qualitativa e
finalística para uma explicação quantitativa e macanicista, marcada por relações mecânicas
de causa e efeito, em conformidade com leis necessárias e universais (Chauí, 1984, pp. 70-
72). Era a destruição da idéia grega de Cosmos, gradativamente substituída pela de
Universo - infinito, aberto no tempo e no espaço, sem começo, sem fim, sem limite.
A segunda característica diz respeito à idéia de substância e causa. Para a
filosofia antiga substância era tomada como a estrutura necessária, como tudo que existe,
como “aquilo que é”, como uma pluralidade infinita e indefinida de formas e conteúdos;
sentido que foi sendo transformado para o de conexão ou de existência em si e por si
mesma. Com a mudança na idéia de substância, também mudou a de causalidade: do
sentido filosófico platônico e aristotélico, no qual causa era o princípio de todas as coisas,
aglutinadas por Aristóteles em quatro causas - causa material, causa formal, causa eficiente
e causa final -, para o sentido moderno de conexão entre duas ou mais coisas, sendo que em
virtude dessa conexão é possível univocamente previsível que uma coisa decorra de outra
(Abagnano, 1982, pp. 117-18 e 891-893). O conceito de causa passou a ser tomado como
algo real que produz um efeito igualmente real; é também a razão que explica as coisas
como elas são; e ainda o nexo lógico que articula e vincula necessariamente uma realidade
a outra, tornando possível sua existência e o conhecimento sobre elas (Chauí, 1984, p. 75).
O terceiro aspecto é a idéia de método como possibilidade do homem chegar a
um conhecimento verdadeiro, expressa pela retomada de seu significado como o de
mathesis universalis. O sentido etimológico de Método (de methodos, met' hodos =
literalmente, "caminho para chegar a um fim"), tomado pela filosofia clássica como modus
da obtenção do conhecimento, passou a ser caracterizado no sentido de instrumento que
155
156
72
Descartes foi quem propôs uma Mathesis Universalis, uma ciência geral da razão, capaz de explicar tudo
pela razão e na qual todos os conhecimentos fossem englobados. Esta ciência teria características
independentes dos objetos a estudar. Tratava-se de uma ciência geral, explicativa de tudo o que diz respeito à
quantidade e à ordem.
156
4.4. Francis Bacon e o Empirismo
Um primeiro esboço propriamente moderno de classificação do conjunto do
conhecimento foi buscado por Francis Bacon (1561-1626), notabilizado como pai da
ciência experimental moderna. Como se sabe, Bacon realizou o que ele mesmo chamou de
instauratio magna (grande restauração), pela qual propunha um plano que, partindo do
estágio do conhecimento de sua época, empreendesse a apresentação de um novo método
para superar e substituir o de Aristóteles. Bacon desejava uma reforma completa do
conhecimento, justificada pela crítica à filosofia anterior, de modo especial a Escolástica,
considerada estéril por não conduzir a nenhum resultado prático para a vida do homem. Foi
esse seu empreendimento mais importante e mais profundo e que está contido em sua obra
Novum Organum, ou Verdadeiras Indicações Acerca da Interpretação da Natureza,
publicada em 1620. Nessa obra, seu entendimento é que o conhecimento científico
possibilitaria ampliar o bem-estar do homem, através de seu domínio sobre a natureza, a
partir do conhecimento das leis que a regem, pois a natureza não pode ser dominada, senão
conhecendo-a. Uma citação do Novum organum bem explicita seu posicionamento:
Em primeiro lugar, pedimos aos homens que não presumam ser nosso
propósito, à maneira dos antigos gregos, [...] fundar alguma nova seita de
filosofia. [...]
Mas não nos ocuparemos de tais coisas suscetíveis de opiniões e
também inúteis. Ao contrário, a nossa disposição é de investigar a
possibilidade de realmente estender os limites do poder ou a grandeza do
homem e tornar mais sólidos os seus fundamentos. [...] (Bacon. Novum
organum, I, afor. 116, pp. 75-76)
157
158
Bacon tinha um ambicioso plano, composto por seis partes: realizar uma
completa classificação das ciências, apresentar os princípios de um novo método para
conduzir a razão na busca da verdade, a coleta de dados empíricos, construir uma série de
exemplos de aplicação do método, listar as generalizações para mostrar o avanço realizável
pelo novo método, finalmente expor a nova filosofia que seria organizada num completo
sistema de axiomas (Bacon. Vida e obra. 1988, pp. XI-XII). O plano não foi realizado, mas
dele se tem a parte segunda, com a apresentação dos princípios do novo método – e que
está exposta no Novum Organum; um esboço referente à divisão das ciências, publicado
como De Dignitate et Augmentis Scientiarum; e anotações para uma História Natural, a
terceira parte do plano (Idem, p. XII).
Para Bacon o conhecimento científico tinha por finalidade servir o homem e
dar-lhe poder sobre a natureza; isto é, deveria restabelecer o império do homem sobre as
coisas. Para ele, se impunha a busca de uma nova mentalidade científica, somente
alcançada através do expurgo de uma série de preconceitos, por Bacon chamados ídolos.
Foi no Novum Organum, que Bacon fez sua análise das falsas noções (ídolos), responsáveis
pelos erros da ciência. Penso que esse é o aspecto fundamental da filosofia de Bacon que
classificou os idolos em quatro grupos, como segue.
158
ídolos é sujeitar o espírito humano a múltiplas perturbações, como se decorressem do
acaso. (Idem, afor. 42, pp. 21-22).
Os Idola Fori (ídolos do foro, ou da vida pública) são aqueles que decorrem
das relações entre os homens, de sua associação e de suas relações. Como os homens são
vinculados entre si pela linguagem e “as palavras são cunhadas pelo vulgo”, podem levar a
fazermos dela um mau uso, bloqueando e desviando o intelecto e levando os homens “a
inúmeras e inúteis controvérsias e fantasias” (Idem, afor. 43, p. 22).
Os Idola Theatri (ídolos de teatro, ou da autoridade) são assim denominados
pela aparência com que são inventadas, como as fábulas e as peças teatrais. Esses ídolos
não se expressam apenas nos sistemas filosóficos, com isso expressando que careciam de
demonstração, sendo pura invenção como as peças de teatro, mas também nos princípios e
axiomas da ciência, quando resultam da credulidade, tradição e da negligência (Idem, afor.
44, p. 22; também Andery, 1999, pp. 193-199).
Após indicar os erros das ciências, Bacon adentrava na conformação da nova
mentalidade científica. Para ele, a razão fundamental da estagnação científica era a
utilização de métodos que bloqueavam seu desenvolvimento, pois não partiam dos sentidos
ou da experiência, mas da tradição, das idéias preconcebidas. O caminho para o avanço da
ciência, seria a realização de grande número de experiências, dessas seriam extraídos os
axiomas e, a partir deles, seriam realizados novos experimentos e assim sucessivamente.
Bacon denominou esse método de indução, nele também incluindo a verificação e a prova.
Era preciso promover um rompimento com a tradição filosófica anterior, assentado sobre a
metafísica, instaurando um método correto que possibilitasse o desenvolvimento do
conhecimento, o avanço da ciência:
159
160
73
Aponta Andery (1999, pp. 163 e ss) que na mesma época de Bacon, mas na Itália, o grande teórico da
revolução econômica e de sua expressão na ciência foi Galileu Galilei, que ressaltou a importância dos
princípios metodológicas defendidos por Copérnico, colocando ênfase no papel do experimento e do
160
4.5. René Descartes e o Racionalismo
Nessa mesma época, outra direção metodológica no que diz respeito ao
conhecimento, foi sistematizada por René Descartes (1596-1650) que tinha em perspectiva
a integração de todas as disciplinas científicas e filosóficas. Descartes propunha a
integração metodológica de todas as disciplinas do saber, pois a interpenetração dos
princípios racionais evidenciavam, para ele, a articulação das ciências entre si. Por isso
mesmo, pode ser considerado um dos primeiros filósofos a propor um saber enciclopédico,
articulando ao mesmo tempo ciência e filosofia. Sua própria formação ensejava esse
caminho. Formado em direito e estudioso da medicina, foi exímio militar e
reconhecidamente grande matemático, sugerindo a fusão da álgebra com a geometria (a
geometria analítica) e o sistema de coordenadas que até hoje é conhecida por seu nome -
cartesianas. A unificação de todos os conhecimentos humanos foi tomada como uma
“missão” por Descartes que entendia que a unificação deveria possibilitar a construção de
“um edifício plenamente iluminado pela verdade e, por isso mesmo, todo feito de certezas
racionais” (Descartes, 1987, Volume 1, Descartes, vida e obra, p. VII).
Diferentemente do empirismo de Bacon, em suas obras Discurso sobre o
método e Meditações, Descartes criou outro caminho, tendo por fundamento a razão. O
método cartesiano expressa uma perspectiva de ceticismo metodológico, pelo qual coloca
em dúvida cada idéia que pode ser duvidada. Opondo-se aos gregos antigos e aos
escolásticos, que pressupunham que as coisas existem simplesmente porque precisam
existir, Descartes institui a dúvida como princípio metódico.
A perspectiva de integração das disciplinas, na qual se coloca as bases de um
novo método, não era tomada como negação da possibilidade de classificação da filosofia,
expressa na maneira concreta como distribuiu os temas nos seus livros. É ilustrativa a esse
respeito suas considerações em Princípios de Filosofia (1644), obra na qual expôs os
princípios filosóficos conformadores da ciência, em que a palavra "princípios" foi usada no
sentido de iniciação a todos os temas filosóficos, incluindo os científicos. Além disso, a
raciocínio lógico. Galileu centrou importância no estudo dos fenômenos da natureza através de dados
quantitativos, com a geometrização da ciência do movimento. Ainda de acordo com Andery (1999, p. 177),
além de Bacon e Galileu Galilei, muito contribuiram na construção da nova visão de mundo instaurada nesse
161
162
[E] [...]dividi tal livro em quatro partes, sendo que a primeira contém os
princípios do conhecimento, que é o que se pode chamar de Primeira
Filosofia, ou então, Metafísica. Eis porque, para a sua boa compreensão,
convém ler antes as Meditações, que escrevi sobre o mesmo assunto.
As três outras partes abrangem o que há de mais geral na física, isto é, a
explicação das primeiras leis ou princípios da natureza, e a maneira pela
qual os céus, as estrelas fixas, os planetas, os cometas, e geralmente todo o
universo, estão compostos e ordenados.
Depois, em particular, a natureza desta terra, e do ar, da água, do fogo,
do ímã, e de todas as qualidades que se notam nesses corpos, como sejam,
a luz, o calor, a gravidade e outras semelhantes; por meio do que penso
haver começado a explicar por ordem toda a filosofia...
A fim de conduzir tal desígnio até o fim, eu deveria de imediato
explicar da mesma maneira a natureza de cada um dos outros corpos: os
minerais, as plantas, os animais, e principalmente o homem; depois, enfim,
tratar exatamente da medicina, da moral e das mecânicas. Era o que urgia
que eu fizesse para dar aos homens um corpo todo inteiro de filosofia"
(Descartes. “Prefácio” de Princípios da Filosofia)74.
período de transição, Descartes, Hobbes, Lock e Newton, este último promovendo uma revolução científica
calcada numa concepção mecânica do universo.
74
O texto desse Prefácio da edição em francês de Primeiros Princípios da Filosofia, encontrei em:
[http://www.mundodosfilosofos.com.br/descartes2.htm], acessado em 27 de outubro de 2008.
162
Nessa obra fica evidenciada a perspectiva com que Descartes concebia a
unidade do conhecimento que, embora voltado para as pesquisas científicas, sob as quais
pretendia fundamentar o novo método, os ramos que representavam as principais artes
estavam sustentados pelo tronco da física que, por sua vez, se sustentava em raízes
metafísicas. Num tempo de incertezas, era preciso justificar e ancorar a legitimidade da
ciência. E Descartes respondeu ao desafio da dúvida colocado pela atmosfera cética que
viveu, combatendo-o com suas próprias armas. Foi esse o sentido de metodicamente
duvidar de tudo: ampliar a dúvida ao máximo, questionando a existência da realidade, das
idéias inatas e até mesmo a própria existência do sujeito, ampliando a dúvida à sua máxima
dimensão, Descartes acabou concluindo que quando a dúvida é levada ao seu limite, desse
ponto passa-se a buscar sua própria superação. Em outras palavras, a ampliação da dúvida
permite extrair dela um núcleo de certeza: é indubitável que “se duvido, penso”, ou duvidar
de que duvido, é pressupor que só posso pensar a dúvida. Ancorado nesse primeiro elo de
uma cadeia de razões, nessa primeira certeza plena, pode-se lançar luz ao desconhecido,
chegando ao cogito ergo sum – “Penso, logo existo”. O raciocínio cartesiano foi, assim, de
demonstração racional: “Se duvido, penso”, do que decorre a conclusão de que “Penso,
logo existo”. (Descartes, 1987, Volume 1, Descartes, vida e obra, pp. XIII-XVI).
Do ponto de vista metodológico, o preceito apontado por Descartes no
Discurso do Método foi de só se considerar como verdadeiro o que fosse racionalmente
evidente, intuível com clareza e precisão. Esse preceito voltou a ser caracterizado de sua
exposição dos outros quatro preceitos, considerados complementares ou preparatórios da
evidência: o preceito da verdade, o da análise, o da síntese, o da enumeração, pelo qual se
deve realizar enumerações de modo a verificar que nada seja omitido. Segue o trecho do
Discurso do Método em que Descartes enunciou esses quatro preceitos metodológicos:
163
164
Esses preceitos deixam claro que para Descartes o método devia assegurar o
emprego adequado da razão, tendo em vista suas duas operações intelectuais fundamentais:
a intuição e a dedução. Na perspectiva cartesiana, as regras metodológicas estavam
calcadas na dúvida e num modelo matemático de raciocínio, meio pelo qual a razão chega
a certezas claras e distintas. A concepção cartesiana das operações intelectuais foram assim
explicitadas por Andery e outros:
164
concebê-la mais facilmente do que a figura menos simples ou mais com-
posta de um triângulo pintado daí decorre que, tendo visto esta figura
composta, não a tenhamos concebido ela própria, mas antes o verdadeiro
triângulo (...). Assim, certamente, não poderíamos jamais conhecer o
triângulo geométrico através daquele que vemos traçado sobre o papel, se
nosso espírito não recebesse a sua idéia de outra parte. (Descartes, 1988,
Objeções e Respostas, 543, p. 130)
165
166
75
Logos - em grego λόγος - inicialmente significava a palavra escrita ou falada, o Verbo. Gradativamente,
com seu uso pelos filósofos jônicos, passou a ter um significado mais amplo, passando a ser o termo usado
166
consideravam que era necessário examinar detidamente todas as noções e conhecimentos
humanos, visando verificar se poderiam (ou não) ser comprovadas através de rigorosos
experimentos empíricos. Depois de Bacon, os mais importantes empiristas foram: Hobbes
(1588-1679), Locke (1632-1704), Berkeley (1685-1753) e Hume (1711-1776).
Certamente que tratar a modernidade como uma divisão entre empiristas e
racionalistas é cair numa dicotomia incompleta e superficial, pois a oposição entre
racionalismo e empirismo, estava longe de ser absoluta. Filósofos empiristas como John
Locke e, com maior dose de ceticismo, David Hume, embora insistissem que o
conhecimento deve provir da "sensação", não negaram o papel da razão como organizadora
dos dados dos sentidos. Como que preparando o caminho, o racionalismo cartesiano e o
empirismo inglês desembocaram (no século XVIII) no Iluminismo. Com ele, tanto a razão
como a experiência, das quais resultam os conhecimentos científicos do mundo e da
sociedade, foram tomados como pressupostos pelos quais se passou a criticar todos os
valores do mundo medieval.
Esse processo de desenvolvimento da elaboração filosófica e científica,
reivindicativa do advento de um Siècle des Lumières, estava determinado por forças
revolucionárias nunca antes vistas pela humanidade. Ainda que a História tenda a marcar
essa “Era das Revoluções”, como denomina Hobsbawm (1986), por suas duas principais
manifestações - a Revolução Industrial e a Revolução Francesa - tratou-se de uma profunda
transformação de todos os aspectos, dimensões e estruturas da vida econômica, social,
política e ideológica. No dizer de Hobsbawm foi “a maior transformação da história
humana desde os tempos remotos quando o homem inventou a agricultura e a metalurgia, a
escrita, a cidade e o Estado” (1986, p. 17). Para o autor, essa grande revolução não foi o
mero triunfo da indústria, mas da indústria capitalista; não foi a vitória de uma idéia geral
e universal de liberdade, fraternidade e igualdade, mas a vitória da “sociedade burguesa
liberal”; não do Estado como organização política de defesa dos interesses do povo, para o
povo e pelo povo, mas do Estado como expressão dos interesses e do poder de uma classe,
a burguesia, em seu próprio benefício.
Mesmo quando tomada como dupla revolução, ocorridas numa parte da
Europa, foram revoluções que, no âmbito da economia e da política, tiveram notável
conseqüência para a história mundial, estabelecendo um domínio do globo por uns poucos
para razão, tanto no sentido de substância ou causa do mundo, como de divindade (Abbagnano, 1982, p.
167
168
regimes ocidentais, inicialmente pelo império britânico, e que não têm precedente na
história. No dizer de Hobsbawm
601-602).
168
classes únicas e exclusivas, mas foram as que se tornaram referência do novo regime
econômico e social.
Tratando-se de um processo, Hobsbawm opta por apontar dificuldades em
estabelecer marcos precisos, pois “a revolução industrial não foi um episódio com um
princípio e um fim” (Hobsbawm, 1986, p. 45). Na economia a Revolução levou “... à
criação de um ‘sistema fabril’ mecanizado que por sua vez produz em quantidades tão
grandes e a um custo tão rapidamente decrescente a ponto de não mais depender da
demanda existente, mas de criar o seu próprio mercado. (...)” (Idem, p. 48). Em seu
entendimento, para esse revolucionar da produção:
... duas coisas eram necessárias: primeiro, uma indústria que já oferecesse
recompensas excepcionais para o fabricante que pudesse expandir sua
produção rapidamente, se necessário através de inovações simples e
razoavelmente baratas, e, segundo, um mercado mundial amplamente
monopolizado por uma única nação. (Idem, p. 48-49).
169
170
170
embate entre as estruturas políticas conservadoras e os iluministas foi marcante, com seus
vários pensadores envolvidos na mais importante obra intelectual coletiva do iluminismo,
que foi a Encyclopédie, com destaque para Rousseau, e na principal obra social e política
do movimento que foi a Revolução Francesa.
A Enciclopédia foi organizada por D’Alembert e Diderot, contando com a
contribuição intelectual de Rousseau, Voltaire, Montesquieu, Holbach, Quesnay, Turgot,
Daubenton, Marmontel e o Abade Morellet, e muitos outros. Na Inglaterra, embora a
influência católica tenho sido afastada do poder político em 1688, com a Revolução
Gloriosa, o fato é que a Igreja da Inglaterra – a Anglicana - permaneceu muito próxima do
Catolicismo, em termos doutrinários e de organização interna. Como a Igreja Anglicana
não tinha o controle que a Igreja Católica Apostólica Romana exercia em outras
sociedades, foi no Reino Unido que intelectuais como John Locke e Edward Gibbon
tiveram a necessária liberdade de expressão para o desenvolvimento de suas idéias. Nas
colônias inglesas, berço do futuro Estados Unidos da América, apesar dos ideais
iluministas terem chegado por importação da metrópole, ai assumiram contornos religiosos
e politicos mais radicais, com forte influência sobre o pensamento e a prática política dos
chamados founding fathers (pais fundadores) dos Estados Unidos, como John Adams,
Samuel Adams, Benjamin Franklin, Thomas Jefferson, Alexander Hamilton e James
Madison. Na Escócia a produção de idéias iluministas apareceu associada com o
empirismo e o pragmatismo, com destaque para Adam Ferguson, David Hume, Francis
Hutcheson, Thomas Reid e Adam Smith. Na Alemãnha assumiu uma formatação articulada
à problemática religiosa, como pode-se verificar em Immanuel Kant, mas também em
outros expoentes do iluminismo alemão, como Johann Gottfried von Herder, Gotthold
Ephraim Lessing, Moses Mendelssohn. Em Portugal a principal figura representativa do
movimento iluminista foi Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, que
contrariando o legado histórico feudal da sociedade portuguesa, buscou, por todos os
meios, direcionar Portugal para um ciclo de desenvolvimento liberal, implementando
reformas econômicas e que levassem a uma remodelação social e cultural de todo o reino,
em conformidade com o modelo de sociedade inglesa. Embaixador em Londres durante 7
anos (1738-1745), Pombal ali teria apreendido os princípios básicos do liberalismo e do
iluminismo e que marcaram a sua orientação como primeiro ministro de Portugal. A
influência e a importância das reformas pombalinas têm sido adequadamente destacada
pela historiografia portuguesa e brasileira, registrando o movimento contraditório da
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76
Gilberto Luiz Alves realizou excelente estudo sobre a importância de José de Azeredo Coutinho, em O
pensamento burguês no Seminário de Olinda: 1800-1836 (Alves, 2001).
77
Não se pode esquecer que o termo “Enciclopédia” vem do grego e significa um sistema completo de
formação educativa, globalmente articulando as disciplinas ministradas em uma determinada época,
notadamente focando seus fundamentos. Além desses sentidos, também passou a significar o conjunto das
ciências nas suas relações de coordenação e subordinação, observada uma hierarquia determinada
(Abbagnano, 1982, p. 312).
78
Ao tratar do verbete “Enciclopédia” o dicionário de Abbagnano traz uma análise interessante. Entendida no
sentido de sistema das ciências ou dos conhecimentos, foi um tentativa que acompanhou toda a história da
filosofia. O primeiro projeto Enciclopédico foi de Platão, expresso nos quatro graus do conhecimento
estabelecidos no VII Livro da República: dois graus da opinião (conjetura, crença) aglutinam as artes e
ofícios das coisas sensíveis; dois graus racionais (no sentido de razão discursiva) pertencem a geometria, a
artitmética, a música e a astronomia; no quarto e último grau está a dialética, que é a ciência própria do
filósofo. Depois veio o projeto de Aristóteles que o implantava no conjunto de suas reflexões e que partia da
distinção entre necessário e possível. Nas ciências do necessário (que tem por objeto aquilo que não pode ser
diferente do que é) estão as ciências teoréticas, como a filosofia, a física e a matemática; as ciências práticas
(que tem por objeto o possível) estão a ética, a política e as disciplinas poiéticas (ou produtivas). O projeto
Enciclopédico de Estóicos e Epicuristas reduzia a três ciências fundamentais: a lógica, a física e a ética. A
Enciclopédia Escolástica assumia o sistema enciclopédico de Aristóteles, mas no qual a culminância era da
Teologia e à qual todas as demais ciências se subordinavam. No século XVII Francis Bacon propunha um
projeto de Enciclopédia fundado na tripartição entre ciências da memória, ciências da fantasia e ciências da
172
saíram os dois primeiros volumes, o conde d´Argenson (Arret du Conseil d'État du Roi)
expediu um despacho real, considerando a obra um perigo que além de destruir a
autoridade do monarca, visava estabelecer o espírito independente, a revolta, o erro, a
corrupção dos costumes, a irreligiosidade e a incredulidade. Era, enfim, uma ameaça à
ordem pública e à honra da religião, cabendo ao rei determinar sua imediata apreensão e
destruição. Sete anos depois, em nove de fevereiro de 1759, quando atingia o seu sétimo
volume, o Parlamento de Paris aprovou e determinou que eles fossem destruídos e
queimados pelo carrasco. O ato foi suspenso, mas expressava a apreensão que se tinha com
a publicação da Enciclopédia.
É vasto e abrangente o arco de questões abordadas na Enciclopédia, mas entre
estes merece destaque a ampla divulgação que deu a um conjunto de idéias profundamente
revolucionárias, notadamente a divulgação das noções fundamentais que se transformariam
nas grandes bandeiras da Revolução Francesa: Liberdade, Fraternidade e Igualdade
(Liberté, Egalité, Fraternité). Foram lemas constitutivos da filosofia iluminista, e estavam
presentes no pensamento de todos os pensadores enciclopedistas, compondo o ideário do
movimento revolucionário francês. A Revolução Francesa, como já observei
anteriormente, não foi um movimento isolado, mas inseriu-se no conjunto das revoluções
que questionavam todo o Ancien Régime. Apesar de carregar o adjetivo de "Francesa",
posto que eclodiu na França, foi um movimento que assolou toda a Europa e a América.
Como bem expressa Hobsbawm, “A Revolução Francesa pode não ter sido um fenômeno
isolado, mas foi muito mais fundamental do que os outros fenômenos contemporâneos e
suas conseqüências foram, portanto, mais profundas.” (Hobsbawm, 1986, p. 72). Levanta
três fatores para demonstrar que a Revolução Francesa pode não ter sido um fenômeno
único, mas que foi a mais fundamental e ampla de outras do período: 1º) ocorreu no mais
populoso e poderoso Estado Europeu (excetuando a Rússia); 2º) foi efetivamente uma
revolução social de massa, diferentemente das revoluções que a antecederam e sucederam,
tendo sido mais radical que qualquer delas; 3º) foi uma revolução ecumênica, tendo seus
razão. Foi essa a proposta aceita e adotada por D’Alembert. Mas o resultado ultrapassou o projeto inicial,
buscando se constituir numa síntese total de todas as ciências, cujo conjunto era entendido como Ciência
Positiva.
Na seqüência o verbete sintetiza a propositura de dois outros esforços enciclopédicos: o sistema positivista de
Comte e a dialética idealista de Hegel. No século XX houve o esforço de produção de uma Encyclopedia of
Unified Science, à qual se deciram filósofos e cientistas de orientação neopositivista e neoempirista.
(Abbagnano, 1982, pp. 312-314).
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174
174
Estado absolutista, enfim à transformação das idéias iluministas em ideologia que animava
as lutas populares (não necessariamente nesta ordem).
