Você está na página 1de 8

2485

DIFICULDADES PARA “ENCONTRAR PALAVRAS” E PRODUÇÃO DE PARAFASIAS:


INFERÊNCIAS PARA O ESTUDO DA ORGANIZAÇÃO E DO ACESSO LEXICAL

Rosana do Carmo Novaes Pinto – IEL/UNICAMP

Questões relacionadas ao funcionamento do léxico – sua aquisição, organização e acesso - têm


despertado há muito tempo o interesse de pesquisadores da Lingüística, da Psicologia, da Filosofia e
de áreas interdisciplinares como a Neuropsicologia, a Psicolingüística e a Neurolingüística, dentre
outros campos das chamadas “neurociências” contemporâneas. A literatura neuropsicológica
produzida nas últimas décadas sobre a dinâmica cerebral e o processamento da linguagem dedica-se a
formular hipóteses acerca dos mecanismos responsáveis por sua aquisição e desenvolvimento e, neste
sentido, os estudos das afasias e de outras patologias que comprometem a linguagem têm contribuído
muito para o avanço das teorias.
A maioria dos trabalhos atuais dedicados ao tema, em neurociências, respalda-se fortemente
nas correlações feitas entre resultados de experimentos de natureza metalingüística, realizados com
indivíduos com ou sem comprometimento neurológico e as imagens obtidas com a utilização de RMf
(Ressonância Magnética Funcional), PET (Tomografia por Emissão de Pósitrons) e exames
eletrofisiológicos do cérebro. O objetivo principal das pesquisas é o de revelar os substratos neurais
que participam dos processos funcionais complexos como linguagem e memória.
Chama a atenção, na literatura produzida em neurociências, a ausência da Lingüística - ciência
que se dedica à compreensão do funcionamento da linguagem em toda a sua complexidade, seja com
relação aos aspectos do sistema formal da língua, quanto aos que relacionam o sistema à exterioridade
discursiva: a relação da língua com os sujeitos e com a sociedade, os aspectos envolvidos na sua
aquisição e desenvolvimento, os aspectos comprometidos nas patologias.
Com relação a este último tópico: comprometimento da linguagem nas patologias – objeto de
estudo da Neurolingüística - salientamos o fato de que há fenômenos, como o do agramatismo, cujos
estudos são respaldados por modelos psicolingüísticos ou neurolingüísticos (mesmo que às vezes
redutores, centrados em unidades como frases ou orações). No caso do léxico, entretanto, isso não
ocorre. Basta percorrermos as referências bibliográficas da literatura neuropsicológica sobre o tópico,
para confirmar o fato de que não há praticamente nada sobre teoria lexical em pesquisas sobre acesso
lexical. Parece estar implícito, na maioria dos trabalhos, que o léxico é apenas um dicionário mental,
autônomo, independente dos outros níveis de organização da linguagem.
Uma das conseqüências da ausência da ciência da linguagem nos estudos neuropsicológicos é
a de que fenômenos como dificuldade de acesso ou de seleção de palavras e a produção de parafasias
(fonético/fonológicas, lexicais/semânticas) são muitas vezes relacionados aos distúrbios de “memória
semântica”. Essa concepção, por sua vez, tem conseqüências tanto na avaliação, quanto nos
procedimentos terapêuticos com os sujeitos afásicos ou com outras patologias que comprometem a
linguagem, já que as tarefas de nomear e de recordar listas de palavras. são as mais requisitadas.
Os fenômenos que elegemos para discutir neste trabalho – dificuldades para encontrar
palavras e produção de parafasias – podem dar pistas para a compreensão do funcionamento lexical.
Para dar início à discussão, recorremos aos estudos realizados na área de Lexicologia
Discursiva, compatíveis com os que desenvolvemos em Neurolingüística no IEL/UNICAMP.
A definição de Nunes (2006) de que se trata de um meio de análise de enunciados em um corpus. nos
interessa. O autor aponta para uma espécie de renascimento no interesse pela lexicologia, atualmente,
diante do aparecimento de novas áreas, dentre as quais a neurolingüística. A lexicologia, nessa
perspectiva, alia-se à teoria do discurso e à semântica discursiva, levando em conta o funcionamento
lexical e os processos históricos de significação. Nas palavras de Nunes: a perspectiva discursiva traz
elementos para uma compreensão do léxico enquanto objeto lingüístico afetado pelo discurso, ou
seja, pelos processos históricos de significação. Para ele, o fato lexical é um fato social e, assim
sendo, está sujeito às forças sociais, que permeiam as relações entre os sujeitos. (Nunes 2006, p.
152). Resumindo os princípios da Lexicologia Discursiva, o autor afirma afirma que:
2486

