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Uma Introdução À Bíblia Exílio Babilônico
Uma Introdução À Bíblia Exílio Babilônico
PAULUS
Uma introdução à Bíblia
V o lu m e 5
PAULUS
2004
© Centro de Estudos Bíblicos - 2004
R uajoão Batista de Freitas, 558
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Reimpressões: 2010,2012
ISBN: 85-89000-44-3
Sumário
Apresentação...................................................................................................... 5
Parte I: Período do E xílio B ab ilô n ic o .................................................. 6
Introdução................................................................ .......................................... 6
Os exílios de ontem e de h o je....................................................................... 9
Os fatos históricos............................................................................................ 11
Significado do exílio para o povo de Israel.............................................. 13
A vida de quem ficou em J u d á ..................................................................... 21
Literatura bíblica em Ju d á ............................................................................... 22
1 Jerem ias....................................................................................................... 23
2 Lamentações.............................................................................................. 23
3 A b d ias......................................................................................................... 26
4 Releitura da história: O H D ................................................................... 30
5 Releitura da profecia................................................................................ 32
A vida de quem foi deportado para a Babilônia..................................... 35
Literatura bíblica na Babilônia....................................................................... 38
1 Ezequiel....................................................................................................... 38
2 Isaías 40-55 ................................................................................................ 50
3 Releituras do Pentateuco entre os deportados................................. 59
Salm os.................................................................................................................. 69
Conclusão da Ia p a rte ..................................................................................... 71
Para orar e aprofundar................................................................................... 73
Sugestões de leitura........................................................................................... 73
4
Apresentação
5
Parte I:
Período do Exílio B abilônico
Introdução
6
A subida dos babilônios ao poder no cenário internacional não só
levou ao fim do Império Assírio, mas também impediu o avanço dos
egípcios. Para Judá, a opressão babilônica foi trágica. Além de cobrar
tributos do povo judaíta, Nabucodonosor invadiu o Estado de Judá. Des
truiu a cidade santa e, junto com ela, o templo. Foi uma verdadeira calami
dade. As elites foram levadas à força para a Babilônia. Muitas pessoas
foram mortas. Grupos fugiram para estados vizinhos. E, em Judá, ficou a
maioria do campesinato pobre. A época do exílio babilônico representou
para Judá um novo mas triste momento. Era o fim da dinastia davídica,
dejerusalém e do santuário.
Para consolidar seu poder, os babilônios desmilitarizaram e desur-
banizaram o Reino do Sul, levando para o desterro três grupos de prisio
neiros de guerra.
Neste volume, você poderá acompanhar mais de perto esse perío
do do exílio. Foi o mais sofrido de toda a história de Israel. Talvez somen
te comparável à opressão dos hebreus sob os reis cananeus e o faraó do
Egito há mais de 700 anos. Uma grande crise se abateu sobre quem sobre
viveu à catástrofe e especialmente sobre os deportados. E, como sempre,
é nas situações de crise que surgem novas propostas, novas alternativas.
Avalia-se o passado. Ativa-se a memória do Êxodo e a esperança de uma
nova libertação renasce. Foi uma época de muita criatividade literária.
Vamos analisar os fatos históricos do exílio, especialmente o seu
significado para todo povo de Israel e a produção literária do período, a
fim de iluminar a situação de exílio em que hoje vivem tantas pessoas. São
exílios longe da pátria. Muitas vezes, são exílios na própria terra. Ao olhar
mos atentamente o exílio do século 6 a.C., queremos buscar luzes que nos
ajudem a encontrar saídas criativas para o momento crítico em que vive a
humanidade hoje. Nossa leitura bíblica tem a vida como ponto de partida
e de chegada. Quer ajudar a defendê-la, promovê-la e recriá-la permanen
temente, especialmente lá onde ela está sendo mais agredida e diminuída.
Porque, acima de tudo, o sagrado é a vida.
Por um lado, estudaremos a vida dos que ficaram em Judá depois
da destruição dejerusalém bem como os textos que produziram. Além
de serem críticos ao reinado, revelam uma forte esperança na vinda de um
Messias libertador descendente de Davi.
7
Naquele momento, o Livro de Jeremias ainda estava em processo
de formação. O Litro das Lamentações reflete a situação inconsolável diante
da ruína da capital e da morada de YHWH. O projeta Abdias (Almeida =
Obadias) condena os edomitas por terem ajudado os babilônios na des
truição de Jerusalém. Os deuteronomistas relêem toda a história passada
de Israel a partir da tragédia de 586 a.C., fazendo acréscimos e releituras na
Obra Historiográfica Deutervnomista (OHD = D t,Js,Jz, l-2Sm , l-2Rs). Além
da reedição da OHD, também os escritos proféticos anteriores ao exílio so
freram um processo de reelaboração.
Por outro lado, veremos também a vida dos deportados para a
Babilônia e sua elaboração escrita. Os p rofetas E zequiel e 2° Isaías (cap.
40-55) devem ser lidos no contexto dos expatriados junto aos rios da
Babilônia. Ezequiel profetiza para a primeira geração que havia sido leva
da ao desterro. J á os discípulos e discípulas de Isaías profetizam para a
segunda geração de deportados. Também lá na Babilônia é feita uma revi
são da história. Foram especialmente os círculos sacerdotais que releram antigas
tradições de I sra elacrescentando sua reflexão nos escritos especialmente de
Gênesis, Exodo, Levítico e Números, como veremos.
Por fim, faremos referência aos salmos relidos e compostos duran
te o exílio.
Os exílios de ontem e de hoje
9
Situações de exílio hoje
Em toda parte do mundo, conhecemos situações similares às da
época do exílio babilônico. São refugiados de guerra ou por perseguição
política. São camponeses migrantes por causa de secas ou por outras ra
zões. São camponeses sem terra em busca de um pedaço de chão para sua
família viver com dignidade. São desempregados em busca de trabalho.
São sem teto na luta por uma casa para morar. São mulheres lutando por
seus direitos. São crianças submetidas ao trabalho infantil. São idosos des
tituídos de dignidade e que trabalharam a vida toda, mas hoje não têm
acesso aos mínimos direitos...
Se voltarmos aos primeiros séculos de conquista, lembramos a de
portação de grupos africanos para as Américas, onde foram submetidos à
escravidão. Os povos indígenas foram reduzidos à condição de exilados
em sua própria terra. Esta lhes foi rou
"Amigo é coisa bada. Muitos foram escravizados.
pra se guardar Tanto às nações indígenas como
debaixo de sete chaves, às africanas foram negadas sua religião,
dentro do coração. sua liberdade, sua identidade, sua ale
Assim falava a canção gria. Da sua cultura somente não foi
que na América ouvi. condenado ao esquecimento aquilo que
Mas quem cantava chorou virou folclore.
ao ver seu amigo partir." Se voltarm os apenas alguns
(Milton Nascimento) anos no tempo, temos a lembrança ain
da muito viva da época dos regimes
militares na América Afrolatíndia. No Brasil, a ditadura foi de 1964 a
1985. Muitas pessoas foram mortas. Outras tiveram que fugir para conti
nuar vivendo.
Todos esses grupos de exilados resistiram cada um de sua forma.
E continuam resistindo ainda hoje, sejam eles exilados longe de sua pátria
ou estejam numa situação de exílio em sua própria terra.
A experiência de exílio na Bíblia nos anima e encoraja para continu
armos buscando criativamente alternativas de promoção da vida, num
contexto em que as forças da morte parecem vencer. Um provérbio resu
me bem nosso sonho, nossa utopia: “Os poderosos podem cortar as
flores, mas nunca poderão impedir a chegada da primavera!”.
10
Os fatos históricos
Datas importantes
605-562 a.C: Nabucodonosor, rei da Babilônia.
597 a.C.: Primeiro cerco dejerusalém . Submissão aos babilônios e de
portação do primeiro grupo para a Babilônia. Entre a elite de
portada estavam o rei Joaquin e Ezequiel.
593 a.C.: O sacerdote Ezequiel se converteu em profeta, profetizando até
571 a.C.
588 a.C.: O rei Sedecias suspende o pagamento de tributos à Babilônia.
587-586 a.C.: Depois de 1 ano e meio de cerco, os oficiais de Nabucodo
nosor conquistam e incendeiam Jerusalém. O rei Sedecias foi
preso e levado com o segundo grupo de deportados para a
Babilônia. Foi o fim do Reino de Judá.
586 a.C.: Godolias (Almeida = Gedalias) foi nomeado governador, mas
foi assassinado provavelmente 4 anos mais tarde (582 a.C.). Foi
um período de reconstrução do povo na base de um a
retribalização.
585 a.C.: Depois da queda dejerusalém , o profeta Abdias proferiu seus
oráculos contra os edomitas.
582 a.C.: Data provável da fuga dos sobreviventes ao massacre de Go
dolias para o Egito, levando Jeremias e Baruc. Terceira deporta
ção para a Babilônia.
562-560 a.C.: Avil-Marduc (2Rs 25,27 = Evil-Merodac), rei dos babilônios.
561 a.C.: Evil-Merodac anistiou o reijoaquin, libertando-o daprisão (2Rs
25,27ss).
556-539 a.C.: Nabômdes, rei da Babilônia. Em seu reinado, começou a
decadência do império.
555-529 a.C.: Ciro, rei dos persas. Em 555 a.C, liberta a Pérsia da domi
nação dos medos.
Em 549 a.C., passa a dominar os medos. Em 547 a.C., conquista a Lídia.
Durante o reinado de Ciro atua o 2 Isaías (40-55).
539 a.C.: Ciro conquista a Babilônia. Devolve aos povos subjugados pe
los babilônios os ídolos que Nabucodonosor havia levado para
a Babilônia (Esd 5,14). Restabelece o culto aMarduc.
538 a.C.: Ciro permite o retorno dos exilados (Esd 1,1-11), e o altar do
templo é reconstruído no mesmo ano (Esd 3,2-3).
11
Deportar os povos conquistados era costume no antigo Oriente
Médio. Assim já haviam feito os assírios com os israelitas do Reino do
Norte em 732 a.C. (2Rs 15,29; Os 10,6) e em 722 a.C. (2Rs 17,1-6; 18,9-12).
Nos anais de Senaquerib consta que ele desterrou também milhares de habi
tantes de Judá, por ocasião do cerco de Jerusalém em 701 a.C.
Os babilônios seguiram a mesma estratégia dos assírios. Em 597
a.C., deportaram o primeiro grupo da elite de Judá, depois de o rei Jo a
quim suspender o pagamento de impostos (2Rs 24,1.14-16). Nessa pri
meira leva, entre a elite deportada, merecem destaque o rei Joaquin (tam
bém chamado de Jeconias ou Conias - J r 22,24; 37,1), filho de Joaquim,
sua corte, a rainha-mãe Noestã e o sacerdote Ezequiel. O rei com sua
gente permaneceu junto à corte da Babilônia. Nabucodonosor, porém,
reassentou o maior contingente dos reféns junto aos rios Cobar e Tel Abib
(Sl 137,1; Ez 1,3; 3,15).
Em 588 a.C., o rei Sedecias suspende o pagamento de tributos à
Babilônia. Em 586 a.C., depois de 1 ano e meio de cerco, os oficiais de
Nabucodonosor conquistam e incendeiam Jerusalém. Foi o fim do Reino
de Judá. O rei Sedecias foi preso e levado com o segundo grupo de
deportados para a Babilônia (2Rs 25,11). Certamente foi reassentado jun
to aos expatriados de 597 a.C. Os deportados da primeira como da se
gunda leva foram basicamente moradores de Jerusalém. Do interior, poucos
foram atingidos.
Em 582 a.C., quando houve uma conspiração contra o Império
Babilônio que culminara no assassinato do governador Godolias, foi leva
do um terceiro grupo (Jr 52,28-30).
A intenção fundamental dessa estratégia de dominação era eliminar
qualquer tentativa de resistência, suprimindo a identidade nacional do povo.
Daí a razão de levarem para o cativeiro especialmente aqueles que tinham
maior influência sobre o povo e que resistiam mais à opressão estrangeira.
Geralmente, levavam como reféns o rei e sua família, os nobres, os pro
prietários de terra, os artesãos especializados, os chefes militares e os sa
cerdotes.
Durante o exílio, podemos distinguir três grupos:
* Como os números na Bíblia são imprecisos, estima-se que menos
de 15 mil pessoas foram levadas para a Babilônia.
12
* Em tomo de 100 mil ficaram nas terras de Judá.
* Muitas pessoas fugiram para estados vizinhos, inclusive para o Egi
to, onde chegaram a construir um templo na colônia judaica de Elefantina.
Segundo Jr 44, passaram também a cultuar divindades egípcias.
Em 539, chegou ao fim o Império Babilônico. Foi conquistado
pelo exército persa, comandado pelo rei Ciro. Adiante, voltaremos à der
rota da Babilônia para a Pérsia.
13
Exílio, um divisor de águas
O período do exílio durou poucos anos se comparado com toda a
história de Israel. Considerando seu início a partir da primeira deportação
em 597 a.C. e o final por ocasião da vitória de Ciro sobre os babilônios
em 539 a.C., a duração foi de 58 anos. Se considerarmos a queda de
Jerusalém em 586 a.C. como a data do seu início, então sua duração foi de
47 anos.
O exílio marcou profundamente a vida do povo, tanto dos rema
nescentes em Judá como dos expatriados. Influiu também profundamen
te a releitura e a redação da história e das antigas tradições. As marcas
foram tão profundas que esse período pode ser considerado um divisor
de águas na história de Israel. Fala-se em “antes do exílio” ou em “depois
do exílio”.
Foram muitas mudanças na história, na religião e na teologia. Foi
uma reviravolta completa. Foram perdidos os principais referenciais que
davam identidade nacional aos judaítas: o estado, o rei, a terra, o templo, a
cidade santa.
14
Judá formava uma nação, Não havia mais um É possível que aJudeia tenha
um Estcdo. Estado independente, feitoparte daprovínciapersa
mas apenas uma comuni da Samaria. Mais tarde, ela
dade étnica desintegrada e mesma se tomariaprovíncia
dispersa em meio a um persa. Nem todos
império multicultural. voltaram da dispersão.
A tó/ropertencia aos A terra passou para os Os persas se adonaram da
judeus. babilônios. terra e cobravam tributos.
Aprofecia cobrava A profecia animava o A profecia motivava a
fidelidade dos reis àlei de povo, renovando sua reconstrução do povo.
Deus, denunciava as esperança.
injustiças e organizava a
resistência popular.
Havia capital com Jerusalém estava em ruínas, Aos poucos, a cidade foi
palácios. os palácios foram queima reconstruída e repovoada.
dos, os muros derrubados.
0 templo, a arca de Deus e o 0 templo foi incendiado, o Altar e templo foram
altar de sacrifícios eram o altar demolido. Não havia reconstruídos. Há nova
centro do culto a YHWH. mais oferta de sacrifícios. mente oferta de sacrifícios.
15
de mulher e com imagens tiradas da experiência das mulheres, tenha aqui
suas raízes.
Outro foi o destino das mulheres que foram deportadas. Se amar
ga foi a sorte dos homens, mais amarga e sofrida foi a situação das mulhe
res que ficaram expostas a inúmeras formas de desmando e abuso. Outro
fator foi que, lá na Babilônia, os mesmos sacerdotes, que antes controla
vam o templo, continuavam na liderança das comunidades cativas. Mas
isso não impediu que, entre as mulheres expatriadas, houvesse resistência
contra a tradição patriarcal, criando novas relações de gênero e elaboran
do um novo conceito de YHWH, como veremos adiante ao estudarmos
a profecia do movimento de Isaías entre os deportados.
Será que hoje nós não cometemos o mesmo erro? Sabemos que
abusamos da velocidade no trânsito. Sabemos que o crime organizado
é um grave problema. Sabemos que estamos destruindo o planeta. Sa
bemos que o atual modelo de sociedade hegemônico no país e no
mundo é excludente.
E o que nós fazemos diante disso? Vamos nos mobilizar somente
quando um parente nosso for vítima de acidente ou do crime organiza
do? Vamos tentar salvar o planeta somente quando não houver mais
17
água potável, ar respirável, ou quando não houver mais florestas ou
quando a camada de ozônio já não existir mais? Vamos apoiar ou cons
truir uma nova forma de convivência e do exercício do poder na
sociedade somente depois que todos estivermos desempregados, mo
rando em favelas, passando fome, sem assistência social, sem segurança
ou no mundo das drogas?
A experiência do exílio nos leva a refletirmos sobre estas e dutras
questões. Nos leva não somente a refletir, mas a tomar atitudes que
evitem um próximo “exílio”, uma próxima catástrofe para o mundo,
para a humanidade, para a vida. O destino do mundo está em nossas
mãos. Seu futuro depende de nossa postura, de nosso agir ou de nossa
omissão diante dos graves problemas que estão levando o mundo a
um novo “exílio”.
19
causa a luta entre as grandes potências da época e a política equivocada de
alianças dos monarcas de Jerusalém nesta guerra entre impérios. Reco
mendamos que você releia o item “Por que Judá foi destruído?” nas pági
nas 153 e 154 do volume anterior.
Sinagoga
Você já pôde perceber o grande significado que o exílio represen
tou para Israel. Convém lembrar mais um elemento. Provavelmente, foi
no cativeiro que apareceu pela primeira vez a sinagoga como espaço que
substituiu o templo agora em ruínas. Porém, não como lugar de sacrifí
cios, mas como lugar de oração, de instrução na lei de Deus, de reflexão
das Escrituras, da Palavra.
Quando não há mais trono, nem altar, nem templo, valonza-se a
Palavra. E o início do que se chamará de “judaísmo” depois do exílio. E
um modelo de vida bem diferente daquele que eravivenciado em Jerusa
lém antes da queda. Durante o exílio, a Palavra estava no centro da vida do
povo. Na reflexão das Escrituras, a lei tinha um destaque especial. Eze
quiel, por exemplo, faz referências à observância dos mandamentos de
Deus (Ez 11,20; 44,24). Mais tarde, como veremos, Esdras dará à fé ju
daica uma estrutura bem definida. Centralizada na observância da lei, a
comunidade judaica pôde manter-se unida, mesmo dispersa por todo o
mundo.
Sinagoga é uma palavra grega que significa “assembleia”, “reunião”.
Como se tornou impossível realizar o culto centralizado no templo em
ruínas, a sinagoga foi uma forma criativa encontrada para manter a fé e a
identidade judaica. Foi entre os deportados para Babilônia que terão surgi
do as primeiras sinagogas, lugares de reunião de pessoas para o culto nos
sábados.
Inicialmente, as reuniões eram realizadas em casas. Veja, por exem
plo, Ez 8,1; 14,1; 33,30-33! Aos poucos, porém, foram construídas casas
especiais para realizar as assembleias de oração e de instrução na lei, na
Palavra.
20
A vida de quem ficou em Judá
efiz era m uma colh eita m uito abundante
de vinho e fr u ta s . ” (Jr 40,12b)
21
como já vimos. Provavelmente, a dominação babilônica diminuiu em Judá
na época do exílio. Inicialmente, colocaram uma espécie de governador,
Godolias. Quando foi assassinado, não se tem notícias que o tenham subs
tituído por outro. Depois de desmilitarizar e desurbanizar Judá, e depois
de devolver aos lavradores mais pobres o controle da terra, a Babilônia
não manteve o território militarmente ocupado. Podemos concluir daí
que os camponeses foram como que retribalizados, passando a viver con
forme o que restava dos costumes igualitários dos clãs e das tribos.
22
1 Jeremias
No volume anterior, você já estudou o escritos e a atuação do
profeta Jeremias nas últimas décadas do Reino de Judá, durante a catás
trofe de 586 a.C. e mesmo nos anos seguintes à ruína. Aqui, porém, con
vém fazer uma rápida referência ao livro do profeta.
Nos primeiros anos do exílio, foi escrita boa parte de seus oráculos.
E o caso, por exemplo, dos capítulos 39-44. Eles descrevem e interpre
tam a tomada de Jerusalém e o que aconteceu em Judá e no Egito no
período posterior à queda.
Durante o exílio, os redatores finais do livro recolheram o material já
existente e o organizaram, sem deixar de fazer suas releituras e acréscimos.
2 Lamentações
“Como está solitária a cidade,
outrora tão p o p u lo sa !” (Lm 1,1)
23
Conteúdo das Lamentações
Seu conteúdo são cantos fúnebres, bem como lamentações coletivas e
individuais que se referem à destruição de Jerusalém e do santuário sobre o monte
Sião. Referem-se também às conseqüências trágicas na vida do povo, como
a fome, a sede, os assassinatos, incêndios, saques e deportações. Confira
essa situação nas seguintes citações: 1,11.20; 2,11-12.19-20; 4,4-5.9-10;
5,3-6.9-10!
Mais do que descrever a situação do campesinato, Lamentações
retrata a condição especialmente dos cidadãos que sobreviveram à des
truição de Jerusalém e das demais cidades de Judá. Como já vimos, para
o campo até houve uma sensível melhora nas condições de vida. Percebe-
se, assim, uma significativa diferença entre o projeto do governador Go
dolias e o profeta Jeremias, por um lado, e, por outro, o dos autores de
Lamentações.
Lamentações é um retrato fiel da angústia e da revolta contra Deus
desses cidadãos profundamente humilhados. Foram dias de total confu
são ainda muito próximos aos acontecimentos, quando “a fumaça e a
poeira ainda estavam no ar”. Diante da tragédia, fazem um profundo
exame de consciência. Reconhecem sua culpa. Arrependem-se e pedem
por misericórdia. Mudam seus conceitos a respeito da vida e de Deus.
Perdem tudo, menos a fé em YHWH como senhor da vida, que continua
solidário com seu povo, pronto a perdoar.
Por isso, há esperança Sião. Leia 3,24.31; 5,1! Em meio à dor,
nasce a esperança. O rosto misericordioso de Deus é redescoberto junto
com um novo significado para a vida. A esperança se fundamenta no
amor de YHWH. Confira 3,22.32!
24
ação da mulher sem marido e sem filhos era lamentável, levando-a à con
dição de excluída. Antes do casamento, era considerada propriedade do
pai. Depois, do marido. A mulher não tinha o direito à propriedade pois
ela mesma era uma propriedade. E como viúva e sem filho homem, sua
situação piorava ainda mais. Estava privada das condições básicas de so
brevivência e sem futuro. Nesse sentido, a metáfora foi aplicada aju d á e
principalmente a Sião, pois durante o exílio se encontravam privados da
capital, do santuário e da monarquia. Estavam sem futuro, como as viúvas.
A estrutura do livro
A estrutura da obra contém cinco unidades. São os cinco capítulos
do livro. Os dois primeiros junto com os dois últimos revelam a dor
coletiva. A terceira unidade expressa a dor individual diante da tragédia.
Do ponto de vista do conteúdo, Lam entações pode ser as
sim dividido:
* A dor dejerusalém humilhada: cap. 1.
* YHWH arrasa sem piedade: cap. 2.
* Esperança no meio da dor: cap. 3.
* Um novo retrato dejerusalém humilhada: cap. 4.
* Em meio à desesperança, a confiança na misericórdia de YHWH:
cap. 5.
26
dos autores de Lamentações. Daí por que se pode situar sua atuação em
meio aos remanescentes entre 585 e 580 a.C.
Antes de continuar o seu estudo, consulte algum mapa em sua Bí
blia e localize a terra dos edomitas, ao sul do Mar Morto até o Golfo de
Acaba.
27
trágica com a ruína do Estado. Nesse sentido, é compreensível o senti
mento de rancor e ressentimento, bem como a violência de suas ameaças.
Abdias alimenta um forte desejo de vingança. Confira Ab 10.15-20!
Na Bíblia, há também muitos outros textos fora da obra de Abdias
que também estão repletos de ressentimentos contra os edomitas. Você
pode conferir em sua Bíblia algumas das seguintes citações: Sl 137,7; Is
6 3 ,l-6 ;Jr 49,7-22; Lm 4,21-22; Ez 25,12-14; 35; Am 1,11-12!
Por um lado, Edom se alegrou com a queda de Jerusalém. Essa
alegria era fruto da opressão e da violência históricas impostas pelos reis
davídicos aos edomitas. Por outro lado, será que o ressentimento e o dese
jo de vingança por parte dos judaítas foi justo? Será que os edomitas
massacraram tantos judaítas como o exército do monarca Davi que “m a
tou todos os hom ens de E dom ” ? Naquela ocasião, levantou-se algu
ma voz contra o sanguinário rei Davi? Leia lR s 11,15!
O Livro do profeta Abdias, como outras partes da Bíblia, levan
tam um questionamento para nós hoje. Onde nos leva o desejo de vingan
ça? È claro que temos que ler esses textos no contexto da época. Mas
surge um sério desafio: que lições tirar da leitura desses textos para cons
truir uma postura de paz? Vingança e guerra marcam o patriarcalismo e
hoje vemos seus resultados. Quais as atitudes verdadeiras para uma prática
de solidariedade entre os pequenos onde a vida seja de verdade o valor
essencial?
Abdias e Jeremias
Diferente de Abdias, Jeremias se encontrava mais próximo do cam
pesinato retribalizado. Já os deuteronomistas, autores e revisores daOHD,
se identificavam mais com o “povo da terra”. Abdias, porém, se asseme
lhava mais aos autores de Lamentações, vinculados às tradições de Jerusa
lém e do templo.
Apesar de Ab 1-4 retomar J r 49,14-16, há diferenças fundamentais
entre os dois profetas.
* Diferente de Jeremias, Abdias não considera a ruína de Jerusalém
um castigo de Deus. Compare, por exemplo, Ab 16 com Jr 26,9!
* Enquanto Abdias anuncia um futuro marcado por conquistas a
serem feitas também nas terras de Edom (v. 17.19-20) e a restauração do
28
monte Sião (w. 17.21), Jeremias aposta na conversão. Não, porém, na
restauração de Sião. Pelo contrário, anuncia seu fim.
A esperança de Abdias
A teologia presente na obra de Abdias revela um Deus solidário
com seu povo. Sua presença é libertadora. Diferente de Edom que mu
dou de posição ao debandar para o lado dos babilônios, YHWH é fiel e
não muda de lado.
Embora Abdias anuncie o reinado, não é à dinastia de Davi que
se refere. Seu projeto retoma o Reinado de Deus. Este reino será liber
tador. O poder será exercido por YHWH a partir do monte Sião.
Releia os w . 17.21!
A obra de Abdias
A obra de Abdias é o menor escrito do Primeiro Testamento. Con
tém apenas 21 versículos. Leia agora todo livro do profeta, conforme a
seguinte proposta de divisão:
* Título: 1
* Sentença contra Edom: 2-10
* Os motivos do ressentimento: 11-14
* O dia de YHWH
—Para as nações: 15-16
—Para Edom e libertação de Judá: 17-21.
29
4 Releitura da História: OHD
30
Ao se colocar diante dessa formulação durante o exílio, poder-se-ia
ler o reinado como a época que corresponde ao pecado e o exílio ao castigo.
A conversão e a libertação ainda estariam por acontecer. Essa interpreta
ção da OHD seria, portanto, um convite aos exilados a reconhecerem sua
infidelidade e se converter novamente ao Deus da vida e da liberdade, da
justiça e da partilha, a fim de terem esperança numa nova libertação.
31
do Dt, Js, Jz, l-2Sm e l-2Rs. É possível que ainda tenha havido um ou
outro acréscimo posterior. Mas terão sido insignificantes.
A primeira edição feita na época de Josias teve forte marca propa-
gandística em favor da reforma político-religiosa, com a intenção de res
taurar o antigo reino davídico. Era um momento de otimismo e euforia
nacional com ares imperialistas. Diferente foi com a edição final durante o
exílio. Essa edição da OHD teve um tom pessimista, limitando-se a justi
ficar a tragédia de 586 a.C., quando todas as esperanças haviam desa
parecido. Não havia mais condições de voltar aos tempos gloriosos
de Davi e Salomão. Restava, então, justificar a catástrofe como castigo
de Deus por causa da infidelidade e tirar as últim as lições diante de
tudo o que acontecera.
5 Releitura da profecia
32
mados aqueles que ousassem questionar a total submissão ao mercado
global? Foram ridicularizados pelos “teólogos” dos senhores do mun
do como “retrógrados”, “jurássicos”, “contrários ao progresso”,
“agentes do atraso”, etc. Você lembra disso?
Porém, depois da ruína da Argentina no final de 2001, esses mes
mos acusadores têm que reconhecer: “Eles tinham razão! Por que
não os escutamos antes?” Por isso, neste momento histórico, nossas
críticas e propostas ganharam mais autoridade. Há mais condições para
se criar uma nova cultura. Uma cultura de globalização da solidarieda
de, da paz, da democracia, do acesso de todas as pessoas aos bens
básicos à vida. Um novo Pentecostes está sendo gestado em nível de
mundo. E nós somos agentes ativos desse processo, fazendo história,
fazendo o projeto de Deus acontecer na trajetória humana.
33
As ameaças dos profetas contra o Estado, os monarcas, a capital e o
templo haviam se realizado. Por um lado, isso lhes deu credibilidade. Por ou
tro, como o povo estava desolado, foi necessário animá-lo novamente. Por
isso, durante o exílio, foram acrescentadas promessas de restauração, passa
gens que tinham em vista a esperança, a utopia. Veja, por exemplo, Is 35.
34
A vida de quem foi deportado para a Babilônia
“Ju n to aos rio s da 'Babilônia,
sen ta m o-n os a ch o ra r, lem b ra dos de S iã o.” (Sl 137,1)
Antes de mais nada, leia todo o Sl 137, pois ele retrata a situação de
opressão e desolação dos deportados.
Além do que já foi dito acima sobre a situação dos expatriados,
você j á leu o item “O exílio na Babilônia” nas páginas 81 a 84 do primeiro
volume desta série.
35
* A celebração da Palavra substituiu o sacrifício que antes era central
no culto do templo.
* Apesar do contexto de desesperança, pois haviam perdido suas
principais referências (trono, cidade santa, terra, templo, arca, altar de sa
crifícios, liberdade política e religiosa), cultivavam a esperança do retorno.
* Humilhados, passaram por um processo de conversão. Muitos
conceitos teológicos mudaram. A crise exigiu uma nova compreensão da
vida e de Deus.
A decadência da Babilônia
Em 556 a.C., Nabônides assumiu como rei da Babilônia. Em seu
reinado, começou a decadência do império. Entre as medidas impopula
res que tomou está a substituição do Deus principal dos babilônios. No
lugar do Deus Marduc, representado pelo sol, colocou a Deusa Sin, re
presentada pela Lua, como maior divindade, centralizando seu culto na
capital. A população babilônia ficou revoltada com essa atitude do rei.
Naquela sociedade em que se cultuavam várias divindades, formu
lam-se pela primeira vez em Israel reflexões claras sobre o monoteísmo e
36
a proibição de imagens como representação de Deus. Isso significa que
muitos deportados se viram tentados a aderir a divindades mesopotâmi-
cas. Daí a insistência na unicidade de YHWH. Leia
atentamente Is 43,8-13! Também Gn 1,1-2,4a "Eu e só eu
sou YHWH
polemiza com as divindades astrais cultuadas no
e fora de mim
império Babilônico.
não há libertador."
