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DIE FOR YOU

1ª Edição

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte dessa obra poderá ser reproduzida ou
transmitida por qualquer forma, meios eletrônicos ou mecânico sem consentimento e
autorização por escrito do autor/editor.

Capa: Larissa Chagas

Revisão: Bianca Bonoto


Diagramação: April Kroes

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são
produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com fatos reais é mera
coincidência. Nenhuma parte desse livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer
meios existentes – tangíveis ou intangíveis – sem prévia autorização da autora. A violação
dos direitos autorais é crime estabelecido na lei nº 9.610/98, punido pelo artigo 184 do
código penal.

TEXTO REVISADO SEGUNDO O ACORDO ORTOGRÁFICO DA LÍNGUA


PORTUGUESA.
Sumário
Playlist
Nota da autora
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Epílogo
Agradecimentos
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Este livro pode conter gatilhos emocionais. Caso resolva seguir em frente,
desejo uma ótima leitura. A universidade citada como “Goldring” é de minha
criação.
O primeiro soco veio forte e rápido, antes que pudesse me esquivar,

havia sangue pingando do meu queixo em minha camiseta. O segundo me fez


praguejar, em cheio na boca do estômago. Fechei os olhos por alguns
momentos, sentindo a súbita onda da falta de ar. Abri uma das pálpebras,
depois a outra. Sentindo o gosto metálico no paladar, murmurei:

— É um ótimo gancho de esquerda.

Resposta errada.
O cara parado na minha frente me prensou com mais força contra a
parede. Parecia que queria me esfolar vivo, mas não o culpava. Se eu

encontrasse alguém com a minha namorada, também ficaria com raiva. Só


que não sabia que ela estava comprometida, em minha defesa.

No momento, a garota se encontrava encolhida no lado oposto do


quarto, um lençol branco enrolado no corpo e os olhos lacrimejando. Parecia

hesitante, diferente do momento em que nos encontramos em um bar mais


cedo e ela se apresentou. Foi natural, a gente flertou, nos beijamos e então ela
me convidou para ir até a casa dela.

— Para com isso, John. Ele não tem culpa. — Sua voz não passava de
um fiapo. — Eu não disse que tinha alguém.

John me encarou por alguns momentos, enquanto sentia o rosto latejar.


Na verdade, meu corpo todo meio que doía.

Suas mãos se foram abruptamente e eu suspirei. Em dias normais, se


não estivesse bêbado, teria retribuído um ou dois socos e ao menos tentado
me defender. Mas, no estado deplorável qual eu me encontrava, só era capaz
de terminar de abotoar a calça com dificuldade e pegar as chaves da minha
moto enquanto ignorava a discussão barulhenta que se desenrolava entre o
casal. Eles que se resolvessem, já estava na hora da minha deixa.
O apartamento não ficava muito longe do lugar onde eu morava, então
cheguei em quinze minutos. eu não estivesse tão chapado, teria levado quatro

ou cinco. Minha cautela em me certificar de que não bateria a moto em um


poste e nem atropelaria um pedestre me fez andar em uma velocidade
deliberadamente lenta. Sabia que estava sendo a droga de um irresponsável,
só que realmente precisava ir para casa.

O prédio onde eu vivia há apenas cinco dias ficava situado em uma área
consideravelmente movimentada de Massachusetts, também tinha ótima
localização porque ficava perto do campus da Harvard, onde eu estudava.
Vinte minutos de distância. Era prático em dias em que queria dormir por uns
momentos a mais ou estava com preguiça de sair da cama.

Antes de entrar em meu apartamento, observei a única porta do outro


lado do corredor. Não havia visto ninguém sair dali desde que tinha
terminado a mudança e vindo para cá oficialmente. Suspeitava de que

estivesse vazio antes de ouvir alguns ruídos vindos de lá naquela manhã.

Queria muito saber que tipo de vizinho ou vizinha eu tinha.


Aparentemente era alguém pragmático, que gostava do silêncio e tinha uma
rotina organizada. Seus horários nunca batiam com os meus. Sempre ia para a
faculdade dez ou quinze minutos atrasado, saía para festas à noite e voltava
durante a madrugada.
Tropeçando para dentro do meu mais novo lar, só tive tempo de chutar
os coturnos para fora dos pés antes de desabar sobre o sofá, pegando no sono

quase que imediatamente.

Estava quinze minutos atrasado para a faculdade.

Minhas costas doíam e meu rosto estava cheio de hematomas, meu


abdômen parecia aquela pintura chamada Noite Estrelada de Van Gogh, em
tonalidades diferentes de roxo, azul e amarelo.

Resumindo, estava com uma aparência de merda e mal conseguia


respirar sem que meu interior parecesse incendiar. Droga de gancho de

esquerda. Com pressa, tomei o banho mais rápido da minha vida, depois vesti
as primeiras duas peças de roupas que achei: uma regata e uma calça jeans
rasgada nos joelhos. Estava tão atordoado que nem percebi que estava
chovendo, só quando cheguei ao hall do prédio, após descer alguns lances de
escadas, e olhei para fora através das portas de vidro.

Uma tempestade.
Tinha uma prova e, se não chegasse em alguns momentos, ficaria
encrencado. Empurrei uma das portas e fiquei sob o toldo do edifício,

sentindo frio feito um otário. A chuva caía impiedosamente no


estacionamento e molhava toda superfície descoberta, inclusive o banco e os
escapamentos de minha moto.

Por que diabos eu tinha uma moto? Se tivesse ouvido minha mãe, seria

um universitário com um carro. Um universitário com um carro, com bancos


secos e aquecedor para um dia chuvoso como este.

A porta atrás de mim foi aberta e alguém saiu do prédio, o som de


passos arrancando-me de meus pensamentos.

Olhei sobre o ombro.

A garota ao meu lado parecia alheia a minha presença. Ou me viu e me


considerou mais irrelevante que a lata de lixo à minha esquerda, como se eu

fizesse parte daquele cenário.

O cabelo longo dela era liso e preto feito nanquim. Por alguns
momentos, me prendi aos seus detalhes. O rosto delicado, a pele clara feito
lua, a franja que caía sobre sua visão. E, ao contrário de mim, estava vestindo
um casaco pesado e calçando botas, além de segurar um guarda-chuva
fechado nas mãos. Estava na cara que ela tinha se preparado para o temporal.
Seus olhos escuros finalmente se conectaram aos meus.

Mas foi só por uma ou duas frações de segundo e ela não demonstrou
nada que não fosse indiferença. Logo depois, a garota abriu o guarda-chuva e
fez uma corrida lenta/caminhada depressa até um honda novo estacionado a
alguns metros de distância. Por algum motivo, esperei com que ela
manobrasse e saísse do estacionamento para me enfiar sob a chuva e subir na

minha moto.

Perdi o teste.

Ou melhor, a inspetora me parou assim que coloquei uma das minhas

botas encharcadas para dentro de um dos edifícios da Harvard. O olhar que


ela me lançou foi estranho, mas não fiquei ressentido porque devia estar
mesmo parecendo um maluco. Ensopado, concussão na têmpora, roupas que
não condiziam com o clima e tatuagens em setenta por cento de pele à
mostra, alguns piercings e automaticamente me transformava em um possível
infrator.
O tempo passou e após eu mostrar para ela o cartão da biblioteca,
confirmando que estudava ali, ela disse que não podia fazer o teste naquele

estado então simplesmente subi na moto e voltei para casa.

Aproveitei o resto da manhã para dormir e, quando resolvi sair, mais


tarde, parei ao ver alguém na frente da porta do outro lado do corredor.

Reconhecia aquele cabelo de mais cedo.

Ela mal percebeu minha presença atrás de si, só quando girou para
fechar a porta. Sua mão congelou na maçaneta e seus olhos me fitaram com
um misto de surpresa e reconhecimento. O momento durou cerca de três
segundos, até eu dar um passo para frente.

Estava pronto para dizer que era o vizinho novo e que me chamava
Hunt Finley, mas, em um rompante, ela fechou a porta bem no meu rosto.
Franzi o cenho com força, nada de "boas-vindas" para o vizinho novo?

Com certeza seríamos grandes amigos


Quando saí do meu apartamento, em uma quinta-feira, acabei

encontrando com o novo vizinho estranho pela segunda vez, que também
parecia estar de saída. Com pressa, enfiei as chaves na minha bolsa e dei um
passo em direção às escadas ao mesmo tempo em que ele deu um passo em
minha direção.

Nós dois paramos e ficamos um de frente para o outro. Analisei seu


rosto. As concussões não estavam mais tão acentuadas quanto na semana
passada, já tinham quase desaparecido. Estava na cara que ele era um grande
causador de problemas, o que era um bom — na verdade, ótimo — motivo
para me manter longe.

O desconhecido usava uma camiseta preta e jeans que pareciam meio


velhos. Os cabelos pretos feito penas de corvos estavam uma bagunça, a cor
dos fios se contrastando com sua pele branca. Suas íris pareciam cautelosas
enquanto me perscrutavam. Me remexi, desconfortável por ele estar no meio

do meu caminho para a escada e me encarando por tempo demais.

"Meu nome é Humano Frito" foi a primeira frase que ele disse para
mim. "Somos inimigos" foi a segunda. Arqueei as sobrancelhas, ajeitando a
alça da bolsa em meu ombro.

Senti vontade de dar risada porque sabia que não era aquilo que ele
queria dizer, só que eu era péssima em fazer leitura labial. Suspirando, abri
minha bolsa e busquei por meu caderno e uma caneta. Apoiei-o contra a

parede e escrevi rápido, não me importando com a letra desleixada. Depois,


virei a folha para o meu vizinho.

Seu rosto foi preenchido por surpresa e compreensão quando ele leu a
frase que havia escrito com pressa. "Eu sou surda".

Ele demorou alguns momentos para reagir, piscando lentamente. A


maioria das pessoas ficavam constrangidas quando descobriam que era surda,
já estava habituada com reações como aquela. Enfiei o caderno de volta na

bolsa. Estava prestes a guardar minha caneta e dar o fora dali quando ele se

aproximou, fechando o espaço entre nós e segurando a palma de minha mão,


impedindo-me.

Meu coração disparou. Com a mão livre, ele pegou o tubinho de tinta
preta e começou a escrever algo no interior de meu pulso. Quando ele

terminou, fixei meus olhos nas letras tortas. Hunt Finley. Fazia mais sentido
que Humano Frito. Ele se afastou, o local em que havia tocado queimava um
pouco. Que esquisito.

— Eu disse que somos vizinhos. — Ele sinalizou.

Ele sinalizou.

Nem tentei esconder o meu choque. Sabia que meus lábios deviam
estar entreabertos no momento e minhas íris cheias de incredibilidade. Hunt

Finley, além de ser um rosto bonito e parecer encrenqueiro, sabia a língua de


sinais. Ele não parecia alguém que se empenhou anos para aprendê-la. Mas
bem, eu não o conhecia. Empurrando os pensamentos estereotipados para o
fundo de minha mente, senti-me meio mal por tê-lo julgado pelas tatuagens e
os piercings.

— Bem-vindo. — Foi tudo o que consegui sinalizar de volta, depois de


colocar a caneta na bolsa.

— Obrigado. — Hunt sorriu torto. — Você está indo para algum


lugar?

— Estou. E atrasada, por sinal. — Fiz uma pausa, parando de mover as


mãos. — Podemos nos falar depois?

— Tudo bem. — Ele sinalizou de forma deliberadamente lenta,


parecendo pensar por alguns momentos. — Nos vemos depois.

Com isso, Hunt se virou e começou a descer as escadas. Soltei um


suspiro longo e desci um momento depois. Não nos esbarramos lá fora, ele
tinha desaparecido. Saí com meu carro, indo em direção ao campus. Cheguei
quinze minutos atrasada.

Por sorte, minha professora de Psicologia Infantil ainda não tinha


chegado. Minha amiga, London, já estava acenando para mim loucamente no

meio de todas as outras pessoas, indicando o lugar vago ao seu lado. Desabei
na cadeira livre, afundando-me nela e juntando os joelhos. Ela começou a
sinalizar rapidamente, quase não consegui acompanhar:

— Pensei que você não fosse vir. Aconteceu alguma coisa? Você
assistiu a nova temporada daquela série francesa? Você viu a nova tatuagem
daquela cantora do cabelo cor-de-rosa? — E o resto dos seus movimentos de
mãos foram uma confusão.

London era como um furacão. Ela era a pessoa mais falante que eu já
havia conhecido. Nós éramos opostos, mas até que funcionávamos bem
juntas.

Levantei o braço para tirar uma mecha de cabelo do rosto, ainda fitando

London. Ela parou de falar, os olhos sendo atraídos para o movimento da


minha mão. Rápido, antes que eu pudesse esconder, envolveu os dedos ao
redor do meu pulso e o puxou para si, lendo as duas palavras marcadas em
minha pele.

London se afastou com os olhos castanhos um pouco arregalados. Sua


boca estava escancarada. Ela me observava como se uma segunda cabeça
tivesse surgido em meu tronco.

— Onde o conheceu? — ela disparou para mim.

Franzi as sobrancelhas.

— Quem?

— O Hunt. — London moveu as mãos de maneira lenta, como se eu


fosse burra. Resisti ao impulso de rolar os olhos. — Por que o nome dele está
gravado no interior de seu pulso? Você é uma daquelas fãs obcecadas?
— O quê? Não. Ele é meu vizinho. Chegou semana passada. Hoje
tentou falar comigo, mas não entendi nada. Então ele escreveu o nome no

interior do meu pulso. — Fiz uma pausa, pensativa. — O que não fez sentido
já que ele sabia a língua de sinais. De qualquer forma, por que diabos eu seria
fã desse cara? Ele é quem? O Justin Bieber disfarçado?

London riu. O mundo continuou silencioso, mas seus dentes brancos e

quadrados estavam lá, expostos para que qualquer um visse.

— Você tem muita sorte. Se eu fosse vizinha do Hunt nunca mais


compraria açúcar só para ir na casa dele todas as manhãs e pedir um pouco
emprestado.

A ignorei, focando no fato de que ela ainda não tinha me explicado o


motivo de sua afobação.

— Quem ele é? — questionei.

— Vocalista de uma banda universitária bem famosa. Eles se


apresentam em alguns bares por aí. Hunt é bem popular entre as garotas, se é
que você me entende. Tatuagens, piercings... — Quase consegui ouvir o
suspiro que escapou por seus lábios. O movimento foi tão dramático que
pude imaginar como seria. — Incrível — completou.

— Entendi — foi tudo o que respondi.


A professora chegou um segundo depois que encerramos a nossa
conversa sobre Hunt Finley. As próximas aulas passaram todas em um ritmo

normal. Não foram tão entediantes. Na hora do almoço, fui para um


restaurante com London. Nós gostávamos de lá porque os pedidos eram
feitos numa mesa digital. Então era fácil especificar o que queríamos sem ter
que nos comunicar com os funcionários — o que era bem complicado na

maioria das vezes.

Depois que comemos comida tailandesa, pagamos a conta e fomos no


meu carro — um Honda prateado — para o meu prédio. Subimos as escadas.
Paramos no último degrau, notando a movimentação no apartamento de
Hunt. Franzi as sobrancelhas diante da cena: a porta estava aberta, pessoas
em pé espalhadas por sua sala e garrafas de cervejas por todos os lugares.

Meu cérebro demorou para processar tanta informação.

Ele estava dando uma festa numa quinta-feira logo depois do almoço?

London apertou meu ombro quando Hunt apareceu na porta. Ele ainda
vestia as mesmas roupas de mais cedo. Só que agora tinha uma guitarra
atravessando seu corpo, como um escudo. O instrumento era bem bonito.
Preto e cheio de desenhos feitos com caneta permanente. Uns eram bem
rudes, palavrões ou mulheres seminuas. Outros pareciam pessoais, como o
coração empunhado com uma adaga, jorrando sangue.
Suas íris negras encontraram as minhas e o cigarro que pendia em seus
lábios dançou para um canto de sua boca. Ele chutou um copo plástico

vermelho do caminho e deu um passo em minha direção.

— Você não me falou o seu nome — foi a primeira coisa que Hunt
disse.

Pega desprevenida, quase não soube o que fazer com as mãos.

— É Evelyn.

— Eve. — Ele assentiu, sem perguntar se poderia me chamar assim. —


Gostei. Combina com você.

Hunt encostou um dos ombros contra o batente da porta e naquele


momento percebi o quão alto ele realmente era, já que estava quase nivelado
com ela. Devia ter um metro e noventa. Por aí. Eu estava longe de ser baixa
também. Tinha um e setenta e cinco, só que ele fazia com que me sentisse

intimidada.

Hunt tirou o cigarro dos lábios, prendendo-o entre o dedo indicador e o


médio, soprando fumaça que espiralou para cima no ar. Mesmo assim, ele
sinalizou:

— Entra aí, temos cerveja. Vamos pedir pizza.


Ele moveu os olhos para London, parecendo finalmente se dar conta
dela.

— Sua amiga também está convidada.

— Não, obrigada. Preciso alimentar o meu peixe.

Antes que ele pudesse dizer algo, puxei London pela mão, abri a porta

do meu apartamento e a empurrei para dentro. Girei a tranca apenas para me


certificar de que Hunt não viria atrás de nós. London me fitava boquiaberta.

— Quando foi que você adotou um peixe?

— Eu não adotei.

Ela parecia ainda mais indignada e nem a culpava. Droga. Por que é
que eu era tão ruim em inventar mentiras convenientes?

London abriu a porta e começou a me puxar para fora da minha sala.

Antes que eu pudesse entender o que estava acontecendo, ela já tinha me


arrastado até o outro lado do corredor.

Entrei em pânico.

O apartamento de Hunt continuava aberto, um convite implícito.


Quando atravessamos a soleira, para minha infelicidade, ele surgiu no mesmo
momento. Fala sério, ele tinha alguma espécie de radar? O lancei um olhar
evasivo. Não estava mais com a guitarra, nem o cigarro. Só uma garrafa de
cerveja em mãos.

— Mudaram de ideia? — questionou, se aproximando, os olhos fixos


em mim.

— Viemos pedir açúcar. O da Evelyn acabou — London explicou.

Jesus. Meu rosto começou a arder pelo constrangimento. Hunt me


lançou um olhar com brilho lúdico, a sobrancelha perfurada arqueada, um
sorrisinho torto dançando nos lábios.

— Açúcar? — Sinalizou. Dava para ver no rosto dele que estava se


divertindo. E muito.

— É. O meu acabou. — Tentei sorrir um pouco, mas falhei


miseravelmente. Eu queria matar London.

— Ok. Vamos lá para a cozinha.

Seguimos Hunt para o cômodo, desviando de três pessoas em nosso


caminho. Ele abriu um armário, pegou um pote cheio de açúcar e depois
encheu metade de uma xícara. Ele também tirou duas long neck's de um
engradado e deslizou as garrafas pelo balcão de mármore, em nossa direção,
após descartar as tampas.
Para evitar uma conversa, segurei a garrafa entre minhas palmas e
forcei-me a dar alguns goles para não parecer muito antipática. Hunt pareceu

acompanhar cada movimento meu com seus olhos. Esperando que eu


sinalizasse algo, provavelmente. Só que não aconteceu. Terminei a bebida
silenciosamente, pousando a garrafa vazia no balcão.

— Precisamos ir agora. — Sinalizei. — Artigo de faculdade para fazer.

Obrigada pela cerveja.

Mais rápido do que chegamos ali, saímos. Quando atravessamos a porta


percebi duas coisas: eu estava encrencada pelos olhares que Hunt Finley me
lançava e que eu nem havia pegado a xícara de açúcar.
Era sexta-feira à noite quando os caras resolveram se empoleirar no

meu apartamento. Pretendia trazer uma garota para cá. Na verdade, ainda
traria. Só que talvez nós tivéssemos uma pequena plateia: os dois outros
integrantes da minha banda. Ian e Atticus estavam muito à vontade, o que me
deixava menos à vontade. Estava no meu apartamento e fazia um tempo que
eu não tinha estado sozinho. Trouxe gente para cá a semana inteira, inclusive
ontem. Dei uma pequena festa, logo depois do almoço. Privacidade era algo
que eu gostava às vezes e eu queria ficar sozinho naquele momento.
— Tira a porra do pé do meu sofá — cuspi para Atticus, que tinha as
mãos cruzadas atrás da cabeça raspada e os coturnos sobre meu estofado

novo.

Ele franziu as sobrancelhas, o cigarro importado da Indonésia que ele


fumava já tinha deixado meu apartamento com um cheiro horroroso. Como
eu disse, ele estava se sentindo muito em casa, o que me deixava puto. Ian

estava revirando minha cozinha fazia cinco minutos.

— Hunt está todo vaidoso hoje — Atticus resmungou, um sorriso torto


se abrindo em seus lábios. Ele tirou os pés do meu sofá, deu uma tragada no
cigarro enrolado e soltou a fumaça.

— Vaidoso e sem nada para comer. Não tem nada aqui além de leite e
suco de laranja. — Ian fechou a geladeira, debruçando-se sobre o balcão que
dividia a cozinha da sala. — O que você come? Se alimenta através de

fotossíntese?

Estava prestes a respondê-lo com uma frase bem feia quando duas
batidas calculadas foram dadas em minha porta. Eram leves, quase tímidas.
Virando-me, puxei a maçaneta bruscamente, com raiva não intencional.
Tinha certeza de que meu rosto devia estar sério e que meu olhar transmitia
irritação.
Evelyn pareceu ficar meio ultrajada quando captou o movimento
inesperado. Seus olhos escuros analisaram meu rosto com cuidado. Ela

sinalizou algo. Não reparei porque estava ocupado demais observando seu
rosto: as bochechas coradas, o cabelo preso num coque elegante, expondo seu
pescoço delicado e longo. Os lábios estavam comprimidos em linha reta. Ela
esperou e eu pisquei, suavizando a expressão.

— O quê? — Finalmente movi as mãos. — Pode dizer novamente?

— Disse que esta noite alguns amigos da faculdade vão vir para cá.
Não é nada demais. Apenas noite da pizza. Mas queria avisar porque eles vão
passar pelo corredor e fazer um pouco de barulho. Não queria incomodá-lo.

Eve era bem-educada. Éramos opostos até nisso. Fiz uma festa e não
avisei nada a ela. Devia ter levado em consideração já que tinha um monte de
babaca chapado por aqui. Algum deles poderia incomodá-la se ela estivesse

saindo para o corredor. Assenti, sorrindo um pouco. Apoiei o ombro no


batente.

— Beleza. Sem problemas. Espero que se divirtam.

Um dos cantos de seus lábios se ergueram levemente para cima. Alguns


momentos se passaram e nenhum de nós sinalizou nada. Eve parecia sem
jeito. Sem saber se deveria estender o convite até mim ou não — estava
estampado no rosto dela. Eu queria rir, mas provavelmente só tornaria a

situação mais embaraçosa para ela.

— Você pode aparecer por lá também, se quiser. Está convidado.


Vamos nos reunir depois das oito. Tem uma campainha ao lado da minha
porta. Ela envia uma mensagem pro meu relógio. — Ela virou o pulso,
mostrando-me o Apple Watch. — Ele vibra e assim sei que tem alguém do

lado de fora.

— Maneiro. Obrigado, Eve.

— Até mais, Hunt.

Então ela me deu as costas e observei enquanto ela caminhava até a


porta entreaberta do outro lado do corredor. Quando virou para trancá-la,
pareceu surpresa por ainda me ver ali. Eve acenou com a mão, despedindo-se
novamente antes de finalmente fechar a porta.

Quando voltei para minha sala, Atticus questionou:

— Quem era? Ela é surda?

— Minha nova vizinha. E sim, ela é surda.

— Ela é muito bonita. Talvez você possa ser a ponte entre nós dois já
que consegue usar ASL. — Ele estava se referindo à Língua de Sinais
Americana.

Antes que pudesse respondê-lo, Ian fez aquilo por mim:

— Cara, você não viu a expressão de otário que o Hunt ficou quando
começou a falar com ela? Ele quer transar com ela. Obviamente não vai ser
ponte nenhuma entre vocês.

— Não quero transar com ela — eu disse, na defensiva. — Só estou


sendo legal com a minha vizinha.

Ok, talvez não estivesse sendo legal só porque ela era minha vizinha.
Talvez quisesse beijá-la até que ela ficasse inconsciente, sem ar. Talvez
quisesse vê-la nua algum dia. Mas eram só probabilidades distantes.
Nenhuma delas iria acontecer. Até mesmo alguém idiota como eu entendia
que garotas como a Eve estavam fora do meu limite. Só que eu não estava
pensando bem. Uma parte de mim queria aparecer no apartamento dela hoje à

noite e se infiltrar na noite da pizza.

— Você mente mal — Ian continuou, tirando-me de meus


pensamentos. — Mas você tem cara de quem partiria o coração dela.

Não respondi, talvez ele estivesse certo. Eu partiria o coração dela? Ian
e Atticus entraram numa discussão desinteressante sobre algo que eu não
estava prestando atenção enquanto enviava mensagem para a garota gostosa
de uma das minhas turmas. Ela respondeu um momento depois, dizendo que
estava a caminho. Expulsei meus amigos antes que ela chegasse.

Hana apareceu dez minutos mais tarde. Ela estava usando um cropped
vermelho, uma minissaia jeans e um pouco de maquiagem no rosto, o cabelo
longo e dourado preso num rabo de cavalo. Eu não era um cavalheiro.
Também não gostava de conversar. Na verdade, eu era bem objetivo.

Perguntei se ela tinha camisinha, preferia que eu fosse cuidadoso ou a


machucasse — Hana escolheu a segunda opção.

As frases "Meu Deus, Hunt!", "Minha nossa, Hunt!" e "Mais forte,


Hunt!" preencheram meu apartamento pelos próximos momentos. Não levei
ela para meu quarto. Ela não se importou quando sugeri o chão da sala.
Depois de se desfazer duas vezes e parecer satisfeita, ela mesma sugeriu que
fosse embora. Era como o sexo casual funcionava: simples, bom e sem
complicações.

Fui tomar banho enquanto Hana se vestia para sair. Quando voltei para
sala, ela já tinha desaparecido. Eram sete e meia, quase oito horas. Com os
cabelos ainda úmidos, saí de casa e dei seis passos até estar em frente a porta
de Eve. Apertei a campainha. Ela apareceu um segundo depois, uma escova
de cabelos nas mãos enquanto penteava os fios longos cor de ébano. Ela
parou no meio de um movimento, congelando. Parecia que ainda estava se
arrumando.

— Oi. — Sinalizei para ela, espiando sobre seu ombro. Seu


apartamento ainda estava vazio. — Acho que cheguei um pouco cedo.

Ela apenas piscou, dando-me passagem. Sem hesitar, avancei para


dentro. Ouvi quando ela fechou a porta atrás de mim e analisei seu

apartamento. Era do mesmo formato que o meu, só que completamente


diferente. Os móveis dela estavam todos novos e pareciam caros. Havia dois
sofás vermelhos na sala, um ao lado do outro, um tapete branco e felpudo no
centro e uma tevê grande num painel de madeira.

Eve pediu um momento. Ela se virou e sumiu no corredor. Quando


voltou, dois minutos depois, parecia pronta. O vestido que ela usava era
amarelo, florido. Expunha suas pernas longas além de marcar suas curvas
sutis. Tinha o corpo de uma ginasta ou bailarina. Voltei minhas íris para seu

rosto. Ela sinalizou:

— Meus amigos devem chegar daqui a pouco. Não achei que você
fosse vir.

Concluí duas coisas desde que entrei em seu apartamento: eu deixava


Evelyn desconfortável. Segundo: não havia a menor possibilidade de ser
apenas amigo dela. Por isso, tinha que me lembrar a todo momento de que ela
não era para mim. Que ela não era do tipo que aceitava só o sexo sujo e

casual que eu poderia oferecer.

— Estava um pouco entediado. — Dei de ombros. Era mentira. — E


com fome. Pareceu perfeito.

Eve arqueou as sobrancelhas, continuando em silêncio. Dei uma olhada

ao redor.

— Então, cadê o seu peixe? — questionei, encarando-a.

— Ele fica no meu quarto. — Sinalizou. Não deixei de notar a maneira


como suas bochechas tomaram uma coloração cor de rosa.

— Qual o nome dele?

Eve travou.

— Peixe.

— Seu peixe se chama peixe? — questionei, tombando a cabeça para o


lado.

— Sim. — Deu de ombros, parecendo desconfortável com as minhas


perguntas.

Tive que esconder o sorriso em meu rosto, estava na cara que ela não
tinha um peixe e tinha inventado aquilo só para fugir de mim. Resolvi mudar
de assunto:

— O que você cursa?

— Pedagogia. E você?

— Música.

— Legal. Em qual universidade?

— Harvard — respondi.

Evelyn me analisou com outros olhos.

— Você não parece um engomadinho.

— Eu sei. Estou mais para o tipo criminoso, não é? — Meu rosto era
completamente sério, mas eu estava brincando, tentando constrangê-la.

Evelyn ficou estática, os ombros rijos.

— Desculpe. É só que... — Ela parou de mover as mãos, parecendo


pensar por alguns momentos.

Aproveitei para interrompê-la:

— Minhas tatuagens dizem outras coisas? Assim como os piercings?


Pareço alguém que faz parte de uma gangue? — sugeri para ela.
Suas bochechas foram tomadas por uma cor de rosa perolado, Evelyn
passou as mãos pelo rosto, balançando a cabeça negativamente em seguida.

Parecia tão constrangida e envergonhada que fiquei com pena. Não pude
evitar o riso que escapou por meus lábios. Ela pareceu ficar confusa enquanto
me observava.

— Eu estava brincando com você — finalmente revelei.

Eve rolou os olhos, relaxando. Ela sinalizou:

— Eu nem te conheço direito e já te odeio.

— Não vai odiar por muito tempo — garanti a ela.

Nós nos fitamos por alguns segundos sem dizer nada. O relógio de Eve
acendeu em seu pulso, chamando sua atenção. Ela andou até a porta, girando
a maçaneta. A amiga de Eve, que tinha a acompanhado por dez minutos em
minha festa, e um garoto desconhecido atravessaram a porta. Após se

cumprimentarem entre si, me avistaram no centro da sala e congelaram.

— Oi. — Sinalizei. — Eu me chamo Hunt.

— Eric — o cara respondeu, meio sem jeito.

— London. — A garota moveu as mãos.

Evelyn interrompeu as apresentações perguntando quais os sabores de


pizza deveriam pedir. Depois, seus amigos ficaram na sala e a segui até a
cozinha.

Ela encheu uma taça de vinho, não percebendo minha presença. Fiquei
escorado contra o balcão de mármore.

Quando ela se virou, pareceu um pouco surpresa. Eve abriu a geladeira

novamente e pegou uma garrafa de cerveja, empurrando-a em minha direção.


Esperei com que ela desocupasse as mãos — o que pareceu levar uma
eternidade — para dizer algo. Depois que Evelyn estava livre e não bebia
mais vinho, sinalizei:

— Seus amigos são divertidos.

— Vocês mal trocaram apresentações. — Um fantasma de sorriso


pairava em seus lábios e seu olhar foi preenchido por um misto de surpresa e
curiosidade.

— Mas eles parecem divertidos — respondi.

Eve não disse nada.

— Você é sempre tímida?

A garota deu de ombros.

— Difícil, então — concluí.


Evelyn franziu as sobrancelhas, ainda silenciosa.

— Não gosta de mim? — continuei, tentando arrancar-lhe palavras.

Eve assentiu. Dei um sorriso torto.

— Vai gostar — prometi a ela.

Evelyn saiu da cozinha, deixando-me para trás. Não sem antes me dar
um rolar de olhos petulante, é claro. Entornando o resto do conteúdo da
garrafa de cerveja, silenciosamente, aceitei o desafio.

Eu faria Eve gostar de mim.


O bar em que minha banda e eu estávamos tocando esta noite estava

lotado, os universitários — em sua maior parte de Harvard — se mantinham


espremidos na pista de dança com algumas garrafas de cerveja em mãos.
Atticus e Ian sinalizaram para mim, indicando que era hora da pausa. Só que
eu estava tão eletrizado que não movi as solas de meus coturnos para fora da
plataforma de madeira. Ao invés disso, meus dedos instintivamente
começaram a dedilhar alguns acordes. O som saiu limpo, ecoando por todo
ambiente, fazendo as pessoas voltarem a prestar atenção em mim.
Engoli em seco, ignorando a dor nas juntas dos meus dedos pelas
quatro músicas seguidas que tinha tocado e focando no início da melodia do

meu solo de Bohemian Rhapsody na guitarra. Meu peito subia e descia


rapidamente pela adrenalina, forcei-me a controlar a afobação crescente em
meu interior e inspirar e expirar profundamente.

O começo foi calmo. A música ondulava através do instrumento no

ritmo de um mar sereno. No último acorde da primeira parte, antes de entrar


no trecho em que as coisas começavam a ficar agitadas, sorri torto e fitei a
pequena multidão abaixo de mim.

Depois que me endireitei, entrei no refrão, que era para ser tocado a
todo vapor. As pessoas pareceram ser incapazes de manterem os pés no chão
naquela hora. Então quando o estrondo dos tênis esmagando o piso encardido
do bar num ritmo constante quase sobressaiu o som de minha guitarra, tentei
subir as notas para que ficassem mais agudas. A bateria entrou no momento

certo, surpreendendo-me. Lancei um olhar para trás sobre o ombro e fui


recebido pelo sorriso malicioso de Atticus. Ian se juntou a nós no baixo um
momento depois. Aquela foi uma das nossas melhores performances desde
Boston. Quando acabamos, o público pediu para que tocássemos outra. Só
que já estava tarde e tínhamos que ir embora.

Saindo do palco, puxei a barra da camiseta para cima, secando a testa.


Meu tronco estava molhado por conta do suor. Passei os dedos nos fios de
cabelo úmidos, Ian jogou uma long neck gelada para mim, estávamos num

corredor que ficava ao lado do palco. Era discreto e escuro. Dava para ter
privacidade ali porque tinha menos barulho. O burburinho ficou abafado.

— Vai para casa? — questionou-me, os olhos fixos nos meus.

— Vou. Estou morto. Hoje foi intenso. — Fiz uma pausa para abrir a
tampa da cerveja com os dentes, descartando-a. — Precisa de uma carona? —
indaguei, enquanto dava alguns goles em minha long neck, o líquido amargo
e gelado refrescando-me um pouco. Quase soltei um suspiro.

— Não, valeu, cara. Atticus vai ficar aqui mais um pouco. Marquei
com alguém. Ele vai esperar e depois me levar embora.

Quando anunciei para eles que iria me mudar para Massachusetts, meus
companheiros de banda nem ficaram apreensivos. Disseram que dariam um

jeito de continuarmos com a banda desde que todos nós — exceto Ian —
tínhamos meios de transporte, além de que o metrô sempre era uma opção
bem-vinda, então desfazermos a banda por conta de distância nunca foi uma
opção. A dona do bar veio até nós um momento depois com o dinheiro
enrolado em maços nas mãos.

Me despedi de Atticus e Ian e fui embora pelos fundos. Saí


sorrateiramente porque não queria ter que lidar com as pessoas que gostavam

da minha música naquele dia, eu sabia que também haveria muitas garotas

dispostas a me fazerem levá-las para casa. Por mais que eu adorasse sexo,
não estava a fim naquela noite. Só queria deitar em minha cama e recuperar
algumas horas de sono para a aula do dia seguinte na Harvard.

Quando cheguei no prédio, após estacionar a Harley, subi os lances de

degraus até meu apartamento. A porta de Evelyn estava fechada e tudo


sempre estava muito silencioso e calmo, como o habitual. Na última vez em
que nos vimos, havia sido em sua casa, na noite da pizza. Agora ela parecia
estar me evitando. Ou pelo menos tentando, já que éramos vizinhos. Uma vez
estava subindo as escadas e vi ela no corredor, tentando abrir a fechadura
enquanto segurava um copo do Starbucks, alguns livros e uma bolsa.

Como se ela pudesse sentir minha presença, olhou sobre o ombro e


acabou me encontrando a somente alguns passos de distância. Sorri e tentei

me aproximar na intenção de ajudá-la, só que Eve abandonou o copo de


isopor, deixou alguns de seus livros para fora e entrou em seu apartamento
após me dar um sorriso mecânico e um aceno de mão breve. Fiquei parado lá,
processando o que tinha acabado de acontecer enquanto fitava a capa de
Hamlet no chão ao lado do copo de café que ainda estava fumegante. Depois
desse dia, ficou óbvio que ela gostaria de manter distância entre nós dois.
Só que eu faria o contrário.

Tomei banho e troquei as roupas ensopadas de suor por limpas. Por


mais que estivesse com os cabelos ainda úmidos e bagunçados, usando uma
camiseta velha do Nirvana, concluí que estava ideal para fazer a Evelyn uma
visita inesperada. Nem me importei que eram mais de onze horas da noite.
Enquanto atravessava o corredor curto que nos separava, tentei pensar numa

desculpa para aparecer do nada. Uma lâmpada se iluminou em minha mente.

Toquei a campainha e esperei dois minutos. Nada aconteceu então


passei a apertá-la de um em um segundo.

Acho que já tinha pressionado o botão umas trinta vezes quando Evelyn
apareceu na porta.

Coelhos. Foi a primeira coisa que reparei quando Eve surgiu em meu
campo de visão. Seu pijama de mangas longas e short curto era estampado

com centenas de coelhinhos. Meus olhos se moveram vagarosamente para


cima, em direção ao seu rosto. Evelyn parecia surpresa, tinha uma expressão
sonolenta e os olhos escuros pareciam cansados. O cabelo liso e escorrido
estava todo bagunçado, o que dava a ela um ar sexy e perigoso, mesmo que
fosse inofensiva em suas vestes um pouco infantis.

— É quase meia-noite. Está tudo bem? — questionou-me, através da


língua de sinais.

— Meu açúcar acabou. — Foi tudo o que eu sinalizei de volta, um


sorriso torto deslizando por meu rosto.

Seus lábios se entreabriram. Evelyn parecia ter sido pega no flagra. Ela
entendeu a ironia porque um dos cantos de sua boca se ergueram de maneira

quase imperceptível para cima. Então, me deu espaço para entrar e foi o que
eu fiz. O interior do apartamento estava limpo, escuro e calmo, como sempre
deveria ser. Segui Eve até a cozinha, sentei numa das banquetas do balcão e
fiquei observando enquanto ela se movia pelo cômodo.

Ela alcançou um dos armários que ficava na parte superior da parede.


Encheu uma xícara de açúcar, a deslizou pelo balcão de mármore até mim e
ficou me observando silenciosamente, como se esperasse que eu me
levantasse e fosse embora. Ao invés disso, continuei lá, devolvendo seu olhar

intenso.

— Você consegue ler lábios? — Sinalizei.

— Mais ou menos. Sei mais sinalização.

— Consegue ler isso? — questionei-a antes de dizer em voz alta: — Eu


acho... — proferi as palavras lentamente, apoiando meus cotovelos sobre a
pedra fria de mármore escura, aproximando-me alguns centímetros. Suas íris
agora estavam presas em minha boca. Capturei o movimento de sua garganta
quando ela engoliu em seco. — Você muito bonita — completei num tom de

voz baixo, um momento depois.

Evelyn ergueu os olhos. Parecia envergonhada. Ela assentiu lentamente


e depois sinalizou que havia entendido. Ela não me agradeceu pelo elogio e
nem comentou nada sobre isso, o que achei engraçado. Evitar era sua rota de

fuga preferida, aparentemente. Eve abraçou o próprio corpo, mordeu o lábio


inferior e desviou o olhar para longe, recuando dois passos para trás e ficando
fora do meu alcance.

— Qual sua refeição preferida do dia? — questionei-a de repente.

Ela ergueu um dos ombros, pareceu pensar por alguns segundos e então
sinalizou:

— Café da manhã. Sei lá.

Me levantei, contornei Evelyn em minha frente e abri a geladeira.


Analisei o que havia no interior e peguei o galão de leite que estava na
metade, ovos e manteiga. Quando me virei com os ingredientes apoiados nos
braços, Eve me lançava um olhar questionador. Ela sinalizou, perguntando o
que eu estava fazendo. Seus braços estavam cruzados sobre o peito e ela
parecia um pouco desconfiada.
— Muffins — eu disse em voz alta.

Seu queixo caiu. Ela pareceu ficar incrédula.

— Muffins? — Moveu as mãos, querendo uma confirmação de que


havia entendido corretamente.

Assenti. Evelyn pareceu ficar perplexa, mas não disse mais nada, então

voltei para a minha receita. Coloquei tudo numa tigela que havia encontrado
no armário e fiz uma mistura da massa com o restante dos ingredientes que
havia achado revirando os armários da cozinha. Em algum momento, Eve se
juntou a mim e me entregou uma forma com o espaçamento específico dos
bolinhos. Agradeci a ela que também tinha aquecido o forno para mim e
girado o timer nos vinte minutos. O silêncio entre nós era reconfortante.
Limpei a bagunça que tinha feito e depois me recostei contra a pia atrás de
mim.

Evelyn estava sentada atrás do balcão, de forma que tinha muito espaço
entre nós.

— O que é isso que nós estamos fazendo aqui? — Evelyn sinalizou,


surpreendendo-me por ser a primeira a dizer algo. — Você praticamente
invadiu o meu apartamento e depois resolveu que deveríamos assar muffins
juntos como se fôssemos amigos infância. É um pouco esquisito se você for
analisar do ponto de vista de uma garota de vinte anos que estava dormindo e

acordou com o relógio vibrando loucamente no pulso. Me assustou. Achei

que tinha acontecido um acidente.

— Você tem vinte anos? — Ignorei todos seus pontos, meu cérebro só
foi capaz de processar aquela parte. Eve não parecia ter vinte. Chutaria
dezoito, talvez dezenove.

Ela me deu um rolar de olhos petulante antes de mover as mãos e me


responder.

— Sim. E você?

— Eu fiz vinte e um há dois meses.

Ela apenas assentiu. Voltamos para a etapa de nos encararmos sem


dizer nada. Eu até que gostava daquilo, também gostava que Evelyn
sustentasse meu olhar e não recuasse. Ela parecia ser segura de si mesma.

Não parecia se sentir intimidada por mim. Ela só me evitava na maior parte
do tempo, como no dia da escada.

— Que foi? Por que está me encarando assim? — indagou,


semicerrando os olhos em fendas.

— Assim como?
— Não sei, você parece estar se divertindo. Com o quê?

— Nada, só estava lembrando do dia em que você precisava de ajuda


para abrir a porta e me evitou.

Evelyn piscou em surpresa. Agora ela estava quase debruçada sobre o


balcão, o queixo apoiado sobre os punhos cerrados. Ela não pareceu ficar

constrangida e suas bochechas não enrubesceram como eu pensei que fariam.


Continuou com uma expressão relaxada, nem tentou se defender sobre me
evitar e nem fez questão de sinalizar nada. Tudo o que Eve fez foi erguer os
ombros.

No próximo segundo o timer disparou. Eve continuava alheia, já que


não podia ouvir. Virei-me, caminhando em direção ao forno. Após desligá-lo,
com a ajuda de um pano de prato, tirei a forma com os bolinhos de lá dentro.
Coloquei-os sobre a pia. O cheiro estava bom. Senti a presença de Evelyn

atrás de mim, espiando sobre meu ombro. Seus passos tinham sido leves
como pluma, porque não fui capaz de perceber enquanto ela se aproximava.
Seu braço acabou esbarrando no meu quando ela se moveu para meu lado e
senti um calor disparar por meu tronco. Suas íris se conectaram às minhas e
ela ergueu o polegar, como se aprovasse os meus muffins. Pelo menos a
aparência deles.

Com uma faca, Evelyn deslizou cuidadosamente um dos bolinhos para


fora da forma. Tirou outro para mim e os deixou pousados sobre uma tábua
de madeira. Sem me importar que ainda estava quente, enfiei um inteiro na

boca. A massa amanteigada derreteu feito um floco de neve na minha língua.

Eve me encarava como se eu fosse um selvagem. Ela finalmente


resolveu experimentar o seu. Enquanto mastigava, mantive meus orbes
conectados ao seu rosto, esperando por uma reação. Quando terminou, fez

um sinal com a mão:

— Bom.

— Vou embora. — Sinalizei, quando notei um bocejo se formar no


rosto de Eve.

Ela não se opôs.

— Não esquece do açúcar — retrucou, lançando-me um olhar


significante.

Sorri torto.

— Eu posso comprar amanhã.

Eve me deu um sorriso falso.

— Tenho certeza de que pode.


Me levantei, negando quando ela sugeriu que eu levasse alguns dos
muffins restantes. Todos eram para ela comer em sua refeição preferida: o

café da manhã. Eve me acompanhou até a porta e antes de ela fechar a porta,
quando estávamos frente-a-frente, movi as mãos e sinalizei:

— Boa noite.

— Boa noite, Hunt.

Então, Evelyn finalmente fechou a porta.


Enquanto estava sentada no sofá com meu notebook aberto no colo,

preocupada em terminar um artigo, fui interrompida quando o relógio


começou a vibrar no meu pulso. Duas vezes antes de parar. Reprimindo um
suspiro no fundo da garganta, levantei-me e fui em direção a porta, abrindo-a.

O corredor estava vazio, para a minha confusão. Entretanto, ao baixar


meu olhar, avistei duas caixas enormes, cor de creme, empilhadas uma sobre
a outra. Ignorando que aquilo era muito estranho e o alarme no fundo de
minha cabeça que dizia que poderia ser uma enrascada, eu as peguei.
Fui em direção à cozinha, colocando-as sobre o balcão de mármore.
Tirei a tampa de uma delas e arqueei as sobrancelhas ao avistar as fileiras de

cupcakes bonitos e com camadas generosas de glacê. Parecia ter sido caro.
Confirmei minhas suspeitas ao avistar o cartãozinho que estava jogado no
fundo da caixa com o logo de uma confeitaria famosa e chique da cidade.

Junto a ele, estava um papel branco e simples, com os dizeres: "Um

para cada vez em que toquei sua campainha enquanto você dormia. Me
desculpe" naquela letra torta e familiar. Meu queixo quase caiu. Não tinha
assinatura nenhuma, nem precisava também. Estava óbvio quem havia me
enviado as caixas.

Fechei a tampa, balançando a cabeça negativamente. Não podia aceitá-


los. Segurando as caixas, foi uma luta abrir a porta de meu apartamento e
depois bater na de Hunt enquanto sustentava os cupcakes com somente um
dos braços. Ele apareceu depois de um ou dois minutos.

Por um segundo, esqueci-me o que tinha ido fazer ali ao deparar-me


com meu vizinho. Seus olhos escuros feito carvão brilharam em
reconhecimento. Seu rosto estava relaxado, o metal que perfurava sua
sobrancelha se mexeu quando ele a arqueou em minha direção. Seus cabelos
estavam meio jogados para trás, completamente desgrenhados. As mechas
negras e sedosas um pouco compridas se enroscando em suas orelhas. Mas,
do mesmo jeito, dava para ver todos os piercings que a compunham. O que
atravessava o tragus, outro que ficava na hélice, além do brinco pendurado

em seu lóbulo em formato de cruz.

Seus lábios se entreabriram e um sorriso se formou em sua expressão.


Pelo jeito que sua garganta se moveu e sua boca estava aberta, os dentes
retos, alinhados e brancos todos expostos, dava para perceber que ele estava

rindo. E a maldita bolinha de metal em sua língua estava lá, dando-me boas-
vindas. Pisquei, parecendo voltar para o eixo. Fiz cara feia, questionando-o
silenciosamente o que era tão engraçado.

Como se Hunt pudesse ler minha mente, ele fez um sinal com a mão.
Um sinal que significava ''fofa''. Se possível, fiquei ainda mais constrangida.
Ele deu de ombros e então disse: "Estava rindo porque você é fofa, me
desculpe. Eu amo os seus pijamas". Meu rosto ardeu. Lancei um breve olhar
para baixo, para as roupas estampadas com dinossauros que estava usando.

Ótimo, agora tinha certeza que devia estar me parecendo com um


tomate. Empurrei as caixas contra seu peito, balançando a cabeça
negativamente. Hunt pareceu ficar confuso e ter sido pego de surpresa,
porque até deu um passo para trás com o atrito leve.

— Não posso aceitar. — Sinalizei para ele agora que estava com as
mãos livres.
Hunt baixou as sobrancelhas, provavelmente em reprovação.

— Por favor, eu os comprei para você. — Ele teve que dizer em voz
alta, porque agora estava ocupado segurando as caixas. Me concentrei o
máximo em seus lábios para que conseguisse ler. Ajudou que ele proferisse
tudo sem pressa.

Troquei o peso de uma perna para a outra, analisando seu rosto calmo.

— Não vou comer tudo isso. É demais para mim.

— Eu como com você — ele sugeriu lentamente.

Levei alguns momentos para conseguir mexer as mãos e respondê-lo,


meu cérebro quase havia pifado. Eu definitivamente não esperava que ele
fosse dizer algo do tipo.

Fiz um sinal de "ok".

Hunt saiu da soleira de seu apartamento, fechando a porta e lançando-


me um olhar encorajador. Pisquei, lembrando que devia andar. Girando sobre
os calcanhares, ignorei meu nervosismo e meu coração maluco disparado
quando voltei para minha casa, com a pessoa que eu mais deveria evitar em
meu encalço segurando caixas de cupcakes que nós iríamos dividir como se
fossemos amigos íntimos.
Encostei a porta atrás de mim, ficando inquieta ao observar Hunt entrar
na sala sem hesitação como todas as outras vezes. Era como se ele fosse dono

do lugar. Ele se sentou em uma das poltronas e colocou as caixas sobre a


mesinha central. Depois de abrir uma, tirou um cupcake de lá e começou a
comer. Me sentei no lugar que estava originalmente, antes de ele tocar a
campainha e deixar duas encomendas de "pedido de desculpas" para mim.

Sinalizei para Hunt que ficaria ocupada por um tempo enquanto


terminava o artigo. Ele assentiu e pegou o controle da tevê, ligando-a. Ignorei
sua falta de hesitação e me concentrei em digitar — uma tarefa que parecia
quase impossível com ele ali, sentado a poucos metros de distância. Forcei-
me a focar em escrever os parágrafos com coerência até que lancei um olhar
para cima, ainda digitando e fitei o perfil de Hunt. Abaixo da linha que
contornava seu maxilar quadrado, havia algumas letras tatuadas em tinta
preta. Eram ilegíveis, entretanto, familiares.

Quando voltei para a tela do computador um "Ai meu Deus, ele tem
uma tatuagem em coreano" ocupava o espaço entre um parágrafo e outro.
Pressionei a tecla de deletar por alguns segundos, apagando-a.

Inspirei e expirei com força, endireitando-me no sofá e voltando a


escrever. Ou pelo menos tentando. As frases saíam um pouco desconexas.
Mordia meu lábio inferior nervosamente. Algo leve acertou meu rosto —
minha bochecha direita, para ser mais precisa — e eu lancei um olhar para
cima. Hunt não estava mais interessado na tevê. Suas íris estavam fixas em

mim, um sorrisinho torto cruzava seus lábios.

Olhei para o meu colo, encontrando uma forminha de cupcake


amassada. Era com aquilo que ele havia me acertado. Franzi as sobrancelhas,
questionando-o silenciosamente.

— Não vai comer nenhum? — Sinalizou.

— Depois.

Ele fez uma pausa antes de mover as mãos e dizer:

— Você tem Facebook?

Pisquei, tentando acompanhar a mudança brusca de assunto.

— Sim.

— Vou te adicionar. Como devo procurá-la?

Disse a ele que Evelyn Rose era meu nome no Facebook. Hunt pareceu
satisfeito enquanto tirava o celular do bolso e se recostava contra a poltrona
atrás de si, relaxado. Seus dedos eram ágeis pela tela do aparelho. Abri uma
nova aba, entrando na rede social esquecida por mim há alguns anos. Quando
a notificação da solicitação chegou, deixando a tela piscando, cliquei sobre
ela. Hunt Finley deseja ser seu novo amigo. Aceitei.

A aba da conversa surgiu no canto inferior esquerdo um momento


depois. Abri, curiosa.

Hunt: oi

Eu: oi

Hunt: sou seu novo amigo no Facebook

Eu: eu sei

Hunt: legal, né?

Eu: muito

Fiz uma pausa para clicar em sua página. Hunt era bem popular, o que
eu já esperava. Suas fotos tinham centenas de curtidas e a mais recente que
ele havia postado era uma sobre o palco, segurando uma guitarra. Cliquei na

foto que ele usava atualmente de perfil. Também uma fotografia dele nos
shows. Só que nessa seu torso estava nu, exposto para Deus e o mundo. As
tatuagens espalhadas por seu tronco, tinta preta se contrastando com pele
branca. Prendi um sorriso entre os dentes, aquela foto era a cara dele.
Provocadora e chamativa.

Outra mensagem chegou.


Hunt: para de me stalkear

Eu: não estava te stalkeando

Hunt: estava sim, seu rosto tá vermelho feito tomate agora

Hunt: vc mente mal

Movi o rosto para cima e nossos olhares se cruzaram, amaldiçoei-o


mentalmente. Passei uma das mãos pela bochecha, tentando me livrar do
constrangimento que vinha em forma de rubor cor-de-rosa. Voltei para o
computador.

Eu: tudo bem, vc me pegou

Hunt: vou te mandar o link de um jogo

Eu: eu tô fazendo um artigo de faculdade, n dá pra jogar agora

Hunt: pi pi pi

Eu: o q é isso?

Hunt: meu detector de mentiras apitando

Dessa vez, não fui capaz de conter o riso. Foi quase involuntário.

Hunt: nossa
Eu: o que foi?

Hunt: sua risada

Levou um momento para a próxima mensagem chegar.

Hunt: ela é bonita

O sorriso em meu rosto morreu ao me dar conta de que eu tinha rido na


frente do Hunt. Esqueci que ele podia escutá-lo, ao contrário de mim.
Conseguia sentir seu olhar queimando sobre mim, esperando que eu olhasse
para cima. Mantive meus olhos no monitor do notebook.

Hunt quebrou a tensão crescente entre nós enviando-me o maldito link


do jogo. O abri, era melhor que ter que enfrentá-lo. Supri um gemido no
fundo de minha garganta quando a página carregou. Era um daqueles jogos
de dados com perguntas engraçadinhas e maliciosas só que on-line. Eu nem
sabia que aquele tipo de coisa existia na internet. Lancei um olhar para Hunt

como se disse "Fala sério" só que ele estava concentrado na tela do celular.

Voltei-me para o notebook. Ele tinha girado os dados.

"Você se sente atraído (a) pela pessoa com quem está jogando?" foi a
primeira coisa que apareceu na tela.

Não tinham opções para que eu respondesse, o que indicava que a


pergunta tinha sido feita para Hunt. Depois de um segundo, um coração

enorme e ridículo tomou conta do monitor com os dizeres "Seu parceiro tem

interesse em você!". Senti meu estômago revirar e pressionei os lábios juntos,


sem saber se aquilo era sério ou não. Podia tudo não passar de uma
brincadeira idiota. Hunt não poderia estar falando sério. Ou poderia.

Meus pensamentos evaporaram quando uma pergunta para mim

apareceu na tela.

'Você acha sua companhia bonita?'.

Apertei em "não". Hunt já sabia que era bonito. Todo mundo que podia
enxergar sabia. Ele não precisava que o ego fosse mais alimentado. Olhei
para ele. Seus ombros chacoalhavam um pouco enquanto ele dava risada,
achando graça da minha resposta.

A tela do meu laptop ficou inteira vermelha e os dizeres "Hora do

bônus" cruzaram-na. Depois de cinco segundos, outra frase surgiu: “Você tem
o direto de tocar ou ver de perto alguma parte do corpo de seu parceiro de
jogo e vice-versa, se ambos estiverem de acordo”. Franzi as sobrancelhas,
ponderando por um segundo se eu estava de acordo ou não antes que minha
mente gritasse um "É óbvio que você não está de acordo!".

Um formigamento esquisito se espalhou por meu corpo. Senti o olhar


de Hunt sobre mim e o encarei. Seu rosto estava sério, sem vestígios de

humor e seus orbes estavam opacos, banhados por divertimento. Ele arqueou

as sobrancelhas discretamente, questionando-me se eu iria aceitar o desafio


ou não. Engoli em seco e pensei por alguns momentos.

Eu não era covarde. Ignorando os alertas, sinalizei:

— Sem tocar. Nada muito íntimo.

Hunt assentiu, parecendo achar graça.

— O que você quer que eu te mostre? — questionou-me, um brilho


malicioso no olhar.

Pensei por alguns momentos.

— Sua tatuagem. Embaixo do maxilar.

Ele pareceu ficar um pouco confuso.

— Você podia escolher coisas mais interessantes e quer ver minha


tatuagem que nem é uma parte do meu corpo?

Dei de ombros.

Ele se aproximou, sentando-se em meu lado. De repente, fiquei


consciente demais da distância de quatro ou cinco centímetros entre nós e do
calor corporal que emanava de sua estrutura. Meu pulso disparou. Hunt
inclinou o queixo para cima, mostrando-me a frase. Traduzindo do coreano

para nosso idioma, ela dizia "Morra com memórias e não sonhos".

— Legal. — Sinalizei para Hunt, sendo honesta.

Ele se endireitou, inclinando-se um pouco para mim. Parecia um

movimento inocente, que Hunt nem havia se dado conta, só que seu olhar me
dizia que ele sabia o que estava fazendo. Surpreendendo-me, ele empurrou
meu cabelo com cuidado para trás. Quase pulei no sofá, sendo pega de
surpresa. Mantendo os olhos nos meus, capturei o movimento de seus lábios
quando ele disse "Minha vez".

Ficando estática em meu lugar, tentei ignorar as batidas malucas de


meu coração e que seu toque parecia lava escorregando sobre minha pele,
incendiando-me. As pontas de seus dedos deslizaram para o meu queixo,

inclinando-o para cima de forma que meu pescoço todo estava exposto para
ele. Hunt percorreu os olhos por aquela parte da minha anatomia em especial
e finalmente notei o que ele estava fazendo; era o que ele tinha escolhido do
jogo dos dados. O meu pescoço.

Ignorei o quanto aquilo era estranho e deixei com que ele terminasse de
perscrutar cada centímetro daquela área. Seus olhos pareciam pedaços de
carvão acesos em brasa, queimando e prestes a me queimar também.
Ignorando os limites, Hunt passou o polegar na parte da frente de minha
garganta e um tremor se arrastou por meu tronco. Ele moveu o dedo de

maneira ociosa sobre minha pulsação, como se pudesse senti-la. Fiquei


estática, o coração quase atravessando as costelas.