Em uma perspectiva discursiva, a abordagem do campo lexical pressupõe a


existência da polissemia, das contradições, das ambigüidades, dos efeitos de
sustentação e de silenciamento, enfim, de tudo aquilo que caracteriza o
campo lexical como uma série de fatos sociais. (Nunes, 2006, p. 156)

Abordar as questões lexicais do ponto de vista discursivo significa que, “léxico, sintaxe e
enunciação estão intrinsecamente ligados” no discurso, de maneira que a descrição lingüística
considera a relação constitutiva entre língua, sujeito e história. (Nunes, 2006, p. 157). Esta área de
estudos, portanto, oferece possibilidades interessantes de análise com relação ao tema da organização
e do acesso lexical, não só nos sujeitos normais, mas também em fenômenos envolvidos nas
patologias.
Veremos, abaixo, que considerar o léxico na relação com os sujeitos e com a história é
compatível também com a neuropsicologia luriana, que respalda a Neurolingüística Discursiva, que
adotamos. Para Luria (1986), a linguagem é a atividade que permite abstrair e generalizar as
características do mundo externo e formar conceitos. Sobre a noção de palavra, o autor afirma:

Seria incorreto pensar que a palavra é apenas um rótulo que designa um


objeto, uma ação, ou uma qualidade isolada. Na realidade, a estrutura
semântica da palavra é muito mais complicada e a investigação da
verdadeira estrutura de significação da palavra requer, como se tem
assinalado repetidamente em lingüística, um enfoque muito mais amplo.

As afirmações do autor sobre a linguagem e sobre o léxico são conseqüências da noção de


cérebro dinâmico e constituído nas interações sociais, pelas experiências culturais, pressupostos
teóricos e metodológicos fundamentais para a ND, formulados a partir dos estudos de Vygotsky.
Destacamos, dos postulados de Luria, algumas afirmações que nos interessam especificamente
para o tema deste trabalho. Uma delas diz respeito à organização das palavras em campos semânticos.
Para Luria, “qualquer palavra é sempre multissignificativa e polissêmica”. (...) A respeito de sua
função referencial, tão prezada pelos estudos sobre processamento lexical e nas avaliações
neuropsicológicas das afasias e das demências, ele diz: “A referência objetal é de fato a escolha do
significado necessário, dentre uma série de possibilidades. Tal função é determinada pela situação,
pelo contexto nos quais a palavra está e, às vezes, pelo tom em que se pronuncia” (1986, p. 35). A
afirmação de Luria respalda-se na seguinte afirmação de Vygotsky:

Ao nomear um objeto por meio de um tal conceito pictórico, o homem


relaciona-o a um grupo que contem um certo número de outros objetos. ( p.
65) (...). “Nossa investigação mostrou que um conceito se forma não pela
interação das associações, mas mediante uma operação intelectual em que
todas as funções mentais elementares participam de uma combinação
específica. Essa operação é dirigida pelo uso das palavras como o meio para
centrar ativamente a atenção, abstrair determinados traços, sintetizá-los e
simbolizá-los por meio de um signo. (70) (...) “O emprego da palavra é parte
integrante dos processos de desenvolvimento, e a palavra conserva a sua
diretiva na formação dos conceitos verdadeiros, aos quais esses processos
conduzem (70).