A principal conseqüência propriamente política da Revolução Francesa foi a
passagem do poder de Estado para a burguesia. Passando pelas várias de suas etapas
constitutivas, até a tomada de poder por Napoleão, a França levou a revolução burguesa a
muitos locais da Europa. Inicialmente recebidos como libertadores, não era necessário
longo tempo para que os franceses passassem a ser visto como dominadores e os
dominados percebessem que estavam sendo subordinados aos interesses da França:
... pagavam pesados impostos e viam seus filhos serem recrutados pelos
exércitos franceses. A guerra parecia essencial para a estabilidade do
regime napoleônico, mas essa guerra só podia ser empreendida pela
sistemática exploração dos territórios ‘libertados’ e havia sempre um
maior número de territórios que necessitava ser ‘libertado’ e explorado.
[...] (Andery, 1999, p. 277).
175
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mundo ocidental. Nos dizeres de Hobsbawm, “nunca na história da Europa e poucas vezes
em qualquer outro lugar, o revolucionarismo foi tão endêmico, tão geral, tão capaz de se
espalhar por propaganda deliberada como por contágio espontâneo” (Hobsbawm, 1986, p.
127). Num período de rápidas mudanças econômicas, sociais, políticas e culturais,
notadamente uma brutal transformação na estrutura e organização econômica e social, e
numa gradativa urbanização dos países que se industrializavam, os descontentamentos
foram se tornando agudos, criando o contexto para as erupções sociais e políticas que
passaram a ocorrer em todo o mundo ocidental. Para o autor de A Era das Revoluções,
havia no movimento de oposição três principais tendências, todas refletindo o
internacionalismo característico do período, e expressando os interesses e articulações de
classes e frações de classes:
176
esperaram a revolução européia, que veio – e fracassou – em 1848.
(Hobsbawm, 1986, p. 149).
Para a massa do povo comum... sua condição nas grandes cidades e nos
distritos fabris da Europa Ocidental e Central empurrava-os
inevitavelmente em direção a uma revolução social. Seu ódio aos ricos e
aos nobres daquele mundo amargo em que viviam, e seus sonhos com um
mundo novo e melhor deram a seu desespero um propósito...
Este era o “espectro do comunismo” que aterrorizava a Europa, o temor
do “proletariado”, que não só afetava os industriais de Lancashire ou do
norte da França, mas também os funcionários públicos da Alemanha rural,
os padres de Roma e os professores em todas as partes do mundo. [...]
(Hobsbawm, 1986, p. 329).
177
178
178
c) Quando aplicado à chamada área social, o Liberalismo sustenta a
tese de que é a iniciativa privada que deve prover, com
exclusividade, serviços e eventualmente bens na área da educação,
da saúde, do trabalho, da seguridade social, de infra-estrutura, do
meio ambiente, etc. O estado deve se abster não só de prover
serviços e bens nessas áreas como de regulamentar (através de
legislação e normatização) as atividades que nelas são exercidas
pela iniciativa privada. (Chaves, 2007, pp. 36-37)
179
180
180
... deixar de advertir que a distribuição crescentemente desigual das rendas
nacionais neste período (‘os ricos ficando mais ricos e os pobres mais
pobres’) não era um acidente, mas o produto das operações do sistema. Em
poucas palavras, podiam demonstrar não só que o capitalismo era injusto,
mas que parecia funcionar mal e, na medida em que funcionava, produzia
resultados opostos aos que tinham sido preditos por seus defensores.”
(Hobsbawm, 1986, p. 264)
181
182
gerais a que são submetidos (Andery, 1999, p. 286). Não esquecendo, porém, que a
principal expressão dessa perspectiva burguesa deu-se com a economia política liberal e
que era expressão dos interesses e da mentalidade dessa classe. Foram seus principais
representantes: Adam Smith (1723-1790), Jeremias Bentham (1748-1832) e David Ricardo
(1772-1823), teóricos dos interesses do capital e que colocaram a propriedade privada
como a mais sólida base da vida social (Beer, 2006, p. 356-357).
Do ponto de vista do proletariado, as grandes sínteses expressavam as três
posições que aglutinavam os movimentos e as lutas proletárias em seu embate com a
burguesia: socialistas, anarquistas e comunistas.
O moderno socialismo surgiu no final do século XVIII, com origem nos
movimentos sociais e políticos da classe trabalhadora, como crítica aos efeitos da
Revolução Industrial, notadamente à propriedade privada e à organização do Estado
burguês. Claude-Henri Saint-Simon é considerado o precursor do chamado socialismo
utópico, mas o termo somente foi consagrado por Robert Owen, em 1834, e também por
Pierre Leroux e Fourier. Não se trata de um movimento único, mas plural, e que se refere a
várias teorias de organização social, política e econômica e que defende a propriedade e a
administração coletiva dos meios de produção e de distribuição de bens e serviços, na
perspectiva de construir uma sociedade com igualdade de oportunidades e de meios para
todos os indivíduos.
Claude-Henri Saint-Simon (1760-1825), foi autor de várias obras que,
contraditoriamente, fundamentaram tanto o socialismo como o positivismo. Suas idéias
socialistas foram expressas no livro Cartas de um Habitante de Genebra a Seus
Contemporâneos (de 1802), dividindo a sociedade em três classes, liberais (os sábios,
artistas e intelectuais), os possuidores e os operários; formulando uma análise liberal,
acabou por defender uma religião baseada na ciência e a organização da sociedade
fundamentada no trabalho industrial planificado. Sua obra Introdução aos Trabalhos
Científicos do Século XIX (1807) é considerada como fundamento do positivismo e fonte
inspiradora de Comte. Robert Owen (1771-1858) foi quem, em 1834, usou pela primeira
vez a palavra socialismo, sendo considerado um dos idealizadores do socialismo utópico
no século XIX, propondo a organização da mão-de-obra em uma sociedade cooperativa79.
79 Disso decorreu a proposta de Owen de criação de associações nas cidades com até mil habitantes, para
ocupar os desempregados. Ele mesmo criou duas cooperativas desse tipo, uma no Reino Unido, em 1839, e
outra nos Estados Unidos (EUA), em 1825. Mas essas experiências fracassaram em poucos anos, em
182
Charles Fourier (1772-1837) foi, certamente, o principal crítico figadal do capitalismo de
sua época e um ferrenho adversário da industrialização, da civilização urbana, do
liberalismo e da moral cristã – principalmente do matrimônio e da monogamia. Sua teoria
estava baseada na livre busca das paixões individuais e de seu desenvolvimento (do
prazer), o qual levaria a um estado que chamava harmonia. Propôs a criação de falanges ou
falantérios, unidades de produção e consumo organizadas sob a forma de cooperativismo
integral e autosuficiente80. Pierre Leroux81 (Paris, 1797 - 1871) caracterizou o socialismo
como o ideal de uma sociedade reconciliadora dos imperativos de liberdade e igualdade.
Com base nessa opção criticou o individualismo absoluto, expressando seu desejo por um
socialismo republicano, no qual a liberdade tinha baliza numa igualdade de sentido social.
A obra de Leroux é enorme, tanto em termos de volume como de diversidade. Sua obra
mais notável foi, sem dúvida, a Nova Enciclopédia, em colaboração com Jean Reynaud,
considerado um verdadeiro monumento do pensamento socialista republicano do século
XIX, do mesmo modo que a Enciclopédia de Diderot foi para o pensamento burguês do
século XVIII.
O anarquismo (o termo deriva do grego αναρχια ‘anarchia’, e de αναρχος
anarchos 'não amo’), embora próximo do socialismo, englobou um conjunto das teorias,
métodos e ações que objetivam a eliminação de todas as formas de governo e de qualquer
tipo de ordem hierárquica (como o Estado), propondo o autogoverno de pessoas e
associações. Os princípios fundamentais do anarquismo são a autopropriedade de cada
indivíduo e a não coação. Embora todos os libertários estejam vinculados a um conjunto de
ideais considerados fundamentais, como a defesa de ampla liberdade, o antiautoritarismo, o
humanismo, a solidariedade e autogestionamento, como um movimento plural, cada uma
de suas vertentes acabou assumindo uma linha teórica de análise, de tática para a ação e de
estratégia para a edificação social, política e econômica. Como um movimento
caracteristicamente heterodoxo, os anarquistas acabaram não privilegiando nenhum escritor
decorrência das brigas entre os participantes. Seus principais livros foram: Nova Visão da Sociedade (1813-
1914) e Relato do Condado de Lanark (1821), sobre a experiência da cooperativa de empregados. (Beer,
2006, p. 433-438).
80
Fourier antecipou as propostas do socialismo libertário ao defender comunas de associação voluntária
como base de um novo sistema político, que deveria substituir o Estado burguês e o capitalismo. As idéias de
Fourier tiveram influência nas Revoluções de 1848, levando à fundação de diversas comunidades na América
do Norte e na América do Sul, inclusive no Brasil onde surgiram o Falanstério do Saí, em Santa Catarina, e a
Colônia Cecília, no Paraná; nos Estados Unidos foram fundadas as falanges A Utopia, em Ohio, La Réunion,
no Texas, e a Falange Norteamericana, em Nova Jersey (Beer, 2006, p. 410-416).
81
cf. http://fr.wikipedia.org/wiki/Pierre_Leroux
183
184
ou teórico, nem nenhuma obra. Os autores e suas obras foram (são) apenas considerados
como fontes de experiências delimitadas histórica e conjunturalmente, sendo passíveis de
adaptações e de interpretações pessoais.
Toda a posição do anarquismo é completamente diferente de qualquer outro
movimento socialista autoritário. Ela tolera variações e rejeita a idéia de gurus
políticos ou religiosos. Não existe um profeta fundador a quem todos devam
seguir. Os anarquistas respeitam seus mestres, mas não os reverenciam, e o que
distingue qualquer boa compilação que pretenda representar o pensamento
anarquista é a liberdade doutrinária com que os autores desenvolveram idéias
próprias de forma original e desinibida. (Woodcock, 1981, p. 54)
82 As informações sobre William Godwin foram obtidas em Beer (2006, p. 366-368) e na Wikipédia
[http://es.wikipedia.org/wiki/William_Godwin] (acessado em 28/9/2009); e no artigo “Pensamiento y
pedagogía en William Godwin (1756-1836)” [http://www.aldesoc.org/article95.html] (acessado em
28/09/2009).
184
determinismo, levando-o à idéia de que as ações malignas dos homens eram produzidas por
condições sociais corruptas herdadas; transformando-se tais condições, se poderia acabar
com a maldade no homem. Os principais obstáculos à criação de uma ordem social justa
eram a propriedade privada e o Estado, notadamente o primeiro, pois “o reinado da
propriedade privada fez do egoísmo a força motriz principal da atividade humana... [da
qual] resultam os vícios, a imoralidade, a ignorância, os assassínios e as guerras, o ódio
entre os homens e entre os povos” (Beer, 2006, p. 267-368). Apesar desse posicionamento,
Godwin reconhecia a necessidade de governo no curto prazo, mas tinha a esperança de que
chegaria o dia em o mesmo seria desnecessário; considerava a democracia como a mais
eficiente forma de governo, já que permitiria que todos expressassem sua opinião, em vez
de centralizar o poder em uma figura que deveria equivocar-se. Entretanto, era preciso
evitar que as decisões da maioria pusessem em perigo a liberdade da minoria.
Pierre-Joseph Proudhon83 (1809-1865), de origem humilde, recebeu boa
instrução e iníciou a trabalhar aos 20 anos como aprendiz numa tipografia, o que lhe
permitiu contato com as mais importantes tendências filosóficas e políticas dessa época.
Após concluir seus estudos superiores, em 1838 na faculdade de Besançon, foi para Paris
onde publicou O que é propriedade?, em 1840, na qual se encontra sua mais famosa frase
“a propriedade é um roubo”. Também nessa obra se afirmou anarquista, sustentando que a
exploração da força de trabalho era um roubo e que cada pessoa deveria comandar os
meios de produção que utilizasse. Em Paris, conheceu Karl Marx e outros revolucionários.
Proudhon e Marx conheceram-se no inverno de 1844-45 e conversaram muito sobre os
problemas sociais e filosóficos. Em 1846 publicou uma obra em 2 volumes, Sistemas de
contradições econômicas ou filosofia da miséria, criticando o autoritarismo comunista e
defendendo um estado descentralizado. Marx leu a obra e não gostou. Em 1847 publicou
sua Miséria da filosofia, marcando o rompimento de relações entre ambos84. Proudhon
participou da Revolução de 1848, em Paris, sendo eleito deputado à Assembléia Nacional,
ao proclamar-se a Segunda República. Com a derrota da Revolução, ficou preso até 1852,
83
As informações sobre Pierre-Joseph Proudhon foram obtidas em Beer (2006, p. 468-469) e na Wikipédia
[http://es.wikipedia.org/wiki/Pierre-Joseph_Proudhon] (acessado em 28/9/2009).
84
As cordiais relações entre Proudhon e Marx não duraram muito, apesar da solicitação em carta do “pai do
socialismo francês” (Proudhon) ao “pai do socialismo alemão” (Marx): "depois de ter demolido todos os
dogmas a priori, não caiamos, por nossa vez, na contradição de seu conpatriota Lutero; não pensemos
também em doutrinar o povo; mantenhamos uma boa e leal polêmica. Demos ao mundo o exemplo de uma
sabia e prevista tolerância, porém, na medida em que estamos na cabeça do movimento, não nos
185
186
por suas críticas a Napoleão III. Em 1851 escreveu Idéia geral de revolução no século XIX,
onde registrou sua defesa em prol da construção de uma sociedade federalista de âmbito
mundial, sem um governo central, mas baseada em comunas autogeridas. Em 1864 voltou
a Paris e publicou Do princípio federativo, fazendo uma síntese de suas concepções
políticas.
O russo Mikhail Aleksandrovitch Bakunin (1814-1876) foi um dos principais
teóricos e militantes do anarquismo do século XIX. Sua sólida contribuição teórica e toda
uma vida dedicada à militância política revolucionária colocam seu nome entre os grandes
anarquistas do século XIX. Bakunin rejeitou peremptoriamente todas as formas de
governo, fosse qual fosse o seu formato; questionou qualquer tipo de governabilidade, quer
fosse baseada na escolha divina, ou em alguma forma de autoridade externa, a vontade de
um soberano, ou de elites – mesmo quem possa ser favorecida pela implementação do
sufrágio universal. Em Deus e o Estado, publicado postumamente em 1882, ele escreveu
que a liberdade do homem consistia em obedecer às leis da natureza, reconhecidas por ele
mesmo como tais e não porque foram impostas externamente, por alguma vontade divina
ou humana, individual ou coletiva (Bakunin, 1882). Nessa mesma obra, rejeitou a
existência de qualquer tipo de privilégio, inclusive de classes privilegiadas, pois qualquer
posição privilegiada acabava por matar o intelecto e o coração do homem; um homem
privilegiado é um homem intelectual e afetivamente depravado (Idem, ibidem).
Teoricamente Bakunin baseava-se em uma série de conceitos inter-relacionados,
notadamente: liberdade; socialismo ou anarquismo coletivista; federalismo; anti-teismo; e
materialismo. O conceito de "liberdade" em Bakunin, por oposição ao conceito formal e
ideal, refere-se a uma realidade concreta baseada na liberdade simétrica de outros e que
consiste no "desenvolvimento pleno de todas as faculdades e poderes de cada ser humano,
pela educação, pelo treinamento científico, e pela prosperidade material"; trata-se de uma
liberdade "eminentemente social, porque só pode ser concretizada em sociedade", não em
isolamento; em sentido negativo, é "a revolta do indivíduo contra todo tipo de autoridade,
divina, coletiva ou individual." (apud Wikipédia85). O socialismo concebido por Bakunin
foi um "anarquismo coletivista", para expressar uma situação em que os próprios
trabalhadores poderiam administrar diretamente os meios de produção através de
transformemos em chefes da intolerância, não nos situemos como apóstolos de uma nova religião, ainda que
esta seja a religião da lógica” (Proudhon apud http://es.wikipedia.org/wiki/Pierre-Joseph_Proudhon ).
85
http://pt.wikipedia.org/wiki/Mikhail_Aleksandrovitch_Bakunin, acessado em 29 de setembro de 2009.
186
associações produtivas. Nessa condição, haveriam "modos igualitários de subsistência,
fomento, educação e oportunidade para cada criança, menino ou menina, até a maturidade,
e recursos e infraestrutura análoga na idade adulta para dar forma ao seu próprio bem estar
através do próprio trabalho” (Idem, ibidem). Sua concepção de anarquismo confluía para a
de “Federalismo”, como forma de organização de toda a sociedade, "da base até o topo”,
baseado "na liberdade absoluta dos indivíduos, das associações produtivas, e das
comunas", no "direito absoluto da autodeterminação, de se associar ou não, aliar-se com
quer que desejassem" (Idem, ibidem). O anti-teísmo estava baseado na idéia de que a
crença em Deus implicava na abdicação da razão humana; para expressar essa sua
perspectiva, Bakunin invertia o famoso aforismo de Voltaire de que se Deus não existisse,
seria necessário inventá-lo, afirmando que "se Deus realmente existisse, seria necessário
abolí-lo" (Bakunin, 1882). Ao refutar a idéia religiosa de livre-arbítrio, Bakunin defendia
uma explicação material dos fenômenos naturais, defendendo que a "missão da ciência é,
por observação das relações gerais compreender os fatos verídicos, e estabelecer as leis
gerais inerentes ao desenvolvimento de um fenômeno no mundo físico e social" (Idem,
ibidem).
Capítulo à parte foi a disputa entre Mikhail Bakunin e Karl Marx, através da
qual ficaram realçadas as diferenças entre o anarquismo e o marxismo. Ele também rejeitou
fortemente o conceito marxista de "ditadura do proletariado", que os seguidores de Marx na
atualidade, traduzem em termos modernos por "democracia dos trabalhadores", mas que
mantém o poder concentrado no estado até a futura transição ao comunismo. Bakunin era
contrário à ditadura revolucionária, insistindo que revoluções deveriam ser lideradas pelo
povo diretamente enquanto qualquer "elite iluminada" só deveria exercer influência
discreta, jamais se impondo na forma de uma ditadura a outrem, e nunca se aproveitando
de quaisquer direitos oficiais, em termos de benefício ou significância. Bakunin defendia
que o estado deveria ser imediatamente abolido porque todas as formas de governo
eventualmente levariam à opressão.
Enquanto os anarquistas, os socialistas e os comunistas compartilhavam o
mesmo objetivo final, a criação de uma sociedade livre e igualitária, sem classes sociais
ou Estado, eles discordam da tática para se alcançar tal objetivo. Para Bakunin nem todas
as revoluções precisavam necessariamente ser violentas. Os anarquistas acreditam que uma
sociedade sem classes ou estado deveria ser estabelecida através da ação direta das massas
em organizações e espaços não-hierárquicos, culminando na revolução social, refutando
187
188
86
A Liga dos Proscritos foi uma organização aglutinadora dos refugiados políticos alemães, e de outras
nacionalidades, organizada na França, no começo de 1834, e que publicava um jornalzinho – O Proscrito –
divulgando suas idéias. Como outras ligas e organizações clandestinas, possuía uma ala direta – democrata e
nacionalista – e outras esquerda – revolucionária e internacionalista (Beer, 2006, p. 487-488).
87
A Liga dos Justos surgiu em 1836 da cisão promovida pelos revolucionários proscritos, sob a direção de
Schuster (Beer, 2006, p. 488-492).
188
de Schuster, foi chefiada pelo artesão Carlos Weitling, contando com a colaboração do
ativista político Schapper e outros dirigentes, como o sapateiro Henrique Bauer, o
relojoeiro José Moll, o escritor dr. Hermann Everberck, o professor dr. Germann Maurer
(Beer, 2006, p. 488-489).
A Liga mantinha relações com organizações congêneres em vários países
europeus, tendo estreitas relações com a "Sociedade das Estações" francesa, organização
secreta dirigida por Augusto Blanqui, líder revolucionário republicano e socialista. Quando
os blanquistas organizaram um levante em 1839, os membros da Liga se uniram a eles. A
revolta foi sufocada e parte dos dirigentes foi aprisionada e outra teve que fugir para a
Inglaterra e Suíça. Em Londres os principais dirigentes da Liga dos Justos, em 7 de
fevereiro de 1840, fundaram a Associação Cultural dos Operários Alemães, rapidamente
transformado em centro de agitação comunista dos trabalhadores alemães imigrados para a
Inglaterra e, depois, num centro de articulação dos operários e artesãos refugiados em
Londres, mantendo ativa correspondência com membros da Liga em Paris, Bruxelas, Suíça
e Alemanha. O principal líder da ala esquerda da Liga era Wilhelm Weitling, alfaiate
alemão que, em 1842, publicou Garantias da harmonia e da liberdade, no qual pregava a
iminente chegada ao comunismo e, contra os reformistas, defendia a conquista política pela
luta sem tréguas entre os oprimidos e os opressores. Para Weitling o elemento mais
revolucionário da sociedade capitalista era o lumpen-proletariado, "as classes marginais", a
partir do que apresentou para a direção da Liga um plano detalhado de revolução social:
formação de um exército com alguns milhares de miseráveis (20 a 40 mil), deflagração de
uma guerra de guerrilhas contra a ordem existente, até a tomada do poder.
Foi em Londres, em 1842, que o jovem Engels, então com vinte e três anos,
entrou em contato com a Liga dos Justos, ficando impressionado com o movimento,
registrando, posteriormente, que estes "Eram os primeiros revolucionários proletários que
via" e que "ao se transferir para Londres, deixa de ser alemã e passa a ser internacional".
Esse registro foi feito por Engels no final de sua vida, quando se deu conta que essa
história da organização revolucionária poderia não passar para a história, motivo que o
levou à registrar algumas notas sobre ela.
Em 1844 Engels conheceu Marx, quando este ainda residia em Paris, ocasião
que Engels lhe expôs as bases de sua pesquisa e que resultaria em sua obra A situação da
classe trabalhadora na Inglaterra. A partir de então os dois jovens, Marx estava então com
vinte e seis anos e Engels com vinte e quatro, iniciaram a colaboração que durou até o final
189
190
de suas vidas, como já apontado neste trabalho. Marx havia então chegado às conclusões
apresentadas em seus artigos publicados n’Os anais franco-alemães, uma época em que já
explicitava a necessidade da prática revolucionária. Em decorrência das atividades de Marx
na imprensa francesa, ele foi expulso desse país, passando em 1845 a residir em Bruxelas.
Foi nessa estada na Bélgica que Engels foi encontrá-lo, tendo Marx lhe exposto, em termos
históricos, políticos e filosóficos as bases para uma teoria materialista da história, ocasião
em que passaram a pensar nas alternativas para uma divulgação da nova concepção, bem
como para sua operacionalização pelo movimento revolucionário. Marx só entrou em
contato com a Liga em meados de 1845, quando viajou para Londres para estudar os
economistas ingleses e estabelecer contato com o movimento operário que se desenvolvia
rapidamente, estreitando as relações entre a ala esquerda do cartismo e a Liga dos Justos.
Esse contato aguçou em Marx e Engels idéia de criação de uma organização
revolucionária de caráter internacional.
Em 1846 a direção da Liga dos Justos lançou a convocação de um congresso
internacional para maio de 1847, sendo que um dos objetivos era a elaboração de um novo
programa político, mais adequado aos recentes desenvolvimentos do movimento proletário
internacional. A elaboração teórica e estratégica desse novo programa ficou sob a
responsabilidade de Marx e Engels, por recomendação do primeiro congresso. Ao mesmo
tempo em que estreitavam as relações com a Liga dos Justos, entre 1844 a 1847, Marx e
Engels escreveram importantes obras, como Os anais franco-alemães, os Manuscritos
filosóficos, somente publicado no século XX, A situação da classe trabalhadora na
Inglaterra, A sagrada família, A ideologia alemã e A miséria da filosofia.
Concomitantemente Marx e Engels empenhavam-se na formação dos Comitês de
Correspondência Comunista, cujos principais membros eram da Liga dos Justos e do
movimento cartista e, para eles, o embrião de um partido operário-revolucionário
internacional.
Em 2 de junho de 1847 começou o que seria o último congresso da Liga dos
Justos e o primeiro da Liga dos Comunistas. Engels representou o comitê parisiense, mas
Marx não pôde comparecer a esse primeiro encontro internacional. Engels apresentou um
texto didático, com o título de Princípios do comunismo, para discussão com os
congressistas, formulando através de perguntas e respostas as idéias principais do
movimento comunista. Engels também propôs um estatuto para a Liga e que era assentado
190
na mais ampla democracia interna, tendo o Congresso como o órgão supremo da nova
organização e um Comitê Central, como poder executivo, para o período entre congressos.
Um II Congresso foi marcado para os meses de novembro-dezembro desse
mesmo ano de 1847, em Londres. A ele compareceu Marx e Engels, tendo Marx
centralizado as discussões. Nesse Congresso foi aprovado o Estatuto e, também, a sua
divisa: "Proletários de todos os países, uni-vos!", transformada em uma bandeira de luta
social e política desde então. Esse II Congresso aprovou, ainda, uma mudança no nome da
liga que passou a denominar-se Liga dos Comunistas. Marx e Engels foram encarregados
de escrever um manifesto, para a divulgação dos princípios e das tarefas estratégicas da
Liga. A partir dos Princípios Comunistas, elaborado por Engels, Marx redigiu com a
colaboração de Engels, em dezembro de 1847, a obra que passou a ser conhecida como o
Manifesto Comunista, publicado em janeiro de 1848. Estavam, pois, dadas as bases
metodológicas, teóricas e políticas da concepção materialista da história que tem na
prática revolucionária seu principal fundamento.
Essa incursão foi longa, mas necessária para afirmar que, passados séculos da
elaboração do conhecimento que reflete sobre a realidade e sobre o próprio conhecimento,
é impressionante o quanto o desenvolvimento da Filosofia e da Ciência acabaram por dotar
de vigorosa atualidade a diferenciação, distribuição e classificação dos conhecimentos,
primeiro por Aristóteles e depois pela filosofia clássica. Não para servir ao mero esforço
ideológico de classificar para dividir o conhecimento da realidade, considerada a partir do
princípio de identidade, mas para melhor entender as bases ou fundamento de toda e
qualquer concepção, na busca por apreensão da totalidade histórico-social como uma
totalidade teórica, articuladora de relações, profundamente contraditória. Em síntese, as
aceleradas transformações da produção de uma indústria em franco progresso exigiam e, ao
mesmo tempo, possibilitavam o desenvolvimento da ciência e sua apropriação pela
indústria, como força produtiva, como tecnologia.