Fiquei assustada com o desejo que foi impulsionado em meu interior de


que seus dedos se fechassem ao redor de meu pescoço. Hunt mantinha os

olhos nos meus, analisando se era seguro ou não. Ele se afastou três segundos
depois, lançando-me um sorriso polido, como se pedisse desculpas. Não
soube como reagir, porque queria que ele me beijasse e aquele fato me
assustou. Depois de longos momentos de silêncio constrangedor e
desconfortável, Hunt sinalizou que iria embora e não debati porque era o
melhor a se fazer. Quase tínhamos cruzado uma linha proibida.

Fiquei observando quando ele se levantou e andou até a porta, girando


a maçaneta e sumindo pelo corredor a fora. Ainda estava raciocinando tudo o

que tinha acontecido quando uma mensagem chegou no Facebook, três ou


quatro minutos depois.

Hunt: sabe por que pescoços são legais?

Franzi as sobrancelhas.

Eu: não
Hesitei com os dedos pairando sobre o teclado. Finalmente enviei a
mensagem.

Eu: por quê?

Hunt: dá para colocar um colar

Emoji sugestivo.

Quando entendi, meu queixo caiu.


O início de setembro em Massachusetts sempre deixava o tempo

instável. O inverno começava a se infiltrar aos poucos e as chuvas intensas


começavam.

Hoje, quando acordei, por exemplo, o dia estava nublado. Bastou uma
olhada para o céu através das janelas do meu apartamento para que soubesse
que deixá-las abertas durante a manhã não seria uma boa ideia. Então agora,
enquanto dirigia com meu carro de volta para meu prédio após as aulas e
observava a chuva cair do céu e respingar em meu para-brisa, agradeci a mim
mesma por seguir meus instintos.

O estacionamento do prédio era aberto, o que me fez abrir o guarda-


chuva e empurrar a porta de maneira brusca. Deslizei para fora do automóvel
da forma mais hábil que consegui. Nunca fui boa em esportes. Muito menos
nos que envolviam percussão. Então quando atravessei o saguão, o cabelo
ensopado, não fiquei surpresa. Torci a massa de fios pretos em minhas mãos,

distraída e praguejando mentalmente por minha roupa estar em um estado


igualmente deplorável e molhado.

Meu suéter de mangas longas preto e colarinho branco combinava com


a saia xadrez. A meia calça fina e preta cobria minhas pernas, só que não
ajudava com o frio e meus pés estavam um pouco submergidos em água que
tinha acumulado dentro de minhas botas de couro. Notei que meu queixo
estava tremendo e me apressei em dar um passo para frente. Meu plano era
tirar as roupas encharcadas o mais rápido possível, tomar um banho quente e

evitar um resfriado.

Meus pés estancaram no chão quando dobrei o corredor, em direção as


escadas. Fiquei surpresa porque tinha um casal dando uns amassos contra a
parede ao lado do lance de escadas que eu tinha que subir para chegar até
meu apartamento. O cara estava de costas para mim, de forma que só via a
parte de trás de sua cabeça e a jaqueta larga de couro que se estendia em seus
músculos intercostais. O guarda-chuva que eu tinha fechado e colocado sob
um dos braços escorregou e caiu no chão. Fui rápida ao apanhá-lo. Quando

levantei a cabeça, percebi que tinha denunciado minha presença.

Meu coração bombeou sangue mais rápido quando me deparei com as


íris escuras feitas obsidianas de Hunt. Ele me lançava um olhar curioso sobre
o ombro, uma das sobrancelhas arqueadas. Senti meu rosto pegar fogo. Não

fiz nada além de ficar parada feito um espantalho em sua frente, horrorizada
por tê-lo interrompido em um momento íntimo.

A garota loira que estava em seus braços parecia um pouco insatisfeita


pela falta da língua do meu vizinho em sua garganta. Ele murmurou algo que
não fui capaz de ler. A garota franziu um pouco o nariz pequeno e arrebitado,
um dos cantos de seus lábios se curvou para baixo em descontentamento.

Como ela estava com o corpo virado para mim, fui capaz de fazer

leitura labial quando ela respondeu a o que ele disse com um "Está
chovendo". Eu estava pronta para sair dali quando Hunt olhou para mim com
uma expressão séria e indagou através da língua de sinais:

— Você se importa em me dar esse seu guarda-chuva? Depois te


compro um novo.

Pisquei, confusa. Só que não rebati. Tinha outros guarda-chuvas em


casa. Entreguei-lhe o meu. Hunt deu-o para a loira desconhecida. Ela pareceu

incrédula. Vi quando seus lábios se moveram e ele disse "Boa viagem de

volta para sua casa". Depois disso, ele jogou um dos braços sobre meus
ombros, deixando-me enrijecida de tensão e forçou-me em direção às
escadas, onde começamos a subir os degraus juntos.

Todo meu plano de evitá-lo para sempre tinha ido por água abaixo

outra vez. Precisava manter a distância, ainda mais depois do que aconteceu
entre a gente na sala do meu apartamento. Não sabia o que tinha passado na
minha cabeça naquele dia por aceitar jogar aquela porcaria de dados on-line
com ele. Depois quase deixei ele me enforcar e pior que isso foi que apreciei
a ideia na minha mente. Parecia que Hunt Finley me deixava burra e
completamente irracional.

Ele só se afastou de mim depois que chegamos em nosso andar. Cruzei


os braços sobre meu suéter. O frio tinha sido substituído por algumas ondas

estranhas de calor por conta da proximidade de Hunt nos últimos momentos.


Ele estava seco, ao contrário de mim. Analisando meu rosto com cuidado, ele
sorriu em minha direção. Era desconcertante que o sorriso dele fosse tão
bonito e branco. Talvez algum de seus pais fosse dentista.

— No que você está pensando? — Hunt sinalizou, fazendo meus


pensamentos evaporarem.
— Em seus pais serem dentistas. — Fui honesta.

Seu sorriso aumentou.

— Errou.

Ninguém disse mais nada. Talvez porque o que tinha acontecido entre
nós devia ter anulado todas as chances que tínhamos de sermos amigos — o

que já era meio improvável, já que claramente éramos opostos. Hunt tentou
conversar comigo nos últimos dias, só que fiz um bom trabalho em evitá-lo
no Facebook e até mesmo pessoalmente.

Me remexi, desconfortável.

Sinalizei que tinha que trocar de roupa, pois tinha me molhado muito lá
fora e ele pareceu compreender depois de me perscrutar de cima a baixo,
como se estivesse se dando conta do fato só naquele momento. Nos
despedimos, ainda com um clima meio estranho e entrei em meu

apartamento, aliviada.

Coloquei as roupas molhadas dentro da máquina de lavar. Depois, fui


até o banheiro e tomei um banho longo. Depois, coloquei um filme e ativei as
legendas. Dormi na metade dele. Acordei depois de algumas horas, a noite já
havia caído pelo horizonte.

Olhei para o relógio em meu pulso e ao me dar conta de que já eram


quase sete horas, dei um pulo e corri em direção ao meu armário. London e
eu tínhamos combinado de sair para jantarmos juntas naquela noite. Após

vestir uma calça jeans e uma das minhas blusas preferidas com mangas
longas, fui para o banheiro passar um pouco de maquiagem.

Quando cheguei no restaurante, London estava com uma expressão um


tanto sombria. Provavelmente era por conta dos meus trinta minutos de

atraso. O lugar era aberto, ficava no terraço de um prédio simples de três


andares. Estava frio ali em cima, me arrependi de não ter vestido um casaco
antes de sair. Cruzando os braços sobre o peito, comecei a andar em direção
minha amiga, tomando uma longa respiração para enfrentá-lo.

Jenn's, o restaurante, era nosso preferido da região ao redor do campus.


Gostávamos dali porque um dos atendentes sabia um pouco de ASL. Quando
puxei uma cadeira para me sentar, London finalmente pareceu me notar. Fiz o
sinal de "oi" com as mãos.

London arqueou as sobrancelhas escuras, erguendo o cardápio sobre o


rosto numa espécie de barreira entre nós duas.

Soltei um suspiro.

Demorou um tempo para que ela deixasse o drama de lado e me


cumprimentasse devidamente. Foi logo depois de pedirmos arroz e camarão
— um dos nossos pratos prediletos dali. London moveu os lábios cheios em

um "oi", os olhos um pouco suaves desta vez. Ela havia finalmente posto sua

guarda para baixo.

Conversamos sobre a faculdade. Sobre os pais implicantes de London e


até mesmo sobre o Natal que estava próximo. Ela ia fazer uma viagem para
as montanhas com amigos de infância e esquiar. Eu ainda não tinha feito

nenhum plano até agora. Não gostava de planejar muita coisa antes da hora,
ainda era setembro. Chegamos em um assunto proibido — pelo menos para
mim — que era meu vizinho mega gostoso (palavras de Landon, não
minhas).

— Hunt está bem, acho — comentei, através da língua de sinais,


mantendo o olhar baixo no prato de arroz fumegante que um dos garçons
tinha acabado de servir.

Os olhos de London pesavam tanto sobre mim que foi enlouquecedor


não poder me levantar e correr para longe dali e me esconder em algum lugar
seguro de suas perguntas curiosas. Não queria falar sobre Hunt, até porque
ele era o meu ponto frágil. Era constrangedor ter que admitir, mas o cara
sabia exatamente como me desarmar. Eu não era boa em fugir dele.

London atirou um guardanapo embolado sobre mim, o que me fez fitá-


la.
— Há algo que você não está dizendo.

Bebi um gole do copo de água disposto ao lado de meu prato, não


desviando as íris das de London sobre a borda. Merda, ela era tão boa em
captar tudo ao seu redor. Forçando o líquido para baixo em minha garganta
com uma lentidão angustiante, estimulei meu cérebro para que trabalhasse em
uma resposta que fugisse do assunto. Minha mente pareceu entrar em curto-

circuito.

Tudo que fiz foi erguer os ombros e levantar as palmas das mãos em
direção ao céu pateticamente. London pareceu esquecer que sua comida
estava esfriando e que estava com fome. Sua atenção desconcertante estava
inoportunamente centrada somente em mim, como se eu fosse uma atração
bizarra de circo e ela não pudesse perder nenhum segundo do show.

— Diga, Evelyn Rose Kyong.

Seu rosto inteiro era sério, as palavras sinalizadas de uma forma


mecânica e assustadora. Engoli em seco, enfiando uma colher de arroz na
boca para manter as mãos ocupadas.

Quando terminei de mastigar, respirei fundo e finalmente disse:

— A gente quase se beijou.

A reação inicial de London foi entreabrir os lábios. O choque em sua


expressão foi lentamente substituído por um sorriso imenso. Meu rosto estava
pegando fogo e me voltei para a comida na tentativa de evitá-lo. Comemos

em silêncio e depois pedimos a conta. No caminho para fora do restaurante,


London me encheu de perguntas do tipo "Ele cheira bem?" e "Ele tocou seus
peitos?" e a mais absurda, "O pau dele é grande?".

Hunt cheirava bem, só que eu não ia dizer isso a ela. Era estranho.

London tinha esquecido que eu disse que a gente quase tinha se beijado e não
tínhamos tido estrelado um filme pornô. Expliquei isso a ela, que pareceu
murchar um pouco. Nos despedimos e fomos embora porque já estava tarde e
ainda era só quinta-feira.

Quando cheguei em casa e estava no corredor procurando minhas


chaves em frente à minha porta, lancei o habitual olhar sobre o ombro em
direção ao fim do corredor e o apartamento de Hunt, como se pudesse ver
através dele. Balançando a cabeça negativamente, expulsando as imagens

dele jogado sobre o sofá e assistindo a tevê relaxando em um dia de semana


qualquer, entrei em minha sala.

Era bom que ficássemos assim. Distantes um do outro.


Era sábado de manhã, dia de coleta. O que significava que eu tinha que

levar o lixo até lá embaixo. Coloquei a cabeça para fora da porta, espiando o
corredor. Tudo silencioso como sempre era em meu mundo, só que também
estava vazio e parecia que não tinha nenhuma alma rondando por aí.

Desci as escadas e ao invés de seguir para o saguão, fui para a porta de


saída de emergência que dava para os fundos do prédio. Após jogar o saco
dentro da caçamba, subi o lance de degraus de volta para o meu apartamento.
O avistei antes que ele tivesse a oportunidade de me ver. Hunt estava
de costas para mim, entrando em seu apartamento. Prendi a respiração

involuntariamente e parei de me mover.

Recuei com os pés para trás, na intenção de sumir de seu campo de


vista. Só que ele se virou para fechar a porta e me pegou no flagra, o que fez
com que me sentisse culpada como se realmente estivesse fazendo algo de

errado.

Se ele fosse um vizinho como qualquer outro, teria acenado para mim e
fechado a porta em meu rosto. Só que estávamos falando sobre Hunt Finley,
o cara sexy que dispensava garotas de maneira rude e adorava a si mesmo
como se adorava a um deus.

Em outras palavras, um idiota arrogante.

Meu escrutínio em Hunt começou por seus pés. Como sempre, coturnos

gastos e com os cadarços estropiados e desamarrados. Jeans escuras e uma


camiseta preta sem estampa alguma, os braços expostos marcados pelas
diversas tatuagens. Ele parecia meio acabado, o rosto estava pálido e suas
sobrancelhas bagunçadas.

O cabelo despontava para todos os lados, não daquele jeito


estranhamente atraente, mas, sim, desleixado. Parecia que tinha levado um
choque. Também havia olheiras sob seus olhos.

Concluí que ele tinha virado a noite em algum lugar e chegado só


agora.

Hunt pareceu ficar feliz em me ver ali, parada em sua frente. Ele até
mesmo abriu um sorriso torto e charmoso, que me fez suspirar

involuntariamente. Acenei para ele e retribuí o sorriso — de uma forma


mecânica — e dei um passo em direção a minha porta.

Achei que daria certo até ver que ele estava falando comigo. Suas mãos
começaram a se mover e eu engoli um gemido em frustração, virando-me
novamente para encará-lo.

— É bom saber que você me trata como se eu tivesse uma doença


extremamente contagiosa. Do tipo que passa através de um único olhar. —
Hunt puxou um maço de cigarros do bolso e acendeu um em seus lábios,

mantendo contato visual comigo.

— Bom dia, Hunt. — Foi tudo o que sinalizei de volta.

Não dava para negar que eu estava evitando-o. Hunt já tinha percebido
há um tempinho, o que me deixava ainda mais confusa já que eu estava
claramente dispensando-o (o que parecia deixá-lo ainda mais motivado a vir
atrás de mim).
Troquei o peso de uma perna para outra, os calcanhares sendo retesados
confortavelmente em minhas pantufas. Só naquele momento me dei conta de

que estava de pijama e que era um daqueles que Hunt costumava me caçoar
por usar, para variar.

Ele tragou o cigarro e soltou a fumaça, o cheiro horroroso de tabaco


impregnando em meu nariz.

Suas íris desceram por meu tronco de uma maneira íntima e um tanto
desconcertante. Depois de terminar a sua análise, notei que estava tentando
conter um sorriso em sua boca.

Um dos cantos de seus lábios estava puxado quase que de maneira


imperceptível para cima. Foi difícil esconder a careta de desgosto enquanto
ele fumava bem na minha frente. Na verdade, acho que estava com cara de
poucos amigos no momento.

— Que foi? — Hunt indagou, provavelmente percebendo meu


descontentamento.

— Que foi o quê? — Me fiz de desentendida.

Ele ficou em silêncio, analisando minha expressão com cuidado.


Quando notou que eu não queria falar sobre aquilo, disse:

— Esse pijama é novo. — Sua cabeça tombou levemente para o lado,


os olhos fixos em minha camiseta. — São ovelhas?

— Gatos — corrigi, com o rosto sério.

— Gatos — ele frisou, acenando com a cabeça. Hunt passou a mão


pelos fios de cabelos sedosos, de forma que caíram de maneira despojada
sobre sua testa e visão e depois deu outra tragada no cigarro. — Evelyn, por

mais que eu adore a sua companhia e goste muito de falar com você, preciso
dormir. Teve um show da banda de última hora ontem à noite e acabou super
tarde. Depois teve essa festa... — Ele parou, esfregando um dos olhos com o
punho cerrado e deixando-o vermelho. — Essa festa que os caras me
obrigaram a ir. Preciso dormir, podemos continuar isso aqui depois?

O alívio que me inundou foi constrangedor.

— Claro. — Sinalizei da maneira mais indiferente que consegui. — Até


mais, Hunt.

— Até mais, Eve. Boa noite.

Nem fiz questão de dizer que era dia, ele devia estar ciente do fato.

No próximo momento, ele sumiu para dentro de seu apartamento. Fiz o


mesmo, batendo a porta atrás de mim.
Eram quase sete horas da noite quando Hunt Finley resolveu aparecer
em minha porta. Estava terminando de passar uma camada de esmalte preto
na unha do dedão quando o relógio no meu pulso começou a vibrar daquela

forma louca que indicava que era ele quem estava por trás da porta.

Puxei os ombros para trás endireitando a postura e inspirei


profundamente como quem se preparava para travar uma batalha e levantei
do sofá para girar a maçaneta.

Como o esperado, ele estava parado bem em minha frente, com o


sorriso branquinho exposto. Tentei não reparar muito no quão bonito ele
estava com uma camiseta branca e uma calça cinza de moletom. Parecia que
qualquer roupa o deixava espetacular.

— Eve. — Ele sinalizou, como condolências.

— Hunt. — Devolvi, ainda parada no centro da porta e sem reação.

Ele tombou a cabeça para o lado de um jeito que lembrava a um


cachorrinho.

— Não vai me convidar para entrar?


Os olhos dele brilhavam como se fosse manhã de Natal. Por mais que
eu estivesse tentada a fechar a porta em seu rosto, voltar para o sofá e

terminar de pintar as unhas do meu pé, dei passagem para ele.

Meu corpo foi para o lado instantaneamente, como se já estivesse


acostumado com sua presença ali.

Aquilo era ruim.

Hunt passou por mim e depois sentou na minha poltrona. Como


sempre, estava muito à vontade e parecendo estar em casa. Suspirando, girei
nos calcanhares e fechei a porta atrás de mim com a sola do pé.

Fiquei parada lá, incapaz de me mover enquanto observava-o ligar a


tevê e escolher um canal com o controle remoto. Cruzei os braços em frente
ao peito em um movimento mecânico.

Hunt moveu os olhos para mim e então começou a usar as mãos:

— Vai ficar parada aí?

— Você vai ficar sentado aí? — questionei-o, arqueando as


sobrancelhas.

— É, eu gosto daqui. — Ele olhou para a poltrona abaixo de si, arrastou


o dedo indicador pelo braço do móvel aveludado e depois voltou a me
encarar. — É confortável.

Um sorriso torto puxava um dos cantos de seus lábios.

Rolando os olhos, sentei-me no sofá, puxando os pés para fora do chão.


Peguei o tubinho de esmalte preto largado ao lado de uma das almofadas e
terminei de passá-lo nos dois últimos dedos que faltavam.

Quando terminei, ergui os olhos. Me assustei quando encontrei as íris


negras de Hunt fixas em mim. O rubor que se espalhou por meu rosto foi
inevitável. Como ele não disse nada, resolvi sinalizar:

— Estou com fome, acho que vou pedir comida.

Não sabia por que tinha dito aquilo a ele. Estava desesperada para
quebrar aquela tensão esquisita entre nós desde o dia do jogo on-line que
falaria qualquer coisa para que Hunt agisse de uma forma que me deixasse
menos nervosa.

Ele tirou aquele olhar sufocante e intenso do rosto e se ajeitou sobre a


poltrona, reclinando-se ainda mais contra o estofado.

— O que você gosta de comer? — perguntou-me.

— Bibimbap é meu prato favorito. Culinária coreana.

Hunt pareceu ficar mais interessado no assunto. Ele se curvou para


frente, apoiando os cotovelos em cima dos joelhos.

— Você nasceu na Coreia? É uma pergunta que sempre quis te fazer,


mas nunca tive a oportunidade.

— Sim. Na Coreia do Sul, em Seul.

— Sabe o que isso significa, Evelyn? — Seu rosto inteiro estava sério

agora, o que me deixou levemente desconcertada.

Puxei um dos cantos da bochecha entre os dentes.

— O quê?

— Que você na verdade tem vinte e dois anos. Não é assim que
funciona por lá?

Relaxei com a mudança de assunto e deixei com que um sorrisinho


tomasse conta de meu rosto. Hunt tinha meio que razão. Na Coreia, a idade é

contada de uma maneira diferente. Já temos um ano quando nascemos e


completamos outro ano no Réveillon, independente da nossa data de
aniversário.

— Sim. Só que me adaptei aos Estados Unidos. Não morei por muito
tempo na Coreia, vim para cá quando tinha seis anos.

Ele parecia querer me perguntar algo, dava para ver na expressão dele.
Só que preferiu não dizer nada. Hunt apenas assentiu e depois passou dois
dedos embaixo do maxilar e voltou a sinalizar:

— Eu fiz a tatuagem em coreano porque sempre me interessei pela


cultura do seu país. Tem um restaurante que fica a algumas quadras daqui
que só cozinha pratos de lá. É um dos meus preferidos, inclusive.

O fascínio de Hunt pela Coreia me deixou estranhamente atraída por


ele. Geralmente as pessoas daqui não sabiam dizer se meu país ficava na
América do Sul ou na Ásia.

— Sério? E o que você gosta de comer?

— Bulgogi.

Bulgogi era um prato indispensável em churrascos, pelo menos na


minha casa. Meu pai sempre fazia para nós aos domingos. Consistia em uma
carne bovina saborosa marinada em temperos.

— Também gosto.

— Quer pedir comida coreana? — Hunt atirou.

— É uma sugestão boa — tive que admitir.

Acho que fazia algumas semanas que eu não comia nada que tivesse
sido originado na Coreia. Hunt ligou para um restaurante e começou a falar.
Enquanto eu observava seus lábios se moverem, me questionei como seria o
som da sua voz. Nunca tinha pensado naquilo até agora. Devia ser bem bonita

já que ele era vocalista de banda.

Enterrei os pensamentos no fundo de minha mente quando Hunt


pareceu encerrar a chamada e se virou para mim.

— Quer jogar?

Me empertiguei, endireitando a coluna. A última vez que jogamos algo


não tinha saído nada como eu planejava. Arqueei uma das sobrancelhas e
movi as mãos para respondê-lo.

— Que tipo de jogo?

Provavelmente notando a desconfiança em meu rosto, Hunt riu.

— Relaxa, margarida. É só um jogo que encontrei aleatoriamente na

internet e fiquei fissurado, é multiplayer.

— Margarida? — questionei, desconfiada.

— É. Minha flor preferida. Combina com você. — Pausa. — Espera aí,


pega o seu computador. Vou buscar o meu.

Hunt levantou e saiu pela minha porta, deixando-a aberta e permitindo-


me observar enquanto ele andava pelo corredor até chegar em seu
apartamento. Dei um salto do sofá e fiz uma corridinha até meu quarto.

Depois de pegar meu notebook na escrivaninha, voltei para sala ao


mesmo tempo em que Hunt atravessou minha porta novamente, fechando-a
atrás de si.

Ele desabou na poltrona e me sentei no sofá, posicionando o laptop em

meu colo. Hunt já tinha aberto a tampa do seu.

Ele piscou em minha direção e sinalizou "Facebook" antes de voltar


para o próprio monitor.

Abri a rede social e fiz login. O chat com ele já estava piscando,
indicando que tinha mensagem nova.

Hunt: oi, Eve

Hunt: esqueci de falar, eu gostei do seu pijama

Hunt: é diferente do que você estava usando hoje de manhã

Hunt: castores?

Eu: lontras

Hunt: lontras

Hunt: legal
Hunt: mandando o link para vc em 5...

Hunt: 4...

Rolei os olhos.

Eu: para com isso

Hunt: 3...

Eu: é sério?????

Hunt: 2...

Eu: eu vou te bloquear

Hunt: 1

O link finalmente apareceu na minha tela. Cliquei nele, sendo


redirecionada para um site de poker on-line. O jogo iniciou e demorei um

pouco para pegar o jeito. Depois de perdemos várias vezes, comecei a vencer
junto com ele.

Fizemos uma pausa quando Hunt levantou para pegar a comida que
chegou. Ele colocou as sacolas sobre a mesinha central e se ajoelhou no
tapete ao lado dela.

— Paramos quando eu comecei a ficar boa. — Sinalizei, meio


contrariada.

Hunt sorriu.

— Depois a gente continua, agora vamos comer porque tô com muita


fome.

Levantei-me e fui até a cozinha para pegar copos, pratos e duas garrafas

de cervejas geladas. Quando voltei, me sentei no tapete, imitando Hunt e


ficando de frente para ele. Usamos a mesinha da sala como uma mesa de
jantar. Ele havia pedido meu prato predileto e Bulgogi.

Comemos tudo em silêncio. Quando não aguentava ingerir mais nada,


Hunt continuou até que não houvesse sobras. Dei dois goles na minha long
neck pela metade e depois passei o dorso da mão pela boca, tirando a
umidade.

Meu olhar se conectou ao de Hunt, e ele arqueou as sobrancelhas em

minha direção.

— Ainda quer jogar? — Sinalizou.

— Claro — concordei, como se fosse óbvio.


Constatei três coisas assim que abri as pálpebras. Primeiro; eu não

estava em minha casa. O segundo ponto era que tinha algo pressionado contra
meu peitoral e terceiro; que meu corpo todo doía como se eu tivesse sido
atropelado por três carros.

Pisquei várias vezes, tentando ajustar meus olhos aos raios de luz que
atravessavam o cômodo, iluminando-o. Ao notar o braço enrolado ao redor
de minha cintura, fiquei estático. Movi a cabeça para fazer uma análise ao
redor e algo fez cócegas embaixo de meu queixo. Dei-me conta de que era o
topo da cabeça de Evelyn e que eram seus fios de cabelo esbarrando em
mim.

A minha mente processou a noite anterior de maneira lenta. Nós


jogamos o jogo que eu havia apresentado a ela até que todas as fases tivessem
acabado. Ela tentou me dispensar em seguida porque já eram duas da manhã,
mas a convenci de assistir um filme. Em algum ponto devíamos ter

adormecido e agora éramos um emaranhado de braços e pernas em seu sofá.

Seu peito subia e descia em um ritmo lento e calmo, ela parecia estar
em um sono tão profundo que não fui capaz de acordá-la. Então fiquei
enjaulado por Evelyn, deixando com que ela me usasse como um travesseiro
fajuto.

Sabia que ela ficaria horrorizada quando acordasse, mas não me mexi.
Ela não demorou tanto para despertar, foram cerca de dez ou quinze minutos

depois. Eve se moveu, o braço dela foi puxado para trás e logo depois sua
mão mergulhou sob minha camiseta e eu segurei uma risadinha. Seus dedos
macios deslizaram sobre meu abdômen inconscientemente e a diversão sumiu
de meu corpo e enrijeci lentamente porque ela estava perto de áreas
proibidas.

Estava pronto para tirar sua mão de lá quando ela se remexeu contra
mim e ergueu o rosto em direção ao meu. Suas pálpebras estavam baixas,
mas ela me fitou nos olhos e piscou algumas vezes, finalmente despertando.
Seu rosto foi de super relaxado para super horrorizado em uma fração de

segundos.

Um sorriso torto de "bom dia" deslizou por meus lábios. Uma mecha de
cabelo caiu sobre minha visão no mesmo segundo, mas não me preocupei em
afastá-la.

Os olhos escuros de Eve se arregalaram um pouco e ela se


desvencilhou de mim rápido demais, de forma que seu tornozelo enganchou
na minha perna e ela caiu no assoalho de madeira. Foi difícil conter o riso
que ameaçou escapar de minha boca.

Eve me lançou um olhar feio, notando a diversão em meu rosto e


fechou a cara. Parecia que ficava bem irritada pela manhã, ou era só por
minha causa. Ela se levantou um segundo depois e sinalizou:

— Como isso aconteceu?

Ela não precisava dizer mais que isso para que eu soubesse que estava
dizendo sobre nós termos acabado dormindo juntos.

Ergui as palmas das mãos para cima e pisquei inocentemente para ela.

Evelyn tirou uma mecha de cabelo que caía sobre seu rosto
furiosamente e andou até a porta, seus pés descalços esmagando o assoalho
abaixo dos calcanhares. Ela abriu a porta em um convite silencioso para que
me retirasse.

Levantei-me e levei longos momentos para me espreguiçar enquanto


seu olhar queimava sobre mim. Evelyn parecia realmente irritada e
descontente, o que me fazia questionar se tinha cruzado alguma linha
proibida tentando ser seu amigo de maneira insistente.

Quando atravessei a porta, ela não hesitou antes de fechá-la com um


pouco de força sem ao menos me dar tchau.

— Você está emburrado — Ellen disse para mim através da língua de

sinais.

Nós estávamos na biblioteca na casa dos meus tios de segundo grau —


pais de Ellen — enquanto a ajudava a revisar alguns conteúdos da faculdade.
Minha prima fazia Química e em breve iria tentar um estágio em um
laboratório, então estava se dedicando duas vezes mais aos estudos e eu era
bom em tudo que envolvia números, então a auxiliava.
Afundei ainda mais na poltrona, deixando com que minhas costas
repousassem contra o estofado.

— Não estou. — Movi as mãos.

Tudo o que eu não precisava no momento era desabafar com minha


prima que era como uma irmã mais nova para mim e admitir que estava

incomodado porque minha vizinha tinha me expulsado de seu apartamento


após eu achar que nós finalmente tínhamos avançado de estranhos para um
estágio de quase amigos.

— Não acredito em você — ela disse.

Dei de ombros.

Ellen não falou mais nada e depois de alguns momentos nós voltamos a
estudar o que ela precisava. Sua mãe trouxe alguns brownies e fizemos uma
pausa.

Ellen era uma réplica da tia Courtney, as duas eram mulheres quietas,
inteligentes e gentis. A aparência também era idêntica. Elas tinham os
cabelos castanhos longos e espessos, olhos avelãs grandes demais, maçãs
saltadas e pele branca como a lua.

— Está gostando de Massachusetts, querido? — Tia Courtney disse em


voz alta ao mesmo tempo em que sinalizava, atraindo minha atenção.
— Estou. A Harvard é ótima — murmurei, usando a língua de sinais
junto.

Quando Ellen estava por perto sempre fazíamos isso. Dizíamos tudo o
que falávamos a ela, usando os sinais. Não gostávamos da possibilidade de
ela se sentir excluída.

Minha tia abriu um pequeno sorriso gentil. Apesar de estar na casa dos
quarenta e ter algumas rugas no rosto, ela era uma mulher muito bela.

— Ellen disse que o programa da Goldring também é incrível.

— Aposto que sim — concordei com ela.

— Bom, vou sair para que vocês consigam estudar melhor. — Ela
acenou com a mão em uma despedida e se foi, fechando a porta atrás de si.

Soltei um suspiro e coloquei as mãos atrás do meu pescoço,

entrelaçando-as e fitando o teto. Ellen estava terminando de escrever seu


artigo e notei quando o som da caneta se movendo sobre a folha parou,
atraindo minha atenção para minha prima novamente.

Quando a peguei me observando, franzi as sobrancelhas.

Ela largou a caneta e rolou os olhos.

— É sua nova vizinha? — ela questionou, movendo as mãos.


O vinco em minha testa se aprofundou.

— Quem te disse isso?

Nunca tinha contado nada para Ellen e ela não tinha como saber de
Evelyn e de nossa situação embaraçosa. Enquanto tentava ter alguma relação
com ela, ela me empurrava para longe como se eu fosse uma bomba atômica

prestes a explodir e destroçá-la.

— Ian me contou. — Ela deu de ombros.

O desgraçado do Ian, praguejei mentalmente. Ele e minha prima tinham


ficado surpreendentemente próximos nos últimos tempos.

O idiota achava que me enganava. Os olhares que ele lançava para


Ellen sempre que ela estava junto comigo eram um pouco óbvios, só que ela
não parecia perceber. Ou se percebia, era boa em fingir que não. Já avisei
para ele ficar bem longe dela. Não iria hesitar antes de socar o rosto de

qualquer um que partisse o seu coração, mesmo que seja meu amigo.

— E o que acontece entre você e Ian? — acusei defensivamente,


tentando desviar o foco de mim.

Ellen desviou o olhar para longe e um rosa pálido tomou conta de suas
bochechas e isso denunciava tudo. Ela estava envergonhada, o que indicava
que tinha algo rolando entre eles dois ou iria rolar em breve.
Quando seus olhos se conectaram aos meus novamente, ela sinalizou:

— Não estamos falando sobre mim. Ian e eu somos só amigos. A


Evelyn está ignorando você, não está? Isso fere seu ego. — Ellen me leu
naquele momento como se fosse uma psicóloga.

Se ignorar fosse tudo o que ela fizesse, ironizei mentalmente. Além de

me ignorar, Evelyn deixava claro que não queria que eu me aproximasse,


também me expulsava de sua casa além de bater à porta em meu rosto
enquanto fazia isso. Era um combo perfeito de rejeição e eu nunca admitiria
em voz alta que aquilo fazia com que me sentisse patético além de aumentar a
sensação de desafio.

— Não é isso que está acontecendo — menti. — Agora termina esse


artigo e sem papo furado.

Desviei o olhar para longe e foquei em algum ponto entre uma estante

ou outra, analisando as fileiras de livros que pareciam ser infinitas. Depois


que Ellen finalizou o artigo, revisei-o para ela e fui embora após me despedir
dos meus tios.

Quando cheguei em casa já era noite. Ian e Atticus chegaram após eu


ter tomado banho. Eles iriam mostrar algumas letras que tinham composto
para mim. Nós três escrevíamos para a banda, só que tinha que ter aprovação
de todos para que transformássemos em música e tocássemos para o público.

Atticus jogou o caderno preto em minha direção e o apanhei no ar antes


que batesse no meu rosto. Ian estava usando meu banheiro e me ajeitei no
sofá, ficando confortável para ler tudo que eles escreveram.

A primeira letra era fraca e só falava sobre bebidas e mulheres. Por

mais que o tipo de música fizesse sucesso, eu não apreciava, precisava ser
mais que farra. A segunda estava na cara que era de Ian, porque tinha o lance
de misturar poesia com trocadilhos e era boa. Com um lápis, fiz alguns
ajustes em algumas frases e substituí uma palavra por outra e dei para Atticus
ler em seguida.

— Isso está bom para caralho — ele disse, as sobrancelhas arqueadas.

— Acho que dá para compor uma música com a letra — concordei.

Ian voltou do banheiro e se jogou ao meu lado no sofá. Ele esticou os

pés, cruzando os coturnos e lançou-me um olhar presunçoso em seguida.

— Minha letra ficou incrível, não ficou?

— Às vezes você se sai bem — falei, recusando-me a admitir que ele


era o melhor dentre nós três neste quesito.

A maioria de nossas canções tinham sido compostas por ele, inclusive


as faixas mais famosas.

— Dá para começar a compor a música — Ian disse, ignorando-me. —


Eu estava pensando em algo do tipo... — Ele se levantou e pegou o baixo
apoiado contra a parede e dedilhou alguns acordes. O som era arrastado e
depois ficava rápido, então lento novamente e depois assumia um ritmo
descontrolado e frenético.

— Você está inspirado hoje — murmurei. A breve passagem tinha sido


incrível e poderíamos adicionar a letra a ela.

Atticus murmurou algo em concordância, os olhos fixos no celular. Ele


ergueu a cabeça para nós um momento depois e disse que tinha que ir embora
por conta de uma emergência. Eu e Ian trocamos um olhar rápido antes de
observarmos nosso terceiro integrante da banda nos deixar sem ao menos se
despedir direito.

— Ele está estranho, não está? — Ian disse, quebrando o silêncio após
minha porta ter batido.

Acenei com a cabeça.

— O que será que está acontecendo com ele? — questionou-me,


parecendo pensativo.

— Está saindo com alguém — apontei, como se fosse óbvio.


Ian pareceu pensar por alguns momentos e ligar os pontos
mentalmente. Quando ele terminou o quebra-cabeça, murmurou um palavrão

e varreu os cabelos para trás com uma das mãos.

— Puta merda, é verdade. Agora faz sentido. Ele some a maioria das
vezes depois dos shows e sempre está com a cara enfiada no celular, também
não parece mais tão empenhado nos ensaios. Está aéreo, com a cabeça

sempre em outro lugar.

— Em alguém — corrigi-o. — Ele está sempre com a cabeça em


alguém.

— Em alguém — ele concordou, em um murmúrio.

— E você? — falei, fazendo-o girar o pescoço em minha direção em


uma velocidade que quase o deslocou. — Está com a cabeça em alguém
também? — Fiz uma pausa quando seu rosto ficou pálido.

Ian limpou a garganta.

— Você sabe que não faço o tipo romance — ele disse, tentando
desviar o foco.

Ian Sweddish era o maior cafajeste da história. Ele deixava sempre um


bando de fãs malucas atrás de si nos shows, até mesmo mais do que eu. Ele
tinha os olhos azuis cobalto meio acinzentados e seu cabelo no momento
estava cortado dos lados e cheio no topo, as mechas castanhas e lisas
despontadas para todos os lados. A parte da frente de seu pescoço era coberta

por uma rosa negra, que atraía ainda mais atenção. Assim como eu, ele era
cheio de tatuagens.

— Eu sei que você está conversando com a Ellen. — Resolvi abrir o


jogo.

Podia jurar que ele corou e eu nunca o tinha visto corar antes.

— A gente só se fala por mensagem, cara. Não tem nada a ver.

O ignorei, fazendo minha expressão mais séria e mortal.

— Você sabe que Ellen é como uma irmã para mim e eu ficaria furioso
com qualquer idiota que tentasse brincar com seus sentimentos... — O rosto
de Ian ficou sério também, seus olhos azuis virando duas pedras de gelo. —
Então mantenha sua cabeça longe dela. — Fiz uma pausa, o silêncio

ensurdecedor pairando entre nós. — As duas — acrescentei secamente.

Ian não disse nada, mas tinha entendido o recado. Ele murmurou sobre
precisar ir embora também e concordei. Quando ele saiu pela porta e o
silêncio reinou novamente em meu apartamento, pensei em Evelyn e forcei a
manter minha mente longe dela.

Me permiti afastá-la por aquela noite.


Somente por aquela noite.
As crianças pararam de pintar seus desenhos e deixaram as caixas de

giz de cera de lado, levantando-se apressadamente do chão forrado com


placas de tatame infantil. Observei-as fascinada enquanto a Sra. Emma as
esperava na porta, com um sorriso pequeno nos lábios. Elas formaram uma
fila indiana organizada e Emma lançou-me uma piscadela confidente antes de
levá-las para o refeitório.

Comecei a juntar a bagunça no chão. Quando terminei, nem percebi


que a Sra. Emma estava na porta, observando-me. Levantei-me com pressa,
me desequilibrando um pouco nos saltos de oito centímetros; ainda estava me
ajustando a eles. Limpei a poeira das mãos na saia lápis que estava usando e

ajeitei a camiseta de linho branco. Era meu primeiro dia no estágio do colégio
infantil de crianças com deficiência auditiva de Massachusetts e eu tinha me
esforçado para parecer formal.

— Você está sendo ótima — Sra. Emma disse para mim, através da

língua de sinais. — Eles adoraram você.

Uma lufada de ar que eu nem sabia que estava prendendo nos pulmões
escapou por meus lábios e permiti que um sorriso tomasse conta deles.
Apenas dei um aceno com a cabeça em reconhecimento, esperando que ela
notasse a gratidão transbordando através de meus olhos. O sorriso polido
continuou em seu rosto quando ela moveu as mãos e disse que eu poderia
fazer uma pausa enquanto as crianças comiam. Então ela se virou e sumiu do
meu campo de visão, tirando seu tempo também.

Emma era uma mulher de trinta e cinco anos que podia escutar
perfeitamente bem. Nós duas compartilhávamos o mesmo amor por crianças.
Ela já tinha se formado há um tempo e era professora há anos. Dei sorte em
conseguir uma vaga em sua turma. Fiz a entrevista meses atrás e depois de
todo este tempo, achei que tinha sido rejeitada, então quando recebi um e-
mail hoje pela manhã perguntando quando eu poderia começar, não hesitei
antes de responder com um "agora mesmo".

Por mais que eu tivesse ficado feliz e até mesmo dançado sozinha ao
redor de meu apartamento, não pude evitar ficar nervosa. O horário era bem
flexível e se ajustava com a minha rotina, de forma que agora eu ia para a
faculdade pela manhã e passaria a tarde com as crianças. Sobraria menos
tempo para estudar, mas daria um jeito.

Minhas palmas suaram durante o trajeto todo para cá e meu estômago


queria colocar tudo o que eu tinha almoçado para fora, só que a Sra. Emma
foi uma fofa. Tentei chamá-la pelo sobrenome inicialmente, por questão de
respeito e educação. Só que ela havia insistido para que a chamasse de
Emma. Eu mantive o "Sra." na frente, de qualquer forma, por conta de
afinidade.

Ela me apresentou para sua turma. Não era tão cheia, quinze crianças

entre seis e sete anos. Elas não sabiam muito sobre a língua de sinais e
falavam na maior parte do tempo, porque nenhuma delas tinha cem por cento
de perda de audição. Teria que ler lábios por aqui, então fiz uma nota mental
para aumentar a minha grade de horários na Goldring e ir até as classes de
leitura labial ao menos três vezes por semana — atualmente só tinha uma
aula a cada sete dias.

Sentei-me em minha cadeira ao lado da mesa da Sra. Emma e peguei


meu celular para checar as notificações. Havia algumas mensagens de
London perguntando-me se eu iria até seu apartamento naquela noite e outras

no Facebook. Mordi meu lábio inferior, pairando meu dedo sobre o ícone
azul.

Me sentia levemente culpada por ignorar Hunt. Sabia que minha reação
ao expulsá-lo tinha sido levemente exagerada porque termos adormecido

juntos tinha sido algo inesperado. Só que eu não conseguia ir muito longe,
toda vez que o sentimento aparecia, me lembrava das garotas com quem ele
dormia e expulsava para fora sem ressentimento algum. Era babaca de sua
parte e me perguntava como ele reagiria se uma delas fosse sua irmã e algum
cara as tratasse daquela forma. Ele parecia do tipo superprotetor, com certeza
não gostaria.

Soltando um suspiro, abri o Instagram. Não postava muita coisa então


não fiquei surpresa quando vi a rede social parada e sem muitas notificações.

Abri-as para checar e vi que Hunt tinha me seguido há seis horas. Jesus
Cristo, o cara estava em absolutamente todos os lugares.

Bloqueei a tela do meu celular, afastando todos os pensamentos para


longe. Depois de dez ou quinze minutos, as crianças começaram a preencher
a sala novamente. Me lembrava brevemente de seus nomes, ainda precisava
gravá-los. Molly, uma garota adorável, tinha acabado de entrar na sala, meio
cabisbaixa. Eu prestei mais atenção nela desde o início e meio que tinha a
escolhido em minha mente, por isso gravei seu nome. Não me senti culpada

por ter uma criança favorita aqui dentro no meu primeiro dia e ignorei que
aquilo provavelmente me tornava uma péssima educadora. É que ela tinha
aqueles enormes olhos castanhos espirituosos e era superinteligente.

Levantei-me de meu assento e andei até ela quando se sentou em uma

das mesas coloridas, afastada do restante das crianças. Agachei-me até que
nossos olhares estivessem nivelados e percebi o ar tristonho em seu
semblante. Ela usava aparelhos auditivos em suas duas orelhas.

— Ei. — Sinalizei. — Está tudo bem?

Seu rosto ficou corado e ela desviou o olhar para longe.

Era difícil comunicar-me com alguém quando a pessoa não estava


olhando diretamente para mim. Eu precisava de atenção para os movimentos

de minhas mãos. Engoli a frustração de sempre de não conseguir me


comunicar com a mesma facilidade que todos os outros tinham e toquei em
seu ombro de maneira sutil.

Molly voltou a me fitar, os enormes olhos castanhos receosos.

— Por que você está triste? — questionei, aproveitando a deixa.

A garota hesitou antes de levantar as mãos e sinalizar:


— Eu... — Ela parou abruptamente.

Molly baixou o olhar novamente e eu suspirei, levantando-me. Ela não


parecia querer ser incomodada naquele momento então decidi dar espaço a
ela, por ora. Não conquistaria sua confiança forçando-a a me contar o que
estava errado. Obviamente eu queria ser uma excelente educadora que não
deixava nada passar, mas acima de tudo, queria que meus alunos pudessem

confiar em mim.

Subir as escadas do prédio já retinha um enorme esforço em dias


normais. Só que hoje, em especial, com aqueles saltos, foi torturante. Quando

cheguei em meu andar, parei por alguns momentos para respirar. Após abrir a
porta, girei para fechá-la e estanquei ao erguer os olhos para o outro lado do
corredor.

Hunt estava saindo. A princípio parecia distraído, só que então seu


olhar me encontrou e ele paralisou. Fui capaz de ler seus lábios quando ele
soltou um "porra", as íris se arrastando lentamente por meu tronco. Captei o
movimento de sua garganta quando ele engoliu em seco. De repente, o ar
entre nós parecia ter ficado abafado e o corredor minúsculo.

Apertei a minha pasta contra o peito, querendo sair correndo dali. Não
gostava de chamar atenção usando saltos. Eu ficava com mais de um metro e
oitenta de altura e era inevitável não atrair os olhares para mim. Hunt se
aproximou cautelosamente, como se fosse um leão prestes a degolar sua
presa. Tentei não parecer a ovelha indefesa e endireitei a postura, não me

retorcendo de vergonha.

Hunt estava de preto da cabeça aos pés, os braços tatuados expostos na


camiseta básica. Quando parou em minha frente, finalmente lembrei-me do
quão alto ele realmente era. Eu não superava sua altura nem mesmo nos
saltos, o que me deixou pouco menos hesitante. Ainda assim, estávamos meio
que nivelados. Se ele se aproximasse mais, poderia me beijar com facilidade.

— Linda — ele deixou escapar por seus lábios, fazendo-me atrair o

olhar para sua boca magnifica.

Foi difícil forçar meu olhar para cima novamente e travar nossos orbes.
Hunt se aproximou mais alguns centímetros e meu coração trovejou dentro
do meu peito. Todos os alarmes dispararam em minha mente porque eu sabia
o que ele estava prestes a fazer. Assim que sua boca se chocasse contra a
minha, tudo se complicaria.
Forcei minhas pernas trêmulas a darem passos para trás, pisando em
falso. Me desiquilibrei por uma fração de segundos antes que Hunt

envolvesse os dedos ao redor do meu cotovelo, mantendo-me de pé. Sua pele


contra a minha, mesmo em um lugar seguro, me fez querer entrar em
combustão.

Entendendo meu olhar de aviso, ele tirou a mão de mim e então

sinalizou, ainda mantendo-se terrivelmente perto:

— Vou estragar nossa quase amizade se te beijar agora, não é? —


questionou-me, os olhos alternando entre os meus e minha boca.

Assenti, forçando-me a lembrar que tinha que respirar. Inspirei e


expirei. Inspirei e expirei. Meu pulso ainda estava disparado.

— Por que está vestida assim? — ele continuou, tentando fazer a tensão
entre nós sumir.

Aquele olhar selvagem ainda continuava em seu rosto. Ele enfiou as


mãos nos bolsos, provavelmente percebendo que era melhor para nós dois
guardá-las. Jesus, por que permiti que chegássemos a este ponto? Não era
para termos jogado juntos, nem jantado em meu apartamento e muito menos
para eu ter adormecido em seu peito e achá-lo um ótimo travesseiro.

— Ensinar — foi tudo o que eu disse, movendo as mãos.


Hunt e eu nem parecemos perceber que não fazia sentido. Eu estava
desconcertada e parecia que tinha esquecido como usar a língua de sinais. Ele

assentiu, como se de alguma forma tivesse compreendido, só que dava para


ver em seu rosto que seu pensamento estava em outro lugar, assim como o
meu.

Ele esfregou o pescoço com uma das mãos distraidamente, então

sinalizou:

— Bom, preciso sair agora. Tenho que ensaiar. Eu e os caras vamos


nos apresentar em uma boate nesta noite. Fica há alguns minutos daqui. —
Ele fez uma pausa, os olhos travados nos meus. Parecia prestes a me
convidar, mas então... recuou. — Até mais, Eve. E continue... a ensinar. —
Um quê de diversão e confusão atravessou seu rosto e seu olhar fez aquele
escrutínio em mim novamente. — Ensinar te faz bem.

Eu assenti, desesperada para que ele fosse embora logo ou me jogaria


sobre ele. Hunt sinalizou um "tchau" e logo em seguida foi embora, fechando
a porta atrás de si. Soltei o ar que nem sabia que estava prendendo em meus
pulmões e passei o dorso da mão pela testa.

Quase.
Outra semana se passou sem que Evelyn falasse comigo. Sabia que

tinha algo de errado, mas não tinha como abordá-la visto que a garota me
evitava como o Diabo fugia da cruz. Toda vez que parecíamos avançar um ou
dois passos, ela me empurrava para longe e acrescentava mais três
continentes de distância entre nós.

Nunca me senti tão frustrado antes por ser ignorado por uma garota. Na
verdade, isso meio que nunca tinha acontecido.
Obviamente já conheci garotas difíceis antes de Evelyn, só que ela
parecia estar em um patamar inalcançável, o que me deixava ainda mais

esmorecido. O jogo não era de conquista, mas sim uma prova de resistência.
Evelyn me empurrava e eu continuava em seu pé. Ela recuava e eu avançava.
Não era cansativo, por enquanto, mas me dava nos nervos.

Porra, nunca quis tanto alguém quanto a queria.

Esfreguei meus cabelos entre as mãos, espreguiçando-me na cadeira. O


professor continuava falando sem parar na frente da sala e abaixei o olhar
para o meu caderno, observando o esquema desconexos de pensamento na
folha. Uns estavam riscados, porque estava tentando compor uma letra e as
frases não encaixavam. Era para eu estar fazendo anotações sobre a aula, na
teoria.

Quando a aula acabou, reuni as coisas de cima da mesa e fui para o

pátio, a céu aberto. Como o usual, tinha gente por todo canto e o burburinho
de conversa estava presente no ar. A chama pálida do isqueiro falhou
algumas vezes antes que eu conseguisse acender o cigarro em meus lábios.
Uma rajada de vento gélido me atingiu e olhei para cima, observando a
amplidão azul sobrecarregada de nuvens cinzentas. Aparentemente iria
chover mais tarde. O clima estava maluco em Massachusetts ultimamente.

Arrastei as solas dos meus coturnos até minha moto no estacionamento.


Depois que montei na Harley e joguei a guimba do cigarro em uma lixeira,
fui para o prédio em que eu morava. Quando atravessei o saguão, o mundo

começou a desabar lá fora. Lancei um olhar sobre o ombro, antes de subir as


escadas, cumprimentando o porteiro. Sr. Carson ficava atrás do balcão sob
uma penumbra. Nunca dava para perceber quando ele realmente estava ali.

Conforme me aproximava do meu andar, mais a música se infiltrava

em meus ouvidos. Teve uma hora que até parei, para me certificar de que não
estava ficando maluco e ouvindo coisas. A próxima sequência de notas foi
lenta e um pouco agonizante. Meu coração trovejou no peito e comecei a
pular os degraus de dois em dois. Quando cheguei no corredor, lancei um
olhar para a porta fechada de Evelyn.

A música flutuava pelo corredor, o som harmonioso vindo de trás da


madeira. A melodia estava quase sendo soterrada pelo som da chuva. O
humor do dia combinava perfeitamente com o piano. O som era familiar e

levei alguns momentos para que me lembrasse de onde o reconhecia. Estalei


os dedos, sacando em minha mente. The Piano Duet daquela animação mega
famosa do Tim Burton. Só que faltava uma parte. Eve tocava a versão solo.

Me sentei no corredor, em frente sua porta. Não sabia de onde tinha


surgido o piano, mas fiquei lá, escutando-a secretamente enquanto ela parecia
querer ser ouvida, de alguma forma. Sentia que aquele era seu jeito de dizer,
sem realmente poder dizer. E ela definitivamente estava triste.

Evelyn começou uma nova música, depois outra e mais uma. Escutei-a
em todas. Não sabia quanto tempo havia se passado, mas meu tronco já
estava doendo por estar sentado ali no chão duro com as costas escoradas na
parede. Quando a última música acabou, me levantei e toquei a campainha
uma única vez e esperei.

Levou alguns momentos até que a porta finalmente fosse aberta. Eve
estava como imaginei que encontraria. O cabelo comprido bagunçado e seus
olhos meio vermelhos. Ela vestia um blusão com uma frase em coreano e
meias que iam até a metade dos seu joelho. A ponta do nariz delicado estava
vermelha.

Ela fez menção de fechar a porta, mas a espalmei, mantendo-a aberta.


Evelyn baixou o olhar para os próprios pés em seguida, como se estivesse

envergonhada por ter me mostrado esta parte vulnerável de si mesma. Ergui


seu queixo com a ponta dos dedos da mão livre e tirei a mecha de cabelo que
havia caído sobre sua visão, enrolando-a atrás de sua orelha.

Seus olhos hesitantes conectaram aos meus e seus lábios tremeram


quando uma lufada de ar os deixou. Eve deu um passo para trás e aquela foi
sua maneira de dizer que estava tudo bem e que eu podia entrar. Fechei a
porta atrás de mim e observei sua sala. O canto que antes era vago atrás do
sofá agora era ocupado por um piano de madeira, bem em frente as janelas e
as longas cortinas.

Evelyn sentou atrás do banco alongado e começou a tocar novamente.


Fui para o sofá, entendendo a deixa. Ela não queria conversar agora, mas
queria tocar. Então ouvi o quanto ela permitiu que eu ouvisse até que
deixasse suas mãos deslizarem para fora das teclas e que o apartamento

ficasse silencioso, exceto pelo som da chuva caindo lá fora.

— Eve — sinalizei ao mesmo tempo em que verbalizei, quando ela se


levantou e nossos olhares se encontraram. — O que aconteceu?

Ela levou algum tempo para sinalizar de volta.

— Hoje faz mais um ano desde que minha mãe morreu.

Soltei um suspiro e me aproximei alguns passos, com cautela. Não


queria assustá-la. Antes que eu pudesse chegar até ela, Evelyn se lançou

contra meu peito. O impacto fez com que eu cambaleasse um pouco para trás.
Surpreso com o contato inesperado, levei alguns segundos para envolvê-la
com os braços.

Seu tronco começou a tremer, produzindo pequenos espasmos, o que


indicava que ela estava chorando. Quando ela se recompôs, se afastou.

—Desculpa — ela disse, através da língua de sinais.


Estávamos sentados lado a lado no sofá agora.

— Por quê?

— Molhei sua camiseta.

Ergui uma sobrancelha.

— Não é importante.

Paramos de sinalizar e Eve deixou com que seu ombro encostasse no


meu. Era estranho tê-la perto. Parecia que ela tinha posto todos os muros ao
seu redor abaixo e me deixado aproximar. Quando Evelyn começou a tremer
de frio, tirei minha jaqueta e a coloquei sobre seus ombros. Em algum
momento ela havia adormecido, o corpo apoiado contra o meu.

Ela adormeceu por cerca de dez minutos. Um raio cruzou o céu lá fora,
trovejando em seguida e ela continuou no sono profundo. Eve despertou

alguns momentos depois e pediu desculpas por me ter feito de travesseiro


novamente, enquanto um rubor rosa perolado cobria suas bochechas.

— Não precisa se desculpar. Não é sua culpa que eu sou um travesseiro


bem aconchegante.

Eve semicerrou os olhos em minha direção e notei o lampejo de


diversão que atravessou seu rosto. Percebi que algo estava diferente entre nós
dois. Ela estava diferente. E confirmei isso tudo quando Evelyn foi até a

cozinha e pediu para que eu esperasse alguns momentos. Ela voltou com uma

tigela cheia de marshmallows e duas canecas de chocolate quente.

— Eu ouvi você tocando — admiti, deixando a bebida fumegante em


cima da mesinha em minha frente para poder usar as mãos.

Eve soprava sobre a borda de sua caneca enquanto a envolvia com as


duas mãos, os olhos fixos nos meus e a fumaça de seu chocolate quente
espiralando em frente ao seu rosto. Ela o bebericou sem pressa antes de
colocá-lo ao lado do meu no tampo da mesa, para que pudesse estar livre e
sinalizar.

— Por quanto tempo? — questionou-me, um vinco profundo se


formando entre as suas sobrancelhas.

— A música do Tim Burton e todas que a seguiram. Fiquei sentado no

corredor em frente sua porta.

Dizer tudo aquilo para ela foi um pouco constrangedor porque percebi
o quão estranho era. Eve não disse nada. Seus olhos iluminaram, assim como
uma parte de sua expressão. Ela parecia meio em choque, meio lisonjeada.
Um pouco dos dois.

— Você é incrível — deixar escapar por meus lábios, sem me importar


em verbalizar de propósito.

Eve mordeu a isca e seu olhar caiu para minha boca e permaneceu ali
por dois ou três segundos — como ela tinha feito da última vez que nos
esbarramos no corredor. Era difícil reunir autocontrole dentro de mim. Não
podia avançar porque ela não queria eu avançasse. Só iria beijá-la quando ela
me desse permissão explícita.

O calor habitual correu por meu tronco. Da última vez a tensão entre
nós era densa e palpável, o ar ficava difícil de inalar quando Evelyn tinha que
ler meus lábios. Eu devia parar de dizer coisas em voz alta para o bem de nós
dois, só que não conseguia. Provavelmente me tornava um otário, mas eu
tinha fantasiado sobre Evelyn enquanto tomava banho depois que a vi
daquela maneira: a saia lápis, os saltos altos e o cabelo amarrado no topo de
sua cabeça, expondo o pescoço longo dela. Merda, o pescoço de Evelyn,
maldito fosse. Deus sabia tudo o que eu queria fazer com ele. Arrastar meus

lábios, envolvê-lo com a mão. Gozar sobre ele (não necessariamente nesta
ordem).

— Obrigada. — Evelyn sinalizou, fazendo com que meus pensamentos


evaporassem. Um rubor cor-de-rosa suave cobriu suas bochechas.

Não falamos mais nada pelos próximos momentos e terminamos de


beber o chocolate quente. Ninguém tocou nos mashmallows. Com um pouco
de receio, me despedi de Evelyn. Não queria que ela ficasse sozinha naquele
estado, mas só que não podia continuar ali. Ellen tinha pedido para que eu

passasse em sua casa hoje e achava que já estava atrasado. Confirmei minhas
suspeitas quando vi o horário na tela do meu celular antes de enfrentar a
chuva lá fora e correr até o táxi que tinha solicitado parado no meio-fio. Não
dava para andar na Harley com esse temporal.

Já era pouco mais de seis horas da noite e o horizonte estava escuro.