Durante seus últimos 10 anos de reinado,
(Is 43,1 1)
Nabômdes foi morar numa cidade da Arábia,
deixando seu filho Baltazar governando a Babilônia.
Nessa época, um novo poder surge no horizonte. O rei Ciro vem
subindo do sudeste da Babilônia. Ciro reinou sobre a Pérsia de 555 a 529
a.C. Em 555 a.C., libertou a Pérsia da dominação dos medos ao norte. A
partir de 549 a.C., passou a dominar os medos, e a Lídia a partir de 547
a.C. Anos mais tarde, Ciro marchou contra a Babilônia.
E nesse contexto do avanço dos persas que deve ser lida a obra do
2° Isaías (40-55). Nela podemos ler que os deportados viam em Ciro uma
esperança de libertação. Chegam a aclamá-lo de “pastor”, “ungido/mes
sias” e “amado” de YHWH (44,28; 45,1; 48,14). Não deixe de conferir!
Leia ainda Is 41,1-7!
Em 539 a.C., Ciro entrou triunfalmente na capital do império, sen
do aclamado pela própria população babilônia. Dessa forma, pôs fim a
quase um século de domínio da Babilônia no Oriente Médio. Ao conquis
tar a Babilônia, Ciro devolveu aos povos conquistados os ídolos que Na-
bucodonosor havia levado para a capital do seu império. Leia Esd 5,14!
Também restabeleceu o culto a Marduc.
Em 538 a.C., Ciro permitiu o retorno aos judeus deportados, rea
lizando seu sonho de regresso ajerusalém (Esd 1,1-11). Ao longo das
décadas seguintes, boa parte voltou. Muita gente, porém, preferiu não
voltar, uma vez que já haviam lançado raízes na Babilônia, onde forma
ram um importante centro do Judaísmo nos séculos seguintes. A época
do exílio, portanto, durou até 538 a.C. No mesmo ano, o primeiro grupo
que retornou à sua pátria chegou às ruínas de Jerusalém e logo o altar do
templo foi reconstruído (Esd 3,2-3). Terminavam os “50” anos de desterro.
37
Literatura bíblica na Babilônia
“ E difica, YHW H, a Jeru sa lém ,
con grega os d eportad os de Israel.
E le con sola os corações esm agados
e cura as su a s fe r id a s .” (Sl 147,2-3)
38
seus colegas deportados, terá passado por uma profunda crise de fé, por
um processo de conversão, uma vez que situavam a ação de YHWH em
Sião.
Ezequiel atuou em meio aos cativos na Babilônia, onde foi profeta
da primeira geração de deportados. Não foi somente o primeiro profeta
entre os expatriados, mas foi também o primeiro profeta fo ra da terra da
promessa. Essa é uma novidade que merece nossa atenção, porque um sa
cerdote, apegado à morada de Deus no templo, conseguiu dar um passo
impressionante. Percebeu apresença de YHWH em meio aos reféns na Babilônia,
espaço de poder das divindades mesopotâmicas. Ezequiel descobriu que
YHWH era solidário com prisioneiros de guerra no centro do império
opressor. Assim como descreve simbolicamente a saída de YHWH do
templo e de Jerusalém (10-11), transferindo-se para aCaldeia, região sul
da Babilônia, Ezequiel igualmente relata o retorno de Deus ao templo que
seria reconstruído (43,1-12).
Ezequiel não fez sozinho essas descobertas. Ele coordenava um
grupo de lideranças que buscavam formas de refletir com os deportados
sobre sua responsabilidade naquele contexto e orientá-los a levantarem a
cabeça e olhar em frente na busca de um novo projeto.
Por um lado, essa experiência teológica de Ezequiel foi fundamen
tal para a vida dos deportados. Por outro, analisando na perspectiva dos
remanescentes, pode-se dizer que o grupo representado por Ezequiel des
prezou os que ficaram em Judá, pois faz questão de dizer que Deus os
deixou e foi junto com os deportados, que se consideravam o verdadeiro
Israel. Na teologia das comunidades de Ezequiel, permanece a ideia da
presença de YHWH presa a um único lugar. Ainda não é uma compreen
são da presença universal de Deus. Nesse sentido, a conversão deixava
muito a desejar. Foi como que “puxar a brasa para seu assado”. Essa
análise se confirma, pois, uma vez de volta a Jerusalém no pós-exílio,
YHWH estará novamente no templo e só no templo. E pior. Muito mais
separado e hierarquizado do que antes, como veremos adiante.
39
Seus principais destinatários, portanto, foram os que se encontravam junto
com ele na Babilônia. Com eles refletiu, por um lado, sobre sua responsa
bilidade bem como das autoridades de Jerusalém diante do exílio. Por
outro, consolou seus companheiros de infortúnio, anunciando-lhes uma
futura libertação.
O primeiro período da profecia de Ezequiel pode ser situado entre
sua vocação em 593 a.C. e a ruína de Jerusalém em 586 a.C. Correspon
dem a esse período os capítulos 1 a 24. Depois de narrar sua vocação nos
caps. 1-3, Ezequiel apresenta o grande julgamento de YHWH sobre o
Estado de Judá, sobre Jerusalém e o templo, bem como sobre as autori
dades ainda instaladas sobre o monte Sião. O tema dominante desses ca
pítulos é ameaça de castigo.
O segundo momento na profecia de Ezequiel situa-se entre a queda
da capital e 571 a.C., última data citada em seu livro (Ez 29,17).
A tragédia de 586 a.C. marca uma nova etapa na história da profe
cia. A partir de agora o movimento profético intensifica o anúncio de
esperança e de consolo. Já pudemos perceber isso acima, quando fizemos
referência às releituras na profecia durante o exílio.
Por um lado, Ezequiel proferiu oráculos contra as nações. YHWH
julga Amon, Moab, Edom, a Filisteia, a Fenícia e o Egito (25-32; 35). E
interessante notar que Ezequiel não faz críticas à Babilônia. E provável que
isso se deve ao fato de considerar os babilônios como instrumento de
Deus para castigar Israel. Nisso concorda com Jeremias (Jr 25,9; 27,6).
Confira em sua Bíblia as causas para esse julgamento das nações:
* porque se alegraram com a ruína de Judá (25,3.8; 26,2),
* porque se vingaram de Judá (25,12.15; 35,5) e
* porque o Egito não foi capaz de ajudar Judá quando precisava de
seu apoio para se defender dos babilônios (29,6-7).
Por outro lado, em meio à dor, o profeta não perdeu a esperança e
ajudou suas comunidades a pensar num projeto de um novo futuro. O
material literário que se refere ao projeto de restauração para o povo e de
reconstrução do templo e de Jerusalém se encontra nos capítulos 33 a 48.
40
Conteúdos centrais
Nos próximos itens, passaremos a analisar os conteúdos centrais da
profecia de Ezequiel. O primeiro é a identificação da presença de YHWH
entre os deportados em terra estrangeira. Um segundo assunto importante são
as ameaças de destruição para Judá, Jerusalém e o templo. E um terceiro tema
fundamental para Ezequiel é seu projeto de restauração para Israel e Judá.
41
Jerusalém e o templo, a ação de Deus era somente ameaça de destruição.
Os caps. 4-5 são dedicados às ameaças contra Jerusalém. Os caps. 8-11
referem-se ao desmantelamento do templo. Quanto ao fim do Estado,
você pode ler nos caps. 17 ou 20.
Ao fazer uma nova experiência de Deus, Ezequiel passou a integrar
o movimento profético que, no Reino de Judá, já existia desde o profeta
Isaías. Rompeu com seus antigos amigos de Jerusalém, sendo-lhes muito
crítico. Veja, por exemplo, em Ez 13, o que ele diz dos seus antigos colegas
de trabalho no templo!
"O país está cheio Idolatria e injustiça são dois temas cen
de crimes, trais na crítica de Ezequiel. Para exemplificar
a cidade está cheia os motivos com que justificou suas ameaças e
de violência." denúncias na última década do reinado, pro
(Ez 7,23) pomos que você leia agora Ez 22, procuran
do identificar:
* A violência cometida pelas autoridades.
* As vítimas que sofrem a opressão.
* As autoridades que oprimem.
* A posição de Deus e do profeta diante dos crimes de Jerusalém.
* A solução proposta diante da idolatria e da injustiça.
No volume anterior, já havíamos falado de que Ezequiel não con
cordava com Jeremias, quando este colaborou com o governador Godo-
lias na partilha da terra, antes pertencente à elite deportada, para os cam
poneses pobres (2Rs 25,12; Jr 39,10). Em Ez 33,23-29, você pode ler
como Ezequiel faz ameaças duras aos remanescentes em Judá.
Ao ameaçar também o campesinato com o total aniquilamento,
Ezequiel não faz diferença entre as classes dirigentes de Jerusalém e a maio
ria do povo sofrido no campo. Diferente foi a postura de Jeremias em
relação aos desterrados. Foi mais compreensivo com eles. Embora com
preendesse que YHWH continuava fazendo especialmente história com
os remanescentes nas terras de Judá, não chegou a excluir os expatriados
da história do seu povo. Apenas alertou-os para se prepararem para um
longo exílio (Jr 29,4-7).
Essa postura exclusivista e excludente do grupo de Ezequiel, isto é,
a pretensão de ser o único e verdadeiro Israel, se impôs no pós-exílio.
42
Entre os repatriados depois de 539 a.C., foi justamente esse grupo que
assumiu a liderança na restauração da vida na Judeia. Mais tarde, Neemias
e Esdras assumem com radicalidade esse projeto exclusivista de Ezequiel,
trazendo conseqüências desastrosas para a vida do povo, especialmente os
pobres e as mulheres, como ainda veremos.
Convém anotar aqui que Ezequiel, especialmente por sua origem
sacerdotal, não conseguiu superar a cultura patriarcal de sua época, marca
da por tabus e pela discriminação da mulher. Ezequiel tem uma postura
de desprezo e de inferiorização em relação às mulheres. Exemplos disso
são as repetidas parábolas de mulheres “infiéis” e prostitutas (16; 23), a
afirmação de que as mulheres menstruadas são impuras (36,17 —Compa
re com Lv 15,19-27!), bem como a polêmica contra as profetisas (13,17ss).
Considera também as mulheres como propriedade de seus maridos
(18,6.11.15).
43
Principais ênfases do projeto de restauração
O conteúdo da proposta de reconstrução tem como principal ên
fase a terra de Israel. Ezequiel retoma um dos conteúdos prediletos de toda
a história de Israel. Com saudades de sua pátria e de suas terras, os depor
tados sonham com a volta e a retomada da terra. Para exemplificar leia
34,13; 36,28; 37,14!
Embora Ezequiel proponha a partilha da terra (47,13-48,29) para
camponeses livres e retribalizados (45,7-8; 46,18), a colheita estará presa
através da tributação tanto ao rei (45,13-16) como ao templo (44,30-31).
Um segundo acento é o novo êxodo. Como o antigo Exodo, o novo
também terá a terra de Israel como destino. Para lá serão reconduzidos os
expatriados. Não serão somente os desterrados na Babilônia, mas todos
os judeus dispersos que haviam fugido ou sido levados como reféns de
guerra. Confira 20,34.42; 36,24; 37,12; 46,18!
Os repatriados deverão ser puros, pois voltarão a uma terra pura e
deverão manter puro o templo. E ponto central no projeto do profeta e
sacerdote Ezequiel cultivar a santidade das pessoas, da terra e do templo.
Não deixe de conferir Ez 36,25.33; 37,23! Aliás, Ezequiel considera que
também as impurezas que contaminaram a terra de Judá foram a causa do
desastre de Jerusalém. LeiaE z 36,16-18! Voltaremos logo adiante a esse
assunto.
A terceira ênfase do projeto de restauração dos deportados é a
forma de organização na terra santa. Dois aspectos se destacam na proposta
de reorganização da vida dos repatriados: por um lado, um novo rei de um
estado unificado e autônomo e, por outro, um nom templo sob o controle dos sacerdotes.
44
Sintetizemos as principais características do novo estado sob o co
mando de um rei. Não deixe de ler as citações abaixo!
* O novo rei será da dinastia de Davi: 34,23-24; 37,24.
* Ele será justo e promotor da paz e da liberdade: 34,16.25-31.
* Reumficará novamente o Reino do Sul e o do Norte: 37,15-28.
* Esse novo reino será o “umbigo (centro) da terra”: 38,12.
* Renovará a aliança: 37,23-25.
* Reconstruirá o templo e promoverá o culto: 37,26-28.
* Estará subordinado ao templo: 43,7-9.
* Terá direito a cobrar tributos, mas terá também deveres: 45,9-46,18.
* Embora valorize o campo (36,8.24.29-30), dará ênfase à cidade
(36,33-38; 48,30-35), onde será reconstruído o templo.
45
* E o centro de tudo, o lugar sacrossanto e puro por excelência:
43,12; 44,23.
* É a morada de YHWH no meio de seu povo: 37,26-28; 43,7-9.
* Está acima dos reis davídicos (43,7-9) e sob o controle dos sacer
dotes descendentes de Sadoc (44,15-16).
* Continua excluindo estrangeiros incircuncisos (44,9) e mulheres.
* Continua reduzindo os sacerdotes da linhagem de Levi a uma
segunda classe tal como já fizera a reforma de Josias. Podiam apenas fazer
os “serviços gerais” nas dependências do santuário, privilegiando os sacer
dotes sadoquitas. Compare 2Rs 23,8-9 com Ez 44,10-14! Somente os
sacerdotes da linhagem de Sadoc podiam oferecer sacrifícios e dirigir o
culto. E tudo isso em estado de total pureza. Não deixe de ler 44,17-27!
* Institui o sistema do puro e do impuro, do sagrado e do profano:
44,23.
* Limita os direitos do rei: 45,9-46,18.
* Sua missão é ser fonte de vida: 47,1-12.
* E o centro da terra repartida, inclusive para estrangeiros residen
tes entre os judeus: 47,13-48,7; 48,23-29.
* E também o centro da cidade de Jerusalém (48,8-22), abertapara
todas as tribos (48,30-34) e cujo nome será “YHWH está lá” (48,35).
46
Ao falar de sua utopia, de seu projeto de futuro, Ezequiel certa
mente estava bem intencionado e preocupado com a situação de todos os
grupos deportados. Seu plano, contudo, traz as marcas de um sacerdote
que sempre esteve fortemente vinculado ao templo de Jerusalém e ao
reinado. Senão vejamos.
Por um lado, sua proposta retoma questões que eram pilares anti-
i’,<>s da história, especialmente da monarquia instalada em Jerusalém. Pila
res que no exílio caíram em ruínas. É, por exemplo, o caso do rei, do
templo, da terra da promessa. Nesse sentido, o projeto de Ezequiel pro
põe uma volta às velhas instituições, uma reconstrução das mesmas estru
turas do passado. Olhando o plano de Ezequiel sob esse ângulo, ele faz
parte do projeto dos grupos que antes foram as classes dirigentes em Sião.
Por outro lado, Ezequiel promete aos deportados uma retomada
tia terra. Já vimos que ele fez ameaças de aniquilamento para os remanes
centes em Judá. Portanto, o novo êxodo que anuncia aos desterrados,
supõe que o campesinato que continuava nas terras deveria dar lugar aos
repatriados. Não estão, pois, incluídos no novo projeto. Ezequiel não so
lucionou essa problemática. Seu projeto está na perspectiva dos deporta
dos. Por isso, tem os limites de seu ponto de vista, visto somente sob o
enfoque de quem se encontrava no cativeiro.
Na medida em que passa da teoria para a prática, a proposta de
concretização de sua utopia não vai muito além do que existira em Judá
antes da catástrofe de 586 a.C. Ezequiel propõe a restauração de velhas
estruturas, porém, com espírito novo. Para os círculos de sacerdotes des
terrados, era possível colocar vinho novo em odres velhos e retalhos de
pano novo em roupa velha. A experiência histórica, porém, mostrou que
isso não é possível. Pelo contrário, mostrou que um projeto novo em
estruturas excludentes acaba sendo engessado e manipulado pelos vícios do
sistema antigo. E Jesus aprendeu essa lição, £jJão deixe de ler Mc 2,21-22!
E hoje, diante da situação de exílio que em vive o povo, qual é a
esperança que nós lhe anunciamos? Nosso projeto visa a ajudá-lo a ser
protagonista de sua própria caminhada? Ou oferecemos uma solução que
não passa de uma maquiagem do velho sistema? Como a religião pode
ajudar no resgate da identidade das pessoas e povos? Nossas comunidades
cumprem sua missão de ser fontes de vida? É preciso mudar algo? O quê?
47
A obra de Ezequiel
É provável que o Livro de Ezequiel, como o temos hoje, não seja
de um autor só. Até é possível que os autores dos caps. 1-32 não sejam os
mesmos de 33-48. Pode ser que 1-32 sejam denúncias de círculos em
continuidade ao movimento profético pré-exílico, uma vez que suas de
núncias são muito parecidas. Além disso, não é tão simples que um sacer
dote, que sempre tinha as instituições de Sião como a razão de sua vida,
seja tão duro nas suas críticas aos reis, aos sacerdotes, aos profetas da
corte, ajerusalém e ao próprio templo. Também causa estranheza que, a
partir do cap. 33, se anuncie a restauração de tudo que fora tão duramente
condenado nos capítulos anteriores.
Certamente, os redatores finais faziam parte de círculos de sacer
dotes deportados que Ezequiel havia liderado. E possível que tenham re-
elaborado os escritos contidos nos caps. 1-32 e integrado no texto final,
quando acrescentaram ainda os caps. 40-48. As repetições confirmam essa
possibilidade (3,17-21 = 33,7-9; 18,25-29 = 33,17-20; 11,6-21 = 36,16-28).
Ao fazerem a edição final, organizaram o livro da forma que segue.
A primeira parte do livro corresponde à época anterior à destrui
ção de Jerusalém. E a fase da denúncia. Os oráculos de condenação são
dirigidos aos deportados e às autoridades que ainda governavam em Judá.
Vocação (1-3)
- Missão que nasce da experiência de Deus (1)
- Conteúdo da missão (2-3)
YHWH abandona Judá e Jerusalém e julga sua corrupção (4-24)
- O exílio terá fim (4)
- Autodestruição de Jerusalém (5)
- A idolatria gera e nutre a injustiça (6)
- O fim de Judá e de Jerusalém (7)
- A ruína do templo e seu abandono (8-11)
- O exílio é inevitável (12)
- Crítica à profecia que desnorteia o povo (13)
- YHWH não responderá mais (14)
-Jerusalém é uma videira inútil (15)
- A infidelidade de Jerusalém (16)
48
- Egito e Babilônia: as duas águias (17)
- Cada um é responsável por seus atos (18)
- Lamentação sobre os reis de Judá (19)
- O exílio não é definitivo (20)
- A culpa é dos reis, mas as conseqüências são para todos (21)
-Jerusalém: cidade pervertida e criminosa (22)
- Samaria e Jerusalém: duas irmãs infiéis (23)
- Fogo e morte parajerusalém sanguinária (24)
A segu n d a parte do livro corresponde ao período posterior à
queda. E a fase do anúncio da esperança, da animação. Os oráculos são de
libertação dirigidos aos deportados.
YFIWH julga as nações estrangeiras (25-32; 35)
- Amon, Moab, Edom e Filisteia (25; 35)
- Fenícia e o rei de Tiro (26-28)
- Egito e o faraó (29-32)
49
Para você continuar a reflexão
Leia a visão do vale dos ossos secos em Ez 37,1-14! a) Destaque e
comente aparte que reflete a situação desoladorados deportados! b) Como
e por meio de quem os ossos revivem? c) Que luzes traz essa visão para
nossa caminhada?
50
I
51
ção do passado e a possibilidade de um novo começo. Você jápercebeu
isso ao ler 40,2. Mas veja ainda 43,18.25!
O segundo tema, que é central no 2o Isaías, é o anúncio da boa-nova
do retorno à terra da promessa. O 2oIsaías é o profeta do novo êxodo, como
já vimos acima. Se o primeiro foi a libertação da opressão do faraó, o
segundo liberta das divindades usadas pelos babilônios para legitimar a
dominação sobre os cativos.
O novo êxodo será espetacular e su
A glória de Deus perior ao primeiro. As comunidades expa
será completa, triadas terão atenção preferencial, mas o novo
somente quando êxodo não será somente para os deportados
os oprimidos na Babilônia. Será também para outras co
alcançarem vida munidades dispersas pelo mundo de então.
plena em liberdade. O novo êxodo é conseqüência do perdão de
Deus. E nesse processo histórico de liberta
ção que se manifesta a glória de YHWH. E mais uma diferença com
Ezequiel, para quem a glória divina estava muito mais ligada ao santuário
de Jerusalém. Confira tudo isso em 40,3.5.11; 48,20-21; 49,12; 52,7.11-12;
55,12-13!
Um terceiro tema importante é a esperança cm Ciro, o “messias” de
YHWH. O inusitado é que o rei persa é o “ungido” de YHWH e não um
descendente de Daii. E mais uma diferença com Ezequiel. Sobre Ciro você já
leu no primeiro item deste capítulo. Jeremias já havia interpretado Na-
bucodonosor como “servo” de YHW H para aplicar o castigo a Judá
(Jr 25,9). Também o 2° Isaías interpreta a ação de Deus na história de
imperadores. O avanço de Ciro criou as condições reais para o regresso à
terra da promessa. Nesse sentido, ele é o “ungido” de YHWH para con
cretizar o projeto de Deus. Segundo a interpretação dos sinais dos tempos
feita pelo movimento profético durante a última década do exílio, o im
perador Ciro, por um lado, está a serviço do plano de Deus para trazer
libertação aos cativos. Por outro, Ciro está a serviço do reconhecimento
da universalidade do senhorio de YHWH. I^eia novamente 45,1-6!
A crítica à Babilônia é um quarto tema presente no 2oIsaías. Diferente
de Ezequiel, que não faz críticas aos babilônios, o movimento profético
de Isaías dedica à Babilônia dois capítulos inteiros (46-47). Critica a opres-
52
são dos babilônios, mas especialmente "O maravilhoso da
suas divindades. Sobre as críticas a divin espiritualidade do
dades manipuladas a serviço da domi 2° Isaías está
nação e sobre a defesa do senhorio de precisamente em
YHWH, além dos dois capítulos citados, que YHWH está
você pode ler ainda em Is 40,12-26; metido na história
41,21-29; 44,6-20. política do mundo
e de Israel."
(José Severino Croatto)
53
existência de cultos a outros Deuses e Deusas. Apenas criticam a adesão
de Israel a essas divindades, quando era infiel a YHWH e seu projeto de
fraternidade.
Em Israel, a fé num Deus único se firmou somente a partir do
exílio no século 6 a.C., quando também na Grécia e na Pérsia já havia
uma corrente de pensamento monoteísta. Não deixe de le rls 45,6-8.18!
De acordo com o 2° Isaías, não só os israelitas, mas também
outros povos, que antes acreditavam em outras divindades, podiam
aderir a YHWH. Porém, somente na medida em que buscassem a justi
ça e o direito. Leia Is 42,1-4; 45,20-25; 49,6; 51,1-8; 55,3-5!
A partir do 2° Isaías, portanto, passou-se a fazer teologia numa
perspectiva monoteísta. Isso fica bem claro, por exemplo, no último
escrito do Primeiro Testamento, o Livro da Sabedoria, que só se en
contra nas traduções católicas (Sb 13-15).
Q uais são osprincipais temas dos cânticos? Destaquemos sua missão e seu
sofrimento.
A missão do servo/povo sofredor é universal. Ele está destinado a
ser luz para todos os povos.
Como naquele tempo, ainda hoje bebemos da mesma mística da
qual bebeu o 2° Isaías. Ninguém precisa esperar que as mudanças em
favor da cidadania venham dos centros financeiros ou dos senhores do
mundo. A esperança para a humanidade vem da periferia no mundo. Não
55
virá daqueles que privatizaram a riqueza, o poder, os meios de comunica
ção e o saber. Estes globalizaram a miséria, a fome, a exclusão. O servo
sofredor, os excluídos do mundo, acreditam que é possível globalizar tam
bém os direitos e meios fundamentais à vida, à dignidade. O sonho do
movimento de Isaías durante o exílio do século 6 a.C. continua alimentan
do ainda hoje a nossa teimosa resistência e esperança de que é possível,
sim, construir um outro mundo.
Confira em sua Bíblia as principais tarefas do servo/povo sofredor:
* Estabelecer o direito e a justiça entre os povos: 42,1.3-4.6.
* Não deixar morrer a esperança dos pobres e defendê-los: 42,3;
50,4.
* Ser luz para as nações: 42,6; 49,6; 51,4.
* Reconduzir Israel/Jacó a YHWH: 49,5.
* Repatriar os deportados: 49,5-6.
* Retribalizar os israelitas: 49,6.
* Resistir no sofrimento e na perseguição: 42,2; 50,5-7.
* Dar sentido ao sofrim ento que é em favor de um a causa:
52,13-53,12.
O tema do sofrimento em favor de outros e em favor de uma causa
justa é uma novidade na história da teologia de Israel. Por isso, convém
aqui abordá-lo, mesmo que resumidamente. O tema do sofrimento apa
rece nos quatro cânticos.
* No primeiro e no terceiro, o servo é um defensor de fracos e
cansados (42,2-3; 50,4).
* No segundo, ele mesmo se considera um servo inútil para a mis
são, pois se “afadigou em vão” (49,4).
* No terceiro e no quarto, ele é perseguido por outros (50,6). Mas
resiste tenazmente (50,7). Insiste em sua justiça (50,8-9). Por fim, o justo é
assassinado, oferecendo seu sofrimento por muitos, inclusive pelos assas
sinos que reconhecem sua culpa (53,4-5). Por ser justo, sua derrota foi uma
vitória, foi um martírio. Seu sofrimento tem um sentido libertador. Essa
descoberta do valor do sofrimento por causa do projeto de Deus, seria
mais tarde simbolicamente descrita por Jesus da seguinte forma: “Se o
grão de trigo cai na terra e m orre, produz m uito fruto.” (Jo 12,24).
56
E mais. Jesus declara “ felizes os que são persegu id os por causa da
ju stiça, porque deles é o Reino dos C éus” (Mt5,10).
Pode até ser que, na origem dos três primeiros cânticos, se quisesse
fazer referência a Ciro. Porém, como os temos na sua versão final, com
parando Ciro com o servo sofredor, podemos perceber algumas dife
renças significativas.
57
formando no meio do povo?
A obra do 2o Isaías
Propomos a seguinte divisão para o Livro do 2° Isaías:
* YHWH libertará seu povo (40)
* YHWH, o senhor da história, chama um libertador (41)
* O servo de YHWH, aliança do povo (42,1-12)
* De servidor surdo e cego a testemunha de YHWH (42,13-43,13)
* Libertação, novo êxodo, novo povo (43,14-44,5)
* YHWH e as outras divindades (44,6-23)
* YHWH convoca Ciro como libertador (44,24-45,13)
* Deus oculto se manifesta, libertando Israel (45,14-25)
* Israel não necessita ir para outras divindades (46)
* Lamentação sobre a Babilônia, cidade opressora (47)
58
* A última queixa contra Israel (48,1-19)
* Convite para sair da Babilônia (48,20-49,13)
* YHWH se dirige a Jerusalém, mulher (49,14-26)
* Mensagem a incrédulos e perseguidos (50)
* Escutai, a libertação está próxima (51,1-11)
* YHWH converte sua ira em consolação (51,12-23)
* Regresso do exílio é iminente (52,1-12)
* Servo de YHWH: memória do sofrimento de Israel (52,13-53,12)
* Novas promessas para Sião (54)
* Ultimas promessas (55)
59
Nesse processo de redação e revisão dos textos bíblicos, um novo
grupo passa a fazer suas próprias reelaborações. E a elite sacerdotal de Jeru
salém. Suas primeiras releituras podem ser situadas nas duas últimas déca
das da dinastia davídica, depois da morte trágica do rei Josias, isto é, entre
609 e 586 a.C. Na época do exílio, a grande maioria dos sacerdotes que
sobreviveu à ruína de Jerusalém se encontrava entre os deportados. Aí
cumpriram um papel importante para reanimar os reféns humilhados e
em crise de fé. Já vimos como isso acon
teceu na atuação do sacerdote-profeta Ezequiel.
Como veremos logo adiante, ainda outros textos e releituras, hoje
dispersos no Pentateuco, tiveram sua origem entre os sacerdotes expatria
dos. E o que se chama de reinterpretação sacerdotal da história de Israel.
Os sacerdotes desterrados pegaram escritos já existentes e os retocaram,
acrescentando sua visão da história do povo.
Porém, foi no período pós-exílico, que o estrato sacerdotal produ
ziu a maior quantidade de escritos. Suas reedições foram profundas, de
modo que a perspectiva sacerdotal passou a ser o fio de meada do Penta
teuco, como veremos adiante.
60
I
61
Sendo Deus santo, seu povo também deve ser santo. Ser santo é
“não fazer o que se faz no Egito... nem o que se faz em Canaã... não seguir
os seus costumes” (18,3.30). Ser santo é ser separado, ser distinto. Deus é
três vezes santo (Is 6,3), justamente por ser transcendente, absolutamente
diferente, incomparável. Porém, YHWH nos convida a participarmos de
sua santidade, a entrarmos em comunhão com Ele e a separarmo-nos de
tudo o que é profano e que não está de acordo com o seu plano, a sua
vontade. Ezequiel usava a m esm a linguagem ao falar do nome santo
(Ez 36,20.21.22; 39,7.25) e da distinção entre o profano/impuro e o san
to/ puro (Ez 22,26; 42,20; 44,23).
Esse Deus santo e totalmente outro, a quem pertence a terra, é o
Deus do Exodo. A memória do Deus do Exodo serve de moldura teo
lógica da Lei de Santidade. Não deixe de ler Lv 25,38! Mas você ainda
pode ler referências a YHWH libertador da opressão em Lv 19,34.36;
22,33; 23,43; 25,42.55; 26,12-13.45.
A fórmula típica do Exodo “Eu sou YHWH” volta a cada mo
mento ao longo do código (Lv 18,2.4.30; 19,3-4.10.25.34.36, etc.). Mais
uma vez há afinidade com a linguagem de Ezequiel (Ez 30,8.19; 32,15;
34,27; 35,4.9.15; etc.).
Num contexto em que um novo êxodo se fazia necessário, a m e
mória do antigo Exodo servia de consolação aos cativos desolados e, ao
mesmo tempo, de estímulo para lutarem por uma nova libertação.
Contudo, ao acomodarem a memória subversiva do Exodo ao
projeto do novo templo no pós-exílio, os sacerdotes engessaram sua for
ça revolucionária. A Lei de Santidade, como a temos hoje, serviu bem aos
interesses dos sacerdotes desterrados como plano de restauração das co
munidades israelitas, ao redor do templo reconstruído. As leis nela conti
das estão estreitamente relacionadas com o culto e o clero.
Uma possível divisão do Código de Santidade poderia ser:
* Respeito pelo sangue, isto é, pela vida (17).