191
192
192
programa está agora envelhecido em alguns pontos. (...) (MARX, K. e F.
Engels. Obras Escolhidas - Volume 1, p. 15).
Isso significa dizer que Marx e Engels não concordariam com o jogo de
manter, a qualquer custo, uma fidelidade ou uma servidão dogmática às suas idéias. Com
isso, quero registrar minha concordância com os que admitem a existência de um processo
de desenvolvimento e de contribuições expressivas na construção de uma concepção
materialista, dialética e histórica. A admissibilidade de contribuições ao fazer científico de
Marx e Engels não significa, porém, aceitar e reconhecer como válidas, enquanto
concepção materialista e dialética da história, os desvios e as tentativas de revisão
desenvolvidas (e ainda em desenvolvimento). Meu entendimento quanto aos desvios e/ou
revisões é que esses desembocam, em geral, na construção de referenciais que, mesmo
pretendendo guardar uma relação de proximidade com o marxismo, mas dadas suas bases
ontológicas e epistemológicas, possuem (ou deveriam possuir) existência própria.
Tomando a perspectiva marxiana como base para minhas reflexões, penso que
um importante ensinamento foi expresso por Marx em suas Teses sobre Feuerbach, ao
fazer na primeira tese uma crítica demolidora tanto do materialismo como do idealismo,
nos seguintes termos:
193
194
194
Assim como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da natureza
orgânica, Marx descobriu a lei do desenvolvimento da história humana:
um fato tão simples, mas escondido debaixo do lixo ideológico, de que o
homem necessita, em primeiro lugar, comer, beber, ter um teto e vestir-se
antes de poder fazer política, ciência, arte, religião, etc.; que, então, a
produção dos meios imediatos de vida, materiais e, por conseguinte, a
correspondente fase de desenvolvimento econômico de um povo ou de
uma época é a base a partir da qual tem se desenvolvido as instituições
políticas, as concepções jurídicas, as idéias artísticas e, até mesmo, as
idéias religiosas dos homens e de acordo com a qual, então, devem ser
explicadas, e não ao contrário, como até então se vinha fazendo. Mas, não
é só isto. Marx descobriu também a lei específica que move o atual modo
de produção capitalista e a sociedade burguesa criada por ele. A
descoberta da mais-valia, imediatamente, clareou estes problemas,
enquanto todas as investigações prévias, tanto dos economistas burgueses
quanto dos socialistas críticos, haviam vagado na escuridão. (Engels.
Discurso diante da sepultura de Marx, p. 351)
195
196
conhecimento não é resultado de uma pura abstração, de uma teoria que se esgota em si
mesma, mas da práxis humana, na qual a ação e a reflexão, histórica e dialeticamente
entendidas: a vida como uma totalidade concreta; como uma multiplicidade contraditória,
ao mesmo tempo, histórica, natural e social.
196
ontológico quanto do gnosiológico; isto é, a matéria é considerada básica tanto como
princípio explicativo do mundo, quanto como ponto de partida para o conhecimento que se
constrói sobre ele. A explicitação desse princípio (no caso de Marx e Engels, materialista)
foi considerado, portanto, o principal fundamento filosófico que permite entender as
diferenças epistemológicas entre as diferentes concepções, e que foi assim expresso por
Engels em Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã:
197
198
Mais à frente esse texto Engels explicita que a história da sociedade humana
difere substantivamente do desenvolvimento da natureza: na natureza atuam forças
inconscientes e, no desenvolvimento social, os homens agem conscientemente. Apesar
dessa diferença e mesmo sendo os homens dotados de consciência, a história dos homens
só aparentemente é regida pelo acaso, pois de fato leis imanentes a regem. O texto que
segue é lapidar para respaldar essa afirmação:
198
pressupunham a materialidade histórico-social, concebida como totalidade contraditória de
relações que, necessariamente, explicitavam as condições materiais de existência dos
homens.
Entendo que essa categoria de análise foi necessária para viabilizar a Marx e
Engels a travessia filosófica do idealismo hegeliano e do materialismo fuerbachiano, para
uma nova e revolucionária concepção. Era necessário superar criticamente as grandes
concepções que articulavam a filosofia alemã e, mais especificamente, daquelas que
alimentavam teoricamente o grupo político-ideológico em que estavam inseridos – isto é, a
esquerda hegeliana. Para empreender essa travessia seguiram o caminho contrário ao da
filosofia alemã: como esta descia do céu para a terra, era necessário partir da terra para
alcançar o céu. Criticando duramente o idealismo hegeliano, afirmaram a determinação
material da realidade.
No que diz respeito à história dos homens, não se deveria partir da primazia da
idéia, ou das idéias e pensamentos existentes no(s) homem(ns), mas era necessário partir
dos indivíduos vivos e reais, de sua ação e das condições para sua existência. A partir
disso, proclamaram que suas premissas eram “os indivíduos reais, a sua acção e as suas
condições materiais de existência, quer se trate daquelas que encontrou já elaboradas
quando do seu aparecimento quer das que ele próprio criou” (Marx e Engels, A Ideologia
Alemã, p. 18). É exatamente neste ponto que está a diferença fundamental dos pais do
marxismo em relação à filosofia alemã, quer seja inspirada em Hegel ou em Feuerbach: “A
crítica alemã nunca ultrapassou, mesmo nos seus últimos esforços, o terreno da filosofia”
(Idem, p.15). [...]. “Nenhum destes filósofos se lembrou de perguntar qual seria a relação
entre a filosofia alemã e a realidade alemã, a relação entre a sua crítica e o seu próprio meio
natural” (Idem, p. 17).
N’A Ideologia Alemã Marx e Engels, tomando como ponto de partida a crítica
à filosófica hegeliana, tanto em sua perspectiva idealista e que decorria da obra de Hegel,
quanto na abordagem materialista, por eles criticada por se tratar de um materialismo
fenomênico, de um materialismo que se circunscrevia à mera aparência das coisas, de
forma a-histórica, era preciso desvelar a própria ideologização promovida por esses
ideólogos, como expressa o próprio título da obra – Ideologia Alemã. Foram ao mesmo
tempo ácidos e satíricos nas críticas, expressando como concebiam a produção filosófica
199
200
que estavam a criticar e que, para eles, não passava de ideologia e seus elaboradores não
passavam de ideólogos. É, pois, uma crítica que, a um só tempo, abrange o leque de
abordagens que se colocavam ao grupo intelectual e político em que se situavam, do
idealismo hegeliano ao materialismo feuerbachiano, do anarquismo ao socialismo utópico.
Criticaram principalmente a estreiteza da visão idealista e fenomênica do homem,
eternizadora da realidade existente, e que não permitia a visualização do processo de
transformação e a historicidade da própria realidade.
200
Era preciso, metodologicamente, superar as visões distorcidas construídas
sobre o mundo e sobre os homens, como explicitam n’A ideologia alemã. É isso o que
expressam no texto abaixo:
Libertemo-los, portanto das quimeras, das idéias, dos dogmas, dos seres
imaginários cujo jugo os faz degenerar. Revoltemo-nos contra o império
dessas idéias. Ensinemos os homens a substituir essas ilusões por
pensamentos que correspondam à essência do homem, afirma um; a ter
perante elas uma atitude crítica, afirma outro; a tirá-las da cabeça, diz uma
terceira – e a realidade existente desaparecerá (Idem, p.17).
O que eles nos esclarecem é que é preciso desvelar as relações reais, as relações
materialmente construídas pelos próprios homens. É, pois, uma crítica a estreiteza da visão
201
202
tanto idealista quanto fenomênica do homem que, por suas próprias características, não
visualizam o processo de transformação, a historicidade da própria realidade humana. O
que Marx e Engels buscaram foi um fio condutor que possibilitasse o entendimento das
condições materiais de existência social dos homens, como já enfatizado anteriormente.
N’A Ideologia Alemã Marx e Engels lançaram com precisão as categorias para
o entendimento das relações implicadas na produção: são as forças produtivas que
202
determinam, em última instância, as relações sociais de produção, bem como todas as
demais relações, inclusive as formas de intercâmbio. E afirmam que num certo grau de
desenvolvimento, as forças produtivas entram em contradição com as formas de
intercâmbio existentes. Esta contradição resolve-se pela revolução social em que a antiga
forma de intercâmbio se apresentava e que se tornava um entrave; no lugar dessas, sucede-
se uma nova, correspondente a forças produtivas mais desenvolvidas. E assim,
sucessivamente, no decorrer de todo o desenvolvimento histórico, se estabelece a ligação
entre os seus sucessivos graus de desenvolvimento, condicionada por uma forma de
sociedade para outra e, para compreender as leis do desenvolvimento da sociedade, esta
descoberta é essencial. Tal descoberta do mecanismo interno de desenvolvimento da base
material da vida, aponta de forma bem específica para a dependência entre os principais
aspectos da vida social: as forças produtivas e as relações de produção, o conjunto das
relações de produção e a superestrutura política, as formas da consciência social, etc.. Isto
significa reconhecer que as revoluções sociais, que resolvem as contradições entre as forças
produtivas e as relações de produção, são as encruzilhadas da história, que em
determinadas épocas representam a passagem de uma sociedade para outra, de uma
formação social para outra. Eles esclarecem, portanto, o que e quais são as fases essenciais
do desenvolvimento histórico da produção, com base no desenvolvimento das forças
produtivas, cuja expressão externa do nível de desenvolvimento dessas forças se
desenvolve os graus de divisão do trabalho.
88
O comunismo, segundo Marx e Engels (1999, p. 110) ¨distingue-se de todos os movimentos anteriores pelo
fato de que subverte os fundamentos de todas as relações de produção e de intercâmbio anteriores, e que
aborda pela primeira vez conscientemente todos os pressupostos naturais como criação dos homens que nos
precederam, despojando-os de seu caráter natural e submetendo-os ao poder dos indivíduos unidos. Sua
instituição é, portanto, essencialmente econômica, a produção material das condições dessa união; faz das
condições existentes condições da união¨.
203
204
89
Orientados pela fé das possibilidades da razão e da ciência, Marx e Engels dedicaram todas as suas
energias a colocar-se a serviço da classe na qual reconheciam as perspectivas da revolução do modo
capitalista de produção e de suas mazelas: a classe operária, a classe com cadeias radicais, as cadeias da
eterna escravidão ao trabalho e à produção dos gêneros essenciais para a satisfação das necessidades de
todos, apropriados privadamente pela classe dominante. Portanto, classes com interesses antagônicos e
contraditórios, movendo a história.
204
um modo de produção para outro, quer de um regime social para outro. Trata-se de uma
categoria que explicita o processo contraditório geral da sociedade, nos quais as velhas
formas de organização e de representação, com suas instituições e ideologizações, entram
em contradição com as idéias, instituições e relações que expressam o desenvolvimento das
forças produtivas e o engendramento de novas relações e representações. Essas
contradições se expressam, no plano social e político, pelo confronto entre as classes
dominantes e as dominadas dentro da velha ordem, e destas com as novas classes sociais
que vão surgindo, acompanhando o revolucionar das forças produtivas e as transformações
que provocam nas relações e organização da produção social da existência social dos
homens (Bottomore, 1988, p. 324).
A categoria revolução explicita o processo pelo qual se dá a síntese dos
conflitos entre as forças produtivas que se desenvolveram e as relações de produção
obsoletas e que impediam o pleno desenvolvimento econômico, social e político,
adequando as relações sociais às forças produtivas. Trata-se, portanto, da apreensão
abstrata da transformação qualitativa radical em toda a estrutura socioeconômica da
sociedade. É esse o entendimento teórico de Marx e Engels quanto ao processo histórico e
no qual adquire relevo as transformações dos modos de produção. Embora entendessem
que essa teoria fosse suficiente para explicar o conjunto da história humana, como
registraram em vários escritos, a análise tinha por objetivo principal explicar teoricamente
a passagem do feudalismo ao capitalismo e, enfim, a inevitável transformação do
capitalismo para um novo modo de produção. Essa visão pode ser encontrada tanto na
primeira parte do Manifesto do Partido Comunista, quanto nos capítulos de O Capital nos
quais Marx analisou as transformações históricas do modo capitalista de produção, da
cooperação à maquinaria e a indústria moderna, por exemplo. Só para caracterizar essa
elaboração teórica, veja-se o seguinte trecho do Prefácio à Contribuição à Crítica da
Economia Política:
205
206
206
engloba numerosos movimentos sociais e políticos e que contribuem objetivamente para a
destruição do velho regime e a preparação de condições propícias para o estabelecimento
do novo regime. Na revolução social a luta de classes expressa as contradições existentes
na formação social, com períodos de ofensiva e de avanço da luta e outros períodos de
restauração parcial e de compromissos políticos das velhas classes dominantes. Abre-se
uma era de revolução social em que as contradições e lutas sociais manifestam-se nas
formações sociais da velha ordem econômica, social e política praticamente esgotada, mas
onde a nova formação socioeconômica ainda não se estabeleceu definitivamente nos
principais países que hegemonizam o processo histórico mundial.
Um sentido ainda mais restrito do conceito, em certo sentido o mais difundido,
é o da revolução social como a viragem política que leva à substituição de uma classe ou
fração de classe por outra, conduzindo enfim uma classe (fração de classe ou algum
agrupamento social) à tomada do poder. Em Marx e Engels o uso do conceito de revolução
para as análises de situações mais restritas não contradizem a definição mais ampla, mas
são consideradas como parte dela, como componentes do processo revolucionário mais
geral. Em outras palavras, os clássicos do marxismo trataram as revoluções sociais de
diversos países – França, Inglaterra, Alemanha, etc. – como desdobramentos ou
manifestações de um processo histórico mundial único.
Poderia ficar arrolando uma grande quantidade de citações e reflexões da vasta
obra de Marx e Engels para explicitar o entendimento que tinham da revolução e dessa
articulação da revolução enquanto movimento geral de transformação histórica dos modos
de produção, daquelas mais conjunturais e que expressavam as contradições de momentos
determinados ou da realização das contradições numa determinada formação social.
Particularmente considero elucidativa a “introdução” de Engels à reedição de “As lutas de
classes na França de 1848 a 1850”, datado de 06 de março de 1895, onde Engels registra
que o trabalho de Marx “foi o primeiro ensaio... para explicar um fragmento de história
existente” (Engels. Introdução – As lutas de classes na França de 1848 a 1850, p. 93).
Anteriormente no Manifesto Comunista haviam aplicado essa concepção “para fazer um
amplo esquema de toda a história moderna” e que em vários outros artigos, publicados por
Marx e também por Engels, buscaram “explicar acontecimentos políticos contemporâneos”
(Idem, ibidem).
Refletindo sobre o vasto conjunto de escritos produzidos sobre os processos
revolucionários, Engels enfatiza que o movimento revolucionário europeu irradiado da
207
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França, desde 1789, sinalizava para o avanço da subversão geral: 1830, 1848 e, depois, em
1870-1871, de Paris irradiando-se para Viena, Milão e Berlim. Parecia-lhes que “toda a
Europa até a fronteira russa foi arrastada no movimento” e que “começara o grande
combate decisivo, de que era necessário travá-lo em um só período revolucionário longo e
cheio de alternativas, mas que só podia terminar pela vitória definitiva do proletariado”
(Engels. Introdução – As lutas de classes na França de 1848 a 1850, p. 96). A rigorosa
crítica, à luz da história, se transforma em severa autocrítica ao erro de avaliação que
cometeram com relação à revolução:
Mas a história também nos desmentiu revelando que era uma ilusão
nosso ponto de vista daquela época. Ela ainda foi mais longe: não somente
dissipou nosso erro de então, mas, igualmente, subverteu totalmente as
condições nas quais o proletariado deve combater. É hoje em dia obsoleto
sob todos os aspectos o modo de luta de 1848...
Todas as revoluções se reduziram até hoje à derrocada do domínio de
uma classe determinada e sua substituição por outra; mas, até agora, todas
as classes dominantes eram somente pequenas minorias comparativamente
à massa dominada do povo. Era derrubada uma minoria dominante e outra
minoria tomava em suas mãos o timão do Estado e transformava as
instituições públicas de acordo com seus interesses. [...] se abstrairmos o
conteúdo concreto de cada caso, a forma comum de todas estas revoluções
era serem revoluções de minorias. Mesmo quando a maioria prestava sua
colaboração o fazia... a serviço de uma minoria... (Engels. Introdução – As
lutas de classes na França de 1848 a 1850,, p. 97).
208
Engels faz em seguida uma síntese das lutas de 1848 à década de 1870,
colocando relevo na luta entre as classes e frações de classe, concluindo que “as condições
mudaram na guerra entre povos”, o mesmo tendo ocorrido na luta de classe:
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210
90
Reacionário, termo deriva de reação (pref. Lat. “re” = volta, retorno, regresso; voltar atrás, recuar; + ação,
do lat. Actio = ação, ato ), em política tem sido o termo usada para designar todo aquele que se contrapõe à
Revolução ou que se contrapõem a qualquer modificação social, defendendo a ordem social e a continuidade
histórica da tradição. O termo deriva do verbo reagir e foi usado para designar, na Revolução Francesa, os
que reagiram contra a Revolução (Cunha, 1986, p. 665 e 7; Ferreira, [s.d.], p. 1191).
210
todo custo, por outro a perspectiva reformista91, tanto no sentido geral de partidário de
mudanças meramente formais, quanto no sentido crítico e endereçada aos partidários de um
socialismo que, por repudiar a violência, defende uma ação política de reformas graduais e
sucessivas.
A opção marxiana pela ação revolucionária não excluiu a alternativa reformista,
pois as reformas são como que um resultado “colateral” da luta revolucionária das massas.
Mesmo quando as reformas não são o resultado imediato da luta revolucionária dos
trabalhadores, as concessões reformistas ocorrem sob a pressão das exigências das massas
populares, e não como uma dádiva das classes dominantes. Em outras palavras, não se trata
de negar as reformas, mas de trabalhá-las como uma das táticas da revolução. Nessa
perspectiva tática, por um lado é necessário desmascarar o reformismo que dilui a
revolução nas reformas; por outro lado, é lutar contra um revolucionarismo esquerdista
infantil e que ergue uma barreira intransponível entre as reformas e a revolução, perdendo
de vista que a tática deve ser colocar em ação os mecanismos necessários para o avanço
rumo aos objetivos estratégicos da luta revolucionária.
O fundamental é não perder de vista que se trata de um conceito central na
abordagem marxista e expressa o processo de ruptura e transformação das estruturas
econômicas, sociais, políticas e ideológicas, desembocando na formação de novas
estruturas e de um novo regime. Marx e principalmente Engels destacaram que uma
característica da revolução é a violência, geralmente decorrente das lutas e conflitos que se
abrem entre as classes sociais antagônicas e que acabam levando ao uso da força e à
beligerância entre aqueles que assumem e os que deixam o poder em decorrencia dos
movimentos revolucionários, assunto que tratarei logo em seguida. Antes, convém ainda
explicitar que, apesar do entendimento geral sobre a revolução como processo de
transformação profunda de todas as relações de um modo de produção para outro, a
revolução foi tomada por Marx e Engels, principalmente, como luta de classes.
91
Reformista, termo que deriva de reformar (do verbo lat. reformare = formar de novo, reconstruir), tem
sido usado em sentido amplo para designar os partidários de reformas, de mudanças meramente formais; o
sentido vem do movimento religioso que defendeu mudanças na Igreja com o fim de torná-la fiel às suas
origens; no âmbito da esquerda foi usado para designar os partidários do reformismo como teoria socialista
que defende as reformas sucessivas e graduais para se alcançar o poder, repudiando o uso da violência como
forma de ação política. (Cunha, 1986, p. 665 e 364; Ferreira, [s.d.], p. 1205).
211
212
92
A respeito dessa polêmica, veja-se por exemplo o verbete “violência”, in Bottomore, 1983, p. 403-405.
93
Trata-se de artigo de Eduardo CHITAS.. “Para restituir a palavra a Marx, a Engels e a Lénine no debate
internacional. Três tópicos sobre a violência”, disponibilizada eletronicamente em “O Militante” - Revista do
Partido Comunista Português. N.º 280, Janeiro / Fevereiro 2006.
[http://www.pcp.pt/publica/militant/280/p37.html]
94
O texto afirma que “[…] there is only one way in which the murderous death agonies of the old society and
the bloody birth throes of the new society can be shortened, simplified and concentrated, and that way is
revolutionary terror”. O texto completo publicado por Marx encontra-se no seguinte endereço eletrônico:
http://www.marxists.org/archive/marx/works/1848/11/06.htm
212
tremam à idéia de uma revolução comunista! Os proletários nada têm a
perder.... Têm um mundo a ganhar. (Obras Escolhidas. Volume 1. p. 47).
213
214
E mais, para que a revolução fosse possível, era preciso a existência de uma
classe que, tendo um caráter universal, não emancipasse somente a si mesma, mas todas as
demais esferas da sociedade. O proletariado era, para Marx, essa classe especial que,
forjada nas condições de desenvolvimento da sociedade burguesa, tinha condições de
promover uma radical revolução da ordem existente (Idem, p. 125). Teoricamente
radicalizando a reflexão filosófica, Marx considerava que a filosofia tinha encontrado sua
base material no proletariado e este sua arma teórica na filosofia: “Assim como a filosofia
encontra no proletariado suas armas materiais, o proletariado encontra na filosofia suas
armas espirituais.” (Idem, p. 126).
Esse posicionamento teórico foi mantido, evidentemente que com adequações
que desvelam o processo de continuidade e ruptura na obra do autor, até O Capital. Marx
elaborou no Livro I, notadamente no Capítulo XXIV, “A chamada acumulação primitiva”,
um dos mais documentados e penetrantes relatos sobre o papel da violência nas origens do
modo de produção capitalista. Considerando a transição do feudalismo para o capitalismo
como um momento de pré-história da sociedade burguesa, que se confunde com a gestação
da Europa moderna no interior e a partir do mundo feudal, tratou Marx detalhadamente os
processos revolucionários e violentos que serviram de alavanca à acumulação de capital e à
classe burguesa em formação.
Cabe registrar sinteticamente que esses foram processos que serviram de
alavanca à burguesia em formação, desapropriando grandes massas de camponeses de seus
meios de subsistência. Enfim:
214
A descoberta das terras do ouro e da prata, na América, o extermínio,a
escravização e o enfurnamento da população nativa nas minas, o começo
da conquista e pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África
em um cercado para a caça comercial às peles negras marcam a aurora da
era de produção capitalista. Esses processos idílicos são momentos
fundamentais da acumulação primitiva. De imediato segue a guerra
comercial das nações européias, tendo o mundo por palco. [...] (Idem, p.
370)
95
No site da MIA – “Marxists Internet Arquive” encontra-se disponibilizada em formato digital essa
contribuição de Engels. Ver: http://www.marxists.org/portugues/marx/index.htm
215
216
documentos oficiais que conseguiu consultar (Engels, 1985). Nessa obra fica claramente
delineado o entendimento de Engels da luta de classes, pois percebeu, com clareza, que a
evolução histórica da produção tendia a separar, dispondo antagonicamente, as duas classes
fundamentais da sociedade capitalista: a burguesia e o proletariado. Para ele tratava-se de
um processo que tendia a subsumir todas as camadas sociais “intermediárias”
remanescentes de outros “sistemas de produção” anteriores à indústria, sendo a Inglaterra a
ponta-de-lança desse processo. Apenas a titulo de exemplo, seguem duas passagens em
Engels deixou clara sua visão sobre as classes e a luta de classes:
... [a] guerra pela vida, pela existência, por tudo, e que, dadas as
circunstâncias, pode ser uma guerra de morte, põe em luta não só as
diferentes classes da sociedade mas também os diferentes membros dessas
classes. Cada um impede o caminho do outro, e é por isso que todos
procuram eliminar quem quer que se lhes atrevesse no caminho e lhes
tente apanhar o lugar. Os trabalhadores concorrem entre si tal como os
burgueses. O tecelão que trabalha com um tear entra em concorrência com
o tecelão manual... Ora esta concorrência dos trabalhadores entre si é o que
há de pior nas condições de vida atuais do proletariado, é a arma mais
afiada da burguesia na sua luta contra o proletariado. Daí os esforços dos
trabalhadores para suprimir esta concorrência, associando-se; daí a fúria da
burguesia contra estas associações e seus gritos de triunfo a cada derrota
que conseguem infringir-lhes. (Engels, 1985, p.93-94)
[...] É tarde para uma solução pacífica. O abismo que separa as classes
cava-se cada vez mais, o espírito de resistência penetra cada vez mais nos
operários, a exasperação torna-se mais viva, as escaramuças isoladas da
216
guerrilha concentram-se para se transformar em combates e em
manifestações mais importantes, e bastará, em breve, um ligeiro choque
para desencadear a avalancha. Então, um verdadeiro grito de guerra ecoará
em todo o país: Guerra aos palácios, paz nos casebres!, mas então será
muito tarde para que os ricos se possam ainda defender (Engels, 1985, p.
332-333)
Pergunta-se: quem foi este Eugen Dühring (1833-1921)? Para o que mais
importa aqui, o nome hoje quase só conhecido por força do escrito de
Engels, pertenceu a alguém que foi «professor livre» (Privat-Dozent) de
filosofia e de economia na Universidade de Berlim (mais tarde afastado do
ensino) e que chegou à social-democracia alemã por 1872 precedido de
uma reputação difícil: a de um homem irascível, de mal contida arrogância
e de verbo «radical», que antes havia tentado a aproximação com o futuro
chanceler Bismarck, até este se desinteressar dele. Idealista e ecléctico em
filosofia, partidário de Comte, adversário de Darwin e de Hegel, seguidor
do «economista vulgar» Carey, esses não teriam sido, por si sós, motivos
de especial preocupação ou interesse por parte de Engels ou de Marx.
