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HásBohit i&m

PAULUS
Uma introdução à Bíblia

Exílio Babilônico e Dominação


Persa

A serviço da leitura libertadora da


Bíblia

V o lu m e 5

Ildo Bohn Gass

Digitalizado por: Jolosa

PAULUS

2004
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Elaboração: Ildo Bohn Gass

Revisão: Elaine Glaci Neuenfeldt, Franciso Orofino, José Edmilson


Schinelo, Marion Creutzberg, Monika Ottermann, Sebastião
Armando Gameleira Soares, Tea Frigerio e Vanda Bisato

Reimpressões: 2010,2012

ISBN: 85-89000-44-3
Sumário

Apresentação...................................................................................................... 5
Parte I: Período do E xílio B ab ilô n ic o .................................................. 6
Introdução................................................................ .......................................... 6
Os exílios de ontem e de h o je....................................................................... 9
Os fatos históricos............................................................................................ 11
Significado do exílio para o povo de Israel.............................................. 13
A vida de quem ficou em J u d á ..................................................................... 21
Literatura bíblica em Ju d á ............................................................................... 22
1 Jerem ias....................................................................................................... 23
2 Lamentações.............................................................................................. 23
3 A b d ias......................................................................................................... 26
4 Releitura da história: O H D ................................................................... 30
5 Releitura da profecia................................................................................ 32
A vida de quem foi deportado para a Babilônia..................................... 35
Literatura bíblica na Babilônia....................................................................... 38
1 Ezequiel....................................................................................................... 38
2 Isaías 40-55 ................................................................................................ 50
3 Releituras do Pentateuco entre os deportados................................. 59
Salm os.................................................................................................................. 69
Conclusão da Ia p a rte ..................................................................................... 71
Para orar e aprofundar................................................................................... 73
Sugestões de leitura........................................................................................... 73

P arte II: É poca da D om inação P e r s a .................................................. 74


Introdução.......................................................................................................... 74
O Império P ersa............................................................................................ 77
As primeiras décadas de reconstrução (538-445 a.C .)............................ 82
1 O projeto dos repatriados em torno do tem plo............................ 85
Sasabassar e a reconstrução do altar................................................... 85
Zorobabel/Josué/Ageu/Zacarias e a reconstrução do templo 88
O projeto de Ageu e Zorobabel: libertar Judá da dominação
persa............................................................................................................. 89
O projeto de Josué e Zacarias: o templo sob o controle dos
sacerdotes................................................................................................... 92
O sacerdócio e o tem plo....................................................................... 95
2 O projeto dos remanescentes............................................................... 105
Isaías 56-66................................................................................................. 105
3 O Livro de M alaquias............................................................................. 110
Consolidação do projeto do templo (445-332 a.C .)..................... 113
Projeto de Neemias e E sdras................................................................ 114
Neemias e a reconstrução de Jerusalém ............................................. 115
Esdras: o ensino e a observância da le i.............................................. 119
Edição final de coletâneas................................................................................. 135
1 Provérbios.................................................................................................. 136
2 Releitura sacerdotal do Pentateuco e sua edição final.................... 142
3 Obra Historiográfica Cronista —O H C .............................................. 151
4 Salm os........................................................................................................ 155
Projetos de resistência na sabedoria popular............................................ 164
1 Jó: uma nova experiência de D eu s.................................................... 166
2 Cantares: novas relações de gên ero ................................................... 179
3 Rute: uma estrangeira fiel a YHWH resgata direitos do pobre ..187
4 Jonas: YHWH não faz acepção entre os povos............................. 196
A profecia de Jo e l............................................................................................. 201
Conclusão da 2ap a rte ......................................................................................211
Para orar e aprofundar................................................................................... 215
Sugestões de leitura........................................................................................... 215

4
Apresentação

Dando continuidade à série Uma Introdução à Bíblia, veremos mais


dois períodos da história de Israel e a produção literária naquela época.
Na primeira parte deste volume, será apresentado o período de do­
minação dos babilônios, também conhecido como exílio babilônico (586
a 539 a.C.).
A segunda parte será dedicada ao estudo da época de dominação
dos persas (539 a 332 a.C).

5
Parte I:
Período do Exílio B abilônico

Introdução

No volume anterior, você pôde acompanhar o estudo da época do


Estado de Judá (931-586 a.C.) e o surgimento de escritos bíblicos naquele
período.
Vimos como era a situação sofrida do povo nos diferentes mo­
mentos do Reino do Sul. Analisamos a atuação dos reis que ocupavam o
trono em Jerusalém. Durante a história de Judá, a resistência popular foi
liderada pelo movimento profético, especialmente a partir de Isaías ao
redor de 740 a.C. Entre outros, a ele se somaram Miqueias, Sofonias,
Naum, Habacuc e Jeremias.
Acompanhamos também a influência de impérios estrangeiros na
política interna de Judá. Primeiro, foi o poder dos assírios. Não só des­
truiu o Reino de Israel em 722 a.C. Foi também uma ameaça ao Reino do
Sul durante um século. Cobrou pesados tributos. Quando o rei Ezequias
suspendeu o pagamento de impostos, Senaquerib promoveu uma cam­
panha militar contra Judá e faltou pouco para conquistar Jerusalém em
701 a.C. Durante o reinado de Manassés e Amon (698-641 a.C.), houve
uma submissão total aos interesses da Assíria. Como vimos, a repressão
foi muito violenta.
Depois do declínio dos assírios, novos ares sopraram em Judá. A
reforma promovida pelo rei Josias em 622 a.C. prometia uma volta aos
tempos áureos de Davi e Salomão. Mas durou pouco, pois um outro
império avançava a partir do sul da Mesopotâmia.

6
A subida dos babilônios ao poder no cenário internacional não só
levou ao fim do Império Assírio, mas também impediu o avanço dos
egípcios. Para Judá, a opressão babilônica foi trágica. Além de cobrar
tributos do povo judaíta, Nabucodonosor invadiu o Estado de Judá. Des­
truiu a cidade santa e, junto com ela, o templo. Foi uma verdadeira calami­
dade. As elites foram levadas à força para a Babilônia. Muitas pessoas
foram mortas. Grupos fugiram para estados vizinhos. E, em Judá, ficou a
maioria do campesinato pobre. A época do exílio babilônico representou
para Judá um novo mas triste momento. Era o fim da dinastia davídica,
dejerusalém e do santuário.
Para consolidar seu poder, os babilônios desmilitarizaram e desur-
banizaram o Reino do Sul, levando para o desterro três grupos de prisio­
neiros de guerra.
Neste volume, você poderá acompanhar mais de perto esse perío­
do do exílio. Foi o mais sofrido de toda a história de Israel. Talvez somen­
te comparável à opressão dos hebreus sob os reis cananeus e o faraó do
Egito há mais de 700 anos. Uma grande crise se abateu sobre quem sobre­
viveu à catástrofe e especialmente sobre os deportados. E, como sempre,
é nas situações de crise que surgem novas propostas, novas alternativas.
Avalia-se o passado. Ativa-se a memória do Êxodo e a esperança de uma
nova libertação renasce. Foi uma época de muita criatividade literária.
Vamos analisar os fatos históricos do exílio, especialmente o seu
significado para todo povo de Israel e a produção literária do período, a
fim de iluminar a situação de exílio em que hoje vivem tantas pessoas. São
exílios longe da pátria. Muitas vezes, são exílios na própria terra. Ao olhar­
mos atentamente o exílio do século 6 a.C., queremos buscar luzes que nos
ajudem a encontrar saídas criativas para o momento crítico em que vive a
humanidade hoje. Nossa leitura bíblica tem a vida como ponto de partida
e de chegada. Quer ajudar a defendê-la, promovê-la e recriá-la permanen­
temente, especialmente lá onde ela está sendo mais agredida e diminuída.
Porque, acima de tudo, o sagrado é a vida.
Por um lado, estudaremos a vida dos que ficaram em Judá depois
da destruição dejerusalém bem como os textos que produziram. Além
de serem críticos ao reinado, revelam uma forte esperança na vinda de um
Messias libertador descendente de Davi.

7
Naquele momento, o Livro de Jeremias ainda estava em processo
de formação. O Litro das Lamentações reflete a situação inconsolável diante
da ruína da capital e da morada de YHWH. O projeta Abdias (Almeida =
Obadias) condena os edomitas por terem ajudado os babilônios na des­
truição de Jerusalém. Os deuteronomistas relêem toda a história passada
de Israel a partir da tragédia de 586 a.C., fazendo acréscimos e releituras na
Obra Historiográfica Deutervnomista (OHD = D t,Js,Jz, l-2Sm , l-2Rs). Além
da reedição da OHD, também os escritos proféticos anteriores ao exílio so­
freram um processo de reelaboração.
Por outro lado, veremos também a vida dos deportados para a
Babilônia e sua elaboração escrita. Os p rofetas E zequiel e 2° Isaías (cap.
40-55) devem ser lidos no contexto dos expatriados junto aos rios da
Babilônia. Ezequiel profetiza para a primeira geração que havia sido leva­
da ao desterro. J á os discípulos e discípulas de Isaías profetizam para a
segunda geração de deportados. Também lá na Babilônia é feita uma revi­
são da história. Foram especialmente os círculos sacerdotais que releram antigas
tradições de I sra elacrescentando sua reflexão nos escritos especialmente de
Gênesis, Exodo, Levítico e Números, como veremos.
Por fim, faremos referência aos salmos relidos e compostos duran­
te o exílio.
Os exílios de ontem e de hoje

“H oje longe, m u itas léguas, num a triste solidão,


esp ero a ch u va ca ir de novo,
p r a eu v o lta r p r o m eu sertão. ”
(Luiz Gonzaga)

Em meio ao sofrimento floresce esperança!


As deportações promovidas pelos babilônios não representaram
apenas muita dor para quem foi levado como refém. Geravam também
muito sofrimento para quem ficou na terra. Mas foi justamente em meio
à dor desse período do exílio que os expatriados e os remanescentes na
terra mantiveram sua esperança, sua mística de resistência. Ao falarmos
em “exílio”, estamos nos referindo à época que vai desde as deportações
promovidas por Nabucodonosor em 597 e 586 a.C. até a queda do Im ­
pério Babilônico em 539 a.C. E o período que inclui a ruína dejerusalém
e do templo, bem como o fim do Reino de Judá.
Antes de continuar seu estudo neste volume, reflita sobre as seguin­
tes questões:
1. Há situações de exílio em nossos dias, em nosso país?
2. Como se manifesta a situação de desterro, de perseguição, de
agressão às culturas e de insegurança hoje?
3. Quais as formas de resistência que o povo encontra?
4. Como o povo percebe a p resença de D eus em m eio ao
sofrim ento?
5. De que modo a descoberta de Deus em meio à dor alimenta a
esperança?
6. Por que muitas esperanças ainda não se concretizaram?

9
Situações de exílio hoje
Em toda parte do mundo, conhecemos situações similares às da
época do exílio babilônico. São refugiados de guerra ou por perseguição
política. São camponeses migrantes por causa de secas ou por outras ra­
zões. São camponeses sem terra em busca de um pedaço de chão para sua
família viver com dignidade. São desempregados em busca de trabalho.
São sem teto na luta por uma casa para morar. São mulheres lutando por
seus direitos. São crianças submetidas ao trabalho infantil. São idosos des­
tituídos de dignidade e que trabalharam a vida toda, mas hoje não têm
acesso aos mínimos direitos...
Se voltarmos aos primeiros séculos de conquista, lembramos a de­
portação de grupos africanos para as Américas, onde foram submetidos à
escravidão. Os povos indígenas foram reduzidos à condição de exilados
em sua própria terra. Esta lhes foi rou­
"Amigo é coisa bada. Muitos foram escravizados.
pra se guardar Tanto às nações indígenas como
debaixo de sete chaves, às africanas foram negadas sua religião,
dentro do coração. sua liberdade, sua identidade, sua ale­
Assim falava a canção gria. Da sua cultura somente não foi
que na América ouvi. condenado ao esquecimento aquilo que
Mas quem cantava chorou virou folclore.
ao ver seu amigo partir." Se voltarm os apenas alguns
(Milton Nascimento) anos no tempo, temos a lembrança ain­
da muito viva da época dos regimes
militares na América Afrolatíndia. No Brasil, a ditadura foi de 1964 a
1985. Muitas pessoas foram mortas. Outras tiveram que fugir para conti­
nuar vivendo.
Todos esses grupos de exilados resistiram cada um de sua forma.
E continuam resistindo ainda hoje, sejam eles exilados longe de sua pátria
ou estejam numa situação de exílio em sua própria terra.
A experiência de exílio na Bíblia nos anima e encoraja para continu­
armos buscando criativamente alternativas de promoção da vida, num
contexto em que as forças da morte parecem vencer. Um provérbio resu­
me bem nosso sonho, nossa utopia: “Os poderosos podem cortar as
flores, mas nunca poderão impedir a chegada da primavera!”.

10
Os fatos históricos
Datas importantes
605-562 a.C: Nabucodonosor, rei da Babilônia.
597 a.C.: Primeiro cerco dejerusalém . Submissão aos babilônios e de­
portação do primeiro grupo para a Babilônia. Entre a elite de­
portada estavam o rei Joaquin e Ezequiel.
593 a.C.: O sacerdote Ezequiel se converteu em profeta, profetizando até
571 a.C.
588 a.C.: O rei Sedecias suspende o pagamento de tributos à Babilônia.
587-586 a.C.: Depois de 1 ano e meio de cerco, os oficiais de Nabucodo­
nosor conquistam e incendeiam Jerusalém. O rei Sedecias foi
preso e levado com o segundo grupo de deportados para a
Babilônia. Foi o fim do Reino de Judá.
586 a.C.: Godolias (Almeida = Gedalias) foi nomeado governador, mas
foi assassinado provavelmente 4 anos mais tarde (582 a.C.). Foi
um período de reconstrução do povo na base de um a
retribalização.
585 a.C.: Depois da queda dejerusalém , o profeta Abdias proferiu seus
oráculos contra os edomitas.
582 a.C.: Data provável da fuga dos sobreviventes ao massacre de Go­
dolias para o Egito, levando Jeremias e Baruc. Terceira deporta­
ção para a Babilônia.
562-560 a.C.: Avil-Marduc (2Rs 25,27 = Evil-Merodac), rei dos babilônios.
561 a.C.: Evil-Merodac anistiou o reijoaquin, libertando-o daprisão (2Rs
25,27ss).
556-539 a.C.: Nabômdes, rei da Babilônia. Em seu reinado, começou a
decadência do império.
555-529 a.C.: Ciro, rei dos persas. Em 555 a.C, liberta a Pérsia da domi­
nação dos medos.
Em 549 a.C., passa a dominar os medos. Em 547 a.C., conquista a Lídia.
Durante o reinado de Ciro atua o 2 Isaías (40-55).
539 a.C.: Ciro conquista a Babilônia. Devolve aos povos subjugados pe­
los babilônios os ídolos que Nabucodonosor havia levado para
a Babilônia (Esd 5,14). Restabelece o culto aMarduc.
538 a.C.: Ciro permite o retorno dos exilados (Esd 1,1-11), e o altar do
templo é reconstruído no mesmo ano (Esd 3,2-3).

11
Deportar os povos conquistados era costume no antigo Oriente
Médio. Assim já haviam feito os assírios com os israelitas do Reino do
Norte em 732 a.C. (2Rs 15,29; Os 10,6) e em 722 a.C. (2Rs 17,1-6; 18,9-12).
Nos anais de Senaquerib consta que ele desterrou também milhares de habi­
tantes de Judá, por ocasião do cerco de Jerusalém em 701 a.C.
Os babilônios seguiram a mesma estratégia dos assírios. Em 597
a.C., deportaram o primeiro grupo da elite de Judá, depois de o rei Jo a­
quim suspender o pagamento de impostos (2Rs 24,1.14-16). Nessa pri­
meira leva, entre a elite deportada, merecem destaque o rei Joaquin (tam­
bém chamado de Jeconias ou Conias - J r 22,24; 37,1), filho de Joaquim,
sua corte, a rainha-mãe Noestã e o sacerdote Ezequiel. O rei com sua
gente permaneceu junto à corte da Babilônia. Nabucodonosor, porém,
reassentou o maior contingente dos reféns junto aos rios Cobar e Tel Abib
(Sl 137,1; Ez 1,3; 3,15).
Em 588 a.C., o rei Sedecias suspende o pagamento de tributos à
Babilônia. Em 586 a.C., depois de 1 ano e meio de cerco, os oficiais de
Nabucodonosor conquistam e incendeiam Jerusalém. Foi o fim do Reino
de Judá. O rei Sedecias foi preso e levado com o segundo grupo de
deportados para a Babilônia (2Rs 25,11). Certamente foi reassentado jun­
to aos expatriados de 597 a.C. Os deportados da primeira como da se­
gunda leva foram basicamente moradores de Jerusalém. Do interior, poucos
foram atingidos.
Em 582 a.C., quando houve uma conspiração contra o Império
Babilônio que culminara no assassinato do governador Godolias, foi leva­
do um terceiro grupo (Jr 52,28-30).
A intenção fundamental dessa estratégia de dominação era eliminar
qualquer tentativa de resistência, suprimindo a identidade nacional do povo.
Daí a razão de levarem para o cativeiro especialmente aqueles que tinham
maior influência sobre o povo e que resistiam mais à opressão estrangeira.
Geralmente, levavam como reféns o rei e sua família, os nobres, os pro­
prietários de terra, os artesãos especializados, os chefes militares e os sa­
cerdotes.
Durante o exílio, podemos distinguir três grupos:
* Como os números na Bíblia são imprecisos, estima-se que menos
de 15 mil pessoas foram levadas para a Babilônia.

12
* Em tomo de 100 mil ficaram nas terras de Judá.
* Muitas pessoas fugiram para estados vizinhos, inclusive para o Egi­
to, onde chegaram a construir um templo na colônia judaica de Elefantina.
Segundo Jr 44, passaram também a cultuar divindades egípcias.
Em 539, chegou ao fim o Império Babilônico. Foi conquistado
pelo exército persa, comandado pelo rei Ciro. Adiante, voltaremos à der­
rota da Babilônia para a Pérsia.

Significado do exílio para o povo de Israel


F onte de arrep en d im en to e conversão.
O portu nidade de m udança de rum o e de con ceitos.
M om ento p a ra a v a lia r a resp on sa b ilid a d e no p a ssa d o e no p resen te.

Da dor nasce a esperança


Já vimos no volume anterior com ojerem ias alertara sobre as con­
seqüências catastróficas parajudá, caso conspirasse contra o soberano ba­
bilônio. E tinha razão, pois a busca de apoio no Egito contra a Babilônia
levou ao maior desastre vivido pelos judaítas. Trouxe guerra, mortes, de­
portações, fome, doenças, fim da dinastia de Davi, de Jerus além, do tem­
plo. Após 586 a.C., parte do antigo Reino de Judá foi subordinado à
província babilônica da Samaria. A parte sul de Judá foi dada aos edomi­
tas e a tribos árabes.
Mas essa situação de desespero total, à primeira vista identificada
com o fim de tudo (Lm 3,18), não conseguiu tirar a esperança nem dos
que foram expatriados, nem dos que ficaram. Aos poucos, muitas pessoas
começaram a insistir na fidelidade de YHWH. Apesar da escuridão, a con­
fiança na misericórdia divina fazia enxergar uma luz no fundo do túnel.
Era necessário buscar uma saída. A crise exigia a busca de alternativas. A
criatividade estava desafiada. Da experiência da dor, do fundo da opres­
são nascia uma nova esperança. Não deixe de ler Lm 3,21-24! No cativei­
ro, o povo expatriado descobriu sua missão de ser “luz das nações”. Veja
Isaías 42,1-9!

13
Exílio, um divisor de águas
O período do exílio durou poucos anos se comparado com toda a
história de Israel. Considerando seu início a partir da primeira deportação
em 597 a.C. e o final por ocasião da vitória de Ciro sobre os babilônios
em 539 a.C., a duração foi de 58 anos. Se considerarmos a queda de
Jerusalém em 586 a.C. como a data do seu início, então sua duração foi de
47 anos.
O exílio marcou profundamente a vida do povo, tanto dos rema­
nescentes em Judá como dos expatriados. Influiu também profundamen­
te a releitura e a redação da história e das antigas tradições. As marcas
foram tão profundas que esse período pode ser considerado um divisor
de águas na história de Israel. Fala-se em “antes do exílio” ou em “depois
do exílio”.
Foram muitas mudanças na história, na religião e na teologia. Foi
uma reviravolta completa. Foram perdidos os principais referenciais que
davam identidade nacional aos judaítas: o estado, o rei, a terra, o templo, a
cidade santa.

Pré-exílio, exílio e pós-exílio


Para perceber melhor o que representou o exílio na vida dos expa­
triados, dos que fugiram, bem como dos que ficaram nas terras de Judá,
compare as colunas abaixo.

Pré-exílio Exílio Pós-exílio


Havia reis davídicos. 0 rei não passava de um Não havia mais reis.
prisioneiro de guerra.
Havia controle dopoder 0 poder estava com a 0 poder político pertencia
político e religioso. Babilônia. aos persas e o poder
religioso aos sacerdotes.
A lei do estado era a lei de 0 povo devia obediência à Podia observar sua lei
Deus. lei do poder estrangeiro. religiosa, contanto que
também obedecesse
àlei dos persas.

14
Judá formava uma nação, Não havia mais um É possível que aJudeia tenha
um Estcdo. Estado independente, feitoparte daprovínciapersa
mas apenas uma comuni­ da Samaria. Mais tarde, ela
dade étnica desintegrada e mesma se tomariaprovíncia
dispersa em meio a um persa. Nem todos
império multicultural. voltaram da dispersão.
A tó/ropertencia aos A terra passou para os Os persas se adonaram da
judeus. babilônios. terra e cobravam tributos.
Aprofecia cobrava A profecia animava o A profecia motivava a
fidelidade dos reis àlei de povo, renovando sua reconstrução do povo.
Deus, denunciava as esperança.
injustiças e organizava a
resistência popular.
Havia capital com Jerusalém estava em ruínas, Aos poucos, a cidade foi
palácios. os palácios foram queima­ reconstruída e repovoada.
dos, os muros derrubados.
0 templo, a arca de Deus e o 0 templo foi incendiado, o Altar e templo foram
altar de sacrifícios eram o altar demolido. Não havia reconstruídos. Há nova­
centro do culto a YHWH. mais oferta de sacrifícios. mente oferta de sacrifícios.

O patriarcalismo durante o exílio


O fim da estrutura monárquica, bem como a destruição do templo
certamente desestabilizaram também a tradição patriarcal que era forte­
mente legitimada pelo reinado e pela religião machista do templo. Os
papéis sociais estabelecidos pela tradição da monarquia e pela religião do
templo foram profundamente abalados.
De um lugar a que somente homens tinham acesso, como era o
templo, em meio aos remanescentes, a religião passou a ter forte ligação
com a família, o clã, tal oomo na época das tribos. Consequentemente, a
casa, espaço próprio das mulheres, torna-se o lugar onde a fé é vivida e
expressada. Esse novo contexto faz com que haja uma mudança nas rela­
ções de gênero. As mulheres começam a expressar com mais liberdade
seu pensamento e suas reflexões sobre Deus. Podemos assim dizer que a
literatura bíblica posterior, onde encontramos vários escritos com nome

15
de mulher e com imagens tiradas da experiência das mulheres, tenha aqui
suas raízes.
Outro foi o destino das mulheres que foram deportadas. Se amar­
ga foi a sorte dos homens, mais amarga e sofrida foi a situação das mulhe­
res que ficaram expostas a inúmeras formas de desmando e abuso. Outro
fator foi que, lá na Babilônia, os mesmos sacerdotes, que antes controla­
vam o templo, continuavam na liderança das comunidades cativas. Mas
isso não impediu que, entre as mulheres expatriadas, houvesse resistência
contra a tradição patriarcal, criando novas relações de gênero e elaboran­
do um novo conceito de YHWH, como veremos adiante ao estudarmos
a profecia do movimento de Isaías entre os deportados.

No pós-exílio, a tradição dos deportados se impôs


Não é difícil compreender por que o cativeiro se tornou o lugar de
maior interesse nessa época e no pós-exílio. Lembremos, pelo menos,
quatro razões.
* E que para lá foi expatriada a elite intelectual e religiosa de Judá.
Ela se tornou o principal centro de resistência nessa época.
* Para os deportados, o verdadeiro Israel não era o campesinato
pobre que ficara em Judá, mas a elite deportada.
* Porque o desterro na Babilônia teve um “final feliz”, diferente das
deportações promovidas pelos assírios. Os judeus expatriados por Nabu­
codonosor tiveram a permissão de Ciro para voltar à sua terra, quando
este conquistou o Império Babilônico.
* Depois do exílio, foi esse grupo que tomou a liderança no Juda­
ísmo, conseguindo, inclusive, ampliar o significado, o alcance do exílio. Os
teólogos do pós-exílio chegaram, por exemplo, a dizer que a deportação
atingiu toda a população (2Cr 36,20-21), quando sabemos que não che­
gou a 15%. Isso revela que, para as gerações posteriores, o “final feliz”
dos deportados passa a ser considerado um acontecimento decisivo.

O exílio como símbolo


Nesse sentido, o exílio não é simplesmente a expatriação e o sofri­
mento em terra estrangeira. É também a opressão na própria terra, seja
por reis estrangeiros, seja pelas elites locais.
16
“Exílio” passou a ter um sentido simbólico, mítico até. Simboliza
toda a forma de dominação seja na própria terra seja no exterior. Exílio
virou sinônimo de dor, sofrimento, desintegração, perda de identidade,
falta de perspectivas.
Passou inclusive a ter uma reserva de sentido. Falar no exílio do
passado significava falar da situação de opressão no presente. E mais.
Significava também, tal como no passado, a esperança de uma possibili­
dade de conversão, de superação da dor, de recuperação da identidade,
de promoção da liberdade e da cidadania.
E nesse sentido que deve ser interpretado o 2° Isaías, cuja redação
final se deu no período pós-exílico. Em Is 40-55, o projeto de retorno da
Babilônia aparece como modelo, como paradigma para todas as comuni­
dades judaicas da diáspora, dispersas por todo o mundo, convidando-as a
promoverem um novo Êxodo.

Exílio: oportunidade para mudança de rumo


O exílio foi um momento de profunda revisão da vida, da história.
Apesar da incorporação de Judá no Império Babilônico, tanto as elites
deportadas quanto os pobres remanescentes nas terras de Judá mantive­
ram sua consciência religiosa nacional. A situação de sofrimento no perío­
do do exílio foi um momento de crise que levou a uma reflexão sobre a
história passada do povo, sobre sua infidelidade à aliança com YHWH. A
avaliação da caminhada foi como que um exame de consciência nacional.
Foi uma fonte de arrependimento. Chegou tarde, é verdade, mas era ne­
cessário reconhecer o desvio do projeto do Deus da vida, da liberdade,
da justiça, como já havia alertado o movimento profético pré-exílico.

Será que hoje nós não cometemos o mesmo erro? Sabemos que
abusamos da velocidade no trânsito. Sabemos que o crime organizado
é um grave problema. Sabemos que estamos destruindo o planeta. Sa­
bemos que o atual modelo de sociedade hegemônico no país e no
mundo é excludente.
E o que nós fazemos diante disso? Vamos nos mobilizar somente
quando um parente nosso for vítima de acidente ou do crime organiza­
do? Vamos tentar salvar o planeta somente quando não houver mais

17
água potável, ar respirável, ou quando não houver mais florestas ou
quando a camada de ozônio já não existir mais? Vamos apoiar ou cons­
truir uma nova forma de convivência e do exercício do poder na
sociedade somente depois que todos estivermos desempregados, mo­
rando em favelas, passando fome, sem assistência social, sem segurança
ou no mundo das drogas?
A experiência do exílio nos leva a refletirmos sobre estas e dutras
questões. Nos leva não somente a refletir, mas a tomar atitudes que
evitem um próximo “exílio”, uma próxima catástrofe para o mundo,
para a humanidade, para a vida. O destino do mundo está em nossas
mãos. Seu futuro depende de nossa postura, de nosso agir ou de nossa
omissão diante dos graves problemas que estão levando o mundo a
um novo “exílio”.

É nessa época que se fez um a nova revisão da história na ótica


do exílio, como veremos adiante. Reconhece-se a culpa pelo desastre
de 586 a.C. Segundo os redatores finais da OHD, a ruína da monarquia
foi um justo castigo pela infidelidade à lei de Deus, pela não manutenção
integral da reforma empreendida por Josias em 622 a.C. Para exemplifi­
car, leia em 2Rs 24,19-20 a avaliação que fizeram de Sedecias, o último
monarca da dinastia davídica!
O mesmo aconteceu com a literatura profética. Ezequiel e o 2°
Isaías fizeram avaliação idêntica. Veja, por exemplo, Ez 5,5-10 e Is 43,22-28!
Confira ainda Lm 1,18; 2,17; 3,38-44!

O exílio proporcionou a revisão de conceitos


No texto de Isaías que acaba de ler, você já pôde perceber a confi­
ança no perdão de Deus. Você percebeu também que o conceito de culpa
diante da catástrofe do exílio era muito forte. Como tudo era entendido a
partir do conceito da justiça de Deus, YHWH foi justo ao castigar seu
povo, usando os babilônios como instrumento do castigo. Contudo, o 2°
Isaías pensa que o castigo foi o dobro do merecido. Confira Is 40,2!
Assumindo a culpa, o povo estava reconhecendo sua responsabili­
dade pelo que estava acontecendo. Mostrava-se disposto a fazer uma ava­
liação do passado e mudar o rumo de sua caminhada.
18
Assim se compreende o forte apelo de conversão, de volta à fide­
lidade. Leia Is 44,21-22; Ez 18,23.31-32; 33,10-20!
Em Jr 44,15-19, há uma avaliação diferente e mais popular do de­
sastre de 586 a.C. Confira! A religião popular via a causa da queda na
purificação do culto a YHWH realiza­
da pela reforma de Josias. Segundo essa "M eu Brasil...
avaliação, foi a suspensão do culto à que sonha com a volia
Rainha dos Céus, violando os lugares do irmão do Henfil,
de culto a Asera, que causou a tragédia. com tanta gente que partiu
Além da conversão, outro con­ num rabo de foguete."
ceito que criou novo sabor no exílio (João Bosco e Aldir Blanc)
foi a esperança, como veremos adian­
te ao abordar especialmente o movimento profético.
O conceito de Deus também sofreu evolução. E que foi necessário
experimentar a presença de Deus num novo contexto, numa nova realida­
de. Superou-se a teologia da elite sacerdotal dejerusalém, que fixava YHWH
no templo. Para os desterrados na Babilônia, YHWH migra para junto
deles. Aprofundaremos essa questão ao analisarmos o profeta Ezequiel.
Ele também elabora com clareza uma nova moral de responsabilidade. Já
não diz que a responsabilidade é somente coletiva, mas também pessoal.
O culto sofreu uma profunda mudança. Altar e templo estavam em
ruínas. No lugar da liturgia regada ao sangue dos animais sacrificados,
passou-se à liturgia da Palavra, à valorização das Escrituras.
Diante da ameaça de perda da identidade, especialmente dos depor­
tados, buscaram-se formas de preservá-la, marcando claramente os limites
entre o que é ser judeu e pertencer a outro povo. Para isso, foi dada impor­
tância especialmente ao sábado (Gn 2,l-4a) e àcircuncisão (Gn 17,3-14).
O exílio produziu uma grande desintegração em Israel. Mas os ju­
deus se mantiveram como povo, embora dispersos. Todos os povos vizi­
nhos a Judá foram absorvidos pelos-impérios. Desapareceram. Você ain­
da ouve falar, por exemplo, nos amonitas, nos filisteus, nos edomitas ou
nos fenícios? Os judeus, porém, permaneceram graças à sua fé em YHWH,
uma fé vivida principalmente de forma comunitária.
Convém nunca esquecer que a opressão dos dinastas davídicos não
foi a primeira causa, do exílio. As deportações tiveram como principal

19
causa a luta entre as grandes potências da época e a política equivocada de
alianças dos monarcas de Jerusalém nesta guerra entre impérios. Reco­
mendamos que você releia o item “Por que Judá foi destruído?” nas pági­
nas 153 e 154 do volume anterior.

Sinagoga
Você já pôde perceber o grande significado que o exílio represen­
tou para Israel. Convém lembrar mais um elemento. Provavelmente, foi
no cativeiro que apareceu pela primeira vez a sinagoga como espaço que
substituiu o templo agora em ruínas. Porém, não como lugar de sacrifí­
cios, mas como lugar de oração, de instrução na lei de Deus, de reflexão
das Escrituras, da Palavra.
Quando não há mais trono, nem altar, nem templo, valonza-se a
Palavra. E o início do que se chamará de “judaísmo” depois do exílio. E
um modelo de vida bem diferente daquele que eravivenciado em Jerusa­
lém antes da queda. Durante o exílio, a Palavra estava no centro da vida do
povo. Na reflexão das Escrituras, a lei tinha um destaque especial. Eze­
quiel, por exemplo, faz referências à observância dos mandamentos de
Deus (Ez 11,20; 44,24). Mais tarde, como veremos, Esdras dará à fé ju­
daica uma estrutura bem definida. Centralizada na observância da lei, a
comunidade judaica pôde manter-se unida, mesmo dispersa por todo o
mundo.
Sinagoga é uma palavra grega que significa “assembleia”, “reunião”.
Como se tornou impossível realizar o culto centralizado no templo em
ruínas, a sinagoga foi uma forma criativa encontrada para manter a fé e a
identidade judaica. Foi entre os deportados para Babilônia que terão surgi­
do as primeiras sinagogas, lugares de reunião de pessoas para o culto nos
sábados.
Inicialmente, as reuniões eram realizadas em casas. Veja, por exem­
plo, Ez 8,1; 14,1; 33,30-33! Aos poucos, porém, foram construídas casas
especiais para realizar as assembleias de oração e de instrução na lei, na
Palavra.

20
A vida de quem ficou em Judá
efiz era m uma colh eita m uito abundante
de vinho e fr u ta s . ” (Jr 40,12b)

Sobre algumas informações importantes da vida dos remanescen­


tes nos primeiros anos em Judá depois da queda dejerusalém , você jáleu
no volume anterior nas páginas 154 a 157.

A tragédia de 586 a.C. trouxe sofrimento para todos...


É verdade que o desastre nacional atingiu a todos. Não somente
aos que foram deportados. Influiu decisivamente também na vida dos
remanescentes.
Por um lado, a perda de referências importantes e que davam iden­
tidade à nação certamente gerou uma crise de fé também nos que ficaram.
O Livro das Lamentações é testemunha disso, como veremos logo adian­
te. A desintegração também atingiu suas famílias, pois muitas pessoas ha­
viam morrido na guerra. Possivelmente, alguns soldados foram levados
para o exílio. Outros terão fugido para regiões vizinhas. A situação era de
pós-guerra com todas as conseqüências desastrosas que ela produz. Certa­
mente havia muitas viúvas e muitos órfãos. Leia Lm 5,3!

... mas também possibilitou uma colheita abundante


Por outro lado, do ponto de vista econômico, a vida melhorou
para esses camponeses que haviam sido historicamente espoliados com
pesados tributos pela corte, pelo templo e indiretamente pelos impérios
estrangeiros. Livres dos tributos cobrados pelos reis locais e pelos sacer­
dotes, houve um certo alívio nas despesas das famílias do campo. Não só
os camponeses empobrecidos tiveram novamente acesso à terra, que no
reinado estava nas mãos de grandes proprietários, mas houve de fato mais
produção de alimentos, como você já leu em J r 40,12.
A presença dos babilônios não terá aumentado a expropriação do
campesinato. Tributos eles já cobravam antes da ruína. Aliás, aniquilaram o
Reino de Judá, justamente porque suspendera o pagamento de tributos,

21
como já vimos. Provavelmente, a dominação babilônica diminuiu em Judá
na época do exílio. Inicialmente, colocaram uma espécie de governador,
Godolias. Quando foi assassinado, não se tem notícias que o tenham subs­
tituído por outro. Depois de desmilitarizar e desurbanizar Judá, e depois
de devolver aos lavradores mais pobres o controle da terra, a Babilônia
não manteve o território militarmente ocupado. Podemos concluir daí
que os camponeses foram como que retribalizados, passando a viver con­
forme o que restava dos costumes igualitários dos clãs e das tribos.