Um raio cruzou o céu, partindo a cidade em duas e lançando um clarão sobre
Massachusetts. Minha prima estava na biblioteca. A casa de meus tios era
enorme, uma mini mansão no estilo vitoriano. Ellen se endireitou quando me
viu passando pelas portas e me sentei em uma das poltronas, depois de tirar a
jaqueta encharcada e jogá-la sobre o mancebo de ferro. O cheiro floral de Eve
agitou no ar eu soltei um suspiro, fazendo uma nota mental para deixá-la o
dobro do tempo na máquina de lavar da próxima vez. Não seria bom senti-la

comigo.

Balancei a cabeça, respingando água para todo lado. Meu cabelo voou
para frente no movimento, cobrindo minha visão. O penteei para trás com os
dedos, ignorando o olhar de reprovação de Ellen e o seu nariz um pouco
franzido.

— Você tá parecendo um cachorro todo molhado fazendo bagunça. —


Ela sinalizou.

— O que foi? — perguntei, um sorriso se puxando no canto de minha


boca. — Você sempre gostou de água.

Ellen fazia natação desde que se conhecia por gente. Ela tinha algumas
medalhas de campeonatos, inclusive. Ela me deu um rolar de olhos petulante

e mordeu o lábio inferior em seguida. Parecia estar nervosa com algo e aquilo
me deixou apreensivo.

— Eu precisava te dizer uma coisa. — Ela engoliu em seco e vi o


lampejo de medo e hesitação atravessar seu olhar.

Me preparei, apoiando os cotovelos sobre os joelhos e esperando


pacientemente até que minha prima resolvesse desembuchar sobre o que
estava de errado. Parecia que todas as mulheres em minha volta tinham
decidido ficar ainda mais complexas ao mesmo tempo.

— Fui pedida em namoro hoje e aceitei. — Seus dedos estavam


trêmulos quando ela começou a mover as mãos, sinalizando. Houve uma
pausa, um vinco profundo se formou entre minhas sobrancelhas. Esse era o
problema? — Por uma garota — acrescentou, três segundos mais tarde.

Sabia que meu rosto devia demonstrar choque, não estava esperando
por nenhuma das informações. Ellen era uma irmã para mim e eu sabia que
era difícil para ela se expressar na maioria das vezes, tanto que tinha um
círculo íntimo limitado com duas ou três pessoas dentro, no máximo. Meu tio

Ben era cético quanto a sexualidade e entedia a hesitação de Ellen. Só que


sua mãe era bem mais receptiva quanto a isso e tinha certeza de que a
apoiaria.

— Que bom, Ellen — finalmente falei, através da língua de sinais. —

Só estou um pouco surpreso. Não sabia que garotas faziam seu tipo.

— Gosto de garotos também. — Ela deu de ombros.

Assenti.

— Mas quem é a garota de sorte? Aposto que ela deve ser bem legal.

O rosto de Ellen pareceu iluminar quando mencionei a namorada.


Ainda não iria perguntar se já tinha contado aos meus tios. Pelo nervosismo
inicial dela, sabia que ela tinha confiado a informação a mim primeiramente.

Nós sempre tínhamos sido próximos.

— O nome dela é Ava, ela estuda na Goldring também. Ela é um ano


mais velha que eu e não é surda, só que ela sabe língua de sinais porque os
pais são. Nós nos conhecemos porque ela coordenava o grupo de reforço e
senti uma conexão estranha entre a gente, sabe? — Ellen franziu as
sobrancelhas, o semblante ficando confuso. Maneei a cabeça em
concordância.

— O coração maluco, as palmas das mãos suadas e as borboletas no


estômago? — Sinalizei, um sorrisinho zombeteiro no rosto. — Que fofo,
Elly. — Fiz questão de usar o apelido de infância.

— Cala a boca, Hunt. Quando você estiver de quatro choramingando

pela Evelyn vou ser a primeira a zombar de você.

— Isso não vai acontecer — garanti para ela. Pensei por alguns
momentos e fui cauteloso ao escolher o que diria em seguida, mas precisava
saber: — E o Ian?

Ellen piscou algumas vezes, como se tivesse lembrado que ele existia
só agora. Eu sabia que havia mais do que eles tinham me contato, não era um
idiota que não percebia as coisas que aconteciam ao meu redor.

— Eu gosto do Ian, ele é um cara legal e não posso negar que me senti

atraída por ele e nós flertamos um pouco, só que era inofensivo. — Ela deu
de ombros outra vez. Fiquei em silêncio, não sabia se Ian pensava da mesma
forma. — Não pude evitar com a Ava. Nunca me senti assim antes com
ninguém. Desta vez é especial.

Estava orgulhoso de Ellen, então a deixei em paz e resolvi cessar as


perguntas. Ela não disse nada sobre contar para seus pais e eu também não.
Queríamos aproveitar o clima leve e descontraído no momento. Em algum
ponto em que eu e minha prima falávamos sobre a faculdade, um trovão

estrondoso soou lá fora e um momento depois todas as luzes se apagaram.


Soltei um palavrão e acendi a lanterna do celular.

Ellen e eu nos levantamos e fomos olhar nas janelas. A maior parte da


cidade tinha apagado e decidi ir embora, mesmo que tia Courtney tivesse

tentado me fazer ficar. Quando cheguei no prédio, sabia porque tinha voltado
tão depressa, só não queria admitir a mim mesmo que era por conta de
Evelyn. Não queria que ela estivesse sozinha, tampouco sozinha e no escuro.

Então atravessei o saguão e comecei a subir as escadas. Quando estava


em frente à sua porta, comecei a tocar a campainha. No entanto, uma figura
esguia e corpulenta que apareceu em minha frente, com um olhar irritado e
avaliativo nivelado ao meu sob sobrancelhas escuras e cheias.

Fiquei estático.

— Você é o vizinho emo? — o estranho questionou, e não esperou eu


responder antes de acrescentar: — Evy tá ocupada agora.

Ele fez menção de fechar a porta em meu rosto, mas espalmei a


madeira. O interior do lugar estava silencioso e não dava para ver nada dentro
do apartamento banhado em sombras. Meu coração disparou e franzi a testa,
desconfiado.

— Quero vê-la.

Ele não parou de forçar a porta e eu não parei de impedi-lo de fechá-la.


Suas mandíbulas se travaram e pelo olhar que tomou conta do seu rosto eu
sabia que estávamos prestes a iniciar uma briga física no meio do corredor.
A semana inteira tinha sido horrível para mim. Quando me lembrava da

morte de minha mãe, a dor aumentava, além da saudade diária de sempre. Era
muita coisa para lidar de uma vez enquanto os professores da faculdade
exigiam artigos e testes preparatórios e faltavam algumas semanas antes das
provas começaram, além do estágio na escola. Estava parecendo uma morta
viva em meu apartamento, nos corredores da Goldring e em qualquer outro
lugar.

Meu cabelo era um emaranhado constante e havia sombras abaixo dos


meus olhos. Eu não queria ver ninguém e já tinha passado a evitar Hunt e ser
cuidadosa para que não nos esbarrássemos nos corredores. Só que hoje ele

tinha vindo até o meu apartamento ao ouvir meu pedido de socorro


derramado nas teclas do piano. O instrumento foi uma surpresa. Meu pai
tinha conseguido, de alguma forma, fazê-lo atravessar o país para que
chegasse até mim.

O piano era de madeira, estava bem velho e até mesmo meio


empoeirado. Lembro-me de onde ele ficava na minha casa em Idaho: no
canto direito da sala de visitas. Meu pai gostava de mantê-lo lá porque tinha
orgulho de dizer a todo mundo que ia até nossa propriedade que eu era a
pianista mais impressionante do mundo. Então ele me fazia tocar algo
enquanto eu sentia meu rosto arder pelo constrangimento.

No fim, ele aplaudia da maneira exagerada de sempre e me entregava


uma rosa. Sempre uma rosa ao fim das apresentações, independente da hora

ou lugar. Era meio que um ritual nosso. Uma vez toquei algumas notas de
madrugada, quando a casa inteira estava assombrosamente silenciosa e ele
me surpreendeu aparecendo com a flor em suas mãos, deixando-a sobre o
tampo de madeira. Então ele subiu as escadas de volta para seu quarto e foi
dormir.

Tive mais uma surpresa anteontem. Estava deitada no sofá da sala, um


balde de pipoca pousado estrategicamente sobre minha barriga enquanto
assistia um episódio de Gilmore Girls e então o relógio começou a vibrar em

meu pulso e eu suspirei, preparando-me para dispensar Hunt.

Entretanto, quando girei a maçaneta e encontrei Sean parado em minha


frente, tive que piscar algumas vezes para me certificar de que ele realmente
estava lá e que sua figura não se passava de um fruto de minha imaginação.

Um sorriso se puxou em seus lábios e me atirei em seus braços,


inalando o cheiro do mar e sândalo. Ele me envolveu um segundo depois,
apertando-me tão forte contra seu peito que me deixou sem ar. Naquele
momento, a melancolia foi substituída por euforia. O arrastei para dentro do
apartamento e as primeiras palavras que ele sinalizou para mim foram:

— Seu irmão agora é capitão da Marinha.

Cobri a boca com as mãos, em choque. Um momento depois, o puxei

novamente para outro abraço. Sean era meu irmão por parte de mãe. Quatro
anos antes de meu pai tê-la conhecido, ela estava em um relacionamento com
o pai de Sean e engravidou. Eles se separaram dois anos depois e ele arranjou
outra família, conseguindo a guarda de meu irmão e levando-o consigo.

E é aí que meu pai, americano, entra em cena. Ele foi transferido para a
Coreia do Sul a trabalho e encontrou minha mãe. Eles se apaixonaram e
depois me tiveram. Por mais que Sean e eu tenhamos crescido em lares

diferentes, ele passava a maioria dos fins de semana lá em casa, em Seul.

Tenho algumas memórias boas e distantes.

Isso durou até minha mãe ficar doente e morrer. Sean tinha nove anos e
eu seis. Nós não entendíamos muita coisa e foi difícil nos despedirmos
quando meu pai foi transferido de volta para os EUA. Mesmo criança,

lembro-me de que havia sido uma época turbulenta e difícil. Não consegui
manter contato com Sean e se não fosse pelas visitas até a Coreia uma vez
por ano que meu pai propunha, teríamos cortado laços de maneira drástica.

Conforme envelheci, muita coisa aconteceu e Sean se alistou para a


Marinha. Ficamos sem nos comunicarmos por muito tempo. Sabia que sua
paixão estava no mar e que ele era devoto às Forças Armadas — tanto que
tinha apenas vinte e quatro anos e tinha conquistado o posto de capitão. Nós
ficamos a noite inteira conversando e ele disse que passaria algum tempo de

férias em Massachusetts e que não avisou nada antes porque queria me


surpreender.

Hoje, Sean convenientemente apareceu quando a luz do prédio e


metade da cidade apagou por conta da tempestade. Estava quase tendo um
colapso sozinha e no escuro. Ele sabia quão medrosa eu era. Um sorriso torto
puxou em seus lábios quando abri a porta. Meu irmão era um dos caras mais
intimidantes que eu conhecia. Ele devia ser dois ou três centímetros mais
baixo que Hunt, porém era mais largo e tinha muitos músculos. Não do tipo

exagerado, mas na proporção certa. Seus cabelos pretos como os meus


estavam um pouco compridos em cima e cortado nas laterais. Era um cara
atraente e que fazia sucesso com a população feminina.

— Você está tremendo, Evy. — Sean sinalizou, o cenho franzido. Um

quê de preocupação e divertimento preenchia seu olhar. — Sabia que você


iria surtar com a falta de energia.

Apenas o ignorei, dando passagem para que ele adentrasse no


apartamento parcialmente iluminado com algumas velas.

— Vou fazer café para gente, estou congelando — falei, e me virei para
andar até a cozinha. Liguei o fogão com um fósforo e coloquei o fervedor em
uma das bocas.

Quando virei para trás, Sean estava me lançando um olhar


contemplativo, apoiado no balcão e com os braços cruzados em frente ao
peitoral largo. Arqueei uma das sobrancelhas em sua direção, como se
estivesse perguntando o porquê de ele estar agindo de forma estranha.

— Você está interessada por alguém, não está?

Fiquei estática.
— Qual o nome dele? — Sean voltou a disparar, os resquícios de
diversão e relaxamento sumindo de seu rosto agora sério.

Engoli em seco e movi as mãos.

— Não estou interessada por ninguém — menti.

A verdade era que eu não queria ter que admitir que Hunt me fazia ter

alguns pensamentos um pouco inapropriados. Senti meu rosto corar diante da


memória das vezes em que dormi escorada em seu tronco.

— Mentirosa.

— Não enche o saco — retruquei, tentando conter sua versão super


ciumenta e possessiva de irmão mais velho. — Ele é só um amigo.

— Então tem um ele? — questionou, arqueando uma das sobrancelhas.


Antes que eu pudesse respondê-lo de uma forma bem grosseira, Sean

inclinou o queixo e me alertou: — Café.

Virei-me para trás e diminuí o fogo, deixando as chamas um pouco


mais brandas ao ver que o café estava quase entrando em erupção. Girei nos
calcanhares e me voltei para Sean.

— Como ele se chama? — disparou para mim, não perdendo tempo.

— Hunt.
— Hunt o quê?

Franzi as sobrancelhas, começando a ficar irritada. Eu amava Sean, mas


ele estava me dando nos nervos no momento. Eu nunca falava palavrões, mas
estava perto de sinalizar ao menos dez se meu irmão continuasse com o
interrogatório idiota e sendo mesquinho.

— Hunt Finley. Por que isso é importante?

Sean me ignorou.

— Onde ele mora?

— Que tipo de pergunta é essa?

— Me diz onde ele mora, Evy.

— Do outro lado do corredor. — Rolei os olhos furiosamente. — O que


você pretende fazer? Assassiná-lo?

Não estava falando sério, mas um brilho frio atravessou o olhar de meu
irmão e ele deu de ombros.

— Se ele partir seu coração, sim.

Antes que eu pudesse protestar ele desviou o olhar, baixando-o para o


celular em suas mãos. Tirei o café do fogão e servi em duas canecas. Uma
deslizei sobre o balcão, em direção a Sean, e a outra mantive comigo.

Comecei a bebericar a bebida quando vi o rosto de meu irmão se torcer


em uma careta de úlcera e desgosto. Ele virou a tela do celular para mim,
onde exibia o feed de Hunt no Instagram. As sobrancelhas dele se arquearam
e eu suspirei, começando a ficar exasperada.

— Sério, Evy? O cara pinta as unhas. — Sinalizou, enfiando o celular


no bolso.

— E daí? Para de bancar o babaca só porque está com ciúmes.

— Ok, desculpa. Não quis ser um otário, mas é só que... — Ele soltou
um suspiro inaudível e continuou sinalizando depois de uma pausa. — Estou
com ciúmes mesmo. Parece que era ontem que você era minha irmãzinha e
precisava ser salva do escuro ou das tempestades. Agora você é uma mulher
adulta de vinte anos e não sei se posso lidar com isso. Preferia quando você

tinha nojo de garotos, no primário.

Um sorriso se arrastou por meus lábios. No próximo segundo, meu


relógio começou a vibrar no pulso e soltei um suspiro.

— Sean, abre a porta para mim, preciso fazer xixi. Provavelmente é o


zelador do prédio querendo checar se tá tudo bem. Da última vez que a luz
acabou foi assim.
Não esperei por uma resposta do meu irmão e saí da cozinha,
atravessando o corredor rumo ao banheiro com a lanterna do celular acesa.

Depois que terminei, lavei as mãos e voltei para a sala. Meu irmão estava
parado na porta, a luz de emergência do corredor de lá fora era bem fraca,
mas vi que tinha a silhueta de alguém com Sean e ele parecia tenso, sua
estrutura bloqueava minha visão de quem estava em sua frente.

Caminhei até ele, tocando em suas costas suavemente. Sean me puxou


para um abraço de lado e eu estranhei a demonstração de afeto repentina.
Entendi tudo quando meu olhar encontrou o de Hunt. Ele parecia bem mal-
humorado, a expressão fechada e o maxilar travado.

Ele me observou por dois ou três segundos antes que Sean plantasse um
beijo em meu rosto. Dei uma cotovelada em suas costelas e o lancei um olhar
sério. Meu irmão rolou os olhos e um sorriso torto se puxou em seus lábios.

Voltei-me para Hunt.

Seu olhar alternou entre mim e Sean, e na mão de meu irmão pousada
possessivamente em minha cintura. O rosto de Hunt estava inexpressivo.
Franzi as sobrancelhas.

— Oi, Hunt. — Sinalizei. — Esse aqui é o Sean, o meu irmão mais


velho. Ele é um idiota na maior parte do tempo e peço desculpas.
Sean avaliou a mão de Hunt quando ele a estendeu em sua direção, a
expressão agora um pouco mais suave. Meu irmão parecia ter esquecido os

modos de civilização e deixou-o lá, parado, esperando.

— Vamos entrar, Evy. O café vai esfriar. — Sean sinalizou para mim,
ignorando Hunt.

Um vinco profundo se formou entre minhas sobrancelhas e cruzei os


braços em frente ao peito. Parecia que meu irmão tinha se transformado em
uma criança malcriada e birrenta. Questionei-me se na Marinha ele agia desta
forma também. Com certeza a resposta era não.

— Sean — alertei, na língua de sinais.

— Que foi?

Antes que pudéssemos continuar nossa troca de olhares mortais, Hunt


tocou em meu ombro e sinalizou um "Só queria saber se você estava bem.

Vou para casa" e me deu uma piscadela antes de se virar. Fiquei observando-
o destrancar a porta do seu apartamento até que a fechasse atrás de si e
sumisse completamente do meu campo de visão.

Sean se voltou para mim, com as sobrancelhas arqueadas e parecendo


relaxado e satisfeito.

— Garoto esperto. Vamos. — Ele encaixou a mão na curva do meu


braço acima do cotovelo e tentou me levar para dentro, mas estanquei meus
pés no chão, incrédula.

— Por que você está sendo um otário? — Sinalizei, furiosa.

Ele parou, lançando-me um olhar confuso.

— Te fiz um favor, Eve.

— Um favor? — Movi as mãos depressa, de maneira colérica.

— Eve, eu vi a maneira como vocês se olham. Ele é o tipo de cara que


vai partir seu coração.

Pisquei, incrédula.

— Vai embora. — Sinalizei, sem encará-lo. — Não se meta em minha


vida.

Sean não retrucou. Estávamos os dois com raiva demais para não se dar

conta de que agimos de maneira infantil.

Depois de vinte ou trinta minutos com o olhar perdido no interior


escuro do meu apartamento, meu corpo pareceu ganhar vida própria. Girei a
maçaneta e espiei o corredor vazio. Meu coração começou a trovejar dentro
de meu peito.
Parei em frente à sua porta, o punho suspenso no ar a poucos
centímetros de distância da madeira. Respirei fundo antes de bater algumas

vezes. Esperei alguns momentos até que a porta fosse aberta. O ar deixou
meus pulmões lentamente quando o avistei.

Hunt estava com o cabelo molhado. A parte da frente estava mais


comprida que o habitual, fazendo com que uma espécie de franja caísse sobre

sua visão. O peitoral inteiro estava exposto, as tatuagens espalhadas por cada
centímetro de sua pele lisa. Gotículas de água se espalhavam por seu
abdômen e desci meu olhar até as linhas que formavam um "V". Uma toalha
branca pendia em seu quadril e seus pés estavam descalços. Aparentemente
ele tinha acabado de tomar um banho.

Voltei meu olhar para seu rosto confuso e surpreso. Hunt engoliu em
seco, baixando o olhar para minha boca. Meu coração parou. Ele fitou-me
novamente, o braço tensionado de tanta força que ele estava colocando na

maçaneta, enquanto mantinha a porta aberta.

— Eve... — Sua boca se moveu e eu li seus lábios. Cada parte de seu


corpo parecia tensa.

Era um aviso.

Ignorando os alertas em minha mente, finalmente choquei minha boca


contra a sua.
Quando saí do banheiro, os dentes batendo e tremendo de frio porque a

única opção de água naquele momento era gelada por conta da falta de
energia, não esperava pelas batidas na porta. Confuso, a abri depois de alguns
momentos e quando me deparei com Evelyn, nem tentei esconder a surpresa.

Foi o olhar em seu rosto que me deixou tenso e sem ar. Havia um
brilho selvagem em suas íris escuras e foi difícil não atacá-la enquanto
perscrutava todo o meu corpo daquela maneira. Ela não vestia nada além do
que aquela blusa longa que expunha suas pernas. O cabelo estava meio
bagunçado também. Eve estava mais bonita do que nunca e aquilo tornou
tudo mais difícil.

Então a alertei.

— Eve... — foi tudo o que deixou minha boca, não passando de um


murmúrio suave.

No próximo segundo ela cortou a distância entre nós e selou nossos


lábios, segurando meus ombros. O contato durou três ou quatro segundos
antes que ela se afastasse, foi leve e calculado. Meus olhos se arregalaram e
senti o calor descer por meu tronco e se acumular em uma parte especial da
minha anatomia. Nunca fiquei duro antes por conta de um roçar de bocas.

Eve também parecia um pouco chocada, como se tivesse se dado conta


do que tinha feito. Ela ergueu a mão e passou os dedos em haste pelos
próprios lábios, depois deu alguns passos para trás como se estivesse

arrependida.

Antes que pudesse fugir como o habitual, avancei e afundei a mão da


parte de trás de seus cabelos, puxando-a bruscamente para perto com força
não intencional. Seu peito colou ao meu e empurrei a porta. Eve arfou e me
curvei um pouco para alcançar sua boca novamente.

Meus lábios se fecharam sobre os seus suavemente, em um toque


ligeiro. Foi tão breve quanto o anterior. A senti tremer quando arrastei o
piercing de metal da língua em sua boca, mostrando-a como podia ser bom.

Todo mundo ficava curioso sobre beijar alguém com piercing e algo me dizia
que Eve também queria descobrir. A maneira como ela suspirou e me puxou
para perto fez com que minhas dúvidas se transformassem em certeza.

Soltei um riso baixo e a prensei mais contra a porta. Eve abriu a boca,

permitindo que eu a beijasse. Deixei com que ela ditasse o ritmo inicialmente.
Ela era lenta e cuidadosa, as mãos pousadas em cada lado de meu quadril. Os
polegares se movendo para frente e para trás em carícias ociosas. Parecia
querer explorar cada canto da minha boca com os movimentos tímidos de sua
língua aveludada.

Aumentei o ritmo quando os dedos de Evelyn começaram a vagar por


minhas costas, suas unhas compridas roçando em minha pele exposta e
deixando-me maluco. Aquele era o contato que eu tanto esperava. Pressionei

ainda mais meu quadril contra o seu, desejando que ela sentisse o quão
excitado ela tinha me deixado. Eve soltou um som baixo que bateu no fundo
de minha garganta. Queria deitá-la na superfície mais próxima disponível, só
que não sei se seria uma boa ideia.

Moldei seu rosto com as duas mãos. Eve me empurrou para trás. Nós
não paramos de nós beijar enquanto ela nos guiava em direção ao sofá.
Evelyn se afastou para me encarar. O apartamento estava escuro, a chuva um
pouco mais abrangente soando lá fora, mas as velas que tinha acendido

iluminavam parcialmente a sala, as chamas alaranjadas dançando e as


sombras projetadas ao nosso redor e no rosto de Eve.

Ela espalmou meu peitoral, colocando um pouco de força. Cedi e me


sentei no estofado atrás de mim. Separei os joelhos, abrindo as pernas em um

convite implícito. Arqueei a sobrancelha direta, lançando-a um olhar


questionador. Evelyn ponderou por alguns momentos, o olhar vagando por
meu tronco exposto até a toalha em meu quadril e a protuberância bem
visível por baixo dela.

Ela mordeu o lábio inferior e, hesitante, subiu em mim. Escondi a


surpresa em meu rosto. O meu calor corporal dobrou. Inicialmente ela estava
sentada longe de onde eu queria que ela estivesse, então enfiei minhas mãos
por baixo de suas coxas e a puxei para frente, até que ela estivesse me

montando sobre a toalha. A bainha de sua camiseta tinha subido


consideravelmente, expondo mais pedaços de pele sedosa e lisa.

Se Eve só estivesse usando calcinha por baixo do tecido, nós teríamos


vários problemas.

Empurrei minha ereção contra seu sexo. Eve entreabriu os lábios, mas
nenhum som saiu de sua boca. Ela me lançou um olhar um pouco assustado e
plantei um beijo suave em seu pescoço. Seu suspiro bateu contra meu rosto e
ela se moveu, desta vez testando a fricção entre nossos corpos de maneira

hesitante e tímida.

Ficamos parados. Evelyn não se moveu e eu também não ousei. Queria


que ela achasse o ritmo que fosse bom para ela, que ficasse no controle e
tivesse prazer. Ela começou a se movimentar quando raspei meus lábios no

lóbulo de sua orelha. Travei as mandíbulas e deixei que ela se esfregasse


contra mim por cima da toalha daquela maneira lenta e torturante.

— Porra, Eve — murmurei, quando ela roçou os seios em meu peitoral.


Mesmo que sua camiseta estivesse entre nós, dava para senti-los macios e
firmes.

Não podia acreditar que estava tão excitado como nunca estive antes
com uma quase transa com roupa.

Eve ergueu o pescoço e fechou os olhos enquanto continuava com o vai


e vem delicioso. Não resistindo ao impulso, vendo a pele lisa exposta,
envolvi-o com uma das mãos suavemente, enquanto mantinha a outra em sua
coxa. Ela estremeceu, soltando um suspiro baixo e colocando mais pressão
quando se mexeu sobre mim. Evelyn estava tão afetada quanto eu, tentando
resistir a toda aquela atração entre nós.
Depois de mais três movimentos, ela afundou as unhas em meus
ombros e soube que ela estava quase lá, então enfiei minha mão por baixo de

sua blusa e soltei um palavrão quando encontrei seus seios livres, sem sutiã.
Passei o polegar sobre seu mamilo. O roçar quase inexiste fez com que Eve
tombasse a testa em meu pescoço enquanto tremia sobre mim. Quando ela se
recompôs e endireitou-se, vi que seu lábio inferior estava com marcas

profundas de dentes. Ela tinha mordido ali na hora que alcançou o orgasmo.
Passei os dedos em haste sobre elas. Um segundo depois começou a sangrar.

Beijei o machucado de forma amena e Eve também passou a mão por


ele e quando se deu conta de que estava sangrando pareceu entrar em choque.
Ela olhou para mim parecendo meio horrorizada e mesmo no escuro percebi
quando seu rosto ficou vermelho pelo constrangimento.

Ela saiu de cima de mim com pressa, parecendo finalmente se dar conta
de onde e com quem estava. Ela quase tropeçou nos próprios pés quando

começou fugir. Eve abriu a porta e nem lançou um olhar sobre o ombro antes
de fechá-la e ir embora, deixando-me sozinho e com uma ereção. E desta vez,
a deixei partir. Aparentemente as coisas entre nós tinham desabado.
As bolas azuis eram terríveis. Foi preciso me aliviar por conta própria
três vezes após Evelyn ter ido embora. Eu me sentia um adolescente
novamente tendo que usar a palma de minha mão com tanta frequência. Era
sempre áspero, forte e rápido para compensar a falta de Eve sobre mim.
Sentia que eu tinha me enfiado em um grande problema porque passei as

próximas vinte e quatro horas pensando nela e nas trinta posições em que a
queria.

Enquanto o professor falava na frente da sala de aula na manhã


seguinte, eu só conseguia pensar em Evelyn. Os lábios dela se movendo
contra os meus, a pele macia e beijável. O cheiro de lavanda da camiseta, o
perfume no seu pescoço. As curvas sutis de seus seios pressionando contra
mim. Amaldiçoei mentalmente quando comecei a ficar excitado no meio da
sala. Forcei a empurrar Eve para o fundo de minha mente.

— Presta atenção, porra. Já é a terceira vez que você erra a sequência


— Ian chamou minha atenção, parando de tocar o baixo.

Nós estávamos no porão da casa de Atticus em Boston no momento.


Vim logo depois que saí da faculdade para encontrar ele e Ian para fazermos
uma passagem de som para o show de hoje à noite. Saí de trás do microfone e
murmurei que precisava de uma pausa, deixando a guitarra em cima de uma
mesa velha. Aqui era cheio de tralha, mas não dava para reclamar, o lugar
tinha uma estrutura resistente a som.

— Que foi? — perguntei, mal-humorado, quando o olhar de Ian e


Atticus pousaram em mim.

Me sentei em um sofá de couro empoeirado, esticando as pernas e

apoiando as botas em cima de uma pilha de caixas. Coloquei os braços atrás


da cabeça e fitei o teto, franzindo as sobrancelhas. Eu estava emburrado, não
dava para esconder. A Eve era uma garota incrível e superlegal, mas eu já
tinha conhecido garotas incríveis e superlegais antes. Por que ela conseguia,
de alguma forma, fixar-se em minha mente? O pior de tudo era que ela nem
queria. Evelyn não queria me conquistar, nem ser a garota que podia "me
salvar" e achava que poderia mudar quem eu era como as outras já tentaram
antes e fazer-me um cara mais "decente". Então por quê? Por que justo ela?
Por que não conseguia tirá-la da minha mente, do meu sistema? Eu já a tinha

beijado, não era o suficiente?

— Você transou com ela — Ian atirou, fazendo-me encará-lo.

Ele me olhava de um jeito esquisito.

— Não — retruquei secamente.

— Mas alguma coisa aconteceu entre você e a vizinha e isso tá te


deixando maluco — presumiu, acertando em cheio. — Falei que era melhor
ficar longe. Vocês não têm nada a ver.

Nunca me irritei ou perdi a linha com os caras da banda antes. Mas hoje
em especial eu estava em um estado crítico de amargor e não conseguia
suportar a mim mesmo. Antes que minha mente explodisse, perguntei para
Ian:

— Você trouxe alguma coisa?

Ele sabia o que eu queria dizer com alguma coisa. Ian sinalizou para a
mochila jogada sobre o piso de ladrilho e me abaixei para pegá-la. Comecei a
revirá-la com a mão direita. Meus dedos tocaram em um exemplar pesado de
ASL (língua de sinais americana), lancei um olhar sobre o ombro. Ian estava
distraído afinando seu instrumento e eu soltei um gemido abafado. O idiota
estava mesmo caído por minha prima, tanto que estava aprendendo a como se

comunicar com ela. Enfiei o livro de volta na bolsa e tateei o bolso frontal,
finalmente encontrando o saquinho plástico de maconha.

Abri a seda e depois que coloquei a erva, ajeitando e espalhando de um


jeito uniforme, até que os lados ficassem justos. Usei uma caneta que estava
no chão para empurrar a maconha e finalizei o trabalho com uma lambida na
ponta. Tirei o isqueiro do bolso, acendendo o cigarro enrolado.
Dei a primeira tragada. Atticus sentou ao meu lado, arqueando as
sobrancelhas sutilmente. Passei o baseado para ele, espreguiçando-me.

— Será que a Ash está em casa? — murmurei as palavras no


automático, divagando em voz alta.

Atticus se engasgou enquanto tragava. Ele tossiu e começou a

murmurar uma sequência de palavrões. Esqueci que ele não sabia que eu
tinha transado com sua irmã mais velha. Tinha acabado de me denunciar. Ash
já estava no último ano da faculdade e em minha defesa, era bem gostosa e
gente boa. Morava no campus e quase nunca estava aqui.

— Cara, você fodeu a minha irmã? — Atticus perguntou, depois de


controlar a crise de tosses.

Ian soltou um riso baixo lá atrás e nós dois o ignoramos.

— Desculpa — foi tudo o que eu disse.

Atticus balançou a cabeça negativamente e se levantou, anunciando que


o ensaio tinha acabado. Ele abriu a porta que dava para o corredor de sua casa
e a fechou com força, estremecendo alguns quadros nas paredes. Soltei um
suspiro, tombando a cabeça para trás e olhei ao redor, vasculhando o sofá. O
filho da puta ainda tinha levado meu baseado.

— Tá todo mundo à flor da pele hoje — Ian murmurou, cortando o


silêncio ensurdecedor que tinha se instalado ali.

Atticus voltou para o porão cerca de vinte minutos depois. Ele ainda
estava puto, mas precisávamos mesmo ensaiar. Daquela vez foquei na música
e no que eu estava fazendo com a minha guitarra.

Quando deu a hora, entramos na van dos pais de Atticus e fomos para o

lugar do show: uma boate bem famosa e badalada de Boston. O camarim era
um quarto meio apertado, padronizado com todos os outros. Me sentei em
uma cadeira e fiquei esperando. Faltavam cinco minutos, dava para ouvir o
burburinho de onde estávamos, o que indicava que o local devia estar bem
lotado.

Assim que pisei no palco, confirmei minhas suspeitas. Tinha bastante


gente amontoada na plateia, mais que o habitual. Abri um sorriso que as
garotas costumavam adorar e fui recebido com uma vaia de gritos.

Posicionando a mão ao redor do microfone, esperei que Atticus fizesse a


contagem com as baquetas para começar a cantar.

O show foi bom e não fiquei para a rodada de cervejas, só peguei


minha parte da grana e enfiei no bolso. Atticus me deu carona até sua casa,
para que pegasse minha moto. No trajeto inteiro ele não disse uma única
palavra, o que devia ser muito ruim. Não o culpava, se ele ou Ian tivessem
transado com Ellen sem que eu soubesse, também ficaria uma fera. Sabia que
tinha pisado um pouco na bola e iria tentar me redimir em breve, só que
naquele momento não porque ele parecia prestes a me jogar para fora do

carro em movimento.

O som das sirenes vindo do lado de fora da casa ficava cada vez mais
alto, fazendo meu coração trovejar em meu peito e me deixando sem ar,
projetando luzes azuis e vermelhas dentro do cômodo. A sensação era de
sufoco. Medo. Pavor. As pancadas na porta de madeira da frente começaram
até que cedesse e fosse derrubada. Os passos pesados ecoaram pelo corredor,
o som misturando-se os murmúrios de várias vozes.

— Não tem ninguém em casa — a voz de uma mulher soou.

Prendi a respiração, observando os vultos passarem por baixo da fresta


da porta. Um par de botas parou em frente ela, batendo duas vezes. Não emiti
nenhum som. Um momento depois a maçaneta girou, mas estava trancada.

— Algo está errado. A porta está trancada — a mesma voz feminina


voltou a ecoar.
— Arrombem. — O tom autoritário e masculino trovejou do outro lado
da porta.

Antes que eles pudessem me alcançar, sentei-me na cama de maneira


abrupta. Lancei um olhar ao redor, só para me certificar de que estava em
meu quarto, no meu apartamento em Massachusetts. Soltei uma lufada de ar.
Os cabelos da minha nuca estavam úmidos e meu tronco inteiro estava meio

encharcado, assim como o cobertor e o lençol da cama. Eu tinha


hiperventilado. Fui até o banheiro e joguei água no rosto, depois voltei para
meu quarto, perplexo sobre o sonho.

Sobre meu passado.

Fechei os olhos, exausto e mergulhei na escuridão.

— Isso não tá certo — Ian reclamou, sentado ao meu lado no sofá


enquanto eu o detonava no videogame. — É a terceira vez que você usa esse
comando especial. Isso é excesso de apelação, devia ser proibido.

Soltei uma risada de escárnio, me divertindo enquanto observava meu


personagem dar fatality no seu. Larguei o controle e estalei os dedos contra a

palma de minha mão. Ian se levantou e andou até minha cozinha, procurando

por algo na geladeira. Eu odiava quando ele fazia isso e acho que era
justamente por esse motivo que ele continuava xeretando em minhas coisas.

— Como sempre, nada para comer — ele resmungou, voltando para a


sala.

Ian estava irritado quando desabou na poltrona, a expressão séria e


contemplativa. Pensei em dizer a ele sobre o livro, mas deixei para lá, ele já
parecia particularmente estar em um dia ruim e não precisava saber que a
garota por quem ele tinha uma queda, Ellen, estava namorando.

— Você acha que o Atticus esconde o quê? — questionei-o, de repente.

— A gente já falou sobre isso. Obviamente é uma namorada — meu


amigo murmurou, parecendo desinteressado no assunto.

— Por que ele faria isso?

— Ele deve ficar com receio. Imagina só a pobre coitada entre a gente.
Iríamos assustá-la.

Soltei um riso baixo.

— Eu não assusto ninguém. — Coloquei as mãos atrás de minha


cabeça, entrelaçando os dedos e fitando o teto.

— Só transa com as irmãs dos amigos escondido — ele atirou, fazendo-


me lançar a ele um olhar indignado.

Soltei uma bufada.

— Qual é, a Ash é inteligente e super linda. Nós nos atraímos feito ímã.

— Ela é linda mesmo. O piercing no mamilo é incrível... — Ian


divagou em voz alta.

Ficamos em silêncio até que ele percebeu o que tinha feito e virou o
rosto para mim, os lábios entreabertos e os olhos um pouco arregalados. Um
sorriso torto se puxou no canto de minha boca e eu balancei a cabeça,
incrédulo.

— Filho da puta — murmurei. — Quando?

— No dia em que ela foi para o jantar de Ação de Graças no ano


passado.

— De jeito nenhum! — falei, um vinco profundo se formando em


minha testa.

— Esse foi o dia em que vocês transaram também, não foi? — ele me
questionou, pegando tudo no ar.
— Foi — concordei, massageando o maxilar. — Caramba, Ash... —
resmunguei, impressionado.

— Caramba mesmo.

No Dia de Ação de Graças ela estava vestindo uma blusa super


decotada e uma saia. Foi difícil tirar os olhos dela naquela noite, enquanto

jantávamos na casa de Atticus com seus pais. Percebi que Ian estava meio
inquieto na mesa, mas achei que não fosse nada demais, mas agora fazia
sentido. Ele só estava nervoso porque tinha fodido a irmã de Atticus. Ash foi
até o quarto de hóspedes em algum momento da madrugada e foi a transa
mais silenciosa e cuidadosa da minha vida, porque não queríamos acordar
ninguém.

Ian colocou no canal da ESPN na tevê, onde estava passando a reprise


de um jogo dos Giants contra os Chicago Bears. A partida já estava na

metade e pegamos a hora em que o quarterback dos Giants estava correndo


pelo campo, desviando de todo mundo enquanto corria as jardas e atingia a
última, em um touchdown impressionante.

— Esse cara tá detonando. Cansei de ver ele em todos os jornais. Virou


uma febre de uma hora para outra — Ian murmurou.

O câmera deu foco para o jogador promissor e ele tirou o capacete no


mesmo momento. O rosto estava sério e suor brilhava em sua testa, ele agitou

os cabelos castanhos com uma das mãos e sorriu para a multidão

enlouquecida, até mesmo mandou uma piscadela para uma fã que estava
quase pulando a grade na qual ele estava próximo. Soltei um riso baixo.

— Luke é gente boa — falei, porque era verdade.

Tinha uma época em que ele sempre ia para Boston, ao menos uma vez
na semana, e nós formávamos uma dupla destrutiva entre as garotas. O cara
era o maior cafajeste de todos os tempos, mas era o típico garoto de ouro. Até
que ele se apaixonou e as noites de farra acabaram. Não consegui mais falar
com ele, porque se mudou para Nova Iorque e se transformou em uma
superestrela do dia para noite.

— É claro que você o conhece — Ian disse, tirando-me da bolha de


pensamentos.

— Meu amigo — concordei.

No próximo momento começamos a falar do show que aconteceria na


semana seguinte. Iria ser em um lugar maior dos que estávamos habituados a
sermos convidados e podia ser uma grande oportunidade para atrairmos mais
apresentações e público, então queríamos que todos os minutos em palco
fossem impecáveis.
E não podia ser menos que isso.
Afundei a colher no pote de sorvete Ben & Jerry’s no mesmo momento

em que meu relógio começou a vibrar em meu pulso. Engoli com certa
dificuldade, desviando os olhos da tevê, onde estava passando A Última
Música — um dos meus filmes prediletos — e fixei-os na porta, como se
pudesse ver através da madeira.

Eu tinha dois palpites: Sean ou Hunt. E no momento, não queria ver


nenhum dos dois. Parei de comer, cravando a colher no topo do sorvete e
colocando-o na mesinha de centro. Pausei o filme, ponderando. O relógio
vibrou outra vez. E outra. E mais uma. Rolei os olhos para o padrão familiar
e mordi o interior da bochecha enquanto andava até a porta e destrancava-a.

Os olhos pretos se conectaram aos meus no próximo instante. Hunt


estava parado na minha frente com um sorriso torto e meio hesitante puxado
no canto de sua boca. O cabelo negro caía sobre sua testa de uma forma
adorável, além de as mechas despontarem para todos os lados. Ele apoiou a

mão no batente e a colônia masculina flutuou ao meu redor, deixando-me


inebriada. Pisquei, o coração disparando.

— Oi — ele disse, em voz alta. Li seus lábios.

— Oi. — Sinalizei, nervosa.

Eu não sabia o que ele estava fazendo ali. A gente tinha se beijado há
uma semana, supostamente era para ter cortado aquela tensão sexual e o
interesse estranho de Hunt por mim. Mas aqui estava ele, parado na minha

porta no fim da tarde de um sábado monótono. Ele vestia as roupas de couro


e charmosas de sempre.

Hunt se afastou um pouco, sinalizando:

— Você está sozinha?

Assenti lentamente, um vinco profundo começando a se formar entre as


minhas sobrancelhas.
— Você quer entrar? — questionei-o, confusa.

— Sim.

Dei um passo para o lado e depois outro, até que tivesse passagem.
Hunt atravessou para dentro e parou alguns passos antes do sofá. Ele analisou
o cobertor amassado sobre o estofado, o pote do sorvete que estava

derretendo e depois o filme pausado na tevê.

— A última música. — Ele se virou para sinalizar, um sorrisinho no


rosto. — Você gosta desse tipo de filme?

Assenti.

— Me desculpa — disparei para Hunt no próximo momento. Suas


sobrancelhas escuras se franziram, como se ele não soubesse sobre o que eu
estava falando. A verdade era que eu tinha ficado martirizando a semana toda
sobre ele não ter chegado lá também. — Por aquele dia. Você não...

Deixei as palavras no ar, parando de sinalizar. Hunt arqueou uma das


sobrancelhas discretamente. Um misto de diversão e surpresa preencheram
seu olhar e senti meu rosto arder.

— Não tem problema, Eve.

— Não, mas é que me senti culpada. Invadi seu apartamento do nada


no meio da noite e beijei você. Aí voltei para casa em estado de choque

porque eu nunca tinha atacado ninguém assim antes e fiquei envergonhada. O

constrangimento só aumentou porque coloquei minhas necessidades na frente


das suas e fui egoísta... — Eu estava sinalizando sem parar. Soltei um suspiro
triste e as lágrimas começaram a borrar minha visão. — Desculpa, eu estou
na TPM, é difícil controlar os sentimentos.

Hunt estava com os olhos arregalados em minha direção e estático, ele


me encarava meio descrente e meio em choque. Ele devia me achar uma
maluca e egoísta. O pensamento fez com que eu começasse a chorar de
verdade. Envergonhada, tentei passar por ele e me esconder no meu quarto,
só que sua mão se fechou ao redor de meu pulso e ele me girou, fazendo-me
chocar bruscamente contra seu peito.

Seus braços me envolveram e ele não pareceu se importar enquanto


minhas lágrimas deixavam sua camiseta molhada. Hunt me afastou

gentilmente pelos ombros e se abaixou um pouco para que nossos olhares


estivessem nivelados. Agora seu rosto estava compreensivo e sério.

— Presta atenção, Eve — ele começou a falar em voz alta e fixei minha
atenção na sua boca. — Não se preocupe comigo. E não precisa ficar
envergonhada por estar na TPM, eu cresci em uma casa com duas mulheres.
— Um sorriso torto e divertido tomou conta de seus lábios. — Às vezes elas
ficavam na TPM ao mesmo tempo, então eu tinha que lidar com uma onda de
progesterona enorme.

Sequei as lágrimas na bochecha, um pouco mais tranquila e me afastei,


sinalizando:

— Você tem uma irmã?

— Não.

Franzi as sobrancelhas, confusa.

— Eu tenho duas mães. — Ele moveu as mãos calmamente,


provavelmente notando a confusão em meu rosto. — Sou adotado.

— Desculpa, não sabia dessas coisas.

— Não tem problema.

Hunt esfregou a palma de uma das mãos distraidamente contra o

pescoço, ele parecia sem jeito. O clima entre nós estava estranho e eu não
sabia o que fazer. Não achava que ele fosse me procurar depois... daquilo.

— Vou sair agora. Colocar um piercing novo. — Ele moveu as mãos,


finalmente dizendo algo. Fez uma pausa, tombando a cabeça para o lado
enquanto me analisava. — Você devia tentar qualquer dia desses.
— Um piercing? — Pisquei, surpresa, torcendo um dos cantos da boca
automaticamente.

— É, Eve, um piercing. — Ele sorriu, expondo a fileira de dentes


brancos e retos. — Já pensou sobre isso?

— Para falar a verdade, não.

— E tatuagem? Aposto que você não tem nenhuma.

— Eu tenho uma tatuagem.

Seu rosto iluminou e seus olhos perscrutaram meu tronco de forma


deliberadamente lenta. Me remexi e curvei os dedos dos pés descalços sobre
o assoalho, inquieta.

— Onde está? — Voltou o olhar curioso para meu rosto alguns


momentos depois, um sorriso torto se puxando em sua boca.

— No meu corpo. — Dei de ombros.

— Onde, Eve? Não está nas suas pernas. Nem nos braços, ou pescoço.
Costelas, talvez?

— Não. — Senti minhas bochechas arderem e então resolvi mudar de


assunto: — Espera eu trocar de roupa.
Ele piscou, surpreso. Permiti que um sorrisinho erguesse meus lábios
sutilmente para cima.

— É melhor esse piercing ficar ótimo. — Sinalizei o aviso com o rosto


sério antes de dar as costas a ele e ir em direção ao meu quarto.

Quando Hunt estacionou meu carro, após decidir dirigi-lo, em frente ao


estúdio de tatuagem que ficava no centro de Massachusetts em uma rua bem
agitada, me arrependi no mesmo segundo. Ele tocou meu ombro ao notar que
eu estava dispersa analisando a movimentação através da janela sem descer
do Honda e eu finalmente desafivelei o cinto, abrindo a porta.

Ele atirou as chaves em meu peito e me atrapalhei na hora de segurá-


las, fazendo um malabarismo desajeitado até que conseguisse capturá-las em
meu punho. O rosto de Hunt ficou um pouco corado enquanto ele segurava o
sorriso e fiz questão de lançá-lo um olhar feio, escondendo o meu também.

Comecei a tiritar no meio da calçada. Estava bem frio hoje, já era


pouco mais de sete horas e estava ventando para caramba. Hunt encaixou a
mão na curva de meu braço e me puxou junto ao seu peitoral, aquecendo-me
ao mesmo tempo em que me empurrava em direção às portas duplas de vidro

do estúdio quando fiquei parada feito uma idiota.

Os meus dentes pararam de ranger quando adentramos no lugar. O


aquecedor estava a todo vapor por aqui. Lancei um olhar ao redor, na enorme
recepção. Havia sofás de couro preto espalhados pela sala ampla, além de

uma mesinha de centro com um pote de alcaçuz.

Hunt me puxou para o balcão onde a recepcionista bonita estava. Ela


tinha olhos azuis bem grandes, do tipo de desenho animado e uma boca
parecida com a da Angelina Jolie. Foi o piscar de olhos que ela deu para o
garoto ao meu lado que me disse que eles já tinham transado. Contive o
impulso de soltar um bocejo.

Os olhos azuis da mulher se fixaram em mim.

— É sua prima? — Vi seus lábios se moverem e os li.

Não sei o que Hunt respondeu, do ângulo que estava, encaixada sob um
de seus braços, só dava para vê-lo de perfil. O maxilar bem-marcado dele se
moveu de uma forma que achei estranhamente atraente e um segundo depois
ele se afastou para sinalizar:

— Ela acha que você é minha prima e eu respondi que éramos amigos
de infância e agora estamos namorando.

Eu fiquei estática, processando as informações.

— Por que você disse isso?

— Porque é divertido. Nunca pensou em inventar histórias para o


próprio entretenimento? É inofensivo, Eve. Às vezes eu digo que vim de

Frostblues.

— Onde fica Frostblues? — perguntei, confusa. Nunca tinha ouvido


falar antes.

— Não sei, eu inventei.

Um sorriso involuntário tomou conta de minha boca e desviei o olhar


para longe quando seus olhos cintilaram em minha direção. Afastando-me de
Hunt, deixei com que ele terminasse de se resolver com a recepcionista e me

aproximei de um espelho no canto do cômodo. As bordas eram grossas e


douradas, parecia ser em aquele estilo vitoriano. Girei nos meus calcanhares e
roubei um alcaçuz e depois outro.

Quando estava prestes a mergulhar minha mão no pote de vidro e pegar


o terceiro, Hunt fechou os dedos sobre meu pulso, fazendo-me tomar um
susto. O encarei com o cenho franzido. Ele mexeu os lábios, dizendo
"Roubando, Eve?". Rolei os olhos e enfiei um alcaçuz em sua boca, calando-
o. Ele franziu as sobrancelhas, mas o mastigou.

— Não roubei, estava aqui para qualquer um pegar. — Sinalizei.

No próximo segundo, um homem tatuado da cabeça aos pés atravessou


a sala e falou algo. Hunt sinalizava cada palavra dita. A conversa breve foi
mais ou menos "Outro piercing?", "Você sabe que não resisto", "Sei que não.

Vamos lá para sala. É sua amiga?" e a resposta que me deixou chocada:


“Minha namorada". Dei um cotovelada nas costelas de Hunt em repreensão.

Ele me ignorou e disse que o cara tatuado se chamava Will. Will nos
levou até uma sala vazia e bem montada. Era profissional e cheirava a tinta e
couro. Ajeitei as mangas da camiseta fina de botões e cruzei os braços em
frente ao peito, observando o homem colocar um par de luvas.

Hunt foi primeiro, até porque já estava acostumado. Ele colocou uma
argola prateada no lado esquerdo do nariz que o deixou três vezes mais

bonito e atraente. Estava quase fugindo quando Will sinalizou para que eu me
aproximasse e sentasse na cadeira de couro. Hesitante, desabei sobre ela e
fechei os olhos com força, ignorando o olhar de diversão de Hunt sobre mim.

Me encolhi inteira quando o furo foi feito e xinguei mentalmente. Um


momento depois abri as pálpebras e uma lágrima solitária escorreu por minha
bochecha. Meu nariz começou a latejar e pisquei algumas vezes, levantando-
me e passando o dorso da mão no rosto, limpando o rastro úmido.

Ao contrário de Hunt, meu piercing tinha sido feito do lado direito e era
uma pedrinha de diamante bem sofisticada. Me encarei no espelho que Will
empurrou na minha frente e me surpreendi com o resultado. Hunt estava me
fitando com um olhar estranho. Ele se aproximou muito de repente e Will
saiu da sala, entendendo como uma deixa.

O dedo indicador de Hunt encaixou abaixo de meu queixo e ele o


empurrou para cima, inclinando meu rosto em um ângulo em que ele pudesse
analisar o piercing melhor. Estremeci pelo contato repentino e me afastei um
segundo depois.

— Ficou ótimo. — Hunt sinalizou um momento depois, o rosto neutro,


como se quisesse quebrar a tensão esquisita.

Não disse nada, então ele só afundou as mãos nos bolsos da calça jeans

e maneou a cabeça em direção a porta. Nós voltamos pelo corredor até a


recepção. Na hora de pagar, Hunt passou minha parte em seu cartão também
antes que eu pudesse protestar, evitando fazer contato visual comigo para que
eu não pudesse sinalizar.

Tremi quando saímos do estúdio, a temperatura tinha caído


consideravelmente. Hunt e eu entramos no carro e automaticamente estiquei a
mão em direção ao ar-condicionado. Dei as chaves para ele, que começou a

dirigir um momento depois. Quando chegamos no prédio, me despedi de

Hunt, porque iria para o apartamento de London. Ele me deu tchau e


abandonou o veículo e eu pulei para o banco do motorista.

Cerca de vinte minutos depois, eu estava no arranha-céu luxuoso em


uma das partes mais nobres de Massachusetts e dentro do elevador. Já era

conhecida na portaria, então não tive problemas. Mandei uma mensagem para
London avisando que estava do lado de fora e ela apareceu na porta um
momento depois.

Estava vestindo um suéter cashmere caramelo e uma calça jeans


branca, além de uma echarpe elegante no pescoço. Se eu não conhecesse
London e não soubesse que ela fazia pedagogia, eu concluiria que era uma
supermodelo ou cursava moda. Seu gosto para roupas era ótimo e a garota
tinha um closet infinito que ocupava um cômodo inteiro.

Adentrei no lugar quando ela me deu passagem. O apartamento de


London era super chique e ocupava um andar inteiro. Eu vinha de uma
família de situação financeira consideravelmente boa. Nunca me faltou nada.
London estava na pirâmide da sociedade, seus pais eram multimilionários
donos de uma linha de hotéis cinco estrelas famoso no país inteiro.

— O que é isso no seu nariz? — London sinalizou, depois de me


encarar fixamente por alguns momentos.

— É um piercing.

— Adorei. Nunca imaginei que você fosse fazer qualquer coisa do tipo.
Você parece aquelas garotas imaculadas que os pais exibem como troféus.

Senti minhas bochechas arderem, eu meio que era mesmo.

— O que aconteceu? — questionei, London tinha enviado uma


mensagem que dizia S.O.S (nosso código de emergência um pouco óbvio).

Sentei-me no enorme sofá cinzento em frente a lareira. Acho que dava


para sentar um time de hóquei neste sofá, de tão comprido que era.

London tomou o assento à minha frente, na poltrona de couro imensa


reclinável, sentado como se fosse a Cleópatra. Ela encheu duas taças de vinho
e empurrou uma em minha direção sobre a mesinha de vidro antes de

começar a sinalizar.

— Quero me mudar para Paris.

Eu quase engasguei enquanto bebericava o vinho. Passei o dorso da


mão sobre os lábios e pousei a taça no piso de mogno perto de meus pés antes
de me endireitar.

— O quê? Como assim?


London soltou um longo suspiro, ajeitando a gola de seu suéter antes de
mover as mãos e dizer:

— É, Eve. Paris. França, sabe? Lá tem caras bonitos e é basicamente


um epicentro de moda e arte. Aquela cidade foi feita para gente como eu.

London tinha um ponto muito bom. Se pessoas tivessem personalidades

de lugares, ela sem sombra de dúvidas seria algo entre Paris e Las Vegas.

— Mas e a faculdade?

— Tem universidades boas lá também, Evelyn. Eu só... sinto que estou


perdendo tempo aqui. Sei que sou jovem e tenho a vida toda pela frente,
mas... eu quero ser professora de moda. Quero poder acordar com a vista da
Torre Eiffel e comer croissants amanteigados pela manhã.

— E o que te prende aqui, então?

— Meus pais. Acho que eles vão enlouquecer se eu disser que vou
largar a Goldring depois de dois anos estudando nela. — Seus ombros
despencaram um pouco e seu semblante foi tomado por frustração. — O que
você acha que eu devia fazer?

— A questão não é o que eu acho, London. É o que você acha. Se você


se sente assim e acha que pertence a Paris, você devia contar para seus pais e
ver a reação deles. Viver de especulações é perda de tempo. Você tem que
saber a real opinião deles. Vou apoiar qualquer decisão que você tomar. —
Sinalizei, sendo completamente honesta.

— Obrigado, Eve. É por isso que eu te amo, você sempre tem o


discurso bonitinho e motivacional pronto. — Um sorriso se puxou em seus
lábios. — Vou falar com meus pais semana que vem. Acho que ainda dá
tempo de participar do ano letivo.

Caramba, na próxima semana. Tentei esconder a onda de melancolia


que tomou conta de mim, porque eu amava London e quando ela partisse, eu
perderia minha melhor amiga. Mas escondi bem a emoção porque ela estava
se encontrando, e estava feliz.

Nós acabamos a noite bebendo o vinho que devia ter custado uns
novecentos dólares enquanto ela me mostrava fotos de quando tinha
dezessete anos no celular na última vez que tinha ido para Paris, em um

verão. Parecia feliz e eufórica em todas as fotografias. Concluí que London


pertencia mesmo à França.
A escola hoje estava pouco menos agitada e barulhenta. Talvez fosse

porque lá fora estivesse chovendo forte e os pais não quiseram enviar seus
filhos para cá durante um temporal. Fechei alguns botões a mais do casaco
fino que estava usando e me repreendi mentalmente por não ter posto uma
meia-calça por baixo da saia lápis azul royal. Agora eu estava tremendo de
frio feito uma idiota.

Continuei olhando as oito crianças de cima e marcando presença em


uma prancheta. Quando terminei, dei uma conferida a mais para me certificar
de que estava tudo certo. Já tinha pegado o nome de todo mundo a esta altura
do campeonato, mas havia dois garotos que eu sempre confundia por conta de

terem sobrenomes parecidos.

Fechei a tampa da caneta e voltei a me sentar. Minha cadeira ficava ao


lado da mesa da Sra. Emma — que neste momento estava passando uma
lição no quadro negro enquanto os alunos copiavam disciplinadamente.

Alguns minutos mais tarde, senti um toque leve em um de meus


ombros.

— Eve. — Emma sinalizou, depois que lancei um olhar para cima. —


Você se importa em checar Molly? Faz algum tempo desde que ela foi até o
banheiro.

Assenti e me coloquei de pé. Lancei um olhar ao redor. A maioria das


crianças já tinham terminado a tarefa e estavam com carrinhos ou bonecas em

mãos. Aquele era dia do brinquedo e as crianças tinham permissão de trazê-


los de casa. Era estranho que Molly não estivesse ali porque eu já vinha
observando seu comportamento nos últimos dias e ela parecia só uma garota
mais reservada, então parei com a atenção exagerada, mas agora, percebendo
que eu tinha deixado um detalhe crucial como sua ausência passar, me senti
arrependida.
Quando atravessei a porta dos banheiros das meninas, observei a
sequência de cabines. As três primeiras estavam abertas, a última fechada.

Aproveitando que não tinha mais ninguém no banheiro, ajoelhei-me no piso


frio que cheirava a desinfetante e fitei o par de tênis brancos de Molly
balançando para frente e para trás pelo vão abaixo da porta.

Ela não tinha perca de audição completa, ouvia cerca de vinte por cento

em cada ouvido com a ajuda dos aparelhos auditivos. Bati com um pouco de
força na porta da cabine, esperando que ela escutasse as pancadas ou as
sentisse. Um momento depois, a cabine foi aberta de maneira receosa e lenta.
Molly surgiu de pé em minha frente, os olhos assustados.

Abaixei-me para que ficasse nivelada a ela. Molly recuou um passo


instintivo para trás e eu comecei a sinalizar antes que ela resolvesse bater à
porta no meu rosto.

— Oi. Eu me chamo Evelyn.