Problema sério era o facto de uma figura alheia ao movimento operário
alemão, quer pela biografia, quer pelas idéias, ter criado à sua volta
círculos de discípulos e admiradores, não só na Universidade mas,
principalmente, em meios dirigentes do Partido. Que marxistas com as
responsabilidades de um August Bebel, de um Eduard Bernstein (o futuro
chefe do revisionismo alemão e internacional) ou de um Wilhelm
Liebknecht tenham em maior ou menor medida sucumbido às teses de
Dühring a ponto de sobre elas escreverem favoravelmente e de acolherem,
na imprensa que dirigiam, escritos de Dühring sobre economia política
onde conscientemente se deturpava e atacava a obra de Marx. Que isso
estivesse a acontecer, por exemplo, em Março de 1875, em vésperas do
congresso de unificação a realizar em Gotha (em Maio desse ano) entre as
duas correntes da social-democracia alemã, num momento em que os
marxistas alemães tinham de cerrar fileiras em vez de se prestarem à
divisão por flagrante debilidade teórica e ideológica de alguns – tudo isso
requeria uma clara tomada de posição e o confronto aberto com as idéias
de Dühring, dentro e fora da nova formação política entretanto surgida, o
acima referido Partido Operário Socialista da Alemanha. (Chitas, 2006,
[s.p.]).
217
218
Foi em tal contexto que Engels ocupou-se por cerca de dois anos a estudar a
obra do adversário, organizando uma refutação geral, para a qual Marx deu uma
colaboração direta e efetiva, redigindo o décimo capítulo da Segunda Parte de Anti-
Dühring (1877), conforme esclarece Engels no Prefácio da Segunda Edição (Engels, 1979,
p. 9). Engels faz na primeira parte uma análise demolidora dos fundamentos filosóficos de
Dühring que, como não há como aqui detalhar, é suficientemente esclarecedora a síntese
feita no início da parte segunda, como segue:
Mas a principal tese de Dühring que Engels tinha por objeto atacar era a
elaboração econômica e que, por sua vez, se constituía em fundamento para sua tese
política. Adequada à sua perspectiva idealista e ao seu senso comum, aspectos severamente
criticados por Engels, afirmava que as circunstâncias políticas eram a causa decisiva da
situação econômica. Engels foi seguindo a formulação de Dühring e que se sustentava na
ficção literária do romance de Daniel Defoe, narrando as aventuras de Robinson Crusoe
(cuja primeira edição é de 1719), onde o náufrago inglês estabeleceu uma relação de
dominação com um nativo a que passou chamar de Sexta-Feira (Friday). Esta foi, segundo
Dühring, uma relação violenta, um ato político, caracterizado como um “pecado original da
escravidão” (Engels, 1979, p. 133). Engels foi severamente crítico e mostrou a puerilidade
da interpretação, insuficiente para ver que a violência não é senão um meio, e a vantagem
econômica é a finalidade.
218
ficavam armados os alicerces "radicais" de sua Economia da realidade.
[...]Eis o ponto central: trabalho sem remuneração após ter sido gasto o
tempo de trabalho necessário para a conservação do operário. O nosso
Adão, agora convertido em Robinson, põe a trabalhar o segundo Adão, ou
seja, o "Sexta-feira". [...]Robinson "oprime" o "Sexta-feira", espolia-o
"como um escravo ou instrumento, posto ao serviço econômico", e
somente o sustenta "na qualidade de instrumento". [...] (Engels, 1979, p.
134).
Engels aponta que essa interpretação de Dühring nada mais fazia que deslocar a
questão da exploração e das classes do campo econômico para o da Moral e do Direito, do
terreno dos fatos concretos para um romanceado mundo das idéias (Idem, ibidem). Foi
dessa incursão que Engels adentrou na questão da violência, passando pela propriedade
privada, pela divisão do trabalho, até chegar a discutir o que considerava fundamental
sobre o papel da violência na história96. Iniciando por aparentemente concordar com
Dühring, Engels diz que o autor toma um “exemplo pueril” para “provar que a violência é
um fator ‘historicamente fundamental’”, entretanto nada mais faz que provar que este fato
(a violência) “nada mais é que o meio, enquanto o fim está precisamente no proveito
econômico” (Engels, 1979, p. 138). No capitulo III, da segunda parte, Engels buscou
centrar a questão de “o que é a violência”, demonstrando que ela é determinada pelo grau
atingido pela produção, pelo desenvolvimento econômico.
96
Importante não esquecer que após a publicação do Anti-Dühring, foram publicados os capítulos II, III e IV
da segunda parte dessa obra com o título O papel da Violência na História, na revista Die Neue Zeit, Bd 1,
219
220
Para Engels não havia duvidas quanto ao papel desempenhado pela violência na
História: “a força política se baseia..., desde as suas origens, numa função econômica”,
sendo a violência usada não mais que para “acelerar o processo econômico” (Idem, p. 160).
nos. 22-26, 1895-1896. Está publicada em português, 1 Coleção Pensamento, por uma suposta Gráfica
Editora Poveira, em Povoa de Varzim (?).
220
Ao contrário de Dühring para quem “a violência é a maldade absoluta”, para Engels esta
desempenha um papel revolucionário: “sabemos que ela é, também, [...] a parteira de toda a
sociedade antiga, que traz em suas entranhas uma outra nova: que é ela um instrumento por
meio do qual se faz efetiva a dinâmica social, fazendo saltar aos pedaços as formas
políticas fossilizadas e mortas” (Idem, p. 161).
Não há como concluir sem retomar os fundamentos que embasam a elaboração
engelsiana e marxiana e que desembocou na opção política comunista que assumiram e que
constituiu em ponto de partida (e de chegada) da elaboração científica de ambos. A base
para tal elaboração estava assentada no socialismo moderno e que foi produto dos
“antagonismos de classe entre possuidores e não-possuidores, burgueses e operários
assalariados” e a “anarquia que preside a produção” (Idem, 17). Esse socialismo tinha por
base os princípios proclamados pelos revolucionários franceses do século XVIII,
fundamentado nos princípios da razão e nos ideais de igualdade e de direitos essenciais,
eram apenas os ideais da burguesia, a sociedade burguesa, e o Estado era a República
democrático-burguesa.
Foi preciso superar esse socialismo utópico, situando-o no terreno da realidade;
foi preciso superar as bases filosóficas que serviam de sustentação à burguesia, como o
idealismo e o empirismo fenomênico, a dialética idealista e o método metafísico de
especulação, lançando os fundamentos de uma nova concepção, compatível com o
desenvolvimento econômico e as lutas do proletariado. Foi a própria transformação
histórica que impôs uma revisão de toda a história, demonstrando a história foi e é uma
história de luta de classes e que estas lutas resultam, em última instância, das condições
econômicas. Foi preciso demonstrar que é a estrutura econômica da sociedade que, em
todos os momentos, é a base real sobre a qual se erige, em última instância, todo o edifício
das instituições jurídicas e políticas, da ideologia filosófica, religiosa, etc.. de cada período
histórico. Com isso, estavam lançados os alicerces para uma concepção materialista
fundada no princípio de que é vida e a existência dos homens quem determina a
consciência, e não o contrário como afirmava a ciência burguesa (Idem, p. 24).
221
222
Após esse longo percurso nas duas partes anteriores do trabalho, mais um acerto
de contas com questões pendentes, ou arredondamento teórico de questões que gostaria de
aprofundar nos meus estudos, é hora de adentrar na particularidade da tese, expondo meu
entendimento sobre o vinculo metodológico e teórico da categoria modo de produção na
análise marxiana e engelsiana e sua relação com a educação e o ensino.
222
desencadeado em 1871 pelo proletariado parisiense, explicitei o caráter contraditório da
implantação da educação pública na França revolucionária (Lombardi, 2002). Recorri à
imagem do movimento do pêndulo para tentar explicitar o caráter contraditório do
movimento histórico e das lutas de classes. Em se tratando da conformação e
desenvolvimento da educação capitalista, esta acompanhou os vaivens da luta entre
burguesia e proletariado, assumindo as características e particularidades próprias dos
processos históricos de cada uma das formações sociais articuladas na ampla teia de
relações e divisões do trabalho, próprias da gênese e desenvolvimento do modo capitalista
de produção.
Analisando o movimento contraditório que a educação assumiu no movimento
revolucionário francês, registrei meu entendimento quanto à questão:
223
224
224
A concepção pedagógica burguesa tem sido sistematicamente tratada e
defendida pela intelectualidade orgânica dessa classe. De modo geral, a exposição do
conteúdo da concepção pedagógica burguesa, entre nós, tem sido analisada por Newton
Duarte em uma aguda crítica ao que ele tem denominado de “pedagogias do aprender a
aprender” e que expressam o amplo leque das perspectivas ideologicamente ligadas ao
liberalismo e sua versão novidadeira – o neoliberalismo (Duarte, 2000a; 2000b; 2003).
Duarte inclui nesse leque o escolanovismo, o construtivismo, a pedagogia das
competências, a pedagogia dos projetos, a pedagogia do professor reflexivo, etc.
Com relação ao projeto pedagógico socialista, vale lembrar que este teve início
com as posições do chamado “socialismo utópico”, notadamente com Fourier e Owen,
confluindo para a elaboração de Marx e Engels, iniciada com a divulgação do Manifesto do
Partido Comunista, em 1848. É a perspectiva educacional marxiana-engelsiana que será
tratada a seguir.
225
226
ênfase sobre algumas categorias - como o trabalho, o ser social, a cultura ou a própria
educação.
Além da interlocução gerada com algumas dissertações e teses produzidas, a
primeira principal sistematização foi para os textos que escrevi para o livro Marxismo e
Educação, organizado por mim e por Dermeval Saviani (Lombardi e Saviani, 2005), e
mais recentemente das participações em debates promovidas pelo Grupo de Estudos e
Pesquisas Marxismo, História, Tempo Livre e Educação (MHTLE)97. A partir de 2008 este
grupo tem motivado alguns debates no âmbito do marxismo, com o desenvolvimento de
projetos de pesquisa em torno da temática sobre tempo livre, lazer e educação. O MHTLE
está com um carojoso projeto de uma nova revista e um boletim eletrônico – ambos com o
sugestivo nome de Germinal. Para organização do primeiro número da Revista Germinal98
foi promovido, no dia 13 de agosto de 2008, às 14h00, na Sala da Congregação da
Faculdade de Educação da UNICAMP, uma mesa redonda com o tema “Modo de Produção
e educação”, para a sessão debate. Dessa sessão participaram Celi Nelza Zülke Taffarel,
Edmundo Fernandes Dias, Patrícia Vieira Tropia, Ricardo Luiz Coltro Antunes e José
Claudinei Lombardi, possibilitando ao leitor um leque dos desdobramentos do marxismo
na discussão do tema. Celi Taffarel buscou a contribuição de Leon Trotsky; Patrícia Tropia
retomou as contribuições da visão althusseriana; Ricardo Antunes recuperou a noção
marxiana, trazendo-a para a compreensão da atualidade; Edmundo Fernandes Dias colocou
centralidade no conceito de omnilateralidade, articulando a elaboração de Gramsci e de
Daniel Lindemberg; finalmente, expus a perspectiva marxiana e engelsiana, colocando
centralidade na categoria modo de produção da vida material para a explicação e o
entendimento das condições históricas expressas nas diferentes formações sociais. Dei ao
texto o título de “Modo de produção e educação: breves notas preliminares” (Lombardi,
2009, p. 43-53).
O leque de posições que discutem a temática central desse número da revista é
completado com um artigo de Sérgio Lessa, “Modo de Produção e Revolução: Lukács e
Mészáros”, no qual o autor defende que somente na perspectiva teórica explicitada em
Lukács e em Mészáros é que a categoria modo de produção encontra-se plenamente
articulada com a concepção marxiana do trabalho como fundante do ser social, sendo esta a
97
O grupo tem a liderança de Elza Peixoto e Maria de Fátima Rodrigues Pereira.
98
Germinal: Marxismo e Educação em Debate, Londrina, v. 1, n. 1, p. 43-53, jun. 2009. Este primeiro
número pode ser acessado pelo seguinte link:
226
chave da proposta revolucionária de Marx (Lessa, 2009). Lessa busca apontar a
continuidade entre a Ontologia de Lukács e a que fundamenta a obra Para além do capital,
de Mészáros, no que diz respeito ao tratamento da relação entre modo de produção e
trabalho.
Também nesse primeiro número da Revista Germinal foi publicada uma
entrevista com Dermeval Saviani, sob o título “Modo de produção e a pedagogia histórico-
crítica” (Saviani, 2009). Nessa Saviani costura os nexos entre a categoria “modo de
produção” e a “pedagogia histórico-crítica”, confluindo em rica reflexão sobre os desafios
práticos e políticos de se assumir uma pedagogia apoiada na teoria marxista.
Apresentarei na sequência como entendo a categoria modo de produção e,
depois, farei a articulação teórica da educação e do modo capitalista de produção, buscando
entender as implicações analíticas do uso dessa relação, em Marx e Engels.
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/germinal%C2%A0.
227
228
Diversamente dos animais, os homens têm, antes de qualquer outra coisa, que
produzir os meios necessários ao seu próprio existir. A produção de sua existência é, assim,
o processo pelo qual os homens produzem sua própria vida material. O modo de produção
é, portanto, a categoria que expressa a própria materialidade ontológica da história dos
homens.
228
um encadeamento sincrônico e diacrônico que se expressa como totalidade na categoria
modo de produção.
Isso decorria da perspectiva onto-gnosiológica de Marx e Engels, pela qual
articularam e pela qual pressupunham não a primazia da idéia, do pensamento absoluto que
se auto-engendra; não a centração sobre o dito, pensado, teorizado ou documentado pelos
homens. É preciso, ao contrário, partir do processo de vida real, construído teoricamente
(isto é, abstratamente), buscando apreender o viver dos homens, seu modo de produção,
suas relações naturais e sociais, suas organizações e as instituições que as instituem, suas
representações, suas teorizações (Marx e Engels, [s.d.], p. 26). Marx e Engels, porém, não
tomaram a categoria modo de produção como uma categoria geral e abstrata, idealizadora
e mistificadora, a-histórica, mecânica ou determinista. Por se tratar de uma articulação
teórica de premissas onto-gnosiológicas, fundadas num homem que, cotidiana e
historicamente, têm que produzir e reproduzir as condições necessárias à sua existência
física, social e espiritual, a concepção resultante tem que apreender o processo de
desenvolvimento real dos homens, realizados sob condições historicamente determinadas.
229
230
230
Ao contrário dessas abordagens, as observações já elencadas de Marx e Engels
com relação às tradições filosóficas alemãs, objeto da ácida e satírica crítica que
produziram como “acerto de contas” com a trajetória anterior, permitem buscar um
entendimento materialmente determinado, histórico, contraditório, objetivamente
apreensível enquanto “concreto pensado”.
A educação é um campo da atividade humana e os profissionais da educação
não construíram esse campo segundo idéias próprias, mas em conformidade com condições
materiais e objetivas, correspondendo às forças produtivas e relações de produção
adequadas aos diferentes modos e organizações da produção, historicamente construídas
pelos homens e particularmente consolidadas nas mais diferentes formações sociais.
A discussão da educação a partir de sua articulação com o modo capitalista de
produção, na obra marxiana e engelsiana, expressa três movimentos articulados (ou
indissociados):
1º. Possibilita uma profunda crítica do ensino burguês;
2º. Traz a tona como, sob as condições contraditórias desse modo de produção, se dá a
educação do proletariado, abrindo perspectivas para uma educação diferenciada, ainda sob
a hegemonia burguesa;
3º. Contraditoriamente, a crítica do ensino burguês e o desvelamento da educação realizada
para o proletariado torna possível delinear a premissas gerais da educação do futuro; não
como utopia, mas como projeto estratégico em processo de construção pelo proletariado.
231
232
que não é a consciência (ou cultura) que distingue os homens dos outros seres, mas o modo
de produção de seus meios de vida, como já foi anteriormente explicitado.
Expressavam com isso que, diferentemente dos animais, que não mais fazem do
que se adaptar à natureza, os homens é que a ajustavam e a transformavam adequando-a às
suas necessidades. O ato de agir sobre a natureza transformando-a em função das
necessidades humanas é o que conhecemos pelo nome de trabalho. Podemos, pois, dizer
que a essência do homem é o trabalho. Mas o sentido marxista de essência humana não é o
da metafísica: como o conjunto das propriedades imutáveis e eternas do homem, como algo
dado ao homem, uma dádiva divina ou natural. Ao contrário, a essência humana é usada no
sentido de característica fundamental dos homens, sendo esta produzida pelos próprios
homens. O que o homem é, o é pelo trabalho. A essência do homem é um feito humano. É
um trabalho que se desenvolve, se aprofunda e se complexifica ao longo do tempo: é um
processo histórico.
É, portanto, na existência efetiva dos homens, nas contradições de seu
movimento real, e não numa essência externa a essa existência, que se descobre o que o
homem é: “tal e como os indivíduos manifestam sua vida, assim são. O que são coincide,
por conseguinte, com sua produção, tanto com o que produzem como com o modo como
produzem” (Marx e Engels, [s.d.], pp. 18-19).
Se a existência humana não é garantida pela natureza, não é uma dádiva
natural, mas tem de ser produzida pelos próprios homens, sendo, pois, um produto do
trabalho, isso significa que o homem não nasce pronto, mas tem que tornar-se homem. Ele
forma-se homem. Ele não nasce sabendo produzir-se como homem. Ele necessita aprender
a ser homem, precisa aprender a produzir sua própria existência. Portanto, a produção do
homem é, ao mesmo tempo, a formação do homem, isto é, um processo educativo. A
origem da educação coincide, então, com a origem do homem mesmo.
232
objeto de trabalho, como meios de produção, e o trabalho mesmo como trabalho
produtivo” (Marx, O Capital, t. 2, p. 105).
Por outro lado, porém, o termo também é usado para se referir ao trabalho
realizado nas condições particulares da produção capitalista. Como o objetivo do capital é a
obtenção do lucro, sendo sua lógica a da acumulação desse lucro, o trabalho é tomado
como uma mercadoria que é capaz de produzir um valor muito maior do que o que lhe é
pago, um valor excedente, uma mais-valia:
233
234
234
caminho para a superação das condições de vida e exploração do trabalho pelo capital, com
a superação da estrutura de classes burguesa e de uma divisão social e técnica do trabalho
que separa e aliena o trabalhador dos meios, processos e resultados da produção. No
processo revolucionário, portanto, a educação é um importante instrumento para que o
trabalhador consiga não apenas ter acesso aos conhecimentos, mas que, a partir deles,
possa controlar o processo de produção e reprodução dos conhecimentos científicos e
técnicos envolvidos no processo produtivo.
235
236
Marx na quarta parte de O Capital, “A produção da mais valia relativa”, na qual Marx se
dedica ao estudo da constituição do modo capitalista de produção. A partir das formas
elementares do processo de produção, Marx aborda as metamorfoses sofridas pelo trabalho
ao se subordinar ao capital. Tratando as diferentes formas históricas que o capital
engendrou para produzir mais-valia, Marx examina cada uma das diferentes formas
historicamente produzidas, a saber: a cooperação, a manufatura e a grande indústria. Para
Marx esse processo de transformação pode ser caracterizado pelo desenvolvimento da
produtividade do trabalho, tendo por objetivo fazer com o que o trabalhador trabalhe
gratuitamente para o capitalista:
236
assalariados; de qualquer modo, é o resultado das lutas dos próprios trabalhadores e não
uma necessidade decorrente das transformações técnicas e sociais da produção. Nada
melhor que acompanhar a análise de Marx sobre o processo de transformação da produção
capitalista, buscando entender, em seu interior, como a educação é caracterizada.
237
238
238
realizavam as trocas e o comércio, levando a produção a se transformar, rompendo as
fronteiras dos lares e de um tempo marcado pela luminosidade do sol. O trabalho passou a
ser executado nas cidades, nas próprias casas dos produtores ou em oficinas manufatureiras
especificamente abertas sob o impulso da ampliação mercantil.
Teoricamente essas transformações expressam que a estrutura feudal estava
ruindo e que, concomitantemente a ela, foi se organizando uma nova organização social da
produção da vida social. Foram alguns séculos de transformação para que o processo de
produção capitalista pudesse se realizar plenamente. Isso somente ocorreu quando o
trabalhador ficou totalmente disponível e o capitalista pode comprar a força de trabalho
desses trabalhadores.
Esse processo foi explicado pela burguesia de modo idílico e mítico, pelo qual
justificavam ideologicamente a apropriação privada e a exploração do trabalho do homem
pelo homem. Marx diz que, para tanto, a idílica economia política recorreu ao Velho
Testamento que explica que “Abraão gerou Isaac, Isaac gerou Jacó, etc.” (Idem, 215), pelo
qual os “corifeus da economia política” explicam a origem do capital primitivo. Para estes,
o possuidor de capital o obteve, originalmente, com seu próprio trabalho e o de seus
antepassados (Idem, p. 215-216). Mas o que é para Marx essa acumulação primitiva?
Retomando a análise que fez ao longo do Livro Primeiro de O Capital, assim explicou no
capítulo XXIV, dedicado à análise da “assim chamada acumulação primitiva”: para sair do
circulo vicioso criado pela economia política, é preciso pressupor “uma acumulação
primitiva..., precedente à acumulação capitalista, uma acumulação que não é resultado do
modo de produção capitalista, mas sim seu ponto de partida. (Marx, 1996 Tomo 2, p. 339).
Como a ideologização realizada pela Economia Política visava o
escamoteamento da origem desse processo, mistificado em explicações tornadas
atemporais, a acumulação primitiva tinha o mesmo papel que o pecado original na teologia:
239
240
240
que estas opunham ao livre desenvolvimento da produção e à livre
exploração do homem pelo homem. (Marx, 1996 Tomo 2, p. 340-341).
241
242
242
e elevou o grau de exploração do trabalho, se originaram os capitalistas. Foram várias as
transformações econômicas e sociais que resultaram na burguesia, com suas várias frações
de classe, entre as quais Marx analisa detidamente as transformações ocorridas no campo,
como a gênese do arrendatário capitalista (Idem, p. 363), as repercussões da revolução
agrícola na indústria e a formação do mercado para o capital industrial (Idem, p. 365); a
formação do capitalista industrial (Idem, p. 369), processo no qual se deu a formação do
capital e sua ampliação, e que foi alavancado por poderosos mecanismos como o sistema
colonial, o sistema das dívidas públicas, o sistema tributário e o sistema protecionista.
Finalizando esse denso capítulo, Marx discorreu sobre a tendência histórica da acumulação
capitalista. Parafraseando Virgílio, Marx foi satírico ao afirmar que “com tão imenso
custo”, acabou concluído o estabelecimento das “eternas leis naturais” do modo capitalista
de produção. Esse processo, entretanto, não passou da “separação entre trabalhadores e
condições de trabalho, para converter, em um dos pólos, os meios sociais de produção e
subsistência em capital e, no pólo oposto, a massa do povo em trabalhadores assalariados,
em ‘pobres laboriosos’ livres” (Idem, p. 378).
243
244
lógica do capital é se apropriar da massa de mais valia produzida que, para efeitos de
acumulação, é a mais valia fornecida por cada trabalhador, multiplicada pelo número de
trabalhadores simultanemante empregados (Idem, p. 439-441).
Para além da aparência, observa Marx que, dentro de certos limites, ocorreu
uma modificação fundamental nas condições materiais do processo de trabalho. A citação
de Marx é lapidar para caracterizar a transformação ocorrida:
244
Essa dupla formação, tal como explorada teoricamente por Marx, é que
sistematizarei em seguida, focando a cooperação simples e a manufatura propriamente dita
e, ao final, analisando as implicações que a divisão do trabalho e a manufatura tiveram para
a educação e para o ensino.
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246
processos de trabalho num mesmo espaço e a concentração dos meios de produção (Idem,
p. 445). Nesses processos, a concentração de meios de produção nas mãos de capitalistas
individuais, foi condição material indispensável para a cooperação de trabalhadores
assalariados; a escala da produção, por sua vez, dependeu do grau dessa concentração
(Idem, p. 446). A escala da produção e a exploração do trabalho foram necessárias para
liberar o mestre artesão do trabalho manual, transformando uns em empregados
assalariados e outros em empregadores capitalistas. Da mesma forma, separando o trabalho
manual (o fazer) do trabalho intelectual (o saber). Novamente fazendo analogia da
produção com a organização militar no campo de batalha, Marx introduziu uma distinção
importante entre o trabalhador coletivo e o comando do capital:
246
[...] Como o capitalista, de início, é libertado do trabalho manual, tão logo
seu capital tenha atingido aquela grandeza mínima, [...] ele transfere agora
a função de supervisão direta e contínua do trabalhador individual ou de
grupos de trabalhadores a uma espécie particular de assalariados. Do
mesmo modo que um exército precisa de oficiais superiores militares, uma
massa de trabalhadores, que cooperam sob o comando do mesmo capital,
necessita de oficiais superiores industriais (dirigentes, managers e
suboficiais (capatazes, foremen, overlookers, contre-maîtres) durante que o
processo de trabalho comandam em nome do capital. [...] O capitalista não
é capitalista porque ele é dirigente industrial, [mas] ele torna-se
comandante industrial porque ele é capitalista. O comando supremo na
indústria torna-se atributo do capital, como no tempo feudal o comando
supremo na guerra e no tribunal era atributo da propriedade fundiária.
(Marx, 1996, Tomo 1, p. 448-449)
3.2.2. A manufatura
Esse processo de separação entre trabalho e capital que, na produção, se
caracterizava pela separação entre concepção e execução, foi aprofundado na manufatura,
quando a cooperação “fundada na divisão do trabalho adquire sua forma clássica” (Marx,
1996, Tomo 1, p. 452). Mesmo sendo uma organização produtiva sob o crescente controle
do capital, Marx salienta que a manufatura foi, ainda, uma continuidade da produção
artesanal, pois dependia da força, da habilidade e da rapidez do trabalhador individual.
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248
organizado coletivamente para a produção, mas individual e parcial na realização de seu
trabalho.
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dispersos, reduzindo o espaço que separava as diversas fases de produção e, com isso,
diminuindo o tempo necessário à produção de mercadorias.
250
também introduziu entre os próprios trabalhadores uma separação, classificação, com uma
nova agrupação destes, segundo determinadas qualidades ou peculiaridades dominantes.
Como o artesão tinha que dominar o conjunto dos conhecimentos e habilidades necessárias
ao seu ofício, se constituindo num trabalhador polilateral e politécnico, a manufatura
introduziu, com a divisão do trabalho, forças de trabalho que, por natureza, “só são aptas
para funções específicas unilaterais”, rearticuladas no trabalhador coletivo, sob controle do
capital.