Profecia e liturgia entre os remanescentes


Mas em Judá não ficou somente o campesinato. Permaneceram
tam bém , grupos proféticos. Inicialmente, o próprio Jeremias optara por ficar
com o governador Godolias para ajudar na reorganização da vida depois
da guerra. O profeta Abdias, que estudaremos adiante, terá pertencido a
esses grupos.
Certamente houve também sobreviventes de Jerusalém que não
morreram na guerra contra os babilônios e que também não foram leva­
dos como cativos. Ficaram entre os remanescentes. Entre eles estavam
aqueles que participavam nas liturgias do templo, os cantores. E provável
que foram eles que continuavam organizando celebrações de penitência e
de lamento junto aos muros do templo que haviam ficado em pé.
Jerem ias a eles se refere. Não deixe de ler Jr 41,4-7! São desse grupo os
autores doLivro das Lamentações, como veremos.

Literatura bíblica em Judá


Neste capítulo, estudaremos a literatura bíblica escrita nas terras de
Judá durante o exílio. O li t r o deJeremias ainda estava em processo de forma­
ção. O liv r o das luimentações reflete a situação desoladora diante do que foi
aquela calamidade. O profeta Abdias condena os edomitas por apoiarem os
babilônios e se alegrarem com a destruição de Jerusalém. Os deuteronomis­
tas relêem toda a história de Israel na perspectiva da tragédia de 586 a.C.,
fazendo acréscimos e releituras na OHD. Veremos ainda que os escritosproféti­
cos anteriores ao exílio também sofreram um processo de reelaboração.

22
1 Jeremias
No volume anterior, você já estudou o escritos e a atuação do
profeta Jeremias nas últimas décadas do Reino de Judá, durante a catás­
trofe de 586 a.C. e mesmo nos anos seguintes à ruína. Aqui, porém, con­
vém fazer uma rápida referência ao livro do profeta.
Nos primeiros anos do exílio, foi escrita boa parte de seus oráculos.
E o caso, por exemplo, dos capítulos 39-44. Eles descrevem e interpre­
tam a tomada de Jerusalém e o que aconteceu em Judá e no Egito no
período posterior à queda.
Durante o exílio, os redatores finais do livro recolheram o material já
existente e o organizaram, sem deixar de fazer suas releituras e acréscimos.

2 Lamentações
“Como está solitária a cidade,
outrora tão p o p u lo sa !” (Lm 1,1)

Local, época e autores


A situação vivencial dos autores de Lamentações e de Abdias é
similar. Para ambos Sião e o templo desempenham um papel importante.
A informação de Jr 41,5 e o Livro das Lamentações são testemu­
nhos de que as muralhas do templo cm ruínas se transformaram em lugar
de orações e ritos de lamentação. Os cânti­
cos de lamento certamente eram recitados "O lha i e vede se há
nos ritos de luto e arrependimento junto às dor m aior do que a
ruínas do templo após a queda de Sião. dor que me atormenta,
Eram uma espécie de cancioneiro. com a qual YHWH
A época de composição do Livro das me atingiu..."
Lamentações certamente foram os píimei- (Lm 1,12)
ros anos depois da catástrofe de 586 a.C.
E provável que os autores sejam os que antes trabalhavam no templo
como cantores e que não foram levados como reféns pelo exército de Na­
bucodonosor. O local de composição, portanto, é Judá, talvez a própria
cidade dejerusalém , em cujas ruínas tentaram sobreviver.

23
Conteúdo das Lamentações
Seu conteúdo são cantos fúnebres, bem como lamentações coletivas e
individuais que se referem à destruição de Jerusalém e do santuário sobre o monte
Sião. Referem-se também às conseqüências trágicas na vida do povo, como
a fome, a sede, os assassinatos, incêndios, saques e deportações. Confira
essa situação nas seguintes citações: 1,11.20; 2,11-12.19-20; 4,4-5.9-10;
5,3-6.9-10!
Mais do que descrever a situação do campesinato, Lamentações
retrata a condição especialmente dos cidadãos que sobreviveram à des­
truição de Jerusalém e das demais cidades de Judá. Como já vimos, para
o campo até houve uma sensível melhora nas condições de vida. Percebe-
se, assim, uma significativa diferença entre o projeto do governador Go­
dolias e o profeta Jeremias, por um lado, e, por outro, o dos autores de
Lamentações.
Lamentações é um retrato fiel da angústia e da revolta contra Deus
desses cidadãos profundamente humilhados. Foram dias de total confu­
são ainda muito próximos aos acontecimentos, quando “a fumaça e a
poeira ainda estavam no ar”. Diante da tragédia, fazem um profundo
exame de consciência. Reconhecem sua culpa. Arrependem-se e pedem
por misericórdia. Mudam seus conceitos a respeito da vida e de Deus.
Perdem tudo, menos a fé em YHWH como senhor da vida, que continua
solidário com seu povo, pronto a perdoar.
Por isso, há esperança Sião. Leia 3,24.31; 5,1! Em meio à dor,
nasce a esperança. O rosto misericordioso de Deus é redescoberto junto
com um novo significado para a vida. A esperança se fundamenta no
amor de YHWH. Confira 3,22.32!

A mulher como metáfora


O uso da metáfora da mulher como representação de Judá, como
figura do monte Sião, como imagem de Jerusalém, perpassa todo o livro.
Leia, pelo menos, algumas das seguintes citações: 1,1.6; 2,1.5.8.10-11.15.18;
3,48.51; 4,6!
A metáfora sempre é simbólica, é verdade, mas nela transparece a
condição das mulheres na sociedade patriarcal. Também em Israel, a situ­

24
ação da mulher sem marido e sem filhos era lamentável, levando-a à con­
dição de excluída. Antes do casamento, era considerada propriedade do
pai. Depois, do marido. A mulher não tinha o direito à propriedade pois
ela mesma era uma propriedade. E como viúva e sem filho homem, sua
situação piorava ainda mais. Estava privada das condições básicas de so­
brevivência e sem futuro. Nesse sentido, a metáfora foi aplicada aju d á e
principalmente a Sião, pois durante o exílio se encontravam privados da
capital, do santuário e da monarquia. Estavam sem futuro, como as viúvas.

A estrutura do livro
A estrutura da obra contém cinco unidades. São os cinco capítulos
do livro. Os dois primeiros junto com os dois últimos revelam a dor
coletiva. A terceira unidade expressa a dor individual diante da tragédia.
Do ponto de vista do conteúdo, Lam entações pode ser as­
sim dividido:
* A dor dejerusalém humilhada: cap. 1.
* YHWH arrasa sem piedade: cap. 2.
* Esperança no meio da dor: cap. 3.
* Um novo retrato dejerusalém humilhada: cap. 4.
* Em meio à desesperança, a confiança na misericórdia de YHWH:
cap. 5.

A grande lição de Lamentações


Diante do sofrimento de ontem e também de hoje, é impossível
ficar neutro. A tomada de posição é uma necessidade. De que forma nos
posicionamos? Reconhecemos como
legítimo o desabafo e o grito de re­ "Paro entender a aflição
volta dos oprimidos, inclusive con­ de outras pessoas
tra Deus? O grito de dor é o primei^ provavelmente se faz
ro passo para recriar a vida. necessário colocar-se,
Os senhores do mundo apos­ pelo menos durante alguns
tam num embrutecimento diante do minutos, uma vez na vida,
no lugar de cada uma delas."
sofrimento e das injustiças. Tentam
(Constantivo Simenon)
fazer com que não tenhamos mais
sensibilidade e sentimentos de com­
25
paixão e solidariedade. Por isso, banalizam a vida, como se ela não tivesse
mais dignidade. Ela já se tornou mercadoria, algo comum como qualquer
coisa. Insistem em impor uma cultura de violência, de terror, de competi­
ção, de insensibilidade. Para eles, é normal que haja guerra, desemprego,
menores abandonados, trabalho escravo, exploração de menores, idosos
desassistidos, drogas, crime organizado, fome, etc.
Diante disso, o que fazer para cultivar sentimentos nobres, que res­
gatem novamente a solidariedade? Como entender a aflição cm que vi­
vem tantas pessoas? Como superar atitudes que fazem da insensibilidade
um estado de vida? Como nós estamos engajados na promoção de novas
posturas de vida que promovam a paz? Posturas e comportamentos que
gerem relações novas?

Para você continuar a reflexão


Leia atentamente Lm 1-5! a) Faça um levantamento das conseqüên­
cias da catástrofe de 586 a.C. na experiência do povo! b) Como aparecem
no texto a indignação contra Deus, por um lado, e, por outro, a esperança
em Deus? c) Que mensagem a experiência dos autores de Lamentações
tem para nós hoje?

3 Abdias (585-580 a.C.)

“M as no m on te S ião h a verá libertação.


E le será santo. ” (Ab 17a)

Quem foi Abdias? Quando e onde profetizou?


Como para os autores de Lamentações, também para o profeta
Abdias (Servo de YIIlV Ií) Sião e Jerusalém desempenham uma função de
destaque. Antes da calamidade de 586 a.C., é provável que o profeta Ab­
dias tenha servido no templo como escriba ou profeta do culto. Sua pro­
fecia está profundamente identificada com os interesses de Jerusalém (v.
11) e do monte Sião (w. 16-17.21).
Quando Abdias pronuncia seus oráculos, os acontecimentos da que­
da ainda estavam à flor da pele. Eram recentes. Era o mesmo contexto

26
dos autores de Lamentações. Daí por que se pode situar sua atuação em
meio aos remanescentes entre 585 e 580 a.C.
Antes de continuar o seu estudo, consulte algum mapa em sua Bí­
blia e localize a terra dos edomitas, ao sul do Mar Morto até o Golfo de
Acaba.

Justificam-se as sentenças contra os edomitas?


O assunto da obra é a crítica e a ameaça aos edomitas. E não terá
sido por acaso. A participação ativa de Edom no ataque à capital de Judá
deu origem às ameaças àquele povo. E provável que os edomitas servi­
ram de tropa auxiliar ao exército de Nabu-
codonosor. Leia os w . 10-14.16! Além de "N ã o fique alegre
festejarem a queda dos muros de Jerusa­ quando seu am igo cai.
lém, os edomitas ocuparam o sul de Judá, E não festeje quando
estendendo seu território até Hebron. Não ele tropeça!"
deixe de ler Ez 36,5! (Pr 24,17)
Certamente, era sofrido para um ju-
daíta apanhar de um edomita. Primeiro, porque se consideravam povos
irmãos. Compare Ab 10 com Gn 25,24-30 e Am 1,11! Nesse sentido,
Abdias faz uma forte crítica à falta de solidariedade do povo irmão. Em
vez de dar as mãos ao irmão diante da ameaça do império, ainda ajudou
a potência babilônica abater fortemente num estado já fragilizado.
Segundo, porque historie amente os monarcas de Judá oprimiram vá­
rias vezes os edomitas. Saul foi o primeiro a fazer guerra contra Edom
(ISm 14,47). Confira ainda a dominação sobre Edom pelos reis Davi
(2Sm 8,13-14; lR s 11,14-16), Josafá (lR s 22,48) e Amasias (2Rs 14,7)! A
conquista das terras de Edom permitiu a Davi o controle da estrada dos
Reis, que ligava Damasco, ao norte, com o Golfo de Acaba, ao sul. Dessa
forma, tinha o controle sobre o comércio na região. Facilitou também o
acesso de Salomão ao Golfo de Acaba, onde construiu um porto em
Asiongaber (lR s 9,26). Além disso, Salomão explorou as minas de cobre
dos edomitas.
Certamente, era revoltante para um judaíta fortemente nacionalista
ser humilhado por quem tinha historicamente feito objeto de sua humilha­
ção. Naquele momento, sua dor também foi maior por causa da situação

27
trágica com a ruína do Estado. Nesse sentido, é compreensível o senti­
mento de rancor e ressentimento, bem como a violência de suas ameaças.
Abdias alimenta um forte desejo de vingança. Confira Ab 10.15-20!
Na Bíblia, há também muitos outros textos fora da obra de Abdias
que também estão repletos de ressentimentos contra os edomitas. Você
pode conferir em sua Bíblia algumas das seguintes citações: Sl 137,7; Is
6 3 ,l-6 ;Jr 49,7-22; Lm 4,21-22; Ez 25,12-14; 35; Am 1,11-12!
Por um lado, Edom se alegrou com a queda de Jerusalém. Essa
alegria era fruto da opressão e da violência históricas impostas pelos reis
davídicos aos edomitas. Por outro lado, será que o ressentimento e o dese­
jo de vingança por parte dos judaítas foi justo? Será que os edomitas
massacraram tantos judaítas como o exército do monarca Davi que “m a­
tou todos os hom ens de E dom ” ? Naquela ocasião, levantou-se algu­
ma voz contra o sanguinário rei Davi? Leia lR s 11,15!
O Livro do profeta Abdias, como outras partes da Bíblia, levan­
tam um questionamento para nós hoje. Onde nos leva o desejo de vingan­
ça? È claro que temos que ler esses textos no contexto da época. Mas
surge um sério desafio: que lições tirar da leitura desses textos para cons­
truir uma postura de paz? Vingança e guerra marcam o patriarcalismo e
hoje vemos seus resultados. Quais as atitudes verdadeiras para uma prática
de solidariedade entre os pequenos onde a vida seja de verdade o valor
essencial?

Abdias e Jeremias
Diferente de Abdias, Jeremias se encontrava mais próximo do cam­
pesinato retribalizado. Já os deuteronomistas, autores e revisores daOHD,
se identificavam mais com o “povo da terra”. Abdias, porém, se asseme­
lhava mais aos autores de Lamentações, vinculados às tradições de Jerusa­
lém e do templo.
Apesar de Ab 1-4 retomar J r 49,14-16, há diferenças fundamentais
entre os dois profetas.
* Diferente de Jeremias, Abdias não considera a ruína de Jerusalém
um castigo de Deus. Compare, por exemplo, Ab 16 com Jr 26,9!
* Enquanto Abdias anuncia um futuro marcado por conquistas a
serem feitas também nas terras de Edom (v. 17.19-20) e a restauração do

28
monte Sião (w. 17.21), Jeremias aposta na conversão. Não, porém, na
restauração de Sião. Pelo contrário, anuncia seu fim.

A esperança de Abdias
A teologia presente na obra de Abdias revela um Deus solidário
com seu povo. Sua presença é libertadora. Diferente de Edom que mu­
dou de posição ao debandar para o lado dos babilônios, YHWH é fiel e
não muda de lado.
Embora Abdias anuncie o reinado, não é à dinastia de Davi que
se refere. Seu projeto retoma o Reinado de Deus. Este reino será liber­
tador. O poder será exercido por YHWH a partir do monte Sião.
Releia os w . 17.21!

A obra de Abdias
A obra de Abdias é o menor escrito do Primeiro Testamento. Con­
tém apenas 21 versículos. Leia agora todo livro do profeta, conforme a
seguinte proposta de divisão:
* Título: 1
* Sentença contra Edom: 2-10
* Os motivos do ressentimento: 11-14
* O dia de YHWH
—Para as nações: 15-16
—Para Edom e libertação de Judá: 17-21.

Abdias: profeta da solidariedade


Uma das mensagens importantes de Abdias é que ele considera a
solidariedade entre os fracos como um dos pilares das relações entre os
povos. Abdias se posiciona contra a desunião dos pequenos. E mais. Con­
dena a submissão de povos fracos aps impérios, colaborando com os
senhores do mundo no massacre de outras nações frágeis. Você conhece
algum caso parecido nos dias de hoje? Como você vê a importância da
solidariedade na sua comunidade e entre os povos diante do poder dos
impérios?

29
4 Releitura da História: OHD

“Y H W H vos d isp ersa rá en tre os p o v o s


e de vós resta rá um p eq u en o núm ero
no m eio das n ações... ”
(Dt 4,27)

Na época do rei Josias, o projeto dos deuteronomistas se impôs


com o apoio da corte de Jerusalém. Apoiavam o monopólio de Jerusa­
lém sob o comando dos reis davídicos. Entre a reforma de Josias (622
a.C.) e a sua morte trágica (609 a.C.), fizeram a grande redação da OHD
(Dt, Js, Jz, l-2Sm , l-2Rs), como vimos no volume anterior, nas páginas
1 4 1 e 142.
A destruição do templo foi um duro golpe para a fé dos deutero-
nomistas. São assim chamados porque sua linguagem é semelhante e está
em continuidade ao Livro do Deuteronômio. Os deuteronomistas devem
ser buscados entre os grupos levíticos e proféticos em meio ao “povo da
terra”, grupo que você já estudou nas páginas 73 e 74 do volume anterior.
A ruína abalou a fé dos deuteronomistas, especialmente porque acredita­
vam na eternidade de Jerusalém, do templo e da dinastia de Davi. Viram-
se, então, obrigados a revisar sua obra. Ê o que fizeram depois de 561
a.C., ano em que o rei Joaquin foi solto da prisão na Babilônia, onde se
encontrava como refém desde 597 a.C. (2Rs 25,27-30). Fizeram, então,
mais uma edição da OHD. Foi a última grande releitura dessa obra, não
descartando acréscimos posteriores.

Há esperança na última releitura da OHD?


Entre os pesquisadores, por um lado, há quem pense que os deute­
ronomistas ainda tinham esperança na volta ao reinado. Seria por isso que
teriam concluído sua obra, afirmando a libertação do rei Joaquin por
Nabucodonosor. Seria a esperança num rei-messias que libertaria nova­
mente o povo, tal como fizera Davi. Nessa mesma perspectiva se encontra­
ria a fórmula típica do Livro dos Juizes: “pecado-castigo-conversão-liberta-
ção”. Para conferir esse esquema, leiajz 3,7-11 e compare com lRs 8,46-51!

30
Ao se colocar diante dessa formulação durante o exílio, poder-se-ia
ler o reinado como a época que corresponde ao pecado e o exílio ao castigo.
A conversão e a libertação ainda estariam por acontecer. Essa interpreta­
ção da OHD seria, portanto, um convite aos exilados a reconhecerem sua
infidelidade e se converter novamente ao Deus da vida e da liberdade, da
justiça e da partilha, a fim de terem esperança numa nova libertação.

Uma releitura sem esperança


Por outro lado, é mais provável que a reelaboração exílica da OHD
seja uma análise mais “pé no chão”, mais realista do fim trágico que teve o
Estado de Judá, bem como da dura situação em que vivia o povo, sem
apontar para grandes reviravoltas. Fizeram acréscimos que mudaram a
perspectiva ufanista da edição anterior feita na época de Josias.
Entre as modificações que introduziram na OHD se destaca a lei
de YHWH, assim como a temos no Dt —um só Deus, um só lugar de
culto e um só povo —como a única base para a vida de Israel. Com
esses retoques, os deuteronom istas queriam deixar claro que, na sua
avaliação, a causa fundamental da queda foi a desobediência à lei de
Deus e o seguimento de outras divindades. Confira um dos seguintes
textos: Dt 3 0 ,ll- 2 0 ;J s 1,7-8; IRs 2,1-4; 2Rs 17,13-17!
Os deuteronomistas reelaboraram outras passagens com uma clara
perspectiva exílica. Veja, por exemplo, 2Rs 21,10-15! Há ainda claras refe­
rências à queda de Jerusalém e ao exílio. Leia alguns das citações que se­
guem: Dt 4,27-31; 28,36-37.63-68; 29,27; 30,l-10;Js 23,11-13.15-16; ISm
12,25; IRs 2,4; 6,11-13; 8,25b.46-53; 9,4-9; 2Rs 17,19; 20,17-18! Parecem
retoques secundários. Porém, há neles uma mudança importante de enfo­
que. Neles não há esperança para a dinastia davídica e para a capital com
seu templo.
Salienta também que tanto o Reino de Israel como o de Judá eram
estados rebeldes. A monarquia mesma foi interpretada como uma rebel­
dia contra YHWH (1 Sm 8,7; 12,19).
Durante o exílio, foi ainda acrescentada a parte final da OHD (2Rs
23,29-37; 24; 25). Nela são narrados o fim trágico de Josias e os melancó­
licos reinados dos filhos de Josias até a queda de Jerusalém e a libertação
de Joaquin. Em nossas Bíblias hoje, temos essa última edição dos Livros

31
do Dt, Js, Jz, l-2Sm e l-2Rs. É possível que ainda tenha havido um ou
outro acréscimo posterior. Mas terão sido insignificantes.
A primeira edição feita na época de Josias teve forte marca propa-
gandística em favor da reforma político-religiosa, com a intenção de res­
taurar o antigo reino davídico. Era um momento de otimismo e euforia
nacional com ares imperialistas. Diferente foi com a edição final durante o
exílio. Essa edição da OHD teve um tom pessimista, limitando-se a justi­
ficar a tragédia de 586 a.C., quando todas as esperanças haviam desa­
parecido. Não havia mais condições de voltar aos tempos gloriosos
de Davi e Salomão. Restava, então, justificar a catástrofe como castigo
de Deus por causa da infidelidade e tirar as últim as lições diante de
tudo o que acontecera.

5 Releitura da profecia

Enfim, a autoridade da profecia foi reconhecida


A situação de desesperança no exílio motivou também uma releitu-
ra de textos proféticos que já existiam naquela ocasião, como Amós, Io
Isaías, Miqueias e Oseias. Por que isso?
Muitos daqueles que antes do exílio não davam importância aos
livros desses profetas, a partir da tragédia, passaram a dar ouvidos ao que
eles haviam dito há muito tempo. A tragédia do fim do Reino de Judá
conferiu autoridade à profecia. E que ela já tinha alertado as autoridades
políticas e religiosas da necessidade de mudanças, de promoção da vida
dos pobres, de implantar a justiça e de resgatar a fé no Deus do Êxodo.
Mas as elites de Judá não lhe haviam dado ouvidos. Pelo contrário. Calu­
niaram, perseguiram e até mataram profetas.

Não é assim ainda hoje? Lideranças de muitas igrejas e de movi­


mentos sociais ousam questionar, por exemplo, a imposição de um
pensamento único e de uma única forma de globalização baseada no
livre mercado. Citemos um caso.
Há alguns anos, já se fazia críticas à implementação desse modelo
na Argentina e em outros países, inclusive no Brasil. E como eram cha­

32
mados aqueles que ousassem questionar a total submissão ao mercado
global? Foram ridicularizados pelos “teólogos” dos senhores do mun­
do como “retrógrados”, “jurássicos”, “contrários ao progresso”,
“agentes do atraso”, etc. Você lembra disso?
Porém, depois da ruína da Argentina no final de 2001, esses mes­
mos acusadores têm que reconhecer: “Eles tinham razão! Por que
não os escutamos antes?” Por isso, neste momento histórico, nossas
críticas e propostas ganharam mais autoridade. Há mais condições para
se criar uma nova cultura. Uma cultura de globalização da solidarieda­
de, da paz, da democracia, do acesso de todas as pessoas aos bens
básicos à vida. Um novo Pentecostes está sendo gestado em nível de
mundo. E nós somos agentes ativos desse processo, fazendo história,
fazendo o projeto de Deus acontecer na trajetória humana.

Já vimos acima como o Livro de Jeremias sofreu intensa reelabora­


ção e acréscimos nessa época. De forma similar, os textos dos antigos
profetas também sofreram alguns adendos e releituras. E provável que,
antes do exílio, seus escritos circulassem somente entre os movimentos de
resistência na periferia das cidades e no campesinato. Quando chegavam
às autoridades, até eram queimados (Jr 36). No exílio, isso muda, passan­
do a ser livros de toda a comunidade. Foram lidos e refletidos nas celebra­
ções, onde certamente deram uma grande contribuição no processo de
conversão e de instrução.

Por que essas releituras?


Os motivos da reelaboração dos escritos proféticos antigos na ter­
ra de Judá foram vários. Citemos alguns.
Num novo contexto, seus textos adquiriram um novo sentido, uma
nova função. Da leitura restrita aos movimentos proféticos, passaram para
o uso comunitário. Como passaram a ser lidos em ambiente litúrgico, foram
acrescentadas orações. Veja, por exemplo, Is 12; Am 4,13; 5,8-9; 9,5-6!
Diante da dureza da opressão dos babilônios, passou-se a acres­
centar textos de ameaça aos impérios, em especial à Babilônia. E o caso de
Am 1,11-12 e Jr 50-51.

33
As ameaças dos profetas contra o Estado, os monarcas, a capital e o
templo haviam se realizado. Por um lado, isso lhes deu credibilidade. Por ou­
tro, como o povo estava desolado, foi necessário animá-lo novamente. Por
isso, durante o exílio, foram acrescentadas promessas de restauração, passa­
gens que tinham em vista a esperança, a utopia. Veja, por exemplo, Is 35.

Exemplos de releitura exílica da profecia


Nem sempre é fácil identificar os acréscimos posteriores nos escri­
tos dos antigos profetas. Não há consenso entre os pesquisadores nesse
ponto. Porém, há reelaborações em que não é difícil perceber a presença
das tradições de Sião. Foram acrescentadas por sobreviventes da catástro­
fe nacional e que ficaram entre os remanescentes em Judá durante o exílio
e até depois do exílio. Estavam profundamente vinculados à teologia do
templo de Jerusalém.
Amós
* Cabeçalho com a teologia de Sião: 1,2
* Críticas aos fenícios, edomitas e amonitas: 1,9-12
* Crítica ajudá: 2,4-5
+Crítica aos que desprezaram o Deus do Êxodo e a profecia: 2,10-12
* Fragmentos de hinos: 4,13; 5,8-9; 9,5-6
* Referência a divindades babilônicas: 5,25-26
* Promessas de restauração: 9,11-15.
Oseias. Ao estudarmos a obra de Oseias, já vimos que houve
acréscimos na época do:
* Rei Josias: 1,7; 2,1-3 (Almeida = 1,9-2,1); 4,15; 5,5b; 6,4.11a
* Exílio: 3,5; 11,10-11; 14,10 (Almeida = 14,9).
Miqueias
* Cabeçalho com a teologia de Sião: 1,2
* Promessas de restauração: 2,12-13; 7,8-20.

34
A vida de quem foi deportado para a Babilônia
“Ju n to aos rio s da 'Babilônia,
sen ta m o-n os a ch o ra r, lem b ra dos de S iã o.” (Sl 137,1)

Antes de mais nada, leia todo o Sl 137, pois ele retrata a situação de
opressão e desolação dos deportados.
Além do que já foi dito acima sobre a situação dos expatriados,
você j á leu o item “O exílio na Babilônia” nas páginas 81 a 84 do primeiro
volume desta série.

Caraterísticas dos cativos na Babilônia


* Eram a elite intelectual, militar, política e religiosa, bem como
artesãos especializados, que antes viviam em Jerusalém.
* Somando os três grupos, totalizavam menos de 15 mil pessoas.
* O rei e sua gente permaneceram como reféns junto à corte da
Babilônia.
* Encontravam-se assentados junto ao rio Cobar e Tel Abib.
* Trabalhavam no campo, na produção agrícola, onde passaram de
classe dominante, intelectual e perseguidora de profetas, que antes eram
cm Jerusalém , a oprim idos, trabalhadores braçais e perseguidos na
Babilônia.
+Certamente deviam entregar parte da produção aos babilônios.
* Mais tarde, alguns chegaram a se tornar inclusive proprietários de
terra, comerciantes, banqueiros e funcionários públicos.
* Viviam em grupos, com certa liberdade para cultivar sua língua,
sua fé em YHWH, seus costumes, sua religião, enfim, sua identidade, reu­
nindo-se em comunidades. Daí a origem das sinagogas. Podiam comuni-
car-se com os que haviam ficado naç, terras de Judá.
* Embora pudessem circular livremente nos assentamentos, não
podiam movimentar-se para fora dos seus núcleos. Era uma liberdade
vigiada.
* Novos ritos que não dependiam do templo, como a circuncisão e
o sábado, tornaram-se elementos de identificação.

35
* A celebração da Palavra substituiu o sacrifício que antes era central
no culto do templo.
* Apesar do contexto de desesperança, pois haviam perdido suas
principais referências (trono, cidade santa, terra, templo, arca, altar de sa­
crifícios, liberdade política e religiosa), cultivavam a esperança do retorno.
* Humilhados, passaram por um processo de conversão. Muitos
conceitos teológicos mudaram. A crise exigiu uma nova compreensão da
vida e de Deus.

As primeiras décadas no cativeiro


No item anterior, já vimos como era a vida dos deportados. Em­
bora não vivessem como escravos, encontravam-se longe da sua terra.
Era grande a saudade da capital, do templo e dos privilégios de classe
dominante. O desejo de retorno era o sonho mais acalentado.
Aguardavam ansiosamente a libertação do rei Joaquin, que estava
preso junto à corte de Nabucodonosor desde 597 a.C., quando foi expa­
triado junto com o primeiro grupo de reféns.
Nesse contexto de expectativa de retorno e de saudade das antigas
tradições, especialmente do templo, é que deve ser lida a obra do profeta
Ezequiel, principalmente os capítulos 33 a 48.
De 562 a 560 a.C., Avil-Marduc foi rei na Babilônia. Na Bíblia, ele
e chamado de Evil-Merodac. Em 561 a.C., Evil-Merodac anistiou o rei
Joaquin, libertando-o da prisão. Ficou, portanto, uns 35 anos preso. Leia
2Rs 24,15 e 25,27ss! Naquele momento, essa libertação renovou a espe­
rança de retorno dos cativos. Mas nada, além disso, aconteceu.

A decadência da Babilônia
Em 556 a.C., Nabônides assumiu como rei da Babilônia. Em seu
reinado, começou a decadência do império. Entre as medidas impopula­
res que tomou está a substituição do Deus principal dos babilônios. No
lugar do Deus Marduc, representado pelo sol, colocou a Deusa Sin, re­
presentada pela Lua, como maior divindade, centralizando seu culto na
capital. A população babilônia ficou revoltada com essa atitude do rei.
Naquela sociedade em que se cultuavam várias divindades, formu­
lam-se pela primeira vez em Israel reflexões claras sobre o monoteísmo e
36
a proibição de imagens como representação de Deus. Isso significa que
muitos deportados se viram tentados a aderir a divindades mesopotâmi-
cas. Daí a insistência na unicidade de YHWH. Leia
atentamente Is 43,8-13! Também Gn 1,1-2,4a "Eu e só eu
sou YHWH
polemiza com as divindades astrais cultuadas no
e fora de mim
império Babilônico.
não há libertador."
Durante seus últimos 10 anos de reinado,
(Is 43,1 1)
Nabômdes foi morar numa cidade da Arábia,
deixando seu filho Baltazar governando a Babilônia.
Nessa época, um novo poder surge no horizonte. O rei Ciro vem
subindo do sudeste da Babilônia. Ciro reinou sobre a Pérsia de 555 a 529
a.C. Em 555 a.C., libertou a Pérsia da dominação dos medos ao norte. A
partir de 549 a.C., passou a dominar os medos, e a Lídia a partir de 547
a.C. Anos mais tarde, Ciro marchou contra a Babilônia.
E nesse contexto do avanço dos persas que deve ser lida a obra do
2° Isaías (40-55). Nela podemos ler que os deportados viam em Ciro uma
esperança de libertação. Chegam a aclamá-lo de “pastor”, “ungido/mes­
sias” e “amado” de YHWH (44,28; 45,1; 48,14). Não deixe de conferir!
Leia ainda Is 41,1-7!
Em 539 a.C., Ciro entrou triunfalmente na capital do império, sen­
do aclamado pela própria população babilônia. Dessa forma, pôs fim a
quase um século de domínio da Babilônia no Oriente Médio. Ao conquis­
tar a Babilônia, Ciro devolveu aos povos conquistados os ídolos que Na-
bucodonosor havia levado para a capital do seu império. Leia Esd 5,14!
Também restabeleceu o culto a Marduc.
Em 538 a.C., Ciro permitiu o retorno aos judeus deportados, rea­
lizando seu sonho de regresso ajerusalém (Esd 1,1-11). Ao longo das
décadas seguintes, boa parte voltou. Muita gente, porém, preferiu não
voltar, uma vez que já haviam lançado raízes na Babilônia, onde forma­
ram um importante centro do Judaísmo nos séculos seguintes. A época
do exílio, portanto, durou até 538 a.C. No mesmo ano, o primeiro grupo
que retornou à sua pátria chegou às ruínas de Jerusalém e logo o altar do
templo foi reconstruído (Esd 3,2-3). Terminavam os “50” anos de desterro.

37
Literatura bíblica na Babilônia
“ E difica, YHW H, a Jeru sa lém ,
con grega os d eportad os de Israel.
E le con sola os corações esm agados
e cura as su a s fe r id a s .” (Sl 147,2-3)

Podem ser atribuídos aos deportados para a Babilônia diversos


textos bíblicos. Os Livros de E ^equielt do 2° Isaías (caps. 40-55) são facil­
mente identificáveis como tendo sua origem entre os assentados junto aos
rios da Mesopotâmia. São duas propostas de restauração diferentes para
aqueles desterrados.
Mas há também diversos escritos que podem ser encontrados em
blocos ou dispersos nos Livros do Pentateuco. São as releituras exílicas do
Pentateuco. E o que passaremos a ver a seguir.

1 Ezequiel (593-571 a.C.)


“A gló ria de YH W H estava ali,
com o a g ló r ia que eu vira
ju n to ao rio Co ba r.” (Ez 3,23)

Ezequiel: de sacerdote do templo a profeta entre deportados


Ezequiel (Deus há defortalecer) estava entre os prisioneiros de guerra
de 597 a.C. Era sacerdote (1,3) da linhagem de Sadoc e, quando ainda
estava em Jerusalém, atuava no templo. Por isso foi levado junto com o
primeiro grupo de reféns para a Babilônia, pois pertencia à elite de Jerusa­
lém. Era casado e ficou viúvo pouco antes da queda de Jerusalém (24,15ss).
Como sacerdote pertencente à classe dirigente de Jerusalém, Eze­
quiel teve que passar por uma profunda transformação. A mudança de
lugar social, isto é, a passagem da condição de grupo dominante no Reino
de Judá para refém de guerra expatriado para longe dos seus privilégios,
mexeu profundamente na sua condição social e religiosa, bem como na
sua compreensão da vida e do próprio Deus. Ezequiel, como todos os

38
seus colegas deportados, terá passado por uma profunda crise de fé, por
um processo de conversão, uma vez que situavam a ação de YHWH em
Sião.
Ezequiel atuou em meio aos cativos na Babilônia, onde foi profeta
da primeira geração de deportados. Não foi somente o primeiro profeta
entre os expatriados, mas foi também o primeiro profeta fo ra da terra da
promessa. Essa é uma novidade que merece nossa atenção, porque um sa­
cerdote, apegado à morada de Deus no templo, conseguiu dar um passo
impressionante. Percebeu apresença de YHWH em meio aos reféns na Babilônia,
espaço de poder das divindades mesopotâmicas. Ezequiel descobriu que
YHWH era solidário com prisioneiros de guerra no centro do império
opressor. Assim como descreve simbolicamente a saída de YHWH do
templo e de Jerusalém (10-11), transferindo-se para aCaldeia, região sul
da Babilônia, Ezequiel igualmente relata o retorno de Deus ao templo que
seria reconstruído (43,1-12).
Ezequiel não fez sozinho essas descobertas. Ele coordenava um
grupo de lideranças que buscavam formas de refletir com os deportados
sobre sua responsabilidade naquele contexto e orientá-los a levantarem a
cabeça e olhar em frente na busca de um novo projeto.
Por um lado, essa experiência teológica de Ezequiel foi fundamen­
tal para a vida dos deportados. Por outro, analisando na perspectiva dos
remanescentes, pode-se dizer que o grupo representado por Ezequiel des­
prezou os que ficaram em Judá, pois faz questão de dizer que Deus os
deixou e foi junto com os deportados, que se consideravam o verdadeiro
Israel. Na teologia das comunidades de Ezequiel, permanece a ideia da
presença de YHWH presa a um único lugar. Ainda não é uma compreen­
são da presença universal de Deus. Nesse sentido, a conversão deixava
muito a desejar. Foi como que “puxar a brasa para seu assado”. Essa
análise se confirma, pois, uma vez de volta a Jerusalém no pós-exílio,
YHWH estará novamente no templo e só no templo. E pior. Muito mais
separado e hierarquizado do que antes, como veremos adiante.