A seguir, destacamos um trecho de Luria (1986) sobre a organização semântica:

Conforme assinalado por uma série de autores (Reese, 1962, Noble, 1952 e
outros), a palavra não somente gera a indicação de um objeto determinado,
mas também, inevitavelmente, provoca a aparição de uma série de enlaces
complementares, que incluem em sua composição elementos de palavras
parecidas à primeira pela situação imediata, pela experiência anterior, etc.
2487

Sendo assim, a palavra jardim pode evocar involuntariamente as palavras


árvores, flores, banco, encontro, etc. e a palavra horta, as palavras batata,
cebola, pá, etc. Deste modo, a palavra converte-se em elo ou nó central de
toda uma rede de imagens por ela evocadas e de palavras “conotativamente”
ligadas a ela. Aquele que fala ou que escuta contém, inibe, toda esta rede de
palavras e imagens evocadas pela palavra, para poder escolher o significado
imediato ou denotativo necessário no caso ou situações dadas. (LURIA, 1986,
p.35)

Mais adiante, o autor afirma que

o campo semântico manifesta-se com toda evidência nos fenômenos


amplamente conhecidos na literatura psicológica de dificuldades de recordar
palavras, estados nos quais a palavra procurada encontra-se como se
estivesse na ponta da língua (o conhecido tipo of tongue phenomen, descrito
por Brown e McNeill, 1966) ou quando a palavra procurada é substituída
por outra, tomada do campo semântico comum. (LURIA, 1986, p.37)

A palavra, para Luria, é uma “rede potencial de enlaces multidimensionais”. Nos sujeitos
“normais” – sem patologias - os enlaces sonoros estão quase sempre inibidos, em benefício dos
enlaces semânticos, mais essenciais: “como conseqüência da riqueza de enlaces situacionais e
conceituais, em todos os casos dá-se a escolha do significado necessário dentre os muitos possíveis,
uma vez que os diferentes significados surgem com diferente probabilidade no momento em que o
sujeito escuta a palavra” (Luria, 1986, p. 82).
Nas patologias, as forças inibitórias igualam-se às forças de estímulo ou são mais ainda mais
fracas. Isso explicaria a dificuldade para o sujeito selecionar, dentre as palavras possíveis, a adequada.
Em suas palavras:

Se cada palavra evoca um campo semântico, está unida a uma rede de


associações que aparece involuntariamente, é fácil verificar que a
recordação de palavras ou a denominação de objetos de nenhuma forma é a
simples atualização de uma palavra. Tanto a recordação de uma palavra
como a denominação de um objeto são um processo de escolha da palavra
necessária dentre todo um complexo de enlaces emergentes e ambos os atos
são, por sua estrutura psíquica, muito mais complexos do que se costumava
acreditar (Luria, 1986, p. 88).

Há fatores que determinam a escolha da palavra, como a freqüência na língua e a experiência


anterior do sujeito, afirma Luria. Até mesmo sujeitos normais, diante de palavras de baixa freqüência,
mal fixadas, têm a necessidade de recorrer ao contexto para evocá-las. Para Luria, este fato não pode
ser explicado como uma questão de memória: “tratam-se menos de insuficiências da memória do que
de resultados do excesso de palavras e conceitos que emergem involuntariamente e que dificultam
substancialmente o ato da escolha”. (Luria, 1986, p. 89). Cabe-nos perguntar, portanto, acerca dos
trabalhos sobre o tema do acesso lexical em neuropsicologia, se faz sentido falar em distúrbios da
“memória semântica”. Segundo Luria, o fenômeno é específico da dificuldade de se operar com
elementos lingüísticos:

A recordação da palavra necessária perde sua seletividade. No lugar da


emergência seletiva exata da palavra necessária, conforme um traço
semântico determinado, surgem, com igual probabilidade, todas as palavras
parecidas à procurada por traços sonoros, situacionais ou conceituais. (...)
Consequentemente, podemos dizer que a palavra não é uma simples
designação de objeto, ação ou qualidade. Por trás da palavra não há um
2488

significado permanente: há sempre um sistema multidimensional de enlaces.


(Luria, 1986, p. 90)

Para ilustrar as colocações de Luria e as considerações da Lexicologia Discursiva, que tomam


o léxico em sua relação com as condições de produção, citamos um exemplo ocorrido durante a
aplicação de um dos testes mais utilizados na literatura neuropsicológica para avaliar a dificuldade ou
a impossibilidade de encontrar palavras, o Teste de Nomeação de Boston1.

Dado 1: O teste estava sendo aplicado ao sujeito MS, com afasia motora e que apresenta uma fala
telegráfica. A figura do teste era a da pirâmide.