* Respeito pela sexualidade (18).
* Um povo santo como seu Deus (19).
* Penas contra o desrespeito da sexualidade (20).
* Santidade dos sacerdotes (21).
* Alimentos sagrados (22).
62
H
63
N a Babilônia, eles não tinham mais aquele santuário. Aplicaram,
então, os critérios do puro e impuro, bem como do sagrado e profano à
vida diária, a fim de poder viver no cotidiano em permanente estado de
pureza e perfeição “diante de Deus”. Na prática, porém, essa postura
piedosa diante da vida teve conseqüências nefastas especialmente para as
mulheres. Reforçou a atitude de discriminação especialmente da mulher,
mas também de estrangeiros e de quem não observava as leis de pureza.
Como vimos, o profeta Ezequiel, ao idealizar um novo templo
para seus companheiros de desterro, colaborou na diminuição da dignida
de das mulheres. Já antes do exílio, elas não tinham acesso ao sacerdócio
ou outra função importante no templo. Agora, para manter sua pureza e
santidade diante de Deus, os sacerdotes, entre outras coisas, foram proibi
dos de casar com uma viúva ou uma divorciada. Podiam casar-se somen
te com uma virgem ou viúva de um outro sacerdote. Leia, por exemplo,
Ez 44,22-23 e Lv 21!
Essa ideia de considerar os homens mais puros que as mulheres se
materializou quando os repatriados reconstruíram o templo idealizado
por Ezequiel e fizeram um pátio especial para as mulheres com um muro
que as separava do santuário e que elas eram proibidas de ultrapassar.
No mesmo sentido, o conjunto de leis contidas em Lv 17-26 refor
ça claramente as estruturas patriarcais. Ter relações sexuais com as mulhe
res do pai (Lv 18,7-8; 20,11), do irmão (Lv 18,16) ou do tio (Lv 20,20),
não era considerado tanto um desrespeito contra as mulheres, mas uma
desonra para os “donos” dessas mulheres.
O valor do pagamento de votos no santuário também é sinal da
inferioridade da mulher na sociedade israelita. Leia Lv 27,1-7!
64
b) A circuncisão: sinal de p erten ça a Y H W H e a um povo
(G n 17)
“ C ircun cidareis a carn e do p r ep ú cio :
esse será o sin a l da aliança en tre m im e vós.” (Gn 17,11)
65
c) D ilúvio: fim da vio lên cia e restauração da ju stiça (G n 6-9)
“N oé era um hom em ju s to e ín tegro en tre os
con tem porân eos e sem pre andou com D eus.” (Gn 6,9)
A respeito de Gn 6,1-8, você pode ler no item “Gn 6-9: Deus
preserva a vida dos justos”, nas páginas 95 a 97 do volume 3 desta série.
A narrativa referente ao dilúvio, você encontra em Gn 6-9. Assim
como a temos hoje, ela é fruto de uma longa caminhada e de uma mistura
de duas tradições de épocas diferentes. A Ia edição deve ser do século 10
a.C. Quanto à 2aedição, há vários indícios que nos permitem situá-la entre
os deportados na Babilônia. Podemos perceber repetições e contradições
na narrativa, o que confirma a hipótese da junção de mais tradições. Com
pare, por exemplo, 6,20 com 7,2; 7,6 com 7,10-
11; 7,7 com 7,13!
"C aiam sobre a
Os deportados releram a antiga narrativa
Babilônia a
violência e as
que já existia. E tinham vários motnos pura isso. Pri
penas que sofri." meiro, porque, tal como num dilúvio, encontra
(Jr 51,35) vam-se numa “situação caótica” enquanto reféns
de guerra em terras estranhas. Não é por acaso
que também a narrativa da criação do mundo em sete dias inicie seu
relato, referindo-se ao caos (Gn 1,1-2). A narrativa, portanto, é um con
vite a superar essa realidade de sofrimento. É um relato de esperança para
gente desolada.
Segundo, porque a sociedade que os oprimia longe de sua terra era
igual àquela que provocou o dilúvio. O exército babilônio era muito vio
lento. O profetajeremias o registra (Jr 51,35.46). Uma das causas do dilú
vio foi justamente a “violência” dos opressores. Leia agora Gn 6,11-13!
Nesses versos, você ainda percebeu que, além da violência, a “cor
rupção” foi outra causa do dilúvio. Além disso, comparando Gn 6,5 com
Jr 51,24, você percebe que a “maldade” tanto foi causa do dilúvio quanto
prática dos babilônios. A reedição da narrativa do dilúvio visa, portanto, à
superação da violência, da corrupção e da maldade. E um projeto que
visa à justiça, à sobrevivência de quem pratica a justiça, é íntegro e anda
com Deus. Não deixe de ler Gn 6,9 e 7,1!
Um terceiro motivo é que os expatriados se encontravam numa
situação de morte, igual àqueles ossos secos no vale em Ez 37,1-14. Uma
66
nova criação e uma nova humanidade se faziam necessárias. É o que acon
tece na saída da arca. Confira em Gn 9,1-7 e compare com Gn 1,28-31!
Perceba as diferenças e semelhanças!
Voltar à “aliança” com YHWH era uma necessidade. Este é um
quarto motivo para a nova edição do relato do dilúvio entre os cativos.
Como vimos acima, Ezequiel havia criticado o abandono da aliança e
anunciado a volta à fidelidade a YHWH. E o 2° Isaías ampliou a aliança
para além dos limites do povo de Israel. Leia agora Gn 9,8-17!
Você percebeu que Deus estabelece uma aliança com toda a huma
nidade, simbolizada pelo clã de Noé. Será mera coincidência que o signi
ficado da raiz do nome Noé (consolar) seja um dos temas principais do 2°
Isaías? Ou ainda, que a superação das águas, tanto no dilúvio bem como
junto ao Mar dos Juncos no Exodo do Egito, sejam uma referência ao
novo êxodo que Ezequiel e o 2° Isaías anunciavam?
Há ainda uma quinta razão que justifica uma reelaboração da antiga
tradição do dilúvio pelos deportados. E que naquelas planícies junto aos
rios da Mesopotâmia já havia uma antiga história do dilúvio que remonta
ao 3o milênio a.C. E a “epopeia do rei Gilgamés”, encontrada em Nínive
na famosa biblioteca de Assurbanipal. Um dos objetivos desse mito era
ameaçar o povo com a calamidade do dilúvio, sempre que ele não obede
cesse ao rei, isto é, às divindades controladoras das águas superiores, aci
ma do firmamento. Era, portanto, um mito a serviço da opressão dos
imperadores dos diferentes impérios que houve naquela região.
O inusitado é que os judeus cativos na Babilônia “viraram o feitiço
contra o feiticeiro”. De uma história de opressão fizeram uma história de
libertação. De uma história para subjugar e amedrontar, fizeram um tram
polim para superar o medo das ameaças e uma alavanca para resistir e
lutar. De que forma o fizeram? Acompanhe o raciocínio! A história origi
nal do dilúvio ameaçava com o caos do dilúvio. Porém, para as comuni
dades cativas, esse dilúvio nunca viria, pois YHWH garantira que “enquan
to a terra durar, semeadura e colheita, frio e calor, verão e inverno, dia e
noite jamais hão de acabar” (Gn 8,22. Confira ainda 9,11!). Com essa
nova versão, as ameaças dos verdugos babilônios ficavam sem efeito. Caíam
no vazio. Você pôde perceber que, tal como a primeira narrativa da cria
ção (Gn 1,1-2,4a), a reedição do mito do dilúvio polemiza com as divin
67
dades babilônicas e antigos mitos mesopotâmicos.
Leia agora toda a história do dilúvio (Gn 6-9) e procure perceber
esses elementos que levantamos acima. Descubra outros e reflita sobre o
que essa narrativa tem a nos dizer hoje, enquanto pessoas, comunidades e
mundo globalizado. Será que não há necessidade de outro dilúvio como
aquele? Onde? Para “lavar” o quê? Quem está provocando o caos para a
humanidade? O que significa hoje provocar um “dilúvio” que carregue
toda forma de maldade, violência e corrupção? Como perceber a presen
ça de Deus em meio a tanta maldade?
68
I
Salmos
“ Tu, p orém , o repu dias te e o rejeita s te
e te in dign as te com o teu ungido.”
(Sl 89,39 - Almeida = 89,38)
69
no culto. Os antigos cantores do templo terão sido os primeiros responsá
veis por essa tarefa.
Entre os salmos relidos ou compostos durante o exílio, tanto em
Judá como na Babilônia, podemos encontrar os Salmos 42,43; 44; 51; 69;
70; 74; 79; 89,39-52; 137.
Na 2a parte deste volum e, farem os um a intro dução a todo o
salténo.
70
I
71
são tão radicais como as dos profetas que o precederam. Após a ruína,
porém, elabora um plano de recriação das pessoas e da vida de seu povo.
Contudo, ao propor concretamente a viabilidade de sua utopia, oferece
como solução a restauração das estruturas da monarquia davídica e do
templo, que tanto havia criticado.
Em segundo lugar, fizemos companhia com o 2° Isaías, o profeta
da segunda geração de expatriados. As profecias de Is 40-55 são fruto de
uma comunidade profética, cujas raízes estão entre os antigos cantores do
templo que haviam sido levados como reféns para a Babilônia. A partir da
experiência de perdão por parte de Deus e com a possibilidade de retor
no que o avanço de Ciro representa, os autores de Is 40-55 anunciam a
boa notícia do novo êxodo. Sua meta principal é Sião e Jerusalém. Contu
do, diferente de Ezequiel, o templo não ocupa lugar de destaque. A gran
de novidade da teologia do 2° Isaías é apresentar o sofrimento e o martí
rio por uma causa justa como vitória em favor de muitos. Insiste também
na missão universal do povo sofredor. E o que se pode ler nos cânticos
do servo sofredor.
Em terceiro lugar, acompanhamos as releituras dos deportados no
Pentateuco. Por um lado, vimos sua interferência nas tradições a respeito
das origens, especialmente na narrativa da criação do mundo em sete dias,
na 2“ edição do relato sobre o dilúvio, bem como na 2a narrativa da voca
ção de Moisés. Essas releituras têm como referência o sofrimento e as
dores das comunidades cativas. As principais reivindicações de seus auto
res, vinculados aos círculos proféticos, deuteronomistas e sacerdotais, são
o direito de prestar culto a YHWH, de descansar no sábado, de voltar à
terra, eliminando toda forma de violência e de corrupção.
Por outro lado, os círculos sacerdotais também deixaram suas marcas,
com forte preocupação pela identidade de seu povo. Idealizaram um povo
santo, separadot, diferente inclusive na came pela circuncisão Infelizmente, como
vimos e ainda haveremos de ver, o controle dos sacerdotes em torno do
templo no pós-exílio transformou essa utopia em um sistema de exclusão.
Por último, vimos algo sobre os salmos que também sofreram um
processo de reelaboração no exílio.
A segunda parte deste volume será sobre a reconstrução no perío
do persa (539-332 a.C.).
72
i
Sugestões de leitura
MESTERS, Carlos. A Missão do Pow que Sofre. Petrópolis: Vozes.
ROSSI, Luiz Alexandre Solano. Como kro U iro de Abdias. São Paulo: Paulus.
ROSSI, Luiz Alexandre Solano. Como ler o Livro de Ezequiel. São Paulo:
Paulus.
ROSSI, Luiz Alexandre Solano. Como ler o U vro das Lamentações. São Paulo:
Paulus.
SCHWANTES, Milton. Sofrimento e Esperança no Exílio. São Paulo: Paulus,
São Leopoldo: Sinodal.
73
Parte II:
Época da Dominação Persa
Introdução
74
Analisaremos ainda a redação final de coletâneas neste período, pa-
Irocinada pelos sacerdotes e levitas vinculados ao culto no templo. Referi-
mo-nos a Provérbios, ao Pentateuco, à ObraHistoriográfica Cronista (OHC = 7-
2Cr, Esd, Né) e aos Salmos.
Examinaremos também a resistência popular contra o projeto ofi
cial, representado por Neemias e o sacerdote e escriba Esdras. Nesse capí
tulo, veremos como a resistência popular contra a imposição do projeto
cxcludente do templo, que tinha o apoio do Império Persa, está expressa
em literatura de estilo sapiencial. Em seu diálogo dramático, J ó reage con
tra o dogma da retribuição, propondo a teologia da gratuidade. Entre
(>utros aspectos, Cantares é uma forte crítica à lei de pureza, especialmente
110 que se refere à exclusão da mulher. As novelas de Jonas e de Rute reagem
contra a teologia da pureza étnica. Rute ainda propõe um projeto de resga
te do direito dos pobres.
Por fim, ainda estudaremos a profecia de Joel.
Como já vimos, os textos da Bíblia não têm um único projeto, não
expressam apenas a experiência de um determinado grupo. As Escrituras
são fruto de muitas mãos. Exprimem experiências de fé de grupos varia
dos e com diferenças muitas vezes acentuadas e até opostas dentro de um
mesmo povo. Esse povo carregava na memória um projeto fraterno, ex
perimentado na época das tribos. Mas desde o início da monarquia, já
estava profundamente dividido em classes sociais diferentes. Os distintos
projetos em nível religioso são expressão dos diferentes grupos sociais em
conflito e lhes servem de fundamento e legitimação.
Nesse sentido, podemos comparar a diversidade de projetos na
Bíblia com as diferenças de nosso planeta. De um lado, a terra tem partes
difíceis para se trabalhar e se viver. São terrenos pedregosos e montanho
sos. Há ainda partes que são pantanosas ou desérticas. De outro lado, a
terra tem terrenos agradáveis para se trabalhar e se viver. São terrenos
planos e férteis. Mas todos fazem parte de nosso planeta. Assim é a Bíblia
como a temos hoje. Reflete a diversidade e, ao mesmo tempo, a ambigüi
dade da vida humana e das suas diferentes formas de viver a sua relação
com a divindade.
75
Para início de conversa
Se é possível fazer um paralelo entre os regimes militares na Amé
rica Latina e a época do exílio babilônico, faz sentido também perce
ber semelhanças entre a volta de parte dos cativos na Babilônia e o
retorno dos exilados políticos no final das ditaduras militares. Diante
de um novo momento que nosso país vive desde a redemocratiza-
ção política, pedimos-lhe que reflita sobre as questões que seguem.
1. Com o fim dos generais-presidentes, que grupos assumiram o
controle do poder? Houve de fato mudanças? Para quem? Em nível
internacional, que alterações houve no poder hegemônico?
2. Você lembra de alguns exilados que voltaram à sua pátria?
Quais? Como foram recebidos? Qual foi seu projeto político? Or
ganizaram partidos de oposição?
3. Qual foi a contribuição das Igrejas no processo de redemo-
cratização? Como se posicionam nesse período de reconstrução da
vida do povo?
4. Que outros movimentos de resistência foram tomando corpo
e se organizando? Qual foi seu projeto de reconstrução para a socieda
de? Qual foi sua base social? Houve avanços na luta por cidadania
plena?
5. Há algum acontecimento histórico novo em nossos dias que
é um sinal de esperança para nosso povo e para o mundo? Qual? Por
quê?
76
II
O Império Persa
“Para p o d erm o s p a g a r o im posto ao r e i, tivem os que tom ar
din heiro em prestado, hipotecando o sp a rreira is
e os cam pos. ” (Ne 5,4)
77
Babilônia. Decretou também a reconstrução do santuário de YHWH em
Jerusalém. Mandou devolver os ídolos que Nabucodonosor havia levado
para a capital do seu império.
E mais. Não somente financiou a construção do altar e do segundo
templo, como também patrocinou a realização dos sacrifícios diários ali
oferecidos. YHWH tornou-se, dessa forma, mais uma divindade a quem
Ciro prestava culto. Pediu inclusive que os judeus rezassem a YHWH em
favor de sua família. Leia em Esd 6,2-10, por exemplo, sobre essa nova
estratégia de dominação!
Essa nova tática dos persas é conseqüência de sua avaliação da es
tratégia de dominação dos babilônios. Ciro
"N o seu prim eiro ano percebeu que o jeito violento e desordena
de reinado, Ciro deu do de a Babilônia impor seu poder, planta
uma ordem a respeito va nos povos subjugados a semente de agi
da casa de Deus em tações e insatisfações. Partiram, então, para
Jerusalém. O templo a dominação ideológica. Nesse sentido, fo
será reconstruído." ram os persas os criadores do sistema de
(Esd 6,3) opressão ainda vigente em nossos dias.
Se, por um lado, os persas perm iti
ram a cada povo que seguisse suas tradições e seus costumes, por outro,
negavam a autonomia econômica, política e militar. O poder político per
tencia aos persas e o poder religioso, no caso dos judeus, aos sacerdotes
sadoquitas. São os sacerdotes da linhagem de Sadoc, promovida por Sa
lomão durante seu reinado. Os judeus podiam observar sua própria lei,
contanto que se submetessem ao império. Aliás, a lei dos judeus era consi
derada a lei do rei (Esd 7,26), ou seja, a lei do rei persa em Judá era a Lei
de Deus contida no primeiros cinco livros das Escrituras judaicas!
Fazendo alianças com as elites locais, os persas exerciam seu domí
nio com menos possibilidade de revoltas dos povos anexados ao império.
Patrocinando o culto, os persas conseguiam o apoio pelo menos dos sa
cerdotes locais.
Aparentemente, o Império Persa não parece tão violente quanto o
dos assírios e dos babilônios. Na prática, porém, os persas eram implacá
veis com os povos subjugados que ousassem suspender o pagamento de
tributos ou proclamar sua independência. A paz que reinava, portanto, era
78
uma paz aparente sob o controle dos “cavalos” persas, símbolo de domí
nio militar. E raum apaz fruto da injustiça. Não deixe de ler Zc 1,8.11.15!
Também não terá sido por acaso que Zorobabel e o profeta Ageu desa
pareceram misteriosamente, como veremos adiante.
79
em meio a muita pompa e mistério. Somente em ocasiões especiais apare
cia em público.
O império estava organizado em vinte grandes regiões, chamadas
satrapias. Judá e Samariapertenciam à SatrapiaTranseufrates (Esd 5,3; 8,36),
que era formada por Chipre, Síria, Fenícia e Palestina. O governador de
cada região era chamado de sátrapa (Est 8,9) e era supervisionado por um
secretário e um comandante militar. A função principal do sátrapa era,
além de manter a ordem, recolher o tributo das províncias a ele subordi
nadas, enviando uma cota anual para a capital e ficando com o restante.
Cada satrapia era dividida emprovínáas. Segundo Est 1,1, eram 127.
Cada província, por sua vez, estava subdividida em distritos. Em Ne 3 (w.
9.12.16.17.18), podemos identificar cinco distritos na província de Judá.
Convém destacar que os persas não modificaram a administração interna da
Palestina organizada pelos assírios no Norte e pelos babilônios em Judá.
O Império Persa não tinha capital fixa. Durante o ano, o rei percor
ria as capitais dos principais reinos do império: Susa (capital do Elã), Ec-
bátana (capital da Média) e Persépolis (capital do Irã). Depois da conquista
do Império Babilônico, o rei também passava um tempo em Babel ou
Babilônia.
80
Embora a cidade de Masfa seja citada como distrito em Ne 3,15.19,
t c provável que também tenha sido a capital da província até que Neemias
restaurasse as muralhas de Jerusalém a partir de 445 a.C. A partir daquele
mt >mento, o centro administrativo terá sido transferido para o monte Sião.
Ne 1,3 e 5,14-15 dão a entender que Judá já era uma província antes
mesmo que Neemias viesse da Pérsia. Confira!
Por que, então, entre outros, o governador da Samaria, Sanabalat, o
amonita Tobias e o árabe Gosem se opuseram tanto à restauração e à
transferência da capital da província parajerusalém? Por que ficaram furi
osos e proferiam insultos contra Neemias (Ne 3,33)? Por que ficaram
contrariados e ameaçaram a continuidade das obras com ataques (4,1-2)?
Por que faziam guerra psicológica, acusações e subornos (6,lss)? Mais do
que perder o controle sobre um distrito, certamente sua oposição ao pro
jeto de Neemias se deve ao fato de esses homens influentes das províncias
da redondeza terem muita ingerência no comércio praticado em tomo do
templo de Jerusalém. Tomando Jerusalém a capital da província de Judá e
tomando medidas de fortificação do templo e da cidade santa, Neemias
afastava esses estrangeiros de Sião. Consequentemente, eles perderiam seus
lucros (Ne 13,4-9). Até os sacerdotes haviam contraído parentesco com o
governador da Samaria (Ne 13,28) e de Amon (Ne 13,4).
Nesse sentido, é mais provável a hipótese de que Judá foi província
persa autônoma da Samaria desde o começo. Se Judá tivesse sido um
distrito dependente da província persa da Samaria, não seria mais lógico
que somente o governador Sanabalat oferecesse resistência à restauração
dejerusalém?
81
agropecuários que eram entregues ao templo. Os nobres tinham o contro
le sobre esse fluxo de mercadorias e de moedas. O templo passou a exer
cer a função de casa de câmbio, e centro comercial. Isso lhe oportunizou
a acumulação de riquezas e poder. Somente entendendo a importância do
templo na arrecadação de impostos pelos persas, é possível entender a razão
por que investiram tão alto em sua reconstrução e manutenção dos sacnfícios
diários (2Cr 36,23; Esd 6,3-10). Também não é por acaso que homens influ
entes nas províncias persas vizinhas de Judá, como Sanabalat, Tobias e Go-
sem, também quisessem enriquecer a partir desse mercado lucrativo.
Mas os templos não eram os únicos lugares de arrecadação de im
postos. Os persas também cobravam taxas em estradas, nas alfândegas e
portos. Ali se vistoriavam as caravanas comerciais, a fim de cobrar as taxas
correspondentes a cada mercadoria.
555-530 a.C.: Ciro, rei dos persas. Em 555 a.C., liberta a Pérsia da
dominação dos medos. Em 549 a.C., passa a dominar os me
dos. Em 547 a.C., conquista a Lídia.
539 a.C.: Ciro conquista a Babilônia. Devolve aos povos subjugados
pelos babilônios os ídolos que Nabucodonosor havia levado
para a Babilônia (Esd 5,14). Restabelece o culto a Marduc.
538 a.C.: Ciro decreta o retorno dos exilados, sob a liderança de
Sasabassar (Esd 1,1-11), e o altar do templo é reconstruído no
mesmo ano (Esd 3,2-3). Os fundamentos do segundo tem
plo são lançados no ano seguinte (Esd 3,8; 5,16).
82
530-522 a.C.: Rei Cambises. Em 525 a.C., conquista o Egito.
522-486 a.C.: Rei Dano I.
520-515 a.C.: Reconstrução do templo sob a direção do governador
Z orobabele do Sumo-sacerdote Josué (Esd 4,24-6,18). Ativida
de dos profetas Ageu, Zacarias 1-8 e 3° Isaías (56-66).
515 a.C.: Inauguração do segundo templo (Esd 6,19-22).
486-464 a.C.: Rei Xerxes I. No Livro de Ester e na tradução que
Almeida fez de Esd 4,6, Xerxes é chamado de Assuero.
Em torno de 465 a.C.: O Livro de Malaquias.
A situação do povo
Leia Zc 7,9-10 e perceba como o exercício da justiça (“julgamento
verdadeiro”) deixava a desejar. Faltava amor e compaixão para com os
irmãos. Além disso, os pobres, os estrangeiros, os órfãos e as viúvas eram
oprimidos.
Em Is 58,6-10, texto da mesma época, você pode ler que havia
injustiças e opressão sobre os mais fracos. Havia pessoas sem pão para
comer, sem casa para morar e sem roupa para vestir.
A situação de injustiça era muito grande. O 3o Isaías reivindica inú
meras vezes o cumprimento da justiça e do direito. Se insiste tanto, é por
que ela estava sendo desrespeitada. Confira, pelo menos, algumas das cita
ções a seguir: Is 56,1; 58,2.8; 59,14-17; 60,17; 61,3.10.11.
Essa era a situação da maioria do campesinato. São as pessoas que não
foram deportadas e continuavam vivendo pobremente nas terras de Judá.
Entre elas estavam os levitas que, desde tempos antigos, mantinham vivo o
ideal de uma sociedade igualitária e fraterna como na época das tribos.
83
Quem eram os que praticavam a injustiça nos tribunais e a opressão
sobre os pobres? E possível que tenham sido camponeses mais abastados
dentre os remanescentes. É mais provável, porém, que essa tenha sido a
prática de judeus mais ricos que voltaram da Babilônia. Certamente são
eles os primeiros destinatários das críticas feitas por Isaías.
84
1 O projeto dos repatriados em torno
do templo
E u m e volto p a ra Jeru sa lém com amor.
A. m in ha casa será ali recon stru íd a —oráculo de
YH W H dos ex ércitos. ” (Zc 1,16)
85
povos e outras religiões, embora cultuassem também a YHWH. Segundo
os Livros de Esdras e Neemias, “samaritanos” são todos aqueles que não
foram para o exílio! Mesmo os que moravam em Judá!
Os repatriados consideram apenas as tribos de Judá e Benjamim,
isto é, o antigo Reino de Judá, como o verdadeiro Israel. E mais especifi
camente, os repatriados se consideram o verdadeiro povo de Deus. As
demais tribos eram seus inimigos. Sua história foi silenciada, excluída. Leia
novamente Esd 1,5; 4,1; 10,9; Ne 11,4!
Para não se “contamina
"Gostaríam os de colaborar rem” com os samaritanos, os re
na construção, pois honramos patriados rejeitaram sua oferta de
o vosso Deus do mesmo modo ajuda na reconstrução do templo
como vós mesmos e lhe (Esd 4,1-5). Com isso, aumenta
oferecemos sacrifícios..." ram ainda mais as antigas diver
(Esd 4,2) gências. Em torno de 430 a.C., a
ruptura foi total. Anos mais tarde,
possivelmente em torno de 400 a.C., os samaritanos construíram um tem
plo de YHWH no monte G ariam , para servir de centro religioso à provín
cia da Samaria.
O monte Garizim fica em frente à cidade de Siquém, que tem uma
tradição importante desde a época tribal. Foi em Siquém, por exemplo,
que Josué, o substituto de Moisés, promoveu a última assembleiadas tri
bos israelitas antes de morrer (Js 24). O Deuteronômio autoriza a constru
ção de um altar no monte Ebal, que fica bem defronte ao monte Garizim
(Dt 27,4-7). O Deuteronômio afirma também que Garizim é o monte da
bênção (Dt 11,29). Como Dt 12,2-12 estabelece um único lugar de culto
a YHWH, os samaritanos viram nesses textos uma sólida justificativa para
construir um santuário para YHWH em seu território. Estavam simples
mente cumprindo a Lei de Moisés, estabelecendo o culto no lugar por ele
indicado. Imagine agora a forma como isso foi recebido pela comunida
de cultuai de Jerusalém. Os ânimos se exaltaram ainda mais. Em 128 a.C.,
João Hircano, descendente dos Macabeus, destruiu o templo de YFIWH
construído pelos samaritanos no monte Garizim.
No pós-exílio, o nome “Israel” não era mais uma referência à orga
nização tribal. Nem era uma alusão à época do reinado unido sob Davi e
86
Salomão. Muito menos se referia ao Reino do Norte, que também já não
existia mais. “Israel” passou a ser a comunidade judaica que se reunia no
templo de Jerusalém, tendo uma identidade comum (Esd 2,2.70). Deve-
se incluir nessa comunidade cultuai, os deportados da Babilônia (Esd 7,13).
Dessa forma, excluíam especialmente os israelitas pertencentes às tribos
do Norte, também chamados de samaritanos, ou os judeus que não fo
ram expatriados, chamados pejorativamente de “povo da terra”.
Um conflito inevitável
O campesinato remanescente de Judá e os repatriados entraram
em conflito por razões óbvias. Ao voltarem da Babilônia, os descendentes
dos antigos deportados se achavam no direito de retomar a herança de
seus pais e que os babilônios haviam distribuído aos camponeses empo
brecidos. O conflito foi inevitável. E, pois, natural que os pobres da terra
se opusessem aos interesses dos repatriados. Muitos repatriados certamente
compraram as terras de camponeses pobres.
87
Em 1990, conflito semelhante ocorreu na Nicarágua quando, com
o apoio do império do norte, foi derrotado o projeto dos sandinistas.
Muitos latifundiários, que haviam fugido para os Estados Unidos, vol
taram e, com o apoio do projeto vitorioso, retom aram seus lati
fúndios. Dessa forma, acabaram com muitas experiências de trabalho
coletivo de camponeses em forma de cooperativas.
Outro bom exemplo é a pressão da colônia cubana em Miami,
pressionando o governo americano para derrubar Fidel. Muitos cuba
nos exilados são funcionários da administração Bush.
Zorobabel/Josué/Ageu/Zacarias
e a reconstrução do templo
Como os “povos da terra” se opuseram à reconstrução do templo,
Sasabassar não conseguiu levar adiante o projeto de reconstruí-lo. Essa
tarefa coube a Zorobabel e Josué anos mais tarde.
Pouco antes de 520 a.C., outra caravana importante foi organizada
por Zorobabel e Josué, quando Dario já era rei dos persas.
7.orobabelfoi o líder civil que iniciou a reconstrução do templo, que
durou de 520 a 515 a.C. Era neto do rei Jeconias (lC r 3,16-19). Jeconias,
também chamado de Joaquin (2Rs 24,6), havia sido deportado juntamen
te com Ezequiel para a Babilônia em 597 a.C. (2Rs 24,15). Portanto, Zoro
babel era da linhagem de Davi. Seu retorno da Babilônia, deverá ter des
pertado nos judeus mais nacionalistas uma forte esperança de restauração
da monarquia davídica. Ainda mais que ele veio como alto comissário do
rei Dario, por quem fora nomeado governador (Esd 6,7; Ag 1,1). Como
veremos adiante, especialmente o profeta Ageu apoiou a tentativa de luta
pela independência.
Josué foi o líder religioso durante a construção do segundo templo.
Era o sumo sacerdote (Ag 1,1.12). Segundo lC r 5,27-41, Josué era filho
de Josedec (Esd 3,2) da tribo de Levi, que fora deportado por Nabuco-
donosor (lC r 5,41). Sabemos, porém, que, desde o tempo de Salomão,
os sacerdotes que controlavam o templo eram descendentes de Sadoc.
Por isso, Josué certamente era sadoquitae não levita. Eram os sacerdotes
da linhagem de Sadoc que tinham o comando no santuário de Jerusalém.
Não deixe de ler Ez 40,46; 44,15-16 e 48,11! Adiante voltaremos a falar
do sacerdócio no templo do monte Sião.
O retorno do sumo sacerdote Josué foi mais uma razão para au
mentar a esperança na reconstrução de um estado davídico independente
da Pérsia em torno do templo.
Zorobabel e Josué voltavam a Jerusalém, a fim de continuar as
obras de reconstrução do templo que Sasabassar iniciara, mas logo tivera
que interromper por causa da resistência dos remanescentes como você já
leu em Esd 4. Nessa tarefa, tiveram o apoio dos profetas A geu e Zacarias.
