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Abordar as questões lexicais do ponto de vista discursivo significa que, “léxico, sintaxe e
enunciação estão intrinsecamente ligados” no discurso, de maneira que a descrição lingüística
considera a relação constitutiva entre língua, sujeito e história. (Nunes, 2006, p. 157). Esta área de
estudos, portanto, oferece possibilidades interessantes de análise com relação ao tema da organização
e do acesso lexical, não só nos sujeitos normais, mas também em fenômenos envolvidos nas
patologias.
Veremos, abaixo, que considerar o léxico na relação com os sujeitos e com a história é
compatível também com a neuropsicologia luriana, que respalda a Neurolingüística Discursiva, que
adotamos. Para Luria (1986), a linguagem é a atividade que permite abstrair e generalizar as
características do mundo externo e formar conceitos. Sobre a noção de palavra, o autor afirma:
Conforme assinalado por uma série de autores (Reese, 1962, Noble, 1952 e
outros), a palavra não somente gera a indicação de um objeto determinado,
mas também, inevitavelmente, provoca a aparição de uma série de enlaces
complementares, que incluem em sua composição elementos de palavras
parecidas à primeira pela situação imediata, pela experiência anterior, etc.
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A palavra, para Luria, é uma “rede potencial de enlaces multidimensionais”. Nos sujeitos
“normais” – sem patologias - os enlaces sonoros estão quase sempre inibidos, em benefício dos
enlaces semânticos, mais essenciais: “como conseqüência da riqueza de enlaces situacionais e
conceituais, em todos os casos dá-se a escolha do significado necessário dentre os muitos possíveis,
uma vez que os diferentes significados surgem com diferente probabilidade no momento em que o
sujeito escuta a palavra” (Luria, 1986, p. 82).
Nas patologias, as forças inibitórias igualam-se às forças de estímulo ou são mais ainda mais
fracas. Isso explicaria a dificuldade para o sujeito selecionar, dentre as palavras possíveis, a adequada.
Em suas palavras:
Dado 1: O teste estava sendo aplicado ao sujeito MS, com afasia motora e que apresenta uma fala
telegráfica. A figura do teste era a da pirâmide.
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Novaes-Pinto (1999) vem criticando vários aspectos da elaboração e da aplicação deste teste (TNB).
Forigo (2008), a respeito da má qualidade dos desenhos, diz que “se não é possível afirmar que esta
característica influencia diretamente no êxito na nomeação da imagem, é patente que o grau de
indexicalidade do desenho (característica que na situação de testes é tratada como a “qualidade” do
desenho) desempenha um papel importante na realização da tarefa, alterando o grau da função
referencial da imagem apresentada”.
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Há dados singulares (Abaurre, 2006), que ajudam a esclarecer o que ocorre nas afasias. O
dado acima pode ser assim considerado, pois revela os enlaces semânticos envolvidos na tentativa de
MS para nomear pirâmide. Outras palavras vêm à tona, como múmia e esfinge, sendo esta, inclusive,
de menor freqüência na língua. A explicação dada por Luria, de que se trata de uma dificuldade de
selecionar uma palavra dentre várias que se colocam à disposição, parece ser corroborada por dados
como o acima apresentado.
Outro dado que consideramos singular, ocorreu com o sujeito afásico OJ, agramático, na
situação de nomear a mesma figura: pirâmide. Assim que viu o desenho, OJ disse: Eu, São Sebastião
do Paraíso. Você? OJ foi extremamente hábil para selecionar este enunciado, valendo-se do
conhecimento partilhado entre ele e a pesquisadora, Irn, que mora em Piracicaba. Ela sabia que OJ
mora em São Sebastião do Paraíso. A estrutura de seu enunciado deu uma pista para a palavra
Piracicaba, que tem exatamente as duas primeiras sílabas da palavra pirâmide. Esse dado nos permite
inferir que a representação mental da palavra-alvo não foi perdida, está preservada e, no momento do
teste estava, praticamente, na ponta da língua.