MS: hum... ((aponta para a figura))


MS: Chã na na na (( começa a se movimentar, como se estivesse dançando))... ah ah... é::... é::... a
não... i::: múmia ((aponta para a cabeça))... não... (( apontando ainda para a cabeça; risos)) é::
((risos))
Irn: tem a ver com múmia, mas... tá... todos no mesmo filme, mas só vem múmia...
MS: [isso...
Irn:... quando tem isso aí por perto...
MS: es-fin-ge
Irn: não
Irn:super interessante o que você esta fazendo... múmia... esfinge... ((folheia o livro do teste)) péra aí...
to subvertendo tudo o que eles fazem nos testes...
((risos))
Irn: ai ai... será que ... ((abre numa página do livro de teste))
MS: mú-mia...
Irn: não...
MS: não não... ((aponta para a figura que Irn acaba de mostrar)) é é
Irn: o que que você falou? você tinha falado múmia...
MS: isso... e... es-finge
Irn: esfinge isso
MS: é... hã... ((Irn mostra a primeira figura)) como chama ai:::
Irn: as... tararã... do Egito
MS: as... as... quatro múmias do Egito...
((risos))
Irn: ta falando do filme por acaso?
((risos))
MS: é é...
((risos))
MS: ai...
Irn: eu sou louca pra ir pro Egito pra ver as...
MS: a... não... cataratas não...
((risos de Irn))
MS: a não... ((aponta para a figura e coloca a mão na cabeça))
Irn: as... pi...
MS: a a pi-râ-mi-des

1
Novaes-Pinto (1999) vem criticando vários aspectos da elaboração e da aplicação deste teste (TNB).
Forigo (2008), a respeito da má qualidade dos desenhos, diz que “se não é possível afirmar que esta
característica influencia diretamente no êxito na nomeação da imagem, é patente que o grau de
indexicalidade do desenho (característica que na situação de testes é tratada como a “qualidade” do
desenho) desempenha um papel importante na realização da tarefa, alterando o grau da função
referencial da imagem apresentada”.
2489

Há dados singulares (Abaurre, 2006), que ajudam a esclarecer o que ocorre nas afasias. O
dado acima pode ser assim considerado, pois revela os enlaces semânticos envolvidos na tentativa de
MS para nomear pirâmide. Outras palavras vêm à tona, como múmia e esfinge, sendo esta, inclusive,
de menor freqüência na língua. A explicação dada por Luria, de que se trata de uma dificuldade de
selecionar uma palavra dentre várias que se colocam à disposição, parece ser corroborada por dados
como o acima apresentado.
Outro dado que consideramos singular, ocorreu com o sujeito afásico OJ, agramático, na
situação de nomear a mesma figura: pirâmide. Assim que viu o desenho, OJ disse: Eu, São Sebastião
do Paraíso. Você? OJ foi extremamente hábil para selecionar este enunciado, valendo-se do
conhecimento partilhado entre ele e a pesquisadora, Irn, que mora em Piracicaba. Ela sabia que OJ
mora em São Sebastião do Paraíso. A estrutura de seu enunciado deu uma pista para a palavra
Piracicaba, que tem exatamente as duas primeiras sílabas da palavra pirâmide. Esse dado nos permite
inferir que a representação mental da palavra-alvo não foi perdida, está preservada e, no momento do
teste estava, praticamente, na ponta da língua.
Nos testes neuropsicólogos, os sujeitos têm um tempo reduzido, que não é suficiente para que
consigam buscar e produzir a palavra desejada. Isso não quer dizer, por outro lado, que a palavra será
selecionada se o sujeito tiver todo o tempo do mundo para fazê-lo.2.
Exemplos como os acima corroboram a hipótese de que não se trata da perda do léxico.
Outros exemplos, que daremos a seguir, contrapõem dados de um mesmo sujeito – AJ - em situações
experimentais - na aplicação do TNB e do Teste de Reconhecimento de Rostos Famosos3 , e em
episódios dialógicos.
AJ tem uma afasia considerada fluente/progressiva (Andrade, 2009), na qual se verificam
muitas dificuldades de nomeação de objetos e também de nomes próprios. Tanto na aplicação do
TNB, quanto na aplicação do teste de rostos famosos ficou evidente que há um delay (retardo, atraso)
no funcionamento lexical. O tempo que ele precisa para selecionar as palavras é geralmente maior do
que o tempo dado na aplicação do teste de forma tradicional. AJ produz muitas parafasias durante o
teste. Há evidência dos delays, por exemplo, quando diz apontador para termômetro (sendo que, com
a ajuda de investigadora, havia nomeado a figura do apontador seis figuras antes); quando produz rede
para pirâmide (que também nomeou com a ajuda da investigadora, três figuras antes) e pergaminho
para esfinge (portanto, no mesmo campo semântico, que também já havia nomeado). Este último
exemplo é particularmente interessante, porque se assemelha muito ao dado de MS, da pirâmide,
acima descrito.