Não deixe de ler Esd 5,1-6,13!
O profeta Ageu e o governador Zorobabel estão presentes no iní
cio das obras, mas desaparecem no decorrer da construção do 2° templo,
como ainda veremos. O sumo sacerdote Josué e o profeta Zacarias, po
rém, continuam a missão de reerguer o santuário em ruínas. E por essa
razão que se faz necessário analisar juntos Zorobabel e Ageu, de um lado,
e, de outro, Zacarias e Josué.
89
O profeta motiva Zorobabel, Josué e o povo, especialmente os mais
ricos (Ag 1,4), para que reconstruam o templo de YHWH (Ag 1,1-2.8; 2,5).
São fundamentalmente duas as razões usadas por Ageu para con
vencer seus compatriotas.
• A primeira foi a seca (1,6). Como praticamente todos os seus
conterrâneos, Ageu também pensava na lógica da teologia da re
tribuição. De acordo com essa teologia, a seca era castigo de Deus
pelo fato de o templo ainda se encontrar em ruínas (Ag 1,9-11.
Leia ainda 2,15-19!).
• Ageu foi buscar a segunda motivação nas tradições do Exodo.
Partindo da experiência que Moisés fizera do Deus que “está
junto”, nosso profeta encorajou as lideranças e a comunidade
(Ag 1,13; 2,4-5).
91
O projeto de Josué e Zacarias:
o templo sob o controle dos sacerdotes
Imediatamente após o afastamento do profeta Ageu, entra em ação
o profeta Zacarias (“YHWH se recordou’’), que terá atuado pelo menos até
515 a.C., quando o templo foi inaugurado. Sua profecia está em Zc 1-8.
Zc 9-14 são acréscimos posteriores, comoveremos no próximo volume
desta série.
A base social de Zacarias, tal como a de Ageu, são os repatriados
(Zc 6,15; 8,6-7).
Afastados Zorobabel e Ageu, o sumo sacerdote Josué recebeu o
apoio do profeta Zacarias para continuar as obras do templo, que foi
inaugurado em 515 a.C. Leia Esd 6,15-22!
Z acarias é crítico ao pro jeto da m onarquia p ré-ex ílica, pois
vê o exílio com o castigo pelo mal praticado pela dinastia davídica.
L eia Zc 1,12!
O grupo de Zacarias tem um projeto, cujas raízes remontam à con
vivência ideal da época das tribos. O primeiro passo é derrotar todos os
impérios poderosos (Zc 2,1-4). O
"Jerusalém deverá ficar segundo, é o afastam ento de toda
sem muros, por causa a m aldade e in ju stiça para m uito
da multidão de homens e longe (Zc 5,5-11). Mas isso não será
animais em seu interior." pelo poder das armas, mas pelo poder
(Zc 2,8) do espírito de YHWH (Zc 4,6).
Seu projeto considera Jerusalém
e o templo como centrais. Diferentemente do projeto de Neemias anos
mais tarde, a capital deve ser uma cidade aberta, sem muros, como as
aldeias dos clãs em Israel tribal.YHWH mesmo será sua proteção (Zc 2,8-9).
O templo serásímbolo da realeza e do poder de YHWH. O poder dos
reis já não terá força. A maldade, exercida naquele momento pelo Impé
rio Persa, será eliminada (Zc 5,1-4.5-11) e o povo viverá em tranqüilidade
sob suas videiras e figueiras como no tempo das tribos, sem que ninguém
o inquiete (Zc 3,9-10; 8,12).
O monte Sião, a “aldeia” de Jerusalém e o templo continuam sen
do o ponto central em torno do qual o povo se reorganiza. Para os repa-
92
Iriados Sião é o centro do mundo aberto para todos os povos (Zc 1,16;
2,14-17; 6,15; 8,3.23). Jerusalém será chamada “Cidade Fiel” e Sião, “Mon
tanha Santa” (Zc 8,3). As pessoas idosas e as crianças têm participação
especial nessa nova comunidade. Contarão suas histórias na praça da al
deia e ali brincarão em segurança (Zc 8,4-5).
Fa2 parte de seu projeto um jejum que vai além das aparências,
concretizando-se na prática do restabelecimento da justiça, da misericór
dia, da compaixão e da defesa dos direitos das viúvas, dos órfãos, dos
estrangeiros e dos pobres (Zc 7,9-10; 8,16-17). Segundo Zacarias, essa
deveria ser a conduta que fundamenta a reconstrução da comunidade ju
daica em torno do templo.
A esperança de conquistar a in "Eis que vou m andar
dependência dos persas, como preten vir um meu servo,
diam Ageu e Zorobabel, agora é situada um meu germ e/rebento."
no futuro. A esperança na vinda do mes (Zc 3,8)
sias davídico continuava em aberto, po
rém, não para breve. Será um descendente de Davi e Zorobabel (Zc 6,12.14).
Esse projeto de Zacarias e Josué permanecia como ideal, enquanto
na prática as coisas eram diferentes. E o que veremos adiante nas denúncias do
3o Isaías. O poder dos sacerdotes em aliança com o império jamais seria
capaz de fazer do templo um instrumento de paz e de justiça para o povo.
O império não permitiria que esse projeto se concretizasse. Por isso, co-
optou a elite sacerdotal em seu favor e em detrimento do povo.
Antes de continuar sua leitura neste volume, leia Zc 6,9-15!
E interessante notar que não é o descendente de Davi que é coroa
do, mas o sumo sacerdote Josué (v. 11). Ele é quem sentará no trono (v.
13). A coroa será depositada no templo (v 14), até o dia em que se realize
a esperança messiânica e o rebento apareça (v 12). A partir desse momen
to, se confirma o poder político nas mãos dos persas e o poder religioso
em Judá nas mãos dos sacerdotes. Na prática, porém, os sacerdotes tam
bém eram os representantes do poder imperial. Na verdade, fingem uma
certa independência, já que, como veremos com Neemias, o poder era
exercido pelo governador nomeado pelo rei persa. Neemias tem mais
poder que o sumo sacerdote! Zc 3,1-10 deve ser lido nessa mesma pers
pectiva. Confira!
93
Esse poder do sacerdócio, que controla o culto oficial, é possível
porque os sacerdotes fazem uma aliança estratégica com o Império Persa.
Assim, mantêm seu poder, garantem uma série de privilégios para si e
criam um consenso na comunidade judaica para aceitar de forma resigna
da a submissão ao império. Não deixe de ler as críticas que o 3oIsaías, que
representa a oposição a esse projeto, faz aos “pastores”, isto é, aos sacer
dotes, em Is 56,9-57,13!
No pós-exílio, aos poucos, são também os sacerdotes em torno
do templo que vão assumindo o papel que antes era da profecia. Cada
vez menos, o movimento profético exerce a função de ser o intermediá
rio entre Deus e o povo. A mediação oficial entre YHWH e a comunida
de fica cada vez mais sob o controle do templo, dos sacerdotes e da lei.
Isso não quer dizer que a profecia tenha acabado. Ela se expressa de ou
tras formas. A resistência popular está registrada nos oráculos de profetas
anônimos, como o 3o Isaías (56-66), Malaquias, Joel e Zc 9-14. Ou ainda
em literatura sapiencial como Jó, Cântico dos Cânticos, Rute e Jonas. É
por aí que passa a profecia em defesa da vida do povo no pós-exílio.
94
2. A esperança de restauração do povo está nos líderes civil e religio
so: cap. 3-4.
3. A libertação do roubo, das injustiças e de toda a maldade com a
força do Espírito e o poder dos sacerdotes no templo: caps. 5-6.
4. A prática do amor e da misericórdia para se ter vida nova: cap. 7.
5. Volta de YHWH para Jerusalém e seu projeto de vida para os
judeus: cap. 8.
Quanto ao conteúdo das visões do profeta, podemos assim resumi-lo:
1. Os cavalos coloridos: castigo para as nações que oprimem e
bênção parajerusalém (1,8-16).
2. Os quatro chifres e os quatro ferreiros: derrota dos impérios
(2,1-4).
3. O homem do cordel: YHWH protege Jerusalém (2,5-9).
4. O candelabro de ouro, as sete lâmpadas e as duas oliveiras:
exaltação do governador Zorobabel e do sumo sacerdote
Josué (4,1-10).
5. O livro que voa: justiça social (5,1-4).
6. A mulher do alqueire: eliminação do mal (5,5-11).
7. Os quatro carros: julgamento dos opressores e retorno dos de
portados (6,1-8).
O sacerdócio e o templo
Os sacerdotes do Io templo na época do reinado
Não poderíamos concluir este capítulo sem antes refletir sobre a
função dos sacerdotes do Io e do 2° templo, bem como sobre o significa
do do santuário.
Para entendermos a situação dos sacerdotes sadoquitas e levitas no
2° templo, é necessário que antes lembremos seu papel no Io templo.
95
Como já vimos nos volumes anteriores, nas origens de Israel, não
havia uma única família destacada para exercer a função do sacerdócio.
Várias pessoas ofereciam sacrifícios e não eram sacerdotes, como Noé
(Gn 8,20), Abraão (Gn 12,7-8), Isaac (Gn 26,25), Jacó (Gn 33,20; 35,1),
Gedeão (Jz 6,24) e Samuel (ISm 7,17). Nas origens de Israel, portanto, o
sacerdócio não era exercido por especialistas.
Os primeiros sacerdotes em Israel de quem temos informações são
Jônatas, neto de Moisés (Jz 18,30), Eli de Silo (ISm 1,3) e Aquimelec de
Nob (ISm 21,2-10). Eles eram encarregados dos santuários nas aldeias e
também davam respostas a pedidos feitos pelo povo (ISm 23,7-13; 30,6-
10). Normalmente o sacerdócio num santuário era hereditário. Porém, isso
não quer dizer que os sacerdotes de todos os santuários fossem de uma
mesma família ou tribo. Provavelmente eram de origens diversas. Com o
crescimento da influência de certos santuários, aos poucos, foram surgindo
rivalidades entre os sacerdotes de diferentes santuários. Contudo, a maioria
das famílias sacerdotais terão sido levitas, grupo ao qual pertencia Moisés.
Eram eles que preservavam a memória das antigas tradições do Exodo e
garantiam os serviços nos santuários da maioria das aldeias e tribos.
Somente durante o reinado é que se impuseram algumas famílias de
sacerdotes. Quando Davi reinou somente sobre Judá a partir de Hebron,
ele promoveu a família de Abiatar, que o protegera por ocasião da perse
guição que sofreu por parte de Saul. Quando, porém, conquistou dos
jebuseus a cidade de Jerusalém para fazer dela a capital de seu império,
promoveu também a família sacerdotal jebusita de Sadoc. Sobre a origem
e os projetos que os sacerdotes Abiatar e Sadoc representavam você já leu
nas páginas 41 e 42 do volume 3. Caso não lem
brar mais, seria bom reler.
"Depois o r e i...
estabeleceu o Na conflitiva transição do reinado de Davi
sacerdote Sadoc para o de Salomão, houve também um conflito
como substituto entre sacerdotes. Foi, na verdade, um conflito en
de Abiatar." tre projetos. Abiatar, de origem levita, apoiou
(1 Rs 2,35) Adornas, o legítimo herdeiro do trono. Porém Sa
doc, de provável origem jebusita, apoiou as am
bições de Salomão ao trono de seu pai. Por isso, o monarca Salomão
recompensou a Sadoc, dando-lhe o controle do templo, por um lado, e,
96
por outro, castigou a Abiatar, destituindo-o de suas funções e confinando-
o em Anatot (lR s 2,26-27). Dessa forma, Salomão erradicava completa
mente de Jerusalém e de Judá a ideologia de uma sociedade igualitária, da
qual os sacerdotes levitas eram portadores.
A partir daí, os sacerdotes sadoquitas sempre mantiveram o mono
pólio sobre o Io templo, desde sua construção no tempo de Salomão até
sua ruína em 586 a.C. Enquanto isso, os levitas eram os encarregados dos
santuários do interior.
Quando as tribos do Norte se libertaram da opressão que Salomão
exercia sobre elas, Jeroboão, o primeiro monarca do Reino de Israel, esta
beleceu novas famílias sacerdotais nos santuários de Dã e Betei, como
podemos ler em lR s 12,31. Entre elas, certamente restabeleceu o sacerdó
cio levita, marginalizado por Salomão. No Reino do Norte, os levitas
exerceram um papel importante como portadores da memória do Êxo
do e de YHWH, o Deus libertador. Eles estão por trás do movimento
profético e também do núcleo do Livro do Deuteronômio, cuja origem é
do Reino de Israel, como já vimos.
Ainda antes do exílio, por ocasião da reforma do rei Josias no
Reino de Judá (622 a.C.), os sacerdotes de origem levita tiveram seus san
tuários destruídos a mando do rei. Aqueles que não queriam deixar de
exercer o sacerdócio tiveram que se transferir parajerusalém e exercer
funções secundárias no templo (2Rs 23,8-9).
97
Por um lado, esse conflito certamente se acentuou porque os sado-
quitas, controladores de todas as atividades do Io templo, não foram ca
pazes de impedir a ruína do Reino de Judá e a catástrofe do exílio. E ainda
mais. Foram acusados de também serem causadores de tamanha calamida
de, colocando o santuário a serviço da legitimação do reinado opressor.
Por outro lado, os sacerdotes levitas aproveitaram a situação do exílio
para exigir seu reconhecimento, sua legitimidade. Tal como a profecia, há
muito vinham avisando que os rumos da monarquia e da teologia oficial dos
sacerdotes sadoquitas a partir do templo estavam equivocados. O que previ-
am aconteceu. E isso deu autoridade aos sacerdotes descendentes de Levi.
Como é resolvido esse conflito entre as duas linhagens de sacerdo
tes que se firmaram no decorrer da história? Quem tem as credenciais
com legitimidade para exercer o sacerdócio no 2otemplo? A resposta não
é tão simples, mas tudo indica que houve uma tentativa de harmonizar as
duas linhas principais de sacerdotes no pós-exílio. Houve uma aliança en
tre sadoquitas e levitas. Ne 13,29 pode ser uma crítica ao rompimento
dessa aliança. Veja também Malaquias 2,4-9!
98
Por isso, essa harmonização foi uma forma para manter os sado
quitas no poder também no 2° templo. De fato, a família de Sadoc man
teve o cargo de sumo sacerdote por sucessão hereditária até Onias III em
175 a.C., como ainda veremos no próximo volume. Enquanto isso, os
levitas continuavam servindo como auxiliares dos sadoquitas, da mesma
forma como antes do exílio.
Os textos que se referem a Aarão como sacerdote (Ex 29,1-37; Lv
8-10; 17,1-8; Nm 20,22-29) são todos pós-exílicos. As tradições mais an
tigas a seu respeito o apresentam não como sacerdote, mas como alguém
da tribo de Levi e ajudante de Moisés na libertação dos hebreus da casa da
escravidão. Veja, por exemplo, Ex 5,1; 7,8-9; 16,2; 17,8-17; 24,14!
Nesse sentido, o sacerdócio atribuído artificialmente a Aarão é uma
releitura pós-exílica e quer legitimar também os sadoquitas. Por serem des
cendentes do suposto sacerdote Aarão, os descendentes de Sadoc teriam
credenciais legítimas para continuarem com o monopólio também sobre
o 2° templo.
Seguindo essa mesma lógica, os sacerdotes sadoquitas que volta
ram do cativeiro babilônico foram incluídos artificialmente na genealogia
de Aarão. Veja, por exemplo, o caso do sumo sacerdote Josué que atuou
na reconstrução do templo (Esd 5,2; Ag 1,1). Segundo a genealogia dos
levitas em lC r 5,27-41, Josedec, o pai de Josué, era da tribo de Levi e
descendente de Aarão. Na mesma linha, fizeram do sacerdote e doutor da
lei Esdras um descendente de Aarão (Esd 7,1-5).
Lembramos novamente que, no pós-exílio, os sacerdotes do tem
plo também passaram a ser os principais mediadores entre Deus e o povo,
substituindo o papel que cabia à profecia nos períodos anteriores.
99
rei nas províncias, os persas nomeavam governadores. Assim foi, por exem
plo, com Zorobabel e com Neemias. Possivelmente, o governador se fa
zia assessorar por um conselho de anciãos, composto de sacerdotes e
leigos (Esd 7,25; Ne 13,11).
100
Há ainda um terceiro elemento que precisamos levar em conta. No
pós-exílio, não há mais outro ponto de referência visível que desse identi
dade política aos judeus. Não há mais palácio, nem rei com todo seu
aparato e seu poder. Agora, o templo era o único elemento que dava
identidade principalmente aos repatriados. Por isso, era importante para
eles reforçá-lo como símbolo da realeza de YHWH, em oposição aos
reinos opressores deste mundo. O templo seria o ponto de partida para a
reconstrução da comunidade judaica em torno da lei.
A casa de YHW H era um lugar santo, consagrado (Esd 9,8).
E interessante que a santidade é estendida a toda cidade de Je ru sa
lém (Ne 11,1.18). E mais. Também os repatriados são povo santo e con
sagrado a YHWH (Esd 8,28; 9,2).
101
102
I
103
eles encontraram em Judá ao voltar da Babilônia, vivia pobremente. Na
lógica da teologia da retribuição, eram, portanto, amaldiçoados por Deus.
A exigência do pagamento de dízimos ao templo seguia a mesma
lógica. Leia, por exemplo, o que está escrito
"N a casa do justo em Ml 3,8-11. A teologia da retribuição, por
há abundância, tanto, legitimava a cobrança de dízimos e ga
mas os lucros do rantia os privilégios dos sacerdotes e funcioná
ímpio dissipam -se." rios do templo de Jerusalém.
(Pr 15,6) Mas nem todos concordavam com essa
visão de um Deus justiceiro que castiga os
ímpios ou abençoa os justos, defendida pela teologia oficial do templo. A
vida cotidiana negava essa realidade. Veja, por exemplo, Ml 3,15; Sl 73,1-
12! Ao contrário do que afirmava o Pr 15,6, os ímpios prosperavam,
enquanto os justos viviam na pobreza e na doença. Algo não estava certo.
E houve quem se libertasse dessa teologia e fizesse uma outra expe
riência de Deus, protestando de forma indignada contra os representantes
da teologia oficial. E, por exemplo, o que diz o Livro de Jó a respeito da
pobreza. Ela é conseqüência da opressão e não do castigo de Deus (Jó
24,1-12). Mais adiante, estudaremos o Livro de Jó.
Aqui ainda mereceria ser feita uma reflexão sobre a observância
rigorosa da lei de pureza étnica e da lei do puro e do impuro, bem como
sobre as suas conseqüências na vida do povo, especialmente das mulheres.
Mas deixaremos isso para mais adiante, quando falarmos das reformas de
Esdras e Neemias.
104
I
Isaías 56-66
105
mais chamada “Cidade de Davi” (2Sm 5,7.9; 6,10). Porém, na mesma
perspectiva de Ezequiel (Ez 48,35), será chamada “Cidade de YHWH” (Is
60,14). Ele será seu rei e não um descendente de Davi. A “paz” e a “justiça”
serão as autoridades estabelecidas por YHWH em Jerusalém (Is 60,17b).
O projeto do 3° Isaías
Para entender suas críticas e seu projeto, é fundamental analisá-los
em oposição à prática dos sacerdotes em torno do templo. Leia as cita
ções de Isaías indicadas nos itens abaixo sobre os “estrangeiros e eunu-
cos”, os “pobres”, o “direito universal ao sacerdócio”, “YHWH como
pai e mãe”, o “jejum autêntico” e o “novo céu e a nova terra”!
106
Estrangeiros e eunucos também são filhos
e filhas de Deus (56,1-8).
Diante da exclusão dos estrangeiros e dos pobres da terra pelo pro
jeto do templo, o grupo do 3° Isaías propõe a sua inclusão. Na medida
em que aderem ao plano de YHWH, terão até lugar no templo, “casa de
oração para todos os povos”. Repare os detalhes: “casa de oração” e
“para todos os povos”, em contraste com os excessivos sacrifícios ofere
cidos no altar do templo, somente para judeus considerados puros. Veja
ainda Is 60,10-11; 61,5; 66,18-20!
E o grupo de Isaías vai além. Discordando de Dt 23,2, anuncia
inclusive que os eunucos fiéis à aliança são “mais valiosos que filhos e filhas”.
Is 56,1-8, portanto, polemiza com teologia dapureza étnica defendida pelos
sacerdotes, que elaboraram longas listas genealógicas para poder provar sua
pertença à comunidade judaica (lC r 1-9; Esd 2,lss; Ne 7,4-72; 11,1-12,26).
107
levitas era servir de auxiliares dos sacerdotes (Nm 3,5-10). Diante desse
privilégio exclusivo, o 3oIsaías reage, denunciando a corrupção dos sacer
dotes/pastores (56,9-12) e ampliando o direito ao sacerdócio para todo o
povo (61,6), inclusive para estrangeiros (66,20-21).
108
modaram às exigências do Império Persa sem se importar com o sofri
mento dos pobres, o 3oIsaías propõe um novo pro
jeto. Sua proposta parece utópica. Porém, sabemos "Eu quero ver,
que tudo o que existe foi um dia sonhado. Sonhar, eu quero ver
portanto, é preciso. E o 3o Isaías sonha bem alto. acontecer
Is 56-66 ajuda o povo sofrido a levantar no o sonho bom,
sonho de muitos
vamente a cabeça, a olhar para um novo “horizon
acontecer."
te” e caminhar ao seu encalço. O 3o Isaías chega a
(Zé Vicente)
informar detalhes de seu projeto de sociedade, de
um novo céu e uma nova terra. Descubra as caracte
rísticas do sonho desse movimento de resistência contra o projeto dos
persas e dos sacerdotes do templo! Perceba que no texto não se fala em
templo, em sacerdotes e nem em rei.
109
contexto da estratégia de dominação persa assim o permitiram. Para eles,
o templo tornou-se o símbolo maior e o centro de seu projeto. Anos mais
tarde, porém, com a vinda de Esdras da Babilônia, a importância do
santuário foi suplantada pela centralidade da Lei de Moisés, como ele
mento fundamental de preservação da identidade cultural e religiosa dos
judeus, como veremos adiante.
3 O Livro de Malaquias
“M as p a ra vós que tem eis o seu nom e,
brilh a rá o s o l da ju s t i ç a .” (Ml 3,20 —Almeida = 4,2)
110
Malaquias anuncia a certeza de que as promessas continuam em pé e que
irão se concretizar.
O Livro de Malaquias
A época de atuação do profeta foi em torno de 465 a.C. A situação
que está por trás das suas denúncias reflete a apatia da comunidade repa
triada em relação ao culto, aos sacrifícios, à observância da lei e à justiça
social. Esta realidade nos leva a situar a atuação de Malaquias nos anos
anteriores às reformas de Neemias e Esdras, que foram realizadas apartir
de 445 a.C.
O k cal de atuação foi Jerusalém.
Os autores de Malaquias certamente são sacerdotes levitas que atua
vam no culto do templo.
Seu objetivo principal é denunciar a apatia da comunidade judaica,
especialmente os responsáveis pelo culto. A fé em YHWH que devia ser
um fator de identidade da comunidade, é somente um culto formalista.
111
YHWH, que ama seu povo, exige uma nova prática na observância da lei,
do culto e da justiça para com os mais pobres.
O Livro de Malaquias é composto por seis unidades literárias bem
definidas. A conclusão é composta por acréscimos posteriores.
1. 1,1-5: YHWH ama a Israel em contraste com os edomitas. A
destruição de Edom é uma provável referência aos ataques que os árabes
fizeram contra os edomitas alguns anos antes.
2 .1,6-2,9: YHWH detesta os animais impuros oferecidos no altar
pelos sacerdotes (1,6-2,3). Dessa forma, eles traem a “aliança com Levi”.
Leia Nm 25,12s e compare com Ml 2,4-9 e perceba como YHWT-I orde
na que os sacerdotes sejam fiéis à sua aliança!
3. 2,10-16: YHWH censura os judeus repatriados por se divorcia
rem de suas esposas para casar com mulheres estrangeiras.
4. 2,17-3,5: YHWH promete enviar o seu mensageiro da aliança
(3,1). Sua missão é purificar os sacerdotes levitas infiéis (3,2-4). Depois
julgará os que oprimem os pobres (3,5).
5. 3,6-12: YHWH condena todos os que retêm os dízimos e as
contribuições para o sustento do culto e dos sacerdotes e levitas (3,8-10).
A seca e a praga dos gafanhotos são consideradas conseqüências dessa
retenção (3,10-11).
6. 3,13-21 (Almeida = 3,13-4,3): YHWH promete que virá para
castigar os injustos enquanto os justos brilharão como o sol.
A conclusão contém dois acréscimos. O primeiro lembra ao povo
praticar a Lei de Moisés (3,22 - Almeida = 4,4). O segundo adapta a
promessa da vinda do mensageiro de 3,1 para a época da edição final do
livro (3,23-24 —Almeida = 4,5-6).
112
Consolidação do projeto do templo
(445-332 a.C.)
“S om os escra vos em n ossa p ró p ria terra...
S eus p ro d u to s enriquecem os reis... que dom inam
arbitrariam en te sobre n ossos corp os e n ossos rebanhos...
Sim , gra n d e é a desgraça em que n os encontram os. ” (Ne 9,36-37)
113
A realidade do povo na época de Esdras e Neemias (455-425 a.C.)
Você já leu. Mas gostaríamos
"A lavoura nova dos pobres que olhasse novamente com calma
abunda em alimento, os textos abaixo, procurando desco
mas este lhes é arrancado brir agrave crise vivida pela m aio
quando não há justiça." ria da população na segunda m e
(Pr 13,23) tade do século 5 a.C., isto é, nos
dias de Neemias e Esdras. Veja a si
tuação de fome, de escravidão dos diaristas e pequenos proprietários de
terra. Procure descobrir as causas externas e internas da escravidão e da
miséria do povo, bem como os responsáveis pela situação.
Somente tendo bem presente essa dura realidade é que poderemos
compreender melhor não só as reformas de Esdras e Neemias, como
também a literatura de resistência popular daquela época, como, por exem
plo, Rute, Jonas e Jó.
Qual era a situação do povo e da província de Judá descrita nos
textos a seguir?
Esd 9,9 Ne 1,3; 5,1-5 Ne 9,36-37
Jó 24,1-12 Jó 30,2-8 Rt 1,1; 2,2.
114
foi novamente subjugado pelo poder imperial. Por isso, era de interesse
dos persas fortificar Jerusalém, para que pudesse servir de fortaleza militar
em caso de novas tentativas de libertação. Era estratégico ter um forte
militar na região para barrar qualquer ameaça não só dos egípcios mas
especialmente dos gregos que já representavam, naqueles anos, um perigo
aos persas. E interessante notar que Jerusalém passou a ser a única cidade
fortificada na Palestina no período persa. O projeto de reconstrução das
muralhas de Jerusalém deve ser compreendido dentro desse contexto.
A proposta inicial parece ter nascido em Judá (Ne 1,2-3). Neemias
assumiu a tarefa de conseguir o apoio junto ao rei. Também a ele interes
sava uma fortaleza na Palestina. Por isso, o projeto foi facilmente autoriza
do e, inclusive, patrocinado pelo império. As missões de Neemias e Es
dras, portanto, fazem parte de uma política mais ampla dos persas. A
indicação de Neemias, pessoa de confiança do rei, para a reconstrução de
Jerusalém, teve motivações políticas. Considerando-se as recentes rebeliões
havidas, era importante ter na região um súdito leal ao rei. E Neemias era
esse homem.
115
A primeira missão de Neemias (445-433 a.C.)
Tudo indica que Neemias esteve duas vezes na província de Judá.
Na primeira vez, sua tarefa principal foi reconstruir e repovoar Jerusalém
a fim de transferir para o monte Sião a capital da província de Judá e, a
partir dela, reorganizar o culto e a vida da comunidade em torno do
templo na cidade santa. Acima, já discutimos se Judá foi dependente da
província de Samaria ou se foi uma província diretamente vinculada desde
o começo ao Império Persa.
Podemos resumir a missão de Neemias em sua primeira viagem a
Jerusalém nos pontos a seguir. Não deixe de ler as referências bíblicas!
1. 'Reconstruir as muralhas da cidade (2,8; 6,15; 12,27-43). Uma cidade
fortificada trazia mais estabilidade, segurança e atrativos para a nova capi
tal, diante das dificuldades que enfrentava. Há quase um século antes, Zo
robabel e Josué já haviam reconstruído o templo, símbolo mais im
portante para os judeus. Com a reconstrução das muralhas de Jerusalém,
Neemias recuperava mais um símbolo para a identidade da comunidade
judaica.
Neemias sofreu a resistência de vários grupos contra seu projeto de
reconstrução das muralhas:
• Dos nobres das províncias vizinhas (Esd 4,6-24; Ne 3,33-4,8;
6,lss).
• Dos nobres de Judá, vinculados ao samaritano Sanabalat e ao
amonita Tobias, por meio de casamentos, contratos comercias e outros
interesses (Ne 6,17-19; 13,4-9.28).
• Dos nobres de Técoa, ao sul de Jerusalém (Ne 3,5).
Mas nenhum desses grupos conseguiu impedir seu projeto, que ti
nha o apoio do império, inclusive com uma escolta militar providenciada
pelo rei persa (Ne 2,9).
Quem reconstruiu as muralhas? Provavelmente, Neemias recrutou
trabalhadores diaristas, escravos, pequenos proprietários de terra e arte
sãos. E possível que a miséria e a insatisfação dos pobres da terra, que
analisaremos no próximo item, tenha chegado a uma situação insustentá
vel justamente por causa desse recrutamento para as obras na muralha.
116
II
117
que a indignação do governador foi somente despertada pela ocupação
das ruas por quem não tinha mais como sobreviver na roça.
118
Fique claro que a reforma exigida pelos pobres não tem nada a ver
com o ano jubiliar. Ela é fruto da pressão do povo da terra a partir de sua
situação de miséria.
E hoje! Não será essa uma das razões por que os credores dos
países do primeiro mundo continuam emprestando dinheiro aos paí
ses periféricos a juros elevados, de modo que, na verdade, a dívida
nunca seja paga? O que é preciso ser feito para alcançar as conquistas
que os pobres obtiveram junto a Neemias? Em nossos dias, faltam
governos como Neemias ou falta organização do povo? Há alguma
semelhança com a prática política de Neemias? Acreditamos que o
“clamor” dos oprimidos possa gerar mudanças? Temos consciência
de que o poder dos fortes é estável somente na medida em que há um
povo acomodado? Como reagem as elites, bem como seus parla
mentares e seus meios de comunicação, quando um governo coloca as
estruturas do estado a serviço de toda a população? Até que ponto a
fé nos grandes valores da vida, como, por exemplo, a dignidade, a
justiça, a solidariedade e a partilha, estão entre as primeiras preocupa
ções de nossos governantes?
119
da “Lei de Moisés”. Assim os judeus passaram a chamar, no pós-exílio, os
cinco primeiros livros da Bíblia que, segundo a tradição judaica, são da
autoria de Moisés. Veja por exemplo lR s 2,3 e Jo 5,45-47!