Sabia que ela já estava ciente disso porque a Sra. Emma havia me
apresentado no primeiro dia que me anunciou como sua ajudante. Era
diferente eu mesma me apresentar para ela. Queria ganhar confiança, que ela
me visse como uma boa amiga.

— Meus amigos me chamam de Eve — acrescentei, diante de seu


silêncio.

Molly continuou sem sinalizar e parada na minha frente como se


alguém a tivesse congelado. O único sinal de que ela ainda estava ali era o
movimento sutil de seu peito subindo e descendo e os olhos piscando.

— Agora é uma péssima hora para se esconder no banheiro. Todo

mundo está se divertindo na sala. Eu senti sua falta por lá.

— Sentiu a minha falta? — Molly moveu os lábios de uma forma tão


lenta e hesitante que foi fácil de lê-los. A minha nova grade com aulas extras
de leitura labial estava ajudando também.

— É claro que sim. — Sinalizei em resposta. Houve uma pausa


enquanto ela parecia assimilar as palavras. — O que está acontecendo,
Molly?

Ela levou longos momentos para sinalizar e aguardei pacientemente.

— É que as outras crianças têm brinquedos de verdade. — Ela pegou


uma boneca caída aos seus pés feita de pano que eu só tinha me dado conta
naquele momento. Os cabelos eram feitos de lã e os olhos de botões. Era
simples, mas parecia ter tido todo um cuidado artesanal atencioso. Havia até
mesmo um bordado escrito "Sky" no vestido da boneca, indicando que Molly
a tinha nomeado.
Meu coração se partiu um pouquinho naquele momento.

— Ei, quem foi que disse que não é um brinquedo de verdade? É a


boneca mais deslumbrante que eu já vi.

Os olhos de Molly iluminaram, mas ela murchou no próximo momento


e deixou com que a boneca escapasse de suas mãos e caísse no chão outra

vez.

— Foram as garotas.

Soltei um suspiro meio chocado e pesaroso. Crianças eram bem difíceis


de lidar, eu só não esperava que teríamos conflitos aqui. A turma era agitada,
mas parecia ser bem tranquila na questão de convivência.

— Quais garotas?

Molly desviou o olhar para longe e não insisti. Me levantei e peguei a

boneca do chão, depois pousei uma das mãos no ombro de Molly e a guiei de
volta para a sala de aula. Fiquei na soleira observando-a traçar um caminho
até sua mesa no fim do cômodo enquanto segurava Sky entre os punhos. Fitei
com atenção os movimentos da turma. Até que Erica, uma garota que sempre
usava tiaras, disse algo para um grupo de outras três meninas e elas todas
lançaram olhares estranhos para Molly em seguida.

Eu já sabia como resolveria aquilo.


Quando cheguei em casa era pouco depois de cinco horas. Enviei uma

mensagem para Sean, perguntando se ele viria no dia seguinte, sexta-feira,


para o Chuseok — um festival coreano que eu não perdia por nada. Meu pai
fazia após termos nos mudado e eu sempre dava um jeito de celebrar aqui em
Massachusetts. Era um feriado que durava três dias lá na Coreia. Parecia o
Dia de Ação de Graças, só que era mais divertido. Chuseok era uma tradição
para agradecer aos nossos antepassados pela boa colheita. Lembro-me de que
minha mãe sempre cantava para gente na primeira noite de lua cheia.

Quando a tela de meu celular iluminou e Sean respondeu com um


"sim", o enfiei no cós de minha calça e amarrei os cabelos no topo de minha

cabeça. Eu e meu irmão estávamos meio distantes depois que mandei ele ir
embora de minha casa. Não pedi desculpas e nem ele. E por mais que eu
ainda estivesse chateada, não podia deixar de convidá-lo para o Chuseok.
Fazia mais de oito anos que não tínhamos comemorado-o juntos. Chamei
London também, mas ela disse que não poderia vir porque ia estar na casa
dos pais. Então seria apenas Sean e eu.
Abri a porta do apartamento depois de pegar as chaves do carro, passei
aqui só para trocar a sandália de cinco centímetros por um par de All Star

confortáveis e ir até o mercado. Como se estivesse prevendo que eu estava


saindo, Hunt apareceu do outro lado do corredor bem na hora em que fechei a
porta atrás de mim.

Seus olhos se conectaram aos meus e ele me deu um daqueles

escrutínios longos e pessoais. Um cigarro pendia em seus lábios e eu


instantaneamente franzi o nariz. A sombra de um sorriso atravessou sua boca.

— Oi. — Ele sinalizou. — Vai sair?

Não respondi, ao invés disso, dei um passo em direção à escadaria.


Hunt se enfiou no meio do meu caminho, o cenho franzido em um quê de
preocupação e confusão.

— Ei, o que foi? Você vai me ignorar agora?

— Vou falar com você depois que apagar essa coisa.

Ele jogou o cigarro no chão imediatamente e o esmagou sob a sola do


sapato.

— Oi. — Finalmente sinalizei. — Estou indo ao mercado. Só isso.

— Que coincidência, eu também. Vamos? — Hunt questionou, as


sobrancelhas arqueadas. O brilho lúdico presente em seu olhar me disse que

ele não estava indo para o supermercado antes.

— Sério, Hunt? — Troquei o peso de uma perna para a outra.

— Sério, Evelyn.

— Você não vai desistir, não é?

O rosto dele continuou impassível.

— Não.

— O que você quer, Hunt? — perguntei, pegando-o de surpresa. O


canto de seus lábios levemente erguido cedeu para baixo e sua boca se
transformou em uma linha reta.

— Como assim? — Um vinco profundo em formato de "V" tomou


conta do espaço entre suas sobrancelhas. Agora ele parecia uma daquelas

crianças insistentes quando eram contrariadas.

— É só que não entendo onde você quer chegar. Nós nos beijamos e
não dá para fingir que isso não aconteceu. Eu te beijei porque achei que
depois disso você largaria do meu pé, porque é assim que caras como você
agem, não é? Vocês são apenas o caso de uma noite. E eu posso lidar com
isso. Posso lidar com o momento em que você vai embora e nunca mais me
procura novamente. Só que esse roteiro que estamos traçando é diferente e

não sei como protagonizá-lo.

Hunt pareceu ficar reflexivo e até mesmo um pouco frustrado. Ele


passou uma das mãos pelo cabelo preto, agitando-os, e depois começou a
sinalizar:

— Eu também não sei, Eve. Só estou deixando as coisas acontecerem.


Não vou mentir, eu quis você desde o primeiro momento em que te vi. Não
entendo por que me sinto tão atraído por você, mas eu quero te beijar na
maior parte que estamos juntos. Já entendi que você não quer nada mais que a
minha amizade, não faço o tipo romance mesmo. Então estou tentando ser só
seu amigo, mas queria que pudéssemos chegar a um acordo.

Arqueei uma das sobrancelhas. Um acordo, traduzindo, viraria sexo


casual sem compromisso.

— Então deixa eu ver se entendi bem, você queria meio que uma
amizade que te beneficiasse?

— Não. Eu queria uma amizade que beneficiasse a nós dois, Evelyn. —


Seus olhos brilharam em minha direção e senti meu rosto pegar fogo.

— Isso não vai acontecer. — Eu sinalizei.

Hunt assentiu.
— Eu sei.

— É sério, não tem a menor possibilidade. — Meu olhar oscilou entre


sua boca e seus olhos.

— Seria terrível — ele concordou, devolvendo-me o escrutínio


selvagem.

— Uma péssima ideia — acrescentei, e meu coração começou a


trovejar no peito.

Hunt avançou um passo para frente, as íris presas em meu rosto com
atenção. Eu devia ter recuado para trás, mas não recuei, o que fez Hunt
entender como uma permissão. Talvez fosse uma permissão. Sua boca se
chocou contra a minha violentamente e ele enroscou os dedos na parte de trás
de meu cabelo, trazendo-me para junto de seu peito. Sua língua invadiu meus
lábios e aquele piercing maldito fez com que uma corrente elétrica

atravessasse meu tronco.

Fechei meus punhos em sua camiseta, trazendo-o mais para perto. Seus
lábios macios moldavam os meus com maestria. Parecia terem sido feitos
para encaixarem-se. Contive o gemido no fundo da minha garganta quando
ele puxou meu lábio superior entre os dentes. O próximo beijo foi em um
ponto abaixo do meu maxilar. O outro na clavícula, na pele exposta que a
gola canoa do casaco deixava à mostra. Seus lábios se moveram lentamente

no meu pescoço, ali era uma área supersensível e entreabri a boca, minhas

terminações nervosas pareciam prestes a entrar em colapso.

Empurrei meu quadril contra o seu, necessitada por contato. Um sorriso


torto se puxou nos lábios de Hunt e ele deu um daqueles beijos super calmos
e breves em minha boca. Quase soltei um barulho em protesto, mas, como se

pudesse saber o que eu precisava, sua mão que estava em minha cintura
escorregou para minha barriga e então foi um pouco mais para baixo, até que
estivesse entre minhas pernas e sob a saia. Meu peito parou, prendi a
respiração nos pulmões e o fitei com expectativa.

Sua boca se moveu e ele disse "A última vez" em voz alta.

Um dedo seu me penetrou e soltei o ar com força entre os lábios. A


mão livre moldou uma das laterais do meu pescoço e Hunt a encaixou sob

meu queixo. Meu corpo tremeu quando ele inseriu outro dedo. Os
movimentos começaram lentos e torturantes. Ele estava brincando comigo. O
puxei mais para perto e ele riu em resposta. Quando ele aumentou a
velocidade, o rosto ficou sério de repente. Hunt parecia atento a cada reação
minha, como se quisesse gravá-las bem. A mão que estava sob meu queixo
deslizou um pouco para cima e seu polegar mergulhou dentro da minha boca,
pressionando minha língua.
O ponto entre minhas pernas latejou mais ainda e senti meus joelhos
fraquejarem. Um "chupa" escapou por seus lábios e o obedeci, raspando

meus dentes em seu polegar dentro de minha boca no processo. Hunt


acrescentou o terceiro dedo em recompensa e soltou um "linda". O prazer se
misturou com um pouco de dor e quando um de seus dedos rasparam em meu
clítoris, estremeci. Tive que apertar minhas mãos nos ombros de Hunt para

não desabar no chão.

Quando parei de tremer, a cabeça tombada contra a parede e o peito


subindo e descendo rapidamente, Hunt finalmente tirou os dedos de dentro de
mim, os três brilhando com a minha excitação. Observei enquanto ele os
levava até os próprios lábios e os chupava. Nem tentei esconder o choque no
meu rosto.

— Prova — ele ordenou, um momento depois, sinalizando.

Hunt não esperou por uma reação minha. Ele aproveitou que meus
lábios estavam entreabertos em surpresa para passar a língua entre eles e
alcançar o céu da minha boca, lambendo-o. O meu próprio gostou invadiu
meu paladar. A bolinha de metal bateu em meus dentes no processo. O
contato foi fugaz e durou uns três segundos. Ele se distanciou e me deu um
sorrisinho cheio de segundas intenções.

— Acho que eu preciso de três banhos gelados e você ir no mercado.


Não posso te acompanhar assim. — Ele apontou para a ereção visível através
da calça jeans. — A gente se vê, Eve.

Então ele girou nos calcanhares e entrou no apartamento, deixando-me


sozinha no corredor tentando entender que diabo tinha acontecido ali.
Engolindo em seco e envergonhada, troquei de calcinha antes de ir para o
estacionamento, sentindo-me fraca por ter cedido ao desejo. Prometi a mim

mesma que tinha sido a última vez, como Hunt também tinha tido no
corredor antes de começar a me tocar.

Nós dois sabíamos que era uma mentira tola.


Com a respiração entrecortada e o coração trovejando em meu peito,

terminei sozinho o que eu e Evelyn começamos no corredor. Os jatos de água


gelada do chuveiro não eram eficazes na tarefa de acalmar meus ânimos.
Precisei recorrer a palma de minha mão pela milésima vez, sentindo-me mais
patético do que nunca.

Depois que terminei, enrolei uma toalha em volta da cintura e fui até
meu quarto, pegando roupas limpas no armário. Tentei corrigir algumas
coisas da faculdade, mas minha pele ainda estava pegando fogo. Apertei meu
punho com força ao redor da caneta e fechei o livro.

— Merda — rosnei uma sequência de palavrões para ninguém em


especial, fitando o interior vazio de meu apartamento.

Forcei-me a limpar os pensamentos e tentar novamente. Depois de um


tempo, começou a fluir. Eve já não ocupava meus pensamentos e estava

dedicado. Eu acho. Sempre dava um jeito de associar algo que lia com a
Evelyn.

Isso durou até que uma batida em minha porta me fez levantar do sofá e
deixar os livros jogados lá de qualquer jeito. Eu não tinha concentração para
estudar no momento, de qualquer forma. Quando girei a maçaneta, nem tentei
esconder o choque no meu rosto por encontrar Evelyn ali, de pé na minha
frente. Fazia mais ou menos duas horas desde que meus dedos estiveram
dentro dela.

Ela parecia compartilhar o mesmo pensamento que eu porque suas


bochechas foram tomadas por um rubor rosado.

— Oi. — Ela sinalizou, parecendo sem jeito.

— Oi. — Sinalizei de volta.

— Daqui a pouco vai acontecer o Chuseok e... — Ela parou


abruptamente o movimento das mãos e depois continuou. — Na verdade, o
Chuseok não está acontecendo aqui. Só na Coreia. Mas eu queria saber se
você não queria aparecer por lá, no meu apartamento... — Eve parecia ter se

esquecido de como se usava ASL. Achei graça. — Você nem deve saber o
que é o Chuseok, não é? Mas eu queria convidar você, de qualquer forma.
Achei que seria falta de educação não vir até aqui. Minha mãe sempre incluía
a maior quantidade de pessoas que conseguia e este ano está meio vazio.

Ela parecia prestes a entrar em colapso. Precisei de alguns momentos


para absorver todas as informações.

— Me desculpa, quando fico nervosa digo muitas coisas.

Seu pescoço também começou a ficar vermelho e tentei não rir, porque
aquilo só a deixaria ainda mais nervosa e sem graça.

Um sorriso torto se puxou no canto de minha boca.

— Você está me convidando para um encontro no seu apartamento,

Evelyn?

Ela pareceu ficar horrorizada com a possibilidade e se apressou em


sinalizar:

— Não é um encontro. Meu irmão vai estar lá também. Seremos nós


três.
Ergui uma das sobrancelhas.

— Acho que seu irmão não vai ficar muito feliz comigo lá.

O irmão de Evelyn tinha sido um babaca naquele dia, só que eu o


entendia. Ele a protegia e se certificava de que ela não iria se machucar. Eu
não era bom para Eve, mas era egoísta. Queria o que não podia ter, e a queria.

Era o dever dele mantê-la longe de otários como eu, por isso não fiquei com
raiva e nem nada do tipo. Me tranquilizava saber que ela tinha alguém que
realmente se importava.

Evelyn trocou o peso de uma perna para a outra daquele jeito que ela
fazia sempre que estava perplexa sobre algo e seus lábios se pressionaram em
uma linha reta. Um quê de aborrecimento e culpa se misturou em seu olhar.

— Me desculpa por Sean. Ele não é um idiota, só estava com ciúmes.

— Está tudo bem. — Fiz uma pausa. — Me conta sobre o Chuseok. —

Fingi que não sabia o que era.

A expressão inteira da Eve iluminou como se fosse manhã de Natal.


Dava para ver que ela adorava o feriado do país onde nasceu.

— É uma tradição popular lá. Nos reunimos em família e comemos,


para celebrar a boa colheita. É basicamente um Dia de Ação de Graças, só
que bem melhor. Tem comidas típicas e danças. Eu gostava muito. Não vai
ser como na Coreia, mas é importante para mim, e se você resolver aparecer
lá, vai ser bem legal. É isso que os amigos fazem, não é? — Eve mordeu o

lábio inferior, um pouco receosa.

— Obrigado por me convidar, Eve. Vou estar lá.

Ela deu um passo para trás, assentindo e sinalizou:

— Daqui uma hora.

— Daqui uma hora — concordei.

Uma hora depois, eu estava em frente a porta de Evelyn. Apertei a

campainha algumas vezes e esperei. Dois segundos depois a porta se abriu e


precisei de alguns momentos para processar a presença de Eve na minha
frente.

Ela estava usando um vestido tradicional coreano. A parte de cima


parecia um casaco branco de botões com ramos de flores bordados nas
mangas. A saia rodeada azul celeste era longa e quase roçava no carpete.
Havia um laço que prendia seus cabelos em um rabo de cavalo no topo de sua
cabeça da mesma cor e Eve tinha deixado duas mechas soltas, emoldurando

cada um dos lados de seu rosto. Ela estava tão bonita que me achei
desleixado na minha camiseta branca sem estampa e jeans casuais.

— Você está maravilhosa — as palavras deixaram minha boca antes


que eu pudesse impedi-las.

O rosa perolado habitual cobriu seu rosto, sinal de que ela


compreendeu o que falei em voz alta. Uma sombra de sorriso pairou em seus
lábios.

— Obrigada. — Ela sinalizou, dando-me passagem em seguida.

O interior de seu apartamento cheirava muito bem. Os temperos que


flutuavam no ar fizeram meu estômago vibrar.

Evelyn parou ao meu lado no corredor estreito e nós dois viramos para

nos encarar em sincronia, de forma que nossos peitos estavam quase se


roçando. Seus olhos analisaram algumas partes de meu rosto vagarosamente.
Trinquei os dentes quando eles pararam em meus lábios e ficaram ali por
cerca de dois ou três segundos.

— Preciso checar algo no forno. — Ela sinalizou, desviando o olhar


para os próprios pés e se distanciando um momento depois.
Arqueei as sobrancelhas quando encontrei Sean sentado no sofá com
cara de poucos amigos. O olhar dele estava fixo em mim como se quisesse

me estrangular e fiz menção de seguir Eve para a cozinha e ajudá-la no que


precisasse, mas a voz grave dele ecoou autoritária pelo cômodo:

— Senta.

Abri um sorriso torto.

— Oi, cara. É bom ver você novamente.

Sean percebeu o tom de ironia em minha voz porque sua expressão


ficou ainda mais dura. Os dedos dele apertavam tão forte uma garrafa de
cerveja que os nós estavam brancos. Parecia que ele queria estourá-la em
minha cabeça e depois me perfurar com os estilhaços que sobrassem.

— Pega uma cerveja — ele acrescentou, tentando ser um pouco gentil.


O rosto dele, no entanto, continuou sério.

Cedi, sentando-me em uma poltrona, bem longe de seu alcance. Peguei


uma cerveja do engradado e alisei o rótulo sob meu polegar, mantendo meus
olhos nos dele. Sean não fugia de contato visual e eu também não. Me
reclinei contra o estofado, descansando as costas.

— Não achei que ela fosse chamar você para o Chuseok. É coisa de
família — Sean disse, perplexo.
Ele definitivamente não estava feliz com a minha presença.

— É, nós somos amigos — respondi, franzindo um pouco as


sobrancelhas, não sabendo exatamente onde ele queria chegar.

Foi a vez dele de abrir um sorriso torto. Ele deu um gole longo na long
neck.

— Amigos? — perguntou-me.

— Amigos — concordei.

— Fala a verdade. Você transou com a minha irmã, não transou?

Eu quase engasguei com o líquido amargo enquanto dava um gole. Que


tipo de pergunta era aquela?

— Não — retruquei meio seco.

— Mas você quer — ele apontou acusatoriamente.

— Eu a respeito — senti necessidade de dizer, por algum motivo. —


Além do mais, não é da sua conta.

— Não estou nem aí, Finley. — Ignorei a parte de que ele sabia meu
sobrenome sem eu ter dito. — Se você a machucar, juro por Deus que venho
atrás de você. Eu vou te machucar tanto, cara. Esse seu rostinho bonito vai
ficar irreconhecível e você não vai ter a mesma facilidade para entrar nas
calcinhas das garotas. Eu conheço esse seu tipo.

— Eu não vou machucá-la. — Meu sangue estava começando a ferver.


Respirei fundo. — Escuta, entendo que você só quer protegê-la, mas você tá
sendo um otário e envergonhando a Eve. Ela não gosta do seu
comportamento de homem das cavernas.

— Você está pensando só com a cabeça debaixo — Sean retrucou


secamente.

— Você não sabe de nada sobre a minha relação e da Eve. A gente é só


amigo e estamos bem com isso. — Aquela era uma das maiores mentiras que
já disse. — Não vou pedi-la em casamento amanhã, nem em namoro. Não
gosto dela assim.

Ele soltou um riso de escárnio.

— Aham.

Fechei e abri meu punho ao lado de meu corpo discretamente.

Evelyn entrou na sala um segundo depois e agradeci aos céus, porque


não queria continuar tendo uma conversa sobre ela sem que ela estivesse
presente ou não soubesse. Parecia errado.
Seu rosto estava sereno como na maior parte do tempo e sua presença
ondulou feito o mar no cômodo, apagando a chama de fúria que corria em

minhas veias. Ela pareceu causar o mesmo efeito em Sean. Sua expressão
mudou tão drasticamente que ele pareceu outra pessoa sem a expressão
perpétua de raiva e seriedade.

Eles começaram a sinalizar e não prestei atenção. Meus olhos estavam

fixos no perfil de Eve enquanto ela conversava com Sean.

Meu corpo retesou.

Era como se ela transmitisse… paz.

Odiei a sensação.
O clima na mesa não era lá dos melhores e meu irmão estava sendo o

maior contribuinte para aquilo. O rosto dele estava torcido em uma careta
quase imperceptível de contrariedade enquanto eu colocava o prato de Hunt
na mesa e o servia com minibolos, conhecidos como Songpyeon na Coreia.
Eles tinham formato de lua crescente e eram preenchidos com sementes de
gergelim, feijão vermelho e outros ingredientes. O elemento principal do
prato era o pó de arroz.

Puxei minha cadeira em frente a Hunt, que estava sentado ao lado de


Sean — que ocupava a ponta à minha direita, de forma que ele podia
observar a nós dois. A mesa que eu tinha comprado recentemente era

pequena e comprida. Dava para no máximo quatro pessoas e ficava ao lado


da bancada de mármore que dividia a cozinha da sala. Enchi meu copo com
chá doce, não era uma tradição do Chuseok, mas eu e meu irmão
adorávamos. Hunt me esperou colocar o primeiro bolinho na boca para

começar a comer também. Sean já tinha terminado o quarto.

— Ficaram bonitos — Sean sinalizou, mastigando. O rosto dele


suavizou quando seus olhos encontraram os meus.

Em resposta, maneei a cabeça em agradecimento.

Era uma tradição antiga de família fazer Songpyeon na véspera do


Chuseok. Na Coreia todo mundo costumava caprichar no formato do bolinho
e o decorava de variadas formas. Usavam corantes, ramos de flores para

enfeitá-los e os arrumavam em camadas de folhas de pinheiro nos pratos.


Quanto mais bonito ele se parecesse, mais bela seria a sua futura filha. Meu
pai gostava de brincar dizendo que era por conta dos Songpyeon que eu era
tão bonita. Minha mãe os fazia como ninguém jamais fez. Ela tinha o jeito
para a culinária.

— Como está sendo o estágio? — meu irmão questionou-me, fazendo


questão de manter uma conversa comigo como se Hunt não estivesse ali
conosco.

Me remexi no meu assento, meio desconfortável. Ergui um dos ombros.

— É incrível. Eu amo estar entre todas as crianças. Só que estou tendo


alguns problemas. Parece que estão fazendo bullying com uma das garotas da
turma.

— Crianças são complicadas — foi tudo o que Sean disse antes da


conversa morrer.

Lancei um olhar para Hunt. Ele estava bebendo um pouco do chá doce.
Seus olhos já estavam presos em meu rosto então fiquei meio surpresa ao
pegá-lo me encarando. Ele piscou inocentemente e colocou o copo sobre o
tampo da mesa.

— Aposto que você foi uma criança difícil. — Eu sinalizei para Hunt,
em uma tentativa de incluí-lo na conversa.

— É, acho que sim. — Ele fez uma pausa. — Só que eu fui um


adolescente bem pior. — Um sorrisinho torto tomou conta do contorno de
seus lábios.

Fiz um escrutínio longo por seu rosto. Podia imaginar ele com
dezessete anos, partindo mais corações do que poderia contar com o meio
sorriso sacana, jaqueta de couro e coturnos.
— Aposto que sim.

— Quais eram suas ocupações? Banda de porão e sexo desleixado? —


Sean sinalizou, ao mesmo tempo em que disse em voz alta.

Hunt não pareceu se afetar e eu franzi as sobrancelhas pela escolha de


palavras do meu irmão. Aparentemente ele estava se esforçando para ser o

maior babaca do planeta terra.

— Mais ou menos isso. — O descaso de Hunt pareceu enfurecer meu


irmão e ele soube, porque seu sorriso cresceu.

E lá vamos nós outra vez…

— Sei. — Sean devolveu um sorriso torto e ácido. — Você foi um


daqueles rebeldes porque queriam atenção do pai, não é? — Meu irmão não
esperou por uma resposta e continuou: — O que aconteceu? Ele não quis
jogar futebol americano com você? Ou, espera, você ficou insatisfeito quando

ele sugeriu que você cursasse uma faculdade da Ivy League com o dinheiro
que ele guardou em uma poupança especialmente para isso a vida toda?

Sean tinha acabado de cutucar uma ferida de Hunt. Soube daquilo pelo
jeito que seus ombros ficaram enrijecidos e ele se endireitou na cadeira, o
rosto ficando um pouco sombrio e as mandíbulas travadas.

— Eu não tive pai. — Hunt sinalizou, com uma calma letal. Um


sentimento frio tomava conta de seu rosto enquanto ele estava sério, os olhos
fixos em Sean. — Nunca precisei de um. Minhas duas mães foram ótimas

comigo e supriram qualquer necessidade da baboseira de figura paterna.

Senti vontade de evaporar feito fumaça. Joguei o meu garfo


bruscamente sobre o prato e levantei-me em um solavanco, puxando a barra
do vestido para não tropeçar na saia comprida. O hanbok de minha mãe era

tudo o que havia me restado dela e eu o guardava e o usava em todo Chuseok


desde que ele passou a servir em mim. Só precisei fazer alguns ajustes no
comprimento dele, porque eu havia crescido mais do que o esperado. Estava
tão furiosa com Sean que nem me importei se tinha feito uma cena quando
desabei em minha cama após bater à porta do quarto com força. Senti a
vibração das paredes quando elas estremeceram antes de encontrar a maciez
do colchão abaixo de mim.

Levou vinte segundos para que Sean aparecesse na soleira de minha

porta. Sem pensar muito, joguei meu travesseiro em sua estatura larga e alta.
Ele bateu contra seu peitoral e caiu no chão. Não tinha feito nem cócegas e eu
sabia daquilo, mas me senti um pouco melhor, então joguei outro nele, só
pela satisfação de ver seu rosto torcido em uma careta de descrença e os olhos
arrependidos.

— Desculpa. — Ele sinalizou, parecendo mesmo honesto.


— Você está estragando o Chuseok e você sabe o quanto ele importa
para mim. É a forma de eu me sentir conectada com a mamãe. É uma das

poucas memórias que tenho dela, Sean. — Meus ombros despencaram e


soltei um suspiro de frustração.

Ele se aproximou até que estivesse sentado ao meu lado no colchão,


então enlaçou um dos braços ao redor de meus ombros e me puxou até que

minha cabeça estivesse descansando em seu peito. Cedendo à sua forma de


dizer desculpas sem realmente dizer, o abracei de volta.

Voltamos para a sala e, ao contrário do que eu esperava, Hunt


continuava em meu apartamento. Agora estava sentado no sofá e com a tevê
ligada.

— Tudo bem entre vocês dois? — Ele sinalizou, parecendo todo


cauteloso.

Assenti, mordendo meu lábio inferior. Observei Sean sinalizar um


pedido de desculpas e depois se sentar ao lado de Hunt. Eles engataram em
uma conversa normal — pela primeira vez — e foi estranho vê-los sem
aquela rixa idiota, mas fiquei contente. Em algum momento, Hunt ficou
sabendo que Sean era da Marinha e pareceu impressionado.

— Aposto que você tem umas histórias legais para contar — meu
vizinho disse em voz alta, sinalizando para que eu entendesse também.

Um sentimento estranho preencheu meu peito ao vê-lo fazendo aquilo.


Foi tão natural que ele nem percebeu, mas significava muito para mim estar
incluída nas conversas também.

— É, tenho. Mas não dá para falar na frente da Evelyn.

Rolei os olhos, passando despercebida por eles enquanto escorava um


dos ombros na parede do corredor.

— Vamos preservar a virtude dela — Hunt concordou, lançando-me


uma piscadela rápida e voltando-se para meu irmão.

Supri um riso no fundo da garganta. Se ele continuasse preservando a


minha virtude me masturbando e me dando aqueles beijos longos com a boca
habilidosa, eu achava que ele tinha outras definições de como uma virtude
podia se manter intacta. Sean desmaiaria se soubesse, mas ele já desconfiava.

Dava para ver no rosto dele. Não era um cara que deixava as coisas passarem
batido.

Sean anunciou que precisava ir embora um momento depois. Ele se


levantou do sofá, puxou-me para um abraço, agradeceu-me pelo Chuseok e
disse que tinha marcado um encontro com uma garota. Arqueei as
sobrancelhas, mas não disse nada. Nunca era nada sério, apenas casos de uma
noite. Depois que meu irmão saiu, despedindo-se de Hunt, fiquei parada feito
uma estátua encarando o meu vizinho nervosamente.

— Está calor aqui, não tá? — Hunt sinalizou. Na verdade, a


temperatura estava bem baixa em Massachusetts. — A gente pode resolver
isso. Posso te ajudar a sair deste vestido e você me ajuda a tirar as calças.

Engraçadinho.

— Nos seus sonhos, Hunt.

Um brilho lúdico dançou em suas íris.

— Eve, se você soubesse...

Senti um rubor tomar conta de minhas bochechas e espalhar pelo meu


pescoço.

Hunt pareceu pensar por alguns momentos.

— Você gosta de gatos? — questionou-me repentinamente, fazendo


com que eu franzisse um pouco as sobrancelhas.

— Gosto. — Dei de ombros.

— E se a gente adotar um gato?

— A gente? — Pisquei rápido.


— É, vamos adotar um gato. Eu gosto de gatos, eles são mais práticos
que cachorros. Tive um gato quando tinha doze anos, o Pringles, só que ele

era bem ciumento. Ganhei um furão e ele foi embora no dia seguinte. Fiquei
arrasado por duas semanas e o procurando por todo lugar na vizinhança. Aí
descobri que o Pringles estava na casa em frente à minha. — Ele começou a
balançar a cabeça negativamente. — Ele era um baita ingrato.

Pressionei os lábios para não sorrir. Hunt me contando sobre o gato e


atribuindo aquelas características ao animal era engraçado.

— Você deu o nome dele de Pringles. — Foi tudo que consegui


apontar.

— É, eu o achei dentro de uma lata de Pringles na rua. Eu salvei ele,


Evelyn! Ele só era um filhote e provavelmente iria ser levado com os sacos
de lixo ou ter virado comida de algum vira-lata. De qualquer forma, iria

acabar morto. Eu o resgatei. Nós dois tínhamos isso em comum, sabe? Rolou
uma conexão. Eu, pelo menos, me sentia conectado com ele. Nós dois fomos
deixados para morrer na sarjeta e adotados por alguém que estava disposto a
nos amar logo depois. Eu achava que éramos iguais.

Hunt falou que havia sido deixado para morrer na sarjeta com tanta
naturalidade que nem levei a sério. Devia ser apenas uma forma de expressão,
certo? Contive a vontade de perguntá-lo sobre isso, porque parecia um
território meio perigoso. Fiz bem o trabalho de esconder a preocupação.

— O que aconteceu com o Pringles? Você o pegou de volta? —


Continuei no assunto.

— Eu até tentei. Fiquei furioso naquele dia, Eve. Ele estava na casa do
inimigo. O garoto que morava na frente costumava me esnobar pelo fato de

eu ter sido adotado, ainda mais por duas mulheres.

— Nossa, que otário. Me diz que você deu um soco nele ou algo do
tipo.

— Eu dei um soco nele. — Estava prestes a comemorar quando ele


acrescentou em seguida: — Depois ele me deu uma surra.

— Meu Deus, Hunt. — Murchei. — Sério?

— É, ele era dois anos mais velho que eu e quinze centímetros mais

alto. Toquei a campainha de sua casa por três minutos inteiros depois de ter
visto Pringles no parapeito de uma das janelas do segundo andar. Aí ele
apareceu e eu só soquei o nariz dele. Depois ele devolveu o soco. E mais
outros. Um chute também.

Estremeci de brincadeira, como se estivesse sentindo na pele o que ele


sentiu naquele tempo. Um sorriso torto se puxou no canto de sua boca e ele
pareceu relaxar ainda mais no sofá.
— Não recuperei Pringles e tive que inventar para minhas mães que caí
de bicicleta. Ele disse que daria meu gato para o cachorro raivoso de uma de

nossas vizinhas comer caso eu abrisse a boca.

Meu queixo caiu.

— Que ser humano horrível. Como ele pôde te ameaçar assim?

Hunt soltou uma risada completamente silenciosa para mim. Achava


que ele estava rindo do meu rosto contrariado.

— Ele estava blefando. Ele amava o Pringles tanto quanto eu. O idiota
só queria me calar.

— Isso não o torna menos idiota. — Lembrei-o.

— Não, não torna. — Hunt fez uma pausa. — O que você me diz sobre
o nosso gato?

— Nosso gato?

— É, o que a gente vai adotar.

— Você é bem cheio de si, não é? — questionei-o.

— Sim ou não? — Ele me ignorou. — Ele vai precisar de uma mãe.


Mães são importantes.
O rosto dele estava tão sério que parecia que estávamos discutindo
sobre um bebê de verdade.

— Como vai funcionar isso?

— Guarda compartilhada, margarida.

— Você está sendo ridículo.

— Eu sei. — Hunt sorriu. — Ele pode ficar uma semana na minha casa
e uma semana na sua. Essa dinâmica deve funcionar. Quando você quiser
sair, pode deixá-lo comigo. E vou fazer o mesmo, para que ele não fique
sozinho. Exceto quando nós dois estivermos fora, aí ele vai ter que se
acostumar com a solidão mesmo. O que você me diz?

— Tudo bem — concordei, depois de alguns momentos, sem pensar


muito.

— Ok, agora a gente precisa achá-lo. Vem cá. — Hunt deu um tapinha
no lugar vago do sofá ao seu lado e eu arqueei uma sobrancelha.

— Não acho seguro — brinquei. Ou não. Acho que os dois, tinha a


possibilidade das coisas fugirem do nosso controle novamente e eu com
certeza não queria que acontecesse outra vez.

— Então senta em mim. — Seu rosto foi coberto por desdém.


Hunt abriu as pernas daquela forma convidativa e tive um déjà-vu de
nós dois em seu apartamento, banhados na escuridão pela falta de energia.

Meu rosto enrubesceu um pouco pela memória e a afastei para longe,


engolindo em seco.

Rolei os olhos como se o comentário não tivesse me afetado e dei um


erguer de ombros em descaso. Ele precisava entender que tinha que manter as

mãos longe de mim agora e vice-versa. Sentei-me ao seu lado e percebi que
tinha sido um erro no mesmo segundo. Seu cheiro me fez querer passar o
nariz em seu pescoço para inalá-lo, ou os lábios. E o calor corporal que
emanava de sua estrutura quase me fez soltar um ruído baixo e com que eu
pulasse nele. Os pensamentos invadiram minha mente com uma naturalidade
que me deixou espantada. Hunt provocava instintos em mim que faziam com
que eu mesma não me reconhecesse.

Um cutucar em meu ombro me fez me inclinar o rosto para o lado.

Outro erro.

Deparei-me com o rosto de Hunt a menos de um palmo de distância. O


ar quente que ele soltava pelo nariz bateu contra a minha bochecha e prendi a
respiração. Seu olhar pesou sobre meus lábios e incendiou meu corpo. A
curva da boca de Hunt era poética, cheia e um pouco larga, que combinava
com seu nariz reto e perfeito. Ele era uma daquelas pessoas que você olhava
uma vez por um bom tempo e quando ela te encarava de volta, você desviava
o olhar para longe, constrangido demais pela beleza errônea e

desproporcional.

Hunt foi o primeiro a quebrar contato, colocando o próprio celular entre


nós, no meu campo de visão. Desconcertada e o com o coração embevecido
no peito, forcei-me a processar as informações; uma página de adoção de

animais estava aberta no Google e tinha várias fichas de cachorros e gatos


esperando para serem adotados.

Tomei o aparelho de suas mãos e rolei a tela, concentrando-me. Depois


de alguns momentos, lendo as fichas de alguns gatos, cliquei sobre o anúncio
de uma gata chamada Mimosa. Foi amor à primeira vista, um sorriso emergiu
em minha boca e passei as fotos. Sua pelagem era cor de creme, mas ela tinha
diversas manchas pretas espalhadas pelo tronco, de onde devia ter surgido o
nome. Uma de suas patas era grande demais; meio desproporcional com o

restante de sua pequena estrutura. Mas aquilo não me fez recuar, só que algo
se acendesse dentro de mim e me sentisse mais fascinada.

Hunt deu outro daqueles cutucões em meu braço e me virei para


encará-lo.

— Seus olhos estão praticamente brilhando. — Ele sinalizou, um


sorriso torto no rosto.
— Eu quero ela, Hunt. — Empurrei o celular em seu rosto. Ele se
afastou um pouco e cerrou os olhos ao observar a tela. Um vinco profundo se

formou entre suas sobrancelhas.

Ele se voltou para mim, movendo as mãos:

— O que houve com a pata esquerda dela?

Puxei o celular instintivamente para meu peito, como se pudesse


proteger a foto de Mimosa do comentário insultuoso de Hunt e do desvelo
descabido em seu rosto.

Deixei o aparelho em meu colo para retrucá-lo.

— Não fala assim. Parece que você está julgando ela.

— Eu não estou julgando ela, Evelyn.

— Você não vai ser um bom pai. Estou repensando sobre a guarda

compartilhada. Você provavelmente vai fazer maus tratos infantis.

Ele arqueou as sobrancelhas em minha direção, um olhar divertido no


rosto enquanto perscrutava minha expressão séria.

— Você está falando sério?

Assenti com veemência. Um suspiro escapou por seus lábios pela


forma que ele exalou, a boca aberta e os ombros despencando. Hunt se
endireitou no sofá e com o rosto sem vestígios de humor, sinalizou:

— Desculpa, Eve. Eu não queria julgar a Mimosa e nem insinuar que o


que quer que tenha acontecido com sua pata me faria amá-la menos. Prometo
ser um pai cuidadoso e extremamente atencioso enquanto ela estiver sob a
minha tutela. Ela não se sentirá negligenciada e nem menos amada em meu

apartamento. Promessa de escoteiro.

Ele levantou a mão direita com a palma para frente, o polegar pousado
sobre a unha do mindinho e os outros dedos esticados e apontados para cima.

Um riso borbulhou no fundo de minha garganta e o contive, mantendo


a seriedade enquanto batia em continência.

Um sorriso torto se puxou no canto da boca de Hunt e eu me permiti


sorrir de volta naquele momento.

— A Mimosa é polidactilia — expliquei a ele, movendo as mãos.

— Isso quer dizer que ela tem alguns dedos a mais?

— Sim. Legal, não é? — perguntei, meio extasiada.

Antes de ver a resposta de Hunt, destravei seu celular, aproveitando que


não tinha uma senha, no intuito de ver novamente as fotos de Mimosa. Uma
notificação de um número desconhecido chegou bem na hora em que cliquei

na tela para dar zoom, de forma que abri a mensagem sem querer. Foi

inevitável, meu queixo caiu quando um par de peitos tomou conta da tela.

Larguei o celular sobre o sofá como se estivesse pegando fogo e lancei


um olhar para Hunt. Esperei me deparar com um olhar irritado por ter
bisbilhotado — mesmo que não fosse intencional — ou até mesmo

constrangimento, mas tudo que encontrei foi seu corpo tremendo enquanto
ele parecia rir a ponto de hiperventilar.

Quando ele finalmente controlou a crise de risos, teve que enxugar


algumas lágrimas que tinham se formado no canto de seus olhos. Ele pegou o
celular e se levantou, escovando o cabelo para longe do rosto com os dedos.
Seu olhar caloroso encontrou o meu, um sorriso ainda pairava em seus lábios.

— Nossa, Eve, me pergunto o que eu fazia antes de ter conhecido você.

— Sinalizou, todo engraçadinho. Arqueei uma sobrancelha. — Amanhã,


quando você acordar, a Mimosa já vai estar aqui. Preciso me mandar agora.

Ele me deu uma piscadela antes de arrastar os coturnos do meu


apartamento afora. Fiquei observando a porta por alguns momentos e, então,
soltei um suspiro, perplexa.

O que eu estava fazendo?


Busquei Mimosa no centro de adoções para animais logo pela manhã e

depois passei em um petshop para comprar ração e potes. Fui convencido


pela vendedora a levar também uma pelúcia em formato de peixe e outros
brinquedos para gatos. Mimosa estava saltitando pelo corredor do meu
apartamento naquele momento enquanto eu penteava o cabelo em frente ao
espelho do banheiro, a porta aberta enquanto The Rolling Stones explodia no
meu celular sobre a privada.

Peguei o secador, mas desisti logo depois de ver que o adaptador de


tomada não estava plugado, então decidi secar os fios com a toalha. (I Can't
Get No) Satisfaction me fazia me lembrar de quando eu era um adolescente

imprudente que tinha acabado de conhecer o rock. Foi meu primeiro contato
com música e decidi que precisava me tornar um super astro e conquistar
sexo e mulheres. Consegui a última parte, ainda estava trabalhando na
primeira. Antes de me vestir, ainda só com uma toalha enrolada na cintura e o

peito nu, acendi um baseado e dei cinco tragadas antes de atirá-lo no lixo da
cozinha.

Mimosa bateu a pata com dedos a mais em meu calcanhar e joguei a


bola inflável para ela. Ela mordeu, fazendo-me questionar se na verdade era
um cachorro preso no corpo de um felino, a coisa murchou e encheu
novamente de ar, soltando um chiado estridente. Fui para o meu quarto e
finalmente coloquei roupas, uma camiseta de banda e jeans pretas. Depois de
calçar as botas, sem me importar nem um pouco com a parte de amarrar os

cadarços, peguei minhas chaves e fiz meu caminho para fora.

Pensei em tocar a campainha de Evelyn e deixar Mimosa com ela, só


que eu queria usar a gata como desculpa para entrar em seu apartamento
depois que voltasse do almoço que Ellen tinha organizado na casa de meus
tios para anunciar sobre a namorada. Ela me enviou uma mensagem ontem à
noite pedindo para que eu fosse para não ter que segurar a barra sozinha.
Claro que eu não a deixaria na mão.

Quando cheguei em frente à casa dos meus tios, enfiei as mãos nos
bolsos e tracei meu caminho até a entrada. Dei três batidas na porta e esperei
pela governanta, que abriu a porta para mim.

Encontrei meu tio na sala e ele perguntou algumas coisas sobre a

faculdade, que respondi vagamente. Não gostava muito dele. Não sabia como
tia Courtney tinha se casado com alguém assim. Sempre estava focado
demais no trabalho, ou mal-humorado.

Alguns momentos mais tarde, Ellen apareceu. Tinha trocado de roupa


também. Nós todos fomos para a sala de jantar. Tia Courtney estava pondo a
mesa para a gente e eu a cumprimentei antes de puxar uma das cadeiras e me
sentar.

Não sabia como o roteiro funcionaria, mas entrei na dança. Comi o

macarrão com molho de quatro queijos e bebi um copo de suco enquanto


todo mundo fazia o mesmo. O silêncio sepulcral passou a ser constrangedor
conforme os pratos foram ficando vazios. O rosto de Ellen estava pálido e ela
parecia que ia botar a comida toda para fora a qualquer momento.

— Bom, vou buscar a sobremesa. — Tia Courtney começou a se


levantar, mas Ellen soltou o garfo bruscamente sobre o prato, chamando a
atenção de sua mãe.

— Preciso dizer algo a vocês. É importante. — Ellen sinalizou


lentamente.

Seu pai limpou a boca com o guardanapo e endireitou a postura na


cadeira. Sua expressão continuou sem emoção e ele só disse:

— Preciso ir para o escritório logo.

Aquele era o jeito dele de falar para ela não enrolar e ir direto ao ponto.
Aquilo me fez travar as mandíbulas. Sorte que não estava olhando para mim.

Ellen olhou para a mãe, e depois para o pai. Por fim, seu olhar pesou
em mim. A encorajei com um maneio de cabeça, como se dissesse para ir em
frente.

— Eu estou me relacionando com alguém. O nome dela é Ava.

Como eu presumi, tia Courtney só pareceu surpresa e assentiu, ousando


até mesmo sorrir um pouco. O problema era o tio Ben. O rosto dele ficou
petrificado, os ombros largos enrijeceram e ele largou o guardanapo de linho,
levantando-se da mesa bruscamente, dando-nos as costas.

Os lábios de Ellen se entreabriram em choque e começaram a tremer


um segundo depois. Então um soluço contido escapou por sua boca e ela
também se levantou, virando-se e deixando a mesa assim como seu pai. Ouvi

seus passos apressados pelas escadas e então o estrondo da porta de seu

quarto se fechando.

O rosto da tia Courtney estava tão pálido que achei que ela desmaiaria a
qualquer momento.

— Vou falar com ela — murmurei, sem esperar por uma resposta, já a
seguindo.

Esbarrei com tio Ben no corredor. Ele tinha vestido um paletó de


maneira apressada, pela forma como o colarinho estava torto e segurava uma
pasta de couro nas mãos. Estava prestes a sair. Ele parou por um momento e
eu respirei fundo, cerrando os dentes.

— Você quem devia sentir vergonha por ser quem é. Não Ellen —
resmunguei as palavras, com raiva.

Observei seu corpo ficar tenso com satisfação e o deixei para trás, indo
atrás de minha prima. A porta não estava trancada, então entrei em seu
quarto. Ela estava colocando algumas roupas em uma mochila, o rosto
vermelho e manchado por lágrimas. Ela não chorava mais, só que parecia
péssima. E com ódio.

Fiquei observando-a, até que ela se virou para mim e sinalizou:


— Posso passar uns dias no seu apartamento?

— Claro, Elly.

— Obrigada.

Ellen fechou a mochila, e a puxou pela alça, mancando um pouco por


conta do peso e fazendo careta. Levei para ela. Nós descemos as escadas e

encontramos minha tia na sala. Ela pareceu ficar três vezes mais preocupada
quando viu a bagagem.

— Para onde você vai? — Ela sinalizou, receosa.

— Para casa do Hunt — Ellen respondeu brevemente.

— Querida, saiba que eu estou orgulhosa de você. E quero conhecer


Ava. Vou conversar com seu pai mais tarde, ele só deve estar de cabeça
quente agora e ocupado com o trabalho...

— Tchau, mãe. — Ellen sinalizou, começando a sair pela porta. Era


impressionante como minha tia sempre dava um jeito de defender o tio Ben.

Nós dois observamos Ellen deixar a porta. Antes de segui-la, murmurei


que cuidaria dela para tia Courtney, então finalmente deixei a casa.
Estava em um impasse. Minhas pernas continuavam se movendo

incessantemente, quase que de maneira mecânica, enquanto eu sopesava


sobre ir até o apartamento de Hunt ou continuar esperando que ele viesse até
mim enquanto dava voltas ao redor de meu sofá. Anteontem ele tinha dito
que iria buscar Mimosa e que ela estaria logo pela manhã de ontem conosco.
Será que ele tinha mudado de ideia? Mordi um dos cantos de meus lábios e
cruzei os braços em frente ao peito, observando um ponto entre a janela e as
cortinas.
Ou, ele estava ocupado com alguma garota.

O pensamento fez com que uma coisa estranha e pegajosa se alojasse


no fundo do meu estômago. Respirei fundo e fui até a cozinha encher uma
caneca com café. Depois disso, tomei uma decisão: confrontá-lo. Eu queria
saber se os planos sobre Mimosa tinham mudado.

Girei a maçaneta da minha porta, ignorando que eram apenas nove


horas da manhã e que eu estava de pijama. No entanto, meus pés fincaram ao
chão assim que meus olhos processaram o cenário à minha frente. Havia uma
garota sentada ao lado da porta entreaberta do apartamento de Hunt, os
joelhos juntos ao peito e o queixo descansando no topo deles.

Como ela estava com o corpo virado na minha direção, pareceu ficar
tão surpresa quanto eu ao me ver. Os olhos tinham formato de amêndoas e
eram de um castanho profundo. O rosto dela estava limpo de maquiagem e o

cabelo longo e espesso da mesma cor das íris emolduravam suas maçãs
saltadas. Era bonita. Acho que fazia o tipo dele mesmo. Não sei quem devia
parecer mais atônita no momento, eu ou ela.

Senti o pescoço começar a arder. Hunt esteve ocupado com uma garota,
então? Respirei fundo e forcei-me a me mover, dando alguns passos para trás
e de volta para o interior de meu apartamento, mas, antes que pudesse bater à
porta, a garota se ergueu, tirando poeira dos joelhos. Então ela moveu as
mãos:

— Oi. — Ela sinalizou. — Eu sou a Ellen. Você deve ser a Evelyn. —


Um sorriso pequeno, porém, genuíno, tomou conta de sua boca.

Pisquei rápido.

— Como você sabe quem eu sou? — perguntei-a, um pouco

desconfiada.

— Eu sou prima do Hunt.

O constrangimento me bateu, com força. Eu havia presumido que ela


era uma das garotas com quem Hunt se envolvia em casos de uma noite e fui
precipitada. Mas, caramba, como eu poderia saber?

— Oi. Desculpa se fui meio introspectiva. Pensei que você fosse...

— Uma das garotas com quem o Hunt se envolve. — Ela rolou os

olhos, terminando de sinalizar por mim. — Meu primo é uma máquina de


sexo, eu sei.

— Desculpa de novo. — Senti-me na obrigação de dizer aquilo a ela


outra vez.

Deus, eu me sentia tão envergonhada.


— Está tudo bem. — Houve uma pequena pausa. — Eu soube muito
sobre você, Evelyn. — Ellen entrou no mérito de me conhecer antes que eu

pudesse o fazer e um quê de confusão e curiosidade se apossou de mim.

Movida inteiramente por esses sentimentos, perguntei a ela:

— Quer entrar? Prometo que não sou uma serial killer.

O sorriso nos lábios dela cresceu.

— Eu sei que não, o Hunt não gosta desse tipo. Já você é exatamente o
ideal dele.

Arqueei uma sobrancelha, interessada no rumo que a conversa estava


tomando. Aquela era nova. Até parece que o Hunt, o maior cafajeste que eu
já tinha esbarrado, gostava de mim. A ideia era um pouco (completamente)
utópica e sem fundamento.

Ellen passou por mim quando a dei passagem e nós seguimos para a
cozinha. A caneca de café que eu tinha abandonado sobre a bancada da pia
estava fria e coloquei no micro-ondas sessenta segundos para aquecer. Girei
nos calcanhares e deparei-me com a prima de Hunt meio debruçada na ilha
que separava os cômodos.

— Quer beber alguma coisa? — Sinalizei.


— Não, obrigada.

— Por que você acha que o Hunt gosta de mim e que faço exatamente o
tipo dele? — Resolvi ir direto ao ponto.

— Ele gosta dos desafios. — Ela deu de ombros. — Pelo que eu soube,
você o evita ao extremo. Ao invés de isso afastá-lo, tem efeito oposto.

Engraçado, não é?

— É ridículo.

— Eu sei.

Lancei um olhar sobre o ombro, vendo que faltavam trinta segundos


para o café estar pronto e voltei-me para Ellen.

— Você parecia triste — apontei, lembrando-me de seus ombros


curvados no corredor e da expressão de contemplação em seu rosto, as

sobrancelhas baixadas emoldurando olhos melancólicos.

— É, eu tive um desentendimento com meus pais lá em casa. — Ellen


mordeu o interior da bochecha e endireitou a postura. — Finalmente resolvi
me abrir sobre minha sexualidade e dizer que estava namorando uma garota,
não um garoto como os relacionamentos anteriores e acho que meu pai não
lidou muito bem com essa situação.
— Quer falar sobre isso? — questionei-a.

— Não, mas obrigada. Acho que seu café está pronto — Ellen disse a
mim e me virei, tirando a caneca fumegante de dentro do micro-ondas e
assoprando sobre a borda.

— Tudo bem — concordei.

Alguns momentos se passaram e eu sinalizei:

— Onde tá o Hunt? — Tentei não parecer muito interessada, mas os


olhos de Ellen se iluminaram e ela me deu um sorriso de quem sabia das
coisas, o que me deixou um pouco constrangida. — É só curiosidade — fui
rápida em acrescentar.

— Entendo — Ellen disse. Não entendia mesmo. — Ele tá dormindo


feito pedra. Não sei como não acordou ainda. — Ela tirou o celular do bolso e
fitou a tela, digitou algo e depois sorriu. Deixou o aparelho na bancada para

me dizer, movendo as mãos: — Hunt mandou um monte de mensagem


preocupado achando que eu fugi. Falei para ele que estou aqui. Só visualizou
e desapareceu.

Franzi o cenho.

— Que estranho. Será que ele ficou irritado porque te convidei para
entrar aqui? — Comecei a mexer os pés, alternando o peso do meu corpo
entre um calcanhar e outro.

— Acho que não. — Deu de ombros, checando o celular outra vez.

Um vinco profundo se formou entre suas sobrancelhas e ela sinalizou


que os pais estavam a bombardeando de mensagens e que precisava de alguns
momentos para respondê-los.

Aproveitando a deixa, estava prestes a ir para o corredor, chegar até


meu quarto e trocar o pijama por outras roupas, só que a porta foi aberta
quando eu estava atravessando a sala e meus pés estancaram no chão. Hunt
estava em pé na minha soleira, os cabelos bagunçados e sem camiseta, uma
calça moletom e pés descalços.

— Bom dia, Eve — ele disse em voz alta, forçando-me a ler seus
lábios.

Ergui as mãos, pronta para dá-lo uma resposta, só que meu cérebro

entrou em curto-circuito. Não consegui dizer nada. Que conveniente. Movi as


mãos sem pensar, de maneira desajeitada.

Hunt arqueou a sobrancelha do piercing.

— Vacas voam quando acordam pela manhã. — Ele repetiu meus


sinais, as sobrancelhas baixas. — O que você quer me dizer, Evelyn?
Senti o rosto corar, mas finalmente caí em mim mesma para respondê-
lo de maneira coerente desta vez, sem nada que envolvesse vacas voadoras:

— Deixa para lá, a Ellen está na cozinha, se é isso o que você quer
saber.

— Na verdade vim aqui para te mostrar algo.

— O quê? — perguntei, um pouco desconfiada.

— É no meu quarto. A gente pode ir agora? Você faz muitas perguntas.


— Hunt empurrou a porta até que estivesse escancarada e deu um passo para
trás, convidando-me a ir com ele até seu apartamento, mas continuei parada.

— No seu quarto? Fala sério, Hunt...

— Eu estou falando sério. Tá vendo o meu rosto? — Ele fez um círculo


na frente dele, apontando para si mesmo. — Super sério, margarida. — A

expressão dele estava monótona, só que um dos cantos de sua boca se


erguiam involuntariamente para cima.

— Você está rindo — eu apontei.

— Não estou.

— Você está rindo, seus lábios estão tremendo...


— Pelo amor de Deus, Evelyn. Se você não vir, vou te buscar a força.

O brilho desafiador no olhar dele me fez recuar um passo instintivo


para trás, o que fez com que ele avançasse em minha direção. Antes que eu
conseguisse fugir para o meu quarto, ele segurou meu pulso, aí todo meu
esforço foi em vão porque ele era mais forte que eu e mais insistente também.
Me arrastou pelo corredor com facilidade até estarmos dentro do seu

apartamento, depois em seu quarto.

As janelas estavam fechadas, então tudo que absorvi foram silhuetas de


moveis. Vi seu vulto se mover até o que eu podia distinguir ser a sombra de
uma cama e quando ele voltou até mim, estava segurando algo nos braços.
Um gato.

Os pelos pretos e brancos e uma das patas de tamanho desproporcional


fizeram-me perceber que na verdade se tratava de Mimosa. A peguei com

cuidado e me virei, andando de volta para a sala.

Ela parecia um amontoado macio e enrolado nos meus braços. Estava


assustada, então me sentei no sofá para que ela não pulasse e se espatifasse
no assoalho com a queda.

Acariciei um ponto estratégico atrás de sua orelha e senti seu peito


vibrar contra a palma da minha mão.
Mimosa gostou da minha atenção por uns momentos, depois ela saltou
do sofá e foi até um pote de água.

Voltei-me para Hunt, em pé a alguns metros de distância enquanto me


observava.

— Você buscou ela hoje? — Sinalizei, meio desconcertada com seu

olhar intenso.

— Não.

Arqueei as sobrancelhas.

— Não?

— Ontem, mas tive um compromisso.

— Você podia a ter deixado em minha casa enquanto estava fora.

— Eu sei — foi tudo o que ele respondeu, com uma postura de quem

não estava nem aí.

— Por que não deixou?

— Porque aí não teria uma desculpa para ir te ver, ou fazer com que
você viesse até aqui.

Pisquei rápido, depois desviei o olhar para longe. Após analisar sua sala
inteira e absorver os detalhes, me pus de pé e mordi os lábios. Eu odiava

como Hunt fazia com que me sentisse uma adolescente outra vez. Finalmente

ousei o encarar.

— Nós deixamos a Ellen no meu apartamento — eu disse, ao me


lembrar.

— Ela vai ficar bem, já tem dezoito anos.

Rolei os olhos.

— É falta de educação.

— Você é a comportada aqui, eu não. — Um sorriso torto ocupou um


dos cantos de sua boca e eu tive vontade de rir, só que consegui manter o
rosto sério.

— Você adora, não é? — questionei.

— O quê, Eve? — Ele deu uns passos para frente, aproximando-se de


mim.

— Ser um bad boy — esclareci, tentando acalmar meu corpo com o


pouco espaço que restava entre a gente.

Hunt deu de ombros.


— Nunca pensei assim. Eu só sou o que sou.

— E você gosta do efeito que tem — presumi.

Ele analisou meu rosto com calma, os olhos cintilantes e o cabelo preto
caindo sobre a testa e cobrindo as orelhas. Deu outro passo em minha
direção. Quase prendi a respiração. Havia menos de um metro entre nós.

— Que efeito? Esse aqui?

Antes que eu pudesse respondê-lo, ele cortou a distância. Nossos peitos


estavam separados por dois ou três centímetros. Ele ergueu a mão, o polegar
raspando na minha bochecha de maneira ociosa. Meu corpo tremeu e o
sorrisinho presunçoso em seus lábios aumentou.