Dado 2:

AJ: ai meu deus do céu... mais aí tem coisa hein?..


Irn: tá acabando... isso aqui é lá do Egito...es....
AJ: pergaminho...não sei...não tô sabendo...
Irn: esfin...
2
Há casos em que o item lexical é produzido em situações dialógicas, quando o sujeito não está
tentando nomear um objeto, mas não vem à tona em atividades metalingüísticas Goldstein chamou a
atenção para este fenômeno, ilustrando com o célebre exemplo do sujeito afásico que não conseguia
repetir “não”, mas dizia: não, doutor, eu não consigo e o caso do sujeito que não conseguia nomear
guarda-chuva, ao olhar para uma figura, mas dizia: tenho diversos guarda-chuvas em casa.
3
Aplicamos o Teste de Reconhecimento de pessoas famosas (Famous Faces Recognition Test),
adaptado por Novaes-Pinto, em 2007, a partir do estudo de Snowden, Thompson & Neary (2004). O
teste foi aplicado sem a preocupação de quantificar os resultados e sem nos preocuparmos com o
tempo de espera, analisando qualitativamente a evocação de nomes próprios, para que pudéssemos
compreender se as dificuldades eram devidas realmente à memória – ao esquecimento dos nomes – à
presença de prosopagnosia - uma dificuldade específica com o reconhecimento de faces familiares,
geralmente relacionada a lesões de Hemisfério Direito ou a problemas de funcionamento lingüístico-
cognitivo como os delays – lentidão no acesso ao nome. Geralmente a aplicação dos testes em
ambientes clínicos é feita de forma contínua, esperando-se alguns segundos apenas para que o
indivíduo nomeie a figura.
2490

AJ: pergaminho...pergaminho...
Irn: esfinge...esfinge..
AJ: (suspira).. também...

Algumas parafasias produzidas por AJ no TNB são de natureza fonético/fonológica – e outras


são de natureza lexical/semântica, como quando nomeia camelo e rinoceronte com a palavra bode.
Embora sendo do mesmo campo semântico, não havia a figura de um bode no teste. Há ainda
processos metonímicos em evidência, como quando diz cavalo para unicórnio. A figura do unicórnio
pressupõe parcialmente a figura do cavalo. AJ toma a parte pelo todo. Há, entretanto, a possibilidade
de que ele não conheça a palavra “unicórnio”.
Há ainda produção de neologismos, como quando produz, para carimbo: “caneta, caneta
não...esferógrafo, aglutinando um atributo de caneta: esferográfica com algum tipo de máquina (como
em mimeógrafo). Algumas das parafasias são incompreensíveis, como quando diz picapi dijunto para
pelicano.
No teste de nomeação de rostos famosos, 30 cartões contendo fotos de personalidades foram
apresentados.4 (Andrade, 2009) AJ foi capaz de reconhecer e nomear rapidamente apenas Roberto
Carlos, Pelé e Jô Soares. Para a foto do Papa João Paulo, produziu Padre Bento, o nome do atual
Papa. Se a aplicação fosse tradicional, talvez tivesse acertado apenas estes quatro nomes. Seria
provavelmente considerado um erro, quando produziu Ronaldo para Fátima Bernardes. Entretanto,
parece ter havido também um delay na busca pelo nome do jogador, cuja foto tinha sido apresentada
antes, com um intervalo de quatro fotos entre eles. O mesmo ocorreu com outros nomes. Por exemplo,
para Parreira, nomeou Antônio Fagundes (três nomes depois da foto de Antônio Fagundes). As demais
fotos ou não foram reconhecidas ou, se reconhecidas, não foram nomeadas (Andrade, 2009)
.A hipótese do delay nos parece provável, portanto, tanto no TNB quanto no de rostos
famosos. O tempo para a resposta, em avaliações tradicionais, é pré-estabelecido. Quando se esgota o
tempo determinado, passa-se para outra figura. Desconsidera-se que o sujeito pode ainda estar
“trabalhando” sobre as possibilidades de seleção lexical. Esta lentidão percebida nos testes pode estar
subjacente às dificuldades dos sujeitos nos processos dialógicos, onde também há uma pressão, guiada
pelas regras conversacionais, para a produção do discurso. Simplesmente suspender o discurso para
buscar a palavra desejada pode levar a uma perda do “fio da meada” ou do turno conversacional.
Dizer que não sabe a palavra, que não lembra, ou que está na ponta da língua, como muitos afásicos
fazem, é uma saída pragmática para conseguirem ir adiante no desenvolvimento do tópico discursivo.
Contrapondo os resultados de testes a um episódio dialógico, Andrade (2009) analisa um dado
em que ela (Irc) e a estagiária de Fonoaudiologia (Ea) conversavam com AJ sobre o logotipo da
UNICAMP5, tema que demanda o uso de uma metalinguagem, pois ele teria que dizer o que
significam as cores, o formato e as linhas do símbolo.