A profecia de Ezequiel em dois momentos


Uma vez convertido, primeiro Ezequiel refletiu com os desterra­
dos sobre a iminente destruição de Judá, apelando para a sua conversão.

39
Seus principais destinatários, portanto, foram os que se encontravam junto
com ele na Babilônia. Com eles refletiu, por um lado, sobre sua responsa­
bilidade bem como das autoridades de Jerusalém diante do exílio. Por
outro, consolou seus companheiros de infortúnio, anunciando-lhes uma
futura libertação.
O primeiro período da profecia de Ezequiel pode ser situado entre
sua vocação em 593 a.C. e a ruína de Jerusalém em 586 a.C. Correspon­
dem a esse período os capítulos 1 a 24. Depois de narrar sua vocação nos
caps. 1-3, Ezequiel apresenta o grande julgamento de YHWH sobre o
Estado de Judá, sobre Jerusalém e o templo, bem como sobre as autori­
dades ainda instaladas sobre o monte Sião. O tema dominante desses ca­
pítulos é ameaça de castigo.
O segundo momento na profecia de Ezequiel situa-se entre a queda
da capital e 571 a.C., última data citada em seu livro (Ez 29,17).
A tragédia de 586 a.C. marca uma nova etapa na história da profe­
cia. A partir de agora o movimento profético intensifica o anúncio de
esperança e de consolo. Já pudemos perceber isso acima, quando fizemos
referência às releituras na profecia durante o exílio.
Por um lado, Ezequiel proferiu oráculos contra as nações. YHWH
julga Amon, Moab, Edom, a Filisteia, a Fenícia e o Egito (25-32; 35). E
interessante notar que Ezequiel não faz críticas à Babilônia. E provável que
isso se deve ao fato de considerar os babilônios como instrumento de
Deus para castigar Israel. Nisso concorda com Jeremias (Jr 25,9; 27,6).
Confira em sua Bíblia as causas para esse julgamento das nações:
* porque se alegraram com a ruína de Judá (25,3.8; 26,2),
* porque se vingaram de Judá (25,12.15; 35,5) e
* porque o Egito não foi capaz de ajudar Judá quando precisava de
seu apoio para se defender dos babilônios (29,6-7).
Por outro lado, em meio à dor, o profeta não perdeu a esperança e
ajudou suas comunidades a pensar num projeto de um novo futuro. O
material literário que se refere ao projeto de restauração para o povo e de
reconstrução do templo e de Jerusalém se encontra nos capítulos 33 a 48.

40
Conteúdos centrais
Nos próximos itens, passaremos a analisar os conteúdos centrais da
profecia de Ezequiel. O primeiro é a identificação da presença de YHWH
entre os deportados em terra estrangeira. Um segundo assunto importante são
as ameaças de destruição para Judá, Jerusalém e o templo. E um terceiro tema
fundamental para Ezequiel é seu projeto de restauração para Israel e Judá.

A presença de YHWH entre os deportados


Sabemos que, depois da formação de Israel, especialmente a partir
da monarquia e mais precisamente a partir da centralização do culto no
templo de Jerusalém, para a fé de Israel, a ação de YHWH se restringia
aos limites da terra da promessa. Cultuava-se a
YHWH como Deus, mas costumava-se cele­ "C om o haveríamos
brar suas ações libertadoras só em relação a Is­ de entoar um canto
rael. Os mais piedosos chegavam até a restringir a YHWH em terra
apresença de Deus ao templo de Jerusalém, que estranha?"
era considerado como sua morada Enquanto isso, (Sl 137,4)
se considerava as terras estrangeiras como lugar
de divindades estranhas. Cultuar a YHWH em terra estrangeira tornou-se algo
praticamente impossível. Assim, pelo menos, o mostra o Salmo 137.
E por essa razão que convém dar importância à novidade de Eze­
quiel. Ele percebeu a presença de YHWH entre os deportados, em meio à
gente subjugada por um império opressor. Diferente do 1° Isaías, que
fora vocacionado no templo de Jerusalém (Is 6), Ezequiel recebeu sua
missão no vale do rio Cobar, afluente do rio Eufrates. Leia Ez 1-3 e preste
atenção especial a 3,22-24!
Essa experiência de Ezequiel foi de fundamental importância para
os desterrados para longe de sua pátria. Representou para eles consolo e,
ao mesmo tempo, força para renova» seu ânimo, sua esperança, pois YHWH
continuava solidário com eles.

Ameaças de destruição para Judá, Sião e os remanescentes


Se, por um lado, o agir libertador de YHWH estava em meio aos
expatriados, por outro, Ezequiel entendeu que para o Estado de Judá,

41
Jerusalém e o templo, a ação de Deus era somente ameaça de destruição.
Os caps. 4-5 são dedicados às ameaças contra Jerusalém. Os caps. 8-11
referem-se ao desmantelamento do templo. Quanto ao fim do Estado,
você pode ler nos caps. 17 ou 20.
Ao fazer uma nova experiência de Deus, Ezequiel passou a integrar
o movimento profético que, no Reino de Judá, já existia desde o profeta
Isaías. Rompeu com seus antigos amigos de Jerusalém, sendo-lhes muito
crítico. Veja, por exemplo, em Ez 13, o que ele diz dos seus antigos colegas
de trabalho no templo!
"O país está cheio Idolatria e injustiça são dois temas cen­
de crimes, trais na crítica de Ezequiel. Para exemplificar
a cidade está cheia os motivos com que justificou suas ameaças e
de violência." denúncias na última década do reinado, pro­
(Ez 7,23) pomos que você leia agora Ez 22, procuran­
do identificar:
* A violência cometida pelas autoridades.
* As vítimas que sofrem a opressão.
* As autoridades que oprimem.
* A posição de Deus e do profeta diante dos crimes de Jerusalém.
* A solução proposta diante da idolatria e da injustiça.
No volume anterior, já havíamos falado de que Ezequiel não con­
cordava com Jeremias, quando este colaborou com o governador Godo-
lias na partilha da terra, antes pertencente à elite deportada, para os cam­
poneses pobres (2Rs 25,12; Jr 39,10). Em Ez 33,23-29, você pode ler
como Ezequiel faz ameaças duras aos remanescentes em Judá.
Ao ameaçar também o campesinato com o total aniquilamento,
Ezequiel não faz diferença entre as classes dirigentes de Jerusalém e a maio­
ria do povo sofrido no campo. Diferente foi a postura de Jeremias em
relação aos desterrados. Foi mais compreensivo com eles. Embora com­
preendesse que YHWH continuava fazendo especialmente história com
os remanescentes nas terras de Judá, não chegou a excluir os expatriados
da história do seu povo. Apenas alertou-os para se prepararem para um
longo exílio (Jr 29,4-7).
Essa postura exclusivista e excludente do grupo de Ezequiel, isto é,
a pretensão de ser o único e verdadeiro Israel, se impôs no pós-exílio.

42
Entre os repatriados depois de 539 a.C., foi justamente esse grupo que
assumiu a liderança na restauração da vida na Judeia. Mais tarde, Neemias
e Esdras assumem com radicalidade esse projeto exclusivista de Ezequiel,
trazendo conseqüências desastrosas para a vida do povo, especialmente os
pobres e as mulheres, como ainda veremos.
Convém anotar aqui que Ezequiel, especialmente por sua origem
sacerdotal, não conseguiu superar a cultura patriarcal de sua época, marca­
da por tabus e pela discriminação da mulher. Ezequiel tem uma postura
de desprezo e de inferiorização em relação às mulheres. Exemplos disso
são as repetidas parábolas de mulheres “infiéis” e prostitutas (16; 23), a
afirmação de que as mulheres menstruadas são impuras (36,17 —Compa­
re com Lv 15,19-27!), bem como a polêmica contra as profetisas (13,17ss).
Considera também as mulheres como propriedade de seus maridos
(18,6.11.15).

Projeto de restauração para Israel e Judá


Estamos no segundo momento da profecia de Ezequiel, isto é,
depois da destruição de Jerusalém. A partir do capítulo 33, Ezequiel passa
a se preocupar com a restauração. Seus olhos estão dirigidos para um
novo futuro.
Da mesma forma como Jeremias, anuncia a renovação da aliança.
Compare Jr 31,31-34 com Ez 36,24-28!
O cap. 37 é uma referência exemplar como ponto de partida para
refletir sobre a esperança e a utopia de Ezequiel. A experiência dos depor­
tados era comparável à de um vale cheio de ossos secos. Era gente abatida
e desolada. A visão dos ossos secos mostra que há futuro para os cativos.
Esse futuro é criação de YHWH, fruto do seu amor. Em meio à situação
de morte, YHWLI faz emergir uma situação de vida. Não deixe de ler
37,1-14!
Entre os conteúdos do projeto, destacamos três aspectos que consi­
deramos mais importantes. A terra de Israel, o novo êxodo fà n o v a organização.
A seguir, vamos enfocar essas principais ênfases do projeto que
Ezequiel propõe para a restauração de Israel.

43
Principais ênfases do projeto de restauração
O conteúdo da proposta de reconstrução tem como principal ên­
fase a terra de Israel. Ezequiel retoma um dos conteúdos prediletos de toda
a história de Israel. Com saudades de sua pátria e de suas terras, os depor­
tados sonham com a volta e a retomada da terra. Para exemplificar leia
34,13; 36,28; 37,14!
Embora Ezequiel proponha a partilha da terra (47,13-48,29) para
camponeses livres e retribalizados (45,7-8; 46,18), a colheita estará presa
através da tributação tanto ao rei (45,13-16) como ao templo (44,30-31).
Um segundo acento é o novo êxodo. Como o antigo Exodo, o novo
também terá a terra de Israel como destino. Para lá serão reconduzidos os
expatriados. Não serão somente os desterrados na Babilônia, mas todos
os judeus dispersos que haviam fugido ou sido levados como reféns de
guerra. Confira 20,34.42; 36,24; 37,12; 46,18!
Os repatriados deverão ser puros, pois voltarão a uma terra pura e
deverão manter puro o templo. E ponto central no projeto do profeta e
sacerdote Ezequiel cultivar a santidade das pessoas, da terra e do templo.
Não deixe de conferir Ez 36,25.33; 37,23! Aliás, Ezequiel considera que
também as impurezas que contaminaram a terra de Judá foram a causa do
desastre de Jerusalém. LeiaE z 36,16-18! Voltaremos logo adiante a esse
assunto.
A terceira ênfase do projeto de restauração dos deportados é a
forma de organização na terra santa. Dois aspectos se destacam na proposta
de reorganização da vida dos repatriados: por um lado, um novo rei de um
estado unificado e autônomo e, por outro, um nom templo sob o controle dos sacerdotes.

Um novo rei sobre um estado unificado e autônomo


Embora Ezequiel valorize até certo ponto as tribos, a restauração
do sistema tribal não faz parte do seu projeto social.
Sua ênfase, no entanto, está centrada no novo Davi. Ezequiel pro­
move o messianismo davídico. Propõe, portanto, uma volta à dinastia
davídica, mas não nos mesmos moldes de antes da ruína. Aos monarcas
de então volta a fazer críticas como já fizera nos caps. 4-24. Confira em Ez
34,1-22; 45,8!

44
Sintetizemos as principais características do novo estado sob o co­
mando de um rei. Não deixe de ler as citações abaixo!
* O novo rei será da dinastia de Davi: 34,23-24; 37,24.
* Ele será justo e promotor da paz e da liberdade: 34,16.25-31.
* Reumficará novamente o Reino do Sul e o do Norte: 37,15-28.
* Esse novo reino será o “umbigo (centro) da terra”: 38,12.
* Renovará a aliança: 37,23-25.
* Reconstruirá o templo e promoverá o culto: 37,26-28.
* Estará subordinado ao templo: 43,7-9.
* Terá direito a cobrar tributos, mas terá também deveres: 45,9-46,18.
* Embora valorize o campo (36,8.24.29-30), dará ênfase à cidade
(36,33-38; 48,30-35), onde será reconstruído o templo.

Um novo templo sob o controle de sacerdotes


Ezequiel já fez referência à reconstrução do templo em 37,26-28,
texto que você já leu. Porém, é nos caps. 40 a 48 que ele nos oferece uma
espécie de maquete do novo templo. Na verdade, a
"A glória de
reconstrução do templo constitui o centro do projeto
YHWH entrou
do grupo de deportados representado por Ezequiel.
no tem plo."
É certo que esse grupo entendeu que YHWH havia se
(Ex43,4)
mudado para junto dos desterrados durante o exílio
(11,22-25). Mas isso seria por pouco tempo (11,16), uma vez que o local
definitivo para o santuário de YHWH é Sião, o monte santo (20,40; 37,26).
Por isso, descreve seu retorno ajerusalém (43).
Causa-nos certa estranheza que um novo templo seja o ponto cen­
tral do projeto de restauração. Na história do Reino Unido e do Reino de
Judá, o santuário sempre serviu como legitimação teológica para os mo­
narcas da dinastia de Davi. Não foi por acaso que os movimentos profé­
ticos de Amós, de Oseias, de Miqueias, de Jeremias e, mesmo de Jesus,
séculos mais tarde, o ameaçassem com a destruição, por um lado, e, por
outro, que Isaías e Sofonias propusessem sua ressignificação, como já vi­
mos. Até mesmo Ezequiel foi duro nas críticas ao templo antes de sua
total ruína, como já vimos no cap. 8.
Leia agora a “planta” do novo templo em Ez 40-48, procurando
perceber, entre outras, as seguintes características do santuário:

45
* E o centro de tudo, o lugar sacrossanto e puro por excelência:
43,12; 44,23.
* É a morada de YHWH no meio de seu povo: 37,26-28; 43,7-9.
* Está acima dos reis davídicos (43,7-9) e sob o controle dos sacer­
dotes descendentes de Sadoc (44,15-16).
* Continua excluindo estrangeiros incircuncisos (44,9) e mulheres.
* Continua reduzindo os sacerdotes da linhagem de Levi a uma
segunda classe tal como já fizera a reforma de Josias. Podiam apenas fazer
os “serviços gerais” nas dependências do santuário, privilegiando os sacer­
dotes sadoquitas. Compare 2Rs 23,8-9 com Ez 44,10-14! Somente os
sacerdotes da linhagem de Sadoc podiam oferecer sacrifícios e dirigir o
culto. E tudo isso em estado de total pureza. Não deixe de ler 44,17-27!
* Institui o sistema do puro e do impuro, do sagrado e do profano:
44,23.
* Limita os direitos do rei: 45,9-46,18.
* Sua missão é ser fonte de vida: 47,1-12.
* E o centro da terra repartida, inclusive para estrangeiros residen­
tes entre os judeus: 47,13-48,7; 48,23-29.
* E também o centro da cidade de Jerusalém (48,8-22), abertapara
todas as tribos (48,30-34) e cujo nome será “YHWH está lá” (48,35).

Um projeto novo ou uma volta às estruturas do passado?


Como você pôde perceber, o projeto do movimento profético de
Ezequiel —projeto de novas criaturas, de um novo Israel, de uma nova
dinastia davídica e de um novo templo —por um lado, tem muitos ele­
mentos de promoção e resgate da identidade, da vida e da liberdade de
um povo profundamente abalado, desintegrado, em crise e desolado.
Ezequiel e também o 2o Isaías, como veremos, solidarizaram-se com os
deportados durante a calamidade do exílio, redescobríndo a presença de
Deus naquela situação. Ajudaram o povo a reler os fatos à luz da fé, con­
firmando sua fé em YHWH libertador, descobrindo a missão desse povo
sofredor de ser luz para os povos. Ajudaram os exilados a reconhecerem
sua parte de responsabilidade na tragédia e a compreenderem as causas
do fracasso da monarquia davídica.

46
Ao falar de sua utopia, de seu projeto de futuro, Ezequiel certa­
mente estava bem intencionado e preocupado com a situação de todos os
grupos deportados. Seu plano, contudo, traz as marcas de um sacerdote
que sempre esteve fortemente vinculado ao templo de Jerusalém e ao
reinado. Senão vejamos.
Por um lado, sua proposta retoma questões que eram pilares anti-
i’,<>s da história, especialmente da monarquia instalada em Jerusalém. Pila­
res que no exílio caíram em ruínas. É, por exemplo, o caso do rei, do
templo, da terra da promessa. Nesse sentido, o projeto de Ezequiel pro­
põe uma volta às velhas instituições, uma reconstrução das mesmas estru­
turas do passado. Olhando o plano de Ezequiel sob esse ângulo, ele faz
parte do projeto dos grupos que antes foram as classes dirigentes em Sião.
Por outro lado, Ezequiel promete aos deportados uma retomada
tia terra. Já vimos que ele fez ameaças de aniquilamento para os remanes­
centes em Judá. Portanto, o novo êxodo que anuncia aos desterrados,
supõe que o campesinato que continuava nas terras deveria dar lugar aos
repatriados. Não estão, pois, incluídos no novo projeto. Ezequiel não so­
lucionou essa problemática. Seu projeto está na perspectiva dos deporta­
dos. Por isso, tem os limites de seu ponto de vista, visto somente sob o
enfoque de quem se encontrava no cativeiro.
Na medida em que passa da teoria para a prática, a proposta de
concretização de sua utopia não vai muito além do que existira em Judá
antes da catástrofe de 586 a.C. Ezequiel propõe a restauração de velhas
estruturas, porém, com espírito novo. Para os círculos de sacerdotes des­
terrados, era possível colocar vinho novo em odres velhos e retalhos de
pano novo em roupa velha. A experiência histórica, porém, mostrou que
isso não é possível. Pelo contrário, mostrou que um projeto novo em
estruturas excludentes acaba sendo engessado e manipulado pelos vícios do
sistema antigo. E Jesus aprendeu essa lição, £jJão deixe de ler Mc 2,21-22!
E hoje, diante da situação de exílio que em vive o povo, qual é a
esperança que nós lhe anunciamos? Nosso projeto visa a ajudá-lo a ser
protagonista de sua própria caminhada? Ou oferecemos uma solução que
não passa de uma maquiagem do velho sistema? Como a religião pode
ajudar no resgate da identidade das pessoas e povos? Nossas comunidades
cumprem sua missão de ser fontes de vida? É preciso mudar algo? O quê?

47
A obra de Ezequiel
É provável que o Livro de Ezequiel, como o temos hoje, não seja
de um autor só. Até é possível que os autores dos caps. 1-32 não sejam os
mesmos de 33-48. Pode ser que 1-32 sejam denúncias de círculos em
continuidade ao movimento profético pré-exílico, uma vez que suas de­
núncias são muito parecidas. Além disso, não é tão simples que um sacer­
dote, que sempre tinha as instituições de Sião como a razão de sua vida,
seja tão duro nas suas críticas aos reis, aos sacerdotes, aos profetas da
corte, ajerusalém e ao próprio templo. Também causa estranheza que, a
partir do cap. 33, se anuncie a restauração de tudo que fora tão duramente
condenado nos capítulos anteriores.
Certamente, os redatores finais faziam parte de círculos de sacer­
dotes deportados que Ezequiel havia liderado. E possível que tenham re-
elaborado os escritos contidos nos caps. 1-32 e integrado no texto final,
quando acrescentaram ainda os caps. 40-48. As repetições confirmam essa
possibilidade (3,17-21 = 33,7-9; 18,25-29 = 33,17-20; 11,6-21 = 36,16-28).
Ao fazerem a edição final, organizaram o livro da forma que segue.
A primeira parte do livro corresponde à época anterior à destrui­
ção de Jerusalém. E a fase da denúncia. Os oráculos de condenação são
dirigidos aos deportados e às autoridades que ainda governavam em Judá.
Vocação (1-3)
- Missão que nasce da experiência de Deus (1)
- Conteúdo da missão (2-3)
YHWH abandona Judá e Jerusalém e julga sua corrupção (4-24)
- O exílio terá fim (4)
- Autodestruição de Jerusalém (5)
- A idolatria gera e nutre a injustiça (6)
- O fim de Judá e de Jerusalém (7)
- A ruína do templo e seu abandono (8-11)
- O exílio é inevitável (12)
- Crítica à profecia que desnorteia o povo (13)
- YHWH não responderá mais (14)
-Jerusalém é uma videira inútil (15)
- A infidelidade de Jerusalém (16)

48
- Egito e Babilônia: as duas águias (17)
- Cada um é responsável por seus atos (18)
- Lamentação sobre os reis de Judá (19)
- O exílio não é definitivo (20)
- A culpa é dos reis, mas as conseqüências são para todos (21)
-Jerusalém: cidade pervertida e criminosa (22)
- Samaria e Jerusalém: duas irmãs infiéis (23)
- Fogo e morte parajerusalém sanguinária (24)
A segu n d a parte do livro corresponde ao período posterior à
queda. E a fase do anúncio da esperança, da animação. Os oráculos são de
libertação dirigidos aos deportados.
YFIWH julga as nações estrangeiras (25-32; 35)
- Amon, Moab, Edom e Filisteia (25; 35)
- Fenícia e o rei de Tiro (26-28)
- Egito e o faraó (29-32)

R estauração de Israel (33-39)


- O profeta anuncia a justiça de YHWH (33)
- Renovação dos líderes de Israel (34)
- A nova aliança (36)
- Os ossos secos: ressurreição de um povo (37)
- Projeto de Deus no final da história (38-39)
Y H W H volta ao novo tem plo e à nova terra (40-48)
- O projeto do novo templo (40-42)
- A volta de YHWH para o novo templo e as medidas do altar (43)
- Normas sobre as funções no culto do templo (44)
- Divisão da terra, as ofertas e as festas (45)
- Mais normas sobre o templo (46)
- O templo como fonte de água viva’ (47)
- A partilha da terra, e Jerusalém como cidade aberta (48).

49
Para você continuar a reflexão
Leia a visão do vale dos ossos secos em Ez 37,1-14! a) Destaque e
comente aparte que reflete a situação desoladorados deportados! b) Como
e por meio de quem os ossos revivem? c) Que luzes traz essa visão para
nossa caminhada?

2 Isaías 40-55 (550-540 a.C.)

“ C on solai, con sola i o m eu p o v o !


—d i ^ o vosso D eu s.” (Is 40,1)

Quando atuou o 2° Isaías?


Antes de iniciar o estudo do 2° Isaías, convidamos você a reler a
introdução feita a todo o Livro de Isaías no item “Isaías 1-66” nas páginas
96 e 97 do volume 4 desta série.
Diferente de Ezequiel, que se dirige para a primeira geração de
deportados, os autores do 2° Isaías falam para a segunda geração. Como
a repatriação não chegava, a esperança no retorno ia diminuindo. Mas
uma nova luz começa a brilhar no horizonte. Estamos num momento em
que a Babilônia está em declínio e a Pérsia está em ascensão. Nesse contex­
to, a esperança de voltar às terras de Judá se renova. Em Is 40-55, ainda
não há referência à conquista dos babilônios por parte do exército de Ciro
em 539 a.C. Por isso, a atuação desse movimento profético terá sido ante­
rior à entrada triunfal do exército persa na capital da Babilônia.
Como o livro faz alusão a Ciro, é provável que o 2o Isaías viu em
suas conquistas um sinal de esperança de libertação da opressão babilônica
para os cativos. Veja as referências a Ciro em Is 41,1-5.25; 43,14; 44,24-
45,4.13; 46,11; 48,12-15!
Como você já leu acima, chegam a aclamá-lo de “pastor”, “ungi­
do” e “amado ”de YHWH (44,28; 45,1; 48,14). Por causa desses indicati­
vos, podemos situar o movimento profético que deu origem a Is 40-55
entre os anos 550 e 540 a.C.

50
I

Quem está por trás do 2o Isaías?


Os autores desses capítulos não faziam parte do grupo de Ezequiel.
I ;,ste tem herança sacerdotal. O 2oIsaías, porém, está em continuidade aos
cantores do templo. Se os autores de Lamentações foram cantores no
antigo templo que haviam ficado nas terras de Judá, depois da queda de
Jerusalém, Is 40-55 tem sua origem entre os cantores do templo que havi­
am sido deportados. A linguagem de Is 40-55 está próxima dos salmos,
da linguagem hínica. Compare, por exemplo, Is 42,10-13 com os Salmos
96 e 98!

Qual seu projeto?


O projeto do 2oIsaías também se diferencia bastante do de Ezequiel.
Enquanto este propõe uma restauração das estruturas do passado a partir
do templo, preocupado com a lei da pureza, aquele tem um projeto mais
popular cujo eixo fundamental é a fé no Deus libertador do Exodo. Pro­
põe um êxodo mais espetacular que o primeiro nas origens de Israel. Leia
a respeito do novo êxodo em, pelo menos, uma das citações que seguem:
41,17-20; 43,1-3.14-21; 48,20-22; 52,11-12; 55,12-13!
Anunciando esse novo êxodo, o 2° Isaías nos deixa claro que seu
objetivo fundamental é animar pessoas desconsoladas (40,27; 49,14). O
tema do conforto chega a ser o título de sua obra. Confira a ênfase na
“consolação” em algumas destas citações: 40,1.28-31; 41,8-16; 43,1-7; 44,1-
2; 49,13; 51,3.12; 52,9!
Além da volta à terra, o 2° Isaías também anuncia a reconstrução e
restauração de Jerusalém (49-55). O monte Sião continua sendo o local de
sua predileção. Contudo, diferente de Ezequiel, o 2" Isaías não dá impor­
tância ao templo como local de sacrifícios.

Os principais temas do 2° Isaías


O 2oIsaías interpretou o exílio como castigo de YHWH (43,27-28;
47,6). Como Habacuc, também achou que o castigo passou da medida
(40,2; 47,6; Hab 1,17). Mas conform e a experiência de Deus do 2°
Isaías, YHWH já perdoou a culpa. Por isso, o prim eiro tema abordado é o
perdão. O perdão de YHWH é o fundamento da esperança. È a supera­

51
ção do passado e a possibilidade de um novo começo. Você jápercebeu
isso ao ler 40,2. Mas veja ainda 43,18.25!
O segundo tema, que é central no 2o Isaías, é o anúncio da boa-nova
do retorno à terra da promessa. O 2oIsaías é o profeta do novo êxodo, como
já vimos acima. Se o primeiro foi a libertação da opressão do faraó, o
segundo liberta das divindades usadas pelos babilônios para legitimar a
dominação sobre os cativos.
O novo êxodo será espetacular e su­
A glória de Deus perior ao primeiro. As comunidades expa­
será completa, triadas terão atenção preferencial, mas o novo
somente quando êxodo não será somente para os deportados
os oprimidos na Babilônia. Será também para outras co­
alcançarem vida munidades dispersas pelo mundo de então.
plena em liberdade. O novo êxodo é conseqüência do perdão de
Deus. E nesse processo histórico de liberta­
ção que se manifesta a glória de YHWH. E mais uma diferença com
Ezequiel, para quem a glória divina estava muito mais ligada ao santuário
de Jerusalém. Confira tudo isso em 40,3.5.11; 48,20-21; 49,12; 52,7.11-12;
55,12-13!
Um terceiro tema importante é a esperança cm Ciro, o “messias” de
YHWH. O inusitado é que o rei persa é o “ungido” de YHWH e não um
descendente de Daii. E mais uma diferença com Ezequiel. Sobre Ciro você já
leu no primeiro item deste capítulo. Jeremias já havia interpretado Na-
bucodonosor como “servo” de YHW H para aplicar o castigo a Judá
(Jr 25,9). Também o 2° Isaías interpreta a ação de Deus na história de
imperadores. O avanço de Ciro criou as condições reais para o regresso à
terra da promessa. Nesse sentido, ele é o “ungido” de YHWH para con­
cretizar o projeto de Deus. Segundo a interpretação dos sinais dos tempos
feita pelo movimento profético durante a última década do exílio, o im­
perador Ciro, por um lado, está a serviço do plano de Deus para trazer
libertação aos cativos. Por outro, Ciro está a serviço do reconhecimento
da universalidade do senhorio de YHWH. I^eia novamente 45,1-6!
A crítica à Babilônia é um quarto tema presente no 2oIsaías. Diferente
de Ezequiel, que não faz críticas aos babilônios, o movimento profético
de Isaías dedica à Babilônia dois capítulos inteiros (46-47). Critica a opres-

52
são dos babilônios, mas especialmente "O maravilhoso da
suas divindades. Sobre as críticas a divin­ espiritualidade do
dades manipuladas a serviço da domi­ 2° Isaías está
nação e sobre a defesa do senhorio de precisamente em
YHWH, além dos dois capítulos citados, que YHWH está
você pode ler ainda em Is 40,12-26; metido na história
41,21-29; 44,6-20. política do mundo
e de Israel."
(José Severino Croatto)

O monoteísmo em Israel. Nos volumes anteriores, já fizemos


mais vezes referências ao culto a outras divindades não só em outros
povos, mas também em Israel. Veja, por exemplo, as páginas 118 a 120
do volume anterior.
Já vimos que os distintos grupos oprimidos e que participaram da
formação de Israel cultuavam também divindades com características
diferentes, de acordo com sua cultura de origem. Os grupos nômades,
dos pais e mães em Israel, por exemplo, cultuavam Deuses e Deusas
particulares vinculados a cada clã. O politeísmo era normal entre os
nômades.
Ao se unirem as diferentes experiências religiosas nas montanhas
de Canaã, o Deus dos pais foi identificado com El, o Deus supremo
cultuado pelos camponeses cananeus. Quando os hebreus do Egito e o
grupo de Madiã se integraram na experiência tribal, El foi identificado
com YHWH, que se tornou o Deus oficial do tribalismo.
O culto das tribos israelitas a YHWH era feito em meio a uma
diversidade de Deuses e Deusas naquele meio cultural (politeísmo). Por
isso, a Bíblia diz que YHWH era um Deus ciumento e que exigia amor
exclusivo (Ex 20,5). Se era ciumento, é p®rque se acreditava que havia
outras divindades. Para que ter ciúmes se YHWH era o único Deus?
Portanto, embora se estimulasse em Israel o culto oficial a YHWH,
ainda não era uma fé em um Deus único (monoteísmo).
É verdade que a profecia se esforçou muito para que Israel fosse
fiel a YHWH e não seguisse outras divindades. Mas isso não exclui a

53
existência de cultos a outros Deuses e Deusas. Apenas criticam a adesão
de Israel a essas divindades, quando era infiel a YHWH e seu projeto de
fraternidade.
Em Israel, a fé num Deus único se firmou somente a partir do
exílio no século 6 a.C., quando também na Grécia e na Pérsia já havia
uma corrente de pensamento monoteísta. Não deixe de le rls 45,6-8.18!
De acordo com o 2° Isaías, não só os israelitas, mas também
outros povos, que antes acreditavam em outras divindades, podiam
aderir a YHWH. Porém, somente na medida em que buscassem a justi­
ça e o direito. Leia Is 42,1-4; 45,20-25; 49,6; 51,1-8; 55,3-5!
A partir do 2° Isaías, portanto, passou-se a fazer teologia numa
perspectiva monoteísta. Isso fica bem claro, por exemplo, no último
escrito do Primeiro Testamento, o Livro da Sabedoria, que só se en­
contra nas traduções católicas (Sb 13-15).

O quinto tema é Sião e Jerusalém. Os desterrados na Babilônia eram


quase todos provenientes de Jerusalém. Certamente, é por essa razão que
o monte Sião e Jerusalém se tornaram o tema principal no novo projeto
dos filhos dos antigos cantores do templo. Você pode perceber essa cen-
tralidade em Is 40,1-11; 44,26; 49,19-20; 51-52; 54.
Jerusalém é apresentada como espécie de tenda para abrigar os
repatriados. Nisso o 2o Isaías é discípulo do Io Isaías, que também era
natural de Jerusalém. Compare 14,32 com 54,2! O 2° Isaías não tem so­
mente Jerusalém como alvo. Menciona também, diversas vezes, as cidades
do interior. Confira, por exemplo, 40,9; 44,26; 54,3! Mas não é qualquer
cidade que ele idealiza restaurar. Como no 1° Isaías, sua utopia urbana
propõe cidades fundadas na justiça. Compare 1,26-27 com 54,14! Leia
também o Sl 15!
Mais um aspecto é interessante observar. Nessa cidade, abrigo dos
pobres e da justiça, o poder não será de um monarca davídico. Diferente
de Ezequiel, o 2° Isaías não faz referência a Davi. Por um lado, Ciro cum­
pre o papel messiânico. Por outro, a aliança que YHWH fizera com Davi
no passado (2Sm 7,12-16) será feita diretamente com o povo. Não é mais
o poder de um rei que é capaz de gerar vida, mas o poder popular. Não
deixe de le rls 55,3!
54
Diferente do sacerdote-profeta Ezequiel, para os cantores-profetas
discípulos de Isaías, a terra e o templo são secundários. Há referências, é
verdade, mas não ocupam papel importante. Veja, por exemplo, 44,28,
49,8; 52,11!
Por fim, o servo sofredor é um sexto tema importante e ocupa lugar
de destaque no 2° Isaías. Em Is 40-55, há quatro cânticos que, ao mesmo
tempo em que fazem parte integrante do livro, se destacam por terem em
comum o tema do servo sofredor. Descrevem a trajetória do servo, do
povo sofrido. Leia agora os cânticos, conforme o esquema abaixo:
* 42,1-4(5-9): sua vocação e missão.
* 49,1-6: redefinição de sua missão.
* 50,4-9(10-11): sua silenciosa resistência.
* 52,13-53,12: seu martírio em favor de seus próprios verdugos.

Q uem é o serio sofredor?ILm muitas das referências ao “servo” fala-se


de Israel/Jacó. Confira, por exemplo, Is 41,8-9; 45,4; 48,20; 49,3! Portan­
to, na versão final dos quatro cânticos, ao referir-se ao servo, o 2° Isaías
está falando do povo de Israel, mais precisamente de uma parcela desse
povo. Não é um povo qualquer. Como você pôde perceber na leitura dos
quatro cânticos, o servo é um povo sofrido e fragilizado. Mas não é so­
mente um povo perseguido. E também defensor de pessoas enfraqueci­
das. E pobre e, ao mesmo tempo, defensor e solidário com os pobres.
No contexto dos deportados, o servo é a comunidade sofrida e humilha­
da por seus verdugos junto aos afluentes do rio Eufrates. E possível que
seja também uma referência ao movimento profético seguidor de Isaías
que atuou em defesa dos deportados e foi perseguido por isso pelos
babilônios.