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252
99
Aqui estou usando os termos da tradução para o português feita por Reginaldo Sant’Anna, editado pela
Difel (Marx, Livro 1, volume 1, 1982, p. 413)
252
revolução manufatureira do trabalho e esta estava baseada na divisão que introduziu na
produção a oposição entre trabalho intelectual e trabalho manual, aprofundada com a
transformação da ciência em força produtiva independente, a serviço do capital.
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254
produção que ela mesma criou”; da oficina para a produção dos próprios instrumentos de
trabalho, resultou a produção das máquinas e estas levaram à superação da “atividade
artesanal como princípio regulador da produção social”. Com isso, por um lado, foi
“removido o motivo técnico da anexação do trabalhador a uma função parcial”; por outro,
caíram “as barreiras que o mesmo princípio impunha ao domínio do capital” (Idem, p.
482).
255
256
256
do algodão suscitou a invenção do gin para separar a fibra do algodão da
semente, com que finalmente se tornou possível a produção de algodão na
larga escala agora exigida. Mas a revolução no modo de produção da
indústria e da agricultura exigiu também uma revolução nas condições
gerais do processo de produção social, isto é, nos meios de comunicação e
transporte. [...] Abstraindo a construção de navios a vela totalmente
revolucionada, o sistema de comunicação e transporte foi, pouco a pouco,
ajustado, mediante um sistema de navios fluviais a vapor, ferrovias,
transatlânticos a vapor e telégrafos, ao modo de produção da grande
indústria. Mas as terríveis massas de ferro que precisavam ser forjadas,
soldadas, cortadas, furadas e moldadas exigiam, por sua vez, máquinas
ciclópicas, cuja criação não era possível à construção manufatureira de
máquinas. (Marx, 1996, Tomo 2, p. 18-19).
257
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258
aumentando o número de assalariados e colocando todos os membros da família para
trabalhar.
259
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260
produtivas (Idem, ibidem). Entretanto, observa Marx, prevaleceu “o espírito da produção
capitalista... na redação indecente das assim chamadas cláusulas educacionais da legislação
fabril” que, por falta de organização e de fiscalização, “falta de maquinaria administrativa”,
tornou essa obrigatoriedade “em grande parte ilusória”, tendo que enfrentar a “oposição
dos fabricantes” e as “artimanhas práticas e trapaças para deixarem de cumpri-la” (Idem,
ibidem). A citação de um trecho de um relatório de um dos inspetores de fábrica, Leonard
Hornes, de abril de 1857, feita por Marx ilustra essas observações, na qual o fabricante é
chamado de “usuário da criança” e que nada o obriga a cumprir a exigência de
escolaridade:
“Apenas o Legislativo é para ser culpado por ter passado uma lei ilusória
(delusive law) que, sob a aparência de providenciar educação para as
crianças, não contém nenhum dispositivo pelo qual esse pretenso objetivo
possa ser assegurado. Nada determina, exceto que as crianças devam ser
encerradas por determinado número de horas” (3 horas) “por dia dentro
das quatro paredes de um local, chamado de escola, e que o usuário da
criança deva receber semanalmente um certificado a respeito de uma
pessoa que lhe apõe o nome como professor ou professora.” (apud Marx,
1996, Tomo 2, p. 33).
Essa citação é seguida da observação que, antes da lei fabril de 1844, não eram
raros os casos de “certificados de freqüência à escola, subscritos com uma cruz” por
professores que eram analfabetos. A partir da lei de 1844, os certificados tinham que ser
subscritos, de próprio punho, pelo mestre-escola, buscando-se com isso equacionar ou ao
menos minimizar a situação. Marx cita outros trechos de relatórios de 1855, 1857 e 1858
para mostrar que após mais de uma década e meia, a situação não havia se resolvido: a
ignorância dos mestres-escola, a incapacidade destes para lecionar, a baixa remuneração
que recebiam, as precárias condições das instalações, o mobiliário inadequado e a carência
de livros e material didático; o efeito deprimente das “escolas” que não passavam de
lugares com atmosfera fechada e fétida100.
100
Lendo, vendo pelos meios multimídias, ou ouvindo relatos de professores e alunos, não é difícil se dar
conta que, não havendo superação do modo capitalista de produção, a educação dispensada aos trabalhadores
continua a padecer dos mesmos males. Por isso mesmo, qualquer semelhança com os problemas educacionais
do presente, não é mera semelhança.
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trabalho tornaram-se como que independentes do trabalhador; é como se instrumental fosse
animado por um movimento constante que exigisse produção ininterrupta do trabalhador.
Como a produtividade da maquinaria está na proporção inversa do valor que ela
transfere ao produto, “quanto mais longo o período em que funciona, tanto maior a massa
dos produtos sobre a qual se reparte o valor por ela adicionado, e tanto menor a parte do
valor que ela adiciona à mercadoria individual” (Idem, p. 37). Também é diferente a base
do valor da própria máquina: “seu valor, por mais nova e vitalmente forte que ainda possa
ser, já não é determinado pelo tempo de trabalho de fato objetivado nela mesma, mas pelo
tempo de trabalho necessário a sua própria reprodução ou à representação da máquina mais
aperfeiçoada” (Idem, p. 38). A maquinaria, como parte do capital constante, não gera em si
mesma mais-valia ao capital, mas propicia um aumento da produtividade do trabalho,
diminuindo as despesas necessárias à sua exploração, constituindo-se em um poderoso
meio de produzir mais valia relativa:
263
264
Assim que a revolta cada vez maior da classe operária obrigou o Estado
a reduzir à força a jornada de trabalho e a ditar, inicialmente às fábricas
propriamente ditas, uma jornada normal de trabalho, a partir desse
instante, portanto, em que se impossibilitou de uma vez por todas a
produção crescente de mais-valia mediante o prolongamento da jornada de
trabalho, o capital lançou-se com força total e plena consciência à
produção de mais-valia relativa por meio do desenvolvimento acelerado do
sistema de máquinas. Ao mesmo tempo, ocorreu uma modificação no
caráter da mais-valia relativa. Em geral, o método de produção da mais-
valia relativa consiste em capacitar o trabalhador, mediante maior força
produtiva do trabalho, a produzir mais com o mesmo dispêndio de trabalho
no mesmo tempo. [...] (Marx, 1996, Tomo 2, p. 42).
264
tempo. Isso ocorre de duas maneiras: mediante aceleração das máquinas e
ampliação da maquinaria a ser supervisionada pelo mesmo operário ou de
seu campo de trabalho. (Idem, p. 44-45)
Baseando-se nos relatórios dos inspetores de fábrica, Marx ressaltou que, apesar
de se louvar os resultados favoráveis das leis fabris de 1844 e 1850, a intensificação do
trabalho foi “destruidora da saúde dos trabalhadores e, portanto, da própria força de
trabalho” (Idem, 50). A legislação fabril não representou concessão alguma ao trabalhador,
pois da parte da burguesia, uma vez que o prolongamento da jornada de trabalho foi
definitivamente vedado por lei, “ela buscou ressarcir-se mediante sistemática elevação do
grau de intensidade do trabalho e transformar todo aperfeiçoamento da maquinaria num
meio de exaurir ainda mais a força de trabalho...” (Idem, ibidem).
265
266
uma “classe mais elevada de trabalhadores” e que tinham formação científica ou técnica
condizente com o trabalho que executavam (Idem, p. 54).
Dessa divisão técnica do trabalho, também decorreu a divisão na aprendizagem
e no sistema educacional (ou formativo) em diferentes níveis, visando formar as gerações
de trabalhadores necessários ao trabalho fabril e para os diferentes setores da economia.
Numa sociedade com classes e frações de classes diferenciadas, também a educação era (é)
adequada a essa estrutura e organização econômica e social, com tantas e quantas
educações quantas as classes e frações de classes a que se destinam. Marx não estava
preocupado em analisar a educação e muito menos em refletir teoricamente sobre as
diferenças de ensino para cada uma das classes e frações de classe. Mas penso que foi (e é)
expressiva sua análise de que, em meados do século XIX, havia uma massa ocupada
diretamente na produção e que a ela estava destinado um ensino de péssima qualidade, pois
a maquinaria não exige conhecimentos e habilidades do trabalhador, incorporados à
máquina como se fossem neutros desenvolvimentos da ciência e da tecnologia. Para além
desses, para o diminuto pessoal que exerce o controle e o gerenciamento dos processos
produtivos, a necessidade de conhecimentos especializados exigia igualmente formação
técnica e científica específica.
Para o exercício do trabalho fabril, a aprendizagem tinha que começar desde a
infância, para que o trabalhador adaptasse “seu próprio movimento ao movimento
uniforme e contínuo de um autômato” (Idem, p. 54). O trabalho com a máquina implicava
adequação ao movimento uniforme da máquina, ao ritmo e à velocidade de produção
imposto pela mesma. O trabalho com a máquina não impunha nenhuma exigência em
termos de aprendizagem, apesar do disciplinamento e da exigência legal para tanto. O tipo
e o ritmo de trabalho eram aprendidos na prática, desde a juventude.
266
máquina. Na manufatura, os trabalhadores eram membros de um mecanismo vivo; na
fábrica, eles se tornam complementos vivos de um mecanismo morto que existe
independente dele. Referenciando-se no estudo de Engels - A situação da classe
trabalhadora na Inglaterra - Marx delineia a tortura do trabalho fabril para o trabalhador:
o trabalhador foi transformado em autômato, como que um complemento vivo de uma
máquina morta que não se livrou do trabalho, mas seu trabalho foi esvaziado de conteúdo.
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essa educação somente tem a função de formação moral, pela qual se transmitem os
princípios burgueses. A nota de Roger Dangeville a esse texto é esclarecedora:
268
Como máquina, o meio de trabalho logo se torna um concorrente do
próprio trabalhador. [...] Assim que o manejo da ferramenta passa à
máquina, extingue-se, com o valor de uso, o valor de troca da força de
trabalho. O trabalhador torna-se invendável, como papel-moeda posto fora
de circulação. A parte da classe trabalhadora que a maquinaria transforma
em população supérflua, isto é, não mais imediatamente necessária para a
autovalorização do capital, sucumbe, por um lado, na luta desigual da
velha empresa artesanal e manufatureira contra a mecanizada, inunda, por
outro lado, todos os ramos mais acessíveis da indústria, abarrota o
mercado de trabalho e reduz, por isso, o preço da força de trabalho abaixo
de seu valor. [...] Onde a máquina se apodera paulatinamente de um setor
da produção, produz miséria crônica nas camadas de trabalhadores que
concorrem com ela. [...] (Marx, 1996, Tomo 2, p. 62).
Mais que isso: Marx assinala que a máquina não é apenas um concorrente todo-
poderoso do trabalhador, ela é transformada em um poder inimigo do trabalhador e é
manejada ideologicamente em função desse atributo. Com isso a maquinaria se torna “a
arma mais poderosa para reprimir as periódicas revoltas operárias, greves etc., contra a
autocracia do capital” (Idem, p. 66). Também assinala que não passava de ideologização a
afirmação dos economistas burgueses (James Mill, Mac Culloch, Torrens, Sênior, J. St.
Mill) de que a maquinara, ao substituir os trabalhadores, permite e obriga ao mesmo tempo
mobilização de capital para o emprego desses trabalhadores, em outros setores de produção
ou na própria produção de máquinas (Idem, p. 69). A crítica de Marx é precisa, registrando
que, no melhor dos casos, a fabricação de novas máquinas dará sempre trabalho a menos
trabalhadores do que os substituídos por seu emprego.
269
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270
adquire elasticidade, uma súbita capacidade de expansão aos saltos, que só
na matéria-prima e no mercado de escoamento encontra limites. A
maquinaria efetua, por um lado, aumento direto de matéria-prima... Por
outro lado, barateamento do produto da máquina e sistemas
revolucionados de transporte e de comunicação são armas para a conquista
de mercados estrangeiros. [...] A constante “transformação em excedentes”
dos trabalhadores dos países da grande indústria promove de maneira
artificialmente rápida a emigração e a colonização de países estrangeiros,
que se transformam em áreas de plantações das matérias-primas do país de
origem [...] Cria-se nova divisão internacional do trabalho, adequada às
principais sedes da indústria mecanizada, que transformam parte do globo
terrestre em campo de produção preferencialmente agrícola para o outro
campo preferencialmente industrial. [...] (Marx, 1996, Tomo 2, p. 81-82)
271
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Essa situação não decorria de dádiva da burguesia ou de seus representantes
legislativos ou executivos, mas como uma exigência do próprio desenvolvimento da
indústria moderna que, ao atingir certo nível, transforma os espíritos “mediante o
revolucionamento do modo de produção material e das relações sociais de produção”
(Idem, p. 112, nota de rodapé 285). Essa observação decorreu de análise feita por Nassau
William Senior, no 7º. Congresso anual da National Association for the Promotion of
Social Science, realizado em Edimburgo, em 1863, que era de opinião que “a jornada
escolar unilateral, improdutiva e prolongada das crianças das classes alta e média
aumentava inutilmente o trabalho dos professores, ‘enquanto desperdiça tempo, saúde e
energia das crianças não só de modo infrutífero, mas absolutamente prejudicial’” (Idem, p.
112). Era assim que Marx caracterizava a educação burguesa: uma educação unilateral,
improdutiva e prolongada, que aumentava inutilmente o trabalho docente e desperdiçava
tempo, saúde e energia das crianças. Mas, expressando as contradições decorrentes das
lutas entre as classes básicas da sociedade capitalista, do próprio sistema fabril emergia o
“germe da educação do futuro” e que, diferentemente da educação burguesa, conjugaria o
trabalho produtivo, com o ensino e a ginástica.
Essa educação omnilateral era como que uma resposta do proletariado à divisão
do trabalho implementada pela forma capitalista da indústria moderna e que transformou o
trabalhador em mero acessório da máquina. Na fábrica moderna a maquinaria impõe ao
trabalhador, desde a mais tenra idade, a repetição de operações extremamente simples e
que não exigem ou resultam em nenhum aprendizado ou instrução, só a repetição de tarefas
rotineiras, no ritmo imposto pela máquina. Marx exemplifica essa situação com o trabalho
nas tipografias inglesas, na manufatura e depois da introdução da máquina impressora. Na
manufatura o aprendiz passava por todas as etapas do trabalho, do mais simples ao mais
complexo, e saber ler e escrever era uma exigência do ofício; com a máquina passou-se a
empregar dois tipos de trabalhadores: um adulto para supervisionar o trabalho da máquina,
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274
necessariamente ocorre todo fazer produtivo do corpo humano, apesar da
diversidade dos instrumentos utilizados, assim como a Mecânica não se
deixa enganar pela maior complicação da maquinaria quanto à repetição
constante das potências mecânicas simples. A indústria moderna nunca
encara nem trata a forma existente de um processo de produção como
definitiva. Sua base técnica é, por isso, revolucionária, enquanto a de todos
os modos de produção anteriores era essencialmente conservadora. (Marx,
1996, Tomo 2, p. 114-115)
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Em nota de rodapé Dangeville esclarece o leitor sobre a correspondente russa de Engels, a professora
Gorbunova-Kablukova: “A correspondente russa de Engels, antiga professora da escola profissional de
Moscovo, dirigira-se no início de Julho de 1880 a Engels a fim de lhe colocar a questão de saber quais
podiam ser o papel e o futuro das escolas profissionais na Rússia da época, e quais deviam ser os meios a
utilizar para combinar os grandes empreendimentos nascentes com as condições sociais dos campos russos,
onde predominava a indústria doméstica. A correspondente de Engels queria, não tanto em teoria como na
prática, fazer alguma coisa neste domínio para os trabalhadores russos, a fim de lhes evitar as torturas
inúteis da fase da acumulação primitiva.” (Dangeville, 1978, p. 75, nota 28).
276
mandam as crianças abandonadas durante alguns anos na seqüência de um
julgamento em tribunal” (Idem, p. 76). As “escolas de promoção para os operários
adultos” tinham as mesmas características que as anteriores, sendo que as exceções
resultavam das circunstâncias e do trabalho de “personalidades particulares”,
constituindo-se em “instituições locais e temporárias”. Engels foi taxativo em sua
avaliação sobre o ensino profissional: “Não se pratica, neste domínio, senão uma
coisa, de maneira sistemática: a charlatanice” (Idem, ibidem).
Certamente que, da época de Marx e Engels à atualidade, o sistema educacional
técnico para a juventude deu um salto quantitativo estupendo, em todo o mundo;
igualmente ocorreram avanços qualitativos, acompanhando o desenvolvimento das forças
produtivas e que exige, em níveis ampliados, a formação de técnicos e tecnólogos numa
escala adequada à transformação produtiva. Mas com relação aos cursos de qualificação
profissional, voltados ao que se convencionou denominar de “reciclagem” dos
trabalhadores desempregados, não é outra a visão que tenho nos dias de hoje: em sua maior
parte não passam de charlatanice.
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278
Novamente, perdendo de perspectiva o caráter datado da obra marxiana e sua
perspectiva política de entendimento do trabalho e da instrução politécnica, Nogueira
encontra nesse trecho a idéia de impossibilidade de exclusão da criança do universo da
fábrica e, “como que se defendendo de uma eventual acusação de oportunismo”, entende
que Marx “aproveita a ocasião” e reafirma “um princípio que ele lutara outrora por inserir
na plataforma do movimento comunista”, qual seja: de que “não se trata de suprimir o
trabalho das crianças, mas sim de lhes garantir condições dignas de trabalho e, sobretudo,
de lhes assegurar o acesso aos estudos teóricos em articulação com a sua prática
profissional, meio privilegiado de luta contra a divisão do trabalho estabelecida em nossas
sociedades” (Nogueira, 1990, p. 30).
A autora não está interessada em discutir a idéia de articulação entre estudo e
trabalho, mas sim a suposta previsão marxiana e o desmentido histórico que fez com que a
fábrica sobrevivesse à abolição do trabalho infantil. Nogueira reconhece, entretanto, que a
tendência a dispensar o uso do trabalho da criança começou “a se esboçar após o período
em que Marx desenvolveu as suas pesquisas” (Idem, pp. 30-31), e que decorreu da
combinação de vários fatores: do progresso tecnológico, do combate à exploração do
trabalho infantil e feminino e que resultou em medidas de proteção à infância, da
mobilização de outras fontes de força de trabalho, como a imigração de trabalhadores.
Disso conclui que, do desenvolvimento de condições técnicas e sociais da produção e da
resistência da classe operária, a criança pode ser liberada do mundo da produção nos países
do “centro” do capitalismo, ainda que nos países “periféricos” (como observa a autora na
nota de rodapé 12, p. 31), a mão-de-obra infantil continue a ser explorada, em condições
análogas às descritas por Marx e Engels.
Sobre o assunto, conclui que “Marx foi provavelmente vítima de seu contexto
sócio-econômico” - a primeira fase da industrialização – que aparentava que a indústria,
“com seu enorme apetite de braços... não mais poderia renunciar à mão-de-obra infantil”
(Idem, ibidem).
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280
contexto histórico que se abre a partir do fim do século XVIII na Inglaterra, geralmente
denominado como “Revolução Industrial”, ou “Primeira Revolução Industrial”, e que foi
marcado pela utilização da máquina a vapor, do coque, com colossal desenvolvimento da
indústria têxtil e uma estrondosa transformação nos transportes, com construção de
extensas redes ferroviárias e de frotas de navio impulsionado a vapor, etc. Para demonstrar
o que isso implicava aos trabalhadores, um dos focos tratados por Marx, como se viu, foi a
ampliação do uso do trabalho das mulheres e do trabalho infantil nas fábricas nascentes.
Como já analisado no item anterior, a Revolução Industrial representou uma
série de transformações técnicas e sociais da produção e que marcaram a transição de uma
produção de caráter artesanal, para a produção industrial moderna. Nessa transformação, o
modo de trabalho, antes baseado principalmente na habilidade e destreza do trabalhador,
foi gradativamente substituído por uma nova organização da produção, assentado num
sistema de máquinas e que impôs à produção um ritmo e uma regularidade de produção
independente do trabalhador, garantindo rapidez, precisão, regularidade, infatigabilidade.
Nesse processo de transformação, as fontes tradicionais de energia (força
humana ou animal), cederam lugar ao uso de forças controláveis, como a energia hidráulica
e, principalmente, o vapor, dotando a produção de crescente independência em relação aos
acasos da natureza e em fator de elevação da produtividade. Essas transformações técnicas
foram acompanhadas por transformações sociais mais amplas, devendo-se assinalar as
transformações que se processaram na organização do trabalho, com a emergência do
sistema fabril, a concentração de trabalhadores assalariados num mesmo teto, organizados
segundo uma disciplina e vigilância instituída do exterior.
Além de registrar as transformações mais gerais da produção, o olhar de Marx e
Engels direcionou-se para o registro da deterioração das condições de trabalho, na extensão
da jornada e da intensificação do ritmo de trabalho, da redução dos salários e na
conseqüente utilização intensiva da força de trabalho de mulheres e crianças. Não esquecer
que, para além da esfera produtiva, a Revolução Industrial constitui-se num amplo
movimento que transformou praticamente todos os setores da vida social, das organizações
e instituições sociais e políticas às mentalidades.
A história social assinala duas dessas principais transformações: o fenômeno da
urbanização, por um lado, caracterizada pela reunião de grandes contingentes
populacionais nas cidades, que passaram a concentrar as diferentes atividades organizativas
da sociedade, como as produtivas, administrativas, intelectuais e outras; e, de outro lado, a
280
constituição de uma classe operária – o proletariado – também composto por mulheres e
crianças, decorrência da sub-remuneração dos trabalhadores masculinos adultos. Mas o
trabalho infantil não foi invenção capitalista, pois seu uso é anterior à industrialização e já
existia em épocas anteriores, como registram vários estudos historiográficos, assim
sintetizados por Maria Alice Nogueira:
Seria [...] errôneo supor que o trabalho infantil data do século XIX e
que foi a Revolução Industrial a responsável por ele, pois, em épocas
anteriores, já se fazia uso da criança, embora sob outras formas. No meio
rural, geralmente no quadro da família, a criança se ocupava de certas
tarefas como, por exemplo, respigar e capinar o terreno, revolver o feno
ou, mais comumente, guiar o rebanho [...] Já mais citadina, a oficina do
artesão também empregava — como se sabe — o aprendiz, ao lado do
oficial, sob a orientação do mestre. Isso sem falar no papel desempenhado
pela criança nas famílias que viviam do trabalho domiciliar. Mas, se a
indústria não foi a causadora do fenômeno, ela não é menos responsável
por sua profunda transformação: a difusão em larga escala do trabalho
infantil e, sobretudo, as penosas condições em que ele passa a se dar.
(Nogueira, 1990, p. 25)
281
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282
aplicação capitalista da maquinaria”. (Idem, p. 28). Análise semelhante Engels já havia
feito anteriormente, em 1845, relatando que a introdução da máquina não só permitiu
como, de certa forma, requereu o trabalho infantil, ao dispensar a força física e demandar
agilidade e flexibilidade do trabalhador. Engels sugeriu, outrossim, que razões
inseparavelmente técnicas e sócio-econômicas foram responsáveis pelo uso da mão-de-
obra infantil. Suas observações são lapidares nesse sentido:
[...] Numa família onde todos trabalham, cada membro pode ganhar um
pouco menos, e a burguesia aproveitou amplamente a ocasião que lhe foi
oferecida pelo trabalho mecânico para utilizar e explorar as mulheres e as
crianças tendo em vista a redução dos salários. [...] (Engels, 1985, p. 95)
283
284
284
Na imediata sequência Engels registra as repercussões que os abusos patronais contra a
infância provocavam na opinião pública, ao final conduzindo à votação da lei sobre os
aprendizes, em 1802, pelo parlamento inglês. A aplicação dessa legislação se deu
gradativamente, com transformações na indústria: “[...] Pouco a pouco as fábricas foram
construídas, sobretudo nas cidades, aperfeiçoando as máquinas e construindo edifícios
mais arejados e mais sãos... enquanto se elevou a idade média em que se começava a
trabalhar”, mas ainda foi necessária intervenção do poder legislativo, “para proteger as
crianças contra a rapacidade da burguesia” (Engels, 1985, p. 172).
285
286
Marx ilustrou ainda mais estes fatos, em uma nota de rodapé, citando exemplos
mencionados por F. Horner, em depoimento perante a Câmara dos Comuns, onde
afirmava:
286
Marx afirma que, a partir desse momento, o industrial pôde dispensar as
workhouses como fonte principal de abastecimento. Agora, a mercadoria
força de trabalho infantil será diretamente fornecida ao fabricante, pelo pai
de família... (Nogueira, 1990, p. 34-35)
Como não era o trabalhador que vendia sua própria força de trabalho, como
uma pessoa formalmente livre, era uma situação análoga ao trabalho escravo. Estando o
fabricante na condição de “proprietário virtual da criança”, julgava ter vastos poderes
sobre as condições de vida e de trabalho das crianças, levando “aos maus-tratos e à
sobrecarga de trabalho” (Idem, p. 35). Isso levou ao estabelecimento de limitações legais
impostas pelo Estado, na primeira parte do século XIX, quando o uso do menor pelos
capitalistas foi normatizado e submetido a restrições legais, como já apontei.
Para melhor e mais amplamente entender como, historicamente, se deu a
utilização da força de trabalho infantil, Nogueira sistematizou a contribuição de vários
autores102, notadamente D.S. Landes e sua obra L’Europe technicienne ou le Prométhée
libere. Fazendo uma relação entre os fatores técnicos da produção e as transformações no
recrutamento da criança, formula três grandes momentos, ou três etapas, quanto ao uso do
trabalho infantil.
102
Para registro e consulta, Nogueira referencia as obras dos seguintes autores:
D. LANDES, L’Europe technicienne ou le Prométhée libéré — révolution technique et libre essor industriel
en Europe occidentale de 1750 à nos jours. Paris, Gallimard, 1975.
SANDRIN, Enfants trouvés, en/ants ouvriers — XVJP-X1X siècle. s 1., Aubier, 1982.
DOUAILLER e P. VERMEREN, Les enfants du capital: de l’hospice à la manufacture, in Les Révoltes
Logiques, Paris, n.0 3, 1976, p. 9.
R. BIED e R. PONTHUS, Le travail des enfants au XJX siècle. Sercice Educatif des Archives
Departamentales et Centre Départamental de la Documentation Pédagogique du Vai-de-Mame, 1982
287
288
288
trabalho noturno. Em algumas fábricas havia 2 equipes de operários, cada
qual suficientemente numerosa para fazer funcionar toda a fábrica; uma
trabalhava durante as doze horas do dia, a outra as doze horas da noite.