De outro lado, Esdras era alto funcionário da corte no Império
Persa. È possível que tenha sido o encarregado para os assuntos que ti
nham a ver com os judeus não só para a província de Judá, mas para todo
o império. Tinha, portanto, muita autoridade em meio aos judeus que
estavam estabelecidos na Pérsia, parte dos quais havia voltado para Judá
(Esd 7,1-26).
Segundo Ne 8,9, Esdras e Neemias teriam atuado juntos em alguns
momentos. Mas isso provavelmente não é verdade, uma vez que a inten
ção do redator é fazer com que Esdras, sacerdote e escriba, prevaleça
sobre o leigo Neemias. Nesse caso, convém situar a missão de Esdras em
torno de 398 a.C. (Esd 7,7). A missão de Esdras reforça e legitima as
reformas promovidas pelo governador Neemias.
Como vimos, a razão por que os autores dos Livros de Esdras e
Neemias apresentam a missão do sacerdote e escriba (Esd 7-10) antes da
I amissão do governador (Ne 1-7) é simples. Para eles, a política deve estar
subordinada à fé. A fé em YHWH vem antes da atividade política. Como
a missão de Esdras está mais ligada à religião e a de Neemias mais à
política, os autores desses relatos colocam artificialmente a atividade do
líder religioso antes da do líder político. Historicamente, porém, é prová
vel que a missão de Esdras seja posterior para legitimar as reformas de
Neemias.
Missão de Esdras
• Ensinar a Lei de Moisés aos judeus.
• Legitimar teologicamente as reformas culturais e religiosas decre
tadas pelo governador Neemias.
Esdras estava a serviço dos interesses do império. Tinha sua bên
ção. Desobedecer à Lei de Moisés, isto é, às leis contidas no Pentateuco,
era também desobedecer à lei do imperador (Esd 7,26). Essa importância
dada à observância da Lei de Moisés, certamente tem como um dos seus
objetivos alcançar a ordem na província de Judá num momento em que
os egípcios representavam uma ameaça. Cooptava as lideranças para o
120
projeto de extorsão de tributos por parte dos persas. Eliminava qualquer
possibilidade de o povo ter esperança em dias melhores, jogando para o
futuro a espera da vinda de um Messias libertador. De outra forma, seria
difícil entender a razão por que o rei teria tanto interesse em que se obser
vasse a Lei de Moisés. Em suma, a concessão cada vez maior de autono
mia aos judeus, incluindo-se a liberdade de observar as suas próprias leis,
faz parte da estratégia persa de assegurar a lealdade de Judá ao império.
121
que foi lido. Sobre a reedição do Pentateuco feita pelos sacerdotes, volta
remos a falar adiante.
122
louvor e de penitência. Na prim eira parte louva-se a YHWH por sua ação
em favor de Israel (9,5b-25). Depois de uma introdução (v 5b), vem o
louvor ao Deus criador da vida (v. 6). Segue o louvor a YHWH pela aliança
feita com os pais (w 7-8), por sua ação libertadora no Êxodo (w 9-12), pela
doação da lei no Sinai (w 13-14), pelaproteção no deserto (w 15-21) e por
sua presença na libertação da terra das mãos dos reis cananeus (w. 22-25).
É digno de nota o reconhecimento da ação de YHWH na história, nos
acontecimentos. Na segunda parte do salmo, temos a oração penitencial (w
26-37). Na perspectiva de uma das características da teologia deuterono-
mista, isto é, a teologia da retribuição, o povo reconhece sua infidelidade
ao projeto de solidariedade proposto por YHWH. Avalia a opressão so
bre o povo como castigo justo de Deus. A libertação sempre seguia um
processo de arrependimento e de conversão. O salmo conclui que a situ
ação novamente é de opressão ( w 36-37). Portanto, essa oração quer
chamar a comunidade judaica a um novo processo de conversão, com
vistas a viver outra vez na liberdade e na paz. Confira!
• A confissão da culpa não é suficiente. Faz-se necessário assumir
um compromisso concreto com a mudança. Na compreensão do sacer
dote e escriba Esdras e do governador Neemias, esse compromisso é
observar a lei (Ne 10). Depois de se comprometer por escrito com a lei
(10,1.29-30), vêm as cláusulas a serem observadas. Leia atentamente Ne
10,31ss e perceba os compromissos assumidos por toda a comunidade
para manter a identidade do povo judeu em torno da pureza étnica e do
perfeito funcionamento de todo o sistema do templo.
123
da, ao menos pela comunidade repatriada e por judeus que permaneciam
na Babilônia, como o maior dentre os dons de YHWH. Leia, por exem
plo, Sl 1,1-2; 19,8ss; 119,1-3!
Nesse sentido, a lei era a orientação de Deus para que o povo se
guisse o caminho correto. E necessário ler nessa ótica a reflexão que a
comunidade de Mateus faz a respeito da lei. Mateus tem uma compreen
são da lei de Deus nessa perspectiva. A lei é a vontade de Deus. E sua
justiça (Mt 3,15; 5,20).
O sentido mais estreito e mais negatim da lei teve seu desenvolvimento
no período persa no pós-exílio. Nessa época, as leis passaram a ter a im
portância que antes pertencia à profecia. Na verdade, a lei suplantou a
profecia e passou a ser identificada com o Pentateuco. A aplicação rigoro
sa das leis que constam nos cinco primeiros livros da Bíblia, naturalmente
levou à exclusão de pessoas e grupos sociais. E que ali constam, por exem
plo, os critérios de pureza ou impureza. Logo adiante, voltaremos a esse
assunto.
No sentido positivo, a lei exerceu um papel importante no pós-
exílio. Embora o rei persa a tivesse tornado também a lei do império para
os judeus, ela foi fundamental para que a comunidade judaica sobrevives
se como povo, como etnia. A observância das prescrições da lei deu iden
tidade social, nacional e religiosa ao povo, garantindo dessa forma sua
sobrevivência como nação, num momento em que corria sérios riscos de
ver sua cultura desaparecer em meio a um imenso império.
Foi a partir desse momento que, aos poucos, o rigor na observân
cia da lei foi se transformando em legalismo, isto é, no cumprimento cego
da lei. Isso não quer dizer que todos os judeus fossem legalistas. No tem
po de Jesus, por exemplo, até mesmo entre os fariseus havia muitas ten
dências. Os mais apegados à lei eram apenas uma das vertentes. E o anti-
legalismo de Jesus ou de alguns grupos primitivos de cristãos é reflexo do
seu empenho em fortalecer uma nova identidade para as comunidades
cristãs independente do Judaísmo hegemônico naquela época.
Como veremos adiante, a ênfase em cumprir rigorosamente as pres
crições legais recaiu sobre as leis de pureza étnica e das leis do puro e do
impuro. A dissolução dos casamentos mistos é o exemplo mais típico
desse legalismo.
124
A partir de agora, analisaremos conjuntamente o cumprimento seve
ro da lei, tanto por parte de Neemias como de Esdras. E provável que
Neemias tenha exigido o rigor da lei durante sua segunda missão em algum
ano entre 430-425 a.C. (Ne 13,6-7). Anos mais tarde, Esdras reforçou essa
prática de Neemias. Ambos foram rigorosos na aplicação da lei. Sua refor
ma cultural e religiosa teve como ênfase medidas a respeito da observân
cia de normas sobre o “funcionamento do templo”, do “sábado” e da
“pureza étnica”. Passemos a analisar uma por uma essas medidas.
125
do em ordem o sustento diário de todo o pessoal do culto: sacerdotes,
levitas, cantores e porteiros. Porém, no texto que acaba de ler, você perce
beu que os levitas haviam deixado de exercer suas funções de auxiliares e
cantores no templo, voltando para a roça a fim de poder sobreviver. E
por que isso? Por causa da omissão na entrega dos dízimos, única fonte
para seu sustento. Quem eram os responsáveis por esse desleixo? Os ma
gistrados encarregados pelo funcionamento do templo e, talvez, pela ad
ministração persa na província de Judá. Como Neemias resolveu o pro
blema? Fez os levitas voltar às suas funções e exigiu dos judaítas os dízi
mos dos cereais, do vinho e do azeite. E para evitar que os dízimos fos
sem novamente desviados aos sacerdotes sadoquitas, nomeou pessoas de
confiança para fazer a administração dos dízimos destinados aos levitas.
Com mais essa medida, Neemias ganhou também o apoio impor
tante dos funcionários do templo, os levitas, para a execução de seu projeto.
126
A pureza étnica (Ne 13,23-31; Esd 9-10)
A proibição e a dissolução dos casamentos mistos tinha em vista a
pureza da identidade cultural, étnica e religiosa especialmente dos repatri
ados em torno de Jerusalém. Sobre as leis que proíbem os matrimônios
mistos você pode ler em Ex 34,15-16 e Dt 7,3.
Esdras e Neemias não somente proíbem os casamentos mistos,
isto é, de judeus com mulheres estrangeiras, mas chegam a expulsar as
mulheres estrangeiras casadas com judeus repatriados, junto com seus fi
lhos. È importante repetir que essa medida atingia especialmente os repa
triados (Esd 10,6.16), embora também houvesse a interdição de casamen
tos com o povo da terra (Ne 10,31).
È interessante notar que nem todos aceitaram com facilidade a dissolu
ção dos casamentos mistos. Veja o caso de Jônatas e Jaasias em Esd 10,15!
Havia inclusive sacerdotes que contraíram matrimônio com mulhe
res de origem estrangeira (Esd 10,18-22), bem como levitas (Esd 10,23-24).
Até o neto do sumo sacerdote havia se casado com a filha do governador
da Samaria (Ne 13,28). Dessa forma, descumpriu aprescrição de Lv 21,14.
Com esse casamento, a família do sumo sacerdote “contaminou o sacer
dócio” e quebrou a “aliança dos sacerdotes sadoquitas e dos sacerdotes levi
tas”, fato que o profeta Malaquias já havia questionado (Ml 2,4-8).
Em suma, a lei da pureza étnica levou a comunidade judaica em
torno do templo a fechar-se cada vez mais so
bre si mesma, cultivando um nacionalismo com "N ã o chames
horizontes muito estreitos. Conseqüência disso é de contam inado
o desprezo por outros povos e outras religiões, o que Deus
bem como o cultivo do sentimento de superio purificou."
ridade. Na tentativa de proteger sua identidade (At 10,15)
étnica, o grupo de repatriados cometeu radicali
zações. Pode até ter havido boas intenções na defesa da identidade dos
judeus repatriados. Porém, a lei da pureza étnica levou a considerar os
estrangeiros como povos inferiores. No tempo de Jesus, ainda eram con
siderados insensatos e tão impuros como os porcos e os cães. Leia Mt 7,6;
8,30-32; 15,27 e compare com Lv 11,5 e Eclo 50,25-26!
Rute e Jó são estrangeiros. Nisso já dá para perceber uma crítica à
observância rigorosa da lei da pureza étnica. Contudo, é o Livro de Jonas
127
que faz a crítica mais contundente à exclusão dos estrangeiros do projeto
de Deus por parte dos repatriados. O Livro de Jonas defende a tese de
que todas as nações são povos de Deus e de que YHWH é Deus de todos
os povos e não refém de nenhuma nação.
Jesus, compreendeu muito bem a proposta dos autores de Rute,Jó
e Jonas. Igualmente rompeu a barreira entre o Judaísmo ortodoxo e ou
tras culturas. E entre os apóstolos, foi Paulo quem melhor compreendeu
essa dimensão, anunciando o Evangelho a todos os povos sem fazer ne
nhuma discriminação.
128
Irmlo. Também os amonitas c moabitas deviam ser excluídos. As razões
isflo e m N e 13,1-3.
No entanto, os camponeses pobres que não haviam sido deporta
dos pelos babilônios, tanto os do antigo Reino de Israel quanto os de
Judá, sc casaram com mulheres estrangeiras e com elas tiveram filhos. Para
eles essa rivalidade entre judaítas e estrangeiros não lhes dizia respeito. O
sentimento de ódio era mais restrito aos antigos moradores de Jerusalém
e às elites expatriadas, bem como a seus descendentes.
Na ótica de Esdras e Neemias, preocupados em manter a identida
de dos repatriados e a pureza da fé em YHWH, até se justifica essa atitude
extremada. E que a mistura com outros povos não era somente uma
mistura de línguas e culturas, mas representava fatalmente a mistura de
religiões (MI 2,11). Os casamentos mistos eram, portanto, uma perigosa
ameaça à fé em YHWH e à identidade da comunidade judaica em torno
de Jerusalém. Portanto, ao expulsar as mulheres estrangeiras, Esdras e
Neemias queriam manter a pureza da fé em YHWH.
A lei da “pureza étnica” recebeu destaque especial porque os repa
triados estavam interessados em manter a identidade própria dos judeus
como povo puro, eleito por Deus. Queriam também evitar o seguimento
a outras divindades, conseqüência natural caso houvesse casamentos mis
tos. Leia agora Dt 7,1-6 e perceba o interesse em constituir um povo
especialmente separado e fiel a YHWH.
130
mulher (Lv 15,19-30), por ser mãe (Lv 12,1-8), por ser esposa (Lv 15,18)
e por ser filha (Lv 12,1-8). Isso significa que os ritos de purificação eram
uma garantia de arrecadação regular para o tesouro do templo, desde os 12
anos até a menopausa da mulher. Além da lei do puro e do impuro, a lei da
pureza étnica excluía ainda as mulheres estrangeiras do convívio de seus lares.
As mulheres reagem
Mas as mulheres não se calaram diante dessa discriminação. Reagi
ram, exigindo dignidade. E o que veremos adiante, ao estudarmos o Li
vro de Cântico dos Cânticos e de Rute. Também a sabedoria é apresenta
da como mulher (Pr 8,22-9,12). No próximo volume, estudaremos ainda
os Livros de Ester ejudite.
Esses livros, mais do que considerar a mulher como impura, des
tacam suas qualidades, sua liderança, sua beleza, sua sagacidade, sua soli
dariedade para com os pobres e os estrangeiros, sua fidelidade ao Deus
dos pobres, sua valentia e sua ternura, seu protagonismo na luta pela liber
tação de seu povo, sua liberdade e sua igualdade em relação ao homem.
A formação do Judaísmo
Com a imposição da observância estrita da lei a respeito do funcio
namento do templo, da observância do sábado, da pureza étnica e da lei
do puro e impuro, Neemias e Esdras lançaram os fundamentos do Juda
ísmo que vai ser criticado e retificado por Jesus. Mas de tantos privilégios
que esse sistema mantinha e da obsessão em cumprir rigorosamente a lei,
essa estrutura acabou matando João Batista e o próprio Jesus de Nazaré,
como veremos no estudo do Segundo Testamento.
Durante o exílio, quando não havia mais trono, nem altar, nem tem
plo, passou-se a valorizar a Palavra. Foi o início do que se chamaria de
131 /
“Judaísmo” depois do exílio. É um modelo de vida bem diferente daque
le que era vivenciado em Jerusalém antes de sua queda. O centro não é
mais o trono real, nem tanto o templo, mas são as Escrituras.
Durante o exílio, a Palavra estava no centro da vida do povo. Na
reflexão das Escrituras, a lei tinha um destaque especial. No cativeiro babilô-
nico, Ezequiel fez referências à observância das leis de Deus (Ez 11,20; 44,24). ,
Esdras deu à fé judaica uma estrutura bem definida, centralizada na !
observância da Lei de Moisés. Em torno dela, a comunidade judaica pôde
manter-se unida, mesmo dispersa por todo o mundo. A lei tornou-se até ;
mais importante que o culto no templo. O Judaísmo tornou-se preponde
rantemente uma “religião do Livro”, uma comunidade sujeita à Lei de
Moisés. Proporcionou aos judeus um forte espírito de comunidade e os
libertou do ccntralismo do templo. Graças a isso, é que o Judaísmo sobre
viveu à destruição do 2° templo pelos romanos em 70 d.C. E até hoje vive
sem templo e sem sacrifícios.
O dia do nascimento do Judaísmo pode ser considerado o da lei
tura pública da Lei de Moisés narrada em Ne 8. Se podemos considerar
que o fundador de Israel foi Moisés, então também podemos dizer que
Esdras foi a pessoa que
lhe deu aquela estrutura
"O sacerdote Esdras levou o Livro
da Lei à presença da assembleia ... que criava as condições
e fez a leitura desde a manhã cedo para que sobrevivesse
até ao m eio-dia, na presença dos através dos séculos.
homens, das mulheres e de todos No pós-exílio, a
os capazes de com preender." classe sacerdotal regula
(Ne 8,2-3) mentou ainda mais to
dos os setores da vida a
partir da lei. Diante da necessidade do conhecimento, da interpretação, do
ensinamento e da aplicação da lei, surgiu no período dos persas uma nova
classe de pessoas dentro do Judaísmo. São os escribas ou especialistas na lei.
Acima, vimos qual foi a origem da sinagoga, ainda entre os deporta
dos na Babilônia, como um espaço nas casas para “assembleia” ou “reu
nião” da comunidade em torno das Escrituras. Sua finalidade era oportu-
nizar um espaço de oração e de estudo da lei. Na época de Neemias e
Esdras, certamente essa prática deverá ter-se difundido entre os repatria-
132
d<>s. Pois o ensino da Lei de Moisés passou a ser uma questão central na
tentativa de manter a identidade dos judeus em torno de Jerusalém. Dessa
í<irma, as Escrituras tornaram-se cada vez mais importantes.
A sinagoga era uma organização leiga. Não se realizavam ali sacrifí
cios de animais. Os sacerdotes podiam participar, porém, em pé de igual
dade com os demais participantes. No começo, a “reunião/sinagoga” era
ic;ilizada nas casas. No passar dos anos, porém, foram construídos prédios
próprios para esse fim, também chamados de sinagogas.
Em épocas posteriores, aos poucos foi-se deixando de lado a ne
cessidade da pureza étnica para pertencer à comunidade judaica. Já era
possível participar do Judaísmo, mesmo sendo estrangeiro. Bastava sub
meter-se à lei e aceitar a circuncisão para poder participar da comunidade
cultuai.
133
1. Será que o projeto de Esdras e Neemias não se ocupou demais
com o rigor da lei, sem se preocupar com a fome dos pobres da terra?
Não valorizou demais a religião, não se interes
"O sábado foi feito sando pelas condições de vida do povo?
para o homem e 2. Será que nã
não o home zação da religião de YHWH em detrimento de
para o sábado." outras experiências religiosas, tratando-as com
(Mc 2,27) intransigência? E possível uma convivência har
moniosa e de diálogo entre diferentes culturas
e ser, ao mesmo tempo, intransigente e considerando-se superior às de
mais? Essa postura não reforça preconceitos e fundamenta a rejeição e a
exclusão de crenças que sejam diferentes da nossa?
3. Seu projeto se dirige somente a Judá e a Benjamim e de modo
particular para os repatriados. Por que excluir os israelitas das tribos do
Norte que não foram expatriados por Nabucodonosor? Por que ele ex
clui os judaítas que não foram para o cativeiro? Por que chamar a todos
eles pejorativamente de “estrangeiros”, “povos da terra” ou “samarita-
nos”? Perto dos repatriados, os remanescentes certamente eram a grande
maioria de moradores na região.
4. Sabemos que na sociedade patriarcal da época, as mulheres não
tinham a mesma dignidade dos homens. A observância rigorosa da lei,
especialmente a lei do puro e do impuro, não contribuiu sensivelmente
para o aumento da discriminação da mulher?
134
Edição final de coletâneas
É no último período da dominação persa, isto é, em torno de 400
a 332 a.C., que devemos situar a edição final de coletâneas. Refenmo-nos
às coleções de Provérbios, aos cinco livros da Lei ou Pentateuco, aos qua
tro livros da OHC e às coleções de Salmos.
Os responsáveis por todo esse trabalho editorial são os sacerdotes
sadoquitas e os sacerdotes levitas especializados nas Escrituras. Eram, por
tanto, escribas com boa formação intelectual. Eram também sábios. A
partir de agora, passaremos a chamar essas duas classes sacerdotais res
pectivamente de sacerdotes e levitas.
Sabemos que Esdras foi um escriba, um doutor da lei. Era sacer
dote versado nas Escrituras. Além disso, era um oficial do rei persa com
alto grau de instrução. E mais. Na leitura pública da lei (Ne 8,1-8), ele
coordenou uma equipe de levitas para traduzi-la e explicá-la ao povo. A
partir da época de Esdras, cada vez mais esses grupos de sacerdotes e
levitas, que eram sábios escribas, tiveram um papel importante no Judaís
mo. Na verdade, eles se tornaram os orientadores espirituais da comuni
dade judaica em torno de Jerusalém.
Nessa época, voltaram a ser valorizadas as escolas sapienciais e de
ensino da lei, que já existiam antes do exílio, mas haviam perdido sua
importância. Nelas, os sábios instruíam especialmente os filhos homens de
famílias ricas. Não temos indícios de que tenha existido uma instrução
formal para meninas. Eclo 51,23 refere-se a uma casa de ensino desse tipo.
Certamente, é a esses sacerdotes e levitas que devemos a edição
final não só do Livro dos Provérbios, mas também do Pentateuco e do
Saltério. E deles a responsabilidade pela elaboração da releitura da história
de Israel que está na OHC. Também é deles a autoria de Pr 1-9 e de vários
capítulos do Pentateuco, como veremos a seguir.
135
1 Provérbios
“Pois quem me (a sabedoria) encontra,
encontra a vida e obtém o fa v o r de YHWH. ” (Pr 8,35)
136
Pr 1-9 serve de introdução a todo o livro. Recomenda o estudo da
sabedoria de Israel nele expressa. Quer ajudar para que as pessoas se tor
nem sábias e possam discernir o seu próprio caminho (cf. Pr 14,8 e 1,1-6).
Quer contribuir na formação do espírito crítico, da capacidade de discer
nimento, de escolha diante dos caminhos que a vida nos oferece. Quer
desmascarar tudo aquilo que não nos permite descobrir o verdadeiro sen
tido da vida.
O apóstolo Paulo vai na mesma linha ao insistir na moral do discer
nimento, da descoberta do caminho da vida, da liberdade e do amor. O
investimento na formação da consciência crítica e na capacidade de dis
cernimento é fundamental, uma vez que não basta ser livre, é preciso tam
bém saber exercer a liberdade.
137
Pr 8,22-36 é o ponto mais alto dessa reflexão sobre a sabedoria.
Ela é a primeira criatura de Deus e, ao mesmo tempo, a arquiteta de todo
o restante da criação, imprimindo-lhe o sentido fundamental da vida.
Estrutura de Pr 1-9
Agora, convidamos você a ler esses nove capítulos, seguindo a pro
posta de divisão abaixo. Mas antes, é preciso que se fale de duas inserções
em Pr 1-9. Pr 6,1-19 é um acréscimo, interrompendo o discurso do sábio
que continua em 6,20. E Pr 9,7-12 é uma inserção que interrompe a se
qüência no capítulo 9.
138
Pr 1: Introdução
1,1-7: Título do livro e finalidade dos provérbios.
1,8-19: Exortação contra os injustos.
1,20-33: Discurso da sabedoria personificada na profecia.
Pr 2-7: As bênçãos da sabedoria
2: As bênçãos da sabedoria.
3-7: Desenvolvimento sobre as bênçãos.
3,1-12: Atitude diante de Deus.
3,13-4,9: O valor da sabedoria.
4,10-27: Escolher entre dois caminhos.
5; 6,20-35; 7: Cuidado com a mulher estrangeira!
Pr 8-9: A sabedoria como uma mulher
8: Personificação da sabedoria como Messias e o sentido da criação.
9: Escolher entre o banquete da sabedoria (1-6) e o da insensatez (13-18).
139
Pr 30,1-14: Palavras de Agur
E uma pequena coleção de sentenças de Agur, um sábio estrangei
ro. Ele é de Massa, uma tribo ismaelita do norte da Arábia (Gn 25,13-14).
O assunto aqui refletido em forma
"N ão me dês riqueza de perguntas e sentenças é o mesmo do
nem pobreza. Livro de Jó. Primeiro, há uma admiração
Concede-me apenas o diante da grandiosidade de Deus e do uni
meu pedaço de p ã o ." verso (30,1-6). Depois, um pedido para se
(Pr 30,8) ter o suficiente para uma vida digna (30,7-
10). Por último, o sábio se espanta com as
pessoas injustas e que oprimem os pobres. Confira!
141
Que valor damos nós à sabedoria popular, aos provérbios po
pulares? Será que muitos deles não são mais profundos do que altas
reflexões filosóficas ou longos tratados de mestrado ou doutorado?
Até que ponto o Livro dos Provérbios nos ajuda a levar a sério a
cultura popular e sua capacidade de ver a vida numa perspectiva de fé,
levando-nos a louvar a Deus por sua presença no cotidiano? Como
podemos reler provérbios que refletem a ideologia dominante ou uma
cultura ainda fortemente marcada pelo patriarcalismo?
142
às festas religiosas, preocupação típica do clero, embora não exclusiva (cf.
Gn 1,14). A preocupação com as genealogias também tem origem entre
os sacerdotes (Gn 5; 10; ll,1 0ss). Sobre o dilúvio e a circuncisão você já
leu acima.
As marcas sacerdotais mais fortes, porém, estão nos Livros do Êxo
do, Levítico e Números.
143
tradição profética popular. Isso explica que a resistência, que os antigos
profetas exerciam contra os reis e suas estruturas de dominação, passa a j
ser expressa, de um lado, na literatura sapiencial popular (Rt, Jó, Ct, Jn, 1
Est, Jt) e, de outro, nas profecias anônimas, cujos oráculos foram acres
centados a outros livros proféticos. E o caso de Zc 9-14. Zc 13,2-6 regis
tra a crítica aos que haviam roubado a memória de resistência dos pobres,
a memória de luta dos verdadeiros profetas. Confira!
Temos, portanto, fortes divergências entre os autores dos escritos
sacerdotais no Pentateuco e na Obra Cronista por um lado, e, por outro,
os autores da literatura sapiencial de resistência, fruto do movimento pro
fético popular anônimo. Nesse sentido, é importante termos claro que as
divergências teológicas são em grande parte a expressão, em nível de reli
gião, dos conflitos de classe. Esse contraste teológico é também con
seqüência do enfrentamento dos pobres da terra com a comunidade ju
daica repatriada em torno de Jerusalém, que tinha o apoio dos persas. Para
se impor sobre o povo do campo que aí morava, os repatriados formu
laram a fé de Israel a partir do ponto de vista de sua precedência sobre os
outros segmentos da população, o que eqüivalia, de fato, a oprimir os
mais pobres.
144
• Ex 24,12-40,lss
- 24,12-31,18: Modelo de santuário e prescrições relativas aos sa
cerdotes.
- 32-34: O bezerro de ouro e a renovação da aliança (são textos mais
antigos, aqui inseridos e relidos na perspectiva pós-exílica dos sacerdotes).
- 35-40: Construção do santuário. É uma repetição quase literal de
25-31.
• Todo o Livro do Levítico
-1-7: Ritual dos vários tipos de sacrifícios.
- 8-10: Ritual de ordenação dos sacerdotes.
-11-16: Normas sobre o puro e o impuro e Festa da Expiação (16).
- 17-26: Lei de Santidade. Já vimos acima que Lv 17-26 também
tem os sacerdotes como autores, porém, na época do exílio.
- 27: Normas sobre tarifas e avaliações.
• Nm 1,1-10,28
-1-4: Recenseamento das tribos.
- 5-6: Leis diversas.
- 7-8: Ofertas dos chefes e consagração dos levitas.
- 9,1-10,28: Celebração da Páscoa e partida do Sinai.
Importante é lembrar que tudo o que é narrado nos textos acima
acontece junto ao monte Sinai. E claro que se trata de uma ficção literária,
para legitimar, sob a autoridade de Moisés, toda a legislação posterior.
Ainda outros trechos de Números devem ser desses mesmos cír
culos sacerdotais:
-15-19: Normas sobre os sacrifícios e sobre o poder dos sacerdo
tes e levitas.
- 26-31: Novo recenseamento e novas normas.
- 33-36: Memória da caminhada e prescrições sobre as fronteiras
da terra, aparte que cabe aos levitas, as cidades de refúgio e a herança para
as mulheres.
Para muitas pessoas, a leitura de todas essas prescrições torna-se
enfadonha. Por isso, caso não queira ler tudo, convidamos você a dar uma
olhada, pelo menos, em alguns capítulos, para ter uma ideia do jeito desses
textos de origem sacerdotal.
145
O Sinai e a instituição divina do culto
Para as tradições mais antigas em Israel, a experiência com YHWH
está intimamente relacionada com sua presença na libertação do poder
opressor do Egito e dos príncipes cananeus. É interessante observar que,
nos textos mais antigos, o eixo central é o Êxodo, a libertação, como
aparece no “credo” israelita (Dt 6,20-25; 26,1-11).
A medida que a tradição do Êxodo vai sendo conectada com a do
Sinai, a imagem que prevalece é a de um Deus solidário, presente no meio
do povo para promover a libertação dos hebreus diante da opressão do
faraó (Ex 3,1-4,17; 20,2). O Êxodo era o lugar da Aliança amorosa de
YHWH com Israel, expressa no Código da Aliança (Ex 19,1-24,11), cujo
coração é o Decálogo (Ex 20,2-17). As leis deveriam garantir a liberdade
e a solidariedade conquistadas no Êxodo (Dt 6,20-25).
Diferentemente dessas tradições mais antigas, a releitura desse perío
do da história de Israel feita pelos sacerdotes muda o eixo fundamental da
fé do antigo Israel. Para eles, o centro está no Sinai como lugar da lei e do
culto. O monte santo passa a ser o lugar da instituição divina do culto.
Somente nesse monte, teve origem o legítimo culto de sacrifícios no altar
do templo.
No monte, são realçadas a glória, a santidade e a transcendência de
Deus. E o culto no templo deve reproduzir essa transcendência, essa san
tidade e essa glória. Daí a excessiva preocupação com a pureza no ofere
cimento de sacrifícios. Somente podiam ser ofertados pelos puros e san
tos sacerdotes. Nem os levitas podiam ofertar no altar. Muito menos ho
mens leigos. Mulheres e estrangeiros, nem falar! Aqui, vale a pena relem
brar que foram os reis Ezequias e Josias que começaram a destruir os
santuários do interior, proibindo aos levitas exercerem seu sacerdócio e
levando-os ao templo de Jerusalém, onde exerciam funções subalternas.
Os rituais deviam ser executados rigidamente, de acordo com as prescri
ções. E o que se pode constatar nos escritos sacerdotais do pós-exílio.
O culto com seus sacrifícios era interpretado fundamentalmente
como um ato em que se buscava o perdão de Deus. Somente com esse
ato de expiação dos pecados, as pessoas se tornavam suficientemente san
tas para viver na presença de um Deus três vezes santo, totalmente outro.
A intenção fundamental do oferecimento de tantos sacrifícios era acalmar
146
permanentemente a ira de Deus, para que não viesse a acontecer uma
nova catástrofe sobre Israel, como havia sido no fim da monarquia, da
cidade santa e do templo, bem como o exílio com todas as suas con
seqüências.
