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O PRIMEIRO-DAMISMO E A DESPROFISSIONALIZAÇÃO

COMO BARREIRAS NA CONSOLIDAÇÃO DO SUAS


6 nov 2016
Rozana Fonseca 
Aline Morais, Lívia de Paula, Tatiana Borges, Thaís Gomes 4
 
 
Por  Tatiana Borges; Aline Morais; Lívia de Paula; Rozana Fonseca e Thaís Gomes

Apesar de estar reconhecida enquanto política pública na Constituição Federal de


1988, a Assistência Social tardiamente passou a se constituir como direito social e
dever do Estado, já que o seu histórico é fortemente marcado pela caridade, filantropia
e voluntariado, ou melhor, é o histórico do ‘não direito’, do favor. É possível afirmar
que foi com a implantação do SUAS, através da PNAS de 2004, que ocorreu um salto
na profissionalização da assistência social, ou seja, contrapondo as práticas
emergenciais de compaixão, de improviso e personalismos,  é o arcabouço normativo
dos últimos 10 anos da política de assistência social que reforça ou exige a presença
de equipes de referência interdisciplinares constituídas por servidores públicos para a
intervenção no conjunto de expressões das desigualdades sociais, através de serviços
e benefícios socioassistenciais.

Dito de outra forma, o reconhecimento, através de ordenamentos institucionais e


direcionamentos políticos, de que o atendimento com dignidade prestado à população
exige condições de trabalho e profissionais qualificados nas dimensões teórico-
metodológica, ético-política e técnico-operativa é recente. Assim como é novo o
tratamento da Assistência Social como responsabilidade estatal, expressada através
de seguranças indispensáveis ao desenvolvimento pleno dos cidadãos com a garantia
de direitos e com o envolvimento efetivo de todas as esferas de governo.

Muito embora este entendimento seja fruto de estudos muito anteriores ao SUAS, de
embates e lutas históricas para o reconhecimento da política de Assistência Social
como direito e de militância política de diversos segmentos da sociedade, bem como
de profissionais, com destaque aos assistentes sociais, o movimento para a
implantação deste sistema é ainda incipiente, pois temos mais um modelo do que um
sistema propriamente instalado, o que não invalida, de forma alguma, os avanços
reais conquistados. Avanços oriundos especialmente dos movimentos organizados de
trabalhadoras/es e de usuários, seja na militância diária em seus equipamentos de
trabalho ou em fóruns, grupos e conselhos destinados à discussões, deliberações e
construções da política.

O avanço do SUAS – mesmo que não esteja nivelado, pois a cobertura para os riscos
sociais não é universalizada e há um descompasso entre as formas e o tempo
histórico de incorporação desta política pela união, estados e municípios – é inegável,
principalmente, pelo potencial, já demonstrado pelas pesquisas e pelos indicadores
existentes, de impactar a existência de grupos de pessoas, atuando na proteção a
vida, na prevenção da incidência de riscos sociais, na identificação e superação de
desproteções sociais e na redução de danos.

Ainda assim, o desafio cotidiano que nós, das diversas categorias profissionais – que
hoje, graças ao conjunto normativo do SUAS, compõem a política de assistência social
– enfrentamos é superar a tradição de práticas assistencialistas pautadas sempre pelo
controle e adestramento das famílias e pela criminalização da pobreza como forma de
manter “a ordem e o progresso” do país, bem como o poder sobre os pobres, tratando
os como desvalidos, carentes e não como cidadãos ativos de direitos.

Considerando que o primeiro-damismo é uma realidade em muitos municípios, fica


mais evidente a necessidade de pautarmos criticamente este cenário, uma vez que
agora há uma representação emblemática e carregada de retrocessos. O quanto o
primeiro-damismo tem emperrado a consolidação no SUAS? Valeria um estudo,
porque sabemos que ainda há uma distância entre a legislação e o modo como a
Assistência Social é vista pela população, pelos seus dirigentes e gestores municipais.

O que sabemos é que, em muitos municípios a realidade da política de assistência


social é permeada por ações de cunho clientelista que se convertem em moeda de
troca nos acordos político-partidários entre prefeitos e vereadores para garantir votos
da população. A incidência destas práticas na política de assistência social culmina
numa desarticulação e fragmentação da mesma, numa sobreposição de propostas,
sem considerar o que já existe no SUAS, reduzindo as ações à ajudas e concessões
pontuais da primeira-dama.