Não é dificil imaginar as conseqüências que fatalmente teriam sobre o
estado físico das crianças, e mesmo dos adolescente e adultos, esta
privação permanente do repouso noturno, que nenhum sono diurno poderia
substituir. Sobre-excitação do sistema nervoso ligada a um
enfraquecimento e a um esgotamento de todo o corpo, tais eram as
consequencias inevitáveis. (...) (Engels, 1985, p. 173-174.
Os maus tratos e a disciplina rigorosa, referida por Engels, são confirmados por
trabalhos sobre o período que assinalam o aumento de rigor e severidade “à medida que os
progressos da mecanização ganhavam terreno”, com a introdução de multas, para o não
cumprimento dos horários e das regras e prescrições estabelecidas pelo patronato, e da
brutalidade e violência física como punição para as faltas graves, sendo que “os próprios
operários tinham o hábito de bater nas crianças sob o pretexto de se servirem de métodos
que [...] já tinham provado a sua eficácia” (Nogueira, 1990, 60). Ainda baseado nos
relatórios dos inspetores de fábrica, Engels assim registrou os maus-tratos às crianças:
[...] E isso não é nada perto dos atos de barbaridade individuais que se podem ler:
crianças tiradas da cama completamente nuas pelos vigilantes que as empurram a
murro e a pontapé para a fábrica, com as roupas debaixo do braço. Batem-lhes para
mantê-las acordadas, e apesar de tudo elas adormecem no trabalho; lê-se que uma
pobre criança adormecendo após as máquinas terem parado e sobressaltada pela
chamada brutal do vigilante, fazia, de olhos fechados, os gestos mecânicos do
trabalho; lê-se que as crianças, muito fatigadas para poderem voltar para casa
escondiam-se sob a lã na oficina de secagem, para dormirem, e apenas-
conseguiam expulsá-las da fábrica a golpes de chibata; que centenas de crianças
voltavam todas as tardes tão cansadas para casa que o sono e a falta de apetite as
impediam de jantar e que os pais as encontravam ajoelhadas diante da cama,
porque tinham adormecido durante as orações; quando lemos tudo isso e centenas
de outras infâmias e horrores, só neste relatório, tudo declarado sob juramento,
confirmado por vários testemunhos, exposto por pessoas que os próprios
comissários classificam de dignas de fé, quando pensamos que se trata de um
relatório liberal, um relatório da burguesia destinado a rebater o relatório
precedente dos tories e a demonstrar a pureza de coração dos industriais, quando
pensamos que os próprios comissários estão do lado da burguesia, e só contrafeitos
relatam estes fatos – como não ficar indignado, enraivecido contra esta classe que
se gaba de ser filantrópica e desinteressada, quando a única coisa que lhe interessa
é encher os bolsos à tout prix? (Engels, 1985, p. 189)
289
290
acabam sendo validados no ímpeto de satisfazer “à voracidade dos capitalistas”, com amplo
uso da violência contra crianças, com a materialidade do chicote, transformado em
instrumento de trabalho103, comprovando as infâmias e horrores a que os trabalhadores
infantis estavam submetidos. A importância do trabalho infantil pode ser aquilatada, quanto
ao número de braços infantis empregados, pelos dados constantes em tabela de 1835, como
se encontra a seguir:
103
A esse respeito, Maria Alice Nogueira reproduziu em sua tese – Educação, Saber, produção em Marx e
Engels, uma nota de rodapé feita por Villermé no relatório da sua célebre enquete de 1837 sobre o “estado
físico e moral dos operários” na França, no qual se destaca o uso do nerf de boeuf (chicote):
“Lê-se no mesmo jornal [trata-se do Industriel de la Champagne], datado de 2 de outubro de 1835, que “em
alguns estabelecimentos da Normandia, por exemplo, o nerf de boeuf, colocado em cima da máquina, figura
entre os instrumentos de trabalho [...] Tal fato, afirma o Sr. Redador, foi-me confiado, em Paris, por diversos
fabricantes e por mulheres dos fabricantes, as quais tremiam ao contá-lo. Uma dessas mulheres me dizia que,
nos momentos de intensa atividade, quando os operários passam a noite trabalhando, as crianças têm
igualmente de permanecer acordadas e trabalhar, e que, quando essas pobres criaturas, sucumbindo ao sono,
cessam de agir, desperta-se-lhes de todas as maneiras possíveis, inclusive com o nerf de boeuf”. Eu relato
este fato, mas o encaro apenas como uma rara exceção.” [L. R. VILLERMÉ, Tableau de l’état physique et
moral des ouvriers. Jules Renouard et Cie Libraires, Paris, 1840, t. II, p. 116-7] (NOGUEIRA, 1990, p. 61)
290
predominante do trabalho infantil, abarcando 2 / 3 do total de trabalhadores, entre os quais
se destaca a forte participação de crianças, como pode-se observar nos dados relativos
constantes da Tabela a seguir:
% % % Jovens % % Trab
Homens Mulheres do total Crianças Infantis do
de trab. do total de Total de
trab. trabalhadores
Inglaterra 48,69 51,31 51,73 23,22 74,95
País de Gales 35,31 64,69 50,00 12,57 62,57
Escócia 33,21 66,79 56,23 21,98 78,21
Irlanda 38,20 61,80 33,70 17,35 51,05
Total 46,12 53,88 52,02 22,86 74,88
[...] Quanto mais os gestos dos braços, os esforços musculares, são, devido à
entrada em serviço de máquinas, realizados pela energia hidráulica ou pela força
do vapor, menos se necessita de homens. E como de resto as mulheres e as
crianças são mais rentáveis e mais hábeis que os homens neste tipo de trabalho,
são estas que são empregadas. Nas fiações, encontramos nas Throstles apenas
mulheres e meninas, nas Mules um fiador, um homem adulto (até desaparecer, com
o uso da self-actors) e vários piecers encarregados de reparar os fios, que a maioria
das vezes são crianças ou mulheres, por vezes jovens de 18 a 20 anos, de vez em
quando um fiador idoso que perdeu o seu lugar. A maior parte das vezes são
mulheres de 15 a 20 anos ou mais que trabalham no tear mecânico; também há al-
guns homens, mas que raramente conservam este emprego depois dos 21 anos. Nas
máquinas de pré-fiar, também só se encontram mulheres ou quando muito há
291
292
292
Tal é o preço que a sociedade paga para dar às belas damas da burguesia
o prazer de usar rendas - e não é barato? Somente alguns milhares de operários
cegos, algumas filhas de proletários tísicas e uma geração raquítica desta
população, que transmitirá as suas enfermidades aos filhos e aos netos. E que
importa? Nada, absolutamente nada. A nossa burguesia fechará com indiferença o
relatório da comissão governamental e continuará a ornamentar com rendas as suas
esposas e filhas. Que bela coisa, a serenidade de alma de um burguês inglês!
(Engels, 1985, p. 220).
104
Sobre os estudos históricos que abordam a infância, destaque necessário é a obra de Philip Ariès, História
Social da criança e da família, (1981); no Brasil são conhecidos os estudos de Marcos Cezar de FREITAS
(1997) e de Moysés KUHLMANN JR. (1998), situados no movimento da Nova História. Uma leitura crítica
da problemática da infância pode ser encontra na tese de doutorado de Alessandra Arce, publicada sob o
título A pedagogia na “Era das Revoluções” (2002), e em denso artigo de Paolo NOSELLA, “A linha
vermelha do planeta infância: o socialismo e a educação da criança” (2002).
293
294
Voltando a Engels, merece destaque o exame que fez das conseqüências que as
condições de trabalho tinham sobre as condições de vida das crianças, particularmente
sobre a sua saúde, descrição para a qual Engels adotou como principal fonte os relatórios
da Factory Enquiry Commission, de 1833. Abrindo uma série de passagens sobre o estado
de saúde dos pequenos trabalhadores, Engels exprimiu a idéia de que os filhos de operários
sofriam, desde o nascimento, de condições de vida inferiores em relação às demais
crianças, pois nasciam e cresciam na miséria, em meio a todo tipo de privações. A essa
origem de classe, cujas condições de vida eram francamente desfavoráveis ao pleno
desenvolvimento infantil, somar-se-iam os efeitos nocivos da fábrica e sua atmosfera
asfixiante, quente e úmida, que agravavam, ainda mais, os nefastos efeitos para o
desenvolvimento físico e intelectual das crianças trabalhadoras. A citação que segue é
ilustrativa:
294
fatores de enfraquecimento que persistem junta-se também o trabalho. É verdade
que não podemos negar que uma criança de nove anos, mesmo filha de um
operário, possa suportar um trabalho cotidiano de seis horas e mais sem que daí
resultem para o seu desenvolvimento efeitos nefastos visíveis, de que este trabalho
seria a causa evidente. Mas temos que confessar que a permanência na atmosfera
da fábrica, sufocante, úmida, por vezes de um calor morno, não poderia em
qualquer dos casos melhorar a sua saúde. (Engels, 1985, p. 172-173)
295
296
“Penso que acaba de ser claramente demonstrado que as crianças são obrigadas a
fornecer um trabalho de uma duração irracional e cruel e que até os adultos têm de
fazer um trabalho que ultrapassa as forças de um ser humano. As conseqüências
são que muitos morrem prematuramente, outros sofrem toda a vida os efeitos de
uma constituição deficiente e que, psicologicamente falando, os receios de ver
nascer gerações enfraquecidas pelas taras dos sobreviventes parecem muito
fundamentados.” (apud Engels, 1985, p. 180).
296
[...] Os relatórios da comissão sobre estes atos de barbaridade e as suas
conseqüências ultrapassam tudo o que foi possível conhecer neste domínio. [...] Os
comissários relatam que têm conhecimento de um grande número de enfermos,
cuja doença provém indubitavelmente das longas horas de trabalho. Esta
enfermidade consiste na maioria das vezes num desvio da coluna vertebral e numa
deformação das pernas...
[...]
Têm todos a mesma silhueta, os joelhos curvados para dentro e para trás, os pés
voltados para dentro, as articulações deformadas e grossas e muitas vezes a coluna
está desviada para a frente ou para o lado. Mas são os bons industrias filantropos
do distrito de Macclesfield, onde se trabalha a seda, que parece terem maior
responsabilidade nisso, o que também provém do fato de crianças muito pequenas,
de cinco ou seis anos, trabalharem nessas fábricas. [...] (Engels, 1985, p. 174 e
176)
Engels tinha muito claro, e expressava essa clareza, que as crianças eram as
principais vítimas das péssimas condições de vida e trabalho do nascente ambiente fabril
inglês. A descrição que fez das conseqüências do regime de fábrica sobre a saúde das novas
gerações são inequívocas: crianças extenuadas pelo trabalho, privadas de repouso,
297
298
estropiadas e marcadas pelo resto da vida por graves deficiências e enfermidades. O tempo
que deveriam aproveitar para aproveitar para exercitar o corpo e a mente, articulando
brincadeiras, exercícios físicos e ensino, era expropriado pelo capital, em seu próprio
benefício. Engels não economizou tinta no registro e detalhamento da situação de vida da
classe trabalhadora e, para além do relato, nos faz reportar que, ontem como hoje, é
impossível ficar calado, pois não há “[...] como não ficar indignado, enraivecido contra
esta classe que se gaba de filantrópica e desinteressada, quando a única coisa que lhe
interessa é encher os bolsos à tout prix?” (Engels, 1985, p. 189). Encerrando sua obra, o
jovem Engels expressou sua esperança da ocorrência da revolução, de seu caráter
comunista, e que os embates entre as classes fundamentais da sociedade estavam prestes a
ocorrer:
[...] É tarde para uma solução pacífica. O abismo que separa as classes cava-se
cada vez mais, o espírito de resistência penetra cada vez mais nos operários, a
exasperação torna-se mais viva... bastará, em breve, um ligeiro choque para
desencadear a avalancha. Então, um verdadeiro grito de guerra ecoará em todo o
país: Guerra as palácios, paz, nos casebres! (Engels, 1985, p. 332-333)
105
Este item, em suas linhas gerais, segue a preciosa elaboração do terceiro capítulo, “A história da
regulamentação do trabalho da criança na Inglaterra”, da tese doutoral de Maria Alice Nogueira (1990, pp.
42-58).
106
Engels tinha, quando escreveu A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, 25 anos. Como se sabe,
foi a colaboração no único número dos Anais Franco-Alemães, publicado em fevereiro de 1844, que marcou
o início da relação entre os dois amigos e delineou um processo de colaboração mutua, do qual resultou a
concepção materialista dialética da história. Em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (de l845),
Engels fez uma crua descrição dos resultados da revolução industrial na Inglaterra e da cruel pobreza do
proletariado urbano, com forte ênfase sobre a brutalidade e desamparo da classe trabalhadora. Já não escrevia
como moralista ou filantropo. Convertido ao socialismo, ficou convencido que era a condição de vida da
298
diferença de abordagem quanto à regulamentação do trabalho infantil. Engels, no capítulo
dedicado aos “operários fabris propriamente ditos”, faz uma descrição da série de leis
promulgadas pelo Parlamento inglês durante a primeira metade do século XIX; Marx, em
diferentes passagens do Livro Primeiro d’O Capital, busca interpretar o aporte jurídico,
pressupondo a exploração do proletariado pela burguesia, decorrência da acumulação do
capital e da luta entre essas classes. Um passeio pelas por essas duas obras é essencial para
o delineamento da compreensão que esses autores tinham a respeito da problemática
infantil.
classe trabalhadora que a levaria a empreender uma revolução socialista, por seus próprios meios e em alguns
anos. Nessa obra fica claro que não se baseava em idéias gerais sobre a natureza humana ou numa
perspectiva essencialista que pressupunha a existência humana em conformidade com a essência da
humanidade. Buscava um conhecimento das condições de vida e tendências de desenvolvimento da classe
trabalhadora. Engels baseou sua predição no marco de uma rígida separação de classes, sendo o proletariado
não somente a classe mais oprimida e afetada, senão a classe destinada a colocar um fim em toda opressão.
Ao mesmo tempo, quando Engels descrevia com riqueza de detalhes a boa vida da burguesia inglesa, não
considerava que sua conduta se devesse à depravação moral, senão que a considerava como um efeito
inevitável da situação de uma classe de homens obrigada por uma asfixiante competência a explorar ao
máximo a seu próximo.(KOLAKOWSKI , 1985, pp. 150-151).
299
300
A referência de Engels ao ano de 1796 deu-se porque este ficou como um marco
do desencadeamento do movimento de proteção à infância operária, data em que um
médico de Manchester, Dr. Percival, a pedido da secretaria de saúde da cidade, elaborou
um relatório sobre a situação dos aprendizes e que serviu de base ao projeto de lei
apresentado à Câmara dos Comuns, seis anos depois, pelo industrial algodoeiro Sir R. Peel.
O projeto foi aprovado e se transformou em uma “lei sobre a saúde física e moral dos
aprendizes” que, em linhas gerais, previa: a) limitação da jornada de trabalho dos
aprendizes a 12 horas; b) proibição do trabalho noturno (entre 21:00 e 6:00 horas) à
criança; c) utilização de parte da jornada de trabalho para a instrução das crianças, sendo a
instrução religiosa obrigatória; d) estabelecimento de medidas sanitárias concernentes à
limpeza, aeração etc. das oficinas de trabalho, dormitórios e outros locais coletivos.
Certamente essa lei não foi respeitada na prática pelos industriais, em razão das
imperfeições e brechas em sua formulação107, mas principalmente pela ausência de
fiscalização quanto à sua aplicação, tarefa atribuída a membros da elite local, como
magistrados, autoridades eclesiásticas e outros, nomeados pelo juiz de paz do condado, a
título de benevolência (sem remuneração), e que contribuíram para tornar a lei uma “folha
morta”.
Apesar da legislação, os movimentos sociais em defesa dos operários e de
proteção à criança trabalhadora continuaram, resultando no encaminhando de inúmeros
requerimentos ao Parlamento inglês, solicitando proteção legal à saúde dos trabalhadores,
notadamente as crianças. Essas petições levaram as autoridades governamentais à
constituição de uma comissão de inquérito, cujos debates se estenderam por alguns anos,
com a tomada de depoimentos e manifestações, entre elas a do industrial de New Lanask e
socialista utópico Robert Owen. O resultado foi que, após a Apprentice Bill, mais três
outras leis (respectivamente em 1819, em 1825 e em 1831) foram promulgadas pelo
Parlamento, por requerimento de Robert Owen e outros industriais filantropos, assim
registrado por Engels:
[...] Mais tarde, por volta de 1817, o futuro fundador do socialismo inglês, então
industrial de New Lanark, na Escócia, Robert Owen, chamou a atenção do poder
107
Nogueira esclarece que a lei usava exclusivamente o termo “aprendiz” e que, na época, na Inglaterra, era
usado para referência às crianças amparadas pelas paróquias. Para contornar os termos da lei, bastava que os
fabricantes, astutamente, evitassem o emprego de assistidos por paróquias, em favor dos filhos das próprias
famílias operárias (NOGUEIRA, 1990, p. 44).
300
executivo, por meio de petições e memorandos, para a necessidade de garantias
legais para a saúde dos operários, principalmente das crianças. Sir Robert Peel,
bem como outros filantropos, juntaram-se a ele entusiasticamente e tanta pressão
fizeram que obtiveram sucessivamente o voto das leis sobre as fábricas de 1819,
1825 e 1831, tendo a última sido apenas parcialmente observada e as duas
primeiras nem sequer parcialmente. [...] (Engels, 1985, p. 191-192)
[...] A lei de 1831, baseada num projeto de Sir John Cam Hobhouse, estipulava que,
em nenhuma fábrica de algodão, pessoas com menos de 21 anos poderiam
trabalhar de noite; quer dizer, entre as sete e meia da noite e as cinco e meia da
manhã, e que em todas as fábricas os jovens menores de 18 anos deveriam trabalhar
no máximo 12 horas por dia e 9 horas aos sábados. Mas como os operários não
podiam testemunhar contra o patrão, sem serem imediatamente despedidos, esta
foi pouco útil. Nas grandes cidades onde os operários eram mais ativos, os
301
302
Engels considerava a lei de 1833 como a mais importante, sendo ela ponto
culminante de toda essa legislação. Ela foi o resultado do relatório de uma comissão de
inquérito, requerida por um membro da Câmara dos Comuns – Lord Ashley - que, em
nome da burguesia liberal, solicitava a constituição de comissão oficial que fizesse ampla e
profunda investigação sobre a situação das crianças trabalhadoras. É de Engels o
entendimento que o “Report of the select Commitee on the Bill to regulate the Labour of
the Children in the Mills and Factories”, teve como conseqüência a lei fabril de 1833,
assunto sobre o qual escreveu que:
Este relatório teve por conseqüência a lei de 1833 sobre as fábricas que proibiu o
trabalho das crianças menores de 9 anos (exceto nas fábricas de sedas); limitou o
tempo de trabalho das crianças entre os nove e os treze anos a 48 horas por semana
ou ao máximo de 9 horas por dia; o trabalho dos jovens entre 14 e 18 anos a 69
horas por semana ou ao máximo de 12 horas por dia; fixou um mínimo de hora e
meia de descanso para as refeições e proibiu outra vez o trabalho noturno para
todos os jovens menores de 18 anos. Ao mesmo tempo, a lei instituía uma
freqüência escolar obrigatória de duas horas por dia para todas as crianças menores
de 14 anos, e qualquer industrial que empregasse crianças não tendo nem certi-
ficado médico da idade passado pelo medico da fábrica, nem o certificado de
escolaridade passado pelo professor, incorria em penas previstas pela lei. Em
contrapartida, estava autorizado a reter todas as semanas para o professor um
penny sobre o salário da criança. Por outro lado, nomearam-se médicos de fábrica
e inspetores que tinham acesso à fábrica a qualquer hora e podiam ouvir os operá-
rios sob juramento, e que tinham por missão velar pelo respeito da lei,
apresentando queixas, se fosse necessário, ao juiz de paz. [...] (Engels, 1985, p.
194)
302
Para Engels, portanto, conforme pode-se deprender da citação anterior, essa lei
de 1883 teve vários avanços na regulamentação do trabalho infantil, entre os quais ele
destaca: idade mínima de admissão ao trabalho, estabelecendo proibição do trabalho de
crianças menores de 9 anos a idade – um princípio anteriormente proclamado na lei de
1819, mas não cumprido pelos donos de fábrica; a obrigatoriedade de atestado médico de
idade; limitação para 48 horas por semana a duração do trabalho das crianças entre 9 e
13 anos - ou, no máximo, a 9 horas por dia; manteve em 69 horas semanais a dos jovens
entre 14 e 18 anos ou, no máximo, a 12 horas por dia, continuando a mesma situação
anterior; a proibição de trabalho noturno para os menores de 18 anos, estipulado-se o
intervalo das 20:30 as 5:30 horas para sua realização; fixou um mínimo de uma hora e meia
de pausa para as refeições; instituiu, pela primeira vez, a obrigatoriedade de freqüência
escolar, de no mínimo de duas horas diárias e que deveria ser atestada mediante certificado
pelo professor responsável, ficando o empregador incurso nas penalidades previstas em lei;
apesar de obrigatória a freqüência, o ensino não era necessariamente gratuito, pois era
facultado ao industrial o desconto do pagamento do professor (fixado-se o limite de
desconto no valor de até 1 penny); quanto à inspeção, pela primeira vez era estabelecida a
criação do cargo de médico e inspetores de fábricas que, trabalhando regularmente, em
tempo integral e remunerados pelo Estado, com acesso às fábricas a qualquer hora,
podendo ouvir os operários, com a garantia do sigilo, tendo a tarefa de zelar pelo
cumprimento da lei e de apresentar relatórios anuais ao Parlamento. Esses relatórios, os
conhecidos Relatórios dos Inspetores de Fábrica (“Reports of the inspectors of factories”)
da Comissão sobre o Emprego de Crianças (“Children’s Employment Commission”),
serviram de base aos apontamentos históricos de Marx e Engels referentes ao trabalho
infantil.
Vários dos relatórios produzidos pelos Comissários, mesmo sabendo-se que
estes em sua maioria constituiam-se serviçais do patronato, constituem importante fonte de
informações, revelando que os males que afligiam os trabalhadores continuaram
praticamente os mesmos depois da lei de 1833.
A última desta série de leis que regulamentou, durante a Revolução Industrial, o
trabalho infantil na Inglaterra foi a de 1844108. Essa lei resultou de projeto apresentado em
108
As leis posteriores - Factory Act de 1847, Factory Act de 1850, Factory Acts Extension Act de 1867 etc. –
objetivaram a redução da jornada de trabalho do adulto, para menos de 12 horas, a extensão da legislação
fabril aos outros ramos industriais, a regulamentação do trabalho nas pequenas oficinas etc.
303
304
fevereiro de 1843, pelo Ministro do Interior inglês, James Graham, tendo duas principais
preocupações: a limitação da jornada de trabalho das crianças em 6 horas e meia e a
obrigatoriedade da escolarização dos infantes trabalhadores, em melhores escolas. O
projeto foi narrado por Engels nos termos que seguem:
[...] O ministro do Interior, Sir James Graham, propôs em 1843 uma lei tendente a
limitar o tempo de trabalho das crianças a seis horas e meia, e a tornar mais
rigorosa a obrigação escolar; mas o essencial era a criação de melhores escolas.
Esta lei falhou devido à inveja dos Dissenters109. Se bem que a obrigação do
ensino religioso não se estendesse aos filhos destes, a escola no seu conjunto era,
apesar de tudo, colocada sob a autoridade da Igreja oficial, e como a Bíblia era o
livro de leitura comum, a religião devia, por conseqüência, constituir a base de
todo o ensino e por isso os Dissenters sentiram-se ameaçados. Os industriais e, de
uma maneira geral, os liberais juntaram-se a eles. Os operários estavam divididos
sobre a questão religiosa e por isso permaneceram inativos. Apesar de tudo, a
oposição conseguiu reunir cerca de dois milhões de assinaturas nas listas da
petição contra a lei, se bem que fosse derrotada nas grandes cidades industriais,
Salford e Stockport por exemplo, e em outras, como Manchester, só pudesse atacar
alguns artigos da lei, por receio dos operários. Graham deixou-se intimidar a ponto
de retirar todos os artigos da lei. [...] As propostas de Graham mencionadas mais
acima acerca da duração de trabalho, fixado em 6 horas e meia e 12 horas para
cada uma das duas categorias de operários, tiveram então força de lei e, graças a
elas e também devido às restrições, feitas na prática, à recuperação das horas
perdidas (em caso de avaria da máquina ou de baixa de energia hidráulica, devido
ao frio ou à seca) e a outras restrições pequenas, tornou-se quase impossível
obrigar a trabalhar mais de 12 horas por dia. [...] (Engels, 1985, pp. 196-198)
109
Termo usado para os protestantes ingleses “não ortodoxos” – que não faziam parte da Igreja Anglicana.
304
4.5.2. A contribuição de Marx
Tal como Engels, para Marx foram as transformações na produção, o
desenvolvimento das forças produtivas e as conseqüentes transformações nas relações de
produção, notadamente a introdução da maquinaria, que agravaram consideravelmente as
condições de exploração dos trabalhadores, de modo particular para mulheres e crianças, na
época uma força de trabalho dócil, abundantemente disponível e pouco exigente. Também
para Marx, como a deterioração das condições de vida e trabalho do proletariado ocorria
muito rápida e aceleradamente, colocando em risco o desenvolvimento industrial, era
preciso afastar o prognóstico de um possível esgotamento do exército de trabalhadores.