Q uais são osprincipais temas dos cânticos? Destaquemos sua missão e seu
sofrimento.
A missão do servo/povo sofredor é universal. Ele está destinado a
ser luz para todos os povos.
Como naquele tempo, ainda hoje bebemos da mesma mística da
qual bebeu o 2° Isaías. Ninguém precisa esperar que as mudanças em
favor da cidadania venham dos centros financeiros ou dos senhores do
mundo. A esperança para a humanidade vem da periferia no mundo. Não

55
virá daqueles que privatizaram a riqueza, o poder, os meios de comunica­
ção e o saber. Estes globalizaram a miséria, a fome, a exclusão. O servo
sofredor, os excluídos do mundo, acreditam que é possível globalizar tam­
bém os direitos e meios fundamentais à vida, à dignidade. O sonho do
movimento de Isaías durante o exílio do século 6 a.C. continua alimentan­
do ainda hoje a nossa teimosa resistência e esperança de que é possível,
sim, construir um outro mundo.
Confira em sua Bíblia as principais tarefas do servo/povo sofredor:
* Estabelecer o direito e a justiça entre os povos: 42,1.3-4.6.
* Não deixar morrer a esperança dos pobres e defendê-los: 42,3;
50,4.
* Ser luz para as nações: 42,6; 49,6; 51,4.
* Reconduzir Israel/Jacó a YHWH: 49,5.
* Repatriar os deportados: 49,5-6.
* Retribalizar os israelitas: 49,6.
* Resistir no sofrimento e na perseguição: 42,2; 50,5-7.
* Dar sentido ao sofrim ento que é em favor de um a causa:
52,13-53,12.
O tema do sofrimento em favor de outros e em favor de uma causa
justa é uma novidade na história da teologia de Israel. Por isso, convém
aqui abordá-lo, mesmo que resumidamente. O tema do sofrimento apa­
rece nos quatro cânticos.
* No primeiro e no terceiro, o servo é um defensor de fracos e
cansados (42,2-3; 50,4).
* No segundo, ele mesmo se considera um servo inútil para a mis­
são, pois se “afadigou em vão” (49,4).
* No terceiro e no quarto, ele é perseguido por outros (50,6). Mas
resiste tenazmente (50,7). Insiste em sua justiça (50,8-9). Por fim, o justo é
assassinado, oferecendo seu sofrimento por muitos, inclusive pelos assas­
sinos que reconhecem sua culpa (53,4-5). Por ser justo, sua derrota foi uma
vitória, foi um martírio. Seu sofrimento tem um sentido libertador. Essa
descoberta do valor do sofrimento por causa do projeto de Deus, seria
mais tarde simbolicamente descrita por Jesus da seguinte forma: “Se o
grão de trigo cai na terra e m orre, produz m uito fruto.” (Jo 12,24).

56
E mais. Jesus declara “ felizes os que são persegu id os por causa da
ju stiça, porque deles é o Reino dos C éus” (Mt5,10).
Pode até ser que, na origem dos três primeiros cânticos, se quisesse
fazer referência a Ciro. Porém, como os temos na sua versão final, com­
parando Ciro com o servo sofredor, podemos perceber algumas dife­
renças significativas.

Ciro, o “ungido de YHWH” Servo Sofredor, o “eleito de YHWH”


A missão de Ciro é libertar os A missão do Servo é consolar os
deportados do jugo babilônico. deportados e restaurar Sião.
Ciro exerce sua missão com o 0 Servo é modelo de fragilidade.
poder das armas. Sua arma é a resistência não-violenta
no sofrimento.
Ciro conquista admiração e glória. 0 Servo atrai o desprezo de todos. Mas
sua dor e morte lhe dão a
vitória definitiva.

As comunidades cristãs perceberam muito bem que Jesus sofreu o


mesmo tipo de perseguição e morte. Também ele lutou por uma causa
justa. Por isso, sua perseguição foi injusta e seu assassinato um martírio. E
mais. Não morreu sem sentido. Além de morrer como mártir em defesa
dos valores do Reino, seu sofrimento e sua morte foram em favor da
construção do Reino de Deus para todos os servos sofredores deste
mundo. O servo sofredor do 2° Isaías serviu às primeiras comunidades
de espelho que reflete perfeitamente a vida de Jesus de Nazaré. Leia Mt
8,17; 27,29-31.38; Lc 18,31; 22,37;*\t 2,23!
Em nosso mundo de hoje, quem é o servo sofredor? Que pessoas,
grupos ou movimentos sofrem perseguição e calúnia por defenderem
causas justas? Quem são os responsáveis por tanto sofrimento? Quando o
sofrimento e o martírio têm sentido e alimentam a luta por um mundo
melhor? Como superar o sofrimento e a dor? Como transformar derro­
tas em vitórias? Quais são os sinais de que uma nova consciência está se

57
formando no meio do povo?

A presença das mulheres no movimento profético do 2oIsaías


A teologia do 2° Isaías é uma teologia aberta. Além de ter uma
perspectiva universalista (42,6; 49,6), chegando a interpretar o imperador
persa como o ungido de YHWH (45,1), abre espaço para a fala das mulhe­
res sobre Deus. Falam a partir de sua experiência de mulheres e sobretudo
de mulheres que sofreram o cerco de Jerusalém, a ocupação de tropas
militares estrangeiras, sua vida em terra estranha e tudo o que isso significa.
Chama a atenção que, ao lado dos filhos e dos homens, o 2° Isaías
menciona explicitamente asfilha s &as mulheres. Confira em Is 43,6; 49,22!
Igualmente não lembra somente os pais em Israel, como Abraão, mas
também as mães, como Sara. Leia Is 51,2! E mais. Vivências experimenta­
das pelas mulheres, como o útero, o amamentar e o parto, são integradas
na imagem de YHWH. V ejais 42,14; 45,10; 46,3,49,1.15! Naquela socie­
dade patriarcal, é digno de nota ressaltar que Deus seja comparado a
mulheres gerando vida. Assim também será no 3oIsaías (66,13). Portanto,
se nossos ouvidos estão atentos, podemos escutar as vozes de mulheres e
crianças no 2o Isaías.
Em Is 49,14-26 e em todo cap. 54, Jerusalém é comparada com
uma mãe. Confira!

A obra do 2o Isaías
Propomos a seguinte divisão para o Livro do 2° Isaías:
* YHWH libertará seu povo (40)
* YHWH, o senhor da história, chama um libertador (41)
* O servo de YHWH, aliança do povo (42,1-12)
* De servidor surdo e cego a testemunha de YHWH (42,13-43,13)
* Libertação, novo êxodo, novo povo (43,14-44,5)
* YHWH e as outras divindades (44,6-23)
* YHWH convoca Ciro como libertador (44,24-45,13)
* Deus oculto se manifesta, libertando Israel (45,14-25)
* Israel não necessita ir para outras divindades (46)
* Lamentação sobre a Babilônia, cidade opressora (47)

58
* A última queixa contra Israel (48,1-19)
* Convite para sair da Babilônia (48,20-49,13)
* YHWH se dirige a Jerusalém, mulher (49,14-26)
* Mensagem a incrédulos e perseguidos (50)
* Escutai, a libertação está próxima (51,1-11)
* YHWH converte sua ira em consolação (51,12-23)
* Regresso do exílio é iminente (52,1-12)
* Servo de YHWH: memória do sofrimento de Israel (52,13-53,12)
* Novas promessas para Sião (54)
* Ultimas promessas (55)

Para você continuar a reflexão


Leia Is 48,20-49,26 e procure descobrir: a) Os traços do rosto de
Deus. b) As tarefas da missão do servo/povo sofredor, c) O apelo profé­
tico mais forte e a mensagem de esperança que esse texto evoca em sua
experiência de vida.

3 Releituras do Pentateuco entre os deportados

Você ainda deve ter lembrança de que já falamos da releitura de


antigas tradições a respeito das origens de Israel feita em diferentes mo­
mentos e lugares da história.
Na época de Salomão no final do Reino Unido, houve uma inten­
sa atividade literária nesse sentido. No Reino do Norte, o mesmo proces­
so de reinterpretação e atualização ocorreu. Na época do rei Josias, os
deuteronomistas de Judá revisaram toda a história de Israel desde as ori­
gens até o rei Josias (OHD). E neste volume, você já estudou a respeito de
uma nova edição da OHD e da profecia durante o exílio. Viu também a
releitura do Éxodo feita pelo movimento profético de Isaías para revigo­
rar a esperança dos cativos.
Esse processo de releituras foi permanente em Israel. Cada mo­
mento histórico tinha os seus problemas, as suas perguntas. As reelabora-
ções tinham a intenção de jogar luzes sobre os novos contextos, dando
respostas atualizadas às novas perguntas, dentro da ótica de seus editores.

59
Nesse processo de redação e revisão dos textos bíblicos, um novo
grupo passa a fazer suas próprias reelaborações. E a elite sacerdotal de Jeru­
salém. Suas primeiras releituras podem ser situadas nas duas últimas déca­
das da dinastia davídica, depois da morte trágica do rei Josias, isto é, entre
609 e 586 a.C. Na época do exílio, a grande maioria dos sacerdotes que
sobreviveu à ruína de Jerusalém se encontrava entre os deportados. Aí
cumpriram um papel importante para reanimar os reféns humilhados e
em crise de fé. Já vimos como isso acon
teceu na atuação do sacerdote-profeta Ezequiel.
Como veremos logo adiante, ainda outros textos e releituras, hoje
dispersos no Pentateuco, tiveram sua origem entre os sacerdotes expatria­
dos. E o que se chama de reinterpretação sacerdotal da história de Israel.
Os sacerdotes desterrados pegaram escritos já existentes e os retocaram,
acrescentando sua visão da história do povo.
Porém, foi no período pós-exílico, que o estrato sacerdotal produ­
ziu a maior quantidade de escritos. Suas reedições foram profundas, de
modo que a perspectiva sacerdotal passou a ser o fio de meada do Penta­
teuco, como veremos adiante.

Releituras exílicas dos sacerdotes


Estamos num período em que os sacerdotes no exílio assumiram a
liderança entre os deportados, uma vez que agora não tinham mais um rei
como líder. Ao assumirem o comando das comunidades cativas, desco­
briram, em lugar do templo em ruínas, as Escrituras e a observância da lei
como elemento capaz de unir o povo. E isso foi de grande serventia para
os deportados manterem sua identidade, suas tradições, seus costumes,
sua cultura.
Contudo, ao insistirem na observância da lei do puro e do impuro,
na total “separação” entre as comunidades deportadas e os babilônios
com toda sua cultura, os sacerdotes lançaram os fundamentos de uma
sociedade altamente estratificada e excludente, como ainda veremos.
Certamente, os retoques e acréscimos dos sacerdotes nos escritos
sobre as antigas tradições foram muitos. Mas aqui, nos ateremos apenas a
alguns textos exemplares.

60
I

Nos próximos itens, analisaremos a. Lei de Santidade (Lv 17-26), a


circuncisão como símbolo da aliança (Gn 17), a narrativa sobre o dilúiio (Gn
6-9), e o segundo relato da vocação de M oisés (Ex 6).
Sobre a narrativa da criação do mundo em sete dias (Gn 1,1-2,4a), que é
desse período e foi escrita entre os deportados, você já leu nas páginas 83
c 84 do primeiro volume desta série. Queremos aqui destacar a importân­
cia do sábado naquela narrativa. Entre os deportados, junto com a circun­
cisão, o sábado foi um dos sinais que diferenciava dos babilônios os ju­
deus cativos.

a) A Lei de Santidade (L v 17-26)


“S ede santos, p o is eu, YHW H, vosso D eus, sou santo. ”
(Lv 19,2)
È muito provável que foi durante o exílio que teve início a reunião
das leis em códigos como os encontramos hoje no Pentateuco. Uma das
intenções para essa compilação de leis foi agrupar as tradições que contri­
buíam naquele momento para a preservação da identidade cultural dos
desterrados, em meio a uma sociedade totalmente diferente, multicultural
v cujas expressões religiosas eram outras.
O código de leis contidas em Lv 17-26, conhecido como Lei de
Santidade, certamente terá sido escrito pelo mesmo grupo de sacerdotes
que está por trás do Livro de Ezequiel. Há muita afinidade entre a lingua­
gem e os temas desses escritos. E verdade que muitas das leis contidas no
código eram muito antigas. Talvez até
já houvesse conjuntos menores dessas
"As ferras não se venderão
leis. Mas para compreender todo seu a título definitivo,
alcance, é importante interpretá-lo no porque a terra é minha
contexto das comunidades cativas. e vós sois estrangeiros
Lv 17-26 é a quarta parte e tam­ e meus agregados."
bém a mais antiga do Livro do Levíti- (Lv 25,23)
co. E chamada de Lei de Santidade
devido a um refrão que acompanha todos esses capítulos, indicando-nos
a preocupação fundamental dos autores: a “santidade”, isto é, a “separa­
ção”, a “distinção” e a “diferença”. Confira 19,2; 20,7.26; 21,8!

61
Sendo Deus santo, seu povo também deve ser santo. Ser santo é
“não fazer o que se faz no Egito... nem o que se faz em Canaã... não seguir
os seus costumes” (18,3.30). Ser santo é ser separado, ser distinto. Deus é
três vezes santo (Is 6,3), justamente por ser transcendente, absolutamente
diferente, incomparável. Porém, YHWH nos convida a participarmos de
sua santidade, a entrarmos em comunhão com Ele e a separarmo-nos de
tudo o que é profano e que não está de acordo com o seu plano, a sua
vontade. Ezequiel usava a m esm a linguagem ao falar do nome santo
(Ez 36,20.21.22; 39,7.25) e da distinção entre o profano/impuro e o san­
to/ puro (Ez 22,26; 42,20; 44,23).
Esse Deus santo e totalmente outro, a quem pertence a terra, é o
Deus do Exodo. A memória do Deus do Exodo serve de moldura teo­
lógica da Lei de Santidade. Não deixe de ler Lv 25,38! Mas você ainda
pode ler referências a YHWH libertador da opressão em Lv 19,34.36;
22,33; 23,43; 25,42.55; 26,12-13.45.
A fórmula típica do Exodo “Eu sou YHWH” volta a cada mo­
mento ao longo do código (Lv 18,2.4.30; 19,3-4.10.25.34.36, etc.). Mais
uma vez há afinidade com a linguagem de Ezequiel (Ez 30,8.19; 32,15;
34,27; 35,4.9.15; etc.).
Num contexto em que um novo êxodo se fazia necessário, a m e­
mória do antigo Exodo servia de consolação aos cativos desolados e, ao
mesmo tempo, de estímulo para lutarem por uma nova libertação.
Contudo, ao acomodarem a memória subversiva do Exodo ao
projeto do novo templo no pós-exílio, os sacerdotes engessaram sua for­
ça revolucionária. A Lei de Santidade, como a temos hoje, serviu bem aos
interesses dos sacerdotes desterrados como plano de restauração das co­
munidades israelitas, ao redor do templo reconstruído. As leis nela conti­
das estão estreitamente relacionadas com o culto e o clero.
Uma possível divisão do Código de Santidade poderia ser:
* Respeito pelo sangue, isto é, pela vida (17).
* Respeito pela sexualidade (18).
* Um povo santo como seu Deus (19).
* Penas contra o desrespeito da sexualidade (20).
* Santidade dos sacerdotes (21).
* Alimentos sagrados (22).

62
H

* Festas sagradas e outros rituais (23,1-24,9).


* Respeito pelo Deus da vida (24,10-23).
* Ano Sabático e Ano do Jubileu (25).
* Bênçãos e maldições; vida ou morte (26).
Nas igrejas cristãs, certamente a parte mais lida do Levítico é a Lei
dc Santidade e nela o cap. 25. Aí estão as leis do Ano Sabático e do Jubileu.
E nelas que podemos ler sobre o direito à terra e à moradia, sobre a
libertação de escravos, bem como sobre o perdão das dívidas. Todos são
temas muito atuais e lançam luzes sobre a luta dos que não têm acesso à
terra, à habitação e à liberdade. Levam-nos também a nos posicionar a
respeito da grave questão da dívida externa e suas conseqüências na vida
do povo.
Ao anunciar, tal como o profeta Isaías, “o ano da graça do Se­
nhor”, Jesus assume como também seu o projeto do Ano do Jubileu. Leia
Is 61,1-2; Lc 4,18-19.21!

A lei do puro e do impuro e a exclusão da mulher


Diferente da situação das mulheres remanescentes em Judá durante
o exílio, foi a condição das que foram levadas para a Babilônia. E verdade
que também lá elas resistiram. Como vimos, o movimento profético do
2° Isaías, que tinha a participação de mulheres, é testemunha de que entre
os deportados, nem todas as pessoas pensavam com os critérios patriar­
cais. Também o primeiro relato da criação, que foi escrito entre os depor­
tados, coloca tanto as mulheres quanto os homens em condições de igual­
dade como “imagem e semelhança de Deus”. Confira Gn 1,27!
Mas não pensava assim a maioria dos sacerdotes junto aos rios da
Babilônia. Os círculos sacerdotais reelaboram sua visão do mundo, da
vida. Antes, eles tinham o templo de Jerusalém para exercitar sua perfei­
ção diante de Deus. A “casa de Deus” era considerada absolutamente
pura, sagrada, por se tratar da morada de Deus. Daí por que nada de impuro
e profano podia se aproximar do culto. E o caso das mulheres que eram
consideradas impuras em boa parte de sua vida, quando, por exemplo, esta-
vam menstruadas ou haviam dado à luz (Lv 12; 15,19-33; 18,19).

63
N a Babilônia, eles não tinham mais aquele santuário. Aplicaram,
então, os critérios do puro e impuro, bem como do sagrado e profano à
vida diária, a fim de poder viver no cotidiano em permanente estado de
pureza e perfeição “diante de Deus”. Na prática, porém, essa postura
piedosa diante da vida teve conseqüências nefastas especialmente para as
mulheres. Reforçou a atitude de discriminação especialmente da mulher,
mas também de estrangeiros e de quem não observava as leis de pureza.
Como vimos, o profeta Ezequiel, ao idealizar um novo templo
para seus companheiros de desterro, colaborou na diminuição da dignida­
de das mulheres. Já antes do exílio, elas não tinham acesso ao sacerdócio
ou outra função importante no templo. Agora, para manter sua pureza e
santidade diante de Deus, os sacerdotes, entre outras coisas, foram proibi­
dos de casar com uma viúva ou uma divorciada. Podiam casar-se somen­
te com uma virgem ou viúva de um outro sacerdote. Leia, por exemplo,
Ez 44,22-23 e Lv 21!
Essa ideia de considerar os homens mais puros que as mulheres se
materializou quando os repatriados reconstruíram o templo idealizado
por Ezequiel e fizeram um pátio especial para as mulheres com um muro
que as separava do santuário e que elas eram proibidas de ultrapassar.
No mesmo sentido, o conjunto de leis contidas em Lv 17-26 refor­
ça claramente as estruturas patriarcais. Ter relações sexuais com as mulhe­
res do pai (Lv 18,7-8; 20,11), do irmão (Lv 18,16) ou do tio (Lv 20,20),
não era considerado tanto um desrespeito contra as mulheres, mas uma
desonra para os “donos” dessas mulheres.
O valor do pagamento de votos no santuário também é sinal da
inferioridade da mulher na sociedade israelita. Leia Lv 27,1-7!

Para você continuar a reflexão


Leia Lv 25,8-55 e descubra: a) os direitos dos pobres na lei do Ano
Jubilar! b) os principais ensinamentos para sua vida de fé na sua comuni­
dade e na nossa sociedade!

64
b) A circuncisão: sinal de p erten ça a Y H W H e a um povo
(G n 17)
“ C ircun cidareis a carn e do p r ep ú cio :
esse será o sin a l da aliança en tre m im e vós.” (Gn 17,11)

A circuncisão já existia antes do exílio, inclusive em outros povos.


Era, porém , um rito de iniciação ao casam ento e à vid a da fam ília
(C!n 34,14-15; Ex 4,24-26; Lv 12,3).
As leis que obrigam a circuncisão em Israel, você pode encontrar
em Ex 12,44; Lv 12,3.
Gn 17 é uma narrativa que certamente tem sua origem entre os
deportados. Foi lá que a circuncisão se tornou importante como sinal de
distinção das comunidades cativas em meio aos babilônios incircuncisos,
por um lado, e, por outro, como sinal de pertença ao mesmo povo e ao
próprio Deus. Gn 17 é uma releitura de Gn 15, onde Deus também faz
uma aliança com Abraão, mas sem se referir à circuncisão.
Gn 17 amplia o significado da circuncisão, que passa a ser sinal da
aliança entre YHWH e Israel/Abraão. A função da circuncisão em Gn 17
é equivalente à do arco-íris na aliança entre Deus e toda a humanidade/
Noé (Gn 9,12-17).
Ao estabelecer a circuncisão como o sinal da aliança, os círculos
sacerdotais acentuaram e aumentaram a exclusão da mulher. Ela não é
parceira direta de YHWH na aliança. Somente indiretamente como apên­
dice do homem, o parceiro natural de Deus na aliança.
Em Dt 10,16; 30,6; J r 4,4; 6,10, você já leu como os movimentos
deuteronomista e profético insistiam na circuncisão do coração e do ouvi­
do, isto é, na necessidade de escutar a lei de Deus e colocá-la em prática.
Isso é muito mais importante que um sinal meramente exterior. A circun­
cisão do coração e do ouvido resgatava a igualdade entre mulheres e ho­
mens na parceria com YHWH na aliança. Sobre o assunto, você já leu no
quadro das páginas 162 e 163 do volume anterior.

65
c) D ilúvio: fim da vio lên cia e restauração da ju stiça (G n 6-9)
“N oé era um hom em ju s to e ín tegro en tre os
con tem porân eos e sem pre andou com D eus.” (Gn 6,9)
A respeito de Gn 6,1-8, você pode ler no item “Gn 6-9: Deus
preserva a vida dos justos”, nas páginas 95 a 97 do volume 3 desta série.
A narrativa referente ao dilúvio, você encontra em Gn 6-9. Assim
como a temos hoje, ela é fruto de uma longa caminhada e de uma mistura
de duas tradições de épocas diferentes. A Ia edição deve ser do século 10
a.C. Quanto à 2aedição, há vários indícios que nos permitem situá-la entre
os deportados na Babilônia. Podemos perceber repetições e contradições
na narrativa, o que confirma a hipótese da junção de mais tradições. Com­
pare, por exemplo, 6,20 com 7,2; 7,6 com 7,10-
11; 7,7 com 7,13!
"C aiam sobre a
Os deportados releram a antiga narrativa
Babilônia a
violência e as
que já existia. E tinham vários motnos pura isso. Pri­
penas que sofri." meiro, porque, tal como num dilúvio, encontra­
(Jr 51,35) vam-se numa “situação caótica” enquanto reféns
de guerra em terras estranhas. Não é por acaso
que também a narrativa da criação do mundo em sete dias inicie seu
relato, referindo-se ao caos (Gn 1,1-2). A narrativa, portanto, é um con­
vite a superar essa realidade de sofrimento. É um relato de esperança para
gente desolada.
Segundo, porque a sociedade que os oprimia longe de sua terra era
igual àquela que provocou o dilúvio. O exército babilônio era muito vio­
lento. O profetajeremias o registra (Jr 51,35.46). Uma das causas do dilú­
vio foi justamente a “violência” dos opressores. Leia agora Gn 6,11-13!
Nesses versos, você ainda percebeu que, além da violência, a “cor­
rupção” foi outra causa do dilúvio. Além disso, comparando Gn 6,5 com
Jr 51,24, você percebe que a “maldade” tanto foi causa do dilúvio quanto
prática dos babilônios. A reedição da narrativa do dilúvio visa, portanto, à
superação da violência, da corrupção e da maldade. E um projeto que
visa à justiça, à sobrevivência de quem pratica a justiça, é íntegro e anda
com Deus. Não deixe de ler Gn 6,9 e 7,1!
Um terceiro motivo é que os expatriados se encontravam numa
situação de morte, igual àqueles ossos secos no vale em Ez 37,1-14. Uma
66
nova criação e uma nova humanidade se faziam necessárias. É o que acon­
tece na saída da arca. Confira em Gn 9,1-7 e compare com Gn 1,28-31!
Perceba as diferenças e semelhanças!
Voltar à “aliança” com YHWH era uma necessidade. Este é um
quarto motivo para a nova edição do relato do dilúvio entre os cativos.
Como vimos acima, Ezequiel havia criticado o abandono da aliança e
anunciado a volta à fidelidade a YHWH. E o 2° Isaías ampliou a aliança
para além dos limites do povo de Israel. Leia agora Gn 9,8-17!
Você percebeu que Deus estabelece uma aliança com toda a huma­
nidade, simbolizada pelo clã de Noé. Será mera coincidência que o signi­
ficado da raiz do nome Noé (consolar) seja um dos temas principais do 2°
Isaías? Ou ainda, que a superação das águas, tanto no dilúvio bem como
junto ao Mar dos Juncos no Exodo do Egito, sejam uma referência ao
novo êxodo que Ezequiel e o 2° Isaías anunciavam?
Há ainda uma quinta razão que justifica uma reelaboração da antiga
tradição do dilúvio pelos deportados. E que naquelas planícies junto aos
rios da Mesopotâmia já havia uma antiga história do dilúvio que remonta
ao 3o milênio a.C. E a “epopeia do rei Gilgamés”, encontrada em Nínive
na famosa biblioteca de Assurbanipal. Um dos objetivos desse mito era
ameaçar o povo com a calamidade do dilúvio, sempre que ele não obede­
cesse ao rei, isto é, às divindades controladoras das águas superiores, aci­
ma do firmamento. Era, portanto, um mito a serviço da opressão dos
imperadores dos diferentes impérios que houve naquela região.
O inusitado é que os judeus cativos na Babilônia “viraram o feitiço
contra o feiticeiro”. De uma história de opressão fizeram uma história de
libertação. De uma história para subjugar e amedrontar, fizeram um tram­
polim para superar o medo das ameaças e uma alavanca para resistir e
lutar. De que forma o fizeram? Acompanhe o raciocínio! A história origi­
nal do dilúvio ameaçava com o caos do dilúvio. Porém, para as comuni­
dades cativas, esse dilúvio nunca viria, pois YHWH garantira que “enquan­
to a terra durar, semeadura e colheita, frio e calor, verão e inverno, dia e
noite jamais hão de acabar” (Gn 8,22. Confira ainda 9,11!). Com essa
nova versão, as ameaças dos verdugos babilônios ficavam sem efeito. Caíam
no vazio. Você pôde perceber que, tal como a primeira narrativa da cria­
ção (Gn 1,1-2,4a), a reedição do mito do dilúvio polemiza com as divin­

67
dades babilônicas e antigos mitos mesopotâmicos.
Leia agora toda a história do dilúvio (Gn 6-9) e procure perceber
esses elementos que levantamos acima. Descubra outros e reflita sobre o
que essa narrativa tem a nos dizer hoje, enquanto pessoas, comunidades e
mundo globalizado. Será que não há necessidade de outro dilúvio como
aquele? Onde? Para “lavar” o quê? Quem está provocando o caos para a
humanidade? O que significa hoje provocar um “dilúvio” que carregue
toda forma de maldade, violência e corrupção? Como perceber a presen­
ça de Deus em meio a tanta maldade?

d) U m novo êxodo p ara os d ep ortad os (E x 6,2-13)


“ E u vos leva rei à terra que, com mão esten dida, j u r e i da r
a A braão, a Isa a c e a Ja có, e vâ-la d a rei em p o sses sã o .” (Ex 6,8)

Todo o capítulo 6 tem sua origem na época do exílio, exceto o v. 1.


Você pode perceber facilmente que as narrativas de Ex 6 são reinterpreta-
ções. Compare, por exemplo, as duas edições da vocação de Moisés (Ex
3,1-22 e 6,2-13), da genealogia de Jacó (Gn 46,8-25 e Ex 6,14-27) e da
retomada da vocação de Moisés (Ex 4,10-17 e 6,28-7,7)!
Aqui, vamos nos ater à 2“ edição da vocação de Moisés (6,2-13).
Vários são os indícios de que a reinterpretação da vocação de Moi­
sés pode ser situada entre os expatriados na Babilônia. Primeiro, porque,
ao referir-se ao “Deus Poderoso” que apareceu a Abraão, Ex 6,3 retoma
outro texto da época: Gn 17,1.
Segundo, porque a linguagem é parecida com outros textos surgi­
dos entre os cativos. Por exemplo, a expressão “Eu sou YHWH” pode ser
encontrada com frequência em Ezequiel, 2° Isaías e na Lei de Santidade,
como já vimos.
E terceiro, porque o assunto combina muito bem com a necessidade
de um novo êxodo. Por um lado, encontravam-se novamente numa situ­
ação de opressão como a dos hebreus no Egito. Por isso, a memória do
Êxodo e da intervenção de YHWH naquele processo servia como fonte
de espiritualidade no novo contexto. E YHWH, o Deus libertador, conti­
nuava fiel e solidário.

68
I

Por outro lado, o que os desterrados mais esperavam era o retomo


para a terra da promessa. Este é o núcleo das promessas de Ex 6 e do 2o
Isaias. A memória do passado alimenta a esperança de fúturo, traz ânimo
aos cativos desolados.
Por causa da forte denúncia da opressão e da presença da utopia,
p<>r um lado, e, por outro, da semelhança com a linguagem do Deutero-
nômio, podemos perceber que além do círculo sacerdotal, também círcu-
1<>s proféticos e levíticos estão entre os autores da 2a edição da vocação de
Moisés.
E hoje, como resgatar a memória do Exodo e do Deus libertador
para potencializar nossa caminhada em busca e concretização dos valores
do Reino aqui na terra?

Salmos
“ Tu, p orém , o repu dias te e o rejeita s te
e te in dign as te com o teu ungido.”
(Sl 89,39 - Almeida = 89,38)

Antes do exílio, certamente os salmos desempenhavam um papel


importante na vida de fé em Israel. No exílio, porém, eles assumiram
outra dimensão. Antes da ruína, os sacrifícios eram centrais no culto a
YHWH. Com a destruição do templo, desapareceu também a oferta de
sacrifícios. Nesse novo momento, as Escrituras assumem lugar central na
liturgia. Os salmos, da mesma forma como os profetas, passaram a ocu­
par um novo espaço, tanto entre os remanescentes quanto entre as comu­
nidades dispersas.
Durante o exílio, salmos antigos foram retocados e novos foram
compostos. Não é tão fácil fixar exatamente o contexto histórico de cada
salmo e também das coletâneas. Embora muitos salmos se refiram a situa­
ções bem concretas, sua linguagem é mais universal. Dessa forma, podem
ser usados em diferentes momentos históricos, inclusive em nossos dias.
E provável, porém, que foi nesse período que se começou em Israel
a compor coleções maiores de salmos para servirem como “cancioneiro”

69
no culto. Os antigos cantores do templo terão sido os primeiros responsá­
veis por essa tarefa.
Entre os salmos relidos ou compostos durante o exílio, tanto em
Judá como na Babilônia, podemos encontrar os Salmos 42,43; 44; 51; 69;
70; 74; 79; 89,39-52; 137.
Na 2a parte deste volum e, farem os um a intro dução a todo o
salténo.

Para você continuar a reflexão


Leia o Sl 74! a) Qual é a situação do povo que transparece nesse
salmo? b) Caracterize a experiência de Deus que deu origem ao salmo! c)
Como descreve as ações do “inimigo” ou “adversário”? d) Compare esse
salmo com a oração de sua comunidade e comente!
Quais são suas maiores descobertas em relação ao período do exí­
lio? O que a experiência do exílio tem a nos ensinar hoje?

70
I

Conclusão da primeira parte


Na primeira parte deste volume, inicialmente você acompanhou
unia análise da situação de humilhação e desolação em que viviam, no
período do exílio, tanto os remanescentes como os expatriados.
Viu também o significado do exílio para o povo de Israel, para quem
foi como um divisor de águas. Seus reflexos na vida do povo foram tão
profundos que se divide a história de Israel em antes e depois do exílio.
Vimos depois a literatura bíblica que surgiu entre os remanescentes
nas terras de Judá após a ruína de Jerusalém.
Por um lado, foram formulados textos e outros foram reeditados
por grupos mais próximos ao campesinato. Esse-s autores estão por trás
tia redação final do Livro de Jeremias, da reedição da OHD e da releitura
de textos proféticos como Amós e Miqueias. Para eles a história de YHWH
com seu povo tem continuidade especialmente na terra de Judá. São críticos
ao reinado, porém, mantêm a esperança na vinda de um messias davídico.
Por outro lado, textos foram elaborados para descrever a desola­
ção do monte Sião depois da queda. Ao mesmo tempo, mantêm viva a
esperança na restauração de Jerusalém. Cultivam preferencialmente as tra­
dições do templo. Os autores dessas obras estão por trás de Abdias e
Lamentações. Mais do que estarem próximos às tradições do campesina­
to, esses círculos estão fortemente vinculados às tradições de Sião. Devem
ser levitas e cantores, ex-funcionários do antigo templo. No pós-exílio, as
tradições desse grupo se impuseram com o apoio dos repatriados e das
autoridades persas.
Depois passamos para a literatura escrita e reeditada que surgiu
entre os deportados na Babilônia.
Em primeiro lugar, acompanhamos a obra do sacerdote-profeta
Ezequiel. Suas raízes estão fortemente arraigadas nas tradições sacerdotais
de Jerusalém. A grande novidade da teologia do primeiro profeta longe
da terra da promessa é que ele experimenta a presença de YHWH entre os
desterrados. Antes da queda de Jerusalém, as críticas de Ezequiel a Sião

71
são tão radicais como as dos profetas que o precederam. Após a ruína,
porém, elabora um plano de recriação das pessoas e da vida de seu povo.
Contudo, ao propor concretamente a viabilidade de sua utopia, oferece
como solução a restauração das estruturas da monarquia davídica e do
templo, que tanto havia criticado.
Em segundo lugar, fizemos companhia com o 2° Isaías, o profeta
da segunda geração de expatriados. As profecias de Is 40-55 são fruto de
uma comunidade profética, cujas raízes estão entre os antigos cantores do
templo que haviam sido levados como reféns para a Babilônia. A partir da
experiência de perdão por parte de Deus e com a possibilidade de retor­
no que o avanço de Ciro representa, os autores de Is 40-55 anunciam a
boa notícia do novo êxodo. Sua meta principal é Sião e Jerusalém. Contu­
do, diferente de Ezequiel, o templo não ocupa lugar de destaque. A gran­
de novidade da teologia do 2° Isaías é apresentar o sofrimento e o martí­
rio por uma causa justa como vitória em favor de muitos. Insiste também
na missão universal do povo sofredor. E o que se pode ler nos cânticos
do servo sofredor.
Em terceiro lugar, acompanhamos as releituras dos deportados no
Pentateuco. Por um lado, vimos sua interferência nas tradições a respeito
das origens, especialmente na narrativa da criação do mundo em sete dias,
na 2“ edição do relato sobre o dilúvio, bem como na 2a narrativa da voca­
ção de Moisés. Essas releituras têm como referência o sofrimento e as
dores das comunidades cativas. As principais reivindicações de seus auto­
res, vinculados aos círculos proféticos, deuteronomistas e sacerdotais, são
o direito de prestar culto a YHWH, de descansar no sábado, de voltar à
terra, eliminando toda forma de violência e de corrupção.
Por outro lado, os círculos sacerdotais também deixaram suas marcas,
com forte preocupação pela identidade de seu povo. Idealizaram um povo
santo, separadot, diferente inclusive na came pela circuncisão Infelizmente, como
vimos e ainda haveremos de ver, o controle dos sacerdotes em torno do
templo no pós-exílio transformou essa utopia em um sistema de exclusão.
Por último, vimos algo sobre os salmos que também sofreram um
processo de reelaboração no exílio.
A segunda parte deste volume será sobre a reconstrução no perío­
do persa (539-332 a.C.).

72
i

Para orar e aprofundar


Leia e medite sobre os seguintes textos:
* Salmos 96 e 98, que celebram o universalismo do reinado de
YHWH.
* Salmos relidos ou editados do exílio: 42; 43; 44; 51; 69; 70; 74; 79;
89,38-52; 137.
* Coloque-se no lugar do servo e ore a partir de Is 42,1-6 e 49,1-6.
* A missão do templo: Ez 47,1-12. Compare com Ap 21,1-5.

Sugestões de leitura
MESTERS, Carlos. A Missão do Pow que Sofre. Petrópolis: Vozes.
ROSSI, Luiz Alexandre Solano. Como kro U iro de Abdias. São Paulo: Paulus.
ROSSI, Luiz Alexandre Solano. Como ler o Livro de Ezequiel. São Paulo:
Paulus.
ROSSI, Luiz Alexandre Solano. Como ler o U vro das Lamentações. São Paulo:
Paulus.
SCHWANTES, Milton. Sofrimento e Esperança no Exílio. São Paulo: Paulus,
São Leopoldo: Sinodal.