Idiota.

— Esse — ele disse contra minha boca, fazendo-me a ler. — Ou esse?

— Arrastou os lábios macios e quentes por meu pescoço. Exalei


involuntariamente, sentindo a pele pegar fogo onde ele havia tocado.

Hunt se afastou um pouco, colocou uma mecha de cabelo atrás da


minha orelha, as íris alternando entre meus olhos e meus lábios, as pálpebras
pesadas.

— Eu amo o efeito que tenho sobre você, Eve. — As palavras bateram


conta minha pele, quentes. Arrepios se alastraram por minha coluna e senti

meus joelhos fraquejarem.

O olhar de Hunt foi atraído para um ponto atrás de minha cabeça e ele
parecia repentinamente aborrecido. Virei-me e senti o rosto arder quando
avistei Ellen parada na soleira da porta, os olhos meio arregalados e os lábios
entreabertos.

Ela deu um passo para trás e ergueu as mãos em rendição, sem jeito.

Sinalizei para ela que não tinha problemas e que já estava de saída.
Envolvi meus braços ao redor de mim mesma e lancei um breve olhar sobre o
ombro, para Hunt. Ele me encarava com uma promessa implícita nos olhos.
Uma promessa de que ele tomaria o que quisesse de mim e que se deleitaria
enquanto eu cedesse feito uma marionete.

Foi aquele olhar que fez com que eu fizesse algo que eu não fazia há

muito tempo. No meu quarto, em minha cama, eu deslizei a mão para dentro
do meu short de algodão e o imaginei sobre mim. Ele devia ser dominante na
cama, então visualizei-o por todo lugar. Sua língua, seus dentes, sua boca, de
uma forma nenhum pouco gentil. E quando eu atingi o ápice, abri os olhos e
fitei o teto, sentindo-me meio ressentida.

Eu o queria mais que tudo e aquilo causaria a nossa ruína.


— Arrombem. — A voz masculina trovejou do outro lado da porta.

Meu coração estava batendo forte contra minhas costelas, como um


pássaro ávido para escapar de uma gaiola da qual havia sido sentenciado. A
porta cedeu depois de quatro pancadas. Me encolhi contra a parede da
dispensa estreita, o peito subindo e descendo em um ritmo desconexo.
Pisquei rápido quando a luz da lanterna fixou em meu rosto, cegando-me.

— É apenas um garoto — alguém murmurou.


— Deixem-me assumir — a voz grave e rouca voltou a reverberar, o
tom um pouco mais brando. — Desligue a lanterna, policial Janet.

O clarão branco se foi, mas minha visão continuou embaçada. Vários


pontos cinzas cintilavam através das minhas pálpebras, como manchas.
Mesmo assim, fui capaz de ver sob elas. O rosto do homem ajoelhado à
minha frente estava sério. Ele segurava uma lanterna, mas agora estava

apontada para o chão, o que permitia que eu visse o suficiente, apesar das
sombras. A eletricidade não funcionava no cômodo.

— Qual é o seu nome? — ele questionou.

Dez segundos se passaram, depois vinte. Não disse nada, meu corpo
estava imóvel.

— Acho que ele está em estado de choque, xerife — a mulher no


batente da porta disse.

— Onde estão seus pais? — o homem, tal xerife, voltou a indagar.

Meus pais. Uma gota pingou, atingindo o centro da minha testa,


despertando-me. Não sabia onde estavam os meus pais. O xerife ergueu a
lanterna em direção ao teto, iluminando os buracos no concreto e a encanação
enferrujada visível. Os vazamentos eram frequentes. Ele soltou um suspiro e
depois tirou a jaqueta pesada que estava usando, colocando-a ao redor dos
meus ombros. Meu corpo não parou de tremer.

— Vamos levá-lo até a delegacia. A equipe de perícia está a caminho.

O homem colocou uma das mãos no meu ombro, forçando-me a andar


para frente, até o corredor. Havia três policiais ali além dele. Um estava
parado na porta de meu quarto, olhando fixamente para mim com os braços

cruzados em frente ao peito. Desviei o olhar para longe. Janet se aproximou,


com meu caderno secreto em mãos. Me senti exposto.

— Olha só o que achei, é um caderno e tem letras de músicas nele —


ela disse para ninguém em especial, girando-o nas mãos. A capa estava puída,
além de rabiscada por mim. — Você quer ser músico, garoto? — questionou-
me, interessada.

— Ele não vai falar — outro cara uniformizado disse.

— Está assustado, é compreensível. — Janet fixou o olhar na capa do

meu caderno. — A.H. — Leu as iniciais gravadas sobre ela, depois ergueu as
íris para mim. — É seu nome — concluiu.

O xerife me puxou pela gola da jaqueta, guiando-me até as escadas. A


madeira áspera e decrépita do chão arranhava meus pés descalços. Quando
chegamos a sala, olhei pela janela em direção ao quintal, para as flores de um
rosa cintilante que nasciam na margem do lago, destoando o resto do cenário
decadente e ao adensamento de pinheiros da floresta ao redor da casa. Na
escuridão, elas pareciam um amontoado de borboletas amassadas, era o que

minha mãe costumava dizer.

A imagem do lago começou a ser bloqueada. De repente, havia dezenas


de carros estacionados lá fora e pessoas estranhas andando ao redor da
propriedade. O suor que se acumulava em meu pescoço umedecia a gola da

minha camiseta, grudando-a ao meu tronco feito uma segunda pele. Não
entendia o que estava acontecendo e antes que pudesse continuar espiando, o
xerife fechou as cortinas.

— Não olhe para o lago quando estivermos saindo — ele disse, com
um olhar inexpressivo.

Franzi o cenho, confuso. Por que eu não devia olhar? Quem era toda
aquela gente? Eles não deviam me ajudar? Nos ajudar? Não entendia.

Como se o xerife pudesse ler todas as perguntas por de trás das minhas
íris, ele colocou uma das mãos sobre meu ombro direito, apertando-o de
maneira desajeitada que devia ser reconfortante.

— Sinto muito, garoto. Ele está morto — a voz de barítono ecoou por
meus tímpanos.

Ele está morto. Ele está morto. Ele está morto.


A sequência seguiu por minha cabeça, ecoando e expandindo em meu
cérebro, até que me sentei em um solavanco. Minha respiração estava

entrecortada, o quarto do meu apartamento escuro. De novo, não. Fui até o


banheiro, minha testa brilhava com suor e cerrei os dentes para o reflexo no
espelho.

O Natal estava próximo, o que significava que faria mais um ano desde

o dia em que minha vida mudou completamente e desde que ele se foi. Na
maioria dos anos, eu tinha esses sonhos como flashbacks do meu passado e
era sempre angustiante. Precisei passar por anos de terapia para aprender a
lidar com eles, entendê-los, mas agora estavam de volta e a todo vapor.

Depois que consegui me acalmar novamente, deitei-me outra vez.


Demorou para cair no sono, mas ao invés de pensar no lago, ou na sombra
medonha da propriedade onde eu morava na infância antes das minhas mães
me adotarem, minha mente, por algum motivo, projetou Evelyn. Evelyn

sorrindo, Evelyn colocando uma mecha do cabelo atrás da orelha, Evelyn


com os olhos apreensivos e bochechas coradas. O perfume de lavanda dela
invadiu meus sentidos, fraco como uma memória distante, mas tranquilizador
e eficaz como se estivesse vívido em minha fronha e lençóis.

Foi um dos sonos mais serenos que tive em muito tempo.


— A gente precisa conversar — eu disse para Ian, depois de pegá-lo no
flagra lendo o livro da língua de sinais atrás do bar.

O vento forte bagunçava meus cabelos, faltava cerca de trinta minutos


para nos apresentarmos. Fechei o zíper da minha jaqueta até o pescoço e
enfiei as mãos nos bolsos da calça jeans. Ian quase deixou o livro cair no
chão quando minha voz ecoou no beco vazio. Estava com as costas apoiadas
contra a van de Atticus e o cabelo castanho claro caindo sobre seus olhos
azuis.

— Você me assustou para caralho — Ian murmurou, as sobrancelhas


juntas. Ele fechou o exemplar pesado, colocando-o no capô da van.

Apoiei as costas contra o metal gélido da porta dos fundos do bar. O


lugar ficava em um ponto entre Massachusetts e Boston, o que era bom para
nós três e tinha um espaço legal para tocar.

— A Ellen tem namorada, você sabe disso, não sabe? — eu disse,


resolvendo ir direto ao ponto.

Seu cenho franziu ainda mais. Ian tirou um cigarro do bolso,


acendendo-o nos lábios com a ajuda de um isqueiro prateado.

— Legal — ele replicou, indiferente.

— Você não estava aprendendo língua de sinais por causa dela? —


questionei, surpreso e confuso com sua reação ao que eu tinha acabado de
dizer.

— Não — Ian respondeu-me como se fosse óbvio.

— Então por quê?

— Sei lá, eu só queria aprender. — Ian deu de ombros, impaciente. Ele


parecia honesto quanto a não estar aprendendo para poder se comunicar com
Ellen, mas havia algo que ele não estava me dizendo.

— Só isso? — indaguei, perplexo.

— É. Só isso. Para de encher o saco, cara. Vamos lá para dentro porque

agora eu tô congelando. — Ian pisou na guimba do cigarro e passou por mim


meio atormentado, com passos rápidos e sumiu no interior do bar.
— Onde você arranjou isso? — Foi a primeira coisa que Eve sinalizou
para mim depois que apareci na porta dela, com um daqueles arranhadores

para gatos nos braços.

— Eve, me deixa entrar, essa coisa tá pesada, depois a gente conversa


sobre isso — falei em voz alta, já que minhas mãos estavam ocupadas.

Ela me deu passagem e avancei. Deixei o arranhador em um canto livre


da sala e depois bati as palmas das mãos contra as calças. A dor nas minhas
costas intensificou depois de eu ter subido os lances de escadas do prédio
com o brinquedo novo de Mimosa em mãos. Mal tinha dormido na noite
passada, porque voltei do show depois das duas horas da manhã. Eu estava
quebrado.

Meu apartamento estava vazio outra vez sem Ellen, que tinha voltado
para casa dos pais logo depois de ter interrompido o meu quase beijo com

Eve há dois dias. Hoje eu estava voltando da faculdade quando parei em um


semáforo perto de um petshop e vi o arranhador na vitrine. Parecia uma
desculpa ideal para ver Eve.

Virei-me para ela, parada na porta com os braços cruzados na altura dos
peitos. Ela estava bonita, como o habitual. Cabelo preso em rabo de cavalo
alto, jaqueta jeans e um vestido floral por baixo. Pés em um par de All Star
pretos e rosto livre de maquiagem, exceto pelo gloss nos lábios.
— O que você vai fazer no Halloween? — Sinalizei para Evelyn,
acomodando-me em seu sofá.

Ela descruzou os braços para me responder.

— Quando é o Halloween? — Parecia meio perdida, as sobrancelhas


baixas e os lábios comprimidos em linha reta.

— É esse final de semana. — O canto esquerdo da minha boca


começou a se erguer para cima.

A ponta do nariz de Eve estava vermelha e ela o franziu de maneira


quase que imperceptível, hábito que fazia sempre que estava pensativa. O
piercing de diamante cintilava sob a luz do apartamento.

— Não sei, eu não gosto muito do Halloween. — Ela ergueu um dos


ombros.

— Como assim não gosta do Halloween?

— É, não gosto. Não curto filmes de terror ou que envolvem muito


sangue ou zumbis.

— Você é uma medrosa — disse, observando-a se sentar na poltrona.


Ela tirou os sapatos e os deixou sobre o assoalho, os cadarços
embaralhados. Seus olhos estavam fixos em mim em todo o processo.
— Não sou medrosa coisa nenhuma. Eu só não... — Evelyn parou de
sinalizar e piscou. — Eu não preciso te explicar nada.

Eu sorri.

— Diz que vai se fantasiar, pelo menos.

— Eu não vou me fantasiar. — Eve arqueou as sobrancelhas, me

olhando com seriedade e um pouco de desdém.

— Vai sim.

— Vou nada.

— Vai — eu insisti.

— Não vou.

Eu a ignorei.

— Vem comigo até o show de Halloween na sexta-feira. Vai ser em


uma boate popular aqui de Massachusetts. — Meu rosto inteiro ficou sério e
observei Eve com atenção antes de continuar. — Depois que terminar eu
posso ficar com você...

Parei, sem saber por que estava a convidando ou por que eu de repente
a queria lá, me assistindo, mesmo que ela não pudesse me ouvir.
— Eu não posso ouvir sua música. — Eve sinalizou calmamente,
parecendo intrigada. — Por que você me quer lá?

— Não sei. — Fui honesto. — Só venha comigo, Evelyn. — Houve


uma pausa. — Por favor, venha comigo.

— Que horas? — Ela sinalizou depois de um tempo de contato visual

comigo, quando achei que iria negar.

— Eu apareço na sua porta às oito e tem uma coisa que você precisa
saber... — Um sorrisinho sacana começou a crescer em meus lábios. — A
entrada só é permitida para pessoas fantasiadas.

Eve fechou a expressão.

— Eu não tenho fantasia.

— A gente arranja uma.

Ela suspirou, encostando a parte de trás da cabeça na poltrona, me


fitando com os olhos semicerrados. Por fim, um sorriso discreto começou a
delinear sua boca e ela relaxou a postura.

— Com uma condição. — Ela moveu as mãos de forma


deliberadamente lenta.

O desafio brilhava através de seus olhos e eu relaxei ainda mais contra


o estofado do sofá.

— Qual é? — Meu sorriso cresceu.


— O que é isso? — Erica me questionou quando me sentei em frente a
ela e seu grupo fechado de três amigas, com uma caixa meio pesada de

papelão sob o braço.

Não respondi, até porque minhas mãos estavam ocupadas. Deixei a


caixa perto dos seus pés, elas estavam sentadas nas placas de tatame do chão
da sala de aula da escola primária.

Tirei a poeira das mãos e sob os olhares curiosos, sinalizei:


— Abram.

Erica parecia receosa, mas foi a primeira a ceder. Ela ficou parada em
frente a caixa, os olhos verdes presos no fundo dela. Seus lábios se torceram
para baixo e ela levantou o rosto para mim, a confusão brilhando em suas íris.

— Pegue uma e dê as outras para as suas amigas — continuei, diante de

sua falta de reação.

Hesitante, ela enfiou o braço curto dentro da caixa e tirou de lá um par


de bonecas de pano, que entregou para Blair e Ema. Depois mais duas; uma
que segurou contra o peito e outra que foi dada a Emery. Todas elas me
encaravam confusas, o cenho franzido e alternando os olhares entre mim e o
que eu havia acabado de dá-las.

— O que é essa coisa? — Emery questionou, em voz alta, fazendo-me


ler seus lábios.

— Essa coisa é uma boneca — disse o óbvio, o semblante suave.

— Por quê? — Erica indagou, ainda curiosa. — Eu já tenho uma


boneca, senhorita Rose.

— Estou presenteando vocês, Erica. Porque vocês são garotas legais.

Elas todas se entreolharam ao mesmo tempo, perdidas. Blair deixou a


cabeça tombar para o lado e, com as mãos livres, sinalizou:

— Obrigada, senhorita Rose. Como a Erica disse, nós já temos


bonecas.

— E são mais legais que essas — Emery remendou, e em seguida


cutucou a perna de pano da boneca, com uma careta.

— Mas é o que eu pude dar a vocês — insisti, movendo as mãos


calmamente para que elas conseguissem entender o que eu estava dizendo. —
São bonecas especiais.

— Especiais? — Erica me questionou, as íris cintilantes, um quê de


interesse presente no olhar agora.

— O que as torna especiais, senhorita Rose? — Ema moveu as mãos,


falando pela primeira vez, os olhos castanhos hesitantes.

— Amor — eu disse, simplesmente.

— Amor? — Emery parecia confusa.

— Amor. — Sinalizei, assentindo. — Porque estou dando a vocês com


o coração. Quando um presente é dado com o coração, o valor dele é
inestimável. Então, no fim, não é o preço das bonecas que importam. Nem o
material com que foram feitas. O que vale é o que está aqui. — Fiz um
círculo sobre o peito com o dedo indicador. — O que é dado com amor, não é

para ser desprezado, nem negado.

Todas elas pareciam perplexas agora. Me curvei um pouco para frente,


me aproximando mais.

— Querem saber de uma coisa muito legal? — questionei, os olhos

atentos no rosto de cada uma delas.

As garotas assentiram em sincronia.

— É segredo, mas os presentes mais valiosos vêm do coração.

Quando cheguei em casa, eu estava ensopada. Logo após de sair do


estágio, fui até o aeroporto com London. Nós choramos e nos abraçamos.
Pedi para que ela me prometesse que não se esqueceria de mim enquanto
estivesse em Paris e ela jurou que não. Mesmo acreditando em suas palavras,
não me senti satisfeita. Não seria a mesma coisa com ela em outro continente.

No caminho de volta até o prédio, uma chuva sorrateira tinha desabado


sobre Massachusetts. O dia estava quente no início da manhã e pela tarde,
então não levei guarda-chuva algum. Mesmo correndo, não pude evitar me

molhar. Agora torcia meus cabelos no meio do corredor, observando a poça


de água se formar aos meus pés enquanto rangia os dentes de frio.

Tateei em minha bolsa à procura de minhas chaves, mas não as


encontrei, então, xingando mentalmente, desci os lances de escadas e voltei

para de baixo da chuva e para o estacionamento. Depois de revirar todo o


carro e perceber que tinha perdido as chaves, subi outra vez para meu andar e
desabei em frente minha porta, o cabelo molhado grudado ao rosto e o
maxilar travado para evitar que os dentes continuassem batendo uns contra os
outros.

Com o celular em mãos, enviei uma mensagem para o zelador do


prédio, perguntando sobre as chaves extras. Quando ele não me respondeu
depois de dez minutos, me vi sem outra saída que não fosse bater na porta do

meu vizinho, ou seja, ninguém menos que Hunt Finley (o cara que me
deixava nervosa).

Ele apareceu na soleira cinco minutos depois e esqueci o que tinha ido
fazer ali. O cabelo de Hunt, que da última vez que eu o vi era longo e
enroscava em suas orelhas e caía na testa agora tinha sido cortado. Ainda
dava para enrolar nos dedos, mas não era a mesma coisa. Estava aparado nas
laterais e comprido em cima, os fios despontados em direção ao teto em um
penteado desleixado. As maçãs de seu rosto pareciam mais altas e agora os

brincos nas orelhas estavam visíveis e chamativos.

No entanto, não foi só o cabelo que tinha me deixado desconcertada e


sem reação. Hunt estava sem camiseta e os primeiros botões de seu jeans
estavam abertos. O rosto dele estava meio corado também, o que me deixou

perplexa. Ele parecia sem jeito, meio sem graça, meio sem reação. Sorriu um
pouco para mim e sinalizou:

— Oi, Eve.

— Oi — respondi de maneira débil e lenta, piscando rápido.

— Tudo bem? — perguntou, arqueando a sobrancelha perfurada, os


olhos rolando sobre meu corpo. — Você tá molhada.

— Eu... — Comecei a mexer as mãos, mas meus olhos me traíram e

desceram por seu torso nu. Pele branca feito alabastro e tinta preta por toda
extensão percorrida com o olhar. Ergui o rosto novamente, em chamas.

— Você — ele repetiu, o rosto divertido.

— Eu... — Tentei dizer outra vez, mas minha mente estava dando um
daqueles curto-circuito malditos.
— Eu já entendi isso. — Hunt tombou a cabeça para o lado daquele
jeito assemelhado a um filhote de cachorro e um sorriso torto começou a se

puxar no canto de sua boca.

— A porta não abre — falei, sentindo o constrangimento corroer cada


célula do meu corpo.

— Tá emperrada? Posso dar uma olhada para você. E isso não explica
você estar encharcada.

— Não, é que eu perdi minhas chaves. — Franzi o cenho, sinalizando


depressa. — Não sei onde enfiei elas, mas não estão em lugar nenhum e está
chovendo lá fora, me molhei ao atravessar o estacionamento e provavelmente
vou pegar um resfriado.... — Parei quando notei que estava movendo as mãos
loucamente.

Hunt me fitava em expectativa, o olhar iluminado. Parecia que ele

gostava quando eu começava a dizer todos os detalhes do meu dia sem


querer. Continuei:

— Desculpa, só queria dizer que perdi minhas chaves e o zelador não


me responde para resolver o problema.

— Entra, Eve. É claro que você pode entrar. — Hunt sinalizou, já me


dando espaço.
Sem contestar, atravessei a soleira, em direção à sala. Parei próxima ao
sofá e cruzei os braços em frente ao peito, me voltando para Hunt, atrás de

mim, parado perto da porta. Ele sinalizou que buscaria algumas toalhas e
assenti, depois sumiu no corredor. Fiquei alguns momentos em pé e sem
jeito, trocando o peso sobre os calcanhares até que ele voltasse.

— Aqui — disse em voz alta, me dando uma toalha.

Hunt estava vestindo uma camiseta azul marinho agora. Observei seu
rosto, ainda era meio esquisito vê-lo sem o cabelo comprido, mas acho que eu
nunca tinha o visto tão bonito antes. O corte deu meio que um upgrade em
sua aparência (algo que achei que seria impossível de acontecer antes).

Apoiei a toalha no braço e sinalizei:

— Posso usar o banheiro?

— Claro que sim — me respondeu. — As estruturas dos nossos

apartamentos são iguais, então vá em frente. Você quer roupas secas?

Senti o rosto corar um pouco e assenti.

— É, roupas secas seria bom.

Hunt sumiu no corredor outra vez. Aproveitei para checar as


mensagens. O zelador tinha respondido que poderia pegar as minhas chaves
pela manhã, porque hoje estava de folga. Deixei o celular no braço do sofá e

mascarei meu nervosismo me curvando para acariciar Mimosa. A gata tinha

surgido da dobra do corredor inesperadamente.

Um momento depois, ele estava de volta.

Deixei a gata para trás e me levantei. Não falei nada sobre o zelador

estar fora, só peguei o que Hunt tinha estendido em minha direção e fui para
o banheiro. Depois de fechar a porta, tirei a blusa que estava usando e joguei
na pia, fiz o mesmo com a calça jeans, que grudava na minha perna. Minha
calcinha, de alguma forma, continuava seca. Seria embaraçoso se não
estivesse.

Chutei os sapatos para longe, junto com as meias emboladas. Vesti a


blusa de Hunt, era preta e larga, o tecido se desenrolou até a parte de cima
dos meus joelhos. Era uma camiseta bonita, tinha o bordado de uma rosa

murcha com pétalas caídas no peito.

O cheiro dele estava por toda parte.

Quando tomei coragem, depois de secar o cabelo com a toalha, voltei


para a sala. Hunt estava sentado no sofá, uma caneca fumegante nas mãos.
Ele desviou o olhar da tevê para mim e me deu um escrutínio lento e pessoal
antes de se pôr de pé.
— Fiz chá para você. — Hunt moveu os lábios.

Arqueei as sobrancelhas, um esboço de sorriso marcando minha boca.

— Obrigada — agradeci, antes que ele viesse até onde eu estava parada
e colocasse a caneca em minhas mãos.

Hunt acenou para a poltrona e me sentei. Olhei para o chá e fiquei

soprando sobre a borda de porcelana da caneca antes de dar o primeiro gole.


Eu sabia que ele estava acompanhando cada movimento meu com o olhar
atencioso e por isso queria me manter ocupada. Ele me deixava nervosa,
como neste momento.

Eu não parava de esfregar um calcanhar sobre o outro.

Quando o chá terminou, coloquei a caneca na mesinha central da sala.


Sem opções, ergui o rosto em direção oposta. Hunt estava assistindo ao que
quer que estivesse passando na tevê. Como se sentisse meu olhar, suas íris se

conectaram às minhas no próximo momento.

— Obrigada — agradeci outra vez, sem saber o que dizer. — O chá


estava ótimo.

Já sentia meu corpo mais aquecido. Lancei um olhar breve sobre o


ombro, em direção às janelas, só para ver se ainda estava chovendo lá fora.
Parecia que tinha acabado, mas o céu permanecia cinzento e sobrecarregado
de nuvens escuras. Mudei o olhar para Hunt.

— Não precisa me agradecer. — Houve uma pausa. — O que você iria


fazer agora se estivesse em casa?

A pergunta me pegou de surpresa. Pensei por alguns momentos.

— Não sei. Tudo da minha faculdade já está em dia, então acho que eu

ia ler.

— Vamos falar de você. — Hunt sinalizou. — O que você gosta de ler?

O interesse repentino dele me fez ficar meio desconfiada.

— Romances. Ficção. Acho que tudo. — Ergui um dos ombros


sutilmente.

— Legal, você já sabia o que iria ler na sua casa?

— Talvez Edgar Allan Poe ou Emily Bronte.

Hunt arqueou a sobrancelha perfurada, ele parecia interessado.

— Fã dos clássicos? — questionou-me no momento em que Mimosa


surgiu por de trás do sofá e começou a esfregar seu tronco em uma das pernas
de Hunt. A gata parecia se teletransportar pelo apartamento.

— Um pouco — concordei. — Eu queria entrar em algum clube de


livro, mas... — Parei de sinalizar, sentindo-me meio envergonhada.

— Mas o quê? — Hunt moveu as mãos e depois se ocupou em coçar


um ponto atrás da orelha de Mimosa. Ao mesmo tempo em que ele estava
concentrado no filhote, também parecia atento a minha expressão e em meus
movimentos.

— É difícil encontrar um grupo de leitoras surdas como eu. Eu nunca vi


em lugar nenhum, mesmo na faculdade, ninguém parece muito interessado
em literatura.

— Eu leio com você — Hunt sinalizou, o rosto relaxado e


compreensivo, como se não fosse um problema.

Pisquei, meio surpresa.

— Você não precisa fazer isso. — Sinalizei, quando consegui ignorar o


meu coração maluco dobrando o ritmo de batidas e meu pescoço ardendo.

— Mas eu quero. — Deu de ombros. — Então, o que você quer ler?


Podemos começar esta semana.

— Você está mesmo falando sério? — Eu precisava de outra


confirmação.

Hunt franziu o cenho.


— Claro que sim, Eve.

Ignorei aquela coisa estranha florescendo no meu peito e sinalizei:

— A gente pode começar com Orgulho e Preconceito.

— Por mim, tudo bem — ele disse movendo a boca, então pegou
Mimosa no colo. Ela se aninhou em seus braços e ficou quieta.

Escondi bem meu choque. Mimosa era uma traidora. Em todas as vezes
em que ela esteve na minha casa até agora, ou estava tentando comer a
almofado do meu sofá ou meus sapatos. Ela nunca me deixava abraçá-la por
muito tempo, ou se aninhava a mim do jeito que estava fazendo com Hunt
neste momento. Não podia acreditar que estava ficando com ciúmes por
causa disso.

— Vou colocar um filme — Hunt sinalizou, tirando-me dos meus


pensamentos. — Vem cá.

Não me movi.

— Vem, Eve. Eu não vou morder você, por mais que seja tentador.

Rolei os olhos, mas não deixei de estremecer um pouco com aquelas


palavras. Me sentei ao lado de Hunt no sofá e ele passou um dos braços ao
redor dos meus ombros. Parecia meio de brincadeira pela força
desproporcional que ele colocou sobre meu corpo, mas aí ele relaxou quando

eu estava apertada contra ele. Nossos lados estavam se tocando além de que

agora minha bochecha estava colada em seu peito.

Tentei prestar atenção no filme que ele escolheu, O Exterminador do


Futuro, mas foi meio difícil. Eu mal conseguia acompanhar as legendas com
o calor irradiando de seu tronco para o meu.

Hunt não tentou me tocar de nenhuma forma sugestiva, o que me


deixou relaxada e, no fundo, meio decepcionada também. Mas era um
momento inocente e descontraído entre nós e não era para ser mais que
aquilo, então consegui controlar as palmas suadas e o coração enlouquecido
no peito.

O filme acabou e Hunt colocou a sequência, não protestei porque


estava intrigada. Em algum momento, pouco mais de meia noite, ainda

estávamos assistindo a mesma franquia de filmes quando minhas pálpebras


pesaram e cedi a um sono tranquilo e profundo, com os braços do cara que eu
devia fugir ao meu redor.

E, para a minha surpresa, não queria que ele me soltasse.


Eve tinha adormecido nos meus braços pela segunda vez enquanto

assistíamos os filmes. Em algum momento da parte da manhã quando acordei


e percebi que tínhamos perdido a faculdade, desvencilhei-a gentilmente de
mim e a coloquei deitada no sofá com cuidado. Ela mal se moveu, só soltou
um suspiro leve e continuou de olhos fechadas, a respiração serena e
profunda.

Escovei os dentes e então resolvi sair para pegar o café da manhã,


porque Eve certamente estaria com fome quando acordasse. Deixei o meu
apartamento com a chave da moto presa entre os dedos, então desci as
escadas até o estacionamento. Meu celular vibrou algumas vezes e o chequei,

caso fosse Evelyn. Me surpreendi ao ver o nome no visor.

Luke: tô em Massachusetts

Luke: vc tá no campus? tô perto

Luke: esse número ainda é do Hunt?

Luke: se não for, dscp

As mensagens continuaram chegando sem parar e três pontinhos


apareceram na tela e depois sumiram. Arqueei as sobrancelhas e digitei
enquanto continuava traçando meu caminho para fora.

Eu: me encontra na cafeteria que fica perto do campus

Luke: tem ao menos sete cafeterias perto do campus

Eu: te mando a localização

Luke: beleza
— Cara, quanto tempo — Luke disse, com um sorriso torto no rosto,
depois de atravessar a porta da cafeteria e me alcançar.

— Nem acredito que você tá mesmo em Massachusetts — respondi,


observando seu rosto.

Ele continuava o mesmo de sempre: cabelo castanho dourado, olhos


muito azuis e covinhas nas bochechas. Só que parecia um pouco diferente,
tinha algo no olhar dele. Alguma coisa que eu não compreendia: a dor de um
coração partido.

— É, eu vim me encontrar com uma amiga, só isso. — Luke se


esquivou quando uma mulher com um carrinho de bebê passou atrás de nós,
encurralada entre uma mesa e a fila de pessoas no café agitado.

— Thirteen? — questionei.

— Sim. — Ele assentiu, o rosto relaxado. — A gente se vê sempre.


Quando a agenda permite, pelo menos. Ela tá super ocupada com a faculdade
de Medicina.

— Sinto saudades dela — murmurei, sério.

— Eu devia ter te socado por aquilo.


— Aquilo o quê? — Me fiz de desentendido.

— Eu sei que você já dormiu com ela. — Luke foi direto ao ponto e eu
só dei de ombros, não tinha significado muita coisa. Nós estávamos afim, foi
bom e simples. Ela não pegou no meu pé depois daquilo e nós seguimos
nossas vidas.

— Eu não falo sobre minhas relações íntimas — fui breve, ignorando-


o.

Luke estava prestes a me responder, mas a atendente do café o


interrompeu perguntado sobre nosso pedido. As bochechas dela ficaram
coradas e ela nunca fazia contato direto conosco, parecia envergonhada. Pedi
um muffin de mirtilo e outro de chocolate. Tinha café no meu apartamento,
então não pedi as bebidas. Luke quis um latte gelado.

— São quinze dólares — a atendente murmurou, os olhos fixos no

bloco de notas.

Luke deslizou uma nota de vinte pelo tampo.

— Você me deve essa — resmungou, arqueando uma sobrancelha para


mim.

— Você não é tipo super rico agora? — contestei, arrancando-o uma


risadinha baixa.
— Eu sempre fui super rico.

— É mesmo, esqueci que você veio do berço de ouro.

Nossos pedidos foram postos em nossa frente um momento depois.


Luke pegou seu latte e eu segurei a borda do saco pardo. Nós caminhamos
juntos até a saída, onde Luke olhou para os próprios pés e soltou um suspiro

contido. Foi quase imperceptível, mas captei o som. Era angústia.

— Que foi? — perguntei, arrancando-lhe dos pensamentos.

— Hum? — Luke disparou as íris para mim, afastando o ar de


melancolia do rosto.

— Você tá estranho — apontei.

— Estou pensando nela agora.

Ele não precisava me dizer quem era ela, porque eu já sabia. Faith, a

garota loira que o tinha nas mãos. Lembro do jeito como eles se olhavam
quando os vi juntos pela primeira e única vez, antes de me mudar para
Massachusetts. Pareciam muito apaixonados.

— Você é uma superestrela agora, não devia estar triste por causa de
uma garota — brinquei, usando tom de voz sério.

Luke e eu paramos na calçada, perto de alguns carros e um


parquímetro. O vento gélido da manhã soprava em nossos rostos e cabelos. A
jaqueta que eu estava usando protegia bem meu tronco do frio que queria se

infiltrar sob o tecido. Um meio sorriso tomou conta de sua boca.

— Você não entende, Hunt. Ela não é só mais uma garota. Ela é A
garota. Minha garota.

— Não entendo mesmo, é por isso que tudo o que eu faço é sexo
casual.

O sorriso de Luke cresceu.

— Hunt, você vai ver, cara. Ela vai partir seu coração.

— Ela quem? — Fechei a expressão, sentindo todos os músculos do


corpo ficarem rígidos e meu coração errar algumas batidas. Se ele estivesse
falando sobre Eve...

— A garota para quem você está levando o muffin extra.

— Cuida da sua vida — respondi, na defensiva.

Ele riu.

— Então ela realmente existe. Quem diria? Hunt Finley levando


muffins para uma garota. Essa é nova.
— Ela é só a minha amiga.

— É o que eu dizia quando alguém insinuava que eu sentia algo a mais


pela Faith.

Eu o ignorei.

— Preciso ir agora, cara. Foi ótimo te ver outra vez e vê se aparece

mais vezes por aqui, a gente precisa sair para relembrar os velhos tempos.

— Beleza. Até mais, Hunt. A gente se vê. — Luke se despediu e


colocou o capuz de volta na cabeça, passando despercebido outra vez pelas
pessoas que movimentavam as ruas de Massachusetts.

Ela vai partir seu coração.

Até parece.

Eve não estava mais dormindo quando voltei. Na verdade, ela já não
estava mais em meu apartamento. Havia uma mensagem sua em meu celular,
que tinha sido enviada há dez minutos.
Eve: obrigada por ontem, tinha um teste importante hoje

Eve: onde vc se meteu?

Eve: dx pra lá, não importa

Eve: deixei suas chaves embaixo do tapete

Havia um tapete em frente a porta da Evelyn e me agachei para tirar


meu molho de chaves de lá. Um sorriso torto ousava despontar em minha
boca, mas me sentia meio estranho. Entrei no meu apartamento, vazio, e
digitei uma resposta:

Eu: foi mal, tive q resolver uma coisa

Eu: boa sorte no teste

Por algum motivo, estava envergonhado demais para admitir que tinha
saído para comprar o café da manhã de Eve. Que merda eu estava pensando?

Eu não era esse tipo de cara.

Joguei o celular no sofá e fitei um ponto fixo. Veria Eve daqui algumas
horas, para a noite de Halloween. Ela não tinha permitido que eu visse a
fantasia que ela tinha reservado para mim, que me entregou em uma caixa e
tinha me feito prometer que não abriria até a hora de vesti-la. Foi o único
jeito para que ela topasse me acompanhar. Eu também não sabia o que Eve
vestiria, mas mal podia esperar para ver.

— Que porra de fantasia é essa? — Ian perguntou, assim que eu abri a


porta para ele.

Ele estava usando um blazer preto e uma calça jeans da mesma cor. O
rosto estava coberto por tinta branca e preta em um desenho realístico, era
como se sua pele tivesse se decomposto e seu crânio visível. Os fios
castanhos do cabelo estavam jogados para trás e seus olhos azuis dele
cintilando mais que nunca.

— Não tá tão ruim — murmurei, irritado. — Não enche, porra.

— Por que você tá vestido assim? — Ian continuou, um sorriso torto


ocupando sua boca agora.

Dava para ver que ele estava se divertindo muito com a ideia da
Evelyn.

— A Eve quis depois que... — Parei de falar, estalando a língua e


pegando minhas chaves. — A gente tá atrasado, não temos tempo para papo
furado.

— Que bonitinho. A vizinha quis que você se vestisse assim e você


cedeu em um piscar de olhos.

Travei as mandíbulas.

— Cuida da sua vida, seu idiota...

— Cara, você tá tão fodido...

— Sai do meu apartamento — eu cuspi, empurrando-o com as luvas


brancas da fantasia, o que só pareceu divertir Ian ainda mais, já que ele
começou a rir a ponto de hiperventilar.

— Eu vou esperar lá embaixo na van. O Atticus vai adorar ver isso —


Ian resmungou, antes de finalmente sumir descendo a escadaria.

Estava calor dentro da minha roupa e já sentia os cabelos da nuca


ficarem úmidos. Toquei a campainha da Eve depois que fechei a minha porta
e esperei até que ela aparecesse. Ao contrário de mim, Eve não parecia
ridícula, mas deslumbrante. Estava usando um vestido azul claro, com um
avental branco, babados e laços. A saia rodada acabava em seus joelhos. As
pernas estavam cobertas por uma meia calça fina bege e ela usava sapatilhas
pretas. Um laço prendia seus cabelos pretos para trás e eu finalmente
compreendi. Um sorriso se puxou no canto de minha boca.

— Senhorita Alice — eu disse, na língua de sinais e depois toquei as


orelhas felpudas que saíam do meu chapéu. — Agora acho que entendo —
resmunguei, mexendo os lábios.

Eve sorriu, o rosto divertido enquanto ela analisava o que tinha exigido

de mim: chapéu cartola de veludo com orelhas compridas, blazer azul por
cima de uma blusa branca com mangas longas bufantes e babados sob o
colarinho. A calça era meio estranha e acabava um pouco abaixo nos joelhos
— da mesma cor da jaqueta — e eu usava mocassins e luvas. Me sentia algo
entre Shakespeare e X-Men.

— Você é o Coelho Branco da Alice — ela esclareceu, revelando todo


o suspense por trás das nossas fantasias.

— Você gosta de Alice No País das Maravilhas? — questionei.

— É meu livro preferido — Eve concordou.

— Você está me usando como acessório para sua fantasia, Evelyn. —


Franzi o cenho, como se estivesse ofendido.

— Você é um complemento. — Ela deu de ombros, como quem não se


importava.
Eu não pude evitar rir.

— Como você é malvada. Agora vem, a gente já tá atrasado. Podemos


discutir sobre nossas fantasias depois.

Evelyn assentiu e bateu o dedo indicador contra o relógio acorrentado


no bolso do meu blazer, parecendo animada.

Como eu não tinha percebido antes? Estava meio óbvio.

Um pequeno sorriso ousava delinear seus lábios toda vez que ela
olhava para a minha fantasia, parecia mesmo estar contente com o resultado.
De repente, me senti satisfeito. Não importava se eu estava ridículo ou não.
Eve estava feliz.

Quando chegamos na van, abri a porta para Eve e ela entrou depois de
acenar para Ian e Atticus através do retrovisor frontal. Apontei um dedo
enluvado para meus amigos e me curvei até que estivesse no vão entre seus

assentos.

— Vou matar vocês se zombarem da minha fantasia.

— Você está ridículo — Atticus disse, me fitando com o cenho


franzido, depois mudou o olhar para um ponto atrás do meu ombro. Estava
fantasiado de Frankenstein. — Eve tá bonita. Como digo que ela está bonita
na língua de sinais?
— Você não vai dizer isso para ela — eu murmurei, sério.

— Para de bancar o homem das cavernas — Ian resmungou, parecendo


meio incomodado com algo.

Talvez ele estivesse em um dia ruim, o ignorei.

— Não se preocupem, ela vai saber disso agora mesmo — cuspi para

eles, sentando-me ao lado de Eve quando Atticus começou a dirigir e ligou o


rádio.

Ela me encarava com um olhar meio estranho.

— Oi. — Eu sinalizei, suavizando o cenho.

— Oi — Eve respondeu.

— Você tá linda — eu disse, sendo honesto. Não resistindo ao impulso,


escovei os dedos em seu rosto, observando seu queixo estremecer. Suas

pálpebras pesaram e quase fecharam com o contato repentino e fugaz.

— Obrigada — Eve replicou, antes de tombar a cabeça contra o


encosto e olhar para baixo, para longe.

Aquele era o jeito dela de me dizer que não estava mais a fim de
conversar e respeitei sua vontade e espaço. Durante o restante do trajeto, Ian
passou resmungando sobre o quanto o proprietário do lugar devia estar com
raiva de nós pelo atraso imprevisto por conta do trânsito.

Demorou cerca de trinta minutos para que chegássemos. Quando


descemos da van, lancei um olhar para Eve. Ela parecia menos animada agora
e me senti apreensivo. Disposto a mudar a expressão complexa em seu rosto,
estendi uma das mãos enluvadas para ela, fazendo uma mesura.

O sorriso no rosto dela me fez sentir estranho quando ela aceitou,


deslizando a palma contra a minha.
Eu podia sentir as vibrações da música abaixo das solas de minhas

sapatilhas. Estava no fundo da boate, onde a festa estava acontecendo. Hunt


havia me deixado aqui com uma garota chamada Ash. Ela não sabia língua de
sinais, mas era bonita e tinha olhos cinzas impetuosos. Era irmã de Atticus.
Apesar de parecerem opostos (ele mais fechado e ela um espírito livre),
compartilhavam o mesmo nariz e boca.

Ash falava comigo através do aplicativo de mensagens, por isso eu


sempre dava uma ou outra bisbilhotada em meu celular. O ar estava abafado e
a massa de corpos estendida na pista de dança parecia agitada. Me perguntei
se eles estavam gritando por Hunt.

Meu visor acendeu.

Ash: quer uma bebida?

Eu: não, obrigada

Ash: tem certeza?

Eu: tenho

Ash: ok

Ela me lançou um olhar antes de se virar e se afastar da cabine onde


estávamos sentadas. Engoli a frustração e tentei me concentrar no palco a
alguns metros de distância. A verdade era que eu não devia estar aqui.

Ash voltou alguns momentos depois, com uma garrafa de cerveja. Ela

estava vestida de bruxa. Era uma fantasia boa. Vestido de couro, chapéu
comprido com a ponta fina e uma maquiagem bonita no rosto. Ela sorriu na
minha direção. Dava para ver que ela era uma garota legal.

Ash puxou o celular do bolso e me prontifiquei, baixando o olhar para


o meu aparelho.
Ash: o q vc cursa na Goldring? tentei passar nessa faculdade mas
acho q não tinha cérebro o suficiente

Eu: eu faço pedagogia e vc?

Ash: enfermagem

Eu: que inteligente

Ash: vc que estuda na Goldring

Eu: isso ñ significa mta coisa, qlqr um que tem dinheiro pode estudar

Ash: isso quer dizer q vc é rica?

Eu: não, mas tb n sou pobre

Ash: classe média alta?

Eu: touché

Ash: eles vão entrar agr

Lancei um olhar para cima, em direção ao palco. Atticus e Ian surgiram


primeiro, depois Hunt. Nunca frequentei muitas festas, não fui o tipo de
adolescente agitada. Me sentia deslocada aqui, por isso hesitei antes mesmo
de chegarmos no local.
Os olhos escuros de Hunt passearam pela multidão, como se ele
estivesse procurando por alguém. Prendi a respiração quando seu olhar se

conectou ao meu. Ele sorriu torto e então começaram a tocar e cantar. Não
escutei nada, é claro. Mas sentia o chão estremecer, como tudo ao meu redor.
Até mesmo o banco onde eu estava sentada.

Fiquei hipnotizada nos movimentos de Hunt. Ele parecia pertencer à

música e ao palco. Sua boca se movia próxima do microfone enquanto ele


dedilhava a guitarra como se fosse uma extensão do seu corpo e sua vida
dependesse disso. Ele parecia mais confiante do que nunca lá em cima e feliz
também. A multidão se movia conforme as vibrações, como um cardume
sincronizado.

Duas músicas se passaram.

De repente, comecei a sentir inveja.

Inveja de todos que podiam ouvi-lo. De todo mundo que podia saber
como era a sua voz. Tentava não seguir por este caminho na maioria das
vezes, mas eu era humana e, droga, eu me frustrava.

Um nó começou a se formar na minha garganta e me senti sufocada.


Toquei na mão de Ash, que parecia estar se divertindo com o show e suas íris
foram atraídas para mim. O brilho em seu rosto sumiu assim que ela me
encarou de volta.

Peguei meu celular e mandei uma mensagem.

Eu: vou ao banheiro

Sem esperar por uma resposta sua, me virei e me enfiei entre o mar de
pessoas, traçando caminho até um corredor onde havia uma pequena fila com

três garotas. Meu celular vibrou na minha mão.

Ash: essa é a última música, vc podia ter esperado

Eu: foi mal, é urgente

Bloqueei o aparelho e não o chequei nem uma outra vez, nem mesmo
quando o visor iluminou, notificando-me sobre outra mensagem de Ash. O
banheiro ficou livre em cinco minutos. Eu precisava mesmo fazer xixi, mas
também precisava respirar um pouco, só que o cheiro no banheiro estava

péssimo. Lavei as mãos e depois as sequei com papel toalha e então


finalmente saí dali.

Quase passei por ele diretamente. Hunt estava parado ao lado da porta,
atraindo mais atenção para si do que poderia notar, já que seus olhos estavam
me analisando com cuidado e hesitação. Soltei um suspiro e tentei sorrir um
pouco, só que não deu certo.
— Eu... — Comecei a sinalizar, mas Hunt me interrompeu, segurando
as minhas mãos.

— Não precisa dizer — disse ele, em voz alta. Li seus lábios. — Dança
comigo.

Antes que pudesse respondê-lo, Hunt me puxou em direção a pista de

dança. Não tive reação imediata quando ele colocou os braços ao meu redor e
me ajustou contra seu corpo. O calor que irradiava por baixo da fantasia que
ele usava era desconcertante e me deixou inquieta. Sentia meu coração pulsar
violentamente contra as minhas costelas.

A música que estava tocando agora era agitada, pelas vibrações. Só que
Hunt não parecia se importar enquanto dançava de maneira lenta comigo. Ao
nosso redor, as pessoas nos lançavam olhares esquisitos, mas tudo o que
importava agora era o momento entre nós.

Não sei por quanto tempo ficamos dançando valsa no meio da boate.
Em algum momento, Hunt me levou até a porta dos fundos e nós saímos do
estabelecimento. A van estava parada a alguns metros de distância e o lugar
estava vazio, a luz fraca de um poste iluminando parcialmente a rua.

Me voltei para Hunt, mordendo o lábio inferior nervosamente.

— Me deixa te levar para casa.


Franzi o cenho.

— Claro, eu vou voltar com vocês na van...

Ele me interrompeu:

— Não. Eu quis dizer a minha casa. Onde cresci.

Houve uma pausa. Prendi a respiração no topo dos meus pulmões.


Alguns momentos se passaram. Hunt pareceu ficar sem graça com a minha
falta de reação, ele tirou o chapéu da cabeça e passou os dedos entre os fios
sedosos dos seus cabelos, olhando para longe. Eu nem conseguia mais achar
a fantasia dele engraçada.

Aquele era um passo assustador. Nós estávamos em sintonias opostas.


Na verdade, acho que eu até queria que ele me levasse para a sua casa. Só que
eu não devia. Era demais.

— Por favor, Eve. — Hunt voltou a sinalizar. — Eu quero que você


conheça as minhas mães.

Senti uma pontada no peito.

— Por quê? — indaguei.

— Não sei.
Não era uma resposta boa o suficiente.

— Não posso. — Uma mão invisível pareceu se fechar ao redor do meu


pescoço, deixando-me sem ar. — Desculpe.

— Por quê? — Foi a vez dele de exigir uma resposta. Havia um vinco
profundo entre suas sobrancelhas e o um quê de frustração preenchia seu

olhar.

— Porque eu não quero um relacionamento agora.

— Eu não tô pedindo você em casamento, Evelyn.

— Mas quer que eu conheça suas mães, é um grande passo.

— Não significa muita coisa. São só... as minhas mães. E nós somos
amigos, não somos?

Amigos não olham um para o outro do jeito que você olha para mim,

pensei.

— Só um final de semana, margarida. — O rosto dele ficou mais suave


e ele se aproximou. — Te trago de volta domingo à noite. Vai ser legal.

Eu sabia que Hunt me convenceria mais tarde de que não era apenas
um encontro de amigos. Quando eu colocasse meus pés na porta da sua casa,
o lugar onde ele cresceu, onde havia memórias e amor, não teria mais volta.
Quando ele me apresentasse para suas mães, tudo estaria arruinado. Minhas
barreiras cederiam uma por uma e eu ficaria vulnerável.

Aceitei o convite.
Sábado pela manhã, eu e Hunt estávamos indo para sua casa em

Connecticut. Como era uma viagem de mais ou menos duas horas e eu odiava
motos, nós optamos por ir no meu carro. Hunt dirigia o Honda com um certo
entusiasmo, ele parecia mesmo animado para visitar as mães. Parte de mim
queria pensar que era por minha causa, porque ele iria me apresentar a elas,
só que me senti meio tola um segundo depois. Ele devia estar mesmo com
saudades de seu lar. Eu também sentia saudades de casa.

Tentei não observá-lo por muito tempo, mas senti que falhei
miseravelmente. Hunt estava tão bonito, com uma camiseta azul de mangas
longas e o cabelo sedoso sendo agitado pelo vento que invadia o automóvel

por uma fresta da janela que não consegui ser discreta na tarefa de admirá-lo
secretamente. Seu olhar se conectou ao meu por um momento, ele tocou no
meu queixo com a ponta dos dedos e o empurrou suavemente para cima. A
expressão prepotente em seu rosto dizia: você está babando.

Senti o rubor espalhar pelo rosto e me virei para a janela, observando a


paisagem correr lá fora. Me ajeitei no banco, ficando mais confortável e
fechei os olhos, sentindo-me estranhamente em paz.

Cochilei por alguns momentos, mas, depois, despertei. Hunt ser de


Connecticut já falava por si só sobre a situação financeira de suas mães.
Quando ele estacionou o carro em frente uma enorme casa ornamentada por
pedras brancas de três andares, com piscina no quintal e um jardim, fiquei
ainda mais nervosa, questionando-me se minhas roupas seriam boas o

suficiente para as mulheres que criaram Hunt. Por algum motivo, sentia que
precisava causar uma boa impressão a elas.

Só notei que tinha congelado quando vi Hunt parado em frente à minha


porta do lado de fora, como se tivesse se teletransportado para lá em uma
fração de segundos. Ele puxou a maçaneta e me esperou descer do carro. Um
sorrisinho delineava seus lábios.
— Você está meio pálida — Hunt sinalizou, parecendo ficar perplexo.

— Não é nada. — Movi as mãos depressa. — Não tomei café hoje.

Era mentira, a minha palidez e súbita vertigem não tinham nenhuma


ligação com a falta de café da manhã que, aliás, havia sido ovos, torradas e
tiras de bacon. Eu só precisava de uma desculpa conveniente para não ter que

assumir que eu estava nervosa para conhecer as mães de Hunt.

— Vamos, você pode comer lá dentro.

Ele puxou minha mão e nós começamos a andar em direção a entrada.


Assim que atravessamos a porta de três metros, adentramos em um hall
chique e depois chegamos a uma sala. Mal pude fazer minha análise na casa
refinada quando uma das mães super ricas do Hunt parou em nossa frente.
Presumi isso pelo jeito que seus olhos azuis cintilaram quando o avistaram.
Ela usava um pijama de flanela e o abraçou.

Quando se separaram, os olhos cristalinos pousaram em mim.

O que eu fazia? Sorria ou acenava? Estendia a mão? Antes que eu


pudesse pensar, a mulher também me abraçou. Ela cheirava a baunilha e
morangos e tinha um abraço bom. Se afastou um momento depois e
sinalizou, surpreendendo-me:

— Você é tão bonita.


Lancei um olhar chocado para Hunt.

— Ela sabe um pouco de língua de sinais americana porque eu ensinei.


— Levantou um dos ombros. — Desculpa, esqueci de falar.

De repente, me senti menos desconfortável.

— Oi. Eu sou a Evelyn, a amiga do Hunt — me apresentei. — É um

prazer conhecer a senhora.

— Por favor, me chame de Reagan. — Um sorriso tomou conta de seu


rosto. A pele alva das suas bochechas estavam meio coradas. — Seu cabelo é
lindo. — Seus dedos roçaram nas minhas pontas sedosas. Ainda bem que eu
tinha feito uma hidratação ontem. — A Kira vai adorar você.

Sorri, sentindo os ombros relaxarem. Reagan era fácil de lidar, fácil de


gostar.

Um momento depois, outra mulher surgiu na sala. Ela era alta, uns três
centímetros mais baixa que eu. Seu cabelo preto era longo. Ao contrário de
Reagan, sua presença era marcante. Parecia ter personalidade forte. Eu dizia
aquilo pelas roupas de couro e o batom vermelho.

Kira deu um abraço em Hunt também, depois me abraçou.

— Ela não é bonita? — Reagan perguntou, me olhando com uma


atenção meticulosa.

Fiquei sem graça.

— É, sim. Muito bonita. Até para o Hunt.

— Ei — ele contestou, dizendo em voz alta ao mesmo tempo em que


sinalizava. — Eu sei que não estou à altura da Evelyn, mas sou seu filho mais

bonito.

— Você é meu único filho — Kira sinalizou, com uma expressão meio
entediada e muito séria.

Hunt tentou parecer ofendido, só que ele falhou e acabou rindo. Mordi
os lábios para conter o sorriso. Não tive mais tempo para falar com as mães
de Hunt, porque ele me puxou escada acima, até o segundo andar. Fiquei
meio nervosa, mas sabia que ele não tentaria nada com sua família aqui. Eu
acho. De qualquer forma, me sentia invasiva.

Entramos em uma das portas do corredor extenso. Como presumi, era


seu quarto. Nem fiquei surpresa ao ver os pôsteres de banda nas suas paredes.
Havia uma estante ornamentada de vidro com uma coleção extensa de discos
e a cama estava posta com um edredom de um Camaro 1969. O cômodo todo
tinha decoração meio vintage, na vibe dos anos 80. Tinha também duas
guitarras presas à parede cinza adjacente da cama.
Hunt me puxou até a janela, ele a abriu e apontou para o outro lado da
rua, então virou o rosto em direção ao meu. Nossos narizes quase se tocaram

e me senti desconcertada por um momento. Ele baixou o olhar para meus


lábios, respirou fundo, pareceu se conter e moveu a boca:

— Lá está a casa para onde o Pringles fugiu.

Olhei para frente, de volta para o outro lado da rua, por mais que não
quisesse afastar meu rosto do seu. A casa tinha o mesmo padrão da de Hunt,
era até mesmo tão elegante quanto. Nos afastamos da janela quando um Jeep
estacionou em frente à propriedade.

— É uma casa bonita. — Sinalizei. — Acho que entendo o Pringles.

— Engraçadinha. — Hunt me deu um sorriso torto, depois ficou sério.


— Você está com fome, não tá? Vou pedir para prepararem algo.

— Não precisa. Não estou mais a fim de comer.

— Você não comeu nada hoje, Eve.

— Eu meio que menti para você — admiti, movendo as mãos. —


Desculpa, eu estava nervosa, você não pode me culpar por isso.

— Nervosa por quê?

— Porque são suas mães!


— E o que tem as minhas mães? — Hunt me avaliou com atenção.

Fiquei tímida sob seu olhar e desviei o olhar para longe, virando o rosto
em direção à janela. Bem, havia muita coisa para dizer a Hunt.

1 - Conhecer suas mães não tinha sido uma boa ideia, por mais que elas
claramente fossem pessoas boas e gentis.

2 - Nós estávamos ultrapassando diversas linhas.

3 - Eu poderia facilmente me acostumar a isso tudo. Cafés da manhã


juntos, as visitas que ele fazia ao meu apartamento, a droga da adoção da
gata. Meu Deus, a gente realmente tinha adotado uma gata juntos! Estávamos
fugindo do controle. Tudo estava fugindo do controle.

4 - Eu queria impressioná-las, por sabe-lá-qual-motivo. Por isso o


nervosismo.

— Eve. — Hunt moveu os lábios após encaixar os dedos abaixo do


meu queixo e virar meu rosto em sua direção. Seus olhos estavam baixos,
presos na minha boca e ele estava mais próximo do que antes, nossos peitos
quase colados. Senti o coração golpear contra minhas costelas. — No que
está pensando?

Antes que eu pudesse respondê-lo, no entanto, sua boca se fechou sobre


a minha. A princípio, o toque foi suave e contido, feito pluma. Soltei um
suspiro e coloquei minhas mãos em seu pescoço, puxando-o mais para perto e
causando uma fricção desesperada entre nossos corpos. Hunt girou a língua

contra a minha com aquele maldito piercing de metal, o que me deixou ainda
mais extasiada. Era patético como ele podia me deixar maluca só com um
contato.

Quando as coisas começaram a ficar intensas demais, do tipo mãos por

baixo da camiseta e toques frenéticos, espalmei as mãos no peitoral de Hunt e


o empurrei levemente para trás, desgrudando sua boca da minha e afastando
seu corpo do meu. Seu cabelo estava bagunçado e os lábios inchados, ele me
encarava com uma combinação perigosa: excitação e irritação. Dava para ver
a frustração brilhando em suas íris, junto com uma pontinha de impaciência.
Também estava carimbado em sua expressão: o cenho franzido, as
sobrancelhas juntas, o canto da boca levemente curvado para baixo.

Engoli em seco.

— A gente não devia continuar... — Antes que eu pudesse completar a


minha frase, Hunt me cortou:

— Vamos ser silenciosos. A porta está fechada, minhas mães não vão
aparecer aqui.

— Não é só por causa disso.


Hunt pareceu ficar exasperado.

— Você é covarde.

— Não sou covarde — rebati, ofendida.

Hunt me ignorou.

— É irônico que eu já tenha tido você de todas as formas imagináveis


possíveis na minha mente e te dado três beijos e alguns amassos até agora.

Recuei.

— Você não pode dizer essas coisas. Nós somos amigos. — Eu


sinalizei, repetindo pateticamente aquela frase pela milésima vez e dando
alguns passos para trás.

— Não somos amigos — ele replicou. — Não amigos comuns, pelo


menos.

— Somos, sim.

— Não somos. Nós queremos coisas que amigos não querem. Ou não
deviam querer.

— Você não sabe nada sobre o que eu quero. — A parede finalmente


bateu contra minhas costas e me vi encurralada por Hunt enquanto ele se
aproximava, lento feito um predador.

— Posso não saber sobre as coisas que você almeja, mas tenho certeza
sobre algo, Eve. Sei que você me quer tanto quanto eu te quero.