Foi com base nessa constatação que Marx explicou a natureza das leis de
fábrica: elas eram freios para o capital e sua desmesurada absorção de força de trabalho,
como explicitou em O capital:
305
306
306
fantasia parlamentar. Desenvolveram-se progressivamente das próprias
circunstâncias, como leis naturais do modo de produção moderno. Sua
formulação, reconhecimento oficial e proclamação pelo Estado foram o
resultado de prolongadas lutas de classes. (Idem, p. 391 e 396)
Ainda com base nos registros da comissão de inquérito sobre o trabalho infantil,
num contexto marcado pela superexploração da criança, no que diz respeito às leis de
proteção da infância, Marx registra que não passavam de meios para limitar os abusos a
que era submetido o exército infantil de trabalhadores. As próprias exigências das cláusulas
educacionais não passavam de meios para poupar as crianças das nefastas condições de
110
Maria Alice Nogueira também faz referência a uma nota que o editor da tradução francesa acrescentou:
“No Boletim da Sociedade Industrial de Mulhouse (de 31 de maio de 1837), o doutor Penot (no relatório da
comissão encarregada de examinar a questão do emprego infantil nas fiações de algodão) diz: ‘A miséria
engendra, por vezes, nos pais de família, um odioso espírito de especulação para com os seus filhos; patrões
307
308
trabalho, mas apenas por algumas horas diárias de trabalho. Não se tratava de regulamentar
um novo direito - o direito à instrução – mas de restringir os abusos praticados pelos
industriais. Em longos trechos d’O Capital, tendo por fundamento que a concepção da
produção capitalista resplandecia com brilho na legislação educacional, Marx faz uma
caracterização do caráter ilusório da legislação protecionista da criança trabalhadora,
exemplarmente expressa nas cláusulas educacionais constantes da legislação fabril.
Tomando por base os registros de vários e referenciados inspetores de fábricas, Marx não
economizou tinta para citar longos trechos de seus relatórios, onde apontavam as
artimanhas e fraudes praticadas por industriais para burlar o cumprimento da legislação,
bem como para caracterizar a forma e o conteúdo da instrução ministrada às crianças, o
tipo de escola produzida por essa legislação e a competência dos professores contratados.
Apesar de longo, o longo trecho a seguir é altamente ilustrativo, basicamente composte de
citações dos Relatórios dos Inspetores de Fábrica, base das análises feitas por Marx:
são assim freqüentemente solicitados a receber, em seus estabelecimentos, crianças abaixo da idade ordinária
de admissão’.” (Cf. K. MARX, Le capital, ed. cit., t. II, p. 80; apud NOGUEIRA, 1990, p. 54)
111
Nota de Marx: HORNER, Leonard. In: Reports of Insp. ai Fact. for 3Oth Apríl 1857, p. 17
112
Nota de Marx: Id., in Reports of Insp. of Fact. for 3lst Oa. 1855, p. 18-9
308
assentamentos escolares, reparei, no entanto, que ela o escrevia de vários
modos, enquanto a sua letra não deixava nenhuma dúvida quanto à sua
incapacidade para lecionar. Ela mesma também reconheceu que não sabia
manter o registro. [. ..] Numa segunda escola, encontrei uma sala de aula
de 15 pés de comprimento e 10 pés de largura e nesse espaço contei 75
crianças que estavam grunhindo algo ininteligível.113
Não é, porém, apenas nessas covas lamentáveis que as crianças rece-
bem certificados escolares mas nenhuma instrução, pois, em muitas
escolas onde o professor é competente, os esforços dele são de pouca valia
em face do amontoado atordoante de crianças de todas as idades, a partir
de três anos. Sua receita, mísera no melhor dos casos, depende totalmente
do número de pence recebidos do maior número possível de crianças que
seja possível empilhar num quarto. A isso acresce o parco mobiliário
escolar, carência de livros e outros materiais didáticos, bem como o efeito
deprimente, sobre as pobres crianças, de uma atmosfera fechada e fétida.
Estive em muitas dessas escolas, onde vi séries inteiras de crianças não
fazendo absolutamente nada; e isso é certificado como freqüência escolar
e, na estatística oficial, tais crianças figuram como tendo sido educadas
(educated). 114
Na Escócia, os fabricantes procuram excluir, na medida do possível,
crianças obrigadas a freqüentar a escola.
Isso basta para demonstrar a grande hostilidade dos fabricantes contra
as cláusulas educacionais.115
Isso aparece de modo grotesco e horripilante nas estamparias de chita
etc., que são regulamentadas por uma lei fabril própria. Segundo as
determinações da lei:
‘Toda criança, antes de ser empregada numa dessas estamparias, deve
ter freqüentado a escola ao menos por 30 dias e por não menos de 150
horas durante os seis meses que precedem imediatamente o primeiro dia do
seu emprego. Durante a continuidade do seu emprego na estamparia,
precisa igualmente freqüentar a escola por um período de 30 dias e de 150
horas a cada período letivo semestral. [...] A freqüência à escola precisa
ocorrer entre oito horas da manhã e seis horas da tarde. Nenhuma
freqüência de menos de 2½ horas nem de mais de cinco horas no mesmo
dia deve ser calculada como parte das 150 horas. Em circunstâncias
normais, as crianças freqüentam a escola pela manhã e à tarde por 30 dias,
cinco horas por dia e, após o decurso dos 30 dias quando a soma
estatutária global de 150 horas foi atingida, quando elas, para usar seu
linguajar, acabaram seu livro, voltam para a estamparia, onde ficam de
novo por seis meses até que vença outro prazo de freqüência escolar, e
então ficam novamente na escola, até que acabem o livro novamente. [...]
Muitos jovens que freqüentam a escola durante as 150 horas requeridas,
quando voltam ao término dos seis meses de permanência na estamparia
estão no mesmo ponto em que estavam no começo. (...) Eles naturalmente
perderam tudo quanto tinham adquirido com sua freqüência anterior à
escola. Em outras estamparias de chita, a freqüência escolar é tornada
dependente, de modo total e absoluto, das necessidades de serviço da
fábrica. O número regulamentar de horas é preenchido a cada período
semestral mediante prestações de três a cinco horas por vez, que talvez
113
Nota de Marx: KINCAID, Sir John. In: Reports of Insp. of Fact. for 3lst Oct. 1858, p. 31-2
114
Nota de Marx: HORNER, Leonard. In: Reports of Insp. of Fact. for 3Oth April 1857, p. 17-8
115
Nota de Marx: KLNCAID, Sir John. In: Rep. Insp. Fact. 3lst Oct. 1856, p. 66
309
310
estejam dispersas pelos seis meses. Por exemplo, num dia a escola é
freqüentada das oito às 11 horas da manhã, noutro dia da uma até as quatro
horas da tarde e, depois da criança ter ficado ausente por uma série de dias,
volta subitamente das três às seis da tarde; então, aparece talvez por três a
quatro dias consecutivos, ou por uma semana, desaparece daí novamente
por três semanas ou por um mês inteiro e retorna por algumas horas
poupadas nos dias restantes, quando o seu empregador por acaso não
precisar dela; e, desse modo, a criança é, por assim dizer, chutada
(buffeted) da escola para a fábrica, da fábrica para a escola até que a soma
de 150 horas tenha sido completada.”116 (K. Marx. O Capital, 1996, t. 2, p.
33-36)
116
Nota de Marx: REDGRAVE, A. In: Reports ai Insp. of Fact. for 3lst Oct. 1857, p. 41-3. “Nos ramos
industriais ingleses em que vigora há mais tempo a lei fabril propriamente dita (não o Prints Work’s Act
referido por último no texto), os obstáculos contra as cláusulas educacionais foram um tanto superados nos
últimos anos. Nas indústrias não-sujeitas à lei fabril preponderam ainda muito as opiniões do fabricante de
vidros J. Geddes, que elucida ao comissário de investigação White: “Pelo que percebo, o maior montante de
educação que parte da classe trabalhadora usufruiu nos últimos anos é um mal. É perigoso porque os torna
independentes demais”. (Children’s Employment Commission, IV Report, Londres, 1865, p. 253).
310
É muito característico para o regime de Louis-Philippe, o rei burguês,
que a única lei fabril promulgada em seu reinado, de 22 de março de 1841,
não foi jamais aplicada. E essa lei refere-se apenas ao trabalho infantil.
Estabelece oito horas para crianças entre oito e 12 anos, 12 horas para
crianças entre 12 e 16 etc., com muitas exceções que permitem o trabalho
noturno até para crianças de oito anos. Vigilância e imposição da lei num
país onde cada rato é administrado policialmente, foram deixadas à boa
vontade dos amis du commerce. Somente a partir de 1853 existe num
único departamento, no departamento do Nord, um inspetor governamental
pago. Não menos característico do desenvolvimento da sociedade francesa
em geral é o fato de a lei de Louis-Philippe permanecer, até a revolução de
1848, como única em meio à fábrica francesa de leis que tudo envolve! (K.
Marx, O capital, 1996, t. 1, p. 391, nota 483)
311
312
Assinalemos, para terminar, que apesar das severas críticas tecidas por Marx à
legislação fabril, ele a reconhecia como um dos resultados das lutas do movimento
proletário e que, por isso, representavam o germe da educação do futuro “que há de
conjugar, para todas as crianças acima de certa idade, trabalho produtivo com ensino e
ginástica, não só como um método de elevar a produção social, mas como único método de
produzir seres humanos desenvolvidos em todas as dimensões” (Marx, O capital, 1996, t.
2, p. 112).
312
primário gratuito em França; pela lei de 28 de Março de 1882, este foi tornado obrigatório.
Na Inglaterra os primeiros passos na organização do sistema nacional de ensino foram
dados no governo liberal do Primeiro Ministro Gladstone, através de lei do ministro
Quaker W. Forster de 1870, mas somente em 1880 este ensino tornou-se obrigatório.
No que diz respeito a uma caracterização geral da instrução dos trabalhadores
ingleses, já afirmei que foi Engels que, com maior freqüência, abordou explicitamente a
questão, em A situação classe trabalhadora na Inglaterra. Tomando como fonte os
relatórios das comissões de fábrica, ele comentou, em linhas gerais, a instrução dos
trabalhadores industriais, enfocando alguns setores em particular, como a metalurgia, a
cerâmica ou a mineração. A citação do autor que segue, fornece um quadro geral das
condições intelectuais das crianças operárias e da instrução possibilitada pela burguesia aos
trabalhadores:
313
314
classe operária inglesa e que não esperaríamos encontrar mesmo num país como a
Espanha ou a Itália. Mas não poderia ser de outro modo; a burguesia tem pouco a
esperar mas muito a temer da formação intelectual do operário. No seu colossal
orçamento de 55.000.000 de libras esterlinas, o governo previu apenas um ínfimo
crédito de 40.000 libras esterlinas para a instrução pública; e se não fosse o
fanatismo das seitas religiosas, cujos inconvenientes são tão importantes como os
melhoramentos que introduz aqui e ali, os meios de instrução ainda seriam mais
miseráveis.
Assim, a igreja anglicana funda as suas National Schools e cada seita tem
as suas escolas, com a única intenção de conservar no seu seio os filhos dos seus
fiéis e se possível de arrebatar aqui e ali uma pobre alma infantil às outras seitas. A
conseqüência disso é que a religião, e precisamente o aspecto mais estéril da
religião, a polêmica, se torna o ponto fundamental da instrução, e que a memória
das crianças é saturada de dogmas incompreensíveis e distinções teológicas: logo
que isso é possível, desperta-se a criança para o ódio sectário e para espírito
fanático, enquanto que toda a formação racional, intelectual e moral é
vergonhosamente negligenciada. Os operários já exigiram muitas vezes do
parlamento uma instrução pública puramente laica, deixando a religião para os
padres das diferentes seitas, mas ainda não encontraram um ministério que lhes
tivesse concedido semelhante coisa. É normal! O ministro é o servo obediente da
burguesia, e esta divide-se numa infinidade de seitas; mas cada seita só consente
em dar ao trabalhador essa educação, que outro modo seria perigosa, se este, para
além disso, for obrigado a tomar o antídoto que constituem os dogmas específicos
desta seita. E hoje, enquanto estas seitas continuam a disputar a supremacia, a
classe operária permanece inculta. É verdade que os industriais se gabam de ter
ensinado a ler a grande maioria do povo, mas «ler» é uma maneira de dizer, como
mostra o relatório da Children's Employment Commission. Quem conhece o
alfabeto já diz que sabe ler e o industrial satisfaz-se com esta piedosa afirmação. E
quando pensamos na complexidade da ortografia inglesa, que transforma a leitura
numa verdadeira arte que só pode ser praticada depois de um longo estudo,
achamos esta ignorância compreensível.
Poucos operários sabem escrever corretamente e, quanto à ortografia,
mesmo grande número das próprias pessoas cultas a desconhecem. Não se ensina a
escrever nos cursos de domingo da igreja anglicana, dos Quakers, e creio que de
várias outras seitas, «porque essa é uma ocupação demasiado profana para um
domingo». Alguns exemplos mostrarão que tipo de instrução é oferecida aos tra-
balhadores. [...] (Engels, 1985, p. 130-132)
314
No que diz respeito à precária escolarização dos trabalhadores, Engels indica
duas principais razões para tanto: pelo lado da oferta, havia a recusa da burguesia, em
estruturar e colocar recursos para a viabilização de um amplo serviço de ensino, com falta
de instalações, de recursos humanos etc. Essa classe era temerosa quanto aos efeitos
perigosos da formação dos trabalhadores, notadamente seu potencial de difusão de idéias
consideradas “subversivas”. Pelo lado da demanda, havia por parte dos trabalhadores
impossibilidade de desejar tal benefício, após as longas e penosas jornadas de trabalho a
que estavam submetidos. Os trabalhadores não atribuíam grande importância à instrução,
só aos poucos, como se sabe, é que a necessidade da instrução seria reconhecida por
contingentes populacionais formados, na maior parte, por populações oriundas do meio
rural que assentava seu universo cultural sobre a oralidade e onde a transmissão dos
saberes teóricos e práticos se fazia diretamente pela participação da criança no cotidiano do
grupo social (Nogueira, 1990, p. 73).
Engels destaca, ainda que, nos primórdios da Revolução Industrial, as baixas
taxas de escolarização estavam associadas a outro fator: o trabalho infantil. Num contexto
de superexploração do trabalho infantil, com as crianças tendo quase todo o tempo ocupado
pelo trabalho, não havia tempo disponível para a instrução. A indústria absorvia o
indivíduo o ano inteiro, não havendo tempo para a instrução, quer fosse na escola ou em
outro local. Entretanto, a obrigatoriedade da freqüência escolar para as crianças operárias,
estipulada pela legislação fabril, na prática, era muito tímida, não contribuindo, em quase
nada, para modificar o quadro da instrução infantil. Com relação aos resultados da lei de
1833, observou Engels que o governo se isentava da tarefa de abrir escolas, deixando que a
burguesia dissimulasse o cumprimento da exigência legal de escolarização:
[...] No que diz respeito à escolaridade obrigatória, pode-se dizer que ficou
sem efeito, porque simultaneamente o governo não se preocupou em abrir
escolas em boas condições. Os industriais contrataram operários
aposentados, aos quais enviavam as crianças duas horas por dia,
cumprindo assim a letra da lei, mas as crianças não aprendem nada. Até os
relatórios dos inspetores de fábrica... fornecem muitos elementos para que
se possa concluir pela fatal persistência dos males já mencionados.
[...].(Engels, 1985., p. 195)
Os fabricantes, com isso, não mais faziam que improvisar, contratando até mesmo
operários aposentados ou quaisquer outras pessoas não-qualificadas para as tarefas
docentes.
315
316
316
[...] Também aqui reina a livre concorrência e, como sempre, os ricos estão
em vantagem, enquanto que os pobres, precisamente para quem a
concorrência não é livre, que não possuem os conhecimentos suficientes
para poder julgar, só suportam os inconvenientes. [...] (Engels, 1985,
p.130)
117
Sobre as “escolas de domingo” Nogueira diz que foi “...um movimento criado ao final do século XVIII por
J. Wesley — ex-sacerdote anglicano e posteriormente fundador da Igreja Metodista — na Inglaterra, visando
trabalhar em prol da educação da infância desfavorecida”; também outras seitas igualmente fundaram seus
cursos do domingo, inclusive a própria Igreja anglicana (Nogueira, 1990, p. 78).
317
318
Engels criticou duramente essas várias formas de escola criadas pelas mais
diferentes seitas religiosas por seus objetivos puramente proselitistas que, por isso,
restringia o alcance da educação que ficava circunscrita a uma dimensão doutrinária das
próprias igrejas, despertando nas crianças somente “ódio sectário” e “devoção”, ficando
negligenciada o papel de formação racional, intelectual e moral que a educação deveria
cumprir. Só para marcar esses aspectos sobre os quais Engels teceu ácida crítica, mesmo
que a custa de repetição, segue a citação:
... cada seita tem as suas escolas, com a única intenção de conservar no seu
seio os filhos dos seus fiéis e se possível de arrebatar aqui e ali uma pobre
alma infantil às outras seitas. A conseqüência disso é que a religião, e
precisamente o aspecto mais estéril da religião, a polêmica, se torna o
ponto fundamental da instrução, e que a memória das crianças é saturada
de dogmas incompreensíveis e distinções teológicas: logo que isso é
possível, desperta-se a criança para o ódio sectário e para espírito fanático,
enquanto que toda a formação racional, intelectual e moral é
vergonhosamente negligenciada. Os operários já exigiram muitas vezes do
parlamento uma instrução pública puramente laica, deixando a religião
para os padres das diferentes seitas, mas ainda não encontraram um
ministério que lhes tivesse concedido semelhante coisa. [Assim] enquanto
estas seitas continuam a disputar a supremacia, a classe operária
permanece inculta.[...] (Engels, 1985, p. 131)
Merece destaque que Engels, além de denunciar que essas escolas não
melhoravam o desenvolvimento intelectual dos trabalhadores, também era um fracasso na
formação moral da criança. Engels não está reivindicando uma sólida e abstrata formação
moral da criança, de forma a reformar a moralidade da classe trabalhadora. Entendedor do
caráter de classe da moral, forjada pela burguesia e, portanto, correspondendo aos seus
próprios interesses, expressa Engels suas preocupações quanto a precária formação moral
dos trabalhadores ingleses, confundida como instrução religiosa, ficando “os princípios
elementares que regulam as relações entre os homens” colocados de modo confuso e
arbitrário, mesclados que eram aos dogmas religiosos.
318
religiosa de um mandamento arbitrário e sem fundamento. Todas as
autoridades, em particular a Children’s Employment Commission,
confessam que as escolas em nada contribuem para a moralização da
classe trabalhadora. A burguesia inglesa é tão desprovida de escrúpulos,
tão estúpida e tacanha em seu egoísmo, que nem se dá ao trabalho de
inculcar nos trabalhadores a moral atual, moral essa que a burguesia
fabricou em seu próprio interesse e para a sua defesa! Até mesmo este ato
de preocupação consigo mesma é considerado tarefa demasiadamente
penosa por essa burguesia preguiçosa e cada vez mais apática; até isto lhe
parece supérfluo. É evidente que um dia ela arrepender-se-á de sua
negligência, e será tarde demais. Mas ela não tem o direito de se queixar
do fato de que os trabalhadores ignoram esta moral e não a observam.
(Engels, op. cit., p. 160-1)
319
320
[...] Quanto ao nível de instrução neste distrito... é incrivelmente baixo, metade das
crianças nem sequer freqüenta a escola dominical e a outra metade só o faz com
muita irregularidade; em comparação com outros distritos, muito poucos sabem ler
e escrevem pior ainda. Nada mais natural, visto que é entre sete e dez anos que as
crianças começam a trabalhar, precisamente no momento em que seriam capazes
de freqüentar a escola com aproveitamento, e os professores da escola de domingo
ferreiros ou mineiros - muitas vezes mal sabem ler, não sendo capazes de escrever
o próprio nome. [...] (Engels, 1985, p. 229).
320
distrito, não só a formação intelectual mas também a formação moral e religiosa
estavam num nível muito baixo. (Engels, 1985, p. 234-235)
[...] Parece que essas crianças passam geralmente a maior parte do domingo na
cama para se recompor um pouco do cansaço da semana; um número muito
pequeno freqüenta a igreja e a escola e os mestres queixam-se da sua sonolência e
do seu desinteresse apesar do seu desejo de se instruir. [...]
[...]
[...] Essas pessoas vivem no campo em regiões abandonadas... Por essa
razão, e também porque mandam as crianças trabalhar desde a mais tenra
idade, a sua formação intelectual é totalmente negligenciada. Não podem
freqüentar as escolas abertas durante a semana; as escolas noturnas e
dominicais são ilusórias, os professores não têm qualquer valor. Só existe
um pequeno número de mineiros que sabe ler, e menos ainda que sabem
escrever.(Engels, 1985, pp. 277 e 282)
321
322
322
conteúdo e da forma que a educação assumiu (e assume) na história das mais diferentes
formações sociais e econômicas. Penso que as formulações de Marx e Engels sobre
educação e ensino sempre aparecem coladas às observações e análises que fazem sobre as
condições de vida e trabalho das classes sociais, particularmente da classe trabalhadora.
Não estavam preocupados em elaborar teorias gerais e abstratas sobre os aspectos e
dimensões da vida social que estudavam, ao contrário, analisando as condições de vida e de
trabalho do proletariado de então é que acabaram formulando a necessária união da
instrução com o trabalho material.
No meu entendimento, a fábrica e a escola analisada pelos autores foi a base e
o ponto de partida para pensarem o que seria a educação do futuro... de uma educação que
contribuísse para a construção de um novo homem e de uma nova sociedade. Foi
certamente a análise da situação de instrução das crianças trabalhadoras de então que os
levaram à defesa, no âmbito dos debates da Associação Internacional dos Trabalhadores,
de uma escola pública, obrigatória, gratuíta e laica. Para além desta, a união indissociável
da educação com o trabalho, mas com a superação de um ensino (mono)técnico por uma
educação politécnica e que buscasse construir o homem em sua totalidade.
---------------------- X X X ----------------------
Ainda que não seja objetivo deste trabalho a análise sobre o uso do trabalho
infantil pelo modo capitalista de produção, gostaria de registrar que ainda hoje pode-se
constatar o uso do trabalho infantil, nos mais diferentes setores da economia e nos mais
diferentes países. Como a exploração do trabalho infantil continuou a ser uma prática
usual, em escala internacional, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) tem buscado
seu disciplinamento. Assim, a Convenção nº 138 da OIT, de 1973, em seu artigo 2º, item 3,
fixa a idade de 16 anos como idade mínima recomendada para o trabalho em geral.
Entretanto, no caso dos países considerados muito pobres, admite-se que seja fixada uma
idade mínima de 14 anos para o trabalho. MAS a mesma Convenção admite o trabalho leve
na faixa etária entre os 13 e os 15 anos, registrando que o mesmo não deve prejudicar a
saúde ou o desenvolvimento do jovem, a ida deste à escola ou sua participação em
orientação vocacional ou programas de treino.
O uso do trabalho infantil continua, portanto, a ser praticado, sendo também
objeto de preocupação da UNICEF (um Fundo das Nações Unidas específico para a
323
324
Infância), criado em 1946 como uma agência da ONU (Organização das Nações Unidas)
para promover a defesa dos direitos das crianças, prestar ajuda para o atendimento de suas
necessidades básicas e contribuir para o seu pleno desenvolvimento. Para esta agência o
trabalho infantil é definido como toda forma de trabalho abaixo dos 12 anos de idade, em
quaisquer atividades econômicas; qualquer trabalho entre 12 e 14 anos que não seja
trabalho leve; todo o tipo de trabalho abaixo dos 18 anos enquadrado pela OIT nas "piores
formas de trabalho infantil". A Convenção nº 182 da OIT, de 1999, classifica como as
piores formas de trabalho infantil: o trabalho escravo ou semi-escravo (em condição
análoga à da escravidão), o trabalho decorrente da venda e tráfico de menores, a escravidão
por dívida, o uso de crianças ou adolescentes em conflitos armados, a prostituição e a
pornografia de menores; o uso de menores para atividades ilícitas, tais como a produção e o
tráfico de drogas; e o trabalho que possa prejudicar a saúde, segurança ou moralidade do
menor.
No Brasil, seguindo uma trajetória de sucessivas legislações, a Constituição
Federal de 1988, em seu art. 7º, XXXIII) estabeleceu o inicio do trabalho, em geral, a partir
dos 16 anos, exceto nos casos de trabalho noturno, perigoso ou insalubre, em que a idade
mínima é 18 anos; como sempre, também há exceções, admitindo-se o trabalho a partir dos
14 anos (art. 227, § 3º, I), mas somente na condição de aprendiz (art. 7º, XXXIII). A
legislação brasileira dá um tratamento especial para as formas mais nocivas de trabalho
infantil, entre estas, estão o trabalho infantil escravo, a jornada exaustiva ou condições
degradantes de trabalho (artigo 149 do Código Penal), com a agravante de se tratar de
criança ou adolescente (§ 2º, item I), agravante esta introduzida pela lei 10.803, de 11 de
Dezembro de 2003, aumentando a pena em uma metade. A legislação brasileira também
trata, de modo especial, outros aspectos sobre a infância, como: maus-tratos em caso de
expor a perigo a vida ou a saúde de criança ou adolescente, sujeitando-a a trabalho
excessivo ou inadequado (artigo 136 do Código Penal); caso o adolescente seja menor de
14 anos, há a agravante do § 3º, introduzida pelo ECA (lei 8.069/90), que aumenta a pena
em mais um terço; exploração da prostituição de menores, crime considerado pela OIT
como uma das piores formas de trabalho infantil, estando previsto no artigo 244-A do
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, instituído pela Lei 8.069 no dia 13 de julho de
1990); pornografia de menores, crime previsto nos artigos 240 e 241 do ECA; Venda ou
tráfico de menores, crime também previsto no artigo 239 do ECA.
324
Essa caracterização e disposição legal, internacional e brasileira, possibilita
pressupormos que, não somente o trabalho infantil ainda teve continuidade, até os dias de
hoje, como o capital mantém as mais horrendas formas de trabalho, inclusive o infantil.