147
entanto, os sacerdotes pós-exílicos conseguiram impedir o acesso direto
do povo a Deus. Dificultaram inclusive o acesso do próprio Moisés a
Deus. Em Ex 40,34-35, você pode ler que nem Moisés tem mais possibi
lidade de entrar na tenda de reunião e se encontrar com seu “amigo
YHWH”. Muito menos o povo.
• Para intermediar o acesso a YHWH, os sacerdotes se oferecem
como mediadores entre Deus e o povo através do culto no templo. Apre
sentam-se como os verdadeiros substitutos de Moisés. Esse papel não só
sedimenta seu poder religioso, mas legitima também seu poder político e
garante sua supremacia econômica. O acesso a Deus no Santo dos Santos
do templo é restrito ao sumo sacerdote em somente um dia por ano, na
Festa da Expiação (Lv 16). Não é mais o profeta que pode falar com e em
nome de Deus. Agora, somente o sumo sacerdote. È o fim da profecia.
Além disso, para os sacerdotes pós-exílicos, somente o sumo sacerdote será
ungido com óleo (Ex 29,7; Lv 8,12). A partir de Esdras, portanto, o sumo
sacerdote passa a assumir não só o papel do profeta mas também o do rei.
• Nos escritos sacerdotais, há uma excessiva preocupação com o
clero, o culto e o templo.
148
• Gn 12-50: Os pais e as mães em Israel Essa 2a parte de Gêne
sis trata de dois temas. O primeiro é a respeito da vida e das andanças de
grupos pequenos de pastores seminômades (12-36). Sua caminhada é sus
tentada pela dupla promessa de descendência numerosa e da definitiva
posse de terra. Deus chega a fazer aliança com Abraão, garantindo o cum
primento da esperança desses sem terra. O segundo tema desse bloco é a
idade Jacó com toda sua família para o Egito, a casa da servidão (37-50).
Mesmo no Egito, permanece a esperança de sair para uma terra onde
corre leite e mel.
• Ex 1,1-15,21: A opressão e a libertação dos hebreus. A Iapar
te do Livro do Exodo descreve a situação de opressão dos hebreus e seu
processo libertador movido pela fé em YHWH, o Deus que faz história
com quem luta por uma vida livre. Nesses capítulos, está presente a mais
antiga e mais importante experiência de Deus feita pelos hebreus. E a
teologia do Exodo, a primeira teologia da libertação. E a luta por vida digna
e por liberdade, uma vida com plena cidadania. Do ponto de vista teológi
co e temático, esse bloco é o ponto alto do Pentateuco.
• Ex 15,22-18,27: Caminhada libertadora do Egito ao Sinai.
YHWH continua sustentando os hebreus a caminho da terra prometida.
De um lado, o deserto serve de espaço para superar o sistema e a ideolo
gia do Império Egípcio. De outro, serve como ensaio de uma nova for
ma de viver sua fé em Deus, bem como vivenciar novas relações econô
micas e de poder.
• Ex 19,1-Nm 10,10: Aos pés do Sinai. Embora já tenha apareci
do no bloco sobre os pais e as mães em Israel, é nesse bloco que se
localiza o ponto alto da aliança entre YHWH e Israel. A teologia da aliança
tem como centro o am or gratuito e fiel de Deus por seu povo. O sinal
concreto dessa aliança é a doação da lei no monte. Sua síntese é o Decálo-
go, cujo centro é a proteção da vida (“Não matarás!” - Ex 20,13). Já
vimos acima como, na edição final do Pentateuco no pós-exílio, os sacer
dotes mudaram o eixo central do evento no Sinai para destacar a sacrali-
dade do culto, colocando em segundo plano a teologia do Exodo liberta
dor. Enfatizam a observância da pureza ritual e legal. Como esse bloco
149
ocupa um terço de todo o Pentateuco, podemos perceber o quanto pe
sou a mão dos sacerdotes e levitas na edição final dos livros da lei.
• Nm 10,11-21,35: Caminhada do Sinai até Moab. Continua a
caminhada em direção da terra. Nesse bloco, entre outros, são retoma
dos os mesmos episódios da prim eira etapa da caminhada. Compare,
por exemplo, Ex 16 com Nm 11,1-9.31-35, bem como Ex 17,1-7
com Nm 20,1-13!
• Nm 22-Dt 34: Na estepe de Moab. Nesse bloco, se passam os
últimos acontecimentos narrados no Pentateuco. Depois dos capítulos fi
nais de Números, vem o Livro do Deuteronômio. É apresentado como
um grande discurso de Moisés antes de sua morte. Ele começa lembran
do o passado e passa a promulgar inúmeras leis, para, no final, concluir
seu discurso com bênçãos e maldições. O livro termina falando da aliança
em Moab e das últimas disposições de Moisés.
E importante chamar a atenção para o fato de o Pentateuco termi
nar sem que seja cumprida a promessa da entrada na terra prometida. O
Deuteronômio e, portanto, todo o Pentateuco, termina sem que a terra
tivesse sido libertada. Essa era a situação dos judeus, quando a última
edição do Pentateuco foi produzida. Eram outra vez escravos, porém,
em sua própria terra (Ne 9,36-37). Portanto, fazia-se necessária uma nova
libertação na própria terra. A promessa de terra livre ainda estava por ser
cumprida. No seu conjunto, o Pentateuco propõe um projeto futuro de
esperança a seus destinatários no final da época de dominação persa. É a
continuidade da caminhada iniciada por seus antepassados em direção da
liberdade na terra prometida.
150
Para você continuar sua reflexão
Leia Lv 13,1-46; 14,1-32, bem como Mc 1,40-45 e reflita! a) Qual
era a situação das pessoas leprosas quanto ao convívio social e quanto à
sua relação com Deus? b) Qual era o papel dos sacerdotes nos casos de
lepra? Por que se manda o leproso curado apresentar-se ao sacerdote?
151
o como um santo, totalmente voltado ao culto. Não é por acaso que quase
a metade dos salmos é atribuída a Davi. E que a edição final do Saltério
também foi feita pelos mesmos editores finais do Pentateuco e autores da
OHC. Os cronistas dão também destaque especial à tribo de Levi, para
reivindicar a importância dos levitas.
A OHC não é historiografia no sentido moderno da palavra. E mais
uma leitura teológica da vida de Israel que visa a atender as necessidades da
comunidade de repatriados. Os cronistas precisavam reforçar a identidade
do Judaísmo, a centralização no templo de Jerusalém, seu dogma de pureza
étnica, a superioridade de Judá e de Davi, no contexto do conflito que
produzia a discriminação dos pobres da terra e dos samaritanos.
Convidamos você a dar um passeio pela OHC, a partir de suas
grandes divisões como segue.
152
Chama também a atenção que, embora faça a genealogia das tri
bos, a OHC omite totalmente a libertação da terra das mãos dos reis
cananeus e a rica experiência de fraternidade na época tribal. Moisés quase
desaparece no texto. E citado somente duas vezes (lC r 5,29 —Almeida
6,3; 6,34 - Almeida = 6,49). Essa omissão ajuda a apagar a memória
subversiva do Exodo. Tudo indica que essa omissão também se deve ao
fato de Moisés e a memória de libertação da opressão faraônica serem
importantes para as tribos do Norte, isto é, os samaritanos, tão despreza
dos pela comunidade judaica repatriada.
153
Omitem todo o capítulo 11 de lR s, onde se fala dos pecados de
Salomão e da opressão sobre os trabalhadores forçados. Igualmente, não
fazem nenhuma referência à forma sanguinária como Salomão usurpou o
trono que, por direito, pertencia a Adonias, seu irmão mais velho ainda
vivo (lR s 1-2). Idealizam, portanto, também a figura de Salomão, o gran
de construtor do Io templo.
154
Também vimos que o sacerdote e escriba Esdras, alto funcionário da
corte persa, voltou para Jerusalém e exigiu a observância rigorosa da Lei
referente à vida dos judeus, do templo, do culto, da pureza ritual e da pureza
étnica, com vistas à defesa da identidade da comunidade judaica repatriada.
4 Salmos
“ P ois em ti está a fo n t e da vid a.” (SI 36,10)
155
Os editores finais do saltério são os mesmos que elaboraram a
OHC e os escritos sacerdotais do Pentateuco, fazendo sua edição final em
torno de 350 a.C. Porém, é possível que tenha havido acréscimos posterio
res. Tinham interesse em organizar o Livro dos Salmos também em cinco
coletâneas: 1-41; 42-72; 73-89; 90-106; 107-150.
"Tua Pa lavro é Confira agora em sua Bíblia a fórmula semelhante
lâm pada para dos versículos finais de cada uma dessas coleções!
os meus passos, Por trás dessa divisão está a ideia dos sacer
luz para meus dotes e levitas em editar o saltério, imitando os
cam inhos." livros da lei, o Pentateuco, também dividido em
(SI 1 1 9 ,1 0 5 ) cinco livros. Assim, cada parte do saltério corres
ponderia a um livro da lei. Nesse sentido, os sal
mos seriam a dimensão orante da lei. São, ao mesmo tempo, uma síntese
da história de Israel, da sua profecia, de sua sabedoria e da sua lei. De fato,
muitos salmos fazem referência à lei. Confira algumas das citações que
seguem: SI 1,2; 19,8-11; 37,31; 40,9; 78,1.5.10; 94,12 e todo SI 119.
Além dos 150 salmos do saltério, há muitas outras orações nos
demais livros da Bíblia. Somente para citar algumas: Ex 15,1-21; Jz 5,1-31;
ISm 2,1-10; Lc 1,46-55; 1,68-79; 2,29-32.
156
•Outras coleções de salmos:
- SI 90-104. essa coleção reúne vários hinos monoteístas.
- SI 108-110 e 138-145: É um 3o “Salténo de Davi”.
- SI 120-134: Cancioneiro dos “Cantos de subida ou de peregrinação”.
- SI 105-107; 111-114; 116-118; 135-136 e 146-150: São os Aleluias”,
que convidam ao louvor de Deus.
Essa junção de coleções pré-existentes explica certas repetições. Veja,
por exemplo, que o SI 14 se repete no SI 53. O SI 70 está repetido em SI
40,14-18. O SI 57,8-12 se repete no SI 108,2-6. O SI 60,7-14 está repetido
do SI 108,7-14.
157
Mais de seiscentos anos de composição
Há alguns salmos muito antigos e são anteriores à monarquia.
Principalmente a partir do exílio, os sacerdotes passaram cada vez
mais e idealizar Davi como fundador e grande promotor do culto, como
vimos ao estudar a OHC. Essa é a razão por que muitos salmos são
atribuídos ao patrono do culto, embora tenham surgido só mais tarde.
Vários salmos sofreram um longo processo de formação. Com o passar
dos anos, foram modificados e reinterpretados.
De muitos salmos, é possível saber a época histórica em que foram
escritos, a partir das informações contidas neles. De muitos outros, po
rém, não é mais possível descobrir a data aproximada de seu surgimento.
158
classificação conforme os gêneros literário dos salmos, a sua forma poé
tica.
Como achamos a proposta de Marc Girard (Como ler o Uvro dos
Salmos. São Paulo: Paulus) própria para esta introdução, deixamo-nos gui
ar por ele. Mais que classificar os salmos segundo sua forma poética, pro
põe dividi-los com base nas ênfases teológicas, bem como a partir das
situações concretas da vida de onde nasceram.
Nessa perspectiva, pode-se dividir os salmos em quatro categorias
ou famílias, a saber, salmos de libertação, de instrução, de louvor e. de celebração
de eventos da tida. Cada categoria pode ser associada a uma ideia central ou
palavra-chave. Além disso, em cada família de salmos aparece com mais
clareza uma das três principais teologias que perpassam toda a Bíblia. Se
guindo esses passos, vamos à classificação dos salmos.
1. Salmos de libertação
Os salmos de libertação também podem ser chamados de salmos
de súplica. Na maioria deles, podemos escutar o grito por socorro dirigi
do a Deus.
A palavra-chave dessa categoria de salmos é “drama”, pois a vida
que está por trás do salmo é uma situação
de crise, de conflito ou de sofrimento diante "Em minha angústia
de situações de opressão política, social, eu gritei a YHWH,
moral, física, psicológica ou existencial. Atra e ele me responderá."
vés dessa família de salmos, as pessoas e a (SI 120,1)
comunidade buscam fortalecer sua luta por
libertação.
A ênfase teológica dos salmos de libertação é a teologia do Êxodo,
que nasceu no processo libertador da opressão. A libertação é o eixo fun
damental da espiritualidade dos salmos e, de resto, de todas as Escrituras.
Se fazem memória de YHWH libertador do Êxodo, eles nos im
pulsionam ainda hoje para continuarmos lutando por um mundo em que
todas as pessoas tenham acesso à dignidade.
Três quintos do salténo (89 salmos) podem ser classificados nesta
família de salmos.
159
SI 3; 4; 5; 6; 7; 9; 10; 11; 12; 13; 16; 17; 18; 20; 21; 22; 23; 25; 26; 27; 28;
30; 31; 32; 34; 35; 36; 38; 39; 40; 41; 42; 43; 44; 51; 54; 55; 56; 57; 58;
59; 60; 61,62; 63; 64; 66; 68; 69; 70; 71; 73; 74; 76; 77; 79; 80; 83; 85;
86; 88; 89; 90; 94; 102; 106; 107; 108; 109; 115; 116; 118; 119; 120;
123; 124; 125; 126; 129; 130; 131; 137; 138; 139; 140; 141; 142; 143;
144.
2. Salmos de instrução
Os salmos de instrução também são conhecidos como salmos sa-
pienciais ou catequéticos. Querem educar para a
"Feliz o homem justiça, para a prática da aliança.
que não segue A ideia-chave dessa família de salmos é “li
o caminho dos ção”, pois a comunidade medita sobre a vida, que
injustos... mas é, na verdade, a melhor escola para aprender de
na lei de YHWH Deus seus desígnios. São salmos que não são diri
se com praz..." gidos diretamente a Deus, mas são dirigidos para
(SI 1,1-2) a comunidade, para pessoas a fim de que perm a
neçam fiéis à aliança ou voltem a ela. A maioria
dos salmos desta classificação apela para que se escolham os bons valores
da vida. Para isso, censura, confronta com a Palavra de Deus, pede que se
escutem os conselhos dos sábios e se compare a prática dos justos com a
dos injustos.
A teologia que sobressai nos salmos de instrução é a teologia da
aliança que celebra a presença amorosa, fiel e gratuita do amor de Deus na
vida. i
Se os salmos são um testemunho de fé a respeito de um Deus que
faz aliança com a humanidade, eles continuam a fortalecer nossa mística e
nossa esperança, mobilizando-nos em favor de uma sociedade, cujos ali
cerces são o amor, a fidelidade e a gratuidade nas relações interpessoais,
interculturais e com o próprio Deus.
160
Ao todo, 19 salmos cabem nessa classificação.
SI 1; 14; 15; 19; 24; 37; 49; 50; 52; 53; 75; 78; 81; 82; 91; 95; 112; 114;
127.
3. Salmos de louvor
Os salmos de louvor expressam a alegria diante de Deus, diante das
maravilhas de sua criação. São orações de louvor dirigidas diretamente a
Deus ou à comunidade. Normalmente, há um convite inicial para o lou
vor, seguido dos motivos pelos quais se louva a Deus.
A palavra-chave dessa categoria de salmos é “admiração”, pois a
comunidade e as pessoas se maravilham diante da
beleza da criação, contemplam a ação de Deus na "Nações todas,
história, um Deus que está próximo, que é rei e que louvai a YHWH,
é o Deus dos pobres. povos todos,
A ênfase teológica dos salmos de louvor é a g lo rific a i-o !"
teologia da criação, que tem como centro um pro (SI 1 17,1)
jeto de vida plena para nosso mundo.
Se os salmos celebram o Deus doador da vida, eles nos convidam
a sermos também em nossos dias cocriadores com Ele, gerando, promo
vendo e defendendo a vida.
São 25 os salm os que podem ser classificad o s nesta fam ília
de salmos.
SI 8; 29; 33; 47; 92; 93; 96; 97; 98; 99; 100; 103; 104; 105; 111; 113; 117;
135,136;145,146,147,148;149,150.
161
4. Salmos de celebração da vida
Como os salmos de louvor, também os salmos que celebram mo
mentos especiais da vida são orações que expressam a alegria do povo, da
comunidade.
A ideia-chave dessa família de salmos é “fes
"A terra deu seus ta”, pois celebram ocasiões especiais da vida, como
frutos; Deus, a entronização do rei, nascimentos, as colheitas, os
nosso Deus, casamentos ou as peregrinações.
nos abençoou." Nenhuma das três ênfases da teologia de Is
(SI 67,7) rael, presentes nas categorias de salmos anteriores,
se destaca nos salmos de celebração da vida.
São 17 os salmos que podemos classificar nesta família de salmos.
SI 2; 45; 46; 48; 65; 67; 72; 84; 87; 101; 110; 121; 122; 128(?); 132; 133;
134(r).
162
nas da vida de Jesus e colocando citações dos salmos na boca do próprio
Jesus, no sentido de clarear sua missão como Messias enviado por Deus.
Mt 4 ,6 ............ ....Sl 91,11-12 Lc 13,27........ .... Sl 6,9
Mt 5 ,4 ............ ....Sl 37,11 Lc 23,46........ .... Sl 31,6
Mt 13,35........ ....Sl 78,2 J ° 2 ,1 7 .......... .... Sl 69,10
Mt 2 1 ,9 .......... ....Sl 118,25-26 Jo 6,31 .......... .... Sl 78,24
Mt 2 1 ,1 6........ ....Sl 8,3 Jo 1 0 ,3 4 ........ .... Sl 82,6
Mt 2 1 ,4 2........ ....Sl 118,22-23 Jo 1 5 ,2 5 ........ .... Sl 35,19; 69,5
Mt 2 2 ,4 4........ ....Sl 110,1 Jo 1 9 ,3 6 ........ .... Sl 34,21
Mt 2 3 ,3 9........ ....Sl 118,26 At 1,20a........ .... Sl 69,26
Mt 26,23 ........ ....Sl 41,10 At 1,20b........ .... Sl 109,8
Mt 2 6 ,6 4 ........ ....Sl 110,1 At 2,25-28 .... .... Sl 16,8-11
Mt 27,34.48... ....Sl 69,22 At 2,34-35 .... .... Sl 110,1
Mt 27,35 ........ ....Sl 22,19 At 4,25-26 .... .... Sl 2,1-2.
Mt 27,46 ........ ....Sl 22,2
Ao percebermos como o Saltério foi tão importante na vida de
Jesus e das primeiras comunidades, sentimo-nos desafiados a fazer dos
salmos também a nossa oração. As orações do Saltério continuam muito
atuais, porque nasceram da vida do povo. Essa atualidade dos salmos nos
serve como escola de oração no sentido de nós, hoje, continuarmos a
reescrevê-los a partir de nossa realidade.
Projetos de resistência
na sabedoria popular
Uma coisa nos surpreende ao olharmos para o projeto dos sacer
dotes em torno da rigorosa observância da Lei a partir do 2° templo na
época de Neemias e de Esdras.
Durante a monarquia em Israel ejudá, a profecia exercia um papel
importante. Por um lado, denunciava os desmandos das autoridades. De
outro, defendia as vítimas daquela estrutura de exclusão, anunciando-lhes
dias melhores. Da mesma forma, durante o exílio babilônico, a profecia
ajudou o povo a analisar sua história a partir da infidelidade a YHWH,
preparando-o para um novo êxodo, para a reconstrução de sua identidade.
No pós-exílio, já percebemos uma certa ambigüidade no movi
mento profético. Como vimos, Ageu e Zacarias (1-8) viam como central,
no projeto de reconstrução, o papel do templo. Diferentemente, o 3o
Isaías (56-66) se opôs a esse projeto e defendeu uma religião autêntica em
defesa da vida dos mais pobres.
Aos poucos, o sacerdócio do 2° templo foi pretendendo tomar o
lugar da profecia. O papel de intermediários entre o povo e YHWH,
antes desempenhado também pelo movimento profético, foi cada vez
mais monopolizado pelos sacerdotes. Esse monopólio era exercido atra
164
vés do controle dos sacrifícios no altar do templo e através da estrita
observância da lei. A lei era considerada a expressão da vontade de Deus
e o único caminho para a verdadeira vida.
Dessa forma, a profecia, como movimento popular de resistência,
se vê desautorizada pelo templo de Jerusalém. Mas será que a profecia de
fato morreu? Não! Ela continuou de outra forma.
Foi especialmente na sabedoria popular que o movimento proféti
co no pós-exílio buscou formas para se manifestar. De um lado, fazia suas
críticas a uma estrutura religiosa excludente. De outro, expressava sua vi
são de como deveriam ser as relações num “novo céu e numa nova terra”.
Veremos depois, com o Livro do profeta Joel, que a resistência profética
popular vai gerar o movimento apocalíptico.
Neste capítulo, passaremos a analisar quatro livros da Bíblia, cujo
gênero literário é tipicamente sapiencial. Dois deles, Jó e Cântico dos Cân
ticos ou Cantares, inclusive se encontram entre os livros que classificamos
como sapienciais. Embora não estejam na lista dos livros sapienciais, os
outros dois, Rute e Jonas, também têm uma forma literária que vem da
sabedoria. Sua linguagem é novelística. Rute e Jonas, junto com Ester,
Judite e Tobias, que estudaremos no próximo volume, são novelas bíbli
cas. Como já vimos, podemos ainda incluir nesse gênero literário a história
de José no Egito (Gn 37-50, exceto os capítulos 38 e 49).
Os quatro livros (Jó, Ct, Rt, Jn) tiveram sua edição final em torno
do ano 400 a.C. Justamente na época em que foi imposto o projeto do 2o
templo sob Neemias e Esdras. Todos eles têm em comum a crítica a esse
projeto. Nisso são continuidade do movimento profético pré-exílico de
resistência em defesa da vida ameaçada. Com ênfases diferentes, questio
nam a lei de pureza étnica (Jn, Rt e Jó), a doutrina da retribuição (Jó e Jn)
e a lei do puro e do impuro que, entre outras coisas, considerava a mulher
inferior ao homem (Ct). Além disso, defendem o direito dos pobres (Rt).
E o que passaremos a ver, começando por Jó.
165
1 Jó: uma nova experiência de Deus
166
Por um lado, questiona a teologia oficial de seu tempo e ridiculariza
os teólogos oficiais e reconhecidos pelas autoridades eclesiásticas de então,
representados pelos “amigos” de Jó. Na verdade, os “amigos” de Jó são
o braço direito de Satanás, tentando maquiar, falsificar a imagem dos opres
sores, apresentando-os como benfeitores. Mais tarde, Jesus diria o mesmo
dos que “tiranizam os povos” (Lc 22,24-26).
Nenhum sistema filosófico, nenhuma doutrina teológica e moral,
nenhum poder político têm resposta para tudo e para sempre. E preciso
ser mais contextual e ter os olhos abertos à vida real. È necessário resolver
os problemas na medida em que aparecem, fazendo permanentes sínteses.
O que se deve evitar é absolutizar, eternizar ou proclamar como dogmas
as doutrinas profundamente condicionadas por cada época.
Por outro lado, ao desmascarar a farsa da teologia oficial, do exer
cício do poder e da mentira nas relações políticas e religiosas, Jó propõe
uma nova forma de entender as causas do mal e do sofrimento. A dor da
doença e da pobreza, das desgraças e da humilhação não vem de Deus
como castigo por causa do pecado de quem sofre. Os autores do Livro
de Jó nos revelam que os pobres daquele tempo tinham uma experiência
de Deus diferente daquela que era defendida pelos teólogos do templo.
Na ação dramática que se desenvolve nesse livro, as duas concepções de
Deus estão em disputa. Jó representa a resistência dos pobres contra a
imposição de uma compreensão de Deus imposta por doutrinas a partir
da ideologia da instituição dominante.
167
entre os pobres, haja diferentes imagens de Deus? Como as institui
ções oficiais reagem às novas formulações teológicas que surgem
lá onde as igrejas experimentam uma nova forma de viver o evan
gelho na defesa da vida? Será que, tal como os “am igos” de Jó ,
ainda continuam tentando silenciar o grito que vem dos que so
frem, dos excluídos?
A teologia da retribuição em Jó
Como vimos, o tema principal do Livro de Jó é a resistência contra
a teologia oficial do templo que compreendia YHWH como um Deus
justiceiro que retribui a cada pessoa segundo o cumprimento da lei. Aos
bons observantes da lei, a bênção, isto é, ri
"Conform e eu vi, queza, vida longa, saúde, descendência e honra.
os que cultivam a Aos maus cumpridores da lei, o castigo, isto
m aldade e semeiam é, pobreza, morte prematura, doença, esteri
o miséria, também lidade e desonra.
as colhem ." (Jó 4,8) Antes de olharmos como o dogma
da retribuição aparece em Jó, uma observa
ção importante se faz necessária. Até o exílio, a doutrina da retribuição era
entendida como algo coletivo, de toda a comunidade. Até se dizia que as
conseqüências dos atos das pessoas eram hereditárias. Veja, por exemplo,
Ex 20,5; 34,7 J r 32,18; Lm 5,7; Ez 18,2!
Porém, os cativos na Babilônia consideravam injusto pagar pelos
pecados de seus antepassados (Ez 18,25.29). Então, o profeta Ezequiel
reelabora a ideia da responsabilidade coletiva e defende a responsabilida
de pessoal. Cada pessoa é responsável por seus atos. Não deixe de ler
Ez 18,4b! Todo o capítulo 18 trata do asspnto. Isto também aparece
em Jr 31,29-30; Dt 24,16 e 2Rs 14,5-6. Confira!
E importante termos presente que, a partir do exílio, acentua-se
cada vez mais o aspecto pessoal no dogma da retribuição. No Livro de Jó
isso fica evidente.
Perceba, agora, como em Jó estão presentes e em oposição as con
seqüências individuais, tanto da bênção como da maldição.
• Jó era rico e passou a ser pobre (1,14-17.20-21).
168
• Jó tinha filhos e filhas (1,13). Portanto, tendo descendentes, tinha tam
bém futuro, continuava na história. Porém, Jó ficou sem suas filhas e seus
filhos, ficou como estéril, isto é, sem descendência e sem futuro (1,18-19).
• Os filhos d ejó , ao invés de ter vida bnga, tiveram morte prematura
(1,18-19). Isso podia ser considerado tanto conseqüência de algum peca
do de seus antepassados como deles mesmos.
• Jó tinha saúde (2,5) e passou a sofrer em meio a terríveis doenças
(2,7-8).
• Além de todo esse sofrimento, Jó ainda teve de aguentar a des
moralização por parte dos representantes das autoridades, os “amigos”
que desonram uma pessoa honrada, justa e inocente. E o que descrevem os
capítulos 3 a 37.
Jó e a teologia da gratuidade
O dogma da retribuição fazia crer que a bênção de Deus está em
primeiro lugar lá onde há riqueza, saúde, vida longa, honra e descendência.
Diante disso, reage o movimento dos pobres e doentes, considerados
pecadores pela religião oficial e, segundo ela, discriminados pelo próprio
Deus. Jó resiste, elaborando uma nova teologia. Não a partir de quem
acumula bens e saúde, mas a partir dos “porões da humanidade”, da
miséria, da doença e da tragédia. Jó é símbolo dessa resistência. Mais do
que ser o Jó paciente e resignado, ele é o Jó da indignação e até da revolta
contra a manipulação de Deus.
169
o pobre, o doente, aquele que é desmoralizado e acusado como pecador
e castigado por Deus. Os “amigos” chegam a acusar Jó de desestabilizar a
teologia oficial (15,4).
Foi assim que, no passado, nasceu a reli
"Subverfes até a gião de YHWH. Foi percebido em meio à luta
religião e dos hebreus por liberdade contra a tirania do fa
desacreditas raó e dos reis cananeus. Foi também assim que
a devoção Jesus revelou a presença de Deus em meio aos
para com Deus." pobres.
(Elifaz - Jó 1 5,4) Os pobres do tempo de Neemias e Es-
dras lutam para se libertar da teologia oficial, re
presentada pelos “amigos” de Jó. Elaboram aprópna teologia a partir de
sua experiência de Deus. Essa teologia “crítica” torna-se possível porque
há grupos de pobres que assumem resistir à opressão e lutar contra a
dominação econômica, social, política e cultural. O conflito com a classe
dominante gera conflito também com a teologia dominante.
Para eles, a relação com Deus é uma resposta gratuita ao criador e
defensor da vida. Sua fé é num Deus muito diferente daquele defendido
pelos representantes da instituição oficial. Experimentam um Deus vivo,
solidário, sempre disposto a estender a mão aos que mais dele precisam.
Percebem um Deus como seu aliado e não um cruel castigador. De uma
visão de Deus como inimigo (16,11-14; 30,11-18; 31,23) passam a experi
mentá-lo como amigo e defensor (16,19-21; 19,23-29). A relação com a
divindade já não pode basear-se em trocas comerciais, do tipo “eu amo
porque a lei assim manda e em troca espero uma recompensa de Deus”.
Ao contrário, o verdadeiro amor não é uma imposição de fora. Brota de
dentro, é uma opção. Ama-se gratuitamente como resposta à gratuidade
com que Deus nos criou e primeiro nos ímou.
170
Jó e a lei de pureza étnica
Leia agora, os dois primeiros capítulos d ejó !
Você percebeu que Jó é da terra de Hus (1,1), isto é, da terra de
Edom que fica fora de Israel. Ao colocar o protagonista desse drama em
terras estrangeiras, podemos deduzir, pelo menos, duas intenções.
• De um lado, o texto quer refletir sobre o sofrimento como uma
experiência humana universal O sofrimento, seja ele conseqüência da pobreza,
da falta de perspectivas de futuro, da morte prematura dos filhos ou da
doença, é um a experiência comum a todos os povos. Faz parte do coti
diano de inúmeras pessoas em todo o mundo. Nós não nos deparamos
todos os dias com situações de sofrimento?
• De outro lado, ao situarem o personagem central entre os estran
geiros, os autores d e jó querem questionar a ideologia oficial do templo
que defendia apureza étnica dos judeus. E justamente um estrangeiro quem
faz uma nova experiência de Deus, descobrindo a verdadeira religião. E a
religião da gratuidade, do Deus que escuta o clamor dos que sofrem.
Questiona também os teólogos oficiais que, em nome da religião, desmo
ralizam as vítimas do sistema, acusando-as injustamente de culpadas.
Satanás
Convém que façamos aqui uma reflexão sobre esse personagem
presente nos dois primeiros capítulos dejó.
Satanás (Satã em hebraico) tem a sua origem nos tribunais que se
reuniam nas portas das aldeias. A palavra significa “promotor”, ou
seja, aquele membro do tribunal encarregado de acusar o réu. Pos
teriormente passou a significar adversário, acusador, inimigo. É nesse
sentido que ele aparece diante de Deus para acusar Jó e fazer-lhe mal.
Sua figura é semelhante à de um promotor público ou à de um procu
rador na corte de Deus.