73
Parte II:
Época da Dominação Persa

Introdução

A segunda parte deste volume é sobre a época da dominação persa. E o


período que vai de 539 a.C., quando Ciro derrota os babilônios, até 332
a.C., quando o macedônio Alexandre Magno conquista dos persas as ter­
ras de Judá.
Inicialmente, veremos algumas informações sobre o Império Per­
sa. Depois, analisaremos os projetos de reconstrução dos primeiros repa­
triados (538 a.C.) desde o retorno até o início da atividade de Neemias
(445 a.C.), sob a liderança dos governadores Sasabassar e Zorobabel, do
sumo sacerdote Josué, e dos profetas Ageu e Zacarias. Sua missão é a
reconstrução do altar e do templo. Sobre a atuação dessas lideranças po­
demos ler nos Livros de Esdras, Neemias, A geu e Zacarias 1-8.
A voz da resistência contra a proposta do templo está no 3° Isaías
(56-66). Segue uma época sobre a qual temos poucas informações (515-
445 a.C.). Aí deve ser situada a atividade do grupo de Malaquias.
Além disso, estudaremos a consolidação do projeto do templo.
Por um lado, analisaremos as missões de Neemias a partir de 445 a.C. e
depois de Esdras. A principal tarefa de Neemias é a reconstrução da cida­
de de Jerusalém. A ênfase de Esdras é o ensino e a observância rigorosa
da lei na tentativa de preservar a identidade dos judeus. Destacaremos
também alguns aspectos que tiveram conseqüências negativas na vida do
povo, tais como o rigor na aplicação da teologia da retribuição, da lei do
puro e do impuro e da teologia da pureza étnica.

74
Analisaremos ainda a redação final de coletâneas neste período, pa-
Irocinada pelos sacerdotes e levitas vinculados ao culto no templo. Referi-
mo-nos a Provérbios, ao Pentateuco, à ObraHistoriográfica Cronista (OHC = 7-
2Cr, Esd, Né) e aos Salmos.
Examinaremos também a resistência popular contra o projeto ofi­
cial, representado por Neemias e o sacerdote e escriba Esdras. Nesse capí­
tulo, veremos como a resistência popular contra a imposição do projeto
cxcludente do templo, que tinha o apoio do Império Persa, está expressa
em literatura de estilo sapiencial. Em seu diálogo dramático, J ó reage con­
tra o dogma da retribuição, propondo a teologia da gratuidade. Entre
(>utros aspectos, Cantares é uma forte crítica à lei de pureza, especialmente
110 que se refere à exclusão da mulher. As novelas de Jonas e de Rute reagem
contra a teologia da pureza étnica. Rute ainda propõe um projeto de resga­
te do direito dos pobres.
Por fim, ainda estudaremos a profecia de Joel.
Como já vimos, os textos da Bíblia não têm um único projeto, não
expressam apenas a experiência de um determinado grupo. As Escrituras
são fruto de muitas mãos. Exprimem experiências de fé de grupos varia­
dos e com diferenças muitas vezes acentuadas e até opostas dentro de um
mesmo povo. Esse povo carregava na memória um projeto fraterno, ex­
perimentado na época das tribos. Mas desde o início da monarquia, já
estava profundamente dividido em classes sociais diferentes. Os distintos
projetos em nível religioso são expressão dos diferentes grupos sociais em
conflito e lhes servem de fundamento e legitimação.
Nesse sentido, podemos comparar a diversidade de projetos na
Bíblia com as diferenças de nosso planeta. De um lado, a terra tem partes
difíceis para se trabalhar e se viver. São terrenos pedregosos e montanho­
sos. Há ainda partes que são pantanosas ou desérticas. De outro lado, a
terra tem terrenos agradáveis para se trabalhar e se viver. São terrenos
planos e férteis. Mas todos fazem parte de nosso planeta. Assim é a Bíblia
como a temos hoje. Reflete a diversidade e, ao mesmo tempo, a ambigüi­
dade da vida humana e das suas diferentes formas de viver a sua relação
com a divindade.

75
Para início de conversa
Se é possível fazer um paralelo entre os regimes militares na Amé­
rica Latina e a época do exílio babilônico, faz sentido também perce­
ber semelhanças entre a volta de parte dos cativos na Babilônia e o
retorno dos exilados políticos no final das ditaduras militares. Diante
de um novo momento que nosso país vive desde a redemocratiza-
ção política, pedimos-lhe que reflita sobre as questões que seguem.
1. Com o fim dos generais-presidentes, que grupos assumiram o
controle do poder? Houve de fato mudanças? Para quem? Em nível
internacional, que alterações houve no poder hegemônico?
2. Você lembra de alguns exilados que voltaram à sua pátria?
Quais? Como foram recebidos? Qual foi seu projeto político? Or­
ganizaram partidos de oposição?
3. Qual foi a contribuição das Igrejas no processo de redemo-
cratização? Como se posicionam nesse período de reconstrução da
vida do povo?
4. Que outros movimentos de resistência foram tomando corpo
e se organizando? Qual foi seu projeto de reconstrução para a socieda­
de? Qual foi sua base social? Houve avanços na luta por cidadania
plena?
5. Há algum acontecimento histórico novo em nossos dias que
é um sinal de esperança para nosso povo e para o mundo? Qual? Por
quê?

76
II

O Império Persa
“Para p o d erm o s p a g a r o im posto ao r e i, tivem os que tom ar
din heiro em prestado, hipotecando o sp a rreira is
e os cam pos. ” (Ne 5,4)

Como já vimos no volume anterior, em 539 a.C., o rei Ciro entrou


l riunfalmente em Babel, a capital do Império Babilônico. Foi aclamado
pelos próprios babilônios. Pelos judeus deportados foi celebrado como o
“ungido de YHWH” (Is 45,1). Mais tarde, os repatriados ainda o conside­
ravam o “enviado de YHWH” (2Cr 36,22-23; Esd 1,1-4).
Dessa forma, Ciro pôs fim a quase um século de domínio da Babi­
lônia no Oriente Médio, por um lado, e, por outro, iniciou um período de
dois séculos de hegemonia persa na região. Pela primeira vez na história,
todo o Oriente Médio passou a estar sob o domínio de um único rei. Veja
o mapa do Império Persa na página 85 do primeiro volume desta série.

Uma nova estratégia de dominação


Já vimos que a estratégia de dominação dos assírios e babilônios
era a mesma. Ao subjugar um povo, cobravam tributos. Caso houvesse
suspensão na remessa dos impostos, havia um a nova invasão e se exi­
lavam as classes dirigentes para evitar qualquer tentativa de resistência.
Os assírios, além das deportações, traziam outros povos para misturar
com os que restavam no país, a fim de suprim ir a identidade de cada
povo. Com a m esm a finalidade impunham também suas divindades,
sua religião.
Diferentemente dos assírios e dos babilônios, a estratégia política
persa era mais tolerante e menos cruel. Em vez de deportar, os persas até
permitiam a repatriação de quem havia sido expatriado pelo império que
os precedera. Respeitavam também a religião dos povos conquistados. O
rei Ciro (555-530 a.C.), por exemplo, restabeleceu o culto a Marduc na

77
Babilônia. Decretou também a reconstrução do santuário de YHWH em
Jerusalém. Mandou devolver os ídolos que Nabucodonosor havia levado
para a capital do seu império.
E mais. Não somente financiou a construção do altar e do segundo
templo, como também patrocinou a realização dos sacrifícios diários ali
oferecidos. YHWH tornou-se, dessa forma, mais uma divindade a quem
Ciro prestava culto. Pediu inclusive que os judeus rezassem a YHWH em
favor de sua família. Leia em Esd 6,2-10, por exemplo, sobre essa nova
estratégia de dominação!
Essa nova tática dos persas é conseqüência de sua avaliação da es­
tratégia de dominação dos babilônios. Ciro
"N o seu prim eiro ano percebeu que o jeito violento e desordena­
de reinado, Ciro deu do de a Babilônia impor seu poder, planta­
uma ordem a respeito va nos povos subjugados a semente de agi­
da casa de Deus em tações e insatisfações. Partiram, então, para
Jerusalém. O templo a dominação ideológica. Nesse sentido, fo­
será reconstruído." ram os persas os criadores do sistema de
(Esd 6,3) opressão ainda vigente em nossos dias.
Se, por um lado, os persas perm iti­
ram a cada povo que seguisse suas tradições e seus costumes, por outro,
negavam a autonomia econômica, política e militar. O poder político per­
tencia aos persas e o poder religioso, no caso dos judeus, aos sacerdotes
sadoquitas. São os sacerdotes da linhagem de Sadoc, promovida por Sa­
lomão durante seu reinado. Os judeus podiam observar sua própria lei,
contanto que se submetessem ao império. Aliás, a lei dos judeus era consi­
derada a lei do rei (Esd 7,26), ou seja, a lei do rei persa em Judá era a Lei
de Deus contida no primeiros cinco livros das Escrituras judaicas!
Fazendo alianças com as elites locais, os persas exerciam seu domí­
nio com menos possibilidade de revoltas dos povos anexados ao império.
Patrocinando o culto, os persas conseguiam o apoio pelo menos dos sa­
cerdotes locais.
Aparentemente, o Império Persa não parece tão violente quanto o
dos assírios e dos babilônios. Na prática, porém, os persas eram implacá­
veis com os povos subjugados que ousassem suspender o pagamento de
tributos ou proclamar sua independência. A paz que reinava, portanto, era

78
uma paz aparente sob o controle dos “cavalos” persas, símbolo de domí­
nio militar. E raum apaz fruto da injustiça. Não deixe de ler Zc 1,8.11.15!
Também não terá sido por acaso que Zorobabel e o profeta Ageu desa­
pareceram misteriosamente, como veremos adiante.

E hoje, qual é a estratégia dos impérios para manter sua hegemonia


sobre os países periféricos? Que instrumentos de dominação utilizam para
fazer valer seus interesses?

Judá, um trampolim para conquistar o Egito


Por que os persas tinham tanto interesse em ter os judeus como seus
aliados? E que, na verdade, Judá lhes servia de trampolim para conquistar o
Egito. Este era seu alvo principal. Para concretizar esse empreendimento, era
importante manter Judá aliado, para que servisse de escudo de defesa contra
o Egito e de base militar para atacar seus exércitos. De fato, em 525 a.C., o
rei Cambises (530-522 a.C.) conquista o Egito. Mais uma vez, as terras
de Judá se tornaram um lugar estratégico na luta pelo controlo do po­
der internacional.

O aramaico como língua diplomática e língua comum dos povos


O aramaico já era a língua diplomática internacional durante os
Impérios Assírio e Babilônico. Veja, por exemplo, 2Rs 18,26! Porém, tor-
nou-se a língua comum dos povos, bem como a língua oficial do gover­
no, somente durante o Império Persa. No Primeiro Testamento, estão em
aramaico Esd 4,8 a 6,18; 7,12-26; Jr 10,11; Dn 2,4-7,28. Com diversos
dialetos, o aramaico era a língua comum na Palestina, ainda no tempo de
Jesus. Em Mt 27,46, Jesus recita o Salmo em aramaico.

Organização política do Império Persa


O cargo mais alto da adm inistração persa era do rei. Seu poder
era absoluto e se legitim ava na população com a ideologia da sua indi­
cação pelas próprias divindades persas. Seu poder era tanto que podia
m atar com sua palavra, sem julgam ento e sem direito a defesa. Vivia

79
em meio a muita pompa e mistério. Somente em ocasiões especiais apare­
cia em público.
O império estava organizado em vinte grandes regiões, chamadas
satrapias. Judá e Samariapertenciam à SatrapiaTranseufrates (Esd 5,3; 8,36),
que era formada por Chipre, Síria, Fenícia e Palestina. O governador de
cada região era chamado de sátrapa (Est 8,9) e era supervisionado por um
secretário e um comandante militar. A função principal do sátrapa era,
além de manter a ordem, recolher o tributo das províncias a ele subordi­
nadas, enviando uma cota anual para a capital e ficando com o restante.
Cada satrapia era dividida emprovínáas. Segundo Est 1,1, eram 127.
Cada província, por sua vez, estava subdividida em distritos. Em Ne 3 (w.
9.12.16.17.18), podemos identificar cinco distritos na província de Judá.
Convém destacar que os persas não modificaram a administração interna da
Palestina organizada pelos assírios no Norte e pelos babilônios em Judá.
O Império Persa não tinha capital fixa. Durante o ano, o rei percor­
ria as capitais dos principais reinos do império: Susa (capital do Elã), Ec-
bátana (capital da Média) e Persépolis (capital do Irã). Depois da conquista
do Império Babilônico, o rei também passava um tempo em Babel ou
Babilônia.

Foi Judá um distrito dependente da província persa da Samaria?


Segundo uma tendência na pesquisa bíblica, Judá teria sido um dis­
trito dependente da província de Samaria. Segundo essa hipótese, mais
tarde, sob Neemias, Judá teria se tornado província persa autônoma den­
tro da satrapiaTranseufrates.
No entanto, outra corrente na pesquisa bíblica defende a tese de
que Judá foi uma província persa autônoma desde o começo da domina­
ção daquele império. Descobertas arqueológicas recentes em Masfa dão
conta de que havia governadores de Judá naquela cidade antes de Neemias.
Nesse sentido, os persas teriam mantido a cidade de Masfa, no território
de Benjamim, como a capital daprovíncia de Judá, tal como haviam feito
os babilônios na época do exílio, desde o governador Godolias e do
profeta Jeremias. Veja2Rs 25,22-23; Jr 40-41! Como já vimos, Masfa fora
também um lugar importante na época tribal. Lá os israelitas se reuniam
em assembleia (Jz 20,1; ISm 7,5; 10,17).

80
Embora a cidade de Masfa seja citada como distrito em Ne 3,15.19,
t c provável que também tenha sido a capital da província até que Neemias
restaurasse as muralhas de Jerusalém a partir de 445 a.C. A partir daquele
mt >mento, o centro administrativo terá sido transferido para o monte Sião.
Ne 1,3 e 5,14-15 dão a entender que Judá já era uma província antes
mesmo que Neemias viesse da Pérsia. Confira!
Por que, então, entre outros, o governador da Samaria, Sanabalat, o
amonita Tobias e o árabe Gosem se opuseram tanto à restauração e à
transferência da capital da província parajerusalém? Por que ficaram furi­
osos e proferiam insultos contra Neemias (Ne 3,33)? Por que ficaram
contrariados e ameaçaram a continuidade das obras com ataques (4,1-2)?
Por que faziam guerra psicológica, acusações e subornos (6,lss)? Mais do
que perder o controle sobre um distrito, certamente sua oposição ao pro­
jeto de Neemias se deve ao fato de esses homens influentes das províncias
da redondeza terem muita ingerência no comércio praticado em tomo do
templo de Jerusalém. Tomando Jerusalém a capital da província de Judá e
tomando medidas de fortificação do templo e da cidade santa, Neemias
afastava esses estrangeiros de Sião. Consequentemente, eles perderiam seus
lucros (Ne 13,4-9). Até os sacerdotes haviam contraído parentesco com o
governador da Samaria (Ne 13,28) e de Amon (Ne 13,4).
Nesse sentido, é mais provável a hipótese de que Judá foi província
persa autônoma da Samaria desde o começo. Se Judá tivesse sido um
distrito dependente da província persa da Samaria, não seria mais lógico
que somente o governador Sanabalat oferecesse resistência à restauração
dejerusalém?

A cobrança de tributos em moeda


Os persas cobravam o tributo somente em moedas, principalmen­
te de prata. Nisso eles também inovaram.
Mas como os camponeses pagariam os impostos sem ter moedas?
Precisam, então, produzir um bom excedente agrícola para vendê-lo e
conseguir moedas. Aqui entra o importante papel desempenhado pelo
templo. Ele era o principal mediador nesse processo de remessa de di­
nheiro para o exterior. O campesinato pagava os impostos com produtos

81
agropecuários que eram entregues ao templo. Os nobres tinham o contro­
le sobre esse fluxo de mercadorias e de moedas. O templo passou a exer­
cer a função de casa de câmbio, e centro comercial. Isso lhe oportunizou
a acumulação de riquezas e poder. Somente entendendo a importância do
templo na arrecadação de impostos pelos persas, é possível entender a razão
por que investiram tão alto em sua reconstrução e manutenção dos sacnfícios
diários (2Cr 36,23; Esd 6,3-10). Também não é por acaso que homens influ­
entes nas províncias persas vizinhas de Judá, como Sanabalat, Tobias e Go-
sem, também quisessem enriquecer a partir desse mercado lucrativo.
Mas os templos não eram os únicos lugares de arrecadação de im­
postos. Os persas também cobravam taxas em estradas, nas alfândegas e
portos. Ali se vistoriavam as caravanas comerciais, a fim de cobrar as taxas
correspondentes a cada mercadoria.

O que representa para nosso país a remessa de divisas para


os países ricos? Será que a grave crise social não é fruto em grande
parte do pagamento da Dívida Externa?

As primeiras décadas de reconstrução


(538-445 a.C.)

555-530 a.C.: Ciro, rei dos persas. Em 555 a.C., liberta a Pérsia da
dominação dos medos. Em 549 a.C., passa a dominar os me­
dos. Em 547 a.C., conquista a Lídia.
539 a.C.: Ciro conquista a Babilônia. Devolve aos povos subjugados
pelos babilônios os ídolos que Nabucodonosor havia levado
para a Babilônia (Esd 5,14). Restabelece o culto a Marduc.
538 a.C.: Ciro decreta o retorno dos exilados, sob a liderança de
Sasabassar (Esd 1,1-11), e o altar do templo é reconstruído no
mesmo ano (Esd 3,2-3). Os fundamentos do segundo tem­
plo são lançados no ano seguinte (Esd 3,8; 5,16).

82
530-522 a.C.: Rei Cambises. Em 525 a.C., conquista o Egito.
522-486 a.C.: Rei Dano I.
520-515 a.C.: Reconstrução do templo sob a direção do governador
Z orobabele do Sumo-sacerdote Josué (Esd 4,24-6,18). Ativida­
de dos profetas Ageu, Zacarias 1-8 e 3° Isaías (56-66).
515 a.C.: Inauguração do segundo templo (Esd 6,19-22).
486-464 a.C.: Rei Xerxes I. No Livro de Ester e na tradução que
Almeida fez de Esd 4,6, Xerxes é chamado de Assuero.
Em torno de 465 a.C.: O Livro de Malaquias.

Em 538 a.C., Ciro emitiu um decreto, permitindo o retorno aos


judeus deportados, realizando seu sonho de regresso ajerusalém . Não
deixe de ler Esd 1,1-11!
Ao longo das décadas seguintes, boa parte dos expatriados voltou.
Muita gente, porém, preferiu não voltar, uma vez que já havia lançado
raízes na Babilônia, onde formaria um importante centro do Judaísmo
nos séculos seguintes.

A situação do povo
Leia Zc 7,9-10 e perceba como o exercício da justiça (“julgamento
verdadeiro”) deixava a desejar. Faltava amor e compaixão para com os
irmãos. Além disso, os pobres, os estrangeiros, os órfãos e as viúvas eram
oprimidos.
Em Is 58,6-10, texto da mesma época, você pode ler que havia
injustiças e opressão sobre os mais fracos. Havia pessoas sem pão para
comer, sem casa para morar e sem roupa para vestir.
A situação de injustiça era muito grande. O 3o Isaías reivindica inú­
meras vezes o cumprimento da justiça e do direito. Se insiste tanto, é por­
que ela estava sendo desrespeitada. Confira, pelo menos, algumas das cita­
ções a seguir: Is 56,1; 58,2.8; 59,14-17; 60,17; 61,3.10.11.
Essa era a situação da maioria do campesinato. São as pessoas que não
foram deportadas e continuavam vivendo pobremente nas terras de Judá.
Entre elas estavam os levitas que, desde tempos antigos, mantinham vivo o
ideal de uma sociedade igualitária e fraterna como na época das tribos.

83
Quem eram os que praticavam a injustiça nos tribunais e a opressão
sobre os pobres? E possível que tenham sido camponeses mais abastados
dentre os remanescentes. É mais provável, porém, que essa tenha sido a
prática de judeus mais ricos que voltaram da Babilônia. Certamente são
eles os primeiros destinatários das críticas feitas por Isaías.

Características da época pós-exílica


Para podermos perceber bem as diferenças em relação aos perío­
dos pré-exílico e exílico, elencamos as características próprias do povo
judeu no pós-exílio:
• Judá, isto é, Jerusalém e seus arredores, não era mais um estado
autônomo como na época pré-exílica.
• Os judeus não passavam de um pequeno povo perdido em meio
a um império multicultural.
• Apesar de terem uma lei própria e que podiam seguir, os judeus
tinham que se submeter às leis ditadas por um rei estrangeiro, a
quem pagavam pesados tributos.
• Além dessa relação de submissão das aldeias para com o império
via pagamento de impostos, outra forma de manter essa situação
foi a aliança entre a elite sacerdotal de Jerusalém e os reis persas.
• Além de não ter um exército próprio, o povo judeu tem que
conviver com a ocupação de um exército imperialista.
• Seu destino não está mais em suas mãos. Depende do gosto de
um soberano estrangeiro.
• A esperança de independência política num futuro próximo ter­
minou na medida em que foi fracassada essa tentativa de Zoro­
babel e Ageu, como veremos. Contudo, a esperança na vinda de
um messias davídico permaneceu. Porém, ficou para um futuro
mais distante.

84
1 O projeto dos repatriados em torno
do templo
E u m e volto p a ra Jeru sa lém com amor.
A. m in ha casa será ali recon stru íd a —oráculo de
YH W H dos ex ércitos. ” (Zc 1,16)

Sasabassar e a reconstrução do altar


Em 538 a.C., a primeira caravana retomou à sua pátria, chegando
às ruínas de Jerusalém. A liderança da caravana coube a Sasabassar que foi
nomeado príncipe e governador de Judá por Ciro (Esd 1,8; 5,14). Ciro o
encarregou de levar objetos preciosos e os tesouros do templo que Nabu-
codonosor roubara (Esd 1,6-7.9-11).
Ao chegar a Jerusalém, o grupo de repatriados terá tido uma gran­
de decepção, pois tudo continuava em ruínas. Uma de suas primeiras tare­
fas foi a reconstrução do altar de sacrifícios (Esd 3,2-3). A tarefa de re­
construção do templo coube, anos mais tarde, a Zorobabel e Josué a
partir de 520 a.C., uma vez que Sasabassar não conseguiu ir muito além da
reconstrução do altar e do lançamento dos fundamentos do segundo tem­
plo. Confira Esd 3,6-13 e 5,14-16!

Resistência dos “samaritanos” ao projeto dos repatriados


As obras do templo certamente não foram adiante por causa da
resistência dos camponeses que ainda moravam nas terras de Judá, bem
como dos samaritanos, amonitas e moabitas que haviam se misturado
com os remanescentes durante o exílio. Confira Esd 3,3 e todo o capítulo 4!
Os capítulos 4 e 6 de Esdras se referem à reação especialmente dos
samaritanos contra a reconstrução do templo.
De forma geral, para os Livros de Esdras e Neemias, os samarita­
nos são os israelitas pertencentes às tribos do Norte. Depois da destruição
do Reino de Israel em 722 a.C. pelos assírios, os israelitas se misturaram
com outros povos (2Rs 17,24-40). Na ótica dos judaítas e especialmente
dos repatriados, os samaritanos haviam se “contaminado” com outros

85
povos e outras religiões, embora cultuassem também a YHWH. Segundo
os Livros de Esdras e Neemias, “samaritanos” são todos aqueles que não
foram para o exílio! Mesmo os que moravam em Judá!
Os repatriados consideram apenas as tribos de Judá e Benjamim,
isto é, o antigo Reino de Judá, como o verdadeiro Israel. E mais especifi­
camente, os repatriados se consideram o verdadeiro povo de Deus. As
demais tribos eram seus inimigos. Sua história foi silenciada, excluída. Leia
novamente Esd 1,5; 4,1; 10,9; Ne 11,4!
Para não se “contamina­
"Gostaríam os de colaborar rem” com os samaritanos, os re­
na construção, pois honramos patriados rejeitaram sua oferta de
o vosso Deus do mesmo modo ajuda na reconstrução do templo
como vós mesmos e lhe (Esd 4,1-5). Com isso, aumenta­
oferecemos sacrifícios..." ram ainda mais as antigas diver­
(Esd 4,2) gências. Em torno de 430 a.C., a
ruptura foi total. Anos mais tarde,
possivelmente em torno de 400 a.C., os samaritanos construíram um tem­
plo de YHWH no monte G ariam , para servir de centro religioso à provín­
cia da Samaria.
O monte Garizim fica em frente à cidade de Siquém, que tem uma
tradição importante desde a época tribal. Foi em Siquém, por exemplo,
que Josué, o substituto de Moisés, promoveu a última assembleiadas tri­
bos israelitas antes de morrer (Js 24). O Deuteronômio autoriza a constru­
ção de um altar no monte Ebal, que fica bem defronte ao monte Garizim
(Dt 27,4-7). O Deuteronômio afirma também que Garizim é o monte da
bênção (Dt 11,29). Como Dt 12,2-12 estabelece um único lugar de culto
a YHWH, os samaritanos viram nesses textos uma sólida justificativa para
construir um santuário para YHWH em seu território. Estavam simples­
mente cumprindo a Lei de Moisés, estabelecendo o culto no lugar por ele
indicado. Imagine agora a forma como isso foi recebido pela comunida­
de cultuai de Jerusalém. Os ânimos se exaltaram ainda mais. Em 128 a.C.,
João Hircano, descendente dos Macabeus, destruiu o templo de YFIWH
construído pelos samaritanos no monte Garizim.
No pós-exílio, o nome “Israel” não era mais uma referência à orga­
nização tribal. Nem era uma alusão à época do reinado unido sob Davi e

86
Salomão. Muito menos se referia ao Reino do Norte, que também já não
existia mais. “Israel” passou a ser a comunidade judaica que se reunia no
templo de Jerusalém, tendo uma identidade comum (Esd 2,2.70). Deve-
se incluir nessa comunidade cultuai, os deportados da Babilônia (Esd 7,13).
Dessa forma, excluíam especialmente os israelitas pertencentes às tribos
do Norte, também chamados de samaritanos, ou os judeus que não fo­
ram expatriados, chamados pejorativamente de “povo da terra”.

O “povo da terra” no pós-exílio


Nos textos que leu, você pôde perceber que, a partir do exílio,
“povo da terra” não se refere mais aos setores latifundiários da época da
monarquia, como já vimos nas páginas 73 e 74 do volume anterior. Nos
Livros de Esdras e Neemias, “povo da terra” ou “povos da terra” é uma
referência não só aos pobres do campo que não haviam sido deportados,
mas também aos povos estrangeiros misturados com eles. Na Bíblia Sa­
grada - Edição Pastoral, a expressão “povo da terra” foi traduzido por
“população local”. Confira Esd 3,3; 4,4; 9,1-2; 10,2.11; Ne 10,31-32!
Mais tarde, “povo da terra” passou a ser também quem não co­
nhecia a lei judaica e, por essa razão, também não a cumpria. Eram des­
prezados pelos fiéis cumpridores da lei. E ao povo da terra, por exemplo,
que se refere Jo 7,49. Veja ainda Mt 5,5 e compare com o Sl 37,11!
Os camponeses pobres tinham um projeto diferente daquele de­
fendido pelos sacerdotes repatriados. Seu grito de resistência continua eco­
ando ainda hoje nos ditos do 3o Isaías (56-66), bem como nos Livros de
Rute, Jonas e jó , como ainda veremos.

Um conflito inevitável
O campesinato remanescente de Judá e os repatriados entraram
em conflito por razões óbvias. Ao voltarem da Babilônia, os descendentes
dos antigos deportados se achavam no direito de retomar a herança de
seus pais e que os babilônios haviam distribuído aos camponeses empo­
brecidos. O conflito foi inevitável. E, pois, natural que os pobres da terra
se opusessem aos interesses dos repatriados. Muitos repatriados certamente
compraram as terras de camponeses pobres.

87
Em 1990, conflito semelhante ocorreu na Nicarágua quando, com
o apoio do império do norte, foi derrotado o projeto dos sandinistas.
Muitos latifundiários, que haviam fugido para os Estados Unidos, vol­
taram e, com o apoio do projeto vitorioso, retom aram seus lati­
fúndios. Dessa forma, acabaram com muitas experiências de trabalho
coletivo de camponeses em forma de cooperativas.
Outro bom exemplo é a pressão da colônia cubana em Miami,
pressionando o governo americano para derrubar Fidel. Muitos cuba­
nos exilados são funcionários da administração Bush.

Zorobabel/Josué/Ageu/Zacarias
e a reconstrução do templo
Como os “povos da terra” se opuseram à reconstrução do templo,
Sasabassar não conseguiu levar adiante o projeto de reconstruí-lo. Essa
tarefa coube a Zorobabel e Josué anos mais tarde.
Pouco antes de 520 a.C., outra caravana importante foi organizada
por Zorobabel e Josué, quando Dario já era rei dos persas.
7.orobabelfoi o líder civil que iniciou a reconstrução do templo, que
durou de 520 a 515 a.C. Era neto do rei Jeconias (lC r 3,16-19). Jeconias,
também chamado de Joaquin (2Rs 24,6), havia sido deportado juntamen­
te com Ezequiel para a Babilônia em 597 a.C. (2Rs 24,15). Portanto, Zoro­
babel era da linhagem de Davi. Seu retorno da Babilônia, deverá ter des­
pertado nos judeus mais nacionalistas uma forte esperança de restauração
da monarquia davídica. Ainda mais que ele veio como alto comissário do
rei Dario, por quem fora nomeado governador (Esd 6,7; Ag 1,1). Como
veremos adiante, especialmente o profeta Ageu apoiou a tentativa de luta
pela independência.
Josué foi o líder religioso durante a construção do segundo templo.
Era o sumo sacerdote (Ag 1,1.12). Segundo lC r 5,27-41, Josué era filho
de Josedec (Esd 3,2) da tribo de Levi, que fora deportado por Nabuco-
donosor (lC r 5,41). Sabemos, porém, que, desde o tempo de Salomão,
os sacerdotes que controlavam o templo eram descendentes de Sadoc.
Por isso, Josué certamente era sadoquitae não levita. Eram os sacerdotes
da linhagem de Sadoc que tinham o comando no santuário de Jerusalém.
Não deixe de ler Ez 40,46; 44,15-16 e 48,11! Adiante voltaremos a falar
do sacerdócio no templo do monte Sião.
O retorno do sumo sacerdote Josué foi mais uma razão para au­
mentar a esperança na reconstrução de um estado davídico independente
da Pérsia em torno do templo.
Zorobabel e Josué voltavam a Jerusalém, a fim de continuar as
obras de reconstrução do templo que Sasabassar iniciara, mas logo tivera
que interromper por causa da resistência dos remanescentes como você já
leu em Esd 4. Nessa tarefa, tiveram o apoio dos profetas A geu e Zacarias.
Não deixe de ler Esd 5,1-6,13!
O profeta Ageu e o governador Zorobabel estão presentes no iní­
cio das obras, mas desaparecem no decorrer da construção do 2° templo,
como ainda veremos. O sumo sacerdote Josué e o profeta Zacarias, po­
rém, continuam a missão de reerguer o santuário em ruínas. E por essa
razão que se faz necessário analisar juntos Zorobabel e Ageu, de um lado,
e, de outro, Zacarias e Josué.

O projeto de Ageu e Zorobabel:


libertar Judá da dominação persa
Para bem entendermos a posição do profeta A geu ( “Aquele que
nasce em dia de festa”), precisamos ter presente que o Império Persa
viveu uma grande instabilidade intcrn.i após a morte do rei Cambises, que
não deixou filhos. Foram dois anos (522-521) de lutas internas pela suces­
são, até que Dario se firmasse no trono (Zc 1,11).
Ag 2,22 também se refere a essa luta, ao falar que “cavalos e cavalei­
ros cairão pela espada do companheiro”. Foi nesse contexto de crise insti­
tucional que, em 520 a.C., Ageu viu uma possibilidade para os judeus con­
quistarem sua independência frente à opressão persa. O templo seria o
espaço de reorganização do povo para a conquista da liberdade. E preci­
so, pois, que situemos Ageu na transição de Cambises para Dario, a fim de
bem compreendê-lo.
Acompanhe em sua Bíblia as citações do Livro de Ageu!

89
O profeta motiva Zorobabel, Josué e o povo, especialmente os mais
ricos (Ag 1,4), para que reconstruam o templo de YHWH (Ag 1,1-2.8; 2,5).
São fundamentalmente duas as razões usadas por Ageu para con­
vencer seus compatriotas.
• A primeira foi a seca (1,6). Como praticamente todos os seus
conterrâneos, Ageu também pensava na lógica da teologia da re­
tribuição. De acordo com essa teologia, a seca era castigo de Deus
pelo fato de o templo ainda se encontrar em ruínas (Ag 1,9-11.
Leia ainda 2,15-19!).
• Ageu foi buscar a segunda motivação nas tradições do Exodo.
Partindo da experiência que Moisés fizera do Deus que “está
junto”, nosso profeta encorajou as lideranças e a comunidade
(Ag 1,13; 2,4-5).

Numa situação de instabilidade no império, Ageu tinha clareza quanto


ao objetivo que buscava, ao reorganizar o povo a partir do templo. Pro­
cure perceber no texto que o profeta tinha em vista a retenção do tributo
(riquezas, ouro e prata) no templo, pois é a YHWH que ele pertence e não
ao império opressor (2,7-9).
"N aquele dia, tomarei Zorobabel, Mas Ageu foi além da
filho de Salatiel, meu servo, e mera suspensão do p aga­
farei de ti um selo. Porque foi m ento dos tributos. Ele
a ti que escolhi - oráculo de propôs também que, uma
YHWH, Deus dos exércitos. " vez vencido o poder m ili­
(Ag 2,23) tar dos persas (2,22), em
Ju d á seria restaurada a di­
nastia davídica livre de im périos, representada por Zorobabel, des­
cendente de Davi, (2,23).
Uma vez livre da tributação, o templo, como espaço de reorganiza­
ção da comunidade judaica repatriada, deveria ser sinal da presença de
YHWH (1,13; 2,4-5), doador da paz (2,9) e da bênção (2,19).
E certo que Ageu não propunha a instauração de uma sociedade
nos moldes tribais. Porém, deu um grande passo ao propor a libertação
do jugo persa para os repatriados.
Chama a atenção que, por ocasião da inauguração do templo, Ageu
e Zorobabel não sejam mencionados. Por quê? E provável que tenham
90
sido afastados por Dario por causa de sua pretensão de, em torno do
templo reconstruído, restaurar o trono de Davi, de modo que seu descen­
dente Zorobabel remasse sobre um estado independente da dominação
persa.
Com o afastamento de Zorobabel, a possibilidade de um descen­
dente de Davi restaurar a dinastia davídica ficou descartada. O poder
político continuou nas mãos dos persas. E o poder religioso dos sacerdo­
tes do templo tornou-se o único espaço de poder possível para os judeus.
A elite sacerdotal, no entanto, estava aliada aos persas.

Como vimos, o templo tinha uma importância significativa. Por


que e para quem ele era tão importante? Que interesses atendia? Qual
é a importância do templo para as comunidades de nossos dias?

Livro do profeta Ageu


O ano de atuação do profeta foi 520 a.C.
O local de atuação foijerusalém.
Os autores finais de Ageu devem ser levitas do templo, durante sua
restauração.
Seu objetivo é animar a comunidade judaica para que reconstrua o
templo. Ele deve ser o espaço em torno do qual a comunidade se organi­
za para restaurar o trono de Davi, independente da opressão persa.
O Livro de Ageu, na verdade, não passa de um panfleto. São ape­
nas 2 capítulos e 38 versículos. Propomos que você leia agora todo o
livreto, seguindo a seguinte estrutura literária.
1. O chamado para reconstruir o templo: 1,1-15.
2. A presença gloriosa de YHWH no novo templo: 2,1-9.
3. Haverá novamente fartura: 2,10-19.
4. Esperança de libertação da dominação do império: 2,20-23.