Source: UNICEF SOWC 2010
Excludes Nigéria
** Excludes China
*** Excludes Nigeria and China
118
As informaçãos que seguem constam do site da UNICEF em http://www.childinfo.org/labour.html
325
326
326
Child labour, 5-14 years (%),1999-2008
Belize 40 39 42
Benin 46 47 45
Brazil 6 y 7 Y 4 Y
Burkina Faso 47 y 46 Y 48 Y
Cambodia 45 y 45 Y 45 Y
Central African Republic 47 44 49
Chad 53 54 51
Ethiopia 53 59 46
Niger 43 43 43
Sierra Leone 48 49 48
Somalia 49 45 54
SUMMARY INDICATORS
Africa 29 n 30 N 28 N
Sub-Saharan Africa 33 n 34 N 32 N
Eastern and Southern Africa 34 36 32
West and Central Africa 35 n 34 N 35 N
Middle East and North Africa 10 11 9
Asia 12 ** 13 ** 12 **
South Asia 13 13 12
East Asia and Pacific 10 ** 10 ** 10 **
Latin America and Caribbean 10 11 10
CEE/CIS 6 6 6
Industrialized countries – – –
Developing countries 16 *** 17 *** 16 ***
Least developed countries 30 31 28
Fonte: http://www.childinfo.org/labour_countrydata.php
327
328
328
para 3.495.870; definindo-se o trabalho como aquele exercido por mais de 13 horas por
semana em atividades domésticas ou não, sem dupla contagem, teríamos 4.713.439
menores, enquanto 18.059.327 trabalham ou exercem atividades domésticas por 1 hora ou
mais na semana. Esses dados foram organizados na Tabela 1 pela autora e, somente para
ilustração, encontra-se na seqüência:
329
330
119
O SITI encontra-se no seguinte endereço eletrônico: http://siti.mte.gov.br/focuses/list
330
se encontram no conjunto do seu pensamento sobre a economia, a sociedade e a política.
Esses estudiosos, além de organizar as referências marxianas e engelsianas a respeito do
assunto, aprofundaram nexos e relações da educação que não foram desenvolvidos pelos
dois.
Algumas publicações são elucidativas desse esforço e tiveram, no Brasil, grande
importância para os estudiosos marxistas da educação. São conhecidos entre nós alguns
estudos, tais como o do filósofo polonês Bogdan Suchodolski e que se ocupou em construir
uma teoria pedagógica de acordo com s exigências e tarefas de uma revolução socialista.
B. Suchodolski dedicou toda uma obra à crítica filosófica da teoria idealista da educação de
seu tempo, fortemente influenciada pela filosofia alemã do século passado e, para fazê-lo,
recorreu às idéias de Marx. Refiro-me à sua obra Teoria marxista da educação,
originalmente publicada em polonês em 1957, sendo que a edição em português é de 1976.
Em meados da década de 1960, o pedagogo italiano Mário Alighiero Manacorda se
propôs fazer uma leitura rigorosa dos textos de Marx e de Engels sobre a educação,
colocando-se como questão a existência e a configuração de uma pedagogia marxiana. De
Manacorda vale lembrar principalmente a obra Marx e a pedagogia moderna, cuja primeira
edição em italiano é de 1966. Dando continuidade aos estudos sobre a perspectiva
pedagógica marxista, o educador italiano estudou sistematicamente a educação e a
pedagogia em Gramsci, sendo que O princípio educativo em Gramsci foi publicado em
italiano em 1970, mas somente em 1990 em português. Para Manacorda, o entendimento
dos problemas da formação do homem novo e do trabalho como princípio educativo, é de
fundamental importância na obra gramsciana.
Em meados da década de 1970 surgiu uma antologia de textos de Marx e Engels
sobre a educação e o ensino organizada pelo francês Roger Dangeville que escreveu uma
“apresentação” na qual situou a existência de uma “educação comunista” nos quadros
teóricos do marxismo; ademais, cada um dos textos vem acompanhado de comentários do
organizador, sob a forma de “Notas”. A antologia de Dangeville foi publicada em francês
em 1976 e traduzida e publicada em português em abril de 1978, recebendo o título de
Crítica da Educação e Ensino.
Entre nós também é conhecido o livro Educação, saber e produção em Marx e
Engels, publicado no Brasil em 1990 e que resultou da tese de doutoramento de Maria
Alice Nogueira, defendida na Universidade de Paris V, em dezembro de 1986, no qual a
331
332
Não havendo tempo e espaço para uma exposição mais alongada referente à
abordagem dos autores citados, creio que vale a pena percorrer algumas referências
pontuais de Marx e Engels sobre educação e ensino, onde construirei uma síntese que,
mesmo sendo curta e sem preocupação cronológica, articule as principais observações de
Marx e Engels sobre o tema. Tal síntese estará centrada no terceiro aspecto ou direção
acima apontado: Educação comunista e formação integral do homem.
332
Penso que o pressuposto de Marx e Engels sobre a educação que interessa aos
trabalhadores partidários do comunismo encontra-se sistematicamente exposto no próprio
Manifesto comunista, escrito entre 1847 e 1848, às vésperas de junho 1848 quando Paris
viu a primeira revolução proletária. Entre as medidas que o proletariado poderia colocar em
prática ao assumir o poder, Marx e Engels assim redigiram o décimo e último item:
“Educação pública e gratuita de todas as crianças, abolição do trabalho das crianças nas
fábricas, tal como é praticado hoje. Combinação da educação com a produção material
etc”. (MARX & Engels, s.d., Volume 1, p. 37)
Como bem explicita Manacorda (1989, p. 296), Marx e Engels não rejeitaram,
mas assumiram as conquistas teóricas e práticas da burguesia no campo da educação, tais
como: universalidade, laicidade, estatalidade, gratuidade, renovação cultural e primazia do
trabalho. Com o trabalho produtivo, a educação deveria possibilitar o acesso aos
conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade, em seus aspectos filosófico,
científico, literário, intelectual, moral, físico, industrial e cívico. Completa o educador
italiano que o marxismo, juntamente com uma dura crítica à burguesia pela incapacidade
de realizar os seus programas sociais, introduziu uma concepção mais orgânica da união
instrução-trabalho, na perspectiva de uma formação total de todos os homens (Idem,
ibidem). Em linhas gerais, a concepção marxista de educação foi gradativamente se
configurando e assumindo os seguintes princípios: eliminação do trabalho das crianças na
fábrica; associação entre educação e produção material; educação politécnica que leva à
formação do homem omnilateral, abrangendo três aspectos: mental, físico e técnico,
adequados à idade das crianças, jovens e adultos; inseparabilidade da educação e da
política; e articulação entre o tempo livre e o tempo de trabalho, isto é, o trabalho, o estudo
e o lazer.
A concepção de instrução marxiana é delineada de forma explícita e detalhada
nas Instruções aos delegados ao I Congresso da Internacional dos Trabalhadores, que se
realizou em Genebra em setembro de 1866. Nesse texto, Marx considera como sendo uma
tendência da indústria moderna a colaboração de crianças e adolescentes de ambos os sexos
na produção, entendendo que esse é um processo legítimo e saudável, desde que aconteça
de modo adequado às forças infantis (Marx, 1983, p. 59). Crítico da violenta exploração do
trabalho infantil em atividades econômicas no campo e na cidade, notadamente na
indústria, Marx recomendou, entretanto, que a partir dos nove anos qualquer criança
deveria participar do trabalho produtivo e trabalhar não somente com o cérebro mas
333
334
também com as mãos. A exploração nociva à saúde de crianças e adolescentes dessa faixa
de idade, entretanto, deveria ser severamente proibida por lei. Essa questão tratei de modo
mais alongado anteriormente, mas é importante salientar que Marx não está a defender a
exploração do trabalho infantil. Seu entendimento é que o trabalho deveria começar desde
a infância, articuladamente com o ensino, os exercícios físicos e o tempo livre. Tendo
conhecimento da experiência educacional levada à frente por Owen, bem como outros
iniciativas educacionais, Marx defendeu a combinação da educação com o trabalho,
inclusive por considerá-lo como um fundamental para a existência econômica, social,
psicológica e moral do homem, em qualquer idade, pois o homem não nasce pronto e
acabado, mas faz-se vai se fazendo homem (vai se humanizando) desde a infância até a
velhice.
Defendendo a combinação entre trabalho produtivo e educação, Marx assim
precisou a sua concepção de instrução:
334
prescrevia a instrução obrigatória para a assunção de crianças no trabalho (MARX, 1982, p.
550-575). Considerando a legislação fabril como “um produto necessário da indústria
moderna”, comparável às máquinas automáticas (Idem, p. 551), as observações de Marx
sobre higiene e educação não foram na direção de endossar a instrução profissional
burguesa, mas em propor a sua superação. O ponto de partida é a necessidade de
universalização da instrução primária, que a legislação “tornou indispensável para o
emprego de crianças” (Idem, p. 553). Ao lado da obrigatoriedade da instrução primária,
tendo em vista que o trabalho das crianças e adolescentes já era ampla e
indiscriminadamente usado pelo capital, também foi a legislação fabril que acabou
introduzindo uma nova condição para a educação: a unidade entre instrução e trabalho e
que deveria ser destinada a todas as crianças.
A educação proposta, longe de orientar uns para uma profissão e outros para
outra, deveria se destinar a todas as crianças e jovens, indistintamente, possibilitando tanto
o conhecimento da totalidade das ciências, como das capacidades práticas em todas as
atividades produtivas. Tomando por referência os escritos de Robert Owen, delineou Marx
a sua proposta de instrução enquanto formação integral de homens:
Na visão de Marx a união entre instrução e trabalho industrial não tinha por
objetivo simplesmente o aumento de produtividade, mas seu principal objetivo deveria ser
o de formação omnilateral do homem, uma formação integral que exigia a rejeição quer
“de toda reminiscência romântica antiindustrial”, quer de toda didática baseada no jogo e
em “outras atividades estúpidas”, como bem destaca Manacorda (1989, p. 298).
Os fundamentos dessa educação omnilateral e politécnica era uma decorrência
da própria transformação da indústria que constantemente revoluciona as bases técnicas da
produção e com ela a divisão do trabalho. Articulando o desenvolvimento das forças
produtivas com a implementação de transformações nas bases técnicas de produção, cujas
dimensões promovem transformações na divisão do trabalho, é que Marx vislumbrou uma
educação mais ampla, integral e flexível:
335
336
336
são interessantes as observações constantes na “Introdução”, sem autoria assumida, à
antologia de Marx e Engels Textos sobre Educação e Ensino:
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338
338
A comuna não deve ser uma instituição parlamentar mas sim um corpo
dinâmico, executivo e legislativo ao mesmo tempo. Os policiais devem
estar a serviço da Comuna e não serem instrumentos de um Governo
central e, como os funcionários de todos os corpos da Administração,
serem nomeados e destituídos sempre pela Comuna; todos os funcionários,
de maneira igual aos membros da Comuna, devem realizar seu trabalho
com salários de operários. Da mesma forma, os juízes devem ser eleitos,
destituídos e responsáveis. Em todas as questões da vida social, a iniciativa
há de partir da Comuna. Em uma palavra, todas as funções públicas,
inclusive as mais estranhas propostas pelo Governo central, devem ser
assumidas por agentes da Comuna, e colocados conseqüentemente sob seu
controle.
É absurdo afirmar que as funções centrais - não só as funções do
governo do povo, mas também as necessárias para satisfazer os desejos
gerais e ordinários do país - não devem estar asseguradas. Estas funções
teriam subsistido, porém os próprios funcionários não podiam - como no
velho aparato governamental - colocarem-se acima da sociedade real,
porque estas funções deviam estar asseguradas por agentes da Comuna e
serem executadas, portanto, sob seu efetivo e constante controle.
A função pública deve deixar de ser uma propriedade privada
concedida pelo Governo central a seus auxiliares. O exército permanente e
a polícia do Estado, instrumentos físicos da opressão, devem ser
eliminados. Expropriando todas as igrejas na medida em que sejam
proprietários, eliminando o ensino religioso de todas as escolas públicas e
introduzindo simultaneamente a gratuidade do ensino, enviando todos os
sacerdotes ao sereno retiro da vida privada para viver da esmola dos fiéis,
liberando todos os centros escolares da tutela e da tirania do Governo, a
força ideológica da repressão deve se romper: a ciência não só tornar-se-á
acessível para todos como também livrar-se-á da pressão governamental e
dos prejuízos de classe.
Os instrumentos da opressão governamental e da dominação sobre a
sociedade se fragmentarão graças a eliminação dos órgãos puramente
repressivos, e ali, onde o poder tem funções legítimas a cumprir, estas não
serão cumpridas por um organismo situado acima da sociedade, mas por
todos os agentes responsáveis desta mesma sociedade. (In: MARX &
Engels, 1983, p.92-94)
Com o texto de Marx fica reafirmado o caráter que a educação foi assumindo,
acompanhando a reorganização dos serviços públicos pela Comuna: pública (estatal),
gratuita, popular e voltada ao atendimento de todos; laica e totalmente livre da influência
da religião, das classes e do Estado burguês; formativa e pautada exclusivamente no
método experimental e científico. Ademais, a educação foi apontada como um importante
instrumento de desalienação do proletariado e vista como uma importante ferramenta de
formação e, portanto, um instrumento para a consolidação da revolução proletária.
Para fechar esta incursão sobre as observações de Marx e Engels sobre
educação e ensino, na qual não tive a menor intenção de esgotar assunto tão vasto e
complexo, recorro novamente a Franco Cambi que, não sendo marxista, assim registrou o
339
340
Entendo que o mérito de Marx e Engels pode ser sintetizado por alguns
princípios que desvelam o caráter revolucionário de suas propostas. Em primeiro lugar,
está a centralidade dialética do trabalho enquanto princípio educativo e que desemboca na
proposta de uma educação omnilateral, em oposição à unilateralidade da educação
burguesa. Trata-se de uma educação que deve propiciar aos homens um desenvolvimento
integral de todas as suas potencialidades. Para tanto, essa educação deve fazer a
combinação da educação intelectual com a produção material, da instrução com os
exercícios físicos e estes com o trabalho produtivo. Tal medida objetiva a eliminação da
diferença entre trabalho manual e trabalho intelectual, entre concepção e execução, de
modo a assegurar a todos os homens uma compreensão integral do processo de produção.
Certamente Marx e Engels também defendiam o estabelecimento de relações
necessárias entre educação e sociedade, expressa quer na análise do caráter ideológico e
utilitário da educação na sociedade burguesa, quer como projeto de construção de uma
sociedade igualitária. Nesse sentido, em vista do projeto estratégico dos partidários do
comunismo é que se coloca, desde já, a defesa intransigente de uma educação estatal,
gratuita, laica, obrigatória e universal para todas as crianças. Como já explicitado
anteriormente por Marx, a educação estatal, entretanto, deve prescindir dos mecanismos de
controle que hoje, por exemplo, vislumbramos através de políticas educacionais ditatoriais,
cujos mandatários estão a representar instituições financeiras expressivas dos interesses
capitalistas. Almeja-se com isso assegurar a abolição do monopólio minoritário e classista
da cultura, do conhecimento, da literatura, das artes, da filosofia e da ciência.
A transformação da educação com vistas a tais objetivos, implica uma profunda
transformação no modo de produzir dos homens; isso só será alcançado quando também
340
ocorrer uma transformação da divisão social do trabalho que, com a abolição da diferença
entre trabalho intelectual e trabalho manual, conduza a uma reaproximação entre a ciência
e a produção.
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342
Considerações finais
Relendo o trabalho todo, em seu conjunto, considero que há um fio-condutor,
uma tese que, centrada nos estudos da obra de Marx e Engels, deixa claramente explicitada
que a educação é uma das dimensões, entre outras, das relações estabelecidas entre as
classes e frações de classe, no modo capitalista de produção. Teoricamente a tese explicita-
se, portanto, afirmativamente: o modo como os homens produzem sua vida material, aí
incluídas as relações de produção e as forças produtivas, determina como os homens
vivem, pensam e transmitem as idéias e os conhecimentos que têm sobre a vida e sobre a
realidade natural e social. Foi essa tese que explicitei na introdução, quando registrei que,
apesar do longo percurso de pesquisa, a tese é muito simples, considerando-a “até mesmo
óbvia para o marxismo”. Qual é essa tese? A educação (e o ensino) é determinada, em
última instância, pelo modo de produção da vida material. Em outras palavras, o modo
como os homens produzem sua vida material, incluídas as relações de produção e as forças
produtivas, determina como os homens vivem, pensam e transmitem as idéias e os
conhecimentos que têm sobre a vida e sobre a realidade natural e social.
Para tanto, estudei os pais da concepção materialista da história para explicar
essa obviedade: que não faz o menor sentido analisar abstratamente a educação, pois trata-
se de uma dimensão da vida dos homens que, tal qualquer outro aspecto da realidade
(natural e social), se transforma historicamente, acompanhando e articulando-se às
transformações do modo como os homens produzem a sua existência.
Na obra de Marx e Engels não há uma teoria educacional, nem uma análise
específica da educação ou do ensino e muito menos a discussão ou propositura de uma
teoria pedagógica. A educação aparece como uma problemática difusamente tratada pelos
autores, não de maneira abstrata e ahistórica, mas como uma dimensão e uma prática
humana profundamente inserida no contexto em que surge e se desenvolve, expressando os
342
movimentos contraditórios que emergem do processo das lutas entre classes e frações de
classe.
As observações de Marx e Engels sobre a educação, o ensino e a qualificação
profissional encontram-se esparsas no conjunto da obra e geralmente aparecem mescladas
às críticas das teorizações e práticas burguesas. Tratam-se de observações que aparecem
mescladas à análise sobre as condições de vida e trabalho da classe trabalhadora, como na
obra de Engels sobre A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, ou no contexto em
que analisavam a situação e exploração da classe trabalhadora sob o modo capitalista de
produção, como no livro primeiro d’O capital de Marx. A educação da burguesia ou da
classe média, àquela voltada para a formação propedêutica, tecnológica ou nas ciências
liberais, não foi objeto de análise dos autores. Eles preocupavam-se em desvelar o processo
de transformação histórica do modo de produção capitalista, no interior do qual se
aprofundavam no entendimento das condições de vida e de trabalhado da massa
populacional que, não tendo outro meio de sobrevivência, viviam do trabalho. Habitação,
alimentação, saúde, lazer e educação, para além do trabalho, foram questões com que se
preocuparam. Não separadamente, mas articuladamente à análise econômica, social,
política e intelectual.
Tendo um amplo conjunto de textos escritos, construí uma exposição dividida
em três partes articuladas e complementares. Na primeira parte analisei os textos com os
principais embates marxistas da contemporaneidade, que foram certamente meu ponto de
partida, ampliando os estudos e aprofundando meu entendimento sobre a pós-modernidade;
na segunda parte, articulei os estudos que fiz sobre os fundamentos e princípios das
concepções filosóficas e científicas, através dos quais alicercei meu entendimento das
várias explicações e análises dos fundamentos da educação; na terceira parte encontra-se o
cerne da tese. Ali organizei os apontamentos dos estudos que fiz da obra de Marx e Engels,
identificando (sem preocupação filológica) as referências que fizeram ao ensino, à
instrução, à qualificação e, enfim, à educação, observando como teoricamente a
problemática educacional se coloca nas obras que produziram. A essa terceira parte do
trabalho que intitulei “Marx, Engels e a questão educacional”, onde expus em cinco
capítulos a obra marxiana e engelsiana, nos quais explicitei como trataram a educação e o
ensino e, por fim, um sexto capítulo no qual demonstrei a existência de uma pedagogia
comunista.
343
344
Embora não seja fácil uma síntese sobre um assunto que tem produzido vasta
literatura, retomarei os principais aspectos de uma pedagogia marxista e já apontados
anteriormente, bem como a ideologia liberal incorporou e incorpora essas conquistas, quais
sejam:
a) A defesa das conquistas do movimento socialista no que diz respeito à
educação e que foram sendo incorporadas ao ideário e à legislação burguesa,
notadamente dos seguintes aspectos: educação pública (estatal), gratuita, laica,
obrigatória e universal para todas as crianças, de modo a assegurar a abolição do
monopólio burguês da cultura e do conhecimento.
b) A combinação da educação intelectual com a produção material, ou usando a
formulação de Marx, combinação de instrução, ginástica e trabalho produtivo. O
objetivo de tal medida era a eliminação da diferença entre trabalho manual e
trabalho intelectual, entre concepção e execução, de modo a assegurar a todos os
homens uma compreensão integral do processo de produção. As políticas
educacionais burguesas dão ênfase à necessidade de que a educação seja a base
para a formação do trabalho mas, contrariamente à proposta marxiana, a divisão
entre trabalho intelectual e trabalho manual é reforçada, dentre muitos outros
aspectos, através das divisões, obrigações e responsabilidades pelos diversos
níveis de ensino.
c) A educação deve propiciar aos homens um desenvolvimento integral. Todas as
necessidades do homem devem emergir no processo educacional, tais como a
busca pela sobrevivência, o prazer, a criação e o gozo da cultura, a participação na
vida social, a interação com os outros homens, a auto-realização e a autocriação.
Essa profunda transformação dos objetivos educacionais exige, entre outros
aspectos, também uma profunda transformação da divisão social do trabalho que,
com a abolição da divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual, conduza a
uma reaproximação da ciência e da produção. Contrariamente, a escola burguesa
professa ideais do desenvolvimento integral do homem que podem ser resumidos
em educar para o consumo, para a cidadania nos moldes democráticos burgueses,
que já estão conhecidos como extremamente autoritários e excludentes.
d) Também as relações no interior da escola precisam se transformar, ou seja, da
competição para a cooperação e para o apoio mútuo. Uma tal transformação
pressupõe, por sua vez, uma relação biunívoca e mutuamente enriquecedora entre
344
professor e aluno e uma relação mais aberta entre a escola e a sociedade, a partir
da idéia de coletividade e igualdade que constituem a base do comunismo. Trata-
se, portanto, de uma concepção diametralmente oposta da burguesa e que enfatiza
essa relação como forma de inserção do indivíduo, deixando de lado que se trata
de uma sociedade marcada pelas diferenças de classes sociais, portanto, de
homens.
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É sempre difícil fechar uma pesquisa que mais abriu discussões que
encaminhou respostas. Por isso, retomo as observações que empreendi no texto escrito
sobre os “130 anos da Comuna de Paris”. Há, indubitavelmente, muita controvérsia sobre o
papel da educação para a sociedade e para os indivíduos. Estamos vivendo um acelerado
processo de transformações sociais, notadamente com a integração crescente dos
conhecimentos científicos e tecnológicos aos processos produtivos. Face a um tal quadro, é
impossível deixar de reconhecer a importância de uma profunda discussão sobre o papel da
educação na reprodução social e, contraditoriamente, sobre o potencial revolucionário da
educação no desenvolvimento social.
Em tempos de defesa apologética do particular, do fragmentário, do
microscópico, da idéia, da subjetividade e da irracionalidade, não temos motivo algum para
ficarmos na retaguarda. Precisamos resgatar as armas teóricas desde uma perspectiva que
vislumbre a materialidade, a totalidade histórico-social, a objetividade e a racionalidade
revolucionária.
À eternização capitalista dada por uma perspectiva teórica defensora do fim da
história, é preciso demonstrar que as aceleradas transformações em curso desvelam um
processo de constante recomeçar de uma história marcada pela contradição.
Para além de uma escola mistificadora e conformista, precisamos como
educadores acreditar no futuro, submetendo o presente a uma profunda, radical e rigorosa
crítica que, desvinculando-se de tudo o que é antiquado e caduco, colabore com o processo
346
de construção do novo. Para concluir, gostaria de registrar a recomendação do reconhecido
filósofo e educador polaco Bogdan Suchodolski:
(...) Diz muito mais e muito bem da nossa juventude. Todavia, estas
definições não são correctas porque exprimem acerca da juventude uma
apreciação estática; a juventude tornar-se-á melhor ou pior consoante o
modo como seremos capazes de organizar as suas actividades concretas no
meio em que vive... para que se torne apta a realizar as tarefas futuras e
conforme o que soubermos fazer para facilitar o desenvolvimento interior
dos jovens. É o único modo de desenvolver as forças criadoras da
juventude, de a libertar das peias provocadas pela desilusão que a leva a
afirmar “nada se pode fazer, portanto não vale a pena fazer o quer que
seja”. É o único processo para limitar as tendências dos jovens a basearem
a sua vida na exclusiva satisfação das necessidades materiais, é o único
recurso para lutar contra um cinismo que é hoje, na maior parte das vezes,
uma forma de protesto contra o que está mal na vida, mas que corre o risco
de se tornar o pior dos males. (SUCHODOLSKI, 1992, p. 130).
Sendo assim, em lugar de uma escola onde “professores fingem que ensinam”
para “alunos que fingem que aprendem”, centrada na forma e não no conteúdo, é preciso
propiciar a todos os homens o acesso aos conhecimentos historicamente produzidos pela
humanidade, bem como uma educação crítica, voltada ao atendimento de toda a sociedade,
dentro de uma perspectiva política de transformação social.
Mais uma vez, também neste trabalho de livre-docência, a contribuição de
Dermeval Saviani para a sistematização do papel de um educador marxista se fez essencial.
Achei muito feliz sua entrevista para a Revista Germinal, e vou concluir o presente texto
com uma citação que também significa e implica a adesão às idéias expressas:
G.: Que temas e práticas educativas são centrais aos educadores que
se colocam no campo do marxismo? Que papel assumem os conteúdos
e as ideologias em uma pedagogia revolucionária?
S.: Eu diria que a tarefa central dos educadores que se colocam no campo
do marxismo implica em um duplo e concomitante movimento: trata-se de
empreender a crítica à educação burguesa evidenciando seus mecanismos e
desmistificando sua justificação ideológica; ao mesmo tempo, cabe
realizar o segundo movimento que implica reorganizar a prática educativa
de modo a viabilizar, por parte das camadas dominadas à frente o
proletariado, o acesso ao saber elaborado. Esse acesso significa a
apropriação dos conteúdos sistematizados dos quais os trabalhadores
necessitam para potencializar sua luta em defesa de seus interesses contra
a dominação burguesa. É por esse caminho que a ideologia proletária, isto
é, a expressão elaborada dos interesses dos trabalhadores poderá se
configurar com um poder lógico e uma força política capaz de disputar
com a ideologia burguesa a hegemonia da sociedade. Nesse processo a
escola desempenha papel fundamental, pois é ela que abre, por meio da
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348
348
mostrando seus mecanismos classistas de funcionamento, desmistificando e
desnaturalizando a inculcação ideológica realizada na escola; por outro, organizarmos uma
prática educativa que possibilite aos assalariados, aos dominados, o acesso ao saber
historicamente produzido pela humanidade. Como a burguesia se apropria da ciência e de
todos os saberes para impulsionar o desenvolvimento das forças produtivas sob seu
controle, bem como para reforçar e naturalizar a dominação de classe, nos cabe viabilizar
aos que vivem do trabalho o acesso e a apropriação aos conteúdos e saberes elaborados
pela humanidade, possibilitando uma potencialização de sua luta em defesa de seus
interesses.
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