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Podem os filósofos modificar o mundo?

Seria demasiado exagero considerar que é pretensão dos filósofos modificarem o


mundo. Suas ideias, porém, não se lançam ao mundo sem motivo, sem objetivos, sem
finalidades. O pensamento se exerce de forma tão presencial entre os homens do mundo
que, uma vez acolhidas e adotadas como formas de comportamento, trazem como
desencadeamento certa modificação do mundo. Então, o filósofo modifica
indiretamente o mundo, pois seu rastro é sua marca impressa sobre as coisas e as
pessoas, à medida que suas ideias são recepcionadas, dispersas, divulgadas pelas
comunidades a que se destinam. Essa modificação decorre do fato de as pessoas
abraçarem a palavra apregoada na seara filosófica, de modo a criar-se na prática o que
no pensamento foi arquitetado pelo pensador. Este não age sozinho, mas com o
respaldo, com o auxílio, com o concurso, com a empreitada de adeptos, continuadores,
idealizadores de suas ideias... Até mesmo dizer que o filósofo age sobre o mundo, por
vezes, parece ser um contrassenso. O modus vivendi do filósofo, em geral, é em meio a
ideias, e não na praxe cotidiana de desenvolvimento das mesmas. Todavia, de qualquer
forma, o que há que se dizer é que o filósofo age por meio do pensamento; seu modo de
ação dá-se por meio de palavras, de ideias, de discursos, de escritos... que são formas
sutis de atuação sobre a realidade. 9 É, portanto, por meio do pensamento, com o
pensamento e pelo pensamento que a intervenção mais direta do filósofo sobre o mundo
se dá. Seria, pelo contrário, incoerente pensar que o filósofo não pretende agir sobre o
mundo, que pretende ver-se excluído, distanciado e deslocado dos processos decisórios
políticos, jurídicos, sociais, éticos, humanos... Se nem mesmo o mais idealista dos
pensadores, Platão, se manteve alheio a pretensões de ingerência política sobre o
mundo, 10 o que dizer dos demais filósofos atuantes na prática política... Então, de fato,
o legado de cada pensador possui uma carga diferenciada de atuação sobre o mundo. O
que pensar da história do pensamento ocidental após a marcante passagem de Sócrates
pela Grécia no século V a.C.? Seria possível desconsiderar a influência que produziu
sobre o pensamento de Platão e de Aristóteles? Seria possível desmerecer sua
participação no re-direcionamento do papel do filósofo após sua morte? Seria possível
dizer que a certeza com que se dirigiu para a morte, quando condenado a beber cicuta,
não transmitiu certezas espirituais a seus conterrâneos e discípulos? Apagar da história
do pensamento a figura de Sócrates seria o mesmo que apagar da história das religiões a
figura do Cristo, o que, com certeza, distorceria profundamente os destinos da
humanidade. Filosofias mais detidamente científicas acabam por determinar o percurso
intelectual da humanidade durante séculos. O que pensar da história da lógica, sem os
conceitos da lógica formal e analítica formulados por Aristóteles (século IV a.C.)? O
que pensar da filosofia de Santo Tomás de Aquino (século XIII d.C.) sem a leitura das
obras de Aristóteles? Quais os reflexos da inexistência de Aristóteles para o mundo
ocidental, tendo em vista que se tornou durante alguns séculos a leitura básica para a
formação dos teólogos da cristandade a partir do século XIII? O que pensar do ensino
universitário sem o concurso da dialética, da retórica, da ética e da política aristotélicas?
Negar a influência do aristotelismo sobre o pensamento ocidental seria o mesmo que
dizer que a história das ciências começou somente no século XV d.C., o que traduz forte
equívoco, e certo anacronismo. Filosofias mais abstratas acabam por determinar os
destinos da própria ciência e da própria filosofia após sua intervenção nos meios
científicos. Seria possível imaginar a modernidade sem a determinação do pensamento
de Immanuel Kant (século XVIII d.C.)? Quais os destinos do pensamento moderno sem
o criticismo kantiano, que acabou por dar origem a toda uma nova geração de filósofos
antikantianos e pós-kantianos? Seria possível imaginar o desenvolvimento de um
pensamento como o de Hegel (século XIX d.C.) sem a existência e as conquistas
conceituais e teóricas do kantismo? Sem a intervenção do kantismo e do hegelianismo,
quais as concepções possíveis no plano do Direito, tendo em vista as largas
contribuições e influência que estes autores geraram sobre juristas e sistemas filosófico-
jurídicos? Desconsiderar essa realidade seria o mesmo que dizer que a teoria do
heliocentrismo em nada modificou o contexto da ciência e os destinos da própria física
moderna. Filosofias mais radicais, de maior cunho político, de profunda crítica social,
no geral, são produtoras de maiores reflexos sobre a sociedade e as estruturas de poder
vigentes. O que pensar da filosofia e da política do século XX sem a existência de Karl
Marx e de Friedrich Engels? O que pensar, historicamente, a respeito da Revolução
Russa de 1917, ou seja, teria ela lugar ou não no curso dos acontecimentos políticos do
século XX? O que pensar da dispersão dos partidos de esquerda e das múltiplas
tendências sociais, social-democratas, socialistas, trabalhistas, sindicalistas durante o
processo de formação da política de massa no século XX? Qual a condição dos direitos
sociais nas Cartas e Declarações Internacionais sem a intervenção e dispersão de ideias
sociais pelos pensadores e idealizadores do movimento comunista? Teria lugar uma
Guerra Fria entre URSS e EUA, em função da divisão do mundo em torno de duas
bandeiras ideológicas, militares e econômicas? O que pensar da geração de maio de
1968 e suas mudanças culturais? Desconsiderar essas influências e contribuições seria o
mesmo que dizer que a descoberta do átomo em nada influenciou na formação da
bomba atômica, o que é, claramente, uma insanidade. Filosofias de maior peso espiritual
acabam por formar um conjunto de prescrições que direcionam os discípulos à
observância de determinados comportamentos, que, na base dessa fé e dessa certeza,
passam a constituir regras gerais de comportamento, por vezes, em toda uma sociedade.
Seria possível desconsiderar o papel da filosofia da não violência de Mahatma Gandhi
em meio ao processo de separatismo da Índia da Inglaterra? Em pleno século XX, em
que guerras sangrentas ceifaram inúmeras vidas, seria possível imaginar o confronto que
surgiria se a Índia tivesse se conduzido de modo radical, sem seu líder espiritual? Negar
a importância desses eventos é o mesmo que apagar da história da física quântica o
nome de Albert Einstein, o que traduz uma impossibilidade. Filosofias mais
propriamente jurídicas determinaram a fundamentação lógica e sistemática do Direito,
como ocorre com a doutrina de Hans Kelsen. O que pensar do ensino jurídico
universitário sem o concurso desse jurista? O que pensar dos destinos do positivismo
jurídico no século XX sem a existência da teoria piramidal e normativa do sistema
jurídico? O que pensar das sucessivas décadas de profissionais do direito formados sob
a ideologia positivista normativista sem a existência de Hans Kelsen? Boa ou má, sua
contribuição é um marco indelével na cultura e na literatura jurídicas universais.

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