Nós, profissionais que compomos o SUAS e que defendemos este modelo de política
pública, trabalhamos em uma direção que tem o Estado como principal responsável
pelo bem-estar social e assim tendo como competência a promoção da proteção social
que, no âmbito do SUAS, se materializa por meio dos serviços e benefícios
socioassistenciais. Nesta direção o Estado atua como agente executivo (PAIF e
PAEFI, programas e benefícios), agente regulador (dos serviços socioassistenciais
prestados por entidades e organizações sociais) e agente de defesa de direitos e da
participação social e esta direção, que preza a assistência como um direito e não
como uma benesse, nos faz posicionarmos contrárias/os às propostas que venham
reforçar o primeiro-damismo, estatuto que representa tudo aquilo que procuramos
romper, ou seja, com o clientelismo, com o cerceamento de famílias e com o  uso das
pessoas que necessitam da assistência social para a promoção da imagem do político.

O primeiro-damismo, a nosso ver, é a caricatura da negação do direito, uma vez que


simboliza, de forma bastante clara, o lugar que governos baseados em
assistencialismo reservam à população usuária do SUAS:  o lugar de quem deve
agradecer ao político pela sua bondade, por sua benevolência.

Por saber que nós, trabalhadoras/es do SUAS, nos constituímos como a “tecnologia
básica” deste sistema, uma vez que “a mediação principal é o próprio profissional”
(BRASIL, 2008), não podemos nos calar, pois o trabalho social que realizamos exige
conhecimento, formação técnica e perfil e não é possível que para um cargo de
condução de uma política pública o critério seja o casamento e não o currículo
profissional ou concurso público.

A qualificação do trabalho social com famílias é um grande marco na implantação do


SUAS e em uma de suas dimensões há um conjunto de atribuições técnicas/os, que
compõem as equipes de referência dos serviço socioassistenciais. Entre estas
atribuições está o acompanhamento às famílias que se encontram em situação de
vulnerabilidade e/ou risco social decorrente, dentre outros fatores, da precariedade de
renda. Assim, as famílias beneficiárias de programas de transferência de renda são
prioritárias para o acompanhamento social que se configura como a oferta de um
serviço e não uma exigência ou contrapartida imposta à família.
As visitas domiciliares periódicas são uma das formas de realizar este
acompanhamento familiar e merecem um cuidado especial, haja vista que se corre o
risco de entrar em vigilância dessas famílias, além de ser mais uma pessoa a
“perturbá-las” e mais um preço a se pagar por receberem o benefício. Além disso,
visitas domiciliares não se configuram como conversas aleatórias e de imposição de
regras de funcionamento familiar, numa perspectiva de aconselhamento familiar. Ao
contrário, trata-se de um procedimento com metodologia técnica definida, oriunda de
estudos e regulamentações, não podendo ser realizada, dentro do contexto do SUAS,
por voluntários ou por pessoas que não compõem as equipes técnicas de referência
dos serviços socioassistenciais.

Iniciativas que visam maquiar as desigualdades sociais, precarizando e


desprofissionalizando o atendimento profissional prestado à população não são bem
vindas para aqueles que defendem o SUAS. E sobre a submissão da mulher no papel
de primeira-dama, a análise da professora de sociologia da USP, Angela Afonso, na
matéria da Folha de São Paulo retrata bem a visão de que “o país não precisa de
primeiras-damas nem de princesinhas. Precisa de mulheres de nervo e cérebro. As
princesas podem ir morar lá no reino a qual pertencem, o do passado”.

Bibliografia

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Capacita SUAS.


Volume 01. SUAS: Configurando os eixos da mudança. Instituto de Estudos
Especiais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 1ª ed. Brasília: 2008b,
136p.

_______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Caderno de


Estudos do curso de introdução ao Provimento dos Serviços e Benefícios
Socioassistenciais do SUAS – Brasília, DF: MDS, Secretaria de Avaliação e Gestão
da Informação; 2015.123p.

ALONSO, Angela. A república das Marcelas, o reino das princesas e o sonho das
meninas. Folha de São Paulo, São Paulo, 23 de Outubro de 2016. Disponível para
assinantes em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/angela-alonso/2016/10/1825018-
a-republica-das-marcelas-o-reino-das-princesas-e-o-sonho-das-meninas.shtml?
cmpid=fb-uolnot

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