91
O projeto de Josué e Zacarias:
o templo sob o controle dos sacerdotes
Imediatamente após o afastamento do profeta Ageu, entra em ação
o profeta Zacarias (“YHWH se recordou’’), que terá atuado pelo menos até
515 a.C., quando o templo foi inaugurado. Sua profecia está em Zc 1-8.
Zc 9-14 são acréscimos posteriores, comoveremos no próximo volume
desta série.
A base social de Zacarias, tal como a de Ageu, são os repatriados
(Zc 6,15; 8,6-7).
Afastados Zorobabel e Ageu, o sumo sacerdote Josué recebeu o
apoio do profeta Zacarias para continuar as obras do templo, que foi
inaugurado em 515 a.C. Leia Esd 6,15-22!
Z acarias é crítico ao pro jeto da m onarquia p ré-ex ílica, pois
vê o exílio com o castigo pelo mal praticado pela dinastia davídica.
L eia Zc 1,12!
O grupo de Zacarias tem um projeto, cujas raízes remontam à con­
vivência ideal da época das tribos. O primeiro passo é derrotar todos os
impérios poderosos (Zc 2,1-4). O
"Jerusalém deverá ficar segundo, é o afastam ento de toda
sem muros, por causa a m aldade e in ju stiça para m uito
da multidão de homens e longe (Zc 5,5-11). Mas isso não será
animais em seu interior." pelo poder das armas, mas pelo poder
(Zc 2,8) do espírito de YHWH (Zc 4,6).
Seu projeto considera Jerusalém
e o templo como centrais. Diferentemente do projeto de Neemias anos
mais tarde, a capital deve ser uma cidade aberta, sem muros, como as
aldeias dos clãs em Israel tribal.YHWH mesmo será sua proteção (Zc 2,8-9).
O templo serásímbolo da realeza e do poder de YHWH. O poder dos
reis já não terá força. A maldade, exercida naquele momento pelo Impé­
rio Persa, será eliminada (Zc 5,1-4.5-11) e o povo viverá em tranqüilidade
sob suas videiras e figueiras como no tempo das tribos, sem que ninguém
o inquiete (Zc 3,9-10; 8,12).
O monte Sião, a “aldeia” de Jerusalém e o templo continuam sen­
do o ponto central em torno do qual o povo se reorganiza. Para os repa-

92
Iriados Sião é o centro do mundo aberto para todos os povos (Zc 1,16;
2,14-17; 6,15; 8,3.23). Jerusalém será chamada “Cidade Fiel” e Sião, “Mon­
tanha Santa” (Zc 8,3). As pessoas idosas e as crianças têm participação
especial nessa nova comunidade. Contarão suas histórias na praça da al­
deia e ali brincarão em segurança (Zc 8,4-5).
Fa2 parte de seu projeto um jejum que vai além das aparências,
concretizando-se na prática do restabelecimento da justiça, da misericór­
dia, da compaixão e da defesa dos direitos das viúvas, dos órfãos, dos
estrangeiros e dos pobres (Zc 7,9-10; 8,16-17). Segundo Zacarias, essa
deveria ser a conduta que fundamenta a reconstrução da comunidade ju­
daica em torno do templo.
A esperança de conquistar a in­ "Eis que vou m andar
dependência dos persas, como preten­ vir um meu servo,
diam Ageu e Zorobabel, agora é situada um meu germ e/rebento."
no futuro. A esperança na vinda do mes­ (Zc 3,8)
sias davídico continuava em aberto, po­
rém, não para breve. Será um descendente de Davi e Zorobabel (Zc 6,12.14).
Esse projeto de Zacarias e Josué permanecia como ideal, enquanto
na prática as coisas eram diferentes. E o que veremos adiante nas denúncias do
3o Isaías. O poder dos sacerdotes em aliança com o império jamais seria
capaz de fazer do templo um instrumento de paz e de justiça para o povo.
O império não permitiria que esse projeto se concretizasse. Por isso, co-
optou a elite sacerdotal em seu favor e em detrimento do povo.
Antes de continuar sua leitura neste volume, leia Zc 6,9-15!
E interessante notar que não é o descendente de Davi que é coroa­
do, mas o sumo sacerdote Josué (v. 11). Ele é quem sentará no trono (v.
13). A coroa será depositada no templo (v 14), até o dia em que se realize
a esperança messiânica e o rebento apareça (v 12). A partir desse momen­
to, se confirma o poder político nas mãos dos persas e o poder religioso
em Judá nas mãos dos sacerdotes. Na prática, porém, os sacerdotes tam­
bém eram os representantes do poder imperial. Na verdade, fingem uma
certa independência, já que, como veremos com Neemias, o poder era
exercido pelo governador nomeado pelo rei persa. Neemias tem mais
poder que o sumo sacerdote! Zc 3,1-10 deve ser lido nessa mesma pers­
pectiva. Confira!

93
Esse poder do sacerdócio, que controla o culto oficial, é possível
porque os sacerdotes fazem uma aliança estratégica com o Império Persa.
Assim, mantêm seu poder, garantem uma série de privilégios para si e
criam um consenso na comunidade judaica para aceitar de forma resigna­
da a submissão ao império. Não deixe de ler as críticas que o 3oIsaías, que
representa a oposição a esse projeto, faz aos “pastores”, isto é, aos sacer­
dotes, em Is 56,9-57,13!
No pós-exílio, aos poucos, são também os sacerdotes em torno
do templo que vão assumindo o papel que antes era da profecia. Cada
vez menos, o movimento profético exerce a função de ser o intermediá­
rio entre Deus e o povo. A mediação oficial entre YHWH e a comunida­
de fica cada vez mais sob o controle do templo, dos sacerdotes e da lei.
Isso não quer dizer que a profecia tenha acabado. Ela se expressa de ou­
tras formas. A resistência popular está registrada nos oráculos de profetas
anônimos, como o 3o Isaías (56-66), Malaquias, Joel e Zc 9-14. Ou ainda
em literatura sapiencial como Jó, Cântico dos Cânticos, Rute e Jonas. É
por aí que passa a profecia em defesa da vida do povo no pós-exílio.

O Livro de Zacarias 1-8


Os capítulos do Livro de Zacarias que se referem à atuação do
profeta Zacarias são 1-8. Zc 9-14 são oráculos acrescentados posterior­
mente, durante a época de dominação grega, como veremos no próximo
volume.
A data de atuação do profeta é de 520 a 515 a.C.
O h c a lde atuação foi Jerusalém.
Os autoresfinais de Zc 1-8 devem ser levitas do templo restaurado.
Seu objetuo é apresentar um resumo sobre a vida e as esperanças da
comunidade judaica. Como Ageu, também a comunidade de Zacarias
esperava que Zorobabel restaurasse o trono de Davi. Mas esse sonho não
se realizou. Embora viva em torno do templo, sua esperança é na vinda
futura de um messias davídico, que Zacarias chama de “germe” (Zc 3,8;
6,12). Além disso, Zacarias faz um apelo à conversão (1,1-6). Nesse senti­
do, Zacarias é fiel discípulo de Ezequiel, cujo projeto tenta concretizar.
Adotamos a seguinte estrutura literária para Zc 1-8:
1. A volta de YHWH e dos cativos para reconstruir Jerusalém: caps. 1-2.

94
2. A esperança de restauração do povo está nos líderes civil e religio­
so: cap. 3-4.
3. A libertação do roubo, das injustiças e de toda a maldade com a
força do Espírito e o poder dos sacerdotes no templo: caps. 5-6.
4. A prática do amor e da misericórdia para se ter vida nova: cap. 7.
5. Volta de YHWH para Jerusalém e seu projeto de vida para os
judeus: cap. 8.
Quanto ao conteúdo das visões do profeta, podemos assim resumi-lo:
1. Os cavalos coloridos: castigo para as nações que oprimem e
bênção parajerusalém (1,8-16).
2. Os quatro chifres e os quatro ferreiros: derrota dos impérios
(2,1-4).
3. O homem do cordel: YHWH protege Jerusalém (2,5-9).
4. O candelabro de ouro, as sete lâmpadas e as duas oliveiras:
exaltação do governador Zorobabel e do sumo sacerdote
Josué (4,1-10).
5. O livro que voa: justiça social (5,1-4).
6. A mulher do alqueire: eliminação do mal (5,5-11).
7. Os quatro carros: julgamento dos opressores e retorno dos de­
portados (6,1-8).

Para você continuar a reflexão


Em Zc 8,1-23 há 10 promessas que sempre começam com a expres­
são “Assim diz YHWH dos exércitos”, a) Em que consiste cada uma das
promessas de Zc 8? b) Comente a promessa que mais lhe chamou a atenção!

O sacerdócio e o templo
Os sacerdotes do Io templo na época do reinado
Não poderíamos concluir este capítulo sem antes refletir sobre a
função dos sacerdotes do Io e do 2° templo, bem como sobre o significa­
do do santuário.
Para entendermos a situação dos sacerdotes sadoquitas e levitas no
2° templo, é necessário que antes lembremos seu papel no Io templo.

95
Como já vimos nos volumes anteriores, nas origens de Israel, não
havia uma única família destacada para exercer a função do sacerdócio.
Várias pessoas ofereciam sacrifícios e não eram sacerdotes, como Noé
(Gn 8,20), Abraão (Gn 12,7-8), Isaac (Gn 26,25), Jacó (Gn 33,20; 35,1),
Gedeão (Jz 6,24) e Samuel (ISm 7,17). Nas origens de Israel, portanto, o
sacerdócio não era exercido por especialistas.
Os primeiros sacerdotes em Israel de quem temos informações são
Jônatas, neto de Moisés (Jz 18,30), Eli de Silo (ISm 1,3) e Aquimelec de
Nob (ISm 21,2-10). Eles eram encarregados dos santuários nas aldeias e
também davam respostas a pedidos feitos pelo povo (ISm 23,7-13; 30,6-
10). Normalmente o sacerdócio num santuário era hereditário. Porém, isso
não quer dizer que os sacerdotes de todos os santuários fossem de uma
mesma família ou tribo. Provavelmente eram de origens diversas. Com o
crescimento da influência de certos santuários, aos poucos, foram surgindo
rivalidades entre os sacerdotes de diferentes santuários. Contudo, a maioria
das famílias sacerdotais terão sido levitas, grupo ao qual pertencia Moisés.
Eram eles que preservavam a memória das antigas tradições do Exodo e
garantiam os serviços nos santuários da maioria das aldeias e tribos.
Somente durante o reinado é que se impuseram algumas famílias de
sacerdotes. Quando Davi reinou somente sobre Judá a partir de Hebron,
ele promoveu a família de Abiatar, que o protegera por ocasião da perse­
guição que sofreu por parte de Saul. Quando, porém, conquistou dos
jebuseus a cidade de Jerusalém para fazer dela a capital de seu império,
promoveu também a família sacerdotal jebusita de Sadoc. Sobre a origem
e os projetos que os sacerdotes Abiatar e Sadoc representavam você já leu
nas páginas 41 e 42 do volume 3. Caso não lem­
brar mais, seria bom reler.
"Depois o r e i...
estabeleceu o Na conflitiva transição do reinado de Davi
sacerdote Sadoc para o de Salomão, houve também um conflito
como substituto entre sacerdotes. Foi, na verdade, um conflito en­
de Abiatar." tre projetos. Abiatar, de origem levita, apoiou
(1 Rs 2,35) Adornas, o legítimo herdeiro do trono. Porém Sa­
doc, de provável origem jebusita, apoiou as am­
bições de Salomão ao trono de seu pai. Por isso, o monarca Salomão
recompensou a Sadoc, dando-lhe o controle do templo, por um lado, e,

96
por outro, castigou a Abiatar, destituindo-o de suas funções e confinando-
o em Anatot (lR s 2,26-27). Dessa forma, Salomão erradicava completa­
mente de Jerusalém e de Judá a ideologia de uma sociedade igualitária, da
qual os sacerdotes levitas eram portadores.
A partir daí, os sacerdotes sadoquitas sempre mantiveram o mono­
pólio sobre o Io templo, desde sua construção no tempo de Salomão até
sua ruína em 586 a.C. Enquanto isso, os levitas eram os encarregados dos
santuários do interior.
Quando as tribos do Norte se libertaram da opressão que Salomão
exercia sobre elas, Jeroboão, o primeiro monarca do Reino de Israel, esta­
beleceu novas famílias sacerdotais nos santuários de Dã e Betei, como
podemos ler em lR s 12,31. Entre elas, certamente restabeleceu o sacerdó­
cio levita, marginalizado por Salomão. No Reino do Norte, os levitas
exerceram um papel importante como portadores da memória do Êxo­
do e de YHWH, o Deus libertador. Eles estão por trás do movimento
profético e também do núcleo do Livro do Deuteronômio, cuja origem é
do Reino de Israel, como já vimos.
Ainda antes do exílio, por ocasião da reforma do rei Josias no
Reino de Judá (622 a.C.), os sacerdotes de origem levita tiveram seus san­
tuários destruídos a mando do rei. Aqueles que não queriam deixar de
exercer o sacerdócio tiveram que se transferir parajerusalém e exercer
funções secundárias no templo (2Rs 23,8-9).

Os sacerdotes do 2o templo no período pós-exílico


A partir da reforma de Josias e especialmente durante o exílio, au­
mentou a tensão entre sacerdotes sadoquitas e levitas. E o que fica claro na
defesa que Ezequiel faz dos sacerdotes da linhagem de Sadoc como os
únicos sacerdotes legítimos, como você já leu em Ez 40,46; 44,9-31 e
48,9-12. Ezequiel, que era sacerdote sadoquita, chega a proibir aos levitas
o exercício de funções no altar e no templo, reduzindo-os a cumprirem
funções menores como porteiros, carregadores de lenha, cantores e segu-
ranças nas dependências do santuário. Até podiam abater os animais. Po­
rém jamais poderiam ofertá-los sobre o altar. Ezequiel reivindicou esse
privilégio para sua classe sacerdotal, os sadoquitas.

97
Por um lado, esse conflito certamente se acentuou porque os sado-
quitas, controladores de todas as atividades do Io templo, não foram ca­
pazes de impedir a ruína do Reino de Judá e a catástrofe do exílio. E ainda
mais. Foram acusados de também serem causadores de tamanha calamida­
de, colocando o santuário a serviço da legitimação do reinado opressor.
Por outro lado, os sacerdotes levitas aproveitaram a situação do exílio
para exigir seu reconhecimento, sua legitimidade. Tal como a profecia, há
muito vinham avisando que os rumos da monarquia e da teologia oficial dos
sacerdotes sadoquitas a partir do templo estavam equivocados. O que previ-
am aconteceu. E isso deu autoridade aos sacerdotes descendentes de Levi.
Como é resolvido esse conflito entre as duas linhagens de sacerdo­
tes que se firmaram no decorrer da história? Quem tem as credenciais
com legitimidade para exercer o sacerdócio no 2otemplo? A resposta não
é tão simples, mas tudo indica que houve uma tentativa de harmonizar as
duas linhas principais de sacerdotes no pós-exílio. Houve uma aliança en­
tre sadoquitas e levitas. Ne 13,29 pode ser uma crítica ao rompimento
dessa aliança. Veja também Malaquias 2,4-9!

Nessa perspectiva, é preci­


"A sala com a fachada voltada
para o norte pertence aos so interpretar a influência dos sa-
sacerdotes que cuidam do doquitas na elaboração de genea­
serviço do altar. Estes são os logias artificiais que chegam a tor­
descendentes de Sadoc, os nar Sadoc e Levi parentes entre si
quais estão mais próximos de (lC r 5,27-43). Ambos passaram
YHWH para servi-lo do que a fazer parte da genealogia de Aa-
os demais levitas. " rão. De forma inusitada, a família
(Ez 40,46) sacerdotal jebusita de Sadoc, a
grande rival da família sacerdotal
do levita Abiatar dos tempos de Salomão, se tornou parente de Levi e de
Aarão (lC r 5,34). Assim já aparece em Ez 44,15.
Essa tentativa pós-exílica de transferir para Aarão o monopólio do
sacerdócio é uma forma de tentar pacificar o conflito entre levitas e sado-
quitas. Os dois grupos sacerdotais selaram uma aliança que foi unilateral-
mente rompida pelos sadoquitas. Foi uma aliança estabelecida sobre con­
dições desiguais. E como sempre, a corda rompeu no lado mais fraco.

98
Por isso, essa harmonização foi uma forma para manter os sado­
quitas no poder também no 2° templo. De fato, a família de Sadoc man­
teve o cargo de sumo sacerdote por sucessão hereditária até Onias III em
175 a.C., como ainda veremos no próximo volume. Enquanto isso, os
levitas continuavam servindo como auxiliares dos sadoquitas, da mesma
forma como antes do exílio.
Os textos que se referem a Aarão como sacerdote (Ex 29,1-37; Lv
8-10; 17,1-8; Nm 20,22-29) são todos pós-exílicos. As tradições mais an­
tigas a seu respeito o apresentam não como sacerdote, mas como alguém
da tribo de Levi e ajudante de Moisés na libertação dos hebreus da casa da
escravidão. Veja, por exemplo, Ex 5,1; 7,8-9; 16,2; 17,8-17; 24,14!
Nesse sentido, o sacerdócio atribuído artificialmente a Aarão é uma
releitura pós-exílica e quer legitimar também os sadoquitas. Por serem des­
cendentes do suposto sacerdote Aarão, os descendentes de Sadoc teriam
credenciais legítimas para continuarem com o monopólio também sobre
o 2° templo.
Seguindo essa mesma lógica, os sacerdotes sadoquitas que volta­
ram do cativeiro babilônico foram incluídos artificialmente na genealogia
de Aarão. Veja, por exemplo, o caso do sumo sacerdote Josué que atuou
na reconstrução do templo (Esd 5,2; Ag 1,1). Segundo a genealogia dos
levitas em lC r 5,27-41, Josedec, o pai de Josué, era da tribo de Levi e
descendente de Aarão. Na mesma linha, fizeram do sacerdote e doutor da
lei Esdras um descendente de Aarão (Esd 7,1-5).
Lembramos novamente que, no pós-exílio, os sacerdotes do tem­
plo também passaram a ser os principais mediadores entre Deus e o povo,
substituindo o papel que cabia à profecia nos períodos anteriores.

A importância do sumo sacerdote no pós-exílio


A partir daépocapersa, o sumo sacerdote tornou-se a pessoa mais
importante e com mais poder na comunidade judaica. O poder político,
econômico e militar estava nas mãos dos imperadores persas. Restava aos
judeus o controle do poder religioso.
E quem controlava o templo no pós-exílio? Era o sumo sacerdote.
Ele era o chefe do cultq e de tudo o que acontecia no santuário e, conse­
quentemente, na vida do povo. Porém, para representar os interesses do

99
rei nas províncias, os persas nomeavam governadores. Assim foi, por exem­
plo, com Zorobabel e com Neemias. Possivelmente, o governador se fa­
zia assessorar por um conselho de anciãos, composto de sacerdotes e
leigos (Esd 7,25; Ne 13,11).

Templo: um santuário também a serviço da política persa


Em Esd 6,2-5, temos possivelmente o decreto original de Ciro.
Nele é decretada a reconstrução do templo com dinheiro do Império
Persa. Essa política de apoio à religião dos povos dominados fazia parte
da estratégia de dominação dos persas, como já vimos acima. Além de
financiar a reconstrução do templo, Ciro também decretou o fornecimen­
to de tudo o que era necessário para oferecer os sacrifícios diários no
altar. Em troca, pedia que se rezasse a YHW H pelo im perador e seus
filhos. D essa forma, mais um a vez o tem plo foi transform ado em
santuário estatal, isto é, servia aos interesses do estado persa. Leia no­
vamente Esd 6,8-10!

Por que tanta importância para o templo?


Uma razão para tanta importância do 2° templo é o fato de o
Império Persa também ter interesse na reconstrução do templo e no for­
talecimento de Judá, como já vimos. Quem financia uma obra dessa gran­
diosidade, certamente não o faz de graça, mas porque tem interesses em
jogo.
Segundo, porque o Io templo era central na tradição dos judaítas
durante a monarquia, de modo especial para os moradores de Jerusalém.
Para as elites da capital que foram deportadas por Nabucodonosor, o
templo continuou sendo o centro de suas preocupações. Basta olhar para
a ênfase dada ao santuário no projeto de Ezequiel (Ez 40-48), como vi­
mos no volume anterior. Veja ainda em Ex 25-27 outro esboço do tem­
plo feito pelos sacerdotes no pós-exílio!
Os que retornam do cativeiro da Babilônia, chamados também de
“Golá” (deportação, dispersão), trazem em sua bagagem o projeto de
Ezequiel. Pertencem à mesma tradição que considera o templo como a
morada escolhida por YHWH para habitar no meio de seu povo.

100
Há ainda um terceiro elemento que precisamos levar em conta. No
pós-exílio, não há mais outro ponto de referência visível que desse identi­
dade política aos judeus. Não há mais palácio, nem rei com todo seu
aparato e seu poder. Agora, o templo era o único elemento que dava
identidade principalmente aos repatriados. Por isso, era importante para
eles reforçá-lo como símbolo da realeza de YHWH, em oposição aos
reinos opressores deste mundo. O templo seria o ponto de partida para a
reconstrução da comunidade judaica em torno da lei.
A casa de YHW H era um lugar santo, consagrado (Esd 9,8).
E interessante que a santidade é estendida a toda cidade de Je ru sa­
lém (Ne 11,1.18). E mais. Também os repatriados são povo santo e con­
sagrado a YHWH (Esd 8,28; 9,2).

O sistema do templo legitima a exclusão


E louvável essa preocupação em buscar a santidade, vivendo de
acordo com a vontade de Deus, a tal ponto de ser santo como Ele (Lv
19,2). Na prática, porém, a excessiva preocupação pela santidade e pela
pureza criou todo um sistema no Judaísmo oficial que classificava as pes­
soas de acordo com seu grau de pureza. A lei da pureza determinava
quem estava mais próximo de Deus e quem estava mais distante. Ela
criou, na verdade, uma estrutura de exclusão.
O símbolo maior dessa estrutura era o templo de Jerusalém. Sua
disposição e a dos pátios em torno do prédio legitimavam, em nome de
Deus, a diferença entre as pessoas.
O prédio do templo tinha dois compartimentos: o Santo dos San­
tos e o Santo. No primeiro, somente o sumo sacerdote podia entrar no
dia da Festa da Expiação (Lv 16). No segundo, podiam entrar também os
sacerdotes encarregados dos serviços do culto.
Em torno do templo, havia vários pátios. O pátio mais próximo ao
templo, onde ficava o altar dos sacrifícios, somente podia ser freqüentado
por sacerdotes. Depois vinha o pátio dos homens israelitas acima de 12
anos. Somente então vinha o pátio das mulheres israelitas com suas crian­
ças. Por último, vinha o pátio onde também os estrangeiros tinham acesso.
Esse pátio funcionava como um verdadeiro mercado público. Seria desse
pátio que Jesus mais tarde expulsaria os cambistas e os vendedores de

101
102
I

animais para os sacrifícios no altar do templo. Cada um desses comparti­


mentos do tempo e do pátio determinava o grau de pureza, isto é, de
proximidade maior ou menor de Deus.
Essa terá sido uma das razões por que a maioria dos profetas e
também Jesus condenaram tanto o templo, anunciando, inclusive, sua des­
truição. Para a profecia e para Jesus, o fim desse símbolo religioso de
exclusão representava a inauguração de relações de inclusão, de acolhida,
de dignificação das pessoas, fossem elas estrangeiras, mulheres, crianças,
idosos, pessoas com alguma deficiência, etc.
Confira, no quadro a seguir, a estrutura do templo de Jerusalém no
tempo de Jesus. Como não se conhece nenhum dado sobre a estrutura do
2o templo, o mapa abaixo se refere ao novo santuário construído por
Herodes em 19 a 10 a.C. As suas decorações, no entanto, somente foram
concluídas em 64 d.C., 6 anos antes de os romanos incendiarem e destru­
írem o templo.

Função da teologia da retribuição


Concluímos o estudo sobre o projeto dos judeus repatriados, re­
fletindo um pouco sobre a teologia da retribuição.
Um dos eixos centrais da teologia oficial passou a ser a teologia da
retribuição. A visão de um Deus justiceiro já existia antes do exílio, inclusi­
ve desde o tempo de Davi (2Sm 7). Essa teologia era uma característica
forte da Obra H istoriográfica Deuteronom ística, como já vimos. Leia
agora Dt 7,9-16 e perceba como se acreditava num Deus que retribuía
com castigo ou com bênção! Você já leu, mas confirm e a presença
dessa teologia nos escritos deuteronom istas, relendo por exem plo Jz
3,7-14! A teologia da retribuição, portanto, deriva da com preensão
teológica deuteronomista.
De acordo com essa teologia, para os cumpridores da lei, Deus revela
sua justiça, abençoando com riqueza, vida longa, saúde, descendência e honra.
Para os que não cumprem sua lei, pensava-se que Deus retribui com pobreza,
morte prematura, doença, esterilidade e desonra. Até se chegou a formular
um provérbio popular com base nessa teologia (Pr 15,6).
No pós-exílio essa teologia foi reforçada. Os repatriados tinham
interesse nela. Ela lhes convinha. A grande maioria do campesinato, que

103
eles encontraram em Judá ao voltar da Babilônia, vivia pobremente. Na
lógica da teologia da retribuição, eram, portanto, amaldiçoados por Deus.
A exigência do pagamento de dízimos ao templo seguia a mesma
lógica. Leia, por exemplo, o que está escrito
"N a casa do justo em Ml 3,8-11. A teologia da retribuição, por­
há abundância, tanto, legitimava a cobrança de dízimos e ga­
mas os lucros do rantia os privilégios dos sacerdotes e funcioná­
ímpio dissipam -se." rios do templo de Jerusalém.
(Pr 15,6) Mas nem todos concordavam com essa
visão de um Deus justiceiro que castiga os
ímpios ou abençoa os justos, defendida pela teologia oficial do templo. A
vida cotidiana negava essa realidade. Veja, por exemplo, Ml 3,15; Sl 73,1-
12! Ao contrário do que afirmava o Pr 15,6, os ímpios prosperavam,
enquanto os justos viviam na pobreza e na doença. Algo não estava certo.
E houve quem se libertasse dessa teologia e fizesse uma outra expe­
riência de Deus, protestando de forma indignada contra os representantes
da teologia oficial. E, por exemplo, o que diz o Livro de Jó a respeito da
pobreza. Ela é conseqüência da opressão e não do castigo de Deus (Jó
24,1-12). Mais adiante, estudaremos o Livro de Jó.
Aqui ainda mereceria ser feita uma reflexão sobre a observância
rigorosa da lei de pureza étnica e da lei do puro e do impuro, bem como
sobre as suas conseqüências na vida do povo, especialmente das mulheres.
Mas deixaremos isso para mais adiante, quando falarmos das reformas de
Esdras e Neemias.

Como ainda hoje se manifesta na mentalidade do povo a teolo­


gia da retribuição? Lembre exemplos! Como mudar essa compreen­
são de Deus?

104
I

2 O projeto dos remanescentes


“ 0 E spírito de YH W H D eus repou sa sobre mim,
p o rq u e ele m e ungiu. E nviou-m e p a ra leva r um a boa-nova
aos p o b r e s e p ro cla m a r aos oprim idos a lib erta çã o.” (Is 61,1)

Isaías 56-66

Quando atuou o grupo do 3o Isaías?


Já vimos no volume anterior que, nas origens do Livro de Isaías,
existiu um casal de profetas no século 8 a.C. Boa parte dos capítulos 1-39
são fruto de sua atividade profética. Vimos também que Is 40-55 é fruto
de discípulos de Isaías que profetizaram nas últimas décadas do exílio
entre os deportados na Babilônia. Fizeram também releituras em Is 1-39.
N este vo lum e, dam os co n tinuidade ao estudo do Livro de
Isaías. Is 56-66 é profecia da época pós-exílica. Ela polemiza fortemente
com o projeto do templo ligado aos sacrifícios, à pureza do sacerdócio e
à pureza étnica, bem como a uma piedade vivida apenas nas aparências.
Por isso, podemos situar os oráculos dessa profecia anônima durante e
logo após à reconstrução do templo, isto é, entre 520-500 a.C.

Qual a base social do 3° Isaías?


A base social que está por trás do 3o Isaías é a mesma que sustentou
o projeto do governador Godolias e do profeta Jeremias que já estuda­
mos. São os setores do campesinato remanescente empobrecido. Para eles
não interessava o templo, nem a reconstrução de Jerusalém. Viviam a so­
lidariedade na perspectiva das tribos da época pré-m onárquica. Não
havia necessidade de templo, de sacerdócio oficial e de rei. O projeto
de retribalização dos pobres da terra é o chão de onde nasceu a pro­
fecia do 3o Isaías.
Quando o 3o Isaías se refere a Jerusalém, apresenta-a como cidade
de todos os povos. Da mesma forma como Zacarias, o 3o Isaías sonha
com uma aldeia aberta (Is 60,10-11. Compare com Zc 2,8!). Não será

105
mais chamada “Cidade de Davi” (2Sm 5,7.9; 6,10). Porém, na mesma
perspectiva de Ezequiel (Ez 48,35), será chamada “Cidade de YHWH” (Is
60,14). Ele será seu rei e não um descendente de Davi. A “paz” e a “justiça”
serão as autoridades estabelecidas por YHWH em Jerusalém (Is 60,17b).

Ainda hoje, a paz e a justiça continuam sendo bandeiras centrais


na luta por uma nova ordem mundial. O império, que tem a águia
como símbolo de seu poder, gasta mais de 50% de seu orçamento na
indústria bélica. Diante disso, a luta pela paz não só ajuda a evitar
guerras e salvar vidas, mas contribui efetivamente na derrocada dos
senhores do mundo que se enriquecem promovendo guerras.

O 3° Isaías é profecia de resistência e de esperança


O projeto do templo em aliança com o Império Persa não era
aceito por todos. Havia resistência entre os grupos mais empobrecidos.
Hoje, podemos ainda escutar sua voz que continua ecoando em Is 56-66.
O 3oIsaías, mais do que ser de muitas críticas, é profecia propositiva. Tem
propostas alternativas diante do que estava acontecendo. O grupo do 3o
Isaías tem grandes sonhos. Acredita que outro mundo é possível.
Por trás de Is 56-66 está um forte movimento profético que tinha a
compreensão de que sua profecia era animada pelo espírito de YHWH.
Sua missão era anunciar um “evangelho”, uma “boa-nova” de libertação
para os pobres. Leia 61,1-2! Conforme o evangelista Lucas, Jesus assumiu
o mesmo projeto desse movimento profético popular (Lc 4,16-19).

O projeto do 3° Isaías
Para entender suas críticas e seu projeto, é fundamental analisá-los
em oposição à prática dos sacerdotes em torno do templo. Leia as cita­
ções de Isaías indicadas nos itens abaixo sobre os “estrangeiros e eunu-
cos”, os “pobres”, o “direito universal ao sacerdócio”, “YHWH como
pai e mãe”, o “jejum autêntico” e o “novo céu e a nova terra”!

106
Estrangeiros e eunucos também são filhos
e filhas de Deus (56,1-8).
Diante da exclusão dos estrangeiros e dos pobres da terra pelo pro­
jeto do templo, o grupo do 3° Isaías propõe a sua inclusão. Na medida
em que aderem ao plano de YHWH, terão até lugar no templo, “casa de
oração para todos os povos”. Repare os detalhes: “casa de oração” e
“para todos os povos”, em contraste com os excessivos sacrifícios ofere­
cidos no altar do templo, somente para judeus considerados puros. Veja
ainda Is 60,10-11; 61,5; 66,18-20!
E o grupo de Isaías vai além. Discordando de Dt 23,2, anuncia
inclusive que os eunucos fiéis à aliança são “mais valiosos que filhos e filhas”.
Is 56,1-8, portanto, polemiza com teologia dapureza étnica defendida pelos
sacerdotes, que elaboraram longas listas genealógicas para poder provar sua
pertença à comunidade judaica (lC r 1-9; Esd 2,lss; Ne 7,4-72; 11,1-12,26).

Os pobres são lugar privilegiado da morada


de YHWH (57,15; 66,1-2).
Embora admita também o templo como lugar da presença de Deus
(56,7; 60,13), o movimento de resistência do 3o Isaías é radical na sua
crítica ao templo e à tentativa de reduzir a presença de YHWH ao santuá­
rio de Jerusalém (Esd 6,5.12.16). O 3° Isaías defende um templo aberto ao
povo, em uma cidade aberta que nunca deverá trancar suas portas (Ts 60,11).
Na experiência de Deus feita pelos pobres da terra, YHWH mora
no céu (Is 58,4b; 63,15.19b; 66,1) e na terra (66,1), especialmente em meio
aos pobres (57,15; 66,2). As referências à presença de YHWH entre os
pobres resgatam a memória do Deus do Êxodo, ajudando os grupos
excluídos a renovarem sua fé na presença solidária de YHWH em seu
meio. Na linguagem de Mt 27,51, o 3oIsaías “rasga o véu do santuário”, liber­
tando o Deus aprisionado e manipulado pela teologia oficial do templo.
Leia e medite o Sl 113!

O direito ao sacerdócio é de todos (56,9-12; 61,6; 66,21).


Como já vimos, somente os sacerdotes da linhagem de Sadoc ti­
nham acesso ao templo e à oferta de sacrifícios no altar. A tarefa dos

107
levitas era servir de auxiliares dos sacerdotes (Nm 3,5-10). Diante desse
privilégio exclusivo, o 3oIsaías reage, denunciando a corrupção dos sacer­
dotes/pastores (56,9-12) e ampliando o direito ao sacerdócio para todo o
povo (61,6), inclusive para estrangeiros (66,20-21).

YHWH é mãe e pai que consola suas filhas e filhos


(63,7.15-16; 64,7,66,13)
Embora ainda pense nas categorias da teologia da retribuição (63,10),
o 3o Isaías defende a fé no Deus libertador, que é pai misericordioso e
defensor dos pobres. Merece destaque a experiência de Deus como mu­
lher e mãe que consola seus filhos e suas filhas, e como esposa que ensaia
relações novas. Isso revela que as mulheres devem ter tido forte presença
nesse movimento profético de resistência contra o projeto do templo.

O jejum autêntico (58,1-12).


Textos da mesma época e imediatamente posteriores àquele perío­
do fazem referência à prática do jejum, especialmente como sinal de peni­
tência e arrependimento (Zc 7,3.5; 8,19; Esd 8,21-23; Ne 1,4; 9,1;J1 1,14;
2,15ss;Jn 3,5-8). Isso significa que a prática do jejum era comum.
O 3o Isaías critica os ritos vazios do templo, acompanhados por
uma piedade aparente, apenas externa, sem estar acompanhada da prática
da justiça e do direito (Is 58,2.3b-4). Na sua teologia, esses ritos não são
apreciados por YHWH (v. 5).
Em que consiste, então, o jejum agradável a Deus? Leia agora os w 6-12
e faça um levantamento das práticas de “jejum” apreciadas por YHWH!
Nesse ponto, a proposta do 3o Isaías é semelhante à de Zc 7,9-10.
Compare Is 58,1-12 com Mt 6,16-19 e 25,31-46 e perceba o quan­
to Jesus assumiu da profecia dos pobres da terra, portadores daboa-nova
do 3oIsaías.
Leia ainda o Sl 50 e reflita sobre ele. Compare-o com Is 58,1-12.

O novo céu e a nova terra (Is 65,17-25).