Desde as origens de Israel até o exílio babilônico, a teologia
israelita não era dualista, isto é, que atribuía o bem a Deus e o mal ao
demônio. Para Israel, tudo vinha de Deus, tanto o bem quanto o mal. A
doutrina da retribuição o confirma, como você já viu. Leia agora Is 45,7
e Am 3,6! Você pode conferir ainda ISm 16,14-23; 2Sm 24,15-16 e
lR s 22,22!
171
Aos poucos, porém, Israel vai incorporando em sua teologia cren
ças de outros povos. E o caso do dualismo persa, para quem os males
vinham dos demônios e as coisas boas procediam das divindades.
O dualismo entrou em Israel e também em todo o Antigo Ori
ente de cultura semita a partir da dominação persa, quando foi ampla
mente difundida a crença dos persas em demônios. A cultura grega e
todas as culturas indoeuropeias sempre foram dualistas. Na Pérsia,
havia uma demonologia bem desenvolvida. Segundo essa crença, to
dos os malefícios, desde males psíquicos e mentais até as doenças, as
tentações e as desgraças, eram atribuídos a demônios. Era uma infini
dade de demônios ou espíritos maus. Acreditava-se, inclusive, que ha
via um que era o chefe desse exército demoníaco. Este chefe era uma
figura suprema do mal como a divindade suprema persa, Ahura Ma
zda, era a figura suprema do bem.
Um exemplo que deixa bem claro que a crença em demônios em
Israel foi introduzida tardiamente é o relato a respeito do recensea-
mento feito pelo rei Davi. 2Sm 24,1, um texto mais antigo, diz que foi
YHWH quem mandou que o rei fizesse o censo. Quando a mesma
história foi escrita novamente na OHC, durante o século 4 a.C., o
censo, considerado pelo povo um mal que visava à tributação, foi
atribuído a uma ordem de Satanás (lC r 21,1). Desse modo, YHWH
foi substituído por Satanás no texto. Em outras palavras, o mal come
ça a ser atribuído a Satanás. Não deixe de ler as duas citações!
Adotar essas categorias dualistas ajudava Israel a resolver contra
dições contidas em sua maneira de conceber e formular a fé. Como
compreender que Deus pudesse ser, ao mesmo tempo, o princípio do
bem e do mal? Ficava mais fácil imaginar que a responsabilidade pelo
mal era de outro princípio, “adversário” de Deus, embora, no final
das contas, submetido a seu poder e a seus propósitos de salvação.
A primeira vez que aparecem referências a Satanás como sinôni
mo do demônio no Primeiro Testamento é em textos da época de
dominação persa em Judá. E o que você pode conferir, além de lC r
21,1 e Jó 1-2 que você já leu, em Zc 3,1-2. Em Lv 16,8ss, o nome de
um dos demônios do deserto é Azazel.
Em textos antigos, Satanás é traduzido simplesmente por adver
172
sário, traidor ou inimigo. Veja, por exemplo, ISm 29,4; lR s 11,23!
Isso se deve à mudança da imagem de Deus no pós-exílio, bem
como à mudança do conceito de mal. Os deportados tiveram contato
com as cortes babilônicas e persas, bem como com sua religião em
que as divindades são sempre mais levadas para cima, para os céus,
para longe das pessoas. Quanto mais alto ficavam as divindades, tanto
mais poderosas elas eram. Aqui na terra, tanto mais pequeninas tam
bém eram consideradas as pessoas diante de tanto poder divino. Daí a
necessidade de anjos para servirem de intermediários entre o distante
Deus e a humanidade. Essa imagem de Deus também influenciou os
judeus repatriados, passando a conceber YHWH como um rei pode
roso, cercado por uma corte de anjos que estava a seu serviço. Certa
mente o 3o Isaías tenta resgatar YHWH como aquele que é uma pre
sença libertadora em meio aos pobres, ao polemizar com os que de
fendiam um Deus que mora somente em lugares sublimes. Não deixe
de ler Is 57,15!
E interessante notar que a crença dualista dos persas e a fé em
YHWH, como origem tanto da bênção quanto da maldição, convivi
am em Israel desde o exílio. O dogma da retribuição continuava e, ao
mesmo tempo, ia-se assimilando elementos da crença persa em espíri
tos bons ou anjos e em espíritos maus ou demônios. No Livro d ejó ,
as duas crenças estão claramente presentes. Em Jó 1-2, aparece Satanás
como causador dos males. Para os “amigos” de Jó, todo seu sofri
mento era considerado como castigo de Deus.
Por outro lado, Jó questiona essa teologia dos representantes da
doutrina oficial defendida pelos sacerdotes do 2° templo. Sua ex
periência de Deus e sua vida justa o levam a concluir que não pode ser
de Deus que vêm os males sobre ele. Nem tampouco os atribui a
demônios. E o caso da pobreza. Jó vê na exploração a causa principal
da pobreza, como se pode ler em 24,1-12. Jó faz uma nova experiên
cia de Deus, diferente tanto da teologia israelita da retribuição quanto
da demonologia persa. Resgata, portanto, a teologia do Êxodo.
Em Israel, a demonologia somente teve um forte desenvolvi
mento com a opressão dos gregos a partir de 332 a.C., época do
advento da apocalíptica entre os judeus. Sobre o movimento apoca
173
líptico como resistência do povo sofredor contra os impérios que
oprimem, nós voltaremos a falar nos próximos volumes. Voltaremos
a falar também da demonologia.
175
De outro, as partes inicial e final parecem diminuir a força da nova
experiência de Deus feita por Jó. Parecem ser uma camisa de força que
serve de mordaça para a religião da gratuidade. Até certo ponto, diminu
em o significado da experiência de Deus feita pelas vítimas da estrutura
dominante simbolizadas por Jó. Poderíamos até dizer que a teologia ofici
al, quando não consegue eliminar a teologia popular, acaba assumindo-a
para manter o controle sobre ela. E a cooptação da resistência e do seu
discurso, a fim de esvaziar sua força de contestação e de mudança, para
que tudo fique como está.
Nesse sentido, o final do livro parece anular a tese defendida por Jó
em todos os seus discursos. Se você lê Jó 42,10-17, percebe que Deus
duplicou todas as suas posses, abençoando-o mais do que no princípio.
Porém, mais do que deixar-se domar pelo “Jó paciente” da mol
dura do livro, o “Jó rebelde” do texto em verso parece querer questioná-
lo, para que deixe de ser resignado e acomodado à situação de miséria e à
teologia mercantil da classe dirigente. O Jó rebelde parece querer libertar o
Jó paciente de sua resignação diante da doutrina da retribuição. Quer aju-
dá-lo a ser sujeito de sua vida para que deixe de ser objeto de manipulação
nas mãos de seus “amigos”.
A própria ambigüidade do livro pode muito bem estar revelando
o quão conflitivo foi o debate nesse tempo em torno das concepções de
Deus e da vida do povo.
O final do Livro de Jó
A respeito do epílogo do Livro de Jó (42,10-17), pelo menos duas
coisas ainda devem ser ditas.
Em primeiro lugar, precisamos nos perguntar: Quem estava inte
ressado em cooptar e anular o resgate do Deus que é solidário prefe
rencialm ente com os pobres e deles é defensor? Ainda há hoje quem se
aproprie da experiência do Deus libertador, transformando-a em teolo
gia que legitima o modelo de sociedade vigente? Não é isso fazer de uma
religião libertadora uma ideologia que sustenta e mantém os pobres resig
nados e acomodados? Não é isso tirar deles a capacidade de dizerem sua
palavra, para que continuem repetindo a ideologia imposta pelos donos
do mundo? E mais. Tirar deles a capacidade de escutarem o clamor da
176
realidade com seus ouvidos, para que continuem escutando somente o
que lhes é apresentado pela mídia? Não é também tirar-lhes a capacidade
de enxergar a vida com seus próprios olhos, mantendo as viseiras que
impedem de ver a vida como ela é? Por fim, impedi-los de caminhar com
suas pernas como sujeitos de sua própria história, para que continuem
sendo eternos manipulados por aqueles que por eles decidem?
Em segundo lugar, é preciso notar algumas diferenças significativas
entre aparte inicial (1,1-2,10) e esse final do livro. Diferenças que mos
tram, de um lado, uma forte influência dos pobres, que exigem a partilha
dos bens. De outro, temos a presença significativa de mulheres que reivin
dicam o reconhecimento de sua dignidade. Exigem também parte na par
tilha da herança. Confira!
• Jó é reabilitado e é retribuído em dobro.
• Os irmãos e amigos o visitam e repartem com ele dinheiro, dan
do-lhe um anel de ouro, que também simboliza a aliança de Deus com seu
povo.
• O Jó reabilitado não tem mais escravos como tinha antes (cf. 1,3).
• Agora, suas filhas ganham nome.
• Também elas recebem herança e não somente os seus irmãos
como era a tradição. As mulheres recebiam herança somente na medida
em que não tinham irmãos (Nm 27,1-11; 36,1-12).
Podemos, portanto, perceber significativos avanços, como a parti
lha de bens com os pobres, a ausência da escravidão, o reconhecimento
das mulheres que recebem nome e têm sua beleza destacada, bem como a
partilha da herança de igual forma entre filhos e filhas.
Qual das duas teologias, em tensão no Livro de Jó, Jesus assume
em seu Evangelho? Procure lembrar textos de partilha, de resgate da dig
nidade da mulher, de solidariedade para com os mais pobres e de gratui
dade na relação com Deus e com outras pessoas.
Divisão do livro
Convidamos você a ler o Livro de Jó, seguindo a proposta de
divisão a seguir.
1. Prólogo (1,1-2,10) e epílogo (42,10-17): uma moldura antiga
em prosa para um quadro novo.
177
2. Apresentação dos “amigos” (2,11-13) e reprovação de Deus
(42,7-9): Ainda em prosa, são como as dobradiças que encaixam a mol
dura ao corpo do livro (3,1-42,6), que está em forma poética.
3. Debate entre Jó e os três sábios (3-27): é uma discussão teo
lógica em três rodadas (3-14; 15-21; 22-27). Os teólogos da doutrina da
retribuição interpretam a pobreza, a doença e as demais desgraças na vida
de Jó a partir da religião tradicional. Querem que Jó assuma que sua misé
ria é castigo de Deus por causa de algum pecado seu. Depois da fala de
cada um de seus “amigos”, Jó se rebela. Nega-se a reconhecer sua culpa.
Rebate os argumentos apresentados pela religião mercantilista. A partir de
sua experiência de Deus, não permite a falsificação da imagem de YHWH.
4. Elogio da sabedoria (28): deve ser acréscimo posterior.
5. Discurso final de Jó (29-31): nesse discurso, Jó faz sua própria
defesa, declarando-se justo (29). Se é justo, também é inocente (31). Se no
passado havia prosperidade e se no presente há miséria, então por que
tanto sofrimento?
6. Discurso de mais um sábio (32-37): o quarto sábio aparece
como paraquedista, pois não é citado nem na apresentação dos “amigos”
nem na reprovação de Deus. E um discurso que, tal como as reflexões
dos outros três sábios, quer defender a santidade e a justiça de Deus. No
entanto, ao vir em defesa de Deus, abafa a angústia humana, enganando
aqueles que sofrem. Como Jó 28, também deve ser acréscimo posterior.
7. Diálogo entre Jó e Deus (38,1-42,6): Deus questionajó sobre
os grandes enigmas do universo. Ele é o criador e senhor da vida que
triunfa sobre o mal (38,2-40,2). Sem resposta às questões levantadas por
Deus, Jó sente-se pequeno e silencia (40,3-5). Deus volta a desafiá-lo (40,6-
41,26). E Jó reconhece o poder e a liberdade de Deus, o grande criador
(42,1-6). Ele cria gratuitamente. E graça, é dom. Em resposta à liberdade
humana, Deus não elimina o opressor. Porém, é parceiro dos oprimidos,
dando-lhes as forças necessárias para resistir, lutar e vencer os sofrimentos
e suas causas. Jó superou a visão de Deus recebida na catequese ministrada
por seus “amigos”, os escribas do templo. Sua compreensão de Deus
parte, não do conhecimento abstrato de doutrinas, mas da sua experiência
de sofrimento no cotidiano. Por isso, pede perdão por ter acreditado em
178
Deus a partir das categorias e princípios abstratos da doutrina da retribui
ção, cultivando uma falsa visão de Deus.
O assunto de cantares
Na sua origem, os poemas de amor do Livro Cântico dos Cânti
cos, ou Cantares, devem ter sido compostos para servirem como canções
de amor, especialmente em casamentos.
Acima de tudo, este livro trata da mais profunda e mais universal
experiência da humanidade, que é o amor. Amor que envolve paixão entre
pessoas afetivamente ligadas, entre mulheres e homens. Em Cantares, essa
relação amorosa é vivenciada entre um pastor (1,7) e uma camponesa
(1,6) que também é pastora (1,8).
179
Aparentemente, Cantares não fala de Deus. Apenas uma única vez
faz referência a YHWH (8,6). Estabelecendo uma ponte entre o amor
humano e Deus, Cantares celebra a
relação afetiva como fazendo parte
" G rave-m e, como selo em
do amor de Deus. Celebra a pre
seu coração, como selo
sença do amor de Deus na experiên
em seu braço; pois o am or
cia de amor e paixão entre pessoas.
é forte, é como a morte!
O amor humano é como um espe
Cruel com o o abismo é a
lho que reflete o amor de Deus. A
paixão. Suas chamas são
chamas de fogo, uma relação entre pessoas que se amam
faísca de YHW H!" é sacramento, sinal da presença do
(C t8 ,ó ) próprio Deus. A sexualidade tam
bém é caminho de salvação.
181
Cantares propõe novos homens e novas mulheres
A cultura patriarcal considera a mulher inferior ao homem. Por isso,
devia ficar submissa primeiro a seu pai e a seus irmãos. Mais tarde, a seu
marido, aos teólogos da religião e aos governantes. Essa já foi a realidade
das mulheres no tempo de Salomão (Gn 3,16). Diante disso, Cantares
propõe, em vez de submissão, relações de respeito, de reciprocidade e de parceria.
Propõe relações de gênero com base na igualdade, no companheirismo e
na solidariedade entre homens e mulheres. As mulheres, que estão por trás
da edição de Cantares, resgatam o projeto de Deus no que diz respeito às
relações de gênero. Recuperam Gn 1,26-27 e Gn 2,21-24 que proclamam
cidadania igual diante de Deus, tanto para as mulheres quanto para os
homens. Nesse sentido, Cantares não só propõe um novo jeito de ser
mulher, mas rediscute também o modelo de masculinidade, com vistas à
construção de um novo homem.
A busca de pureza diante de Deus, fazia com que os homens con
siderassem o corpo da mulher impuro, como também toda atividade
sexual, inclusive dos homens. Considerar as mulheres impuras certamente
era uma medida adotada pelos homens para legitimar o monopólio mas
culino dos espaços de poder religioso e político. Dessa forma, marginali
zavam, culpavam e controlavam as mulheres. Diante disso, Cantares canta
sem preconceitos a beleza e a pu reza do corpo da m ulher (1,9-10.15; 4,1-7;
6,4-7; 7,1-10). Porém, não deixa de descrever também o corpo do ho
mem (5,10-16).
E interessante perceber como a linguagem do amor está presente
no texto. Citemos alguns exemplos: o cheiro (1,3.12-14; 2,13; 4,11), o
olhar (1,15-16; 2,9; 4,9; 6,5), o toque (1,2b; 2,6; 3,4; 4,10), o lamber (2,3-5;
4,10-11.16; 5,1) e o beijo (1,2; 7,10).
Há também várias metáforas para se referir à sexualidade da mu
lher, tais como: vinha (1,6; 8,12), jardim/vegetação (4,12.16; 5,1), monte
de mirra/incenso (4,6), porta (8,9b. Compare com Jó 3,10!). Outras figuras
se referem à sexualidade do homem. Veja, por exemplo, fruto (2,3), bandei
ra (2,4), imagens de movimento, como o vento (4,16). Além disso, pode
mos perceber imagens que evocam o ato sexual: casa do banquete (2,4-6), ir
ao monte de mirra e incenso (4,6), ir ao jardim (4,12-5,1), sob a macieira, a
árvore afrodisíaca, isto é, que desperta o amor, a paixão (2,3,8,5).
182
O machismo desqualificava a mulher como incapaz, proibindo-a
de exercer qualquer função econômica, social, política ou religiosa. Diante
disso, Cantares destaca o pa pel da mulher como trabalhadora e como líder, capa^de
tomariniáativas. Ela é independente diante de seus irmãos (8,8-10) e, diante
do poder do dinheiro, que inclusive compra mulheres, ela protesta e afirma
ser dona de seu corpo, de sua sexualidade, sua vinha (8,11-12). Ct 3,1-4 e
5,2-8 mostram que ela é corajosa e enfrenta os guardas da cidade.
183
• Ainda, Cantares denuncia ajornada dupla imposta às mulheres. A
Sulamita, além de fazer todas as tarefas na casa, ainda tem que trabalhar de
sol a sol no campo. E mais. Ela denuncia também o preconceito contra os
camponeses, pois é olhada com desdém por ter sua pele queimada pelo
sol e por trabalhar no campo (1,5-6).
• E interessante notar que a relação amorosa é de total gratuidade. E a
vivência do prazer, da plena realização por amor. Cantares nem chega a
falar em filhos, que eram o primeiro objetivo do casamento.
• Ao ler Cantares, descubra ainda outros elementos que revelam
como esse livro resgata o projeto original de YHWH para as relações
humanas: “Façamos a humanidade à nossa imagem e semelhança... E a
criou homem e mulher.” (cf Gn 1,26-27).
Antes de passar para o próximo item, convidamos você a conferir
Tt 2,4-5, procurando perceber o “lugar” da mulher em relação ao mari
do, aos filhos e à casa. Não deixe de ler!
Embora o texto seja do Segundo Testamento, certamente ele resu
me bem quais eram os deveres que se esperava de uma mulher ideal na
cultura patriarcal. Destaquemos três aspectos do que você pôde perceber:
• Era da mulher o dever do cuidado dos filhos.
• Também devia ser boa dona-de-casa.
• Suas obrigações em relação ao marido eram amá-lo, ser-lhe fiel e
submissa. Sobre a sujeição das mulheres a seus esposos, leia ainda Est 1,9-22!
Diante disso, a dimensão revolucionária de Cantares ganha ainda
mais valor. Resgata a dignidade da mulher simplesmente por ser mulher e
não enquanto mãe, esposa ou administradora da casa.
184
pacífica, harmoniosa, equilibrada, feliz e que busca o bem-estar das pesso
as envolvidas. São promotoras da paz e vivem plenamente realizadas. Não
deixe de ler 8,10!
Pensar necessariamente no rei Salomão, portanto, não faz justiça a
Cantares. Como todos os reis, também o monarca Salomão mantinha
suas muitas mulheres em estado deprimente, subordinadas, submissas e
como objetos de prazer para estarem a serviço de seus caprichos sexuais.
Chamar o noivo de rei (3,9.11) também não é necessariamente uma
referência ao monarca. Era comum na época que se chamasse o noivo de
rei e a noiva de rainha. Num casamento, não são eles, na verdade, a rainha
e o rei da festa? Veja, por exemplo, em 1,12.13 como “rei” e “amado” se
correspondem.
A Sulamita representa não somente as mulheres de Judá, mas espe
cialmente as mais pobres. Tal como Rute, e mais tarde Ester e Judite, a
Sulamita é símbolo também do povo pobre que luta por novas relações
na comunidade de Israel no pós-exílio. Ela representa o mesmo grupo
de Ne 5,1-5 que exige justiça e solidariedade. Luta pelo bem-estar, pela
xalomização das relações interpessoais e sociais. Nesse sentido, Cantares
é mais do que a restauração do plano original de Deus para as relações
amorosas. E a restauração do xalôm para todo um povo empobrecido.
E assim, podemos passar para uma outra possibilidade de interpretação
de Cantares.
185
família, do clã camponês, com o protagonismo especial das mulheres, tal
como em Ne 5,1.
Por outro lado, em 1,4 o rei simboliza os repatriados, articulados
em torno dos sacerdotes do 2° templo e da rigorosa observância da lei.
Esdras e Neemias implantaram esse projeto com o apoio do Império
Persa. Eles propõem a reconstrução a partir da cidade de Jerusalém, dalei
e do templo.
Nessa sociedade excludente, a cidade oprime o campo. A campo
nesa, símbolo do povo, é escrava no harém da cidade. Isso fa2 lembrar
Ne 5,5. Confira! No harém da cidade, havia muitos perfumes, e luxo não
faltava. Faltava, contudo, o essencial. Não havia amor.
No campo, a Sulamita vivia livre. Na cidade, porém, era escrava
sem liberdade. Quando tenta fugir, é maltratada. Os guardas a desonram.
Leia 2,7-3,5 e 5,2-8 e tente perceber essa realidade por trás da metáfora!
Ct 1,4 parece um apelo da Sulamita, para que o amado venha res
gatá-la. Ct 2,8-9 e 5,2-4 parecem descrever o amado vindo em seu auxílio
para libertá-la do harém.
Além disso, Cantares afirma que as vinhas pertencem aos campo
neses e não aos donos da cidade (1,6; 8,12).
A estrutura de Cantares
Depois dessas considerações, propomos que você faça agora uma
leitura corrida de Cantares, seguindo a proposta de divisão abaixo.
1,1-4: Título e introdução.
1.5-8,4: Quatro cantos de amor. Todos eles têm a mesma terminação.
1,5-2,7 3,6-5,8
2,8-3,5 5,9-8,4.
8.5-14: A conclusão contém as seguintes subdivisões:
a força do amor (w. 5-7),
a liberdade do amor (w. 8-10),
a gratuidade do amor (w. 11-12),
a intimidade do amor ( w 13-14).
186
Como Cantares nos pode ajudar a considerar especialmente as
mulheres como pessoas e não como objetos de propaganda ou de
prazer sexual? Numa sociedade em que a cultura machista ainda é
forte, que contribuição Cantares nos traz na busca de novas relações
de gênero? Que contribuição Cantares tra2 para a construção de uma
nova identidade tanto da mulher como do homem? Como podemos
descobrir e viver as relações de amor e paixão como expressão do
amor maior de Deus?
Cantares valoriza o afetivo, o sentimento, a festa e agratuidade. Como
vivenciamos esses valores? Será que não valorizamos demais a militância
nas comunidades, nos movimentos sociais? Como chegar ao equilíbrio?
187
juizes...” (1,1) e, de outro, porque termina descrevendo agenealogiade Davi
(4,13-22).
188
• Orfa, nome da primeira nora, quer dizer Costas.
• Rute, nome da segunda nora, significa. A miga ou Saciada.
• Boo% nome do parente próximo, quer dizer Pela Força.
• Obed, nome do filho de Rute, significa Servo.
Mais leituras seriam possíveis. Porém, propomos uma possibilida
de de interpretação do simbolismo desses nomes. Acompanhe!
Elimelec e Noemi podem ser uma referência à época das tribos quan
do a vida na terra libertada era Graciosa e prazerosa (Gn 2,4b-25). Não
havia rei humano. Somente Meu Deus era Rei (Jz 8,22-23). Mas no momen
to em que se impôs a monarquia, em que se destronou YHWH para
colocar em seu lugar um monarca (Gn 3,5; ISm 8,7), a vida do povo
transformou-se em A margura (Mará), como bem descreve Gn 3,8-24.
M-aalon tQ uelion, os reinos de Israel e de Judá, enfraqueceram-se, oferecen
do ao povo nada mais do que Doença e Fragilidade. Tudo isso aconteceu
porque uma parte do povo foi infiel a YHWH e deu as Costas (Orfa) não
só a Deus, mas também ao povo. Rute, porém, a A miga dos pobres, se
esforça por reconstruir o projeto original de Deus para seu povo a partir
daqueles que ela mesma encarna em seu ser, isto é, a partir das mulheres,
dos pobres, das viúvas, dos migrantes, dos estrangeiros e dos que não têm
filhos ou futuro. Tudo isso é possível Pela Força (Boo%) de YHWH presente
na luta pela partilha na casa do pão (Belém), pelo resgate da terra e por garan
tia de futuro, não através do poder da opressão, mas através do poder
popular e participativo, do poder que é sen iço (Obed = Servo), como no
tempo das tribos.
Ao ler o Livro de Rute, você poderia procurar descobrir a situação
econômica, social, familiar, política e religiosa daquela época e que trans
parece no texto. Poderia também identificar quem planeja e como executa
todos os planos. Em terceiro lugar, é interessante listar os direitos das
pessoas pobres, especialmente das mulheres, que são resgatados e qual seu
significado naquele contexto.
189
De um lado, Rute é estrangeira e está plenamente integrada em
Israel (Rt 1,16-17). Só isso já nos leva a concluir que essa narrativa vem em
defesa de outras culturas. Também os povos estrangeiros são povos de
Deus e YHWH não é Deus exclusivo de Israel.
E mais. Rute é moabita. Os judeus despreza
"Teu povo será vam quem era de Moab. Consideravam-nos bastar
meu povo, e dos (Gn 19,30-38). Seu acesso à assembleia israelita
teu Deus será era expressamente proibido, como você pode ler
meu Deus." em Dt 23,4-7 (Almeida = 23,3-6). Nesse sentido, o
(Rt 1,1 6) Livro de Rute é universalista. Apresenta uma nova
visão teológica. Diferentemente do exclusivismo de
Esdras e Neemias, defende a universalidade do amor de Deus. O texto
quer questionar os judeus quanto a seu desprezo pelos moabitas. Não é
por acaso que faz de uma moabita a bisavó de Davi, o rei tão venerado
pelo Judaísmo (Rt 4,13-17). Em outras palavras, os autores do texto que
rem dizer que, se o grande rei era descendente dos moabitas, não havia
razão para tanto desprezo por esse povo e, por extensão, por todos os
povos.
Se Rute está na genealogia dejesus (Mt 1,5), certamente os autores
do Evangelho segundo Mateus querem sinalizar o universalismo de sua
missão, aberta a todos os povos.
191
sante notar que Rute e Noemi conseguiram que Booz combinasse entre si
a lei do resgate e a lei do levirato. Além disso, conseguem ampliar a lei do
cunhado, na medida em que já não é mais so
"Aquele que tinha o mente o irmão que deve observar essa lei, mas
direito de resgate qualquer parente do clã deve observá-la, tal
disse a Booz: como Booz.
'Com pra-a tu !'" Assim, é resolvido um segundo grande
(Rt 4,8) problema da época em que o texto foi escrito.
E a reconstituição da família e do clã que esta-
vam sendo desintegrados por causa da pobreza. Dessa forma, o clã cam
ponês é restaurado.
Portanto, Rute e Noemi resgatam os grandes valores da época das
tribos, como a fraternidade entre famílias e clãs, a partilha do pão, da terra
e a garantia de descendência para todos. Resgatam igualmente a dignidade
c o direito de mulheres independentes, que tomam suas vidas nas suas
próprias mãos, sem depender de algum homem tutor.
Rute e o Judaísmo
No volume anterior, vimos como se formou o Judaísmo no pós-
exílio. Compare agora as características fundamentais do Judaísmo com a
proposta dos autores de Rute!
192
Zacarias. Nem é reconstruir Judá a partir de
Jerusalém como quis Neemias. Muito menos é
demarcar claramente a identidade do Judaís
mo, como queria Esdras em torno da rigorosa
observância da lei. Rute luta para resgatar o pro
jeto tribal que vem de uma aldeia do interior.
Vai na mesma linha de Mq 5,1.
193
A divisão do livro
A proposta mais comum de divisão para estruturar o Livro de
Rute é a seguinte:
1. Quadro inicial (1,1-5): Descreve a realidade de fome, de falta
de terra, da migração para o estrangeiro e da falta de futuro ou descen
dência. E a total desintegração da casa dos pobres.
2. A reconstrução da vida do povo (1,6-4,12): A caminhada de
reconstrução do povo é descrita numa novela de quatro capítulos ou pas
sos:
- Io passo (1,6-22): Atraída pela boa-notícia da visita de Deus à
terra natal dando pão, Noemi decide voltar. O centro desse passo está nos
w . 15-18. E a palavra-chave, que aparece 12 vezes, é “voltar”.
- 2o passo (2,1-23): Rute toma a iniciativa de catar a sobra da co
lheita, fazendo valer o direito dos pobres. Os w . 8-14 formam o centro
do 2° passo. E “catar a sobra da colheita” ou “respigar” é a palavra-chave
que também aparece 12 vezes.
- 3opasso (3,1-18): Booz aceita o convite de Rute e se comprome
te a cumprir a lei do resgate. O centro do 3opasso está nos w 9-13. E a
palavra-chave é “resgatar”, aparecendo, desta vez, em 7 oportunidades.
- 4° passo (4,1-12): Booz cumpre a lei do resgate e se casa com
Rute. Assim, garante a posse da terra e o futuro da família de Noemi e
Elimelec. Os w 5-8 formam o centro desse passo. E novamente a pala-
vra-chave é “resgatar”, aparecendo 14 vezes.
3. Quadro final (4,13-17): Descreve o nascimento de Obed. O
quadro final é o oposto do quadro inicial, descrevendo a nova esperança
que nasceu para o povo. Mais do que ser a esperança em Davi, precursor
da monarquia davídica, a esperança é numa sociedade parecida com o
tribalismo, onde somente YHWH é rei do povo (Jz 8,22-23). E o que
significa Elimelec (meu Deus érei), sogro de Rute.
4. Apêndice (4,18-22): é a genealogia de Davi, de quem a estran
geira Rute é bisavó.
194
“Força reunida”
Para concluir esta introdução ao Livro de Rute, gostaria de partilhflt
com você um poema que foi elaborado por um grupo de estudo sobrt
Rute. A melodia é do canto “Adeus Sarita”.
A deu s M oabel N esta nova realidade
Vou p a r t ir p r a nova terra , D e igu aldade e de ju stiça ,
L evando as com panheiras A s m u lheres vão ca n ta r:
P ra te r p ã o , felicid a d e. “N ão sou su b m issa !”
C om a fo r ç a reunida Todo p o vo reunido
Ju n to a R ute e M aria
Vamos lutar.
/:P or nova sociedad e
E nganar leis e sistem a s
Vamos lutar:/
E a h istó ria recontar.
195
Para você continuar sua reflexão
a) Quais são e o que significam as leis que Rute e Noemi fizeram
acontecer em favor dos pobres? b) Interpretando para nossos dias, o que
significam na prática de hoje essas leis de Israel?
196
Toda a obra se desenvolve em torno de um grande tema. É a
postura nacionalista e racista da comunidade judaica em torno do 2otem
plo em Jerusalém (Esd 4,1-3; Ne 13,3). Jonas é como que a personificação
dessa atitude mesquinha e excludente. Na verdade, Jonas representa apo
sição de Neemias e Esdras, que consideram como o verdadeiro Israel
somente a comunidade de Israel repatriada em torno de Sião e o grupo
que ainda continuava na Mesopotâmia. Além disso, não pensam na salva
ção de outros povos. Esperam ainda que Deus castigue os povos opres
sores no Dia de YHWH (3,4). Dia em que o Israel fiel à lei seria salvo.