Meu peito subia e descia pesadamente, meu coração estava trovejando


contra as minhas costelas e eu tinha medo de que Hunt pudesse ouvi-lo.

— Veja o que você faz comigo, Evelyn. — Li as palavras em seus


lábios antes que ele circulasse meu pulso com a mão e colocasse minha
palma aberta no centro do seu peitoral, embaixo da camiseta.

Sua pele estava quente e era macia e firme sob meu toque, ele deslizou
minha mão para baixo contra a sua, fazendo-me traçar uma linha em sentido
ao sul. Meus dedos deslizaram sobre seu abdômen definido e depois pararam
no cós de sua calça. Hunt me fez ir além e não o impedi, até que minha palma
estivesse sobre sua protuberância através do tecido jeans.

— Evelyn. — Ele respirou contra minha boca, apoiando as mãos em


cada lado de minha cabeça, sustentando-se na parede atrás de mim. Meus
olhos estavam fixos nos seus lábios e depois subiram, para fazer contato
visual.

Havia uma súplica silenciosa e urgente em suas íris que dizia me toque.

Cedi, ignorando que eu estava indo contra meu raciocínio e deixando


com que o desejo assumisse o controle. Queria ser eu a levá-lo ao êxtase, não
ao contrário. Hunt já tinha me dado dois orgasmos. Desta vez, eu queria

decorar seu rosto quando ele gozasse, entender seu corpo e saber como
poderia satisfazê-lo. Meus dedos trêmulos abriram os botões de sua calça, um
por um.

Desci o zíper, enfiei minha mão dentro de sua cueca.

Envolvi uma das palmas ao redor de seu membro extenso, circulando-o


com os dedos. Apoiei a mão livre aberta no peito de Hunt, sobre seu coração.
Senti as pancadas fortes e rítmicas de seu batimento cardíaco enquanto movia
a mão para cima e para baixo pela primeira vez, de maneira lenta e
exploratória.

Fixei meus olhos no seu rosto. Hunt franziu o cenho com força e
baixou o olhar para minha mão. Fiz outro movimento cauteloso e suave. O

coração dele errou uma batida. Hunt soltou o ar com força, fazendo minha
palma aberta em seu peito acompanhar o movimento ao estufar e esvaziar.
Seus olhos encontraram os meus.

— Forte — ele disse, em voz alta. Aumentei a força com que o


pressionava. — Rápido — acrescentou, um segundo depois.

Obedeci, fazendo os movimentos até sua glande e voltando até a base.


Pressionei meu polegar na ponta de pênis e me intriguei com a nova textura.

Não era macia, nem aveludada, era lisa e sólida, gélida. Um piercing. Hunt

me encarou confuso quando parei de tocá-lo. Um quê de aborrecimento e


confusão preencheu seu olhar.

Até que me ajoelhei.

Ele pareceu surpreso, mas durou uma ou duas frações de segundos.


Depois, parecendo gostar muito da ideia, baixou as calças e a cueca de uma
vez só, depressa. O membro dele estava rígido a um palmo do meu rosto.
Hunt segurou meus cabelos que escorriam pelas costas em um rabo de cavalo
improvisado em uma das mãos e com a outra livre, ele capturou meu queixo
entre seu polegar e dedo indicador com ternura e disse, olhando em meus
olhos:

— Quero gozar na sua boca.

Senti meu interior estremecer. Separei os lábios em expectativa, Hunt


envolveu os dedos tatuados ao redor do seu próprio membro e o guiou para
dentro de minha boca, as íris presas às minhas. Não conseguia cobri-lo por
inteiro, mas substituí minha mão pela sua e o masturbei ao mesmo tempo em
que o chupava. O gosto salgado de sua pele invadiu meu paladar por
completo.
Seus dedos apertaram mais ao redor dos meus cabelos, com força,
fazendo minha nuca doer. Continuei chupando-o, sentindo o piercing em sua

glande na língua, observando suas pálpebras pesadas, mandíbulas travadas e


íris embevecidas por desejo.

Quando ele gozou, deixei com que fosse do seu jeito: na minha boca.
Deixei que ele derramasse cada gota do seu líquido em mim e engoli

enquanto o observava estremecer e entreabrir os lábios em um gemido mudo.


Hunt se afastou e minha boca formigava quando ele caiu de joelhos em
minha frente e deixou um beijo casto nos meus lábios, contrariando tudo o
que tínhamos feito anteriormente: áspero, desesperado e ríspido.

— Acho que nunca terminei tão rápido antes. — Hunt sinalizou, com
naturalidade.

Era engraçado como ele estava agindo, como se fosse a coisa mais

normal do mundo a intimidade entre nós. Não me sentia tão constrangida


quanto achei que fosse me sentir, também. Era diferente depois que o véu da
excitação caía. A verdade era que eu ainda queimava por Hunt, estava quase
esfregando as pernas umas contra as outras, em busca de alívio. Era assim
que ele se sentia toda vez que eu chegava lá e ele não?

— Aposto que você está encharcada.


Em resposta, dei de ombros.

— Deixa eu aliviar para você — Hunt continuou, me dando um sorriso


torto.

Eu devia dizer não, devia ter me afastado, só que eu não fiz nada disso.
Eu o deixei se aproximar, deixei com que sua mão deslizasse para dentro da

minha calcinha, deixei com que dois dedos seus afundassem em mim.

Mordi o lábio inferior com força.

Hunt beijou meu pescoço e começou os movimentos. Eram lentos,


calculados, torturantes. O lancei um olhar exigente, sentindo um misto de
raiva e excitação. Ele riu, notando minha expressão, então acelerou um
pouco, começou a esfregar meu clítoris também. Quase rolei os olhos. Estava
por pouco fechando as pálpebras quando Hunt moveu a boca, fazendo-me ler
o que ele estava dizendo.

— Você se toca?

Hesitei em respondê-lo e isso foi o suficiente.

— Você pensa em mim?

Continuei sem reação. Como punição, Hunt parou de mexer os dedos.


O fitei com descrença e empurrei seu ombro. Um sorriso torto curvava seus
lábios, mas seus olhos estavam muito sérios e curiosos.

Movi meus quadris, praticamente montando seus dedos. Podia fazer o


trabalho, já que ele não queria me recompensar. Hunt semicerrou os olhos e
deslizou a mão para fora de mim.

— Responde, Evelyn.

Assenti, cedendo. Eu queria matá-lo.

— O quê? — ele exigiu.

— Sim, eu me toco — admiti, sinalizando.

Um brilho atravessou seu olhar.

— Pensando em mim?

Demorei alguns momentos para assentir daquela vez, sentindo o rubor


subir por meu pescoço e se espalhar em minhas bochechas. Em compensação,

Hunt voltou a me tocar. Daquela vez, ele foi até o fim e me deu o que eu
queria. Foi devastador e intenso, como das outras vezes, mas dessa vez tinha
algo estranho. Aquela conexão estranha pairava sobre nós.

Decidi ignorá-la.
— Você devia chamá-la para sair — Reagan ressoou sobre a borda da

caneca de café entre suas mãos.

— Ele já fez isso — Kira rebateu, colocando o chá para ferver no


fogão.

Continuei em frente à porta da geladeira, com cara de paisagem. Passei


meus olhos entre as prateleiras outra vez e, merda, o que eu estava
procurando? A conversa paralela das minhas mães tirou todo o meu foco.
Peguei o pote de geleia de framboesa e a pasta de amendoim. Reagan

arqueou as sobrancelhas e eu fui até o armário, empilhando o saco de pão de

forma em meus braços.

— Diz alguma coisa — minha mãe disse, abaixando a caneca e me


lançando um olhar avaliativo.

Limpei a garganta e comecei a preparar o sanduíche na bancada.

— Eu não a chamei para sair — murmurei, categórico.

— Que ótimo! — Mãe K exclamou atrás de mim. Eu não precisava me


virar para saber que ela estava me lançando um olhar de reprovação. O tom
de ironia presente em sua voz não era nem um pouco reconfortante.

— A gente é só amigo — falei, tentando, em vão, me defender.

— Você devia chamá-la para sair — Reagan reforçou.

— Sim, eu gosto dela — mãe número dois respondeu.

Terminei o sanduíche e o coloquei em um prato. Eve estava no quarto


de hóspedes, tomando banho. Em breve, ela se juntaria a nós. Eu esperava
que minhas mães não fossem me envergonhar contando histórias
constrangedoras. Elas adoravam falar para todo mundo que vinha aqui para
casa da primeira vez que arrancaram um dente de leite meu.
— Estou morrendo de dor de cabeça. — Reagan começou a massagear
as têmporas. Acabei com meu sanduíche em quatro mordidas, deixando só os

farelos no prato. Ela lançou me lançou um olhar, o rosto sério. Apontou um


dedo para mim. — Limpa isso.

Ergui os braços em redenção.

Enquanto eu lavava a louça, Kira preparava seu chá hortelã pontual


para ter um sono profundo e cantarolava distraidamente um trecho de alguma
balada esquecida dos anos oitenta em frente ao fogão, mexendo os quadris no
ritmo imaginário que devia ressoar em sua cabeça. Senti falta disso. Meu
celular vibrou, indicando a chegada de uma mensagem.

Mãe Reagan: #SOS filho

Mãe Reagan: estou com dor de cabeça

Mãe Reagan: preciso do seu barulho para me curar

Eu ri.

Eu: não é barulho

Eu: barulho é p quem não toca nd

Eu: eu sou expert nisso


Mãe Reagan: ok, vem pra sala de música

Eu: piano?

Minha mãe tinha o estranho hábito de querer ouvir piano sempre que
tinha enxaquecas. De preferência, ela gostava de que eu tocasse para ela.

Mãe Reagan: sim

Bloqueei a tela do celular e o enfiei no bolso, então comecei a andar


rumo à sala de música, que ficava no lugar do porão. Minhas mães tinham
reformado o lugar todo há alguns anos para que fosse à prova de som e o
equipado com todo tipo de instrumento que se podia imaginar. Era um
paraíso para quem era louco por música, como eu. Quando desci o lance de
escadas, para o subsolo, onde ficava a sala, encontrei minha mãe deitada no
sofá cinza que ficava lá embaixo com uma bolsa térmica sobre a testa. Ainda
de olhos fechados, ela disse:

— Trilha sonora de Crepúsculo.

— Sério? Pelo amor de Deus.

— Tenho que lembrar que você era obcecado por este filme e até fingia
ser um vampi...

— Vou tocar, preciso de silêncio — a cortei, entre os dentes.


Me sentei no banco longo de madeira que ficava disposto em frente ao
piano. Era uma peça forte e cara, feita de ébano. Comecei a tocar a música

que minha mãe havia insistido, pincelando as teclas com suavidade. Tinha
um tempo que eu não punha as mãos nisso aqui. Quando terminei, ela pediu
outra. E mais uma. Estava na metade da quarta quando lancei um olhar para
cima. Para a minha surpresa, Eve estava sentada no topo das escadas, em um

dos degraus, observando-me com atenção. Os braços estavam descansando


nos joelhos e os punhos cerrados servindo de apoio para o seu queixo.

Me perguntei quando ela tinha chegado, já que não tinha ouvido e nem
visto, e há quanto tempo devia estar ali me observando. Parei de tocar, o que
fez com que minha mãe soltasse um barulho em protesto com a boca. Pensei
que ela já estivesse dormindo àquela altura e nem se importaria com a
interrupção abrupta.

— Quer um dueto? — Sinalizei para Eve.

Ela pareceu ter sido pega de surpresa com minha pergunta e hesitou.
Estava vestindo um pijama de mangas longas e calça com estampa de
patinhos. Nunca conheci alguém antes que tivesse tanta roupa para dormir
como Evelyn tinha.

— Faz tempo desde que toquei em conjunto. Não sei, não.


— Tempo quanto? — questionei, intrigado.

Eve nunca me disse sobre como ou quando começou a aprender a tocar


piano, dava para perceber que ela era uma daquelas pessoas que colocavam a
alma na música e tinha uma história com ela, assim como eu. Eu sabia que
era importante para ela e queria que ela falasse mais comigo sobre isso.
Porém, não a pressionava. Às vezes tinha muita coisa envolvida, muitos

sentimentos. Alegres ou sombrios.

— Anos.

— Relaxa. Vou devagar para não te deixar perdida.

Eve me deu um de seus sorrisos raros, só que cheio de desdém.

— Você que precisa se preocupar em conseguir me acompanhar.

Senti o canto dos meus lábios se erguer sutilmente e dei espaço para

Eve no banco de madeira assim que ela se aproximou. Nossos ombros de


roçaram quando ela tomou o assento ao meu lado. Notei a agitação repentina
da minha mãe no sofá e me lembrei de que ela também estava ali. Lancei um
olhar sobre o ombro para confirmar minhas suspeitas e não me surpreendi
nem um pouco. Ela já estava com a câmera do celular mirada em nós dois.

Eve não me disse o que tocaríamos. Ela começou os primeiros acordes,


lançando-me um olhar questionador e arqueando uma das sobrancelhas
levemente. A sombra de um sorriso pairava em sua boca. Reconheci a
melodia um momento depois: Hungarian Dances No 5. Eu conhecia a peça, a

toquei algumas vezes, mas não a dominei. Aceitei o desafio (depois de pegar
a partitura do dueto na internet).

O início foi divertido porque Evelyn pareceu respeitar meu ritmo


desleixado, mesmo que não pudesse ouvi-lo. Ela só parecia compreender a

velocidade das minhas mãos com um único olhar, o que dizia muito sobre o
quão perspicaz sobre o instrumento e a música ela era. Eve era habilidosa,
algo que eu já sabia, mas fiquei ainda mais impressionado quando fui deixado
para trás.

Ela não pareceu notar que eu já não estava mais tocando, porque seus
olhos tinham se fechado. Em algum momento, Eve tinha se teletransportado
para seu próprio mundo e começado a mudar a partitura que visualizava
mentalmente para que fosse um solo. Aconteceu de forma tão natural e

mecânica que duvidei que Evelyn sequer tivesse cogitado isso antes só para
me sacanear. Ela tinha se absorvido no piano.

Quando a música terminou, Eve levou uns três segundos para levantar
as pálpebras. E, quando ela me encarou, observei sua expressão de choque.
Era como eu tinha imaginado: ela havia ido para o seu próprio mundo.
Observei o rosto de Evelyn corar. Ela sinalizou um pedido de desculpas que
eu ignorei.

— Eu acho que vou dormir, estou meio cansada — Eve disse, na língua
de sinais, já se pondo de pé.

Ela nem percebeu a minha mãe, só subiu as escadas e girou a maçaneta,


saindo da sala de música. Soltei um suspiro e me levantei também,

espreguiçando o corpo. Ficar sentado todo esse tempo me deixou meio


enferrujado.

— Nossa, o que foi que aconteceu aqui? — Mãe R perguntou,


parecendo impressionada.

— A Eve é assim. Acho que essa música a lembrou de alguma coisa.


— Dei de ombros.

Minha mãe pareceu meio pensativa.

— Ela é tão expressiva e sensível. Parece ser uma boa garota. — Fez
uma pausa. — Não quebre o coração dela.

Me senti incomodado com essa frase, mas não falei nada. Eu só dei de
ombros outra vez, como quem não se importava, e desejei boa noite. Subi as
escadas e saí da sala de música.

Eu não partiria o coração de Evelyn.


Como a porta do quarto de hóspedes onde Evelyn dormiria estava

entreaberta, interpretei o sinal como um convite. Não um convite,


exatamente, mas uma brecha. Eve sabia que eu viria atrás dela e sabia que
tinha perguntas. Era uma oportunidade para fazer com que ela se abrisse.

Entrei no quarto com cautela, a encontrando sentada na cama. Eve


parecia longe de dormir, estava com os olhos perdidos no teto, o cabelo liso e
preto preso em um rabo de cavalo. Dei um passo para frente. O movimento
pareceu despertá-la e fazer com que me encarasse.

— Oi. — Sinalizei.

— Oi — Eve respondeu.

— Está tudo bem?

— Sim.

Pela forma que ela hesitou em mover as mãos, soube que tinha algo
acontecendo. Algo que Eve não estava dizendo.
— Me conta — falei, aproximando-me um pouco mais.

Evelyn pareceu ficar meio ultrajada, ela desviou o olhar para longe e
endireitou os ombros. Me sentei em sua frente e ergui o braço para que
pudesse tocar seu queixo. Virei seu rosto em minha direção gentilmente com
os dedos.

— O que foi, Evelyn? — falei em voz alta, com calma e da forma lenta
de sempre para que ela pudesse me entender.

— Nada, só que eu costumava tocar aquela música com a minha mãe.


Às vezes tocava para ela, também. Era o que ela gostava de ouvir durante as
noites, quando ficava difícil de dormir. Difícil para respirar.

Eu afastei minha mão, para que pudesse dizer:

— Você sente muita falta dela, não é?

— Todos os dias.

— Eu sinto muito.

— Está tudo bem, faz muito tempo. É que às vezes eu não consigo me
lembrar de como ela era. Ou de como era estar nos seus braços, só me
recordo dessa presença fraca e reconfortante, essa sensação esquisita de
segurança. De estar em casa. Sinto falta disso, sabe? Sinto falta de Seul
também. Tocar essa música trouxe muita coisa à tona.

— E por que você não vai para lá? Fazer uma visita, sei lá. Acho que
vai fazer você se sentir mais próxima da sua mãe, de alguma forma.

— Não sei, estou ocupada com a faculdade e o estágio. Talvez eu vá


nas férias, depois das provas finais.

Não falei mais nada, porque não sabia o que dizer. Entendia um pouco
do que Evelyn estava sentindo. Às vezes, eu me pegava pensando sobre a
minha mãe biológica. Ela não tinha feito o melhor papel como protetora, mas
eu a amava por motivos óbvios que eram confusos. Eu nunca poderia me
desfazer daquele laço materno, mas o que ela fez para me proteger e me amar
quando eu era uma criança carente e frágil? Nada. E, mesmo assim, o
sentimento continuava. Era estranho.

Tive sorte de ter sido encontrado por minhas mães, Reagan e Kira. Às

vezes, os laços sanguíneos não significavam nada e os que contavam eram os


que eram encontrados com o tempo, em lugares inesperados, e que tinham
amor puro e honesto, a necessidade de proteger.

Era raro, mas era o que eu tinha nesta casa.

— Vai ser bom — eu disse para Evelyn, sobre a visita para Seul. —
Um dia quero ir para lá.
— Acho que você vai gostar. Principalmente da culinária.

— Eu já gosto da culinária.

— Mas é diferente lá. É feita por chefes coreanos e o ambiente parece


que ajuda no sabor. Comer pratos coreanos na Coréia é melhor.

— É, deve ser mesmo. — Houve uma pausa. — Você prefere morar na

Coreia, então? Tem planos de se mudar para lá no futuro?

— Eu amo a Coreia, mas acho que não moraria lá porque meu pai está
aqui, nos Estados Unidos. E eu gosto daqui, só não gosto muito das pessoas
que vivem aqui...

— Algum motivo específico para isso? Claro que eu sei que existe
gente babaca em todo lugar, mas...

Eve me interrompeu ao sinalizar:

— Olha para mim.

— Eu já estou olhando para você.

— E o que você vê?

— Uma garota bonita.

A pele clara de suas bochechas corou e Evelyn rolou os olhos antes de


acrescentar:

— Tá legal, mas eu não sou como as garotas norte americanas. Eu sou


coreana. É isso que eu quero dizer. Quando nos mudamos para cá, meu pai
ligava de trinta em trinta minutos na diretoria da escola onde eu estudava para
saber sobre mim. Você sabe que há intolerância contra gente como eu, muitas
vezes evolui para violência e outras coisas mais graves. Ele tinha medo de

que algo acontecesse comigo.

Nossa, como eu era lento. É claro.

— Sinto muito mesmo, Eve. Eu não queria que essa fosse a experiência
que você tivesse tido aqui — me corrigi. — Que você tenha aqui. Entendo
sobre você gostar mais da Coreia, eu também gosto e ainda nem estive lá.

Isso fez com que ela sorrisse um pouco.

— Por quê?

— É onde você nasceu, parece ser especial. — Dei de ombros.

O rosto dela corou outra vez, violentamente.

— Eu amo isso. Amo quando você cora. É fofo.

— Eu vou matar você se continuar dizendo coisas assim.


— Quero morrer sufocado. — Sinalizei, com um meio sorriso nos
lábios, observando sua expressão passar de brava para confusa. Um vinco

profundo se formou entre as suas sobrancelhas.

— Sufocado?

— É, quero que você me beije até que eu perca o ar.

— Sai do quarto — Evelyn rebateu, depois empurrou meu ombro com


a mão.

Foi um empurrão forte, mas não me movi muito. Aí ela começou a se


esforçar, o que me fez rir. Eve colocou as duas mãos em meus ombros e
muita pressão. Comecei a ceder, deslizando lentamente para fora da cama, até
que eu estivesse fora mesmo. Ela ficou de pé, assim como eu, então começou
a me empurrar até a saída.

Travei minhas pernas quando chegamos ao batente e ela fez menção de

fechar a porta. Eu estava no caminho, impedindo-a de completar a ação e


pareceu deixá-la enfurecida.

— Saia — ela falou, outra vez.

— Uma condição.

— O quê?
— Beijo de boa noite.

Eve me lançou um olhar que dizia "você só pode estar de brincadeira


com a minha cara", só que eu não estava. Ela podia observar meu semblante
sério. Na verdade, eu estava fazendo muito esforço para não rir, por dentro.

Evelyn encostou a boca na minha, foi tão rápido e breve que quase nem

senti os seus lábios contra os meus.

— Boa noite — ela disse, esperando com que eu saísse.

Agora estava extasiado. Não pensei que Evelyn fosse aceitar o beijo de
boa noite, mesmo o mais breve dos contatos. Foi como atiçar carvão em
brasa, agora eu precisava de mais.

— Mais longo — exigi.

— Não.

— Então não vou embora.

— Eu te odeio.

Evelyn beijou meus lábios outra vez. Um, dois, três, quatro, cinco
segundos. Ela se afastou, mas ainda não fiquei satisfeito.

Fiz uma careta.


— Isso é beijo de jardim de infância, Eve.

Ela não protestou desta vez, voltou a tocar os lábios nos meus. Desta
vez, sua língua forçou passagem para dentro de minha boca e ela puxou a
gola da minha camiseta com força, fazendo com que ela quase rasgasse, pude
ouvir o som de tecido se esgarçando. Fiquei tão surpreso com o beijo que dei
alguns passos para trás.

Eve pressionou o tronco contra o meu, o que fez com que


cambaleássemos ainda mais para fora do quarto, até que a parede do corredor
batesse em minhas costas. Enrijeci quando sua mão passeou por baixo de
minha camiseta. Evelyn quebrou o contato de nossas bocas e me olhou nos
olhos.

Ela espalmou uma das mãos no meu peito quando fiz menção de voltar
a beijá-la e a deixou lá. Parecia que queria estar no controle, me deixar à sua

mercê. Esse seu lado era novo e eu mal esperava para poder explorá-lo.
Naquele momento, nenhum de nós dois parecia se importar que estávamos no
corredor, que poderíamos ser vistos a qualquer momento.

Eve escorregou a mão que estava na minha barriga para baixo e


comecei a respirar com dificuldade. Seus dedos estavam um pouco gelados, o
que fez com que eu tremesse ainda mais quando ela envolveu os dedos ao
redor do meu membro enrijecido. Eu queria tanto ela que doía em cada
terminação nervosa do meu corpo. Evelyn esfregou a palma da mão contra
mim e eu travei as mandíbulas.

— Porra, Evelyn — deixei escapar entre meus lábios.

Ele me acariciou outra vez, de uma forma bem lenta e torturante.


Pressionou o polegar na minha glande e senti meu abdômen contrair.

— Evelyn.

Ela empurrou meu piercing com a ponta do dedo, um toque


exploratório. Senti que ia morrer.

— Evelyn. — Soltei uma respiração entrecortada.

No próximo momento, ela fez a pior coisa que poderia fazer: se


afastou. Estava atormentado demais para reagir, ou segui-la. Só observei ela
sumir no interior do quarto de hóspedes e fechar a porta, depois de sinalizar

um "boa noite" e "tenha bons sonhos" para mim. Quando me recompus, tentei
girar a maçaneta do quarto, mas a porta estava trancada. Praguejei baixinho.

Aceitando a derrota, fui para meu próprio quarto, antes que uma das
minhas mães me encontrassem em estado deplorável no meio do corredor.
Enquanto tomava o primeiro banho gelado da noite, pensei em como puniria
Evelyn no dia seguinte.
Eu não iria deixar barato.
Eve e eu retornamos para Massachusetts no fim da tarde. O caminho

todo foi silencioso exceto pelo ruído baixo do rádio enquanto eu dirigia. A
garota estava dormindo ao meu lado serenamente. Às vezes, quando
parávamos em semáforos, observava seu rosto em paz e sua respiração lenta e
profunda. Evelyn dormia na mesma posição, até agora não havia se movido;
estava com as mãos cruzadas sobre o colo, a nuca escorada contra o estofado
do banco e o queixo levemente inclinado para baixo.

Por mais que não quisesse arrancá-la do seu sono profundo, precisei
acordá-la quando chegamos em casa. Desliguei o carro e sacudi seu ombro
com cuidado. Eve despertou lentamente, como uma flor desabrochando numa

manhã de primavera. Abriu as pálpebras e me fitou com atenção.

— Minhas mães cansaram você, não foi? — Sinalizei, sentindo um


sorriso de canto tomar conta de meus lábios.

Eve corou e se espreguiçou contra o banco antes de responder-me:

— Não. Elas eram ótimas.

Por mais que Evelyn dissesse isso, não havia dúvidas da causa de sua
sonolência. Minhas mães nos acordaram antes das seis da manhã para assar
cookies. Depois, Kira mostrou toda a coleção de instrumentos que havia lá
em casa para Eve. E em seguida, Reagan a levou para o jardim e a ensinou a
como plantar peônias. Foi um dia agitado, onde as minhas duas mães
disputavam entre si pela atenção de Eve. Tentei esconder o sorriso, mas não

consegui. A garota arqueou uma sobrancelha em questionamento e só dei de


ombros.

Não se importando, Eve desceu do carro. Imitei seu gesto. Nós subimos
as escadas juntos e, quando chegamos no corredor, senti a atmosfera mudar
drasticamente entre nós. Fiquei em pé em frente a Evelyn enquanto
trocávamos olhares estranhos.
Sabia que algo havia mudado. Algo tinha mudado neste fim de semana
e eu não queria fingir que não tinha, não queria voltar a fingir que éramos só

bons amigos, não queria negar a parte de mim que queria que Eve fosse algo
mais, mas também tinha medo do que fosse acontecer se eu entregasse meu
coração todo para ela.

Evelyn também sabia. Dava para perceber pelo jeito que era retraiu os

ombros e abraçou o próprio corpo, como se fosse uma tartaruga recuando


para seu casulo e a forma como desviou o olhar para longe, evitando meu
escrutínio.

Senti que tinha muito e nada a dizer.

Pela primeira vez na vida, me achei um covarde.

— Boa noite, Hunt. — Eve moveu as mãos. — Foi legal, obrigada por
me convidar. Suas mães são incríveis. Acho que vou dormir um pouco, tô

cansada.

Me limitei a um sorriso falso e uma concordância de cabeça.

— Boa noite, Evelyn — foi tudo que consegui dizer.

Observei Eve dar as costas para mim e abrir a porta do seu


apartamento. Antes de fechá-la, hesitou, vendo-me parado no corredor
olhando para ela. Fiquei tenso. O momento de expectativa criado por mim foi
arrebentado assim que Eve me deu um sorriso polido e fechou a porta.

Soltando uma respiração longa e frustrada, enfiei a chave na fechadura


e abri meu apartamento, adentrando em seguida e empurrando a porta com a
sola do tênis. Tirando a jaqueta, fui para a cozinha e virei um shot da tequila
que estava guardada no meu armário. O líquido desceu rasgando pela minha
garganta e soltei um murmúrio ao tomar outra dose.

Não sabia o motivo de toda aquela irritação que eu sentia. Parecia que
um bloco de cimento havia se alojado em minha garganta e me sentia
inquieto, estalando os dedos e mexendo o piercing na língua pela boca.

Não conseguia, eu tinha que confrontar Evelyn. Não dava para fingir
mais. Com pressa, coloquei a jaqueta e abri a porta. Meus pés estancaram ao
ver que Eve estava vindo em direção ao meu apartamento, os braços cruzados
sobre o peito. Seu semblante passou de agitado para surpreso. Soltei um

sopro em alívio.

— Ia bater na sua porta neste segundo. — Ela sinalizou, mordendo o


lábio inferior nervosamente.

— Eu também ia bater na sua porta — admiti.

Seus olhos castanhos pareceram surpresos.

Houve um momento de pausa, onde nós nos encaramos sem dizer nada.
Então, Eve cortou a distância entre a gente antes que eu pudesse tomar
iniciativa e colidiu com a boca contra a minha, separando-se um momento

depois.

— Adoro nossos encontros nesta porra de corredor — falei em voz alta,


assistindo seus olhos percorrerem meus lábios para capturarem cada palavra.

Eve não respondeu, ao invés disso ela voltou a me beijar. Desta vez,
sua língua invadiu minha boca e enlacei um braço ao redor de sua cintura,
colando-a a mim enquanto dava passos para trás, para dentro de meu
apartamento. A prensei contra a porta, fechando-a em um baque alto. Evelyn
arfou quando seu corpo colidiu contra a madeira de forma abrupta,
expulsando o ar dos seus pulmões.

Suas mãos se postaram sobre meus ombros enquanto continuávamos


nos beijando. Eve raspou as unhas em minha nuca, o que fez com que um

arrepio subisse por minha espinha. Mordi seu lábio superior em resposta, com
força, esperando que a desse algum indício do quanto eu a queria naquele
momento.

Um gemido baixo e contido escapou de sua boca. Minhas mãos


deslizaram por debaixo da sua camiseta, acariciando a pele quente das suas
costas. Eve esfregou os quadris contra os meus, deixando-me ainda mais
enrijecido lá embaixo. Antes que pudéssemos continuar, quebrei o beijo e
apanhei sua mão, puxando-a em direção ao meu quarto. Enquanto tropeçava
em meus próprios pés e levava Eve pelo corredor, ouvi seu riso doce e

melodioso atrás de mim, que acertou meu coração feito uma flecha.

Sempre percebia que Evelyn evitava reproduzir sons na minha frente,


mas agora ela não parecia se conter, ou se dar conta. Acendi a luz e a
empurrei sobre minha cama, me posicionando sobre ela. Eve sorriu e puxou a

gola da minha camiseta, fazendo com que meu rosto fosse em direção ao seu
e nossos lábios se juntassem outra vez.

Enquanto me apoiava sobre Eve com uma das mãos para que não a
esmagasse contra a cama, levei a outra para baixo da sua saia. Fiz uma oração
silenciosa por ela estar vestindo aquela peça. A garota arqueou os quadris
quando meus dedos tocaram sua intimidade sobre o pedaço fino da calcinha.

Brinquei com os dedos naquele ponto sensível. Dava para sentir sua

umidade através do tecido, o que me deixou ainda mais excitado. Notando


sua falta de impaciência pelo jeito que Eve continuava puxando a gola de
minha camiseta, esgarçando-a, demorei para deslizar um dedo dentro dela.
Afastei meu rosto para observar sua expressão. Suas sobrancelhas estavam
franzidas e ela abriu as pálpebras ao notar que não me movi mais. Uma
sobrancelha sua arqueou.

Eve esperou e quando notou que eu não faria nada, socou meu flanco
direito com um pouco de força como se eu fosse uma daquelas máquinas de
refrigerantes quebradas que, após você colocar uma moeda, ficava

empenhada.

Seu semblante dizia “fala sério”.

Soprei um riso em resposta, mas também a provoquei. Circulei o

indicador em sua entrada e observei Eve soltar uma respiração ofegante,


entreabrindo os lábios. Lentamente, comecei a mover meus dedos. Deixei um
beijo no ponto sensível entre seu pescoço e maxilar.

Pelo jeito que Evelyn se remexia abaixo de mim, sabia que minha falta
de pressa e ociosidade estava a torturando. Insatisfeita, fechou uma das mãos
ao redor de meu pulso com força que parecia intencional. Eu ri, deleitando-
me desta vez. Em Connecticut, na casa de minhas mães, prometi a mim
mesmo que ela se arrependeria. Agora, estava a dando o troco.

Em um movimento ágil, Eve rolou para o lado, saindo debaixo de mim.


Com sua ausência, cai no espaço livre que anteriormente era ocupado por seu
corpo esguio. Deitei de barriga para cima, Evelyn sentou-se sobre mim,
intencionalmente sobre minha ereção.

— Camisinha. — Ela sinalizou.

— Na cômoda à direita — respondi, hipnotizado pela decisão


estampada em seu rosto.

Decidi deixá-la tomar o controle da situação. Observei com o coração


disparado enquanto ela abria os botões de minha calça e deslizava-a até
metade das minhas coxas junto com minha cueca. Mantive minhas mãos em
sua cintura, acariciando as laterais do seu corpo com os polegares. Eve
deslizou a proteção por meu comprimento e meu abdômen contraiu só com

aquele toque fugaz e suave.

Quando ela fez menção de tirar a saia, segurei sua mão. Eve me lançou
um olhar confuso e eu só balancei a cabeça negativamente. Não se
importando, ela se ergueu nos joelhos, sem ao menos tirar a calcinha e
encaixou a ponta do meu pau em sua entrada muito úmida. Seria fácil para
ela deslizar até a base.

— Porra — murmurei, quando ela se abaixou devagar.

Meus dedos afundaram com mais intensidade em sua pele macia da


cintura.

— Porra — falei de novo, quando Eve espalmou as mãos em meu


peitoral sob a camiseta e fez outro movimento tímido.

Parecia que ela queria testar seus limites, explorar com calma. Não
dava. Eu tinha que tomar as rédeas ou Evelyn me mataria. Primeiro,
perguntei a ela se estava tudo bem mudar nossas posições. Ela acabou
cedendo e pediu para que não fosse delicado. Então, quis ir por trás. Só a

imagem de Eve empinada na minha cama de quatro lançando um olhar sobre


o ombro enquanto me observava ajoelhar atrás de si quase me fez gozar, o
que seria vergonhoso.

Passei as palmas das mãos pela parte de trás de suas coxas e mantive a

sua saia no lugar. Com uma das mãos, encaixei meu pênis em sua entrada.
Ela estava muito molhada, a primeira investida foi quase automática. Evelyn
soltou um gemido alto. Cerrando os dentes, recuei e me enterrei em Eve outra
vez. Os meus movimentos começaram lentos e à medida que ouvia os
barulhos que escapavam da boca da garota sob mim, ficava cada vez mais
motivado. Rápido, forte, desesperado.

Meu Deus, era tão bom.

Não duramos muito tempo. Eve alcançou o ápice primeiro, notei pela
forma que ela apertou os punhos em meus lençóis e como contraiu em volta
do meu pau. Me movimentei mais quatro vezes antes de gozar. Me debrucei
sobre Evelyn, quase me deitando sobre suas costas enquanto tremia.

Quando me recompus, deslizei para fora dela e me deitei ao seu lado na


cama. Sentindo o corpo relaxado, lancei um olhar para Evelyn. Ela fitava o
teto, parecia sem palavras. Foi bem melhor que qualquer fantasia que eu tinha
imaginado sobre nós, mas ainda não estava satisfeito.

Com uma das mãos, virei seu rosto em minha direção. Eve piscou para
mim, observando minha expressão, então seus olhos escureceram de desejo
outra vez. No momento seguinte, sua boca estava de volta a minha. Ela
capturou meus lábios em um beijo delicado e doce. Enfiei minha mão em sua
saia, sob sua calcinha, enfiando dois dedos em si e pressionando seu clitóris

com meu polegar enquanto sua língua continuava a se enroscar na minha.

Rolei sobre Eve, que abriu um espaço para mim entre suas pernas sem
hesitar, cruzando-as no fim de minhas costas quase que automaticamente.
Estiquei o braço sobre sua cabeça e peguei uma camisinha nova.

— Desta vez — murmurei, pairando meu rosto sobre o seu e


certificando-me de que ela estivesse com os olhos em meus lábios. — Vou
ser gentil e prometo, Eve, você nunca vai esquecer de nós. Nem desta

sensação. Você nunca vai me esquecer.

Lentamente, a tomei para mim outra vez. Fui gentil, a adorei em cada
momento.

E me arruinei entre os lençóis junto com ela.


Eu observava o relógio na parede. Tic-tac. Tic-tac. O ponteiro que

contava os minutos já havia dado cerca de vinte e quatro voltas desde que
eles me trouxeram para cá. Eu contei. Não sei o que eu estava fazendo na
delegacia da cidade. Eu sabia que era uma delegacia porque era para cá aonde
minha mãe vinha nos fins de semana quando meu pai se metia em encrencas.
Ela dizia para nós esperarmos no carro enquanto ela conversava com os
policiais e, um tempo depois, eles saiam lá de dentro. Minha mãe com o rosto
inexpressivo e olhos vazios acompanhada do meu pai, com olheiras e o
maxilar travado, além de algumas concussões no rosto.

Eles nunca falavam o motivo, só ouvia minha mãe dizendo "se


continuarmos tendo despesas com fianças, iremos falir em breve", eu não
compreendia nada do que aquilo significava, mas sabia que era algo ruim.
Falir significava algo ruim, não era? Mamãe me disse uma vez que seus pais
faliram quando ela era jovem e teve que morar em lares adotivos porque eles

viraram sem-teto.

O ponteiro se moveu.

Bati a ponta do meu tênis contra a borda da mesa, o que causou um


barulho abafado. Continuei balançando os pés. A oficial estava me
observando há algum tempo. Ela disse que se chamava Deana. Deana
estendeu a caneca em minha direção outra vez, mas não me movi do assento.
Ela dizia que era água, mas não aceitava coisas de estranhos. Ela soltou um

suspiro longo e se ajoelhou ao lado da minha cadeira.

— Uma hora, vai precisar comer ou beber algo. — Sua voz era suave,
parecia o tom que minha professora usava na escola.

— Não, obrigado. — Olhei sobre seu ombro, em direção a porta. —


Onde estão meus pais?

— Eles não vão vir — Deana disse, atraindo minha atenção para seu
rosto novamente. Comecei a sentir o desespero crescer em meu peito. Como
assim não voltariam? — Sinto muito — ela murmurou, antes de se levantar.

— Quer biscoitos?

— Eu quero ver o Alec! — eu gritei, levantando-me. — Quero ver o


meu irmão! Não quero porcaria de biscoito. — Cerrei os punhos ao lado de
meu corpo, respirando com dificuldade.

Deana me encarou com mais pena ainda.

— Isso é impossível, querido. Você não irá mais vê-lo outra vez.

O meu peito subia e descia em velocidade assustadora quando abri

meus olhos. A primeira coisa que avistei foram os olhos dela. Preocupados,
afáveis, escuros. Uma das mãos de Eve estavam em torno do meu ombro
esquerdo nu. A outra, contra minha bochecha. Me sentei, sentindo a umidade
em minha testa e na parte de trás do meu pescoço. Como de praxe, precisaria
de um banho matinal.

Era o que sempre acontecia quando os sonhos voltavam: eu precisava


agir com calma, inspirar e expirar profundamente e ir para o chuveiro. Não

olhei para Evelyn, não consegui encará-la enquanto tinha que lidar com meus

demônios internos, parecia errado arrastá-la para um passado feio e obscuro.

— Já volto. — Sinalizei, sentindo seus olhos em mim. Levantei-me e


caminhei para fora do quarto.

Ao adentrar no banheiro, evitei olhar para o reflexo no espelho. Como


já estava sem roupa, só liguei o chuveiro. A água morna deslizou por minhas
costas e meu tronco, indo para o ralo em seguida. Imaginei que os
pensamentos tivessem o mesmo destino, até que meu batimento cardíaco
estabilizou e eu já não mais sentia a mão invisível rodear meu pescoço,
impedindo-me de respirar livremente.

A ouvi antes de senti-la.

O ranger da porta do banheiro, seus passos tímidos e leves feito pluma,

o deslizar da cortina do chuveiro e, então, seus dedos em minhas costelas.


Instintivamente, me virei. Eve estava nua, atrás de mim. Sua expressão de
preocupação não suavizou, ao invés disso, um vinco profundo continuava
destoando suas feições suaves e bonitas. Passei o polegar entre suas
sobrancelhas, não queria que ficasse apreensiva por minha causa.

Um momento depois, seus braços me rodearam. A água começou a


ensopar o cabelo de Eve e seu corpo macio e despido ao se juntar a mim sob

os fortes jatos de água. O abraço dela era estranhamente reconfortante e como

um clarão em meio ao breu.

Deixei Eve esfregar meus cabelos com xampu e quando terminamos o


banho, me sentia eu mesmo outra vez e não um garoto perdido, confuso, que
havia acabado de perder tudo. Ela vestiu uma das minhas camisetas limpas e

eu só coloquei uma calça de moletom. Enquanto fazia café da manhã na


cozinha, sentia seus olhos me seguindo a cada movimento que eu fazia, fosse
para tirar o cabelo da testa ou virar um pedaço de bacon na frigideira. O
silêncio era confortante e me questionei mentalmente como seria tê-la comigo
durante todos os dias. Me fez pensar que podíamos ser mais que amigos, que
eu queria que fossemos mais que amigos.

— Quer conversar? — ela perguntou quando me virei, movendo as


mãos.

— Não.

— Tem certeza?

— Tenho, foi só um pesadelo estúpido.

— Você parecia muito agitado, Hunt… — Eve continuou falando


através da língua de sinais e tentei não me irritar com ela porque sabia que só
estava tentando entender o que havia acontecido, eu provavelmente a tinha
assustado e agora precisava me explicar dizendo mais que só algumas

palavras. — Parecia com medo. Irritado. Desesperado. Seus lábios mexiam


freneticamente, era como se estivesse chamando por alguém…

— Evelyn — eu disse em voz alta, olhando-a com seriedade. Ela se


encolheu e o movimento de suas mãos parou quase que imediatamente. —

Não quero falar sobre isso.

Nunca me senti tão idiota e filho da puta em toda minha vida, mas se
tinha algo que eu não conversava com ninguém, nem mesmo com minhas
mães, era sobre meu passado. Eu não gostava que ele invadisse o presente e o
bagunçasse. Eu queria mantê-lo para trás, por mais que soubesse que era uma
alternativa ruim. Minha psicóloga costumava dizer que escondê-lo das
pessoas ao meu redor era uma opção, mas que não o faria sumir. Ela disse
que se me abrisse com alguém com quem me sentisse à vontade, então,

talvez, pudesse conseguir administrar a avalanche de sentimentos que vinha à


tona sempre que tocava no assunto.

— Desculpa. — Evelyn sinalizou, depois que comeu o café da manhã


que eu havia preparado para ela.

Soltei um suspiro.
— Não precisa pedir desculpas, Eve. Você não fez nada de errado.

— Então por que você agiu como se eu tivesse feito?

— Porque eu sou um babaca — fui honesto.

Ela não disse nada, só perscrutou meu rosto por alguns momentos,
comprimiu os lábios em linha reta e se levantou. Ela disse que precisava fazer

um artigo da faculdade que eu sabia que era desculpa barata para não ter que
admitir que tinha ficado chateada comigo e foi embora após agradecer pelos
ovos e torradas. No meu apartamento vazio, murmurei uma sequência de
palavrões.

Por que é que eu sempre fodia com tudo? Parece que eu tinha um dom
especial para isso. Sentindo-me um completo idiota, não fui capaz de ir atrás
de Eve, até porque nós dois devíamos estar chateados demais para termos
uma conversa coerente. Meu passado era uma parte restrita de mim, uma que

eu ainda não estava pronto para exibir para Evelyn e nem sabia se um dia
estaria, mas talvez os segredos não fossem bons entre a gente. Era como
entregar apenas partes de si e sentia que desta forma não funcionaria entre
nós.

Mais tarde, fui para a casa da minha prima, Ellen, que havia me
mandado duas mensagens dizendo sobre sorvete e brownies. Me questionei
diversas vezes mentalmente como Diabos ela sabia que eu precisava de

conforto. Mesmo não sendo irmãos, diria que nós tínhamos instintos

similares de gêmeos. Assim que atravessei a porta do seu quarto entreaberta,


sinalizei:

— Como você soube?

— Eu sempre sei. — Ellen deu de ombros, jogando o cabelo castanho


escuro sobre o ombro e fechando a tampa de seu notebook. Com as pernas
cruzadas em sua cama, ela acenou para que eu me juntasse a ela.

Quando desabei em sua cama, Ellen me empurrou um pote de sorvete


de baunilha na metade. Com as sobrancelhas franzidas, questionei:

— Por que isso parece uma festa do pijama de garotas?

— Porque é a melhor forma para resolver um coração partido.

— Meu coração não tá partido, Ellen. Deixa de ser pentelha. — Com o


rosto fechado, afundei a colher na massa do sorvete e a enfiei na boca a
contragosto. Eu odiava baunilha.

Dei outra colherada. Até que não estava tão ruim.

Em poucos minutos, o pote de sorvete estava vazio. Ellen me ignorou


durante este tempo, como se estivesse respeitando meu espaço enquanto eu
detonava seu pote Ben & Jerry's.

— Você sempre tá contra minhas deduções, já percebeu isso? — Minha


prima moveu as mãos, largando um tubo de esmalte cor-de-rosa e deixando
as unhas do pé inacabadas.

— Porque são deduções idiotas.

— Não, porque elas sempre estão certas e você foge da verdade como o
Diabo foge da cruz.

— Eu estou meio com raiva de mim mesmo e frustrado, mas não acho
que rotular isso como coração partido seja certo. Eu fui um idiota com a
Evelyn e ela não merece nada dessa merda, mas não consegui. Não consigo
me abrir com ela e acho que isso a chateia. Ela já desabafou comigo diversas
vezes, o que quer dizer que ela confia em mim. Se eu não conseguir retribuir,
parece que não confio nela de volta e isso de alguma forma faz com que

nosso relacionamento não rotulado pare de funcionar. E isso é péssimo para


mim. — Fiz uma pausa, pensando. — É quase como quebrar minha guitarra.

O sorriso nos lábios de Ellen diziam tudo. Ela estava se divertindo


muito com meus problemas.

— Nossa, eu vivi para isso. Sério. Eu esperei tanto por esse momento.

— Que momento? Do que você tá falando?


— Você tá apaixonado. — Ellen aponta para meu rosto e volta a
sinalizar. — Olha para sua cara, analisa o que você tá falando. É tão

assustador e fofo ao mesmo tempo.

— Por que é assustador?

— Porque quer dizer que você tem coração. Sabe, eu cresci vendo você

partir mais corações do que qualquer pessoa poderia contar. Você é um


símbolo do sexo para mim. Era um círculo vicioso de transar e largar, se é
que você me entende. Eu sempre esperei pelo momento em que você teria o
coração laçado e esse dia finalmente chegou. Vai entrar para a história.

— Pensei que esse momento fosse pra você me consolar e não fazer
piada com minha cara.

— Desculpa, não consegui evitar. Mas, sério, a Eve é incrível. Eu gosto


dela porque é gentil e ama crianças. Isso já diz muita coisa sobre a

personalidade dela. Acho que se você quer mesmo dar certo com ela, devia
tentar se abrir. — Pela expressão séria de Ellen, sabia que ela estava sendo
cautelosa ao sinalizar cada palavra. Ela sabia o quão delicado o assunto era
para mim. — Não precisa vomitar tudo de uma vez. Só… tenta. Aos poucos.
Eu sei que é difícil para você, não tiro sua razão, mas… Há quanto tempo
isso te sufoca, Hunt? Talvez seja hora de seguir em frente.
Suas palavras me deixaram em silêncio, pensando. Ellen estava certa,
por algum lado. Há quanto tempo meu passado me sufocava? Por quanto

tempo eu continuaria assim? Eu nunca ia conseguir me abrir, sempre teria


medo e afastaria pessoas incríveis? Talvez fosse a hora de seguir em frente.

— Me empresta seu notebook? — perguntei para Ellen, através da


língua de sinais. — Esqueci o celular em casa. Preciso fazer uma coisa.

Ellen empurrou seu laptop na minha direção, com um olhar de quem


sabia das coisas no rosto. Abrindo uma aba nova, entrei no meu Facebook e
cliquei no chat com Evelyn. A gente não havia conversado muito
ultimamente por lá, até porque éramos vizinhos e estávamos nos vendo com
frequência. Com os dedos pairando sobre o teclado por alguns momentos,
pensei numa forma de abordá-la após tudo que havia acontecido.

Eu: oi

Eu: você tá aí?

Esperei alguns momentos. Um minuto, dois, três. Soltei um suspiro e


cerrei os dentes. Ellen cutucou minha perna com a ponta do pé envolvido por
uma meia ridícula cor de abóbora.

— Problemas no paraíso? — Sinalizou. — Ela não quer falar com


você?
— Não.

— Que pena.

Ignorei minha prima no próximo momento porque as mensagens que


enviei constaram como visualizadas. Os três pontinhos apareceram na tela,
então sumiram. Aguardei em expectativa. Acho que nunca tinha ficado tão

ansioso por trocar mensagens com uma garota antes. Parecia que Eve tinha
desistido de me responder, então comecei a digitar.

Eu: me desculpa

Eu: não queria ser um otário

Eu: é sério, Eve

A tela apitou.

Eve: ok

Eu: sério? ok?

Eve: ok

Eu: diz alguma coisa

Eve: eu tô dizendo

Eu: ia me desculpar pessoalmente mas n tô em casa


Eu: vim ver a Ellen, esqueci meu celular também

Eve: diz oi pra Ellen

Eu: digo se você me desculpar

Eve: eu já disse que tá tudo bem, Hunt

Eve: eu te desculpo

Eu: obrigado, vou levar brownies p vc

Eve: não quero, obrigada

A ignorei.

Eu: te vejo logo

Fechei o notebook e dei tchau para Ellen. Depois que vesti minha
jaqueta de couro que havia deixado no hall e despedir-me da tia Courtney,

montei na minha Harley e comecei a dirigir de volta para o meu apartamento.


Levei alguns brownies para Eve, minha tia havia embalado numa caixa e
posto uma fita azul turquesa depois que admiti que era para uma garota
especial. Com um sorriso complacente, ela me disse para tomar decisões
sábias. Eu ri, mas não sem antes me sentir meio nervoso, é claro. Parecia que
o universo estava me dizendo que iria perdê-la se fosse um babaca outra vez.
Subindo as escadas do prédio, decidi que iria diretamente para o
apartamento de Eve. Ao chegar no último degrau, parei.

A imagem na minha frente me fez pensar que eu estava sonhando:


Evelyn estava no batente da porta do seu apartamento, com o rosto
apreensivo. Em sua frente, estava Ian (que eu reconheceria em qualquer
lugar, mesmo de costas). Um alarme disparou no fundo de minha mente. Não

parecia certo. Nada naquela cena parecia certo. O olhar terno no rosto de Eve,
a proximidade deles, a forma como Ian tocava o braço dela, como se fossem
íntimos…

— Evy — a voz de Ian não passava de um sussurro. Ele tentou se


aproximar ainda mais, só que ela se esquivou de seu toque. — Por favor, eu
amo você.

Eu amo você. As três palavras fizeram meu corpo retesar. A forma

como o nome de Evelyn — na verdade, seu apelido, Evy — se enrolou em


sua língua me deixou doente.

— Você está bêbado, Ian — Evelyn disse. — Vai embora.

Ela disse.

Em voz alta.

Senti como se meu mundo estivesse desmoronando, cada pedaço do


chão parecia desintegrar, assim como as paredes à minha volta e a escada sob
meus pés. Nunca me senti assim antes. A sensação de queda, de desamparo.

— Não estou bêbado, eu só tomei duas garrafas de cerveja. Eve, você


não pensa na gente? Você não sente falta de nós? — O tom de voz de Ian
começou a ficar rápido e urgente, ele parecia realmente desesperado. — Não
me diz pra ir embora. Não consigo mais ignorar isso. Você já contou pro

Hunt?

Quando meu nome foi citado, voltei à órbita. Era como se meu corpo
tivesse sido reiniciado. Dando um passo para frente, entrei no campo de vista
de Evelyn. Seu rosto, de apreensivo, passou a ficar surpreso. Pude ver o
choque tomar conta do seu olhar e seu rosto ficar pálido como se tivesse visto
um fantasma. Seguindo seu olhar, Ian olhou sobre o ombro, também me
encontrando. Agora, os dois pareciam horrorizados, como se tivessem sido
pegos no flagra.

— Que porra é essa? — perguntei, apertando os dedos com força em


volta da caixa que eu segurava. — O que Diabos significa isso tudo?

— Cara, desculpa, posso explicar… — Ian começou a vir até mim, mas
eu o interrompi:

— Não se aproxima ou juro que vou quebrar a porra dos seus dentes.
Minha mão livre estava fechada em punho, estava pressionando meus
dedos com tanta força que achei que iria quebrá-los.

— Deixa ver se entendi bem — comecei a dizer as palavras em voz alta


lentamente, para que Evelyn também conseguisse ler meus lábios. — Vocês
estão transando pelas minhas costas? — Um riso frio escapou por meus
lábios e dei um sorriso amargo. — Que ironia. O cara que eu considerava um

dos meus melhores amigos e a garota por quem estou apaixonado. Tem como
essa merda ficar melhor? — perguntei, então apontei para Eve. — Você é
surda mesmo ou é mais uma das suas mentiras?

Evelyn não foi capaz de me responder. Ian parecia derrotado, ao menos


o filho da puta tinha um semblante de arrependimento.

Diante do silêncio deles, abri a porta de meu apartamento e a bati com


tanta força que um quadro na parede se desprendeu e caiu no chão. Na

cozinha, revirei os armários em busca de alguma bebida. Encontrando uma


garrafa de uísque, comecei a torná-la direto do gargalo. Não demorou muito
para que ouvisse as batidas na porta, que ignorei. Então, ouvi o rangido dela
se abrindo e me amaldiçoei por não tê-la trancado.

Cautelosamente, Evelyn se aproximou, parando na entrada da cozinha.


Podia sentir seus olhos sobre mim, mas me neguei a encará-la.
— Vai embora. — Mexi os lábios. — Você é a maior mentirosa que
existe, Evelyn — continuei falando, sentindo-me um completo idiota. — Eu

queria nunca ter conhecido você. Era simples antes de você partir a porra do
meu coração.

— Hunt.

O som de sua voz flutuou pelo ar atingindo em cheio meu coração,


como uma flecha. Senti o corpo estremecer. Aquele som… Como poderia
descrevê-lo? Tinha imaginado diversas vezes como seria ouvir Evelyn
falando, mas nada chegou perto disso. Me lembrava a tardes de pôr do sol,
noites estreladas e versos de um soneto que eu tinha lido quando era
adolescente. Era tudo e ao mesmo tempo, além disso. Não existiam palavras
para explicar a cadência de suas palavras ou o seu timbre macio. Era a canção
mais bela que já tinha escutado. Me deu vontade de escrever poemas ruins.

Ergui o rosto para encará-la.

— Eu sou surda — ela disse, as palavras hesitantes e meio pousadas,


quase inaudíveis. Dava para entendê-la perfeitamente, mas Evelyn não
parecia confiante falando em voz alta. — Não menti para você. — Pausa. —
Ian e eu temos um passado. Não sabia que vocês faziam parte da mesma
banda. — Suas mãos começaram a sinalizar tudo o que saía dos seus lábios.
Acho que ela não tinha certeza se estava soando clara ou não. — Nós nos
conhecemos em Boston no ano passado e começamos a sair, mas eu não
estava pronta para um relacionamento, então paramos de nos ver. Conheci

você depois e não nos falávamos há meses. Depois que soube que vocês eram
amigos, disse para ele manter o que aconteceu somente entre a gente, porque
não queria que você achasse que eu e ele tínhamos algo. Não significou
muito para mim, não como deve ter significado para ele. Sinto muito ter

guardado isso, não queria que você ficasse chateado comigo.

Suas palavras pareciam ser honestas e eu sabia que Evelyn estava sendo
honesta, mas ainda não sabia como deveria me sentir com toda aquela
informação.

— Por que você nunca falou comigo em voz alta? — questionei, dando
mais dois goles na garrafa.

— Eu fiquei surda com quinze anos, depois de um acidente de carro.

Desde então, tenho preferido dizer as palavras da forma como as entendo,


através da língua de sinais. Não sei se faço as pronúncias corretas, ou se
minha voz soa diferente do que me lembro. Isso me gera insegurança, então
prefiro evitar.

Não consegui evitar a minha próxima fala, nem o ciúme ridículo


presente nela:
— Você nunca disse nada para mim, mas estava falando com Ian no
corredor. Você se sentiu à vontade para falar com ele, mas diz que o que

vocês tiveram não significou muito?

Eve mordeu o lábio inferior e sinalizou:

— São situações diferentes. Ian e eu tivemos uma conexão no passado,

mas o via mais como amigo do que além disso.

— Preciso ficar sozinho. — Larguei a garrafa de uísque para sinalizar.


— Vai embora, Evelyn. — Ela não se moveu, então implorei: — Por favor,
vai embora.

Com os olhos cheios de lágrimas não derramadas e os lábios


pressionados em linha reta, Eve assentiu antes de sair, batendo a porta com
delicadeza atrás de si.
Eu havia ignorado Ian por uma semana, até que precisamos ensaiar e

não pude evitar vê-lo pessoalmente. Fingi que nada tinha acontecido e o
cumprimentei normalmente, por mais que minha vontade fosse de dá-lo um
soco no rosto e quebrar seu nariz bonitinho. Na pausa, Atticus saiu para usar
o banheiro e nós ficamos sozinhos. Comecei a enrolar um baseado e o
ignorei.

— Hunt, a gente precisa conversar — ele disse, aproximando-se.


— Precisa porra nenhuma — respondi, de mal humor.

— É sério, cara. — Ian colocou a mão em meu ombro e me afastei


bruscamente.

Lançando um olhar mortal para ele, comecei a falar, entredentes:

— Não encosta em mim.

— Por que você tá agindo feito criança? Que merda! Só quero falar
com você sobre tudo o que aconteceu, você não pode me evitar para sempre e
sabe disso porque estamos na porra da mesma banda e ensaiamos o tempo
todo, além de que temos uma agenda enorme de shows para fazermos.
Vamos dividir a mesma porra de porão para ensaiar e o mesmo palco para
tocar nos próximos meses. Vamos lidar com isso logo, Hunt.

Soltei uma risada alta e sarcástica. Não consegui me concentrar o


suficiente para terminar de enrolar a seda, então me virei para Ian com as

mandíbulas travadas e os punhos cerrados.