Diante das autoridades do templo que transformaram o santuário
de YHWH em um lugar de muito lucro para si (Is 57,11b) e que se aco-

108
modaram às exigências do Império Persa sem se importar com o sofri­
mento dos pobres, o 3oIsaías propõe um novo pro
jeto. Sua proposta parece utópica. Porém, sabemos "Eu quero ver,
que tudo o que existe foi um dia sonhado. Sonhar, eu quero ver
portanto, é preciso. E o 3o Isaías sonha bem alto. acontecer
Is 56-66 ajuda o povo sofrido a levantar no­ o sonho bom,
sonho de muitos
vamente a cabeça, a olhar para um novo “horizon­
acontecer."
te” e caminhar ao seu encalço. O 3o Isaías chega a
(Zé Vicente)
informar detalhes de seu projeto de sociedade, de
um novo céu e uma nova terra. Descubra as caracte­
rísticas do sonho desse movimento de resistência contra o projeto dos
persas e dos sacerdotes do templo! Perceba que no texto não se fala em
templo, em sacerdotes e nem em rei.

Estrutura do Livro do 3o Isaías


Para melhor compreender a estrutura temática dessas profecias anô­
nimas, propomos a divisão abaixo. O esquema mostra a centralidade do
capítulo 61, onde o ungido de YHWH anuncia a libertação. Os demais
capítulos vão formando círculos concêntricos a partir de Is 61 até as duas
extremidades (56,1-8 e 66,7-24). Repare que, nos textos que se correspon­
dem, também seu conteúdo central se correlaciona.

56,1-8............. 66,7-24 YHWH é Deus de todos os povos


56,9-57,13 66,1-6 Denúncia dos sacerdotes perversos
57,14-21 65,17-25 Anúncio de um novo futuro
58.1-1 4 .... 65,1-16 Denúncia do culto corrupto
59.1-15a.... 63,7-64,11 Lamentação e confissão da maldade
59,15b-20 .. 63,1-6 Manifestação de Deus que julga e salva
60 . 62 Esplendor de Jerusalém, de Sião
61 A boa-nova do ungido de YHWH

O projeto dos repatriados se impôs


O projeto dos remanescentes que encontramos no 3o Isaías não foi
suficientemente forte para se impor em Judá no pós-exílio. Na verdade, o
projeto dos repatriados foi vitorioso, porque as condições históricas no

109
contexto da estratégia de dominação persa assim o permitiram. Para eles,
o templo tornou-se o símbolo maior e o centro de seu projeto. Anos mais
tarde, porém, com a vinda de Esdras da Babilônia, a importância do
santuário foi suplantada pela centralidade da Lei de Moisés, como ele­
mento fundamental de preservação da identidade cultural e religiosa dos
judeus, como veremos adiante.

Para você continuar a reflexão


Leia atentamente Is 61 e reflita! a) De onde vem a força que nos
envia para anunciar a boa-nova? b) Em que consiste o anúncio dessa
boa-nova (w. 1-3)? c) Quais são as características do projeto restaura­
do (vv. 4-11)?

3 O Livro de Malaquias
“M as p a ra vós que tem eis o seu nom e,
brilh a rá o s o l da ju s t i ç a .” (Ml 3,20 —Almeida = 4,2)

O autor desse livro é anônimo. Embora estejamos acostumados a


falar do profeta, chamando-lhe pelo nome, Malaquias é uma palavra que
simplesmente quer dizer “Meu mensageiro é YHWH” e deve ter sua ori­
gem em Ml 3,1, onde aparece a expressão “meu mensageiro”.
O Livro de Malaquias é um escrito ambíguo, pois não representa
apenas uma única tendência. Há, porém, propostas diferentes no mesmo
texto. Isso revela que esse escrito é fruto de mais correntes, de grupos
distintos, vinculados ao culto. Nele aparecem misturadas tradições popu­
lares em meio à tradição oficial. Isso é sinal de que havia, entre os levitas
do templo, resistência contra o desleixo dos sacerdotes em relação ao
culto, de um lado, e, de outro, a defesa dos mais pobres.
As críticas aos abusos dos sacerdotes, responsáveis pelo culto, su­
põem que se vive um momento de desilusão e indiferença diante da ex­
pectativa de mudança criada por Ageu e Zacarias, por ocasião da recons­
trução do templo. Diante da decepção da comunidade judaica repatriada,

110
Malaquias anuncia a certeza de que as promessas continuam em pé e que
irão se concretizar.

A defesa do culto oficial e a defesa dos pobres


Por um lado, a teologia dessa profecia teve forte influência dos
repatriados bem como dos grupos que estão por trás de Lamentações.
Nota-se também a influência do Deuteronômio. Há evidências no livro
que revelam essa teologia.
• Presença da teologia da retribuição (2,17-3,5.13-21).
• Atenção ao templo com sacerdócio e culto oficiais, pois defende
o culto controlado pelos sacerdotes sadoquitas e o pagamento de
dízimos (3,6-12).
• A defesa da lei do puro e do impuro, pois critica o sacrifício de
animais defeituosos (1,6-2,9).
• A defesa da pureza étnica, pois critica os casamentos mistos (2,10-16).
Por outro lado, a teologia dos autores de Malaquias também foi
popular, promovendo a solidariedade e a defesa dos empobrecidos, dos
órfãos, das viúvas e dos estrangeiros (Ml 3,4-5). Mais uma vez, o Deutero­
nômio terá influenciado esses teólogos. Compare Ml 3,5 com Dt 10,18;
24,17-21!

O Livro de Malaquias
A época de atuação do profeta foi em torno de 465 a.C. A situação
que está por trás das suas denúncias reflete a apatia da comunidade repa­
triada em relação ao culto, aos sacrifícios, à observância da lei e à justiça
social. Esta realidade nos leva a situar a atuação de Malaquias nos anos
anteriores às reformas de Neemias e Esdras, que foram realizadas apartir
de 445 a.C.
O k cal de atuação foi Jerusalém.
Os autores de Malaquias certamente são sacerdotes levitas que atua­
vam no culto do templo.
Seu objetivo principal é denunciar a apatia da comunidade judaica,
especialmente os responsáveis pelo culto. A fé em YHWH que devia ser
um fator de identidade da comunidade, é somente um culto formalista.

111
YHWH, que ama seu povo, exige uma nova prática na observância da lei,
do culto e da justiça para com os mais pobres.
O Livro de Malaquias é composto por seis unidades literárias bem
definidas. A conclusão é composta por acréscimos posteriores.
1. 1,1-5: YHWH ama a Israel em contraste com os edomitas. A
destruição de Edom é uma provável referência aos ataques que os árabes
fizeram contra os edomitas alguns anos antes.
2 .1,6-2,9: YHWH detesta os animais impuros oferecidos no altar
pelos sacerdotes (1,6-2,3). Dessa forma, eles traem a “aliança com Levi”.
Leia Nm 25,12s e compare com Ml 2,4-9 e perceba como YHWT-I orde­
na que os sacerdotes sejam fiéis à sua aliança!
3. 2,10-16: YHWH censura os judeus repatriados por se divorcia­
rem de suas esposas para casar com mulheres estrangeiras.
4. 2,17-3,5: YHWH promete enviar o seu mensageiro da aliança
(3,1). Sua missão é purificar os sacerdotes levitas infiéis (3,2-4). Depois
julgará os que oprimem os pobres (3,5).
5. 3,6-12: YHWH condena todos os que retêm os dízimos e as
contribuições para o sustento do culto e dos sacerdotes e levitas (3,8-10).
A seca e a praga dos gafanhotos são consideradas conseqüências dessa
retenção (3,10-11).
6. 3,13-21 (Almeida = 3,13-4,3): YHWH promete que virá para
castigar os injustos enquanto os justos brilharão como o sol.
A conclusão contém dois acréscimos. O primeiro lembra ao povo
praticar a Lei de Moisés (3,22 - Almeida = 4,4). O segundo adapta a
promessa da vinda do mensageiro de 3,1 para a época da edição final do
livro (3,23-24 —Almeida = 4,5-6).

Para você continuar a reflexão


Leia novamente Ml 1,6-2,9 e 2,17-3,5! Compare os dois textos e
reflita: a) Diante do que você leu em 1,6-2,9, o que significa purificar os
levitas (3,3)? b) Em que consiste o julgamento de Deus (3,5)?

112
Consolidação do projeto do templo
(445-332 a.C.)
“S om os escra vos em n ossa p ró p ria terra...
S eus p ro d u to s enriquecem os reis... que dom inam
arbitrariam en te sobre n ossos corp os e n ossos rebanhos...
Sim , gra n d e é a desgraça em que n os encontram os. ” (Ne 9,36-37)

464-424 a.C.: Rei Artaxerxes I.


445-433 a.C.: Primeira missão de N eemias (Ne 3-6). Restauração das
muralhas e promoção de reformas. Oposição dos nobres das
províncias da região (Ne 2,19; 4,1; 61): Sanabalat (Samaria),To-
bias (Amon) e Gosem (Arábia).
Entre 430 e 425 a.C.: Segunda missão de Neemias (Ne 13,6-7).
423-404 a.C.: Rei Dario II.
404-359 a.C.: Rei Artaxerxes II. Em 400 a.C., o Egito se liberta dos
persas.
Em torno de 400 a.C.: Livros de K ute,Jó, Cântico dos Cânticos, Jonas e do
profeta Joel.
398 a.C.: Missão de Esdras.
359-338 a.C.: Rei Artaxerxes III. Em 342 a.C., reconquista do Egito
que permanecerá sob o império até 332 a.C., quando os persas
são conquistados por Alexandre Magno.
Em tomo de 350 a.C.: Compilação final do Pentateuco, dos Provérbios,
da Obra Historiográjica Cronista (OHC = lC r, 2Cr, Esd, Ne) e
dos Salmos.
Nessa mesma época, os samaritanos erguem um templo de YHWH no
monte Garizim (2Mc 6,2;Jo 4,20). Em 128 a.C., o templo foi
destruído por João Hircano.
338-336 a.C.: Rei Arses.
336-331 a.C.: Rei Dario III.
336-323 a.C.: O macedônio Alexandre Magno conquista a Asia Menor
e a Síria (333 a.C.), Tiro, Gaza e o Egito (332 a.C.), a Pérsia
(331 a.C.) e a índia (330-326 a.C.).

113
A realidade do povo na época de Esdras e Neemias (455-425 a.C.)
Você já leu. Mas gostaríamos
"A lavoura nova dos pobres que olhasse novamente com calma
abunda em alimento, os textos abaixo, procurando desco­
mas este lhes é arrancado brir agrave crise vivida pela m aio­
quando não há justiça." ria da população na segunda m e­
(Pr 13,23) tade do século 5 a.C., isto é, nos
dias de Neemias e Esdras. Veja a si­
tuação de fome, de escravidão dos diaristas e pequenos proprietários de
terra. Procure descobrir as causas externas e internas da escravidão e da
miséria do povo, bem como os responsáveis pela situação.
Somente tendo bem presente essa dura realidade é que poderemos
compreender melhor não só as reformas de Esdras e Neemias, como
também a literatura de resistência popular daquela época, como, por exem­
plo, Rute, Jonas e Jó.
Qual era a situação do povo e da província de Judá descrita nos
textos a seguir?
Esd 9,9 Ne 1,3; 5,1-5 Ne 9,36-37
Jó 24,1-12 Jó 30,2-8 Rt 1,1; 2,2.

Projeto de Neemias e Esdras


Desde o início da reconstrução do templo, mais de 70 anos já se
passaram. O projeto de Zacarias e Josué então iniciado foi continuado e
consolidado por Neemias e Esdras.
Poucos anos antes de Neemias, houve instabilidade no centro do
império. O rei Xerxes (486-464 a.C.) foi assassinado. Para garantir o trono,
seu filho Artaxerxes I (464-424 a.C.) teve de eliminar seus irmãos. Portan­
to, em meados do século 5 a.C., o Império Persa passava por um período
de turbulência política.
Em 465, o sátrapa do Egito aproveitou essa instabilidade para re-
belar-se contra o poder central. Chegou a expulsar do Egito os coletores
de impostos persas. Nessa tentativa de libertação do jugo persa, o Egito
teve o apoio do exército grego de Atenas. Somente em 455 a.C., o Egito

114
foi novamente subjugado pelo poder imperial. Por isso, era de interesse
dos persas fortificar Jerusalém, para que pudesse servir de fortaleza militar
em caso de novas tentativas de libertação. Era estratégico ter um forte
militar na região para barrar qualquer ameaça não só dos egípcios mas
especialmente dos gregos que já representavam, naqueles anos, um perigo
aos persas. E interessante notar que Jerusalém passou a ser a única cidade
fortificada na Palestina no período persa. O projeto de reconstrução das
muralhas de Jerusalém deve ser compreendido dentro desse contexto.
A proposta inicial parece ter nascido em Judá (Ne 1,2-3). Neemias
assumiu a tarefa de conseguir o apoio junto ao rei. Também a ele interes­
sava uma fortaleza na Palestina. Por isso, o projeto foi facilmente autoriza­
do e, inclusive, patrocinado pelo império. As missões de Neemias e Es­
dras, portanto, fazem parte de uma política mais ampla dos persas. A
indicação de Neemias, pessoa de confiança do rei, para a reconstrução de
Jerusalém, teve motivações políticas. Considerando-se as recentes rebeliões
havidas, era importante ter na região um súdito leal ao rei. E Neemias era
esse homem.

Neemias e a reconstrução de Jerusalém (Ne 1-7)

Neemias, uma pessoa de confiança do rei


Neemias (“YHWH consola/conforta”) foi nomeado governador
de Judá pelo rei persa Artaxerxes em 445 a.C. (Ne 5,14). Era o copeiro do
rei em Susa, capital do império naquele momento (Ne 1,1.11). Segundo
Ne 2,1, a principal tarefa do copeiro do rei era encher a taça do rei e
provar previamente a bebida, a fim de evitar um possível envenenamento
do soberano. Era, portanto, pessoa de absoluta confiança do imperador.
Diferentemente de Zorobabel e Ageu, a missão de Neemias não visava a
libertação do jugo persa. Na verdade, garantia a continuidade do envio de
tributos para os senhores do mundo naquela época. A missão de Neemi­
as, portanto, andava de mãos dadas com o império. Embora atenda, como
veremos, algumas reivindicações populares e dos levitas, repreendendo a
elite de Judá, é inegável que Neemias tenha boas relações com os persas.

115
A primeira missão de Neemias (445-433 a.C.)
Tudo indica que Neemias esteve duas vezes na província de Judá.
Na primeira vez, sua tarefa principal foi reconstruir e repovoar Jerusalém
a fim de transferir para o monte Sião a capital da província de Judá e, a
partir dela, reorganizar o culto e a vida da comunidade em torno do
templo na cidade santa. Acima, já discutimos se Judá foi dependente da
província de Samaria ou se foi uma província diretamente vinculada desde
o começo ao Império Persa.
Podemos resumir a missão de Neemias em sua primeira viagem a
Jerusalém nos pontos a seguir. Não deixe de ler as referências bíblicas!
1. 'Reconstruir as muralhas da cidade (2,8; 6,15; 12,27-43). Uma cidade
fortificada trazia mais estabilidade, segurança e atrativos para a nova capi­
tal, diante das dificuldades que enfrentava. Há quase um século antes, Zo­
robabel e Josué já haviam reconstruído o templo, símbolo mais im­
portante para os judeus. Com a reconstrução das muralhas de Jerusalém,
Neemias recuperava mais um símbolo para a identidade da comunidade
judaica.
Neemias sofreu a resistência de vários grupos contra seu projeto de
reconstrução das muralhas:
• Dos nobres das províncias vizinhas (Esd 4,6-24; Ne 3,33-4,8;
6,lss).
• Dos nobres de Judá, vinculados ao samaritano Sanabalat e ao
amonita Tobias, por meio de casamentos, contratos comercias e outros
interesses (Ne 6,17-19; 13,4-9.28).
• Dos nobres de Técoa, ao sul de Jerusalém (Ne 3,5).
Mas nenhum desses grupos conseguiu impedir seu projeto, que ti­
nha o apoio do império, inclusive com uma escolta militar providenciada
pelo rei persa (Ne 2,9).
Quem reconstruiu as muralhas? Provavelmente, Neemias recrutou
trabalhadores diaristas, escravos, pequenos proprietários de terra e arte­
sãos. E possível que a miséria e a insatisfação dos pobres da terra, que
analisaremos no próximo item, tenha chegado a uma situação insustentá­
vel justamente por causa desse recrutamento para as obras na muralha.

116
II

2. Reorganizar asfamílias (7,7-72) e repoioara ddade ainda pouco habitada


(7,4-5; 11,1-12,26). Todas essas medidas de reorganização administrativa e
religiosa da cidade de Jerusalém provavelmente tinham em vista a transferên­
cia da capital da província de Judá para a cidade santa, uma vez que provavel­
mente Masfa parece ter sido a capital anterior, como já vimos acima.
3. Garantir o sustento do pessoal responsámlpeh culto, isto é, os sacerdotes
sadoquitas, os sacerdotes levitas, os cantores e os porteiros do templo (Ne
12,44-47). E bom lembrar aqui que, embora Ne 10,33-34 diga que a co­
munidade judaica sustentava também o serviço diário do culto (os pães
sagrados, os animais para os sacrifícios, o alimento para os animais, etc.),
segundo Esd 7,15-18, porém, o sustento diário do culto era feito pelos
persas.

Os pobres da terra exigem mudanças


Quando comandava a reconstrução de Jerusalém, Neemias teve
que enfrentar protestos. Enquanto levantava
muralhas de pedra, corpos vivos e famintos "Então houve um
de sem-terra e de pequenos proprietários en­ protesto do povo,
dividados e escravizados tomavam conta das sobretudo as
ruas de Jerusalém. A ocupação das ruas foi mulheres, contra
uma forma de pressão para exigir das autori­ seus irmãos judeus."
dades providências urgentes. E para que as rei­ (Ne 5,1)
vindicações não prejudicassem seu projeto de
erguer pedra sobre pedra, Neemias se viu forçado a fazer reformas sociais
para resgatar os mínimos direitos de pessoas.
Há pouco, você leu o clamor dos pobres da terra em Ne 5,1-5. Seu
grito não foi em vão. Eles conseguiram que Neemias atendesse suas rei­
vindicações e promovesse uma reforma social, para resolver os graves
problemas provocados pela pobreza. Não deixe de ler Ne 5,6-13!
Essas medidas não faziam parte do projeto original de Neemias.
Sua reforma é fruto do clamor dos pobres (5,1). Não é uma iniciativa do
governador. E conseqüência da organização de mulheres e homens em­
pobrecidos por causa da opressão interna e externa que sofriam. Será que
Neemias teria tomado tal decisão por sua própria iniciativa? Ne 5,6 sugere

117
que a indignação do governador foi somente despertada pela ocupação
das ruas por quem não tinha mais como sobreviver na roça.

E hoje não é parecido? Quantas


autoridades somente atendem
reivindicações populares depois
de muita luta, inclusive somente
quando começam a tombar vítimas
só porque exigem mais dignidade?

Como Neemias atende o clamor popular? Leia novamente 5,10-12! A


exigência vai muito além de simplesmente “perdoar as dívidas” contraídas.
Os mais pobres já nem têm mais os seus campos, seus parreirais, seus olivais
e suas casas. Por isso, exigem que Neemias ordene aos nobres a “devolução
dos seus meios de produção” para sua sobrevivência. A “libertação de quem
já havia sido escravizado” está implícita nas medidas tomadas. Contra os inte­
resses dos nobres, Neemias apóia as reivindicações dos pobres da terra. Ele
mesmo perdoa os empréstimos que fizera (v 10). Como estratégia de pres­
são, convoca uma assembleia popular para exigir dos nobres a solidariedade e
o temor de Deus. Com essas medidas, Neemias certamente ganhou o apoio
dos pobres ao seu projeto de reconstrução de Jerusalém.
Sabemos, é verdade, que a reforma de Neemias, não alterou a es­
trutura de opressão. Nesse sentido, a volta a uma certa estabilidade social
garantia a continuidade da reconstrução de Jerusalém, da exploração dos
pobres em Judá e do próprio sistema imperial. Alivia a situação do povo
para não desestabilizar toda a estrutura. Qualquer agitação na região não
era bem vista pelos persas. Por isso, Neemias trata logo de amenizar a
miséria do povo, até para que pudessem continuar pagando direitinho os
impostos ao rei. Cede a mão para não entregar o braço, como diz o ditado. E
que o credor precisa do devedor. Se o devedor não tem mais com que
pagar a dívida, o credor também perde sua fonte de arrecadação. As
injustiças e os privilégios, portanto, continuavam.
Apesar de Neemias ter renunciado a algumas regalias (Ne 5,14-16),
continuava se banqueteando fartamente com toda sua gente e convidados
(Ne 5,17-19). Confira!

118
Fique claro que a reforma exigida pelos pobres não tem nada a ver
com o ano jubiliar. Ela é fruto da pressão do povo da terra a partir de sua
situação de miséria.

E hoje! Não será essa uma das razões por que os credores dos
países do primeiro mundo continuam emprestando dinheiro aos paí­
ses periféricos a juros elevados, de modo que, na verdade, a dívida
nunca seja paga? O que é preciso ser feito para alcançar as conquistas
que os pobres obtiveram junto a Neemias? Em nossos dias, faltam
governos como Neemias ou falta organização do povo? Há alguma
semelhança com a prática política de Neemias? Acreditamos que o
“clamor” dos oprimidos possa gerar mudanças? Temos consciência
de que o poder dos fortes é estável somente na medida em que há um
povo acomodado? Como reagem as elites, bem como seus parla­
mentares e seus meios de comunicação, quando um governo coloca as
estruturas do estado a serviço de toda a população? Até que ponto a
fé nos grandes valores da vida, como, por exemplo, a dignidade, a
justiça, a solidariedade e a partilha, estão entre as primeiras preocupa­
ções de nossos governantes?

Esdras: o ensino e a observância da lei (398 a.C.)


Novamente nos encontramos numa época em que o Império Persa
enfrentava a revolta da satrapia do Egito. Em 400 a.C., no reinado de Arta­
xerxes II (404-359 a.C.), o Egito se libertou da ocupação persa. Somente o rei
Artaxerxes III (359-338 a.C.) reconquistou aquele país em 342 a.C. A partir
dessa data, os egípcios permaneceram sob o jugo persa até 332 a.C., ocasião
em que passaram a ser dominados pelo império de Alexandre Magno, quan­
do este destronou a hegemonia internacional dos persas.
Esdras (“Deus é auxílio” ou “Aquele a quem YHWH ajuda”) era
sacerdote e especialista na lei judaica (Esd 7,1 ls). Pessoa reconhecida entre
os judeus na Pérsia e as autoridades do império.
Por um lado, o reconhecimento de Esdras se dava pelo fato de ser
uma autoridade nas Escrituras. Era escriba, isto é, profundo conhecedor

119
da “Lei de Moisés”. Assim os judeus passaram a chamar, no pós-exílio, os
cinco primeiros livros da Bíblia que, segundo a tradição judaica, são da
autoria de Moisés. Veja por exemplo lR s 2,3 e Jo 5,45-47!
De outro lado, Esdras era alto funcionário da corte no Império
Persa. È possível que tenha sido o encarregado para os assuntos que ti­
nham a ver com os judeus não só para a província de Judá, mas para todo
o império. Tinha, portanto, muita autoridade em meio aos judeus que
estavam estabelecidos na Pérsia, parte dos quais havia voltado para Judá
(Esd 7,1-26).
Segundo Ne 8,9, Esdras e Neemias teriam atuado juntos em alguns
momentos. Mas isso provavelmente não é verdade, uma vez que a inten­
ção do redator é fazer com que Esdras, sacerdote e escriba, prevaleça
sobre o leigo Neemias. Nesse caso, convém situar a missão de Esdras em
torno de 398 a.C. (Esd 7,7). A missão de Esdras reforça e legitima as
reformas promovidas pelo governador Neemias.
Como vimos, a razão por que os autores dos Livros de Esdras e
Neemias apresentam a missão do sacerdote e escriba (Esd 7-10) antes da
I amissão do governador (Ne 1-7) é simples. Para eles, a política deve estar
subordinada à fé. A fé em YHWH vem antes da atividade política. Como
a missão de Esdras está mais ligada à religião e a de Neemias mais à
política, os autores desses relatos colocam artificialmente a atividade do
líder religioso antes da do líder político. Historicamente, porém, é prová­
vel que a missão de Esdras seja posterior para legitimar as reformas de
Neemias.

Missão de Esdras
• Ensinar a Lei de Moisés aos judeus.
• Legitimar teologicamente as reformas culturais e religiosas decre­
tadas pelo governador Neemias.
Esdras estava a serviço dos interesses do império. Tinha sua bên­
ção. Desobedecer à Lei de Moisés, isto é, às leis contidas no Pentateuco,
era também desobedecer à lei do imperador (Esd 7,26). Essa importância
dada à observância da Lei de Moisés, certamente tem como um dos seus
objetivos alcançar a ordem na província de Judá num momento em que
os egípcios representavam uma ameaça. Cooptava as lideranças para o

120
projeto de extorsão de tributos por parte dos persas. Eliminava qualquer
possibilidade de o povo ter esperança em dias melhores, jogando para o
futuro a espera da vinda de um Messias libertador. De outra forma, seria
difícil entender a razão por que o rei teria tanto interesse em que se obser­
vasse a Lei de Moisés. Em suma, a concessão cada vez maior de autono­
mia aos judeus, incluindo-se a liberdade de observar as suas próprias leis,
faz parte da estratégia persa de assegurar a lealdade de Judá ao império.

Esdras e o ensino da lei aos judeus (Esd 7-8; Ne 8-10)


Além da situação de desigualdade e do aumento da pobreza, apro-
fundava-se a crise de identidade do povo judeu. O exílio já havia causado
um grande desânimo no povo. Agora, ia enfraquecendo cada vez mais a
esperança de uma gloriosa restauração das instituições e dos símbolos
centrais dos judeus, que corriam o risco de desaparecer enquanto povo
com identidade própria.
Nesse momento difícil, a lei vai exercer um papel decisivo. Ela tem
uma função central na manutenção da sua identidade cultural. Não fosse o
apego à lei, é possível que os judeus tivessem desaparecido como povo
culturalmente bem definido, tal como aconteceu com todos os povos da
redondeza.
Antes de continuar seu estudo, não deixe de ler Esd 7-8 e perceba a
importância da lei na missão de Esdras, bem como seus vínculos com o
rei Artaxerxes! Em Esd 7,10 fica bem claro que o ensino e a exigência da
prática da lei são centrais na missão de Esdras.
Leia agora Ne 7,72b-8,12!
Na leitura que fez, você pôde perceber como a comunidade judai­
ca se organizou em torno da lei de Moisés. Depois da sua solene procla­
mação, de sua explicação para o povo e de sua compreensão, a comuni­
dade reafirmou seus ideais de comunhão e de partilha.
“O Livro da Lei de Moisés” (Ne 8,1) possivelmente é o Pentateu­
co, ou boa parte dele. E preciso ter presente que os sacerdotes fizeram no
pós-exílio toda uma releitura das antigas tradições e acrescentaram uma
série de normas sobre o funcionamento do culto, especialmente nos livros
do Exodo e do Levítico. Certamente, essas normas faziam parte do texto

121
que foi lido. Sobre a reedição do Pentateuco feita pelos sacerdotes, volta­
remos a falar adiante.

Para você continuar a reflexão


Depois de uma nova leitura de Esd 7,1-28, responda: a) Qual é a
função de Esdras nesse texto? b) A partir da carta do rei (7,11-26), quais
são os interesses dos persas na restauração de Judá? c) Qual é o papel da
lei no projeto de Esdras e do rei persa? d) Quais são as conseqüências da
aplicação dessa lei na vida do povo? e) Como perceber a presença de
Deus num texto a serviço do império? f) Como fazer a experiência de
Deus hoje num mundo de exclusões e, ao mesmo tempo, manter viva a
esperança?
A partir de Ne 7,72b-8,12, reflita sobre as seguintes questões: a)
Quem preside a celebração? b) Quem dela participa? c) A celebração gira
em torno do quê? d) Qual é o objetivo que Esdras e Neemias querem
alcançar? e) Qual é a reação do povo? f) Que lições tiramos desta celebra­
ção para as nossas comunidades?

Cronograma dos ritos festivos


A partir do conhecimento da lei, a comunidade judaica passou a
cumprir também o cronograma dos ritos festivos nela previstos. No dia
marcado pela lei, celebrou-se a festa dos Tabernáculos ou das Tendas. Era
a festa do fim da colheita dos cereais, celebrada 50 dias depois da Páscoa.
Por isso, passou também a ser chamada de Pentecostes. Leia Ne 8,13-18!
Não deixe de ler também o Sl 118 que parece ser um cântico recita­
do durante as procissões ao templo! Certamente, foi cantado nessa ocasião.
A celebração seguinte foi a do dia da Expiação (Ne 9-10). E uma
celebração penitencial em que o povo reconhece sua infidelidade, procla­
mando a inocência de Deus. A leitura da lei provocou arrependimento e
mudança de vida. Podemos dividir Ne 9-10 da seguinte forma:
• A realização de um jejum e a leitura do Livro da Lei de YHWH
(Ne 9,l-5a).
• A oração penitencial (9,5b-37). Esse salmo é uma das três grandes
orações que podemos encontrar em Esd-Ne. As outras duas estão em Ne
l,5ss e Esd 9,6ss. A oração penitencial de Ne 9 é ao mesmo tempo de

122
louvor e de penitência. Na prim eira parte louva-se a YHWH por sua ação
em favor de Israel (9,5b-25). Depois de uma introdução (v 5b), vem o
louvor ao Deus criador da vida (v. 6). Segue o louvor a YHWH pela aliança
feita com os pais (w 7-8), por sua ação libertadora no Êxodo (w 9-12), pela
doação da lei no Sinai (w 13-14), pelaproteção no deserto (w 15-21) e por
sua presença na libertação da terra das mãos dos reis cananeus (w. 22-25).
É digno de nota o reconhecimento da ação de YHWH na história, nos
acontecimentos. Na segunda parte do salmo, temos a oração penitencial (w
26-37). Na perspectiva de uma das características da teologia deuterono-
mista, isto é, a teologia da retribuição, o povo reconhece sua infidelidade
ao projeto de solidariedade proposto por YHWH. Avalia a opressão so­
bre o povo como castigo justo de Deus. A libertação sempre seguia um
processo de arrependimento e de conversão. O salmo conclui que a situ­
ação novamente é de opressão ( w 36-37). Portanto, essa oração quer
chamar a comunidade judaica a um novo processo de conversão, com
vistas a viver outra vez na liberdade e na paz. Confira!
• A confissão da culpa não é suficiente. Faz-se necessário assumir
um compromisso concreto com a mudança. Na compreensão do sacer­
dote e escriba Esdras e do governador Neemias, esse compromisso é
observar a lei (Ne 10). Depois de se comprometer por escrito com a lei
(10,1.29-30), vêm as cláusulas a serem observadas. Leia atentamente Ne
10,31ss e perceba os compromissos assumidos por toda a comunidade
para manter a identidade do povo judeu em torno da pureza étnica e do
perfeito funcionamento de todo o sistema do templo.

Esdras e Neemias e a aplicação rigorosa da lei (Ne 13; Esd 9-10)


Hoje temos uma avaliação da prática da lei no Judaísmo a partir da
crítica que os evangelhos e as epístolas fazem à forma como certos grupos
a observavam no tempo de Jesus e das primeiras comunidades cristãs.
Isso nos leva a ter uma visão muito negativa da lei, inclusive muitas vezes
preconceituosa.
Na origem, a palavra lei tem um sentido maispositivo do que negativo.
A lei de Deus significa o seu ensino, sua vontade, sua instrução. A finalida­
de da lei era promover uma vida digna e feliz. Ela regulamentava toda a
vida e não era entendida como sobrecarga. Pelo contrário, era considera­

123
da, ao menos pela comunidade repatriada e por judeus que permaneciam
na Babilônia, como o maior dentre os dons de YHWH. Leia, por exem­
plo, Sl 1,1-2; 19,8ss; 119,1-3!
Nesse sentido, a lei era a orientação de Deus para que o povo se­
guisse o caminho correto. E necessário ler nessa ótica a reflexão que a
comunidade de Mateus faz a respeito da lei. Mateus tem uma compreen­
são da lei de Deus nessa perspectiva. A lei é a vontade de Deus. E sua
justiça (Mt 3,15; 5,20).
O sentido mais estreito e mais negatim da lei teve seu desenvolvimento
no período persa no pós-exílio. Nessa época, as leis passaram a ter a im­
portância que antes pertencia à profecia. Na verdade, a lei suplantou a
profecia e passou a ser identificada com o Pentateuco. A aplicação rigoro­
sa das leis que constam nos cinco primeiros livros da Bíblia, naturalmente
levou à exclusão de pessoas e grupos sociais. E que ali constam, por exem­
plo, os critérios de pureza ou impureza. Logo adiante, voltaremos a esse
assunto.
No sentido positivo, a lei exerceu um papel importante no pós-
exílio. Embora o rei persa a tivesse tornado também a lei do império para
os judeus, ela foi fundamental para que a comunidade judaica sobrevives­
se como povo, como etnia. A observância das prescrições da lei deu iden­
tidade social, nacional e religiosa ao povo, garantindo dessa forma sua
sobrevivência como nação, num momento em que corria sérios riscos de
ver sua cultura desaparecer em meio a um imenso império.
Foi a partir desse momento que, aos poucos, o rigor na observân­
cia da lei foi se transformando em legalismo, isto é, no cumprimento cego
da lei. Isso não quer dizer que todos os judeus fossem legalistas. No tem­
po de Jesus, por exemplo, até mesmo entre os fariseus havia muitas ten­
dências. Os mais apegados à lei eram apenas uma das vertentes. E o anti-
legalismo de Jesus ou de alguns grupos primitivos de cristãos é reflexo do
seu empenho em fortalecer uma nova identidade para as comunidades
cristãs independente do Judaísmo hegemônico naquela época.
Como veremos adiante, a ênfase em cumprir rigorosamente as pres­
crições legais recaiu sobre as leis de pureza étnica e das leis do puro e do
impuro. A dissolução dos casamentos mistos é o exemplo mais típico
desse legalismo.

124
A partir de agora, analisaremos conjuntamente o cumprimento seve­
ro da lei, tanto por parte de Neemias como de Esdras. E provável que
Neemias tenha exigido o rigor da lei durante sua segunda missão em algum
ano entre 430-425 a.C. (Ne 13,6-7). Anos mais tarde, Esdras reforçou essa
prática de Neemias. Ambos foram rigorosos na aplicação da lei. Sua refor­
ma cultural e religiosa teve como ênfase medidas a respeito da observân­
cia de normas sobre o “funcionamento do templo”, do “sábado” e da
“pureza étnica”. Passemos a analisar uma por uma essas medidas.