Dado 3:

Ea: O senhor viu que tem a história do logotipo da Unicamp aí? (referindo-se ao material que a
estagiária havia tirado da INTERNET).
AJ: Logotipo? conheço o logotipo. Você conhece o logotipo também?
Ea: (mostra o símbolo) aqui, ó... o senhor conhece esse símbolo não é? tem até a história dele que
eu achei no site da Unicamp.
Irc: então, qual que é o logotipo, o senhor lembra? Uma bola branca, dentro das três listras...
4
Nosso protocolo contém mais de 30 cartões e não é fixo, sendo as personalidades escolhidas de
acordo com o sujeito com o qual estamos trabalhando, levando em conta os círculos sociais nos quais
estas personalidades se inserem – em shows da TV, política, esportes, etc. Necessariamente, assim
como no teste original, os famosos têm que estar “vivos durante o tempo de vida do sujeito”.

5
O logotipo da UNICAMP foi desenvolvido pelo seu primeiro reitor, Zeferino Vaz, e pelo
arquiteto João Carlos Bross, na década de 1970.
2491

estas três listras ... conhece estas três listras?


AJ: então a senhora vai aprender o que é as três listras...as três listras...as letras listras ... são as três
dificuldades... as três dificuldades...
Irc: faculdades?
AJ: dificuldades.
Irc: faculdades?
AJ: são as dificuldades para o homem analisar que ele vai plantá pensa... pensá pensá e trazer
coisas... pra cá ... então cê vai cê vai... acontece as três listras... é o saber...é o saber o conhecer...
conhecer realmente...e::: o::: a técnica... a técnica pra se chegar.... então você .. você pega a três
listras...

Aparentemente, a resposta dada por AJ dificuldades poderia ser interpretada como a produção
de uma parafasia lexical, motivada pela semelhança fonológica (em vez de faculdades). Entretanto,
uma análise mais cuidadosa nos faz pensar se ele não estava se referindo às diferentes áreas do
conhecimento que, em suas palavras, são as dificuldades para o homem analisar que ele vai plantá
pensá, pensá pensá e trazer coisas... pra cá ... então cê vai cê vai... acontece as três listras... é o
saber...é o saber o conhecer... conhecer realmente...e::: o::: a técnica a técnica pra se...
As áreas de saber estão representadas, no logotipo, pelas três bolinhas vermelhas: Ciências
Biológicas, Humanas e Exatas. Na impossibilidade de nomear essas áreas, o enunciado acima parece
se referir a elas: plantar (biológicas), pensar (Humanas) e a técnica (Exatas).
A certeza de que AJ sabe sobre o conteúdo do logotipo vem logo em seguida, quando ele diz
que as treze listras representam a bandeira do estado de São Paulo.
Essa postura de inquietação perante os dados de linguagem e a valorização das análises
qualitativas, respaldadas por teorias discursivas do léxico e da linguagem podem contribuir para que
possamos compreender melhor os processos de como o cérebro adquire e organiza as informações
lexicais.