O profético no Livro de Jonas é o anúncio do projeto de YHWH
para todos os povos. Inclusive aos impérios, de ontem e de hoje, simbo
lizados por Nínive, a capital do antigo Império Assírio. Os impérios preci
sam deixar de praticar a violência. Devem aderir ao projeto de justiça e de
amor, de respeito e de promoção da vida. Somente quando deixarem sua
prepotência e tirania, a fraternidade universal será possível. A fé nesse Deus
da vida não é exclusividade de nenhuma nação. YHWH é misericordioso e
não é Deus nacional de um nenhum povo. E Deus de toda a humanidade.
197
que, além de serem discriminados por prestarem culto a outras divinda
des, eram também considerados impuros e imorais! Mesmo sem querer, a
missão da qual Jonas tenta fugir já começa a pro
"Foram tomados duzir resultados. Estrangeiros aderem a YHWH,
por um grande oferecem-lhe sacrifícios e fazem votos. O inte
tem or em relação ressante é que eles não são sacerdotes com cre
a YHW H." denciais para ofertar no altar. E mais. Oferecem
(Jn 1,16)
os sacrifícios longe de Jerusalém, fora do altar
do templo.
2ocapítulo: 2,1-11
Ao ser jogado para fora do barco, Jonas não pode se afogar no
fundo do mar. Caso assim fosse, morreria com ele a missão de denunciar
a maldade dos opressores estrangeiros. Por isso, Deus o protege através
de um grande peixe que o salva (v. 1). Dessa forma, o peixe impede seu
afogamento, vomitando-o sobre a terra firme (v 11). Jonas não aceitava
que YHWH fosse misericordioso com estrangeiros. E, nesta segunda cena,
vemos Deus exercendo sua misericórdia para com Jonas.
O salmo de Jn 2,2-10 certamente é uma acréscimo posterior. O
conto de Jonas não perde sua unidade se o lermos omitindo o salmo, que
é uma composição de citações de vários outros salmos. O Jonas do salmo
não é o mesmo da novela. No salmo transparece um Jonas piedoso, en
quanto na novela ele é bastante teimoso e reticente.
3ocapítulo: 3,1-10
Enquanto os dois primeiros episódios acontecem no mar, as duas
cenas seguintes se desenvolvem na terra.
Alguns destaques
z\iguns dessa
u e sia q u es u e ssa j3a cena. Para desgosto de Jonas (4,1), foi
suficiente um dia de pregação para que
"O s ninivitas creram em os ninivitas se convertessem de sua mal
Deus e se converteram do dade. Faltavam ainda dois dias para
seu caminho perverso." percorrer toda a cidade. Mas eles mes
(cf. Jn 3,5.10) mos se encarregaram de propagar o
anúncio do Dia de YHWH.
O povo da cidade se converte a Deus, fazendo jejum e penitência
(v 5). Mas não basta a conversão das pessoas. E necessário que as estrutu
198
ras de opressão sejam transformadas. É o que podemos perceber na ade
são do rei a YHWH, deixando de ser rei, isto é, despindo-se de suas vestes
reais e saindo do seu trono (v 6). E mais. Aderir a YHWH é o mesmo que
aderir à justiça. Daí por que a cidade opressora deixa de praticar injustiças,
convertendo-se de seu caminho perverso, cheio de violência ( w 8.10). A
essa altura, poderíamos dizer com Pedro: “Agora reconheço que Deus
não faz distinção de pessoas, mas lhe agrada quem o temer e praticar a
justiça.” (At 10,34-35. Veja ainda Dt 10,17-18).
Conversão pessoal e estrutural andam juntas. Não basta querer trans
formar apenas as pessoas isoladamente. Da mesma forma, não é suficiente
mudar as estruturas de poder sem a conversão das mentes e dos corações.
Agora, YHWH exerce sua misericórdia e perdoa aos que aderiram
ao seu projeto, deixando de lado sua opressão estrutural (vlO).
4o capítulo: 4,1-11
No Io e no 3o episódios, temos o confronto de Jonas com pessoas
estrangeiras. Na 2a e na 4a cenas, temos o confronto de Jonas com YHWH.
Jonas fica indignado com a mise
ricórdia de YHWH para com os estran "O nde há ofensa que dói,
geiros. Ele até sabe que “YHW H é um que eu leve o perdão;
Deus benévolo e misericordioso, lento onde houver a discórdia,
para a cólera, cheio de amor e que se que eu leve a união
arrepende do mal” (v.2 —cf Ex 34,6). e tua paz."
Porém não aceita que Deus exerça sua (Francisco de Assis)
compaixão em relação a um povo es
trangeiro e por cima opressor de Israel. Tamanha misericórdia de Deus
não cabe nos dogmas estreitos do Judaísmo pós-exílico, na mentalidade
dos senhores do templo, da lei e de Jerusalém. Para a comunidade judaica
repatriada, a misericórdia de Deus vale para ela. Não, porém, para os
outros, para os que não observam a lei. Para estes, Deus deveria reservar seu
severo juízo de condenação.
Os defensores da pureza étnica e da exclusividade de Israel como povo
especialmente eleito por YHWH como sua propriedade exclusiva (Ex 19,5;
Dt 7,6) preferem a morte (w 3.8.9) a converter-se à proposta de Rute e dos
autores do próprio Livro de Jonas. São capazes de se aborrecer até à morte
quando uma planta murcha. Porém, não são capazes de aceitar que YHWH
199
tenha pena de pessoas, os moradores de Nínive, a grande cidade (cf. Jn 4,11).
E continuam fechados em seu nacionalismo que exclui.
Mais tarde, Jesus diria que os escribas ortodoxos de seu tempo
ainda continuavam “coando um mosquito, mas engoliam um camelo” (cf.
Mt 23,24) ou que eram capazes de pagar o dízimo dos temperinhos, mas
deixavam o mais importante da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade
(cf. Mt 23,23). E voltou a insistir na misericórdia de Deus, ao contar a
parábola do filho pródigo (Lc 15,11-32). Convidou-nos a termos uma
postura diferente da de Jonas, dizendo-nos: “Sede misericordiosos como
vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36). Insistiu na inclusão dos pobres, dos
samatiranos, das mulheres e dos estrangeiros em seu projeto. Jesus se inse
riu no movimento profético de resistência que já existia antes dele e conti
nuava em sua época. Conhecia muito bem a luta dos autores de Jó, de
Rute, de Cantares e de Jonas. Não é por acaso que faz referências aoLivro
de Jonas (Mt 12,38-41; Lc 11,29-32).
A novela termina de forma inusitada. Para a indignação dos teólo
gos do templo, marinheiros estrangeiros aderiram a YLIWH. Os opresso
res ninivitas passaram de suas ações perversas e violentas para a vivência
da justiça de YHWH. Mas, tal como os “amigos” de Jó, Jonas, símbolo
da comunidade judaica nacionalista e exclusivista do 2° templo, continua
sem se converter. Parajonas, serviriam muito bem as palavras de Is 55,8:
“Meus pensamentos não são vossos pensamentos. E os vossos caminhos
não são os meus caminhos, oráculo de YHWH”
Um bom resumo da mensagem dessa novela você encontra em Ez
18,23.32; 33,11, um texto anterior a Jonas. Não deixe de conferir!
Ao ler o Livro de Jonas, você não pode deixar de comparar sua
visão aberta em relação às pessoas estrangeiras com a visão nacionalista de
Esdras e Neemias (Esd 9-10 e Ne 13,23ss). São duas maneiras diferentes
de compreender Deus. A parábola de Jonas foi criada para criticar a pos
tura fechada de Neemias e Esdras, do Judaísmo, dos autores da OHC.
200
uma imagem de Deus demais parecida com nossa cultura? Reconhe
cemos que outras culturas têm o mesmo direito? Nossa forma de
julgar as pessoas é parecida com a do Deus pleno de misericórdia?
Como é possível fazer com que a grande Nínive de hoje deixe de ser
perversa e não continue praticando tanta violência contra as nações?
Até que ponto excluímos de nossa pastoral setores dominantes ou
pertencentes às elites? Qual é a estratégia pastoral para atingir hoje as
grandes cidades? Será que também nós não procuramos fugir muitas
vezes da missão profética a que somos vocacionados?
A profecia de Joel
“ D epois derra m arei o m eu espírito
sobre todas as p e s s o a s (J1 3,1)
201
o culto no templo de Jerusalém. É provável que Joel tenha sido um pro
feta que atuava junto ao culto. Era, portanto, alguém com uma elevada
formação teológica. Tinha fortes vínculos com os sacerdotes do templo,
os escribas e os levitas. È possível que fosse levita, uma vez que estes se
consideravam profetas, como já vimos em lC r 25,5 e 2Cr 29,25-30. E o
mesmo grupo que está por trás da edição final dos Provérbios, do Penta
teuco, da OHC e dos Salmos, como vimos acima.
Por outro lado, o profeta revela também um profundo conheci
mento da vida do campo e tem consciência da situação de quem nele
trabalha. A existência de um clero de “resistência”, ou seja, capaz de se
preocupar com as antigas tradições de liberdade, está na origem do movi
mento apocalíptico. A profecia de Joel se encontra nesta encruzilhada e foi
importante para a comunidade cristã como veremos.
Sua pregação terá se restringido a Judá e particularmente ajerusa-
lém. Destina-se à comunidade fiel que aí se reúne em torno do templo e
da observância da lei. Em 1,2, o profeta se dirige aos anciãos, os respon
sáveis em manter viva a memória dos feitos de YHWH na história de
Israel. Em 1,13 dirige-se aos sacerdotes. Em 1,2; 2,1.23; 3,5; 4,1.6.19 fala
aos habitantes da terra de Judá, de Sião e de Jerusalém. O templo é um de
seus interesses principais (1,9.13-14.16; 2,15-17; 4,17-18.20).
202
• Em 4,6 já menciona os gregos que participavam no tráfico de
escravos.
• Além disso, Joel nenhuma vez faz referência ao antigo Reino do
Norte. Quando fala em Israel está se referindo a Judá, linguagem que se
tornou comum no pós-exílio.
• Joel jáparece estar distante dos assírios e babilônios, os grandes
opressores dos israelitas antes do exílio. Nenhuma vez os menciona, em
bora cite diversos países estrangeiros (fenícios, filisteus, egípcios, edomitas,
gregos e sabeus).
• Em Joel, há quase trinta referências a textos do Primeiro Testa
mento, especialmente de Amós, Isaías, Jeremias, Ezequiel, Naum, Sofoni-
as, Abdias e Malaquias. Isso significa que conhecia esses livros proféticos e
aproveitou muitos dos seus textos para elaborar o seu livro.
203
Conseqüências da praga, da seca e da ocupação estrangeira
A situação do povo já estava calamitosa com a remessa de pesados
tributos para a Pérsia. E mais. O povo da terra ainda pagava o dízimo ao
templo para a manutenção dos sacrifícios e dos profissionais da religião.
Sustentava ainda o administrador persa na província de Judá. Imagine
agora como terá aumentado o sofrimento, especialmente dos campone
ses, com a vinda da praga dos gafanhotos na lavoura e de uma seca pro
longada. O país ficou devastado.
Antes de continuar seu estudo, leia agora as citações que seguem e
faça uma lista das conseqüências na agricultura, na fruticultura, na pecuária,
na natureza e no culto do templo, causadas pela ocupação estrangeira e
agravadas pela seca e pela praga de gafanhotos: 1,4;
"A alegria 1,6-7; 1,9.13.16; 1,10-12; 1,16-20.
desapareceu E mais. A violência da dominação estrangeira
do meio demoliu celeiros. Desertificou e despedaçou a vida
das pessoas." do povo, simbolizado pela “vinha” e pela “figueira”.
(JH ,1 2 ) Veja que a vinha e a figueira não são somente referên
cias aplantas. Também eram símbolo do povo. Quan
to à vinha, veja, por exemplo, Is 5,1-7 e Mt 21,33-46. Quanto à figueira,
confira Mt, 21,19-21 e Lc 13,6-9!
A situação ficou tão dramática que se tinha a sensação de que Deus
havia abandonado Israel. Ao fazer um forte chamado à penitência (2,12-17),
o profeta conclui seu apelo com uma frase usada pelas nações mais fortes
para zombar de Judá: “Onde está o teu Deus?” (cf 2,17). Algumas déca
das antes, o profeta Malaquias já repreendera o povo porque dizia: “Onde
está o Deus da justiça?” (cf. Ml 2,17). Mais de um século antes, durante o
exílio babilônico, os judeus já haviam experimentado esse mesmo despre
zo por parte dos babilônios. Confira no Salmo 42!
204
se a abençoar o povo. Ao ler 2,12-14, você perceberá a presença dessa
visão de Deus, tão combatida por Jó. Lembra?
Se Deus está irado com o povo, o que era preciso fazer? Joel con
clama o povo ao arrependimento daquilo que causou a ira de Deus. O
apelo à conversão já aparece em 1,13-14 e volta com toda força em 2,12-17.
Porém, em nenhuma parte de sua obra, o profeta diz quais foram os
pecados da comunidade judaica pós-exílica. Confira os textos e perceba
como a desgraça do povo se transformou em súplica!
E interessante notar que Joel insiste em que não bastam sinais exter
nos de arrependimento. E preciso ir mais longe. A conversão passa pelo
coração (2,13), o lugar das decisões para uma nova prática. Dois séculos
antes, o profetajerem ias denunciara o perigo das aparências da circunci
são. Por isso, conclamou à circuncisão do coração e do ouvido (Jr 4,4;
6,10). Da mesma forma, Joel faz críticas às aparências exteriores dos ritos
de penitência, de jejum. Certamente, Joel tinha diante de seus olhos o que
Isaías já dissera sobre o jejum que agrada a Deus (Is 58,1-12). E a prática
de solidariedade para com os mais excluídos.
Como Jonas (Jn 4,2), ele acredita na misericórdia de Deus (2,13).
Mas YHWH somente voltará atrás, arrepender-se-á, voltando a dar
bênção ao povo (2,14), na medida em que este também retornar a Ele.
Por isso, Joel chama todas as pessoas a participarem dessa penitência, tal
como fizeram os ninivitas (Jn 3). Não somente conclama as autoridades,
isto é, os anciãos e os sacerdotes. Apela a todo o povo, desde os adultos,
passando pelos jovens e até as crianças (1,13-14; 2,16-17).
205
Dia de Y\ IWH contra as nações opressoras, com overem os no próximo
item, é o desejo de liberdade política que ainda não aconteceu e é anun
ciado como promessa a se realizar no futuro.
O D ia d e YH W H e o dom do espírito
Antes de retomar sua leitura neste volume, convidamos você a reler
o item “O D ia de YHWH” nas páginas 125 e 126 do volume 4.
Como em Sofonias, também na teologia de Joel, o Dia de YHWH
exerce um papel importante.
A primeira vez que anuncia o grande diaé em 1,15. Em 2,1-11, Joel
anuncia o Dia de YHWH contra o país, isto é, contra Judá, para que se
arrependa e volte a Deus. Confira!
O arrependimento, a mudança de vida descrita em 2,12-17 é con
seqüência desse anúncio do Dia de YHWH contra todo o povo.
206
Dia de YHWH contra as nações opressoras, como veremos no próximo
item, é o desejo de liberdade política que ainda não aconteceu e é anun
ciado como promessa a se realizar no futuro.
206
Com o fim da monarquia em Israel, os profetas exílicos e pós-
exílicos anunciaram novos tempos. Passaram a ter um tom mais consola
dor. Anunciaram esperança em um futuro bem mais otimista. Foi o caso
de Ezequiel, do 2° Isaías, de Ageu e Zacarias (1-8). Ezequiel, por exemplo,
anunciou a punição dos povos estrangeiros (Ez 25-32), a era do espírito
(Ez 37,1-14) e a fonte de água que geraria um novo paraíso a partir do
templo (Ez 47,1-12). Anos se passaram e nada disso havia se concretizado.
Então Joel mantém a esperança dos profetas anteriores e garante que ela
não cairá no vazio. E volta a anunciar o cumprimento dessa nova era que
acontecerá no Dia de YHWH, dia de libertação para Judá e de desgraça
para as nações.
A condenação dos povos estrangeiros que oprimiram Israel será
num grande julgamento no vale da Decisão, no vale de Josafá (Deus julga).
Joel cita Tiro, Sidônia, Filisteia, Egito e Edom (4,4.19). Leia agora 4,2-3.5-
6.19 e faça um levantamento dos crimes e das injustiças de que essas na
ções são acusadas pelo profeta!
A libertação política diante dos povos opressores trará também a
prosperidade e o bem-estar econômico para Judá. Não deixe de ler 4,17-
18 e compare com Ez 47,1-12!
208
Mas há também limites, ou sombras que nos incomodam. Vejamos:
• Joel não inclui todos os israelitas, como os descendentes das tri
bos do norte. Para ele, Israel se reduz ajudá, em torno de Sião, de Jerusa
lém e do templo. Seu destinatário é a comunidade pós-exílica exclusivista
e nacionalista, fechada em seus dogmas.
• Apesar de falar da efusão do espírito sobre “toda carne” (3,1-
Almeida = 2,28), Joel, tal como o personagem Jonas, exclui os estrangei
ros do projeto de Deus (4,17). Nisso não concorda com Is 42,6; 49,6;
56,1-8. Nem com os autores dos livros de Jonas e Rute. Joel não visualiza
uma forma de incluir os poderosos estrangeiros em um mundo baseado
em relações de justiça e de liberdade. Refere-se a eles como vítimas do
castigo de Deus, como espetáculo da justiça divina no Dia de YHWH.
• Insiste na centralização no templo de Jerusalém (3,5; 4,17.21). Nisso
discorda do movimento profético de Isaías (Is 57,15; 66,1-2) e da maioria
dos profetas pré-exílicos.
O Livro de Joel
O Livro de Joel, embora possamos dividi-lo em duas partes bem
delimitadas, é um livro que tem unidade. O tema do Dia de YHWH per
passa toda a obra.
209
Para você continuar sua reflexão
C om pare J1 3,1-5 (A lm eida = 2,28-32) com Nm 11,25-30 e
At 2,14-21 e responda: a) O que há de comum nos textos de J1 e de Nm? b)
A partir da experiência das comunidades primitivas, o que o texto de Joel,
lembrado por Pedro, representa hoje para sua vida e a de sua comunidade?
210
Conclusão da 2a parte
A 2“ parte deste volume foi dedicada ao estudo do período da
dominação persa em Judá. Inicialmente vimos algumas informações bási
cas sobre o novo império no Oriente Médio a partir de 539 a.C. Sua
estratégia de dominação tem uma novidade. Respeita as culturas locais,
inaugurando o moderno sistema de dominação através da ideologia. Ou
tra inovação dos persas foi a cobrança dos impostos somente em moeda.
Além do aramaico como língua oficial, observamos a organização do
império em satrapias, províncias e distritos. Discutimos ainda a relação de
Judá com a Pérsia enquanto província autônoma.
Num segundo momento, estudamos as primeiras décadas de recons
trução da comunidade judaica no pós-exílio. Por um lado, examinamos o
projeto de reconstrução dos repatriados em torno do templo. Primeiro,
Sasabassar comandou a reconstrução do altar. Não levou adiante sua in
tenção de reconstruir o templo, porque os “samaritanos”, também cha
mados de “povos da terra”, resistiram. E que o regresso dos cativos da
Babilônia criou um conflito inevitável com os remanescentes, especial
mente por causa da posse da terra.
Uns 15 anos depois de Sasabassar, Zorobabel foi nomeado gover
nador da província pelo rei persa. Veio acompanhado pelo sumo sacer
dote Josué e pelos profetas Ageu e Zacarias. Sua missão foi continuar as
obras do 2o templo. Num contexto de instabilidade política no império,
Zorobabel e Ageu procuraram libertar Judá da dominação persa. Mas seu
projeto foi abortado. Josué e Zacarias, então, levaram a cabo a missão,
inaugurando em Judá a era do poder religioso centralizado nas mãos dos
sacerdotes apartir do santuário de Jerusalém. Examinamos ainda a situa
ção dos sacerdotes sadoquitas e levitas antes e depois do exílio, bem como
a função do 2° templo para a comunidade judaica e para os persas, espe
cialmente como legitimador da discriminação. Nisso, a teologia da retri
buição também deu sua parcela de contribuição.
211
Por outro lado, analisamos o projeto dos remanescentes que fize
ram duras críticas à elite sacerdotal, ao templo, a uma piedade apenas
aparente e à exclusão de pessoas estrangeiras. Seu projeto é pela inclusão
de estrangeiros, por uma nova espiritualidade que valoriza a vida e a pre
sença de Deus nos pobres mais do que no templo e por um culto que
coloca a prática da justiça acima de meras aparências. E possível escutar
ainda hoje sua voz em Is 56-66.
Décadas mais tarde, o grupo de Malaquias profere oráculos contra
os responsáveis pelo culto, criticando seu desleixo nos sacrifícios, sua omis
são nos casamentos mistos e na falta de solidariedade para com os mais
fracos.
Num terceiro momento, detivemo-nos no estudo da consolidação
do projeto do templo, comandado pelo governador Neemias e pelo sa
cerdote e escriba Esdras na segunda metade do século 5.
Mais uma vez, estamos diante de um período de instabilidade no
império. A satrapia do Egito se revoltou contra o poder central com a
ajuda dos gregos. Nesse contexto, Neemias veio como pessoa de absoluta
confiança do rei para reconstruir e repovoar Jerusalém, a fim de que ser
visse de fortaleza militar na região. A reedificação de Jerusalém certamente
também interessava aos judeus como um dos símbolos da sua identidade
e a fim de transferir para lá a capital da província de Judá.
Neemias também foi forçado pelos pobres da terra a exigir dos
nobres o perdão das dívidas, a devolução das terras hipotecadas e a liber
tação de homens e mulheres do campo já escravizados por causa de suas
dívidas.
A principal tarefa de Esdras foi o ensino da Lei de Moisés, legiti
mando as reform as culturais e religiosas decretadas pelo governador
Neemias. A observância rigorosa da lei ratificou as medidas de purifica
ção do templo, de reorganização do sustento dos levitas, do cumprimen
to da lei do sábado e da dissolução dos matrimônios mistos.
Na seqüência, examinamos algumas conseqüências da aplicação da
lei de pureza étnica contra os estrangeiros, da lei do puro e do impuro
especialmente contra os pobres da terra e, de modo especial, contra as
mulheres. Fizemos também algumas observações sobre alei como a ver
dade, avida e o caminho para Deus. Nopós-exílio, o papel que antes era
212
da profecia foi assumido pelos sacerdotes do templo. Eles passaram a ser
os principais mediadores entre YHWH e o povo. Aos poucos, também a
Lei de Moisés passou a cumprir essa função. Para concluir, fizemos algu
mas observações sobre a formação do Judaísmo como um modo de
vida intimamente vinculado à Lei de Moisés, cuja observância era o prin
cipal meio para pertencer à comunidade judaica.
Num quarto momento, estudamos a respeito da edição final de co
letâneas já existentes anteriormente. E o caso dos Provérbios, do Penta
teuco e dos Salmos. A OHC foi uma elaboração dos sacerdotes e levitas.
l-2C r são uma releitura da história de Israel desde Adão até o fim do
Reino de Judá. Esdras e Neemias descrevem a formação do Judaísmo
desde o retorno de grupos da Babilônia, passando pela reconstrução do
altar, do templo, dos muros de Jerusalém, até a reorganização da comuni
dade judaica em torno da lei. Esdras foi o principal responsável pela exi
gência do cumprimento da lei, com o apoio do Império Persa.
Os responsáveis por toda a obra redacional, que compreende a
edição final do Pentateuco, dos Provérbios, da Of IC e do Livro dos
Salmos, são os sacerdotes e levitas no século 4 a.C. Sua ótica é a defesa da
teologia oficial do Judaísmo pós-exílico, com ênfase no templo, na lei e no
sacerdócio. Por causa de sua grande preocupação em garantir a identidade
da comunidade, os responsáveis pelo Judaísmo cometeram excessos. Seu
zelo pelo cumprimento restrito da doutrina da retribuição, do dogma de
pureza étnica e da lei do puro e do impuro discriminou setores importan
tes, como os pobres, os doentes, as mulheres e os estrangeiros.
Num quinto momento, vimos que os Livros de Jó, Cantares, Rute e
Jonas são fruto da resistência popular contra a imposição desse Judaísmo
ortodoxo no pós-exílio, especialmente na época de Neemias e Esdras.
Resistem contra uma equivocada visão de Deus que era manipulado em
favor dos interesses do 2° templo.
O teólogos de Jerusalém, apoiados pelo Império Persa, queriam
justificar a pobreza e o sofrimento dos pobres com o dogma da retribui
ção, mantendo-os resignados e submissos. Jó conspira contra essa mani
pulação do Deus da gratuidade, para que o povo pudesse tomar nas suas
mãos as rédeas de sua própria história e caminhada de fé.
Pretendiam também justificar a discriminação e submissão da mu
213
lher através da imposição da lei do puro e do impuro. Cantares resiste,
resgatando, entre outras questões, a dignidade da mulher e propondo re
lações de gênero com total reciprocidade. Rute defende o papel de lide
rança e protagonismo das mulheres.
Queriam ainda aplicar as leis que lhes convinham, deixando de lado
aquelas que contribuíam no resgate da cidadania dos mais pobres. Rute e
Noemi exigem o cumprimento do direito dos pobres. O direito de catar
espigas em plantações alheias, a fim de não passarem fome. O direito do
resgate da herança para que os sem-terra não precisassem ficar amontoa
dos em acampamentos à beira das estradas. Por fim, lutaram também
para que fosse aplicada outra lei “esquecida” . A lei do levirato ou do
cunhado, a fim de que os clãs pudessem ter futuro e as viúvas, perspectivas
de vida.
Por último, aplicavam rigorosamente a lei de pureza étnica, discri
minando os pobres da terra, a quem acusavam de se terem misturado
com estrangeiros. Discriminavam os israelitas que eram do antigo Reino
do Norte, os samaritanos. Excluíam ainda os povos estrangeiros. Contra
essa discriminação, a parábola de Jonas resgata a imagem do Deus miseri
cordioso, que não faz acepção de pessoas e de povos. Porém, agrada-lhe
quem o temer e praticar a justiça, seja de qualquer nação que for.
Diferentemente desses livros, Joel nos revela outra problemática.
Suas profecias têm outra origem e outros destinatários. Revelam a crise da
comunidade judaica em torno de Sião. Joel é profecia em tempo de crise
nas instituições do Judaísmo e na vida do povo. E um texto feito por
profetas, talvez levitas, com muita intimidade com o culto no templo de
Jerusalém. E se destina à comunidade fiel que aí se reúne. O templo é um
de seus interesses principais.
Ao estudarmos o Livro de Joel, vimos que uma seca e uma praga
de gafanhotos aprofundaram a crise do povo, que j á era grave por causa de
ocupação estrangeira. Joel conclama os judeus a fazerem penitência, diante
da ameaça do Dia de YHWH. Como o povo se penitencia, Deus perdoa e
anuncia uma nova era para Israel e o fim das nações que oprimem.
O próximo volume desta série será sobre os últimos séculos que se
referem ao período do Primeiro Testamento e, ao mesmo tempo, sobre a
vida e a pregação de Jesus de Nazaré.
214
Para orar e aprofundar
si 10 Sl 118 Jó 36,22-37,24
Sl 19 Sl 119 Pr 1,20-33
SI 22 Sl 126 Ct 1,5-2,7
Sl 23 Nm 6,24-26 Jn 2,3-10
Sl 50 lC r 16,8-36 Is 63,7-64,12
Sl 78 Jó 5,8-16 Ne 9,5-37
Sl 85 Jó 25,2-26,14
Sugestões de leitura
GALLAZZI, Ana Maria; GALLAZZI, Sandro. Mulher: fé na vida. A
P alairana Vida. CEBI: São Leopoldo, n. 35/36.
GIRARD, Marc. Como ler o Livro deAgeu. São Paulo: Paulus.
KIPPENBERG, H. G. Religião eformação de classes na antiga Judeia. São Paulo:
Paulus.
OLIVA, Alfredo dos Santos. Como ler o Livro de Esdras e Neemias. São Paulo:
Paulus.
ROSSI, Luiz Alexandre Solano. Como ler o U vro de Zacarias. São Paulo:
Paulus.
SHIGEYUKI, Nakanose; PEDRO, Enilda de Paula. Como ler o U vro de
Malaquias. São Paulo: Paulus.
MESTERS, Carlos. O Rio dos Salmos —das nascentes ao mar. A Palavra
na Vida. São Leopoldo: CEBI, n. 9.
CEBI-MINAS GERAIS. O mais belo cântico da Bíblia. A Palaira na Vida.
São Leopoldo: CEBI, n. 77.
PEGORINI, Nilson, OLIVEIRA, Paulo Quiquita de. Proposta de Rotei
ro para Estudo do Livro de Jó. A Palaira na Vida. São Leopoldo: CEBI,
n. 103.
215
OLIVA, José Raimundo. Jó, Sábio e Profeta. Ensaios. São Leopoldo: CEBI,
n. 1
NÜSSE, Dietlind. “Eu sabia... Por isso fugi” —Jonas e a Misericórdia de
Deus. Ensaios. São Leopoldo: CEBI, n. 2.
MUTZENBERG, Maria Helena da S. Fazer o Mundo como um Jardim
de Delícias —Um estudo do Cântico dos Cânticos. Ensaios. São Leopoldo:
CEBI, n. 3.
ROTEIROS PARA REFLEXÃO II. Formação do Povo de Deus - Pen
tateuco. São Leopoldo: CEBI, São Paulo: Paulus.
ROTEIROS PARA REFLEXÃO V Livro dos Salmos. São Leopodo:
CEBI, São Paulo: Paulus.
ROTEIROS PARA REFLEXÃO VI. Livros Sapienciais e Novelas Bíbli
cas. São Leopoldo: CEBI, São Paulo: Paulus.
BALANCIN, Euclides M.; STORNIOLO, Ivo. Como kro Cânticos dos Cân
ticos —o am orê uma faísca de Deus. São Paulo: Paulus.
BALANCIN, Euclides; STORNIOLO, Ivo. Como kro Livro de Gênesis. São
Paulo: Paulus.
BALANCIN, Euclides; STORNIOLO, Ivo. Como kro liv r o do Êxodo. São
Paulo: Paulus.
DIETRICH, Luiz José. O Grito de Jó. São Paulo: Paulinas.
GIRARD, Marc. Como k ro Livro dos Salmos. São Paulo: Paulus.
MESTERS, Carlos. Como k ro Litro de Rute —Pão, Família, Terra. São Pau
lo: Paulus.
STORNIOLO, Ivo. Como k ro Livro de Jó. São Paulo: Paulus.
STORNIOLO, Ivo. Como k ro Livro do Levítico. São Paulo: Paulus.
STORNIOLO, Ivo. Como kro Livro dos Números. São Paulo: Paulus.
STORNIOLO, Ivo. Como k ro Livro do Deuteronômio. São Paulo: Paulus.
216
U M A INTRODUÇÃO A BIBLIA
VO LV EXIL.IO BABILONICO