Nos testes neuropsicólogos, os sujeitos têm um tempo reduzido, que não é suficiente para que
consigam buscar e produzir a palavra desejada. Isso não quer dizer, por outro lado, que a palavra será
selecionada se o sujeito tiver todo o tempo do mundo para fazê-lo.2.
Exemplos como os acima corroboram a hipótese de que não se trata da perda do léxico.
Outros exemplos, que daremos a seguir, contrapõem dados de um mesmo sujeito – AJ - em situações
experimentais - na aplicação do TNB e do Teste de Reconhecimento de Rostos Famosos3 , e em
episódios dialógicos.
AJ tem uma afasia considerada fluente/progressiva (Andrade, 2009), na qual se verificam
muitas dificuldades de nomeação de objetos e também de nomes próprios. Tanto na aplicação do
TNB, quanto na aplicação do teste de rostos famosos ficou evidente que há um delay (retardo, atraso)
no funcionamento lexical. O tempo que ele precisa para selecionar as palavras é geralmente maior do
que o tempo dado na aplicação do teste de forma tradicional. AJ produz muitas parafasias durante o
teste. Há evidência dos delays, por exemplo, quando diz apontador para termômetro (sendo que, com
a ajuda de investigadora, havia nomeado a figura do apontador seis figuras antes); quando produz rede
para pirâmide (que também nomeou com a ajuda da investigadora, três figuras antes) e pergaminho
para esfinge (portanto, no mesmo campo semântico, que também já havia nomeado). Este último
exemplo é particularmente interessante, porque se assemelha muito ao dado de MS, da pirâmide,
acima descrito.
Dado 2:
AJ: pergaminho...pergaminho...
Irn: esfinge...esfinge..
AJ: (suspira).. também...
Dado 3:
Ea: O senhor viu que tem a história do logotipo da Unicamp aí? (referindo-se ao material que a
estagiária havia tirado da INTERNET).
AJ: Logotipo? conheço o logotipo. Você conhece o logotipo também?
Ea: (mostra o símbolo) aqui, ó... o senhor conhece esse símbolo não é? tem até a história dele que
eu achei no site da Unicamp.
Irc: então, qual que é o logotipo, o senhor lembra? Uma bola branca, dentro das três listras...
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Nosso protocolo contém mais de 30 cartões e não é fixo, sendo as personalidades escolhidas de
acordo com o sujeito com o qual estamos trabalhando, levando em conta os círculos sociais nos quais
estas personalidades se inserem – em shows da TV, política, esportes, etc. Necessariamente, assim
como no teste original, os famosos têm que estar “vivos durante o tempo de vida do sujeito”.
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O logotipo da UNICAMP foi desenvolvido pelo seu primeiro reitor, Zeferino Vaz, e pelo
arquiteto João Carlos Bross, na década de 1970.
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Aparentemente, a resposta dada por AJ dificuldades poderia ser interpretada como a produção
de uma parafasia lexical, motivada pela semelhança fonológica (em vez de faculdades). Entretanto,
uma análise mais cuidadosa nos faz pensar se ele não estava se referindo às diferentes áreas do
conhecimento que, em suas palavras, são as dificuldades para o homem analisar que ele vai plantá
pensá, pensá pensá e trazer coisas... pra cá ... então cê vai cê vai... acontece as três listras... é o
saber...é o saber o conhecer... conhecer realmente...e::: o::: a técnica a técnica pra se...
As áreas de saber estão representadas, no logotipo, pelas três bolinhas vermelhas: Ciências
Biológicas, Humanas e Exatas. Na impossibilidade de nomear essas áreas, o enunciado acima parece
se referir a elas: plantar (biológicas), pensar (Humanas) e a técnica (Exatas).
A certeza de que AJ sabe sobre o conteúdo do logotipo vem logo em seguida, quando ele diz
que as treze listras representam a bandeira do estado de São Paulo.
Essa postura de inquietação perante os dados de linguagem e a valorização das análises
qualitativas, respaldadas por teorias discursivas do léxico e da linguagem podem contribuir para que
possamos compreender melhor os processos de como o cérebro adquire e organiza as informações
lexicais.
Considerações Finais:
Referências