Considerações Finais:

Citowic (1996) defende que é fundamental, na ciência contemporânea, a conjugação de vários


pontos de vista sobre o mesmo objeto, advindos das várias áreas de conhecimento que se interessam
por fenômenos complexos, como os que envolvem o estudo do cérebro e da mente.
Para o autor, a Neuropsicologia é multidisciplinar, um empreendimento conjunto, que busca
explicar o comportamento em termos de funções cerebrais, visando compreender como estímulos
separados são “juntados” em um único objeto, visão compatível com a concepção luriana de cérebro
como um Sistema Funcional Complexo, que prevê a inter-relação sistêmica e solidária da linguagem e
de outras funções cognitivas.
A respeito dos trabalhos que se baseiam exclusivamente nas técnicas de neuroimagem para
localizar a linguagem ou parte dela – como o léxico, por exemplo, e teorizar a respeito do seu
funcionamento, o autor afirma que uma imagem não pode ser considerada a palavra final de uma
análise. A lesão mostrada em uma tomografia não é isolada, sendo necessário considerar o caráter
múltiplo da neurofisiologia, a interação da área lesada com outras anatomicamente remotas e também
a restauração (reorganização) das funções.
Damásio (1997), no artigo6 em que sintetiza o avanço obtido nas pesquisas com neuroimagem,
na década do cérebro, ressalta que as descobertas não podem ainda explicar a maior parte das
variações individuais entre sujeitos e as variações observadas na produção de um mesmo sujeito, nem
sua relação com os fatores sociais, históricos e culturais que são constitutivos da linguagem e da
cognição humana.
A nosso ver, isso se dá porque existe um descompasso entre uma abordagem cultural,
histórica, social - imprescindível para tratar de fenômenos como a linguagem humana - com a adoção
6
O título do artigo de Damasio (1997) é “What a difference a decade makes”, publicado na revista
Current Opinion in Neurology. Ver referências completas nas Referências Bibliográficas.
2492

de metodologias científicas de cunho quantitativo e estatístico, que descartam justamente o que é


individual, subjetivo e singular.

Referências

ABAURRE, M. B. Fonética e Fonologia. In: GUIMARÃES, E.; ZOPPY, M. A palavra e a


frase. São Paulo: Editora Pontes, 2006.
ANDRADE, R. C. (2009). Questões neuropsicológicas e neurolingüísticas de uma afasia
fluente/progressiva. Inferências de um estudo de caso para a clínica fonoaudilógica.Dissertação de
Mestrado. IEL/UNICAMP. Campinas, São Paulo, 2009.
BASILIO, M. Teoria Lexical. São Paulo: Editora Ática, 1995.
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
CAPLAN, D. Neurolinguistics and linguistic aphasiology. New York: Cambridge University Press,
1993.
COUDRY, M.I.H. Diário de Narciso – discurso e afasia. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
DAMASIO, A. What a difference a decade makes. Current Opinion in Neurology Iowa,
USA: Rapid Science Publishers, n. 20. p. 177 – 178., 1997.
FRANCHI, C. Hipóteses para uma Teoria Funcional da Linguagem, 1977. Tese (Doutorado em
Lingüística) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas,
São Paulo.
GUIMARÃES, E.; ZOPPY, M. A palavra e a frase. São Paulo: Ed. Pontes. 2006.
LURIA, A.R. Pensamento e Linguagem: As últimas conferências de Luria. São Paulo: Artmed
Editora, 1986.
NOVAES-PINTO, R. A contribuição do estudo discursivo para uma análise crítica das categorias
clínicas, 1999. Tese (Doutorado em Lingüística, Área de Concentração: Neurolingüística). Instituto de
Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo
______Análise lingüística de dados obtidos em avaliações metalingüísticas de sujeitos com suspeita
de demências. Anais do GEL, Revista Eletrônica, São Paulo, 2007.
______ Acesso lexical: discussão crítica sobre as pesquisas nas neurociências contemporâneas.Texto
apresentado no Seminário do GEL 2008. Submetido para a Revista Estudos Lingüísticos. São Paulo,
2009.
NUNES, M.H. Lexicologia e Lexicografia. In: GUIMARÃES, E.; ZOPPY, M. A palavra e a frase.
São Paulo: Editora Pontes, 2006.
VYGOTSKY, L. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
VYGOTSKY, L. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

Você também pode gostar