O funcionamento do templo (Ne 13,4-14)


Os w 4-9 referem-se ao uso e à purificação do templo e os w 10-14
têm a ver com o sustento dos levitas.
Ne 13,4-9 refere-se à expulsão de Tobias e àpurificação das dependências
do templo. Não deixe de ler!
Tobias provavelmente estava a serviço do Império Persa em Amon
naTransjordânia. Talvez era governador daquela província (Ne 2,10.19).
Era pessoa nobre que tinha relações comerciais com os grandes negocian­
tes de Judá (Ne 6,17-19). Junto com eles, se opunha à reconstrução de
Jerusalém (Ne 4,1-2) e subornava adversários de Neemias (Ne 6,12). Com
essas atitudes, o amonita Tobias, junto com o samaritano Sanabalat e o
árabe Gosem, além de nobres de Azoto, queriam intimidar a Neemias, pois
viram que seus negócios e sua influência no comércio do templo estavam
ameaçados.
O sumo sacerdote Eliasib, responsável pelos aposentos anexos ao
templo, favorecia os negócios dos grandes comerciantes. Por um lado, era
aliado de Tobias. Tornara-se, inclusive, seu parente, através de alianças de
casamento. Por outro lado, seu neto chegou a se casar com a filha de
Sanabalat. Por isso, Neemias também o expulsou (Ne 13,28). E mais. Eli­
asib cedeu uma vasta sala dos anexos do templo para que Tobias pudesse
dirigir seus negócios comerciais a partir dali. Indignado, Neemias o expul­
sou e mandou purificar o local por ele profanado, devolvendo àquela sala
suas antigas funções.
Ne 13,10-14 refere -se ao restabelecimento do sustento, da manutenção
dosleútas. Confira!
Vimos acima que, na sua primeira missão, Neemias já havia coloca­

125
do em ordem o sustento diário de todo o pessoal do culto: sacerdotes,
levitas, cantores e porteiros. Porém, no texto que acaba de ler, você perce­
beu que os levitas haviam deixado de exercer suas funções de auxiliares e
cantores no templo, voltando para a roça a fim de poder sobreviver. E
por que isso? Por causa da omissão na entrega dos dízimos, única fonte
para seu sustento. Quem eram os responsáveis por esse desleixo? Os ma­
gistrados encarregados pelo funcionamento do templo e, talvez, pela ad­
ministração persa na província de Judá. Como Neemias resolveu o pro­
blema? Fez os levitas voltar às suas funções e exigiu dos judaítas os dízi­
mos dos cereais, do vinho e do azeite. E para evitar que os dízimos fos­
sem novamente desviados aos sacerdotes sadoquitas, nomeou pessoas de
confiança para fazer a administração dos dízimos destinados aos levitas.
Com mais essa medida, Neemias ganhou também o apoio impor­
tante dos funcionários do templo, os levitas, para a execução de seu projeto.

A observância do sábado (Ne 13,15-22)


Já falamos da importância do sábado. Porém, convém lembrar aqui
que o sábado, como dia de descanso, foi importante desde os primeiros
anos da formação de Israel.
A partir do exílio, ele adquiriu uma importância especial. Passou a
ser, junto com a circuncisão e a observância da lei, mais um sinal da aliança
com YHWH (Ex 31,17; Ez 20,12-21) e um distintivo do povo, de sua
identidade. Nos primórdios de Israel, a fundamentação teológica para
observar o sábado era a ação libertadora de YHWH no Êxodo (Dt 5,12-
15). A partir do exílio, mais uma fundamentação teológica foi acrescenta­
da para valorizar ainda mais a observância desse dia santo. O sábado foi
vinculado também ao descanso de Deus na criação (Gn 2,1-3; Ex 20,8-11).
Ao voltar da Pérsia, Neemias também constatou que o sábado santo
estava sendo profanada E não eram somente os comerciantes de Tiro. Tam­
bém os nobres de Judá faziam negócios em Jerusalém. Leia Ne 13,15-18! Em
tempos passados, os profetas Amós e Jeremias já haviam condenado essa
prática dos comerciantes (Am 8,5;Jr 17,27).
Veja agora Ne 13,19-22 e confira as medidas que Neemias tomou
para garantir a observância do sábado pela nobreza de Judá e pelos co­
merciantes estrangeiros.

126
A pureza étnica (Ne 13,23-31; Esd 9-10)
A proibição e a dissolução dos casamentos mistos tinha em vista a
pureza da identidade cultural, étnica e religiosa especialmente dos repatri­
ados em torno de Jerusalém. Sobre as leis que proíbem os matrimônios
mistos você pode ler em Ex 34,15-16 e Dt 7,3.
Esdras e Neemias não somente proíbem os casamentos mistos,
isto é, de judeus com mulheres estrangeiras, mas chegam a expulsar as
mulheres estrangeiras casadas com judeus repatriados, junto com seus fi­
lhos. È importante repetir que essa medida atingia especialmente os repa­
triados (Esd 10,6.16), embora também houvesse a interdição de casamen­
tos com o povo da terra (Ne 10,31).
È interessante notar que nem todos aceitaram com facilidade a dissolu­
ção dos casamentos mistos. Veja o caso de Jônatas e Jaasias em Esd 10,15!
Havia inclusive sacerdotes que contraíram matrimônio com mulhe­
res de origem estrangeira (Esd 10,18-22), bem como levitas (Esd 10,23-24).
Até o neto do sumo sacerdote havia se casado com a filha do governador
da Samaria (Ne 13,28). Dessa forma, descumpriu aprescrição de Lv 21,14.
Com esse casamento, a família do sumo sacerdote “contaminou o sacer­
dócio” e quebrou a “aliança dos sacerdotes sadoquitas e dos sacerdotes levi­
tas”, fato que o profeta Malaquias já havia questionado (Ml 2,4-8).
Em suma, a lei da pureza étnica levou a comunidade judaica em
torno do templo a fechar-se cada vez mais so­
bre si mesma, cultivando um nacionalismo com "N ã o chames
horizontes muito estreitos. Conseqüência disso é de contam inado
o desprezo por outros povos e outras religiões, o que Deus
bem como o cultivo do sentimento de superio­ purificou."
ridade. Na tentativa de proteger sua identidade (At 10,15)
étnica, o grupo de repatriados cometeu radicali­
zações. Pode até ter havido boas intenções na defesa da identidade dos
judeus repatriados. Porém, a lei da pureza étnica levou a considerar os
estrangeiros como povos inferiores. No tempo de Jesus, ainda eram con­
siderados insensatos e tão impuros como os porcos e os cães. Leia Mt 7,6;
8,30-32; 15,27 e compare com Lv 11,5 e Eclo 50,25-26!
Rute e Jó são estrangeiros. Nisso já dá para perceber uma crítica à
observância rigorosa da lei da pureza étnica. Contudo, é o Livro de Jonas

127
que faz a crítica mais contundente à exclusão dos estrangeiros do projeto
de Deus por parte dos repatriados. O Livro de Jonas defende a tese de
que todas as nações são povos de Deus e de que YHWH é Deus de todos
os povos e não refém de nenhuma nação.
Jesus, compreendeu muito bem a proposta dos autores de Rute,Jó
e Jonas. Igualmente rompeu a barreira entre o Judaísmo ortodoxo e ou­
tras culturas. E entre os apóstolos, foi Paulo quem melhor compreendeu
essa dimensão, anunciando o Evangelho a todos os povos sem fazer ne­
nhuma discriminação.

Enós? Faz sentido ainda cultivar sentimentos exclusivistas, muitas


vezes permeados de preconceitos contra qualquer pessoa ou grupo
social culturalmente diferente de nós? Como se manifestam hoje as
lutas nacionalistas ou de grupos étnicos pelo respeito à sua cultura, seus
costumes, sua identidade?

A pureza étnica, os povos vizinhos e a idolatria


As medidas drásticas de Esdras e Neemias contra as mulheres es­
trangeiras e suas crianças nos fazem lembrar, pelo menos, duas questões.
A primeira é que os judeus, especialmente os moradores de Jerusalém
e de seus arredores, tinham uma grande rivalidade com os povos vizinhos.
Por um lado, como j á vimos em módulos anteriores, os judaítas nunca
aceitaram que as tribos do Norte se tivessem libertado da opressão de Salo­
mão. Com o passar dos anos, a tensão foi aumentando. Já vimos como não
aceitaram a ajuda dos samari-
"Pois tu és um povo consagrado tanos na reconstrução do tem­
a YHWH, teu Deus. YHWH, plo (Esd 4,1-3).
teu Deus, te escolheu dentre Por outro lado, sua ri­
todos os povos da terra, para validade com os edom itas
seu povo particular." também já era antiga. Agra­
(Dt 7,6) vou-se, porém, a partir do
momento em que eles ajuda­
ram na destruição de Jerusalém patrocinada pelos babilônios. O profeta
Abdias foi muito duro na sua crítica à falta de solidariedade desse povo

128
Irmlo. Também os amonitas c moabitas deviam ser excluídos. As razões
isflo e m N e 13,1-3.
No entanto, os camponeses pobres que não haviam sido deporta­
dos pelos babilônios, tanto os do antigo Reino de Israel quanto os de
Judá, sc casaram com mulheres estrangeiras e com elas tiveram filhos. Para
eles essa rivalidade entre judaítas e estrangeiros não lhes dizia respeito. O
sentimento de ódio era mais restrito aos antigos moradores de Jerusalém
e às elites expatriadas, bem como a seus descendentes.
Na ótica de Esdras e Neemias, preocupados em manter a identida­
de dos repatriados e a pureza da fé em YHWH, até se justifica essa atitude
extremada. E que a mistura com outros povos não era somente uma
mistura de línguas e culturas, mas representava fatalmente a mistura de
religiões (MI 2,11). Os casamentos mistos eram, portanto, uma perigosa
ameaça à fé em YHWH e à identidade da comunidade judaica em torno
de Jerusalém. Portanto, ao expulsar as mulheres estrangeiras, Esdras e
Neemias queriam manter a pureza da fé em YHWH.
A lei da “pureza étnica” recebeu destaque especial porque os repa­
triados estavam interessados em manter a identidade própria dos judeus
como povo puro, eleito por Deus. Queriam também evitar o seguimento
a outras divindades, conseqüência natural caso houvesse casamentos mis­
tos. Leia agora Dt 7,1-6 e perceba o interesse em constituir um povo
especialmente separado e fiel a YHWH.

A pureza étnica e o direito à posse da terra


A segunda questão a ser levada em conta quando se fala da pureza
étnica é que os judeus repatriados queriam reaver as antigas terras de seus
antepassados. Diziam que tinha direito à terra somente quem conseguisse
provar por listas genealógicas sua pertença ao povo eleito. Para isso, ela­
boraram longas listas genealógicas a fim de provar que faziam parte do
povo santo (lC r 1-9).
Como os camponeses remanescentes não podiam provar sua
descendência pura, estando muitas vezes até casados com mulheres estran­
geiras, a imposição da lei de pureza étnica legitimava a tomada da terra pela
força desses camponeses impuros. As genealogias, na verdade, foram armas
usadas pelos repatriados contra os israelitas remanescentes nas terras de Judá.
A observância rigorosa da lei do puro e do impuro
Outra lei que recebe uma ênfase especial no pós-exílio é a lei da
“pureza” ou do “puro e do impuro”. Essa lei determina quem está mais
perto ou mais longe de Deus.
O Livro do Levítico, que teve sua maior parte escrita nesse período,
como ainda veremos, é quem mais se preocupa em definir o que é puro
ou impuro.
• Quanto aos alimentos puros e impuros, confira Lv 11 ou Dt 14,3-
21. Veja em Mt 15,11-20 ou Mc 7,14-23 o que diz Jesus a respeito da
pureza dos alimentos!
• A respeito da lepra, você pode ler em Lv 13-14.
• Sobre a impureza dos mortos, você pode ler em Nm 19,13-16.
• Quanto à atividade sexual, veja Lv 12 (parto), 15 (menstruação,
hemorragias, doenças venéreas e fluxo seminal); 18,20 (adultério), 18,23
(relações com animais).

A lei da pureza e as mulheres


O grupo que mais sofre na pele as conseqüências negativas da apli­
cação rigorosa da lei da pureza são as mulheres. Foram cada vez mais
excluídas pelo 2° templo, pelo simples fato de serem geradoras de vida e,
por isso, tidas como impuras quando menstruam e dão à luz as suas crianças.
Vários são os interesses em jogo na sociedade patriarcal, quando ela
relega a mulher a um segundo plano, considerando-a inferior ao homem e
qualificando-a como incapaz para qualquer função econômica, social, po­
lítica ou religiosa.
Tíntre os interesses em jogo, citemos apenas alguns.
• A pretensão do homem em dominar a mulher no âmbito da casa,
do casamento, reduzindo-a à condição de mãe/reprodutora, esposa/pro-
priedade, e dona de casa silenciada.
• O projeto do estado em aumentar a procriação e assim ter mais
pessoas especialmente para a mão de obra com vistas a produzir exceden­
te, a fim de pagar os tributos ao rei persa.
• O interesse do templo em aumentar a renda com os ritos periódi­
cos de purificação. A lei da pureza considerava a mulher impura por ser

130
mulher (Lv 15,19-30), por ser mãe (Lv 12,1-8), por ser esposa (Lv 15,18)
e por ser filha (Lv 12,1-8). Isso significa que os ritos de purificação eram
uma garantia de arrecadação regular para o tesouro do templo, desde os 12
anos até a menopausa da mulher. Além da lei do puro e do impuro, a lei da
pureza étnica excluía ainda as mulheres estrangeiras do convívio de seus lares.

Qual é a condição da mulher hoje em dia? Quais são os ranços


machistas que ainda persistem? Que avanços ela já conquistou? E o
homem também questiona o modelo de masculinidade que a socieda­
de lhe impõe? Em que consiste a nova mulher e o novo homem na
busca de uma convivência em que se vive um novo tipo de relações?

As mulheres reagem
Mas as mulheres não se calaram diante dessa discriminação. Reagi­
ram, exigindo dignidade. E o que veremos adiante, ao estudarmos o Li­
vro de Cântico dos Cânticos e de Rute. Também a sabedoria é apresenta­
da como mulher (Pr 8,22-9,12). No próximo volume, estudaremos ainda
os Livros de Ester ejudite.
Esses livros, mais do que considerar a mulher como impura, des­
tacam suas qualidades, sua liderança, sua beleza, sua sagacidade, sua soli­
dariedade para com os pobres e os estrangeiros, sua fidelidade ao Deus
dos pobres, sua valentia e sua ternura, seu protagonismo na luta pela liber­
tação de seu povo, sua liberdade e sua igualdade em relação ao homem.

A formação do Judaísmo
Com a imposição da observância estrita da lei a respeito do funcio­
namento do templo, da observância do sábado, da pureza étnica e da lei
do puro e impuro, Neemias e Esdras lançaram os fundamentos do Juda­
ísmo que vai ser criticado e retificado por Jesus. Mas de tantos privilégios
que esse sistema mantinha e da obsessão em cumprir rigorosamente a lei,
essa estrutura acabou matando João Batista e o próprio Jesus de Nazaré,
como veremos no estudo do Segundo Testamento.
Durante o exílio, quando não havia mais trono, nem altar, nem tem­
plo, passou-se a valorizar a Palavra. Foi o início do que se chamaria de

131 /
“Judaísmo” depois do exílio. É um modelo de vida bem diferente daque­
le que era vivenciado em Jerusalém antes de sua queda. O centro não é
mais o trono real, nem tanto o templo, mas são as Escrituras.
Durante o exílio, a Palavra estava no centro da vida do povo. Na
reflexão das Escrituras, a lei tinha um destaque especial. No cativeiro babilô-
nico, Ezequiel fez referências à observância das leis de Deus (Ez 11,20; 44,24). ,
Esdras deu à fé judaica uma estrutura bem definida, centralizada na !
observância da Lei de Moisés. Em torno dela, a comunidade judaica pôde
manter-se unida, mesmo dispersa por todo o mundo. A lei tornou-se até ;
mais importante que o culto no templo. O Judaísmo tornou-se preponde­
rantemente uma “religião do Livro”, uma comunidade sujeita à Lei de
Moisés. Proporcionou aos judeus um forte espírito de comunidade e os
libertou do ccntralismo do templo. Graças a isso, é que o Judaísmo sobre­
viveu à destruição do 2° templo pelos romanos em 70 d.C. E até hoje vive
sem templo e sem sacrifícios.
O dia do nascimento do Judaísmo pode ser considerado o da lei­
tura pública da Lei de Moisés narrada em Ne 8. Se podemos considerar
que o fundador de Israel foi Moisés, então também podemos dizer que
Esdras foi a pessoa que
lhe deu aquela estrutura
"O sacerdote Esdras levou o Livro
da Lei à presença da assembleia ... que criava as condições
e fez a leitura desde a manhã cedo para que sobrevivesse
até ao m eio-dia, na presença dos através dos séculos.
homens, das mulheres e de todos No pós-exílio, a
os capazes de com preender." classe sacerdotal regula­
(Ne 8,2-3) mentou ainda mais to­
dos os setores da vida a
partir da lei. Diante da necessidade do conhecimento, da interpretação, do
ensinamento e da aplicação da lei, surgiu no período dos persas uma nova
classe de pessoas dentro do Judaísmo. São os escribas ou especialistas na lei.
Acima, vimos qual foi a origem da sinagoga, ainda entre os deporta­
dos na Babilônia, como um espaço nas casas para “assembleia” ou “reu­
nião” da comunidade em torno das Escrituras. Sua finalidade era oportu-
nizar um espaço de oração e de estudo da lei. Na época de Neemias e
Esdras, certamente essa prática deverá ter-se difundido entre os repatria-

132
d<>s. Pois o ensino da Lei de Moisés passou a ser uma questão central na
tentativa de manter a identidade dos judeus em torno de Jerusalém. Dessa
í<irma, as Escrituras tornaram-se cada vez mais importantes.
A sinagoga era uma organização leiga. Não se realizavam ali sacrifí­
cios de animais. Os sacerdotes podiam participar, porém, em pé de igual­
dade com os demais participantes. No começo, a “reunião/sinagoga” era
ic;ilizada nas casas. No passar dos anos, porém, foram construídos prédios
próprios para esse fim, também chamados de sinagogas.
Em épocas posteriores, aos poucos foi-se deixando de lado a ne­
cessidade da pureza étnica para pertencer à comunidade judaica. Já era
possível participar do Judaísmo, mesmo sendo estrangeiro. Bastava sub­
meter-se à lei e aceitar a circuncisão para poder participar da comunidade
cultuai.

A lei como o caminho, a verdade e a vida


Estamos acostumados a ouvir que Jesus é o caminho, a verdade e a
vida (Jo 14,6). Ou ainda: que Ele é a luz do mundo (Jo 8,12; 9,5). Para
bem entender o que a comunidade, que está por trás do Evangelho de
João, quis dizer ao afirmar isso de Jesus, é importante que tenhamos em
mente que o Judaísm o dizia o mesmo a respeito da lei. Para exem pli­
ficar, leia os textos que seguem. Os judeus diziam que a lei era o cam i­
nho (Sl 119,1.3.37), averdade (Sl 119,30.138.160), avida (Sl 119,37.40.50;
Ne 9,29) e a luz (Sl 119,105; 19,9-A lm eid a 19,8).
Portanto, é preciso interpretar a fala de Jesus, no Evangelho segun­
do João, a partir da polêmica dos cristãos com o Judaísmo oficial que
considerava a rígida observância da lei como o único caminho para Deus.
Leia e medite sobre os Sl 19 e 119!

Limites da reforma de Neemias e Esdras


Se, de um lado, as reformas promovidas por Esdras e Neemias
tinham como finalidade recuperar a identidade histórica dos repatriados,
mantendo sua fidelidade a YHWH, de outro, não poderíamos deixar de
levantar algumas limitações, das quais nós podemos tirar lições para os
dias de hoje.

133
1. Será que o projeto de Esdras e Neemias não se ocupou demais
com o rigor da lei, sem se preocupar com a fome dos pobres da terra?
Não valorizou demais a religião, não se interes­
"O sábado foi feito sando pelas condições de vida do povo?
para o homem e 2. Será que nã
não o home zação da religião de YHWH em detrimento de
para o sábado." outras experiências religiosas, tratando-as com
(Mc 2,27) intransigência? E possível uma convivência har­
moniosa e de diálogo entre diferentes culturas
e ser, ao mesmo tempo, intransigente e considerando-se superior às de­
mais? Essa postura não reforça preconceitos e fundamenta a rejeição e a
exclusão de crenças que sejam diferentes da nossa?
3. Seu projeto se dirige somente a Judá e a Benjamim e de modo
particular para os repatriados. Por que excluir os israelitas das tribos do
Norte que não foram expatriados por Nabucodonosor? Por que ele ex­
clui os judaítas que não foram para o cativeiro? Por que chamar a todos
eles pejorativamente de “estrangeiros”, “povos da terra” ou “samarita-
nos”? Perto dos repatriados, os remanescentes certamente eram a grande
maioria de moradores na região.
4. Sabemos que na sociedade patriarcal da época, as mulheres não
tinham a mesma dignidade dos homens. A observância rigorosa da lei,
especialmente a lei do puro e do impuro, não contribuiu sensivelmente
para o aumento da discriminação da mulher?

Depois de toda essa reflexão sobre o papel da lei no pós-exílio,


poderíamos perguntar ainda: Qual é a função da lei nos dias de hoje?
Ela garante direitos e deveres iguais? E justo aplicá-la de forma igual
para pessoas e grupos sociais desiguais? Pode-se tratar de forma igual
a pessoas desiguais? Por quê? A lei está acima da vida das pessoas?
Como? Qual foi a postura de Jesus diante dalei?

134
Edição final de coletâneas
É no último período da dominação persa, isto é, em torno de 400
a 332 a.C., que devemos situar a edição final de coletâneas. Refenmo-nos
às coleções de Provérbios, aos cinco livros da Lei ou Pentateuco, aos qua­
tro livros da OHC e às coleções de Salmos.
Os responsáveis por todo esse trabalho editorial são os sacerdotes
sadoquitas e os sacerdotes levitas especializados nas Escrituras. Eram, por­
tanto, escribas com boa formação intelectual. Eram também sábios. A
partir de agora, passaremos a chamar essas duas classes sacerdotais res­
pectivamente de sacerdotes e levitas.
Sabemos que Esdras foi um escriba, um doutor da lei. Era sacer­
dote versado nas Escrituras. Além disso, era um oficial do rei persa com
alto grau de instrução. E mais. Na leitura pública da lei (Ne 8,1-8), ele
coordenou uma equipe de levitas para traduzi-la e explicá-la ao povo. A
partir da época de Esdras, cada vez mais esses grupos de sacerdotes e
levitas, que eram sábios escribas, tiveram um papel importante no Judaís­
mo. Na verdade, eles se tornaram os orientadores espirituais da comuni­
dade judaica em torno de Jerusalém.
Nessa época, voltaram a ser valorizadas as escolas sapienciais e de
ensino da lei, que já existiam antes do exílio, mas haviam perdido sua
importância. Nelas, os sábios instruíam especialmente os filhos homens de
famílias ricas. Não temos indícios de que tenha existido uma instrução
formal para meninas. Eclo 51,23 refere-se a uma casa de ensino desse tipo.
Certamente, é a esses sacerdotes e levitas que devemos a edição
final não só do Livro dos Provérbios, mas também do Pentateuco e do
Saltério. E deles a responsabilidade pela elaboração da releitura da história
de Israel que está na OHC. Também é deles a autoria de Pr 1-9 e de vários
capítulos do Pentateuco, como veremos a seguir.

135
1 Provérbios
“Pois quem me (a sabedoria) encontra,
encontra a vida e obtém o fa v o r de YHWH. ” (Pr 8,35)

O Livro dos Provérbios, uma compilação de coletâneas


Sobre a Sabedoria em Israel e sobre a redação departes do U iro dos Prviér-
bios, você já leu nas páginas 108 a 113 e 143 a 147 do volume 4 desta série.
Ali vimos que os provérbios mais antigos remontam à época do
monarca Salomão (970-931 a.C.). A coleção de Pr 22,17-24,22 deve ser
desse período. P r25-29 é do final do reinado de Ezequias (727-698 a.C).
E Pr 10,1-22,16 d e v e ser situado no reinado de Josias (640-609 a.C.).
Faltam ainda Pr 1-9 e Pr 30-31. O acréscimo dessas coletâneas é
trabalho dos compiladores finais do Livro dos Provérbios em torno do
ano 400 a.C., quando reuniram as diferentes coleções de provérbios que já
existiam. A seguir passaremos a analisar esses dois conjuntos de provérbios.

Pr 1-9: o significado da sabedoria

“ O tem or de Y1IWH é o p rin cíp io da s a b e d o r i a (Pr 1,7)

Uma introdução ao Livro dos Provérbios


Os nove primeiros capítulos do Livro dos Provérbios, na verdade,
foram os últimos a serem escritos em torno de 400 a.C., quando se fez a
compilação final das coleções já exis­
"N ã o extingais o Espírito; tentes. Em relação às demais cole­
não desprezeis as profecias; ções de provérbios, esses capítulos
examinai tudo e ficai apresentam uma diferença funda­
com o que é bom ." mental. Enquanto aquelas estão com­
(lTs 5,1 9 -2 1 ) postas por pequenos ditos, mesmo
que agrupados por temas comuns,
estes são uma reflexão mais desenvolvida sobre a sabedoria.

136
Pr 1-9 serve de introdução a todo o livro. Recomenda o estudo da
sabedoria de Israel nele expressa. Quer ajudar para que as pessoas se tor­
nem sábias e possam discernir o seu próprio caminho (cf. Pr 14,8 e 1,1-6).
Quer contribuir na formação do espírito crítico, da capacidade de discer­
nimento, de escolha diante dos caminhos que a vida nos oferece. Quer
desmascarar tudo aquilo que não nos permite descobrir o verdadeiro sen­
tido da vida.
O apóstolo Paulo vai na mesma linha ao insistir na moral do discer­
nimento, da descoberta do caminho da vida, da liberdade e do amor. O
investimento na formação da consciência crítica e na capacidade de dis­
cernimento é fundamental, uma vez que não basta ser livre, é preciso tam­
bém saber exercer a liberdade.

A sabedoria como profetisa e Messias


Pr 1-9 é uma nova forma de apresentar as antigas Escrituras em
Israel. Os autores se valeram de textos sapienciais já escritos, de livros
proféticos, entre eles particularmente o de Jeremias, e de livros de leis,
especialmente o Deuteronômio.
Pr 1-9 é formulado no estilo de instruções, de ensino. Veja, por
exemplo, 1,8; 2,1; 3,1! E um gênero sapiencial clássico da sabedoria egíp­
cia. O mesmo estilo está presente no texto “conselhos de um pai a seu
filho”, encontrado em Ugarit. Em Pr 1-9, os sábios israelitas fazem da
sabedoria uma pessoa, anunciando oráculos como uma profetisa e se apre­
sentando como Messias.
No pós-exílio, não há mais reis e há poucos profetas em Israel.
Segundo Pr 1-9, quem assume o papel profético e messiânico é apropria
sabedoria. Essa é mais uma diferença importante entre Pr 1-9 e as cole­
ções de provérbios mais antigas.
Pr 1,20-33 nos apresenta a sabedoria personificada como profetisa.
Confira! Tal como em Joel, que estudaremos adiante, derramará seu espí­
rito profético. Compare Pr 1,23 com J1 3,1 (Almeida = 2,28)!
Em Pr 8,12-21, há uma proposta inédita. E a sabedoria quem vai
governar o povo. Deixar-se guiar por ela é discernir nas situações concretas da
vida o caminho de YHWH. Nesse sentido, a sabedoria assume o papel de
Messias. Leia e compare com a esperança messiânica presente em Is 11,1-9!

137
Pr 8,22-36 é o ponto mais alto dessa reflexão sobre a sabedoria.
Ela é a primeira criatura de Deus e, ao mesmo tempo, a arquiteta de todo
o restante da criação, imprimindo-lhe o sentido fundamental da vida.

Pr 1-9 e a teologia dos sacerdotes do 2° templo


Além da riqueza da reflexão dos autores de Pr 1-9, podemos tam­
bém perceber que estão comprometidos com o projeto do 2° templo.
Três elementos, pelo menos, nos fazem suspeitar desse compromisso.
O primeiro é que, tal como em Malaquias e em Joel, também aqui
revelam sua fé no dogma da retribuição (cf. 3,1-2.33-35).
Embora sem muita ênfase, o compromisso com o culto no altar
do templo também está presente na sua reflexão sapiencial (cf. 3,9). E
verdade que essa preocupação dos sacerdotes e levitas fica muito mais
~ A
clara na reelaboração que fizeram especialmente dos Livros do Exodo e
do Levítico, bem como na OHC, como veremos adiante. Porém, a pre­
sença, na literatura sapiencial, do dever de levar os dízimos e os frutos da
primeira colheita ao templo, mostra o quanto ele era importante para esse
segmento da sociedade israelita. Ora, as primícias e os dízimos garantiam
não só o culto, mas também o sustento dos sacerdotes e dos levitas, os
profissionais da religião.
Por último, na reflexão sobre a sabedoria, também se faz referência
à lei de pureza étnica. O assunto aparece em quatro capítulos (2,16-19; 5;
6,20-35; 7). Por outro lado, podemos também interpretar a referência à
mulher estrangeira de forma figurada, no sentido de ver no compromisso
com ela o rompimento da aliança com YHWH.

Estrutura de Pr 1-9
Agora, convidamos você a ler esses nove capítulos, seguindo a pro­
posta de divisão abaixo. Mas antes, é preciso que se fale de duas inserções
em Pr 1-9. Pr 6,1-19 é um acréscimo, interrompendo o discurso do sábio
que continua em 6,20. E Pr 9,7-12 é uma inserção que interrompe a se­
qüência no capítulo 9.

138
Pr 1: Introdução
1,1-7: Título do livro e finalidade dos provérbios.
1,8-19: Exortação contra os injustos.
1,20-33: Discurso da sabedoria personificada na profecia.
Pr 2-7: As bênçãos da sabedoria
2: As bênçãos da sabedoria.
3-7: Desenvolvimento sobre as bênçãos.
3,1-12: Atitude diante de Deus.
3,13-4,9: O valor da sabedoria.
4,10-27: Escolher entre dois caminhos.
5; 6,20-35; 7: Cuidado com a mulher estrangeira!
Pr 8-9: A sabedoria como uma mulher
8: Personificação da sabedoria como Messias e o sentido da criação.
9: Escolher entre o banquete da sabedoria (1-6) e o da insensatez (13-18).

E hoje, qual é o caminho ou banquete da sabedoria? E o caminho


ou banquete da falta de bom senso? Até que ponto há interesse em
ajudar o povo a formar uma consciência crítica, a desenvolver sua
capacidade de discernimento para que possa dirigir sua vida e con­
quistar plena cidadania?

Pr 30-31: os apêndices de Provérbios

Pr 30-31 também deve ter sido acrescentado por ocasião da edição


final das diferentes coletâneas de provérbios que já existiam. Formam quatro
seções independentes entre si: Palavras de Agur (30,1-14), Provérbios
Numéricos (30,15-33), Palavras de Lemuel (31,1-9) e Poema sobre a mu­
lher (31,10-31).
A data de sua composição é incerta. Provavelmente, essas coletâneas,
que já existiam por ocasião da compilação final de Provérbios, foram
acrescentadas como apêndice do livro, para que não se perdessem.

139
Pr 30,1-14: Palavras de Agur
E uma pequena coleção de sentenças de Agur, um sábio estrangei­
ro. Ele é de Massa, uma tribo ismaelita do norte da Arábia (Gn 25,13-14).
O assunto aqui refletido em forma
"N ão me dês riqueza de perguntas e sentenças é o mesmo do
nem pobreza. Livro de Jó. Primeiro, há uma admiração
Concede-me apenas o diante da grandiosidade de Deus e do uni­
meu pedaço de p ã o ." verso (30,1-6). Depois, um pedido para se
(Pr 30,8) ter o suficiente para uma vida digna (30,7-
10). Por último, o sábio se espanta com as
pessoas injustas e que oprimem os pobres. Confira!

Pr 30,15-33: Provérbios numéricos


O autor dessa coleção de ditos é anônimo. São chamados provér­
bios numéricos porque enumeram uma quantidade de sentenças, acres­
centando uma última, considerada a mais importante da lista.

Pr 31,1-9: Palavras de Lemuel


È outra pequena coleção de ditos, cuja autoria provém de um sá­
bio não israelita. Lemuel é rei de Massa. As sentenças lhe foram ensinadas
por sua mãe. Ela recomenda que o filho não se envolva com mulheres
interesseiras (31,3) e que se abstenha de vinho e licores a fim de não descui­
dar do direito dos pobres (31,4-5.8-9).

Pr 31,10-31: Poema sobre a mulher


Nessa última coleção de provérbios, um autor anônimo faz um
poema que relaciona muitas atividades desenvolvidas por mulheres. Este
texto é um poema acróstico, isto é, que inicia com as letras do alfabeto. Ou
seja, é uma composição sistematizada, que quer descrever em poesia o
mundo das mulheres. O termo que normalmente é traduzido como “vir­
tuosa” ou “ideal”, literalmente significa “de valor”, ou seja, “uma mulher
de valor”. Quando se refere a homens, o termo normalmente é traduzido
como “um homem de poder”.
Ao ler esse poema, você pôde conferir que o seu autor elogia a
mulher enquanto boa esposa, boa mãe de seus filhos e boa dona-de-casa.
140
Naturalmente, a referência às atividades desenvolvidas pela mulher parte
de um homem que está fortemente marcado pelas categorias da cultura
patriarcal. Destaca sua capacidade de gerir negócios, sua sensibilidade para
com os empregados, sua solidariedade em relação aos pobres e seu temor
a YHWH. Percebemos, portanto, que o cunho patriarcal não permitia o
louvor da mulher em si, mas o desviou para o respeito que seu marido
desfruta por causa dela (v 23) e para o louvor do seu temor a Deus (v. 30s).
Uma outra possibilidade é ler o poema não como prescrições que
querem normatizar o comportamento das mulheres, mas como descrição
das atividades desenvolvidas pelas mulheres em geral. Ou seja, antes de
querer ditar como deveria ser “a mulher ideal ou virtuosa”, “a boa esposa
e mãe”, como muitos títulos sugerem, o texto estaria resgatando as expe­
riências de várias mulheres de diferentes realidades. Se a poesia reúne a
experiência por trás do texto, então, este texto poderia demonstrar que
mulheres estão ativas nos mais diversos setores da sociedade, atuando no
âmbito público com pleno uso de poderes e capacidades.
Nesse sentido, é bom lembrar novamente que a “casa” não é ape­
nas um espaço de consumo, como hoje. Mas é o espaço da produção. A
agricultura gira em torno dela e ela é o lugar da indústria. Ali são produzi­
dos alimentos, queijo, farinha, pão, conservas, roupas, calçados, móveis,
etc. É significativo que a mulher tem papel central nesse trabalho todo.
Além disso, podemos ver na mulher uma metáfora para se referir à
sabedoria. Nesse sentido, a sabedoria é como a mulher de valor para
todas as pessoas, levando-as ao discernimento, à justiça, à vida, à honra e
ao bem-estar. Há uma relação estabelecida com a comparação com a jóia
rara entre a mulher sábia e a mulher de valor. Compare a semelhança entre
Pr 31,10; 3,15 e 8,11!
Porém, mesmo com sentido figurado, a forma como é apresenta­
da a mulher nos mostra que seu autor era dependente de uma mentalidade
machista. Esta forma é reforçada pela tradição que lê esse texto como
normativo de comportamento para as mulheres, idealizando a mulher
que faz tudo, trabalha em todos os setores e ainda atua como mãe e espo­
sa. Este modelo de mulher recebe reconhecimento e valor na medida que
cumpre com as expectativas estabelecidas pela sociedade patriarcal.

141
Que valor damos nós à sabedoria popular, aos provérbios po­
pulares? Será que muitos deles não são mais profundos do que altas
reflexões filosóficas ou longos tratados de mestrado ou doutorado?
Até que ponto o Livro dos Provérbios nos ajuda a levar a sério a
cultura popular e sua capacidade de ver a vida numa perspectiva de fé,
levando-nos a louvar a Deus por sua presença no cotidiano? Como
podemos reler provérbios que refletem a ideologia dominante ou uma
cultura ainda fortemente marcada pelo patriarcalismo?

Para você continuar a reflexão


Leia Pr 8,22-36; Gn 1,1-27 e Jo 1,1-5! a) Comente o que os três
textos têm em comum entre si! b) Qual é sua mensagem para nós hoje?

2 Releitura sacerdotal do Pentateuco e sua


edição final
Neste capítulo, vamos refletir sobre dois assuntos. O primeiro é a
releitura do Pentateuco feita pelos sacerdotes e levitas durante e depois do
exílio. O outro é a edição final da Lei ou Torá, como os judeus chamam o
Pentateuco.

Releitura sacerdotal do Pentateuco

Já falamos acima da reinterpretação sacerdotal da história de Israel.


Os círculos sacerdotais deixaram fortes marcas de sua visão da his­
tória de Israel a partir de seu espaço, o mundo do templo, do culto, dos
sacrifícios, do