— Você sabia que a gente tava junto — acusei. — E, mesmo assim,


você foi até a porta da casa dela para tentar convencê-la a ficar com você.
Você sabia que eu gostava dela pra caralho e era para você ser meu amigo.
Então não vem dizer como eu devo me sentir com toda essa merda porque eu
nunca tentei roubar suas namoradas.
Ian esfregou a nuca com força. O arrependimento explícito em toda sua
expressão foi um pouco satisfatório, mas não o suficiente.

— Me desculpa. Eu estava bêbado. Sei que isso não apaga nada do que
aconteceu, nem que escondi que a conhecia para você, mas achei que se
fingisse que nada tinha rolado entre mim e Evelyn, seria mais fácil ter que ver
vocês dois juntos. Eu pisei na bola feio, cara. Eu sei disso. Eu sinto muito e tô

arrependido porque você é como um irmão para mim. Prometo que nunca
mais vou olhar para Eve, ou chegar perto dela, mas preciso que você me
desculpe. Ela é uma garota incrível e… — Seus ombros caíram. — Você
sabe disso. Eu fiquei apaixonado e ela me dispensou. Faz tempo e já lidei
com isso, não sei por que fiz o que fiz naquela noite. Se você não vai me
perdoar, tudo bem, mas precisava que você me escutasse.

Um lado meu continuava querendo socar o rosto de Ian, mas outro


compreendia. Evelyn era Evelyn. Gentil, alguém que transmitia paz e era

teimosa e fofa ao mesmo tempo. Sabia o quanto ela era incrível e entendia o
porquê de ele não tê-la esquecido mas ainda me sentia apunhalado pelas
costas.

— Preciso de mais tempo para lidar com isso.

Ele abriu os lábios para me responder, mas neste momento, Atticus


voltou para o porão. Ele nem percebeu a atmosfera tensa, só disse que
tínhamos que fazer alguns ajustes na nossa nova canção. Quando eu estava no
meu apartamento, peguei meu caderno e escrevi algumas coisas. O engraçado

era que eu sabia que estava fazendo uma música sobre Evelyn e mesmo
odiando a ideia, não conseguia parar. Quando terminei, a reli. Apaguei
algumas frases e substituí repetições. Quando me senti satisfeito, era mais de
meia noite.

Sem sono, fui para a cozinha e enchi um copo de leite. No terceiro gole,
comecei a ouvir as melodias do piano. Quase engasguei. Tossindo, murmurei
um palavrão antes de colocar o copo na bancada e prestar atenção na música.
Evelyn interpretava peças melancólicas como ninguém. Quando ela terminou,
quase saí do meu apartamento e fui bater em sua porta apenas para me
certificar de que estava tudo bem, mas contive meus impulsos.

Naquela noite, sonhei com Alec. Seu rosto — que também era o meu
rosto — me encarava. Nós estávamos no lago e era dia. Ele era uma criança,

eu não. Sob o sol, observei-o se aproximar da água. Primeiro, um pé, depois o


outro. Comecei a entrar em pânico. Tentei ir até ele e puxá-lo de lá, lembrá-lo
que ele não sabia nadar, mas não conseguia me mover. Assisti ele se afogar e
acordei suando frio.

Com o coração disparado, segui para o chuveiro. Depois que me vesti,


peguei as chaves da moto e saí, não me importando que era pouco mais de
seis horas da manhã.

Demorou um pouco para chegar em Connecticut, mas nem tanto.


Assim que bati na porta, notei que estava congelando. Meu corpo tremia um
pouco e meus lábios estavam secos. Uma gota de água caiu do céu, acertando
o centro do meu nariz. No segundo seguinte, quando a chuva começou,
minha mãe Reagan abriu a porta.

Ela nem tentou esconder a surpresa no rosto, ou a preocupação em seus


olhos azuis.

— Hunt, o que aconteceu? — Antes que eu pudesse dizer algo, ela me


interrompeu: — Está frio, você vai acabar pegando um resfriado. Entre.

Dando-me passagem, adentrei em casa. Foi como respirar depois de um


período longo embaixo d’água. Eu estava acostumado a passar tanto tempo
longe deste lugar que me esquecia de como era bom ter para onde retornar,

um lugar que pudesse ser meu porto seguro.

— Mãe, os pesadelos voltaram — fui direto ao ponto, me sentindo uma


criança de dez anos.

A mulher à minha frente cruzou os braços em frente ao peito e amassou


os lábios juntos, comprimindo-os em linha reta.

— Vou fazer um chá para você — M.R. (mãe Reagan) disse, afagando
minhas costas com uma das mãos antes de ir para a cozinha.

Eu a segui, desolado. Me sentei em uma banqueta e apoiei os cotovelos


na bancada de mármore.

— Acho que quero um chocolate quente — murmurei.

— Chocolate quente, parece que alguém está triste. — Ouvi a voz de

M.K (mãe Kira) atrás de mim, então mãos envolveram ambos os meus
ombros.

Silêncio. Observei minha mãe, Reagan, se mover pela cozinha,


parecendo tensa. Notando a atmosfera estranha, M.K soltou um suspiro antes
de se sentar ao meu lado. Não ousei encará-la. Por mais que eu amasse
Reagan e ela fosse ótima para mim, Kira era quem sempre havia sido minha
confidente. Ela quem me ajudava a roubar biscoitos antes do jantar e me
ensinado a tocar guitarra, que era a maior paixão da minha vida. M.R me

amparava quando ralava os joelhos ou quebrava um braço, além de sempre


ter me ajudado com o dever de casa. Eu tinha uma ligação especial com cada
uma delas, de jeitos diferentes.

— Ninguém vai me dizer o que houve? — Kira perguntou, começando


a tamborilar os dedos na bancada. — É o código do chocolate quente, sei que
algo não está certo.
O código do chocolate quente era usado quando alguém precisava de
consolo em minha casa.

— Pega os marshmallows, Kira. Deixa o Hunt dizer quando se sentir à


vontade — Reagan disse suavemente, em frente ao fogão.

— Marshmallows e chocolate quente, então é mais sério do que eu

pensava — a mulher retrucou, antes de se levantar e ir até um dos armários.


Enquanto o revirava, ela perguntou: — Tem a ver com a Eve?

— Hum, também — admiti, após alguns segundos.

M.K encontrou o pacote de marshmallows, o abriu e despejou todo


conteúdo em uma tigela limpa. Agora, virada para mim, ela me encarava com
os olhos escuros apreensivos.

— Entendo.

— Ela mentiu para mim — eu disse, depois de alguns momentos. —


Me sinto meio traído e idiota, mas não quero falar sobre isso. A questão é que
tô meio decepcionado.

Minhas duas mães me encararam ao mesmo tempo, assim que as


palavras deixaram minha boca.

— Ela quem perdeu — Kira soltou, um segundo depois, erguendo os


ombros.

— Ela quem perdeu — Reagan concordou. — Você é um homem


lindo, inteligente e cavalheiro.

Eu soltei uma risadinha. Acho que era o dever dela como mãe dizer
algo assim.

— Mas sério, quer conversar? — M.K falou, ao mesmo tempo em que


mastigava um marshmallow, sem se importar com os bons modos.

— Não — respondi, ao mesmo tempo em que acenava positivamente


com a cabeça, quando M.R virou as costas. Não queria que ela se
preocupasse comigo também. Compreendendo-me como sempre, Kira disse:

— Então vamos lá em cima, quero te mostrar o novo solo que criei na


guitarra. — Ela se virou para minha outra mãe. — Querida, faz pipoca para
gente e escolhe um filme. Nós já voltamos.

Ela nem desconfiou, só assentiu e nós deixamos a cozinha e subimos as


escadas até o meu antigo quarto. Desabei na minha cama que sempre estava
feita em todas as vezes em que eu retornava e fitei o teto branco.

— O que foi? — minha mãe perguntou.

— São os pesadelos — respondi. — Não sei como lidar com eles.


Parece que nunca acabam. Me sinto culpado, mãe. Nos sonhos, eu não

consigo salvá-lo.

Ela ficou em silêncio por alguns momentos. Minha mãe sabia o quanto
o assunto era delicado para mim e que era raro eu conversar sobre ele.

— Eu também perdi um gêmeo — ela admitiu, depois de alguns

momentos. Sentei-me na cama, para encará-la. Seu rosto estava sério e seu
ombro apoiado no batente da porta. Eu sabia da trágica história do tio que eu
nunca havia tido a chance de conhecer. Ele havia morrido num acidente, mas
minhas mães evitavam falar sobre isso. Mas sempre que visitávamos Whitley
River, sua cidade natal, deixávamos flores em seu túmulo. — Perder um
irmão já é horrível, mas perder um gêmeo é como perder uma parte de si.
Nunca me esqueci do meu irmão. De como ele era incrível e meu confidente.
Demorou um pouco para aceitar que ele se foi, mas não dava para ficar
remoendo sua morte. É claro que sinto sua falta. Todos os dias, o tempo todo,

mas eu sabia que ele odiaria me ver triste e nunca seguindo em frente, então
aprendi a conviver com as saudades.

Assenti devagar, sentindo um nó começar a se formar em minha


garganta. De repente, comecei a me sentir estranhamente emotivo. Senti
meus lábios começarem a tremer. Minha mãe suspirou.

— Você não precisa ser forte o tempo todo, Hunt. Não tem que ser
forte o tempo todo. Você é um ser humano e nunca pode se despedir de seu
irmão. — Kira se aproximou antes que a primeira lágrima deslizasse pela

minha bochecha. Não me lembrava da última vez que eu havia chorado em


toda minha vida. — Não é justo que você se culpe pela morte dele. Você era
uma criança.

Chorei silenciosamente enquanto minha mãe afagava minhas costas.

— Você foi uma das melhores coisas que aconteceu para mim e para
Reagan. Nós temos orgulho de quem você é.

— Obrigado, mãe. Eu te amo.

Sentindo-me infantil demais, sequei o rosto molhado com as costas das


mãos.

— Se você precisar conversar, me chame a qualquer momento e irei até


você. Não precisa passar por isso sozinho. — Ela segurou minhas mãos entre

as suas. — Agora vamos lá para baixo antes que a Reagan suba para ver por
que estamos demorando tanto e te encontre chorando feito um bebê.

— Isso nunca aconteceu, ok? — murmurei, levantando-me. — Você


nunca me viu chorar aos vinte e um anos. Entrou um cisco no meu olho, foi
só isso.

Minha mãe gargalhou.


— Claro. — Ela piscou em minha direção e abriu um sorriso. — Vai
ser um segredo nosso — sussurrou, antes de descermos as escadas.
Meu relógio acendeu e vibrou em meu pulso duas vezes, sinalizando

que havia alguém por trás da porta do meu apartamento. Forçando-me a sair
debaixo dos cobertores, não me preocupei com a aparência horrível que eu
devia estar. Assim que girei a maçaneta, entretanto, meu coração parou de
funcionar. Foi um daqueles momentos em que o mundo para, você não sente
o chão sob seus pés e seu corpo retesa. Um daqueles momentos em que a
vida não parece real. E, com Hunt parado em minha frente, a realidade não
parecia a minha realidade.
A minha realidade era que ele estava me ignorando já havia uma
semana, não respondia minhas mensagens e me evitava nos corredores do

prédio. Seu desprezo doía mais que eu imaginei um dia que pudesse doer,
mas sabia que ele tinha motivos para tratar-me daquela forma. Continuei
olhando dentro de seus olhos escuros feito obsidianas, sem saber como reagir.
Meus lábios se separaram em surpresa.

— Com licença — ele disse, ou eu imaginei que ele disse através de


leitura labial, passando por mim e sem perguntar se poderia entrar antes.

Fechei a porta e girei nos calcanhares, sem saber como reagir ao me


deparar com Hunt agora sentado no meu sofá, no meio do emaranhado de
cobertores que eu trouxe para cá e duas caixas de lenço (uma delas já pela
metade). Acho que ele não percebeu a garrafa de tequila jogada no tapete, ou
se percebeu, a ignorou. O caos em meu apartamento era por conta da
maratona de filmes de drama que eu estava fazendo neste final de semana.

Não estava esperando por ninguém e Hunt era a visita mais inusitada de
todas.

— Hunt… — comecei a dizer em voz alta, mas ele ergueu a palma da


mão, cortando-me.

— Não. — Sinalizou. — Leia para mim.


Seu corpo tombou contra o estofado do sofá e finalmente percebi o
livro em suas mãos. Havia um músculo tenso em seu maxilar e sabia que ele

ainda estava chateado comigo, pois estava nítido em seu olhar, mas também
dava para perceber em seu rosto que ele parecia desolado e que precisava de
amparo. Me perguntei mentalmente se, de alguma forma, ele havia vindo
buscar conforto em mim.

— Acho que devíamos conversar — falei, tentando imaginar se havia


soado cautelosa ou não.

— Não quero conversar com você, Evelyn. — O jeito como ele


sinalizou foi grosseiro e fez com que me retraísse como uma tartaruga
recuando para a segurança de seu casco.

Hunt soltou um suspiro quando notou minha reação e seu rosto


suavizou.

— Eu só preciso ouvir sua voz. — Sinalizou, o corpo meio curvado


agora. Ele parecia derrotado.

— Você quer ouvir minha voz, mas não quer que eu converse com
você? — Sinalizei de volta, tentando entender o que estava acontecendo.

— Sim. Comprei um livro e queria que você lesse para mim. Quero
ouvir sua voz. — Sua perna começou a balançar e notei que ele parecia
impaciente, meio com pressa. Quase… desesperado. — Por favor, Evelyn.
Leia para mim.

Não o contrariei daquela vez, peguei o livro que ele estendeu em minha
direção e passei os dedos em haste sobre o título gravado na capa. Tratava-se
de uma cópia de Alice no País das Maravilhas, o meu favorito. Senti um
aperto no coração e então, comecei a folheá-lo até que estivesse na primeira

página, com os olhos presos no primeiro parágrafo. Antes de começar a ler,


sentei-me na poltrona.

Como não sabia se estava falando muito alto ou muito baixo,


interrompi a leitura algumas vezes para perguntar a Hunt se estava bom e em
todas as vezes, ele acenava com a cabeça. Submerso em tudo que escapava de
meus lábios, ele mantinha os olhos presos no teto enquanto deitava no meu
sofá, que era pequeno demais para seus um metro e noventa. Com as pernas
para fora do estofado, ele parecia à vontade do mesmo jeito. O cabelo caía de

forma desajeitada em sua testa e suas mãos estavam cruzadas atrás de sua
cabeça.

Hunt parecia infantil naquela posição enquanto eu lia para ele. Como se
pudesse sentir que eu o observava descaradamente, seu rosto se virou em
minha direção. Suas íris se prenderam às minhas e eu engoli em seco.

— Você parou de ler. — Li seus lábios. Sua sobrancelha perfurada se


arqueou. — O que foi?

Balancei a cabeça, desconcertada. Senti o calor subir por meu pescoço,


o rubor tingindo minhas bochechas.

— Nada.

— Se continuar me olhando assim, vou esquecer tudo que aconteceu

entre a gente por um tempo e te foder. — Sinalizou a última palavra


propositalmente, para que eu tivesse certeza do que ele tinha dito em voz alta
e não pensasse que tinha entendido errado. — Prometo que vou ser melhor
que o Ian era.

Não gostava do jeito que ele me olhava agora, era um olhar frio e
distante. Não parecia mais o cara para quem eu estava lendo há dois minutos
atrás, não parecia o Hunt que era sempre brincalhão e sarcástico. Não parecia
a mesma pessoa para quem eu havia dado meu corpo e, quase, meu coração.

Não parecia quem eu havia desejado entregar meu coração cegamente.


Sentindo uma súbita onda de emoção, não fui rápida o suficiente para deixar
a sala antes que meus olhos começassem a lacrimejar. E, por causa disso,
Hunt tinha visto a fragilidade em meu rosto e agora estava bloqueando meu
caminho para o corredor.

— Evelyn — ele disse em voz alta, olhando-me nos olhos. —


Desculpe.

— Por que você tem que ser um babaca? — Espalmei seu peitoral, mas
ele não se moveu um centímetro. — Eu já disse para você que Ian e eu não
nos envolvemos mais muito tempo antes de eu ter conhecido você, Hunt. E,
mesmo se tivesse acontecido algo, a gente não tinha nada. — Fiz uma pausa,
pensando melhor. — A gente não tem nada! — Senti meus lábios começarem

a tremer. — Eu errei em ter escondido isso de você porque vocês são amigos,
mas você tá agindo como se eu fosse a pior pessoa da porra do planeta terra.

Hunt me fitava com pesar, um vinco profundo entre suas sobrancelhas.

— Desculpe, Eve. — Ele segurou minhas mãos entre as suas sobre seu
peito, em seu coração. — Eu não queria que você chorasse. Fui idiota
mesmo.

Fiquei em silêncio. Cautelosamente, Hunt me puxou para seus braços.

Baixando minha guarda, deixei com que ele me abraçasse. Depois, ele me
arrastou para o sofá e nós nos sentamos lado-a-lado. Meu corpo tombou
contra seu peitoral e ele continuou me segurando, mantendo-me perto e me
envolvendo com seu calor corporal. Não soube por quanto tempo ficamos
naquela posição, mas quando nos afastamos, Hunt começou a sinalizar:

— Me conta o que houve com o Ian. Como vocês se conheceram?


Me surpreendi por Hunt ter entrado no assunto, mas não fugi dele, não
havia mais o que esconder.

— Foi em um bar. Eu estava com aquela minha amiga, London. Ele me


viu e começou a falar comigo, mas… — Parei de sinalizar por um momento.
— Eu sou surda. Não consegui ler seus lábios porque ele falava rápido
demais, então escrevi para ele no bloco de notas do meu celular e o mostrei.

Ele pareceu meio surpreso, mas não me ignorou como a maioria dos caras
faziam quando descobriam isso. — O maxilar do Hunt travou neste momento
e achei fofo. — Aí ele pediu meu número e nós ficamos trocando mensagens
no bar, enquanto estávamos um ao lado do outro. Em algum momento, ele
perguntou se podia me beijar e eu disse que sim. — Dei de ombros. — Então
começamos a sair. Ele era sempre muito gentil e eu gostava dele, mas não o
suficiente. Por mais que nós nos beijássemos, eu não conseguia sentir mais
que atração e um carinho inofensivo por ele. Acho que sempre o vi mais

como amigo do que tudo. Quando percebi que ele não queria levar mais
nosso lance com casualidade, parei de vê-lo. Nós queríamos coisas diferentes.

Hunt assentiu, meio pensativo enquanto parecia assimilar toda aquela


informação.

— Você realmente não sente nada por ele?

— Não sinto nada por ele. Como disse, era só atração.


— E o que você sente por mim, Eve? — ele perguntou, de repente,
fazendo meu coração saltar no peito daquela maneira que só ele sabia fazer.

— Você só sente atração?

Hesitei antes de sinalizar:

— Não. É diferente.

Sua mão deslizou sobre meu joelho e senti meu corpo se arrepiar.

— Diferente como? — perguntou em voz alta, fazendo-me fitar sua


boca. Forcei-me a olhá-lo nos olhos outra vez.

— Eu não sei. Nunca me senti assim antes — admiti. — Eu sinto meu


coração bater mais forte toda vez que eu te vejo. Sinto como se eu fosse
morrer. Meus joelhos ficam trêmulos quando você se aproxima demais e meu
estômago parece ganhar vida própria quando você me toca. Penso que eu
quero levar você até minha casa qualquer dia desses. Penso que meu pai vai

ficar decepcionado comigo porque odeia tatuagens e piercings e me assusto


quando penso que não tô nem aí para o que ele vai pensar de você porque no
fim tudo que importa para mim é o jeito que você faz com que eu me sinta.

— Nossa. — Hunt sinalizou. — Essa foi a melhor coisa que já disseram


para mim. — Houve uma pausa. — O que você diria se eu dissesse que não
quero ser só seu amigo?
— Você vai ter que ser mais específico que isso. — Sinalizei mesmo
sentindo minhas mãos trêmulas. Era como se eu pudesse desmaiar a qualquer

momento com o rumo que a nossa conversa estava levando.

— Eu quero tentar, Eve. Quero que você seja minha namorada.

Meu coração parou.

— A resposta é sim. Eu acho que nós podemos tentar.

Sua boca encostou na minha por alguns segundos e Hunt se afastou.

— Eu nunca te levei num encontro, né? A gente precisa ir num


encontro.

Eu sorri, sentindo o rosto corar. Por que é que eu me sentia como se


tivesse quinze anos outra vez?

— Me diga onde levá-la — Hunt disse para mim, através da língua de

sinais. — Aonde você quer ir?

— Não sei — respondi, sendo honesta. — Você pode se decidir.


Prometo que vou amar o que você escolher.

— A vida é tão estranha, não é? — ele perguntou, do nada. Franzi o


cenho. — Entrei aqui puto com você, a gente quase brigou, fiz você chorar e
agora pedi para que você aceitasse ser minha namorada e estamos tentando
nos decidir para onde vamos. Não imaginei que terminaria assim.

— Por este lado, acho que a vida é estranha mesmo — concordei.

No próximo momento, Mimosa saltou no meu colo, ficando entre Hunt


e eu. Ela já estava maior desde que chegou para nós, quase no seu tamanho
de adulta. Hunt acariciou suas orelhas e a gata deu uma patada no seu

piercing do nariz, deixando a pele daquela região avermelhada. Os olhos do


garoto encheram de lágrimas e não evitei o riso que borbulhou em minha
garganta.

— Porra. — Li seus lábios. — Doeu.

— Quer ver um filme? — perguntei para Hunt.

— Que tipo de filme?

— Sei lá, ação? Comédia romântica? Ficção científica?

— A gente podia assistir algo diferente, se é que você me entende. —


Suas sobrancelhas se arquearam. — Pra apimentar o clima, sabe? Sei lá, só
estou sugerindo. — Deu de ombros.

— Nem pensar. A gente não vai assistir pornô. — Fiz uma careta. —
Que nojo.

Hunt abriu um sorriso torto e galanteador.


— Eu não disse que era pornô. Você que tá dizendo. Mas, sabe, não é
uma ideia ruim…

— Não, Hunt. Esquece, isso. Sério — falei, com o semblante fechado.


— Se não quer assistir nada pode ir para seu apartamento. Vou ver algum
filme que não envolva nudez sozinha.

— Você é tão chata e sem graça, por que é que me apaixonei por você?
— Hunt sinalizou, fingindo estar triste.

— Parece que você quer ficar solteiro nos vinte primeiros minutos de
namoro. — Ergui uma sobrancelha em sua direção.

— Vem aqui, conheço um jeito para amolecer esse seu coração de


pedra.

Quando Hunt se inclinou em minha direção, não fui capaz de afastá-lo.


Deixei com que ele fechasse os lábios sobre os meus e que seus dedos

encontrassem um caminho entre minhas coxas. No fim, ele conseguiu


amolecer meu corpo inteiro com aquele método.
Eu nem conseguia me lembrar da última vez em que havia saído em um

encontro. Fazia muito tempo e provavelmente havia sido no início do meu


ano freshman. Então, passei a manhã inteira do domingo pensando no que
vestiria e avaliando as opções que havia no meu armário. A única peça que
achei que ficaria boa foi a que usei no casamento de uma tia, dois anos atrás.
O vestido ainda estava novo, pois só havia sido utilizado por mim naquela
vez.

O tecido era azul escuro e eu achava que envolvia meu corpo de um


jeito sexy. Experimentando-o em frente ao espelho do meu quarto, fiquei
meio preocupada sobre a saia, que parecia curta demais. Mas não dava para

negar que tinha ficado… ousado. Por algum motivo, queria que Hunt
pensasse somente em mim durante a noite e na droga do vestido.

Deixei a peça dobrada sobre minha cama e tomei um banho no fim da


tarde, antes de começar a me arrumar. Eu não usava muita maquiagem, mas

abri uma exceção, fiz um delineado e passei rímel e batom. Quando me olhei
no espelho, após colocar o vestido e saltos médios, quase não me reconheci.
Parecia que eu estava pronta para uma passarela da Victoria’s Secret.

Hunt chegou em minha porta às sete em ponto, como havíamos


combinado.

Com a mão trêmula por conta do nervosismo, girei a maçaneta.

Seus olhos se fixaram no meu rosto e, depois, desceram por meu corpo,

parando alguns momentos na área de meus seios e depois minhas pernas.


Nunca me senti tão bonita em toda minha vida. Hunt piscou algumas vezes,
parecia atônito. Senti o rosto corar.

— Caralho. — Li seus lábios. — Porra. Nossa. Uau. Tipo, você está


maravilhosa.

Hunt estava vestindo uma camiseta de botões preta e jeans que


pareciam novas. Nos pés, suas habituais botas de couro. Como sempre, ele
não precisava se esforçar nem um pouco para parecer perigosamente bonito.

De todos os ângulos que você o encarasse, veria apenas uma aparência


perfeita.

Eu sorri.

— Obrigada. — Sinalizei. — Você também está bonito.

— Mas eu não chego aos seus pés, Eve. Acredite em mim.

Rolei os olhos.

— Ok. Podemos ir?

— Tem certeza? Acho que a gente podia ficar e testar a resistência


desse vestido. Aposto que ele rasga e sai fácil se eu puxar da maneira certa.
— Ao notar minha expressão de seriedade, ele sorriu torto e deu de ombros.

— Tô brincando.

Segurando em minha mão, Hunt e eu descemos as escadas. Com as


chaves do meu carro, ele se acomodou no banco do motorista com
naturalidade, como se estivesse sempre muito à vontade estando ao meu
redor. Senti um frio na barriga durante todo o percurso até o restaurante,
ainda mais porque Hunt sempre colocava a mão na parte interna das minhas
coxas durante os semáforos. Não sabia se ele estava fazendo de propósito,
mas meu corpo reagia de uma forma ridícula que me deixava envergonhada.
Se ele continuasse com os toques ocasionais, ficaria excitada de um jeito

embaraçoso durante nosso primeiro encontro.

Quando o sinal ficou vermelho outra vez, seus dedos afundaram em


minha pele desta vez. Segurando seu pulso, afastei sua mão gentilmente,
observando-o rir silenciosamente sem tirar os olhos do painel. Pelo visto o

desgraçado sabia muito bem o que estava fazendo.

Erguendo os quadris, puxei minha calcinha até que estivesse enroscada


nos meus tornozelos. Hunt quase bateu o carro neste momento. A gente
balançou e meu joelho bateu na porta. Assumindo controle outra vez pelas
ruas, pressionei os lábios juntos para não rir e terminei de tirar a peça íntima.
Estacionamos no mesmo momento. Hunt sinalizou, parecendo indignado:

— Você quase matou a gente.

— Você quase matou a gente. Você que estava dirigindo — corrigi,


movendo as mãos.

— Eu estava dirigindo e você… — Ele balançou a cabeça, incrédulo.


— Você tirou a porra da calcinha. Por que diabos você tirou a porra da
calcinha?

— Porque você a arruinou.


— Eu a arruinei? — Seu cenho franziu.

— Por causa das suas carícias durante o trajeto ela ficou meio que
molhada.

Hunt arregalou os olhos.

— Nossa, agora eu tô de pau duro. Obrigado, Evelyn. — Observei-o

passar as mãos nos cabelos sedosos, escovando-os para trás, meio frustrado.

— Que lugar é esse? — O ignorei, olhando o enorme e sofisticado


edifício através do painel.

Voltei-me para Hunt um momento depois, para vê-lo sinalizar:

— É um restaurante que tem inclusão para surdos, parece que ele é bem
famoso. Achei na internet.

Fiquei sem palavras. Eu sabia que Hunt estava fazendo o básico

levando-me em um lugar em que eu pudesse me sentir à vontade, mas


acontece que nenhum cara com quem saí antes se preocupou com isso. Abri a
porta e desci do carro, evitando Hunt para que ele não visse o sorriso em meu
rosto.

— Você nem me deixou abrir a porta para você. — Ele sinalizou,


parecendo meio decepcionado.
— Não precisava abrir a porta para mim.

— Mas eu queria.

— Da próxima vez você abre.

Mesmo parecendo contrariado, Hunt assentiu. Senti como se estivesse


lidando com um dos meus alunos da escola e ri comigo mesma. Ignorando o

olhar curioso do garoto ao meu lado, nós caminhamos até a porta — que
Hunt abriu para mim — e adentramos no lugar. Impressionada com a
decoração moderna e chique, não fiquei surpresa quando fomos parados para
checar o número da reserva. A mulher sinalizou ao mesmo tempo em que
movia os lábios:

— Por favor, sigam-me.

Adentrando no restaurante parcialmente cheio, ela nos guiou para uma


mesa perto da janela, com uma vista incrível da avenida. Hunt puxou a

cadeira para eu me sentar, o que achei atencioso. Naquela noite ele estava se
esforçando muito para ser gentil. Parecia que queria me impressionar, o que
me deixava ainda mais apaixonada.

Após entregar o menu, a mulher que havia nos acompanhado até a


mesa sinalizou um "licença" e se retirou. Encarei Hunt.

— Nossa, que lugar chique. — Movi as mãos. — Admito que fiquei


muito impressionada.

— Eu sei. Acertei em cheio, né?

— Acertou.

Hunt sorriu, recostando-se na cadeira.

— O que você quer comer?

— Sei lá. Não sou exigente. Se tiver algum prato coreano, está ótimo.

— Tipo Bulgogi? — perguntou.

Dei de ombros. Hunt começou a ler o cardápio enquanto eu comecei a


ajeitar um guardanapo de linho. Desdobrei-o e depois o enrolei como estava
originalmente. Ergui o rosto para Hunt quando ele fechou o menu e tocou um
sino na mesa. Um momento depois, um garçom estava ao nosso lado.

— Dois Bulgogi, por favor. Ah, e uma garrafa de vinho tinto.

O homem assentiu antes de se retirar.

— Me conta uma história legal — falei para Hunt, através da língua de


sinais.

— Uma história legal? Bem… — Ele pensou por alguns momentos,


parando de mover suas mãos. — Quando eu tinha cerca de oito anos, minhas
mães disputaram entre si sobre quem me ensinaria a tocar meu primeiro

instrumento. — Um sorriso começou a delinear sua boca. — Reagan queria

que eu aprendesse violino e, Kira, guitarra. Foi engraçado porque elas


compraram os dois instrumentos para mim sem que a outra soubesse. No
Natal, quando foram me presentear, não sabiam o que fazer.

Comecei a sorrir também.

— Você escolheu a guitarra — concluí.

— É, mais ou menos. Sempre senti essa vontade louca de tocar


guitarra. Sempre que via minha mãe tocando-a, eu queria ter a minha própria.
Mas, também sentia afinidade pelo violino. Tenho fraco por instrumentos
melancólicos.

— O que seriam instrumentos melancólicos? — questionei-o,


divertida.

— Ah, você sabe. Violino, violoncelo, piano…

— Mas dá para tocar música agitada em todos esses que você citou.

— Eu sei, mas… Não dá para explicar, Eve. Não é a mesma coisa tocar
Beethoven na guitarra e no piano.

Pensei por alguns momentos. Ele tinha um ponto.


— É verdade — concordei. — Então, você ficou com a guitarra
mesmo?

— Aprendi os dois, tanto guitarra quanto o violino, mas seria mentira


se dissesse que a guitarra não é minha grande paixão.

— Você sabe tocar violino? — perguntei, surpresa.

— Sei.

— Você toca quantos instrumentos? — Sabia que ele tinha aptidão no


piano, mesmo nunca ouvindo-o.

— Quatro. Guitarra, violino, violão e piano.

— Nossa. Eu tenho fraco por músicos, já falei isso?

— Não, mas acho que é meio óbvio. — Hunt sorriu.

Me perguntei outra vez como seria ouvir Hunt. Sua voz, sua risada…

Como ele era no palco. Ou entre os lençóis. Como seria a música dele? Ele
realmente tocava bem? Me perguntava isso várias vezes, quase todos os dias.

Desde que fiquei surda, aprendi a interpretar o mundo de outra forma.


Não era ruim, só era… diferente. Mesmo não podendo escutar minha própria
música no piano, se fechasse os olhos, poderia imaginar todas as notas
ressoando no fundo da minha mente. Às vezes me esquecia de como algumas
coisas soavam, mas sempre me lembrei de como era cada nota no piano. Não
sabia como a risada de meu pai era, mas imaginava peças inteiras em minha

mente. A música sempre permaneceu comigo.

Despertei com um toque suave no dorso da minha mão.

— Evelyn — Hunt oralizou meu nome. — Está tudo bem?

— Claro, só estava… pensando.

— No quê? — Ele parecia preocupado e me senti meio culpada, mas


resolvi ser honesta.

— Em como seria ouvi-lo.

Ele não disse nada, apenas ficou me encarando por vários segundos. No
próximo momento, dois pratos de Bulgogi foram postos na mesa, assim como
uma garrafa cara e cheia de vinho e duas taças. Com os hashis em mãos,

comecei a comer silenciosamente enquanto Hunt fazia o mesmo. O clima


entre nós não era estranho, mas senti que algo havia mudado na atmosfera
após ter dito para o garoto que pensava em como seria ouvir sua voz.

Nós terminamos de comer e Hunt pediu a conta. Após me dispensar


quando me ofereci para dividi-la com ele, entramos no carro. O caminho para
o prédio foi meio estranho. Hunt não me tocava nos semáforos, sequer olhava
para mim. Parecia perdido em seus pensamentos. Quando paramos no
corredor, na hora de nos despedirmos, eu perguntei:

— O que foi?

— Que foi o quê? — Sinalizou de volta, meio que despertando.

— Você está estranho.

Hunt deu de ombros.

— Não estou.

Ficamos em silêncio apenas nos fitando.

— Tá bom — respondi, fingindo indiferença quando no fundo estava


borbulhando de raiva porque estava na cara que ele não estava sendo honesto.
— Boa noite.

Fiz menção de me virar e ir para meu apartamento, mas Hunt segurou


minha mão.

— Não — ele disse em voz alta, fazendo-me ler seus lábios. — Não vá
dormir estando chateada comigo.

— Então seja honesto — respondi, oralizando.

— É que… — Ele deu alguns passos para trás, parecendo meio


frustrado. — Eu escrevi uma música para você. E eu estou me sentindo o
maior babaca do mundo porque não há mais nada que eu queira no mundo do

que vê-la escutando-a. Muita gente vai nos shows da banda. Muita gente já

me ouviu. Mas eu queria que você me ouvisse, Eve. Você é a única pessoa
que eu queria que me ouvisse. E você não pode. Isso me deixa triste. Aí fico
ainda mais triste quando lembro que esse pensamento provavelmente é
horrível e que…

— Não é um pensamento horrível — o cortei, sinalizando. Engoli em


seco, sentindo meu coração bater com força. — Não há nada que eu queira
tanto do que poder ouvir a sua voz — admiti. — Penso sobre isso… o tempo
todo.

— Desculpa, Eve. Não devia ter dito nada disso para você. Não queria
que você se sentisse mal.

— Não precisa se desculpar, tá tudo bem.

No próximo momento, beijei seus lábios. Não durou muito tempo. Só


alguns segundos.

— Boa noite, Hunt. Obrigada por tudo. O encontro foi perfeito.

Então, nós entramos em nossos respectivos apartamentos. Mordendo o


lábio inferior, corri para meu quarto e peguei meu notebook. Tirando os
saltos, deitei-me na cama e abri o e-mail. Comecei a escrever, com o coração
acelerado. Esperava que desse certo o que eu tinha em mente daquela vez.

Olá, Dr. Kopler

Aqui é a Evelyn Kyong, não sei se você lembra de mim. Alguma


possibilidade de conversarmos sobre aquele assunto? Gostaria de tentar
outra vez.

Atenciosamente,

Eve.

Apertei o botão de enviar.


Perambulando de um lado para o outro, me sentia mais nervosa que o

habitual. Faltavam apenas dois minutos para que eu entrasse na sala do Sr.
Kopler. Não sabia dizer qual foi a última vez que estive ali e aquilo me
desencadeava alguns sentimentos estranhos. As palmas das minhas mãos
suavam e eu tentava respirar e inspirar lentamente para acalmar as batidas do
meu coração.

O celular vibrou na palma de minha mão e eu baixei o olhar.


Pai: tem certeza? o que te fez mudar de ideia?

Podia sentir a hesitação dele por trás da tela, mesmo estando a milhares
de quilômetros de distância.

Eu: tenho

Eu: vou ficar bem, não se preocupe

Sua resposta chegou no mesmo segundo:

Pai: ok, mantenha-me a parte

Eu: ok, amo vc

Bloqueei a tela do aparelho no mesmo instante que o Sr. Kopler abriu a


porta do seu consultório e uma de suas pacientes saiu após trocarem breves
despedidas. Um sorriso sutil se abriu em seus lábios quando ele me avistou.
Ele continuava o mesmo do que eu me lembrava: olhos escuros e gentis,

cabelos brancos e uma aura de sabedoria. Entretanto, seu rosto carregava


mais linhas de expressões, um sinal de idade avançada.

— É um prazer revê-la, senhorita Rose. — O doutor sinalizou. —


Entre, por favor.

Passando pela porta, um passo atrás do outro, cruzei os dedos


discretamente atrás das costas e fiz uma oração silenciosa.
Por favor, desta vez.

Eu só precisava de algumas horas. Após deixar a ala do hospital, fui


direto para casa. Hunt estava em seu apartamento e, para minha sorte, a porta
estava entreaberta. Com o coração batendo loucamente em meu peito,
avancei pelo corredor e toquei a maçaneta.

— Porra, onde foi que eu pus as malditas chaves? Será que… — Pausa.
— Não. Não deixei no banheiro.

Hunt estava dando voltas por sua sala, tirando almofadas do sofá e
revirando todos os cantos possíveis em busca das suas chaves. Pelo visto, ele

estava de saída. E não tinha me visto parada ali, estática, fitando-o.

— Merda, vou me atrasar assim e… — Ele parou de resmungar quando


ergueu o tronco após olhar embaixo do tapete. Seus olhos encontraram os
meus. — Eve? — Seu cenho franziu. — Há quanto tempo você está aí? —
Sinalizou. — Pensei que você fosse resolver algumas coisas.

Engoli em seco.
— Hunt — falei, dando um passo para frente. — Leia para mim —
murmurei, segurando o livro com força entre as mãos. Até que os nós dos

dedos estivessem esbranquiçados. — Por favor, leia para mim.

Demorou para ele entender. Seus olhos fixaram-se nas laterais da


minha cabeça, sobre os aparelhos auditivos. Seu rosto de super relaxado foi
para super chocado em uma fração de segundos. Ele entreabriu a boca e a

fechou. Repetiu o movimento pelo menos umas três vezes antes de dizer:

— Você consegue… me ouvir?

— Sim. — Assenti. — Consigo.

Meu coração parecia bater asas dentro do meu peito. A cada palavra
que Hunt dizia, me sentia mais maravilhada. O som não era tão alto, nem
definido, mas podia escutá-lo e era incrível. Seu tom de voz grave e rouco
transmitia paz. Era como fogo crepitante na lareira nos invernos, arrastar de

lábios pelo pescoço e brisas abafadas no solstício.

— Está falando sério? — Hunt ainda parecia incrédulo. Ele deu alguns
passos em minha direção. Tum. Tum. Tum. Parou. — Se podia pôr os
aparelhos antes, por que não fez isso?

Agora, ele parecia meio magoado.

— Eu não me adaptei bem a eles. Tentei várias vezes e só consegui


ficar algumas horas usando. Me dão muita dor de cabeça e não sei por quanto
irei aguentar desta vez, então a gente não tem tempo para perder. Quero ouvir

suas músicas. Também quero que você toque para mim. Quero que você diga
meu nome até que eu canse de ouvi-lo e que me mostre a música que fez para
mim.

Hunt abriu um sorriso enorme.

— Eu estava de saída, mas, foda-se, vou cancelar o ensaio de hoje. —


Ele finalmente cortou o espaço entre nós e deu um beijo rápido em minha
boca. — Vou te mostrar as músicas, Eve. Espera um minuto.

Hunt se virou e correu para o corredor. Voltou muito rápido, com seu
notebook.

— Acho que não vai dar para ouvir todas, então vou pôr as minhas
preferidas.

Assenti, observando-o. Nós dois estávamos com sorrisos bobos nos


rostos. Aquele era um momento muito especial. Ouvi as três primeiras faixas
da banda extasiada, fazendo comentários a cada segundo das músicas. Eram
melhores do que eu tinha imaginado e a voz de Hunt, puta merda, era
incrível. Ele com certeza havia nascido para a música.

Quando me mostro a letra da música que havia feito para mim, foi
quase impossível impedir a umidade nos olhos. Era sobre a primeira vez que
ele havia se apaixonado e sobre o mundo inteiro podê-lo ouvir, menos quem

realmente importava. Beijei seus lábios e fui honesta quando disse a ele que
amei. Depois, voltamos a ouvir as músicas.

Mesmo sentindo algumas palpitações nas têmporas, não deixei com que
a dor estragasse minha experiência.

Depois de mais quatro faixas, eu disse:

— Eu amei. Nossa, vocês são impressionantes. Acho que agora eu


preciso de uma camiseta com seu rosto e o nome da banda gravado nela.

Hunt riu.

Foi maravilhoso.

Me inclinei sobre ele no sofá, passando os braços ao redor do seu

pescoço. Meu nariz a poucos centímetros de distância do seu.

— Ri de novo — eu ordenei, meio que obcecada. — Ria mais.

Ele riu.

— Eve…

— Nossa, eu nunca quero me esquecer desse som — falei, minha mão


traçando um caminho familiar para dentro das suas calças.

O rosto de Hunt foi ficando sério e ele umedeceu os lábios, um sorriso


torto e predador tomando conta de sua boca. Envolvi seu membro com a mão.
Suas mandíbulas retesaram.

— O que você tá fazendo, Eve? — ele murmurou contra minha boca,

enquanto eu começava a acariciá-lo lentamente.

— Te masturbando, achei que estivesse óbvio.

Ele gemeu. O som foi o suficiente para que acontecesse um desastre em


minha calcinha.

— Evelyn — Hunt disse, parecendo tenso. — O que está fazendo?

— Quero decorar todos os sons seus. — Fui honesta, deslizando para


seu colo. Minhas pernas rodearam os lados de seu tronco e as mãos de Hunt

se firmaram em minha cintura. Nós nos olhávamos nos olhos. —


Absolutamente todos — frisei.

Sua boca chocou violentamente contra a minha. Enquanto nos


beijávamos, Hunt havia dado um jeito de desabotoar minha calça e puxar o
cós para baixo. Erguendo-me nos joelhos, permiti que ele deslizasse a peça
até metade das minhas coxas, então tive que fazer o trabalho de descartá-la
completamente sozinha. Sua camisa também tinha ido para o assoalho.
— Você é tão bonita, Eve — ele murmurou, depois tirar minha blusa e
jogá-la junto do amontoado de roupas no chão. Seus dedos tocaram a alça do

meu sutiã de renda. — Tão bonita — ele repetiu, antes de deslizá-la por meu
ombro. Repetiu o mesmo movimento com a outra alça, até que meus seios
estivessem à mostra.

Abaixando a cabeça, ele circulou um dos meus mamilos com a língua,

o que me fez apertar seus ombros com força e jogar a cabeça para trás. Mordi
o lábio com força. Seus lábios subiram por meu colo, até que estavam em
meu pescoço. Deixando uma trilha de beijos até minha mandíbula, sua boca
finalmente pairou sobre a minha.

Afundando os dentes no meu lábio inferior, Hunt o puxou lentamente


antes de soltá-lo e se afastar. Antes que eu pudesse protestar, ele me girou, de
forma que fiquei deitada no sofá com ele entre minhas pernas. Hunt abaixou
minha calcinha e, mantendo os olhos nos meus, arrastou a língua lá embaixo,

fazendo-me ver estrelas.

Não pude evitar o gemido que escapou por meus lábios.

— Hunt — implorei, quando ele repetiu a ação, desta vez de forma


deliberadamente lenta.

— Hm? — ele murmurou, continuando com a boca próxima do meu


clitóris.

— Pule esta parte.

Ele ergueu o rosto, parecendo divertido.

— Por que eu faria isso? Você é deliciosa.

— Por favor, Hunt. — Não me importei em choramingar, eu o queria


tanto naquele momento que sentia que fosse morrer se não o tivesse o mais
rápido possível. — Não quero que você se contenha hoje.

— Não, é? — ele perguntou, posicionando-se onde eu queria que ele


estivesse: em cima de mim.

— Não — concordei.

— Você quer que os vizinhos te ouçam, margarida? — Hunt


questionou, baixando as calças e segurando a base de seu membro. Guiando-

o para a minha entrada, ele a circulou com a cabeça de seu pênis. Nós dois
gememos com o contato cru. Não havia nada entre nós.

— Não me importo com eles.

— Mas eu me importo. — Hunt começou a me penetrar com calma.


Meu corpo tremeu. Meu Deus. Eu conseguia sentir o piercing e, nossa, era
incrível. — Eles vão escutar os seus gritos, que são apenas para mim. O que
acha de tentarmos ser silenciosos?

Ele não me esperou responder, pressionou a boca contra a minha e


afundou-se dentro de mim em uma única investida. Enrolando minhas pernas
ao redor da sua cintura, permiti que ele fosse mais fundo enquanto ele engolia
todos os meus gemidos. Hunt apertou uma das mãos ao redor do meu
pescoço, mas no ponto certo. Sem ser muito frouxo, sem ser muito forte para

machucar. Era a medida certa.

— Porra — ele resmungou, tirando a boca da minha. Seus quadris


continuavam recuando e investindo em um ritmo contínuo. Não tão lento, não
tão rápido. Hunt suspirou, o ar quente batendo contra meu nariz. — Você é
perfeita, Evelyn. Perfeita para caralho.

— Hunt — gemi seu nome, sentindo o coração dobrar o ritmo do


batimento. — Estou quase lá. Me ajuda.

Captando o recado, ele pressionou o polegar sobre meu clitóris,


esfregando-o. O meu grito foi interrompido pela boca de Hunt que se fechou
sobre a minha. Em resposta, cravei as unhas no seu ombro com força o
suficiente para machucá-lo e as arrastei por seu tronco. Ele tomou uma longa
respiração e suspirou bruscamente.

— Caralho, Eve — resmungou. — Acho que eu amo você.


Enquanto eu alcançava o ápice, as três palavras alcançaram meus
ouvidos e meu coração também.

— Foda-se, eu amo você — Hunt falou. — Tô quase lá.

Ele deu a última investida antes de se afastar e terminar o trabalho com


a mão, então gozou no meu quadril. O líquido quente se espalhou sobre

minha pele. Observei-o fechar os olhos por alguns momentos, lutando para se
apoiar nos próprios braços. Fitando seu rosto corado e os cabelos
desgrenhados, murmurei:

— Eu também amo você, Hunt.

As palavras o fizeram despertar. Ele abriu as pálpebras.

— Mesmo? — questionou, e pude jurar que um brilho atravessou seu


olhar, os mesmos olhos onde eu conseguia enxergar um futuro.

— Mesmo.

— Obrigado, Eve. — Hunt beijou meus lábios. — Obrigado por me


amar de volta.

— Não se agradece por isso — eu disse, divertida. Meu coração


encontrou um ritmo calmo e intenso pelos próximos momentos.

Ele pareceu meio sem graça.


— Acho que você precisa de um banho, né? — Mudou de assunto.

Ah, eu, com certeza precisava de um banho.

— Você me acompanha? — indaguei, esperançosa.

— Claro.

Houve alguns momentos de silêncio.

— Hunt — chamei-o.

— O quê?

— Você quer vir para casa comigo no Natal? Onde cresci. Em Idaho.

Ele pareceu surpreso, mas durou apenas cerca de três ou quatro


segundos. Depois, abriu um sorriso sutil e beijou um dos cantos de minha
boca.

— É claro que eu quero. Obrigado por me convidar, espero que seu pai
não me odeie.

— Ele não vai odiá-lo — prometi a ele, mas nem eu me convenci com
as minhas próprias palavras.

E, olhando para o rosto de Hunt, sabia que ele também não.


— Ele me odiou. — Sinalizei para Eve quando seu pai deixou a sala

por alguns momentos.

Desde que apareci na porta ao lado de Evelyn, numa casa estilo


vitoriana localizada em um bairro bom e bem arborizado, seu pai me olhou
com o tipo de desprezo que eu estava habituado a receber de gente mais velha
por conta da minha aparência. Pior era que eu nem podia culpar o Sr. Garrett
— como havia se apresentado. Evelyn era o exemplo da filha perfeita:
cabelos sempre muito penteados, roupas impecáveis e inteligência que
deixava qualquer um orgulhoso. Já eu, era um causador de problemas. O
estereótipo ideal de caras que os pais queriam as filhas longe.

— Não odiou, ele só está meio tímido. — Eve sinalizou, tentando me


confortar. Mas, pelo olhar de constrangimento em seu rosto, sabia que nem
ela acreditava no que havia dito.

No próximo segundo, o pai de Eve voltou para a sala. Com um bule de


chá e biscoitos decorados, ele serviu Evelyn como se ela fosse a coisa mais
valiosa em sua vida. O jeito que ele olhava para ela dizia aquilo e era o
suficiente para eu saber que ela tinha um bom e protetor pai. Era o dever dele
mantê-la longe de possíveis ameaças e corações partidos, então quando ele
me ignorou e puxou uma cadeira na mesa, não me ofendi. Ao invés disso,
limpei a garganta e falei:

— O senhor tem uma bela casa.

Sinalizei para manter Eve a parte.

— Obrigado — ele respondeu de maneira seca, também dizendo na


língua de sinais.

Garrett não se importou em me encarar enquanto falava comigo, era


como se eu fosse uma pedra em seu sapato. Lançando um olhar para Eve,
notei que suas bochechas estavam começando a corar. Provavelmente o
comportamento do seu pai a deixava envergonhada. Sufocando um suspiro no
fundo de minha garganta porque aquele seria um longo feriado — mesmo

que fosse apenas dois dias —, puxei o celular do meu bolso e chequei as
mensagens no grupo com minhas mães.

Kira: já chegou? nos informe

Reagan: a viagem foi legal? estou preocupada

Reagan: já conheceu o pai dela???? o que ele achou de você?

Digitei uma resposta.

Eu: cheguei na casa dela há um tempinho

Eu: o pai dela me odiou e a viagem foi ok, sem muita turbulência e
tinham biscoitos deliciosos no avião

Bloqueei o celular quando percebi que o pai de Eve e ela estavam tendo

uma conversa na língua de sinais. Como parecia muito pessoal pela


intensidade que se encaravam, me levantei e fui para fora. Na varanda, acendi
um cigarro, observando o movimento do bairro. Havia muitos carros
estacionados na rua, provavelmente porque era véspera de Natal. O lugar
onde a Eve cresceu aqui nos Estados Unidos dizia que seu pai tinha uma vida
financeira boa o suficiente para dá-la conforto e segurança necessária. Eu
estava meio curioso para invadir seu quarto, queria descobrir como a Evelyn
adolescente era.

Passaram-se alguns minutos até que ouvi a porta sendo aberta atrás de
mim, o rangido pairando no ar. Não precisei me virar para saber quem era, o
ritmo dos passos leves e cautelosos diziam muita coisa.

Evelyn parou ao meu lado, tirando uma mecha de cabelo do rosto e

olhando para longe assim como eu estava fazendo há uns momentos atrás.
Hoje, excepcionalmente, eu estava achando-a radiante. Com um sobretudo
para o inverno, calça legging e botas de camurça e o cabelo longo resvalando
no fim de suas costas, Eve era uma das garotas mais bonitas que eu já tinha
visto.

— Desculpe-me. — Ela sinalizou, olhando para os próprios pés. —


Meu pai não está habituado com garotos aqui em casa. Eu nunca trouxe
ninguém antes.

Eve ergueu o rosto, fitando-me finalmente.

— Não se desculpe — eu disse. — Me mostra seu quarto. Admito que


estou curioso para vê-lo.

Mudando de assunto, a atmosfera tensa ao nosso redor também pareceu


cair. Eve assentiu e fez um sinal para que eu a seguisse. Nós passamos pelo
hall, a sala, com decorativos de Natal e começamos a subir as escadas para o
segundo andar. Ela abriu a terceira porta à esquerda no corredor e adentramos
em seu antigo quarto. Ao contrário do que eu esperava, as paredes estavam

pintadas de preto e havia cartazes de The Rolling Stone e Led Zeppelin sobre
elas, além de discos de vinil enquadrados.

Sem esconder a surpresa no rosto, andei até a cômoda, apanhando um


porta-retratos. Na foto havia Evelyn e outras duas garotas. Provavelmente ela

tinha catorze ou quinze anos, usava sombra roxa nos olhos e um batom
vermelho gritante. Além da maquiagem carregada, vestia roupas de couro e
botas com spikes. Nada do que eu havia imaginado. Ainda atônito, virei-me
para ela, que tinha um sorrisinho divertido nos lábios.

— Você tem irmã gêmea? Porque esta não pode ser você — falei,
através da língua de sinais.

Eve riu.

— É claro que sou eu. Mudei bastante, como você pode ver. Nesta
época eu tinha me rebelado contra meu pai e abandonado o piano. Aí
comecei a ser influenciada pelo bom e velho rock and roll.

— Ainda é difícil de acreditar que você não foi abduzida ou que não
tem uma irmã gêmea, mas vou aceitar essa justificativa. Por ora. — Fiz uma
pausa. — A Eve adolescente se interessaria pelo Hunt adolescente.
Evelyn arqueou uma sobrancelha, parecendo divertida.

— Mas o Hunt adolescente se interessaria por esta versão minha?

Pensei por alguns momentos.

— Para ser honesto, não. Mas eu era um babaca, então a Evelyn


daquela época não estaria perdendo muita coisa. Fico feliz que você tenha me

conhecido agora.

— Mas até um tempo atrás você também era babaca, esqueceu?

— É verdade. Mas agora você me transformou em um cavalheiro.

— Um cavalheiro depravado — ela me corrigiu.

— É um bônus. Se você quiser, posso começar a ser mais cauteloso.


Perguntar se posso tocar seus seios e coisa e tal. Saber sobre seus limites…

Evelyn rolou os olhos, um sorriso sutil em sua boca.

— Para de ser ridículo.

— Só tô tentando ser o cara ideal para você.

No próximo momento, fomos interrompidos pelo pai de Evelyn.


Abrindo a porta sem aviso prévio, ele alternou o olhar entre Eve e eu. Por
sorte, estávamos a uma distância segura e apenas conversando. A expressão
presente em seu rosto dizia "toque em minha filha sob meu teto e irei arrancar

suas bolas". Garrett tentou sorrir para amenizar o clima, mas deu para

perceber que era forçado.

— Estava muito silencioso e quis checar se estava tudo bem.


Mantenham a porta aberta, por favor.

Com estas palavras sinalizadas, ele se retirou tão rápido quanto


apareceu. Evelyn soltou um suspiro e enterrou o rosto nas palmas das mãos,
quando o ergueu outra vez, estava com o pescoço inteiro vermelho.

— Ele está me tratando como se eu fosse uma criança de dez anos de


idade.

— Porque ele é seu pai. Acho que é normal os pais nos tratarem assim.
Minhas mães, por exemplo, elas agem como se eu ainda fosse um bebê.

— Mas manter a porta aberta, fala sério. Até parece que a gente vai

transar igual coelho. Eu conheço os limites.

Segurei o riso. Ver Eve irritada era divertido para mim.

— Para de rir. Não tem nada engraçado nisso.

Meu celular começou a tocar e pedi um momento, atendendo-o quando


li no chamador o nome de minha mãe, Reagan.
— Oi, mãe. Tudo bem?

— Oi! — ela saudou, parecendo animada, mas, mesmo assim, fui capaz
de detectar o tom de cautela em sua voz. — Eu ia perguntar isso para você.
Está tudo bem aí? Li suas mensagens agora e fiquei um pouco…

— Nervosa?

— Apreensiva — ela me corrigiu. — Não quero que destratem meu


filho. Se o pai da Eve te desrespeitar, me passa o telefone dele e iremos ter
uma conversa.

Eu ri.

— Meu deus, mãe. Eu tenho vinte e um anos.

— E daí? Você continua sendo um bebê para mim.

— Mãe, a senhora não precisa fazer isso. Obrigado por se preocupar,

mas acho que já tô grande demais para você ter que lidar com meus
problemas. Sua preocupação me faz amá-la mais, mas não precisa fazer isso
por mim. Vou desligar, ok?

Ela suspirou do outro lado da linha.

— Tá, te amo. Mas, sério, se precisar de algo me avisa. Beijos e diz


para Eve que desejei uma ótima véspera e que eu preferia que vocês dois
estivessem aqui em casa.

A chamada encerrou e parei de sorrir para o telefone. Eve me encarava


sentada em sua cama, parecia divertida.

— Que foi? — perguntei.

— Nada, é que você fica fofo falando com as suas mães. Sua expressão

ilumina inteira e admito que me dá vontade de lamber o seu rosto. É o meu


fetiche mais estranho até agora, mas, nossa… Não consigo evitar.

Eu ri alto, jogando o rosto para trás.

— Você me entretém tanto, Evelyn… Eu deixo você lamber meu rosto.

— Fico feliz em saber que sou útil, mas vou dispensar a lambida
porque estamos na minha casa e acho que não acabaria por aí, se é que você
me entende.

— Claro que entendo. Você teria que descer porque não tem a menor
chance de a gente ficar só nos beijinhos. Um boquete, talvez? Ou uma
trepada rápida.

— Cala a boca, nossa. Para de falar sobre sexo. A gente tá na minha


casa e imagina se meu pai aparece bem quando você está sinalizando todas
essas obscenidades? Ele sabe a língua de sinais.
— Eu sei. Vou me conter. — Fiquei em silêncio por alguns momentos.
Me sentei numa poltrona próxima da cômoda. — Qual foi a pior coisa que

você já fez na adolescência?

Eve pensou por um tempo. Pareceu meio surpresa com a mudança de


assunto e engoliu em seco.

— Diz você primeiro.

— Você me acharia um monstro.

— Não vai ser tão ruim quanto o que eu disser, prometo.

— Tá, mas promete que não vai me odiar antes.

Eve cruzou as pernas e me deu um rolar de olhos petulante.

— Prometo.

— Promete de dedinho, Eve.

— Sério, você tem quantos anos?

A ignorei.

— Promete.

Ela ergueu o mindinho.


— Prometo — oralizou.

— Bom, quando eu tinha quinze anos, entrei em uma fase muito…


rebelde. Ah, e eu tinha crescido consideravelmente. Tipo, uns vinte
centímetros. Eu tinha um metro e oitenta na época e era o cara mais alto
dentre todos os da minha idade, até os mais velhos. Me tornei uma espécie de
Deus no colégio. Foi quando fiz minha primeira tatuagem escondido das

minhas mães. Elas quase arrancaram os cabelos quando descobriram, mas


ajudou com que meu nível de popularidade subisse naquela época…

— O que você tatuou?

— Um par de peitos. — Apontei para meu braço esquerdo, a tatuagem


ficava perto do cotovelo.

Eve riu.

— Continue — pediu.

— Então, como eu estava dizendo para você, tinha me tornado uma


celebridade no lugar onde estudava. E fiquei obcecado por isso. Fazia tudo
para que eles continuassem me vendo assim. As garotas se atiravam aos meus
pés e tinha uma legião de caras dispostos a me seguirem. Foi quando montei
a banda também e comecei a namorar Daphne, a garota mais popular da
escola. Ela era dois anos mais velha que eu. Um dia, nós fomos para uma
festa juntos e ela foi pegar bebida para a gente, mas estava demorando muito.
Fui procurar por ela e a encontrei fazendo boquete em um jogador de

basquete no banheiro.

— Nossa. O que aconteceu depois? — Eve perguntou, parecendo


intrigada.

— Eu tirei uma foto deles e enviei para os pais dela. — Fiz uma careta.
— Não me orgulho disso porque eles surtaram e mandaram ela para um
daqueles colégios religiosos em outro estado. A família de Daphne era muito
prestigiada e ela era considerada uma filha troféu. Acho que estraguei o
relacionamento familiar deles para sempre.

Eve assentiu. Se ela havia me achado um idiota, soube esconder.

— Você não vai dizer nada? — perguntei, incomodado com seu


silêncio.

— Não, não tenho nada para dizer sobre algo que você fez aos quinze
anos e se arrepende. Não estamos aqui para nos julgarmos. Só fazendo
confissões.

— Estou ansioso pela sua — admiti.

Eve suspirou. Seu corpo ficou tenso e ela desviou o olhar para longe,
suas mãos começaram a se movimentar:
— A pior coisa que eu já fiz está ligada ao acidente que me deixou
surda. Era Halloween e eu estava prestes a fazer dezesseis anos e tendo aulas

com meu pai em um campo abandonado todo final de semana. A minha


melhor amiga na época, Jenna, sabia disso e ela pediu para que eu levasse a
gente escondida no carro do irmão para uma festa que iria acontecer depois
da meia noite. Eu estava receosa, claro, não sabia dirigir e nós iríamos sem a

permissão de nossos pais. Jenna acabou me convencendo. No meio do


caminho, um veado apareceu no meio da estrada. Perdi o controle do volante
e o carro capotou. Jenna morreu e meus tímpanos nunca mais foram os
mesmos. Fiquei internada por semanas e quando acordei, descobri que Jenna
não tinha resistido e que já havia sido enterrada enquanto eu estava em coma.
Me arrependo todos os dias por aquela noite. Se eu tivesse dito não, se eu não
tivesse aceitado dirigir até a festa…

Eve parou de sinalizar porque os seus ombros começaram a tremer

quando os primeiros soluços vieram. Fui até ela imediatamente, amparando-a


em meus braços enquanto ela chorava. Pela primeira vez, senti uma sensação
estranha de acolhimento. A culpa que Evelyn sentia, eu sabia como era. O
quanto doía. Sabia que o "e se eu não tivesse feito aquilo" machucava. Por
isso, fiquei ao seu lado. Deixei com que suas lágrimas molhassem minha
camiseta, sem me importar.
Fiz a única coisa que podia fazer naquele momento: a acolhi em meus
braços e bebi de sua dor como se fosse minha.
Na hora de dormir, meu pai fez questão de frisar que devíamos ficar em

quartos separados — embora eu já soubesse de suas restrições. A forma como


ele estava agindo com Hunt estava me dando nos nervos e nós já tínhamos
discutido sobre aquilo mais cedo, logo que cheguei em casa após o voo para
cá. No meio da noite, enquanto as luzes estavam apagadas e eu não conseguia
dormir, levantei e andei na ponta dos pés até o quarto de hóspedes.

Hunt estava deitado na cama, em um sono profundo. Fiquei


observando-o por alguns momentos e me questionando o quão estranho seria
se ele abrisse os olhos e se deparasse comigo ali, em pé na frente do quarto
parcialmente iluminado pela luz da lua que se infiltrava por algumas frestas

da janela. Quando fiz menção de me aproximar, seu corpo se mexeu. Parei


em meu lugar. Seus lábios começaram a se mover e suas sobrancelhas se
franziram. Hunt parecia ter entrado em um daqueles sonos turbulentos que eu
havia descoberto recentemente.

Desde que passávamos noites juntos, notava que ele se agitava algumas
vezes, como neste momento. Preocupada, me sentei na borda do colchão e,
devagar, entrelacei nossos dedos. Seu peito subia e descia rapidamente e,
como um passe de mágica, sua respiração começou a se acalmar e o vinco
profundo entre suas sobrancelhas desapareceu. Suspirando, deslizei para a
cama e me espremi contra seu corpo, tomando cuidado para que ele não
despertasse.

Adormeci entrelaçada a ele e acordei antes do meu pai e voltei para

meu quarto.

Quando desci para o café da manhã, algumas horas mais tarde, Hunt
estava na sala assistindo uma partida de futebol americano. Sinalizando um
"bom dia", fui para a cozinha pegar café. Meu pai estava começando a
preparar o jantar, pois era naquele dia em que a ceia aconteceria. Ele apontou
para o frango.
— Quer me ajudar? — disse, na língua de sinais. — Você costumava
ser uma boa cozinheira.

— Eu adoraria, pai. Mas não quero deixar o Hunt sozinho. Eu o


convidei para cá, seria falta de educação.

A expressão mal-humorada de meu pai voltou, desta vez, mais

agravada. Ele desviou o olhar para longe e odiei aquilo, significava que ele
não queria falar comigo, porque eu não podia fazer sinais sem que ele os
visse. Esquecendo-me sobre o café, deixei a caneca na bancada de mármore e
retornei para a sala. A tevê estava legendada e me sentei ao lado de Hunt,
sentindo uma onda de frustração remoer meu interior.

Houve um cutucão em meu ombro. Me virei.

— Eve. — Hunt sinalizou. — Que foi? Você parece irritada.

— Não acho que irritada seja a palavra certa, mas eu e meu pai estamos

entrando em conflitos.

— Que tipo de conflito? — Não respondi. — É porque estou aqui, não


é?

Continuei em silêncio.

— Vou tomar banho. Já volto, ok?


Sem esperar uma resposta de Hunt, subi as escadas e fui para meu
quarto. Tirando o vestido de mangas longas que separei para o Natal da mala,

fui para o banheiro. Demorou mais do que eu esperava para lavar o cabelo e
escová-lo. Quando desci, um tempo depois, Hunt já não estava mais na sala.
Fui para a cozinha, meu pai estava aquecendo o forno. Voltei e fui até a
varanda. Nada. Subi as escadas e olhei no quarto dos hóspedes. Sua mala

havia sumido. Puxei o celular do bolso. Havia três mensagens suas.

Hunt: Eve, obrigado por ter me convidado para o Natal em sua casa,
mas senti q era um momento seu e de seu pai

Hunt: não queria atrapalhar, então fui embora

Hunt: não fique chateada, consegui adiantar meu voo e quando chegar
em Massachusetts te aviso

Reli as mensagens várias vezes, incrédula. Desci as escadas e adentrei

na cozinha. Meu pai agora lavava a louça que havia se acumulado na pia.
Engoli em seco e disse em voz alta:

— Pai.

Ele se virou, o rosto surpreso. Fazia um tempo desde que ele não ouvia
minha voz.

— O Hunt foi embora. Você não o viu saindo?


Agora, ele parecia ainda mais em choque.

— Não. O que aconteceu? — Sinalizou. — Algum problema?

— Ele disse que sentia que estava atrapalhando a gente. — Movi as


mãos daquela vez. — Você o deixou tão desconfortável que ele decidiu que
seria melhor ir embora. Espero que esteja contente agora. Feliz Natal.

Sentindo raiva pela primeira vez na vida do meu pai, saí da cozinha e
subi as escadas. Bati a porta do meu quarto com força e desejei que pudesse
ter escutado o estrondo, mas a vibração pelo chão e as paredes foi satisfatória
e suficiente por uns momentos. Então, senti-me como uma adolescente
rebelde outra vez e me odiei. Sentando-me na cama, desbloqueei o celular e
enviei uma mensagem para Hunt.

Eu: é impossível não ficar chateada, mas entendo suas motivações


para ter feito isso

Eu: feliz natal

Aquele Natal seria um fiasco. Exausta, tirei um cochilo por alguns


momentos, que se transformaram numa hibernação de tanto cansaço que eu
sentia pela viagem de Massachusetts até Idaho. Quando acordei, havia um
prato de biscoitos e um copo de leite na cabeceira ao lado da minha cama.
Recordei-me da época de quando era criança e em que todas as noites de
Natal eram mágicas e quase sorri, mas então me lembrei de que estava com
raiva do meu pai e fechei a expressão.

Como estava com fome, comi os biscoitos de chocolate a contragosto e


fingi que não estavam deliciosos. Entornei o copo de leite e chequei meu
celular. Haviam se passado quase nove horas e tinham algumas mensagens de
Hunt não lidas.

Hunt: desculpa

Hunt: cheguei agora, indo p casa

Hunt: n fica com raiva do seu pai, ele deve estar com saudades de vc

Hunt: aproveitem os momentos juntos

Como se tivesse sido derrotada, curvei meus ombros. Tirei o vestido e


o substituí por um pijama confortável. Fui para o andar debaixo, meu pai

estava sentado em sua poltrona e havia colocado lenha na lareira. As chamas


alaranjadas projetavam sombras ao nosso redor. Sentei-me no carpete, sobre
um tapete. Meu pai largou o jornal que estava lendo e me lançou um olhar de
arrependimento.

— Sinto muito, Eve. Agi irracionalmente. Hunt é apenas um garoto,


assim como você é apenas uma garota. Não devia ter sido tão duro, acho que
fiquei com ciúmes porque não éramos mais somente eu e você durante o
Natal. — Ele soltou um suspiro. Quase pude imaginar o som pesaroso. — Ele
parece ser um cara legal. Fiquei surpreso que foi embora.

— Ele disse que nós devíamos ter um momento juntos. Ele não é um
criminoso, pai. Eu sei que você odeia tatuagens, mas é idiota definir alguém a
partir disso.

— Eu sei, acho que fui influenciado por conta disso também. Tenho
que admitir. Me perdoe, Eve. Não queria que você tivesse uma experiência
ruim neste Natal. Guardei seu prato no micro-ondas. Achei que acordaria
com fome.

— Tudo bem, pai. Perdoo você. Mas, acho que pra compensar,
devemos fazer algo divertido. Tipo maratonar filmes natalinos. O que acha?

— Acho que vai ser perfeito, Eve.

Meu pai sorriu e eu retribui o gesto. Nós fomos para a cozinha e

enquanto eu comia o prato de frango com batatas gratinadas que aguardava


por mim, ele estourava pipoca numa panela. Depois, fomos para a sala e nos
sentamos lado a lado. Recostando-me em seu ombro, lembrei-me de como
era bom estar em casa e agradeci a Hunt por ter sido compreensivo.
Quando o Natal terminou, fui forçada a abandonar a cidade em que

passei a adolescência e voltar até Massachusetts. Chequei o celular o tempo


todo no aeroporto, incomodada com a ausência de mensagens de Hunt. Só
podia levar a crer que ele havia, de fato, ficado magoado com o
comportamento hostil de meu pai e nem podia culpá-lo.

A noite de ontem, no entanto, havia sido boa para mim. Eu e meu pai
confortamos um ao outro com memórias da minha mãe depois de assistirmos
a três filmes. Quando fomos finalmente dormir, o sol já havia despontado no
horizonte, anunciando o fim do feriado e o início de um novo dia. Ao me
deixar no aeroporto, frisou outra vez para que eu pedisse desculpas para Hunt

e entregasse a ele o cachecol que havia tricotado durante a manhã e me


desejou uma boa viagem.

Mas, não foi uma boa viagem. Durante o voo, não consegui pegar no
sono — por mais que estivesse sonolenta e não dormido quase nada. Tudo

aquilo estava ligado com o fato de Hunt estar me ignorando. Ele havia
visualizado minha mensagem perguntado como ele estava oito horas depois
de ter sido enviada e não obtive uma resposta de volta. Queria saber que
droga estava acontecendo.

Quando cheguei em Massachusetts, entrei em um táxi de mal humor,


que se aprofundou quando parei no corredor e notei que Hunt estava dando a
porra de uma festa na porra de seu apartamento.

A porta estava escancarada, como se fosse um convite para que


qualquer um entrasse ali e se divertisse também.

Deixei minhas malas no meu apartamento e atravessei a porta de Hunt,


adentrando na sala cheia.

Havia muitas pessoas aglomeradas no cômodo. Tantas que era


impossível se movimentar sem esbarrar em alguém.
Com a mandíbula tensionada, lutei contra o mar de gente e busquei por
Hunt. Não demorou para encontrá-lo. Estava sentado na bancada da cozinha,

um dos pés apoiado no mármore. Como sempre, muito indiferente. Havia


dois casais ao seu redor e algumas garotas.

Ele mantinha distância delas e parecia que nem as notava ali, mas eu
sabia que estavam muito cientes de sua presença. Até porque Hunt estava

lindo. Cabelo caindo sobre a testa, olhar preguiçoso e as tatuagens todas


evidentes.

Demorou dois segundos para que seus olhos me encontrassem, parada


no meio de sua festinha particular. Era por conta disso que ele havia me
ignorado? Por que tinha dado uma festa? Engolindo o nó em minha garganta,
me senti ingênua e patética demais por ter considerado que, na verdade, ele
estava chateado por conta de meu pai. Hunt sorriu, mas não escondeu a
surpresa no rosto.

Não sorri de volta, ou esbocei qualquer reação.

Sua boca se contraiu em linha reta.

Dando as costas para Hunt, tentei fazer meu caminho para porta o mais
rápido possível, mas acabei esbarrando violentamente num cara que derrubou
metade da garrafa de cerveja na minhas roupas. Não ouvi o que ele disse, não
tinha certeza de que estava se desculpando ou murmurando uma enxurrada de

palavrões. Sua boca se movia rápido demais. Quando alcancei a porta,

finalmente, uma mão se fechou ao redor do meu braço, impedindo-me.

— Me larga — falei em voz alta, para Hunt. Esperava que estivesse


soando ameaçadora.

— Não. — Captei a palavra quando seus lábios se moveram


calmamente. — Venha comigo.

Como sabia que Hunt não desistiria, deixei com que ele me arrastasse
de volta para o caos de pessoas em direção ao seu quarto. Quando a porta se
fechou e tínhamos privacidade, ele começou a sinalizar:

— O que foi? Está com raiva de mim?

— O que foi? — Sinalizei, incrédula. — Se estou com raiva de você?


Imagina, Hunt. Você não respondeu minhas mensagens e resolveu dar essa

festa idiota e… — Fiz uma pausa, inalando o ar. — Que cheiro é esse?

— É maconha. — Deu de ombros.

— Ótimo, maconha!

— Eve, eu… Desculpa. Sei que fui um babaca, é só que ontem eu


queria ficar sozinho. O Natal é a época que mais odeio durante o ano todo
porque tem a ver com o dia em que eu…

Esperei com que ele terminasse a frase, mas suas mãos pararam no ar.

— Que dia, Hunt?

— Deixa para lá. Não é nada. — Seu rosto ficou muito sério de repente
e balancei a cabeça, descrente.

Com o sangue correndo feito lava nas veias, mandei-o se foder antes de
empurrá-lo da frente da porta e sair do seu quarto e, depois, do seu
apartamento. Uma parte minha esperava que ele viesse até mim para se
explicar e dizer o que estava acontecendo, mas consegui abrir minha porta e
entrar na minha sala sem interrupções.

Hunt também não apareceu no meu apartamento naquela noite.

Eram três horas da manhã quando ele apareceu na minha porta. Com o
cabelo mais desgrenhado que o habitual, olheiras sob os olhos e postura
derrotada, quase fez com que minha raiva dissipasse, mas o cheiro de álcool
fez com que meu sangue fervesse outra vez. Hunt não pareceu se abalar com
meu olhar mortal. Ele apoiou o braço no batente da porta e se inclinou sobre

mim. Com o rosto pairando sobre o meu, captei quando seus lábios disseram:

— Oi.

Sério? Oi?

— Vai embora, Hunt. Você está bêbado — falei, em voz alta, cansada.
Só queria dormir o suficiente para ter que enfrentar o último dia de aula e no
meu estágio antes que o recesso do ano novo acontecesse.

— Não estou bêbado. — Sinalizou. — Eu bebi, mas não o suficiente


para isso.

— Você está cheirando bebida.

— Mas não estou bêbado.

Desisti de tentar contrariá-lo, Hunt e eu só perderíamos tempo numa


discussão boba.

Coloquei a mão ao redor da maçaneta, pronta para me despedir e fechar


a porta, mas ele foi rápido em agir: Hunt deu um passo para frente, invadindo
a soleira e me afastei, porque nossos peitos estavam quase colados um ao
outro.
Contendo um suspiro na garganta, engoli a frustração que eu sentia.
Nunca tinha estado em um relacionamento antes, mas sabia que de vez em

quando era normal que casais tivessem desavenças que começavam por
motivos simples como ciúmes de alguma amiga de infância até complicações
como manter segredos graves para si mesmo.

— Hunt — avisei, outra vez. — Vai embora. Por favor, vá embora.

— Não. Não vou embora. Não posso dormir sabendo que você está
chateada comigo. Quero contar tudo para você, então, por favor, me deixa
fazer isso.

— Não precisa dizer mais nada. — Escondi minha preocupação e a


curiosidade, escolhendo o caminho do orgulho. — Você estava até agora
dando uma festa. Parece que você só veio para cá depois que a diversão
acabou. — Sinalizei.

Um vinco profundo se formou entre suas sobrancelhas.

— Isso não é verdade. Assim que você foi embora, coloquei todo
mundo para fora do meu apartamento. Só estava pensando no que ia te dizer e
tomando coragem. Nunca conversei sobre meu passado com ninguém, Eve.
Você é a primeira pessoa que eu quero que saiba tudo. — O rosto de Hunt
estava muito sério, assim como seus olhos. Minhas armaduras começaram a
cair. — Então, por favor, me deixa te contar.

Nós ficamos fazendo contato visual por alguns momentos até que cedi
completamente. Hunt foi até a poltrona e fechei a porta. Como ele parecia
nervoso e não parava de bater o pé contra o carpete, fui para a cozinha e
esquentei uma caneca de chá para ele. Quando voltei para sala, alguns
minutos mais tarde, sua inquietação não havia desaparecido.

— Chá — sibilei, parando em sua frente.

Hunt ergueu os olhos do ponto fixo que fitava e me deu um meio


sorriso ao aceitar a caneca de chá. No entanto, seus lábios logo ficaram em
linha reta outra vez. O que quer que ele fosse me dizer, parecia deixá-lo
perturbado. Ou, melhor, aterrorizado. Sem saber o que fazer, me sentei no
sofá e comecei a puxar a manga da camiseta do meu pijama. Esperei com que
ele bebesse o chá e sinalizei:

— Qual é o seu sonho?

O rosto de Hunt passou a ser confuso, mas as linhas tensas quase


sumiram e seu olhar suavizou.

— Meu sonho?

— É. Qual é o seu sonho? — repeti a pergunta, a fim de deixá-lo


confortável.
— Meu sonho sempre foi ser um astro do rock. Tipo o Presley. Eu amo
música, Eve. Com todo o meu coração. Não consigo imaginar a vida sem a

minha guitarra. Acho que é maluquice, não é? Mas é assim que me sinto.

Minha boca involuntariamente se contraiu num sorriso.

— Não é maluquice. Eu sei como você se sente. Por muito tempo, senti

que a música também foi a grande paixão da minha vida. Mas, depois do
acidente, minha mente expandiu. Não tinha interesse por língua de sinais,
nem sabia quais dificuldades as pessoas surdas enfrentam. Tanto na questão
da falta de acessibilidade quanto na de representatividade. Aprendi a
interpretar o mundo de uma nova forma e a escutar, só que do meu jeito. Não
deixei que isso fosse um empecilho para nunca mais tocar piano. Agora quero
ser professora. De crianças surdas.

— Nossa, eu sou tão apaixonado por você. — Hunt sinalizou, de

repente, fitando-me com atenção. Senti minhas bochechas corarem. — Sério,


te amo muito.

Meu coração fez um movimento perigoso no peito.

— Eu também amo você.

— Então me dá um beijo. — Hunt sorriu torto. — Por favor, Eve. Só


um beijinho.
Mordendo os lábios para não sorrir feito boba, andei até Hunt e
depositei um beijo casto em seus lábios. Não satisfeito, ele afundou os dedos

no meu quadril e me puxou para baixo, de forma que me sentei em seu colo.
Com uma das mãos afundadas nos meus cabelos, ele me deu um beijo longo.
Foi difícil me separar dele, por mais que sua língua estivesse com gosto de
uísque que eu desprezava. Para não sairmos do controle, voltei a me sentar no

outro sofá, mantendo a distância segura.

— Você acabou com a diversão. — Hunt sinalizou, o rosto franzido em


uma careta.

— Sei que a gente não pararia só nos beijos.

— E qual é a graça em parar nos beijos? — perguntou, um sorrisinho


malicioso nos lábios.

— Eu não vou transar com você.

— Eu não pedi pra você transar comigo. Tem tanta coisa que a gente
podia fazer, Eve. Tipo, eu posso chupar você.

Ignorei a excitação que eu sentia.

— Não.

— Você é uma chata.


— E você é um maníaco sexual.

Hunt riu. O clima descontraído desapareceu assim que ele me olhou no


próximo momento. Sua expressão voltou a ficar séria e imaginei que ele
havia se lembrado do motivo que o trouxe até aqui. Com os olhos escuros e
sombrios, ele finalmente disse:

— Eu tinha um irmão gêmeo. Ele morreu quando a gente tinha só sete


anos. Desde então, nunca mais me senti o mesmo.
Alec atirou a bola de futebol americano com força demais em minha

direção, acertando o meu estômago. A falta de ar foi instantânea. Enquanto


eu inspirava e exalava ar lentamente, lancei-o um olhar de repreensão. Senti o
rubor subir por meu pescoço e se espalhar no meu rosto. Eu odiava corar.
Odiava porque Alec sempre dizia que eu parecia um bebê chorão.

— Desculpa. — Meu irmão gêmeo deu de ombros.

Ele não parecia realmente arrependido.


— Idiota — resmunguei, chutando sua bola com força. Ela estava meio
murcha, então não rolou para muito longe.

Alec soltou um grunhido e tentou me atacar. Foi neste momento em


que a mamãe apareceu na varanda, nos observando no quintal. Meu irmão
não chegou a me tocar. Nós nunca brigávamos na frente dos nossos pais.

— O que estão fazendo aí? Já falei para vocês não brigarem.

— Foi o Alec que começou — protestei. — Ele me acertou com a bola!

— Mentira! — meu irmão gritou, boquiaberto. Seu rosto começou a


corar. Ele sempre corava quando mentia, talvez eu o devesse apelidar de bebê
chorão também.

— Aidan — minha mãe me chamou, ignorando Alec. — Entre por um


instante. E você... — Ela finalmente se dirigiu a Alec. — Recolha os
brinquedos do quintal.

Não questionando, a segui para dentro de casa, deixando um Alec


resmungão para trás. Pela expressão séria da mamãe, sabia que ela me daria
uma de suas missões. Era assim que eu gostava de chamar os seus favores
que pedia. Quando ela queria falar comigo a sós, era sobre assuntos sérios
que ela dizia que iam além da compreensão de Alec porque, de nós dois, ela
costumava falar que eu era especial porque sempre entendia.
— Aidan. — Mamãe se abaixou para que seu rosto estivesse nivelado
ao meu e usou seu tom mais terno de voz. — Preciso que você me faça um

favor.

Um favor.

Adultos deviam pedir favores para crianças? Era algo que eu sempre

me questionava mentalmente, mas nunca dizia em voz alta. Queria que a


mamãe pudesse contar comigo sempre. Queria ser amado por ela. Fiquei em
silêncio e apenas concordei levemente com a cabeça.

— Preciso que você vá até o bar a alguns quarteirões daqui e dê este


bilhete para o Sr. Jeremy. Entendeu? Sr. Jeremy — ela repetiu, os olhos
escuros presos aos meus. — Não esqueça deste nome. — Minha mãe abriu a
palma de minha mão com seus dedos finos e gélidos, os calos resvalando em
minha pele, então deixou um papel amassado sobre ela. — Não leia.

O aviso em seu rosto era explícito. Se eu lesse, ela saberia de alguma


forma, era o que ela sempre me dizia quando pedia para que eu trocasse seus
bilhetes neste bar. Geralmente os homens para quem eu entregava os papéis
com recados de minha mãe me davam pacotes fechados. Eu nunca podia abri-
los, era outra de suas regras. Mas eu sabia que eram comprimidos. Mamãe
sempre estava tomando comprimidos, já tinha encontrado os frascos que ela
guardava na caixa acoplada da privada, mas fingia que não sabia da
existência deles. Não queria deixá-la chateada comigo.

— Mamãe — falei, em tom de voz baixo. — Depois que eu voltar de


lá, podemos ir até a sorveteria? Hoje é Natal, não é? Podia ser diferente desta
vez.

— Podemos — ela murmurou, sem me olhar nos olhos. Eu sempre

pedia a mesma coisa a ela. Mamãe nunca levava Alec e eu até a sorveteria,
mas, se eu tentasse convencê-la um pouco mais, acreditava que um dia ela
mudaria de ideia. — Agora vá. Não conte para Alec. Você é meu garoto
especial e compreensivo.

Assenti. O bar ficava a dois quarteirões e já tinha ido lá vezes o


suficiente para ter decorado o caminho todo. Quando cheguei no destino, foi
como sempre: perguntei para o garçom sobre o sujeito da vez. Ninguém
achava estranho o fato de eu estar em um bar, que eu sabia que era

frequentado só por gente mais velha. Então, após o garçom dizer quem eu
devia abordar, entregava o bilhete de mamãe. O bilhete sempre tinha alguns
dólares. Voltava para casa com o pacote nas mãos, sentindo-me mais
próximo da minha mãe e esperançoso que daquela vez iríamos para uma
sorveteria.

"Estou com dor de cabeça", foi o que ela disse daquela vez antes de ir
para o andar de cima.
Fiquei triste, mas não disse nada. Talvez ela só estivesse se sentindo
mal mesmo. Alec estava na sala, assistindo um desenho. Me juntei a ele em

frente ao tapete. Não dava para entender muita coisa porque a tela estava
meio rachada, consequência de uma briga que meus pais tiveram um mês
atrás quando minha mãe o questionou sobre passar muito tempo fora de casa.
Houveram gritos e as coisas saíram do controle.

— Onde você foi? — Alec perguntou, sem tirar os olhos da tevê.

— Na casa da Sra. James. Mamãe pediu para eu buscar açúcar —


menti.

— Não sou burro, Aidan. Não me engane mais.

Olhei para Alec, surpreso. Ele também me encarava, os punhos


cerrados e o cenho franzido.

— Não estou enganando você.

— Vocês todos estão sempre me enganando! — Alec gritou,


assustando-me. Nunca tinha visto meu irmão tão enraivecido antes. — Estão
sempre me enganando, como se eu precisasse ser protegido. Não sou uma
criancinha idiota.

— Eu não disse que você era.


— Mas você pensa, só porque nasceu um dois minutos antes.

Não respondi.

— Vou entrar no lago — Alec avisou.

— Você não vai entrar no lago. Você não sabe nadar.

— Quem se importa — resmungou de volta.

Abri a boca para retrucar, mas Alec se levantou e saiu pisando duro até
o quintal. Quando saiu, bateu a porta com força. Continuei na sala e terminei
de assistir ao desenho. Se fosse atrás dele no mesmo momento, brigaríamos
mais. Tinha que dar um tempo para que o meu irmão deixasse a raiva de lado,
não que eu achasse que ele fosse agir de uma maneira muito diferente. E
sabia que ele não entraria no lago, Alec não era tão imprudente. Mamãe
desceu as escadas e pegou as chaves do carro. Pela maneira como ela se
movia, eu sabia que tinha algo errado.

— Vou sair para buscar seu pai, ele se meteu em problemas outra vez.
Cuide de Alec.

Então, no próximo segundo, ela se foi.

Como já estava escurecendo, resolvi ir atrás do meu irmão. No entanto,


quando alcancei a porta dos fundos e saí para a varanda, franzi o cenho ao
não avistá-lo. Foi quando meu olhar passou pela superfície do lago, onde um

corpo boiava, de bruços, completamente imóvel.

Demorei para entender que aquele era meu irmão e comecei a gritar seu
nome. Ele não me respondeu de volta nenhuma vez e, como eu também não
sabia nadar, corri até o telefone na cozinha e disquei o número da
emergência. O único que eu sabia de cor e o que sempre diziam para ligar

quando estivesse em apuros. Aquela era uma situação de apuros.

— Olá. — Alguém atendeu.

— Preciso de ajuda — comecei a gaguejar. — É o meu irmão. Ele


entrou no lago e… Acho que ele não está respirando. Eu não sabia que ele ia
entrar no lago, achei que ele estivesse só brincando, mas agora… — Fui
interrompido por meu próprio soluço. — Precisamos de ajuda. Por favor.

— Preciso que mantenha a calma, sabe me dizer se ele está se

debatendo? Ou completamente imóvel? Você está sozinho?

— Ele não se mexe. Por favor, nos ajude… — O pânico que eu sentia
começou a crescer. Outro soluço sacudiu meu corpo violentamente. — Meus
pais estão fora.

— Qual é o seu nome? — a mulher perguntou, do outro lado da linha.

— Por que diabos você precisa saber o meu nome? — Elevei o tom de
voz. Eu nunca tinha falado palavrão antes, mas minha mãe sempre usava
aquela palavra em situações em que estava tensa. — Meu irmão precisa de

ajuda! Você entendeu? Nós precisamos de ajuda!

— Preciso que você se acalme, vamos ajudar seu irmão. Estou


localizando seu endereço, uma ambulância deve chegar dentro de três minu…

Antes que ela pudesse completar a frase, larguei o telefone e fiquei


estático na cozinha até que ouvi o barulho de diversas sirenes se
aproximando. Olhando pela janela, vi a ambulância chegar ao mesmo tempo
que uma viatura. Assustado, subi as escadas com pressa e me escondi na
dispensa velha em que minha mãe mantinha estoques de cervejas baratas.
Não queria que eles pensassem que eu tinha feito aquilo com meu irmão.

O som das sirenes vindo do lado de fora da casa ficava cada vez mais
alto, fazendo meu coração trovejar no meu peito e me deixando sem ar,

projetando luzes azuis e vermelhas dentro do cômodo. A porta da frente


pareceu ter sido derrubada. Nunca senti tanto medo em toda minha vida. Meu
peito subia e descia num ritmo rápido.

Os passos pesados ecoaram pela escada e corredor, o som misturando-


se aos murmúrios de várias vozes.

— Não tem ninguém em casa — a voz de uma mulher soou.


Prendi a respiração, observando os vultos passarem por baixo da fresta
da porta. Um par de botas parou em frente a ela, batendo duas vezes. Não

emiti nenhum som. Um momento depois a maçaneta girou, mas estava


trancada.

— Algo está errado. A porta está trancada — a mesma voz feminina


voltou a ecoar.

— Arrombem. — O tom autoritário e masculino trovejou, do outro lado


da madeira.
Na segunda-feira, foi o último dia na escola antes que eu e os alunos

entrássemos de férias. Não foi um dia comum porque as atividades foram


suspensas. Ganhei algumas cartas desejando feliz Natal atrasado dos alunos e
um Ano Novo próspero, além de algumas rosas. Foi difícil esconder a
umidade presente nos olhos, ainda mais com a Sra. Emma tão perto de mim.
Ela afagou um dos meus ombros como se eu fosse uma pobre coitada e
sinalizou que entendia.

No fim do expediente, tiramos uma foto da turma inteira reunida.


Depois, ajudei as crianças a juntarem a bagunça que haviam feito com um
quebra cabeça e me despedi de cada uma delas. Feliz que todas elas pareciam

amigas, até Molly e as garotas que haviam a chateado um dia. Quando saí
pela porta, estava ocupada tentando reunir as flores que havia ganho junto ao
peito enquanto lutava para não deixar minha bolsa cair no chão.

Assim que consegui me estabilizar, ergui a cabeça, deparando-me com

uma figura inesperada. Hunt estava do outro lado do corredor da escola, um


dos pés apoiados na parede. Jaqueta de couro, cabelo rebelde que caía sobre a
testa e as tatuagens à mostra. Nossa, acho que nunca ia me acostumar com a
aparência dele. E lembrar que éramos namorados me causava um frio bobo
na barriga. Me sentia uma adolescente outra vez.

Não consegui sinalizar com as mãos ocupadas, nem precisei. Hunt se


explicou:

— Achei que seria legal te buscar hoje.

Sorri involuntariamente.

Ele me ajudou segurando minha bolsa. Nós caminhamos juntos até o


estacionamento, a moto de Hunt estava parada bem ao lado do meu carro.
Após destravá-lo, deixei minhas coisas no banco e me voltei para ele. Seu
rosto estava mais sério que o habitual; não havia a espontaneidade de sempre.
Na verdade, um vinco quase imperceptível carimbava suas feições.

— O que foi? — questionei-o, sinalizando.

— Eu queria pedir algo para você.

— O que é?

— Eu quero ir até a minha cidade natal. E quero que você vá comigo.

Fiquei sem reação. Hunt havia me contado sobre seu irmão


recentemente. Não imaginava que ele tinha tido que enfrentar um fardo e
perda tão grande, com pais que pareciam ser horríveis. Devia ter sido tudo
muito confuso para uma criança entender. A mudança brusca em sua
realidade. A perda do irmão gêmeo, seus pais sendo presos por maus tratos
infantis e a ida dele para um lar de adoção…

Após ele desabafar, só pude abraçá-lo, fingindo que não tinha

percebido as lágrimas contidas em seus olhos. Depois, o ajudei a se despir e a


entrar no banheiro para um banho porque ainda estava cheirando a bebida.
Ele pareceu mais tranquilo após sair do chuveiro e vestir roupas limpas que
busquei em seu apartamento, enquanto deixava-o ter seu momento sob os
jatos de água. Nós dormimos juntos naquela noite, mas sem segundas
intenções. Acho que foi o melhor sono que tive em toda minha vida.

— Tudo bem — respondi-lhe, mesmo que estivesse preocupada, o que


escondi bem.

Hunt se inclinou para frente e depositou um beijo casto nos meus


lábios. O contato foi breve e ele subiu em sua moto em seguida, dizendo que
me encontraria em casa. Enquanto dirigia para o apartamento, tamborilei os
dedos sobre o volante, inquieta. Não tinha de quem esconder a preocupação
no interior do meu carro.

Visitar a cidade natal significava enfrentar uma avalanche de memórias


enterradas e sentimentos. Não queria que Hunt sofresse mais do que já
andava sofrendo, mas dava para perceber que ele tratava a morte do irmão
como um assunto inacabado por se culpar. Talvez ele precisasse de uma
despedida. E talvez ele finalmente a encontrasse se fizesse isso.

Quando cheguei no prédio, subi as escadas. Hunt me esperava em


frente ao meu apartamento. Ele não disse nada, me esperou girar a chave na

fechadura e entrou junto comigo. Coloquei as flores num vaso, sentindo seu
olhar preso em mim. Quando me virei, encontrando-o sentado no sofá, li seus
lábios:

— As crianças te adoram.

Meus lábios se repuxaram em um sorriso sutil.

— É. Acho que sim. — Movi as mãos. Fiz uma pausa, pensando. —


Você já sabe quando quer ir até a sua cidade natal? — questionei, tentando
parecer despretensiosa.

— Amanhã — Hunt respondeu, sem rodeios.

Não consegui esconder a surpresa.

— Amanhã?

— Sim, Eve. Preciso fazer isso o mais rápido possível. Não pude ir até
o enterro de Alec, e nunca tive coragem de visitar o lugar. Até agora.

— Entendo — repliquei, com calma. Alec. Era uma informação nova.


Hunt não tinha dito que o irmão se chamava assim antes.

De qualquer forma, esperava que a visita fosse esclarecedora para


Hunt. Eu odiava vê-lo perdido, como uma criança em busca de consolo. Não
conversamos mais. Sabia que ele preferia o silêncio em momentos como

aquele.

Uma hora, sugeri que saíssemos para almoçar e Hunt disse que não
estava com fome e que precisava ficar um pouco sozinho. Não mostrei a ele
que fiquei chateada e depois que ele saiu do meu apartamento, me senti
envergonhada por me sentir mal. Será que eu estava sendo egoísta? Ou talvez
só estivesse com saudades do antigo Hunt e querendo-o de volta.
Pela manhã do dia seguinte, Hunt apareceu na minha porta. Tinha
aproveitado a noite anterior sozinha para mandar mensagens para London,

que estava muito bem em Paris e meu irmão, que estava em Seul,
aproveitando sua folga. Conversei muito com eles e mandei fotos da Mimosa,
que ficaria outra vez na casa de Atticus, amigo de Hunt. Ele amava gatos,
então sempre gostava quando pedíamos um favor. Como no Natal, ele tinha

até comprado meias para ela, mesmo que felinos não usassem meias.

A cidade natal de Hunt ficava a quatro horas de Massachusetts. Era um


lugar pequeno, onde todo mundo provavelmente se conhecia e não tinha
muitas novidades. Dormi na maior parte do trajeto porque tinha dormido
pouco na noite passada maratonando meu seriado favorito. Quando acordei,
em algum momento, já estávamos lá, o carro andando numa velocidade lenta
pelas ruas quase desertas e passando por prédios comerciais pequenos.

Quando paramos em frente ao cemitério local, tirei o cinto de

segurança. Hunt não se moveu. Parecia estagnado no lugar, como se seu


corpo tivesse se fundido ao banco. Coloquei minha mão sobre a sua, que
apertava o volante tão forte de forma que os nós dos dedos estavam
esbranquiçados.

— Hunt — chamei-o, em voz alta.

Ele demorou para me encarar. Seu rosto estava pálido.


— Respire — falei, odiando vê-lo daquela maneira. — Respire —
repeti.

Ele inspirou com força. Exalou. Inspirou outra vez. Exalou, parecendo
um pouco aliviado.

— Vamos descer, tudo bem?

Hunt assentiu. Nós descemos do carro e segurei sua mão ao ficar do seu
lado. Nós entramos no cemitério. Na administração, Hunt teve que dar as
informações. Enquanto observava ele e um homem de meia idade
conversarem, não afastei meus dedos que estavam entrelaçados nos dos meu
namorado. Depois de alguns momentos, parece que o senhor que trabalhava
lá finalmente conseguiu achar a localização do túmulo do irmão de Hunt.

Ele apertou minha mão com força e mexeu os lábios em um


"obrigado". Em seguida, deixamos o lugar e voltamos ao ar livre, num

terreno amplo repleto de árvores e lápides. O vento estava forte, agitando


meus cabelos. Hunt não fez menção de se mover, mesmo que agora soubesse
o caminho. Olhei para ele. Seu perfil estava reflexivo, a boca contraída em
linha reta. Pus a outra mão em seu ombro.

— Hunt, podemos voltar para casa. Não precisa fazer isso.

— Eu quero fazer isso, Eve. — Ele sinalizou, afastando-se um pouco e


sentando-se no chão, as costas apoiadas num tronco largo de uma árvore. —
Só preciso de um tempo. — Houve uma pausa. Seu cenho franziu. — Você

quer ir embora? Me desculpe por trazê-la até aqui.

— Tudo bem. — Sinalizei. — Tome todo o tempo que precisar. Vou


estar bem aqui, com você. E não quero ir embora, não se desculpe.

— Obrigado, Eve. — Hunt afastou o cabelo do rosto. — Me conta


alguma coisa.

— Que coisa?

— Qualquer coisa. Só para me distrair.

Sentei-me em sua frente, sem me importar que minha calça ficaria suja
de terra.

— Uma vez… — Comecei a sinalizar. — Quando eu tinha nove anos,

perdi um campeonato de piano. Fiquei tão arrasada que prometi a mim


mesma que nunca mais deixaria ninguém ganhar de mim. Então comecei a
praticar cinco horas por dia. Às vezes sete. Todo tempo que eu tinha livre, era
dedicado ao piano. Teve uma época que meu pai ficou preocupado comigo.
Ele não entendeu o que estava acontecendo, já que eu perdia refeições para
praticar Beethoven. Ou esquecia de dormir. Foi quando ele me enviou para
terapia infantil, onde entendi que não dava para viver em função do piano.
Um sorriso ameaçava curvar os lábios de Hunt. A história parecia
entretê-lo.

— Sempre soube que você era péssima perdedora.

— Eu sei perder, mas não quer dizer que eu goste. — Dei de ombros.
— Não sei o que aconteceu comigo nesta época, mas acho que devo minhas

habilidades à esta Eve de nove anos. Depois disso, foi como se as partituras
ficassem gravadas em meu cérebro. Nunca esqueci de nenhuma nota.

Hunt olhou para mim de um jeito estranho e fofo ao mesmo tempo, a


cabeça meio tombada para o lado.

— Se a gente tiver um filho um dia, será que ele vai ser obcecado por
música? Tipo, eu amo guitarra. Você ama piano. Somos ótimos nisso. Ele
tem que, no mínimo, ser o próximo Chopin.

Eu ri.

— Talvez ele entre para uma banda, como você.

O rosto de Hunt iluminou.

— Minha mãe tem uma banda, você sabia disso, né?

Balancei a cabeça em negativa.


— Não, você nunca disse nada. Qual delas?

— A Kira. Ela e duas amigas criaram a banda quando ainda estavam no


colégio. Ela me conta algumas histórias às vezes, diz que fazia sucesso entre
as pessoas na época e que era bem popular no Ensino Médio.

— Sério? Nossa, vocês devem ser almas gêmeas. Fico feliz que a tenha

encontrado.

Seu sorriso passou a ser carinhoso e melancólico. Hunt olhou para


longe quando sinalizou:

— É. Eu também.

A quebra de contato visual colocou um fim a nossa conversa. Contive


um suspiro no fundo da minha garganta. Alguns momentos passaram, Hunt
olhando para longe e eu tentando não encará-lo o tempo todo. Gostaria de
saber o que estava se passando em sua cabeça. Alguns minutos mais tarde,

ele se levantou, estendendo uma de suas mãos para mim. Aceitei e me


impulsionei para cima. Quando estava de pé, ele passou um dos braços ao
redor dos meus ombros e começou a me guiar pelo cemitério.

Depois de algum tempo caminhando, nós paramos numa lápide


simples, de pedra. Alec Hunt McKenna, descanse em paz, lia-se sob seu
nome. Frio e impessoal. Não havia nada no túmulo do irmão de Hunt, como
nos outros. Nenhuma flor, nenhum objeto pessoal. Nada. Somente pó. Era
como se estivesse abandonada ali, sem ninguém para visitá-la. Pela forma

como o garoto cerrou a mandíbula, soube que ele estava pensando a mesma
coisa que eu.

Hunt se ajoelhou próximo da lápide. Tirando um amuleto do bolso, um


que nunca o tinha visto usar, mas que devia significar tudo para ele já que o

enrolou no punho antes de abaixar a cabeça, apoiar uma das mãos na pedra
retangular e fechar os olhos. Quando sua boca começou a se mover, soube
que aquela era sua despedida. Com o coração partido, distanciei-me alguns
metros. Parecia pessoal demais, era um momento exclusivamente seu. Não
queria atrapalhá-lo.

Não sei quanto tempo levou, nem me importei. Esperei que Hunt se
levantasse, enfim. Quando finalmente fez, eu estava sentada sob uma árvore à
alguns metros longe. Ele deixou o amuleto sobre a lápide. Olhando sobre o

ombro, seus olhos se conectaram aos meus. Me levantei, aproximando-me


com cuidado. Seu rosto estava corado, assim como as pontas de suas orelhas.
O pôr do sol se derramava pelo horizonte, a luz alaranjada refletindo em seu
rosto.

— Você pode dirigir? — Hunt sinalizou. — Acho que terminei.

— Claro — respondi, na língua de sinais. — Claro que posso.


— Obrigado.

Nós caminhamos de volta para o estacionamento. Tomei o assento do


volante e Hunt, o do passageiro. Pela forma como seu corpo se esparramou
pelo banco, sabia que ele devia estar muito cansado e com sono. Minhas
presunções foram confirmadas quando suas pálpebras pesaram e ele
adormeceu um momento depois de colocar o cinto de segurança. Ligando o

GPS, comecei a seguir o trajeto de volta para casa, perguntando-me se ele se


sentia em paz agora. Parecia que estava num sono muito profundo.

Em um semáforo, senti seus olhos sobre mim e olhei para o lado.

Não havia mais confusão, nem dor. Eram só os olhos dele. Os olhos de
Hunt, do cara por quem eu havia me apaixonado há um tempo.

Meu coração bombeou sangue três vezes mais rápido.

— Eu nunca disse para você. — Ele mexeu os lábios, lentamente, para

que eu pudesse lê-los. — Mas meu primeiro nome é Aidan. — Cada uma das
letras ditas separadamente, para que eu entendesse.

Hunt fechou os olhos outra vez, caindo em mais um sono profundo.

E assim, ele me entregou a última parte de si, o seu passado. O passado


de Aidan. E eu o guardei com carinho em meu coração.
dois meses depois

O show acabou e a plateia vibrou ao nosso redor. Aquele era o maior


show que a banda já tinha feito em muito tempo. Nova Iorque tinha sido uma
boa aposta para fecharmos a turnê. Atticus e Ian se encontravam no mesmo
estado que eu: o peito subindo e descendo pesadamente e o olhar perdido na
multidão. Devia ter quase três mil pessoas ali, não parecia real. Desde
dezembro, nossa última faixa estava tocando em muitas rádios conhecidas e

temos colecionado centenas de fãs na região nordeste do país.

Meus olhos pousaram em Eve, na pista superior, onde o acesso era


limitado. Ela acenou para mim e eu sorri para ela, que devolveu o gesto no
mesmo momento. Ela balançava um cartaz no ar que dizia: "Hunt, quero
lamber seu rosto" como se fosse uma fã meio maluca. Soprei um riso. Depois

que saímos do palco, subi as escadas, encontrando-a no andar de cima. Me


esquivei de algumas pessoas que tentaram falar comigo porque não havia
mais tempo e puxei Eve até o camarim.

Ian ficou rígido quando entramos na sala. O ignorei, porque saber que
Eve e ele já tinham estado juntos um dia não significava nada para mim. Ela
era minha agora e era o que importava. Dei uma garrafa de água para ela.

— Não estou com sede, obrigada. — Sinalizou.

Deixei a garrafa em cima de uma mesa no cômodo apertado. Soltei um


suspiro porque Eve também parecia desconfortável com Ian ali dentro. Ele
deixou a sala no próximo momento, notando a atmosfera tensa.

— Vocês deviam conversar — falei para Eve. — Não dá para fingir


que vocês nunca tiveram nada.

— Agora não, por favor. A gente não ia sair para jantar com seu
amigo?

— Ele está chegando… — Meu celular vibrou no meu bolso. Tirando-o


de lá, li a mensagem de Luke no visor que dizia que ele estava lá fora. — E
olha só, no momento certo. Vamos, deixa esse cartaz aqui, quero levar ele
embora depois.

Eve deixou a cartaz perto da minha guitarra e nós saímos pelos fundos.
Luke estava parado em frente a uma SUV, com os braços cruzados em frente
ao peito. Ele sorriu assim que me avistou e nós demos aquele abraço de caras
com tapinhas nas costas.

— Cara, você tá em tudo que é jornal. Cansei de ver seu rosto — falei,
olhando para seus olhos azuis que deviam deixar as garotas aos suspiros.

— Vai piorar na próxima temporada — respondeu, em um tom de


prepotência. — Vou amassar todo mundo no campo.

— Boa sorte, então. Você lembra daquela garota que você disse que
partiria meu coração? — Eu maneei a cabeça em direção a Eve
discretamente, que estava atrás de mim, provavelmente tímida. — Ela é
minha namorada agora.

Luke olhou para Eve e a reação dela foi corar e fitar os próprios pés.
Empurrei o ombro dele.
— Não pisca esses olhos azuis para minha garota ou vou perdê-la.

O jogador de futebol americano gargalhou.

— Eu não pretendo roubá-la de você. Meu coração já tem dona.

Ergui uma sobrancelha. Era isso que notei de diferente em Luke. Ele
parecia muito feliz, muito radiante. Era irritante. A qualquer momento sentia

que ele fosse sair saltitando pela rua cantando uma balada romântica dos anos
oitenta. Antes que pudesse perguntá-lo quem era a garota, o vidro do carro
atrás dele baixou e uma cabeça loira despontou para fora.

— Caramba, tô morrendo de fome. Será que a gente pode ir?

Ah, é claro. A garota, era Faith. Devia ser uma longa história sobre
como eles haviam reatado. E agora entendia o porquê de ele parecer tão feliz.
Ela era meio que sua alma gêmea.

— Claro, coração — Luke respondeu a namorada com toda calma e


paciência do mundo. — Tudo o que você quiser. Você já conhece o Hunt e
aquela ali é a namorada dele. Evelyn, né?

— A Eve é surda. Vocês se importam se formos a um restaurante com


acessibilidade?

— Claro que não! — Luke e Faith responderam ao mesmo tempo, meio


ofendidos por eu ter feito uma pergunta como aquela.

Puxei a mão de Eve, trazendo-a para perto. Ela parecia estar


envergonhada, mas era de sua natureza. Ela sempre ficava tímida quando
estava ao redor dos meus amigos, mas depois de um tempo relaxava. Nós nos
sentamos atrás, no passageiro. Luke dirigia e Faith se virou no banco,
olhando para nós.

— Oi. — A loira sinalizou. — Eu tive aulas de língua de sinais no


colégio. Não sou ótima, nem horrível. A propósito, me chamo Faith e amei o
seu cabelo.

— Oi, Faith. Pode me chamar de Eve e eu também gostei do seu


cabelo, você o pintou?

— Ah, não. — Faith sorriu. — Eu nasci loira. Me conta, você é coreana


mesmo? Fiz um intercâmbio para Coreia aos quatorze anos. Fiquei lá durante

um mês…

Elas engataram numa conversa que parei de prestar atenção porque


estava sobrando. Quando chegamos no restaurante que Luke havia achado no
Google, descemos e entramos em pares. Luke e Faith, Eve e eu. Escolhemos
uma mesa perto da janela. Foi uma noite divertida, mas eu estava muito
ansioso para voltar com Eve até o hotel onde estávamos hospedados naquele
final de semana em Nova Iorque. Amanhã à tarde voltaríamos para

Massachusetts porque tínhamos que nos ajustarmos às nossas rotinas normais

na segunda-feira.

— Obrigado por terem vindo — Luke disse na saída, e sinalizei o que


ele disse para Eve.

— Quando aparecerem em Massachusetts, nos avisem. Vamos sair


mais vezes — falei, ao mesmo tempo em que usava a língua de sinais.

Luke e Faith concordaram. Nós nos despedimos, Eve e eu entramos no


táxi que nos deixou em frente ao hotel. Quando estávamos dentro do quarto,
ela começou a tirar os sapatos e senti as palmas das minhas mãos começarem
a ficar úmidas. Não sabia dizer a última vez que havia ficado nervoso por
causa de uma garota. Quando eu tinha onze anos e não sabia beijar?
Engolindo em seco, peguei o anel no fundo do meu bolso traseiro.

Um anel de prata com uma pedra simples de diamante. Parecia algo que
Eve gostaria quando o vi na vitrine de uma loja.

— Vou tomar banho. — Eve sinalizou para mim. Ela analisou meu
rosto com cuidado. — Está tudo bem? Seus pesadelos voltaram? — Agora,
ela parecia muito preocupada.

Desde que Eve havia ido até o túmulo de Alec comigo, eu não havia
tido mais pesadelos com ele. Foi como se eu finalmente pudesse respirar
depois de anos com uma corda ao redor do meu pescoço. Naquele dia, disse a

ele tudo que eu queria dizer, a forma como eu me sentia, como eu queria ter
feito as coisas diferentes. Pedi desculpas. Me despedi. Deixei o amuleto que
ele havia me dado em um de nossos aniversários lá, para que sempre tivesse
algo meu. Foi bom e esclarecedor.

— Não, não é isso. Está tudo bem.

— Não está tudo bem, vejo nos seus olhos.

Meu Deus, por que é que ela tinha que me conhecer tão bem?

— Evelyn — falei em voz alta, dando um passo para frente.

— Hunt… você tá me assustando. Que foi?

Caí de joelhos.

— Case-se comigo — pedi, erguendo o anel em sua direção.

Eve ficou em choque. Sua boca se entreabriu e ela piscou algumas


vezes. Alguns momentos se passaram sem que ela esboçasse qualquer reação
que não fosse incredulidade. Comecei a suar ainda mais. O que eu estava
fazendo? Não sabia. Mas parecia ser certo. Era certo. Eu a queria. Para
sempre.
— Eu me casarei com você — ela falou, aceitando o anel. Segurando-o
na mão, ela o perscrutou com atenção. — Uau. Nossa. Isso deve ter lhe

custado uma fortuna.

— Você vai se casar comigo? — perguntei, ignorando a última parte.


Dinheiro não importava. — Mesmo? — Me levantei, aproximando-me de
Eve.

— Mesmo — ela respondeu, colocando o anel em seu dedo.

Nós dois fitamos sua mão com adoração.

— Está perfeito — falei.

— Está — Eve concordou, erguendo o rosto em minha direção. — Tem


certeza?

— Claro que eu tenho certeza. Não consigo me imaginar com outra

pessoa que não seja você. Eu sei que posso estar sendo precipitado mas,
nossa, Eve. Nunca senti com ninguém o que eu sinto com você e acho que
essa é uma daquelas conexões raras. Não estou nem aí se estou soando brega
demais, mas eu amo você. Como amiga, como namorada, como pessoa.
Admiro cada parte de você. Um dia, quero que você carregue meus filhos.

Evelyn soprou um riso antes de selar sua boca contra a minha.


— Eu amo você — ela murmurou.

Puxei-a para uma dança. Mesmo sem música, mesmo sem batida, colei
seu corpo junto ao meu e dançamos uma valsa que só fluía em nossas mentes.
Foi mágico. Ainda aprenderíamos muito um com o outro, teríamos brigas e
alguns desentendimentos, mas eu poderia morrer por Evelyn, viver por ela.
Respirar para ela. Esperar mais vinte e um anos para encontrá-la. Fazer tudo

de novo. Com um sorriso discreto nos lábios e o rosto enterrado na curva do


seu pescoço, agradeci ao universo por tê-la posto no meu caminho.

Nunca me senti tão em casa antes como me sentia em seus braços.

Eu pertencia a ela. E ela pertencia a mim.


O show em Boston tinha terminado e eu estava no camarim, enchendo
um copo de uísque quando ela apareceu. Evelyn parou no batente, os olhos
parando em mim. Quase engasguei com a bebida. Deixando o copo na mesa,
comecei a vestir minha jaqueta e reunir minhas coisas para dar o fora. Agora
que a vida estava voltando ao normal entre mim e Hunt, não queria dar

motivos para ele me odiar outra vez. Se ele nos encontrasse sozinho numa
sala, muita coisa podia dar errado.

— Ian. — Sua voz suave me alcançou e meu corpo enrijeceu ainda


mais.

— O que foi? — perguntei, olhando-a.

— Tem um momento? Eu queria conversar com você.


— Estou de saída.

Ela suspirou.

— Dois minutos, por favor.

Cedi e esperei que ela começasse a dizer:

— Sei que o que tivemos significou algo para você, mas nós já tivemos
essa conversa várias vezes. Eu não estava pronta para um relacionamento na
época e não correspondia aos seus sentimentos. Não vou pedir desculpas por
isso, porque sempre deixei claro para você que não envolveria sentimentos no
que estávamos fazendo… Bom, nós dois somos próximos de Hunt, e você
sabe que agora estamos noivos. Vamos conviver no mesmo ambiente sempre,
porque ambos fazemos parte da sua vida agora. Não quero ficar tendo que te
evitar a todo custo e enfrentando climas constrangedores. Quero que
possamos ser amigos. Acha que podemos fazer isso?

Fiquei em silêncio por alguns momentos. Hunt era um dos meus


melhores amigos e sentia um carinho inofensivo por Eve agora. Aprendi a
superá-la, mas ainda me sentia culpado por ter feito o que fiz, por isso evitava
até mesmo respirar perto dela para não ter mais confrontos entre mim e
Hunt.

— O que ele acha disso? — perguntei, porque precisava saber.


— Na verdade, foi o Hunt que me incentivou para que tivesse essa
conversa com você.

— Jura? — Arqueei as sobrancelhas.

— Sim. Então… o que me diz?

— Tudo bem. Acho que podemos ser amigos.

— Obrigada. Bom, a gente se vê por aí? Tô atrasada para um


compromisso agora.

— Claro. Até mais, Eve.

Ela sorriu.

— Até mais, Ian.

Exalando, terminei de beber meu copo de uísque. Depois, saí pelos


fundos e respirei o ar puro da noite. Acendendo um cigarro, dei uma tragada

antes de soprar a fumaça para longe. Atticus me convidou para um bar e


aceitei. Festas após shows eram uma boa válvula de escape. Quando
chegamos no lugar, estava lotado.

Foi difícil atravessar o mar de corpos até o bar. A bartender estava de


costas para mim. Cabelo longo e espesso, castanho escuro. Quando ela se
virou, ficou tão surpresa quanto eu. Pisquei rapidamente, como se estivesse
sendo assombrado pelo passado.

— Blakely? — murmurei, sentindo-me enjoado, sobre o burburinho de


conversas.

Seu rosto ficou pálido, perdendo a cor. Ela continuava linda, os lábios
cheios e os olhos grandes e verdes. Quais eram as possibilidades de Blakely,

meu primeiro amor, estar em Boston, num bar, no mesmo momento que eu?
Lembrava da forma como ela partiu meu coração e foi embora no momento
em que mais precisei. Lembrava-me de tudo.

E era por isso que a odiava tanto.


Quero a agradecer a todas minhas leitoras incríveis que acompanharam
toda a jornada de Die For You até a Amazon e minhas incríveis amigas (que
não preciso citar os nomes para que elas saibam que me refiro a elas).

Obrigada por tudo, vocês me inspiram. E claro, agradeço a Deus por nunca
ter me deixado desistir de dar vida a novos mundos.

Nós ainda nos veremos no próximo volume – e último – desta série.


Ainda não é um fim. Beijos e até breve! Estou louca para contar a história do
Ian e da Blakely.

Ps. Vocês podem encontrar o livro das mães do Hunt aqui na


plataforma. Chama-se “A garota que nós amamos” e está disponível no
Kindle Unlimited. Me encontre no Instagram @lov3lyloser para manter-se à

parte de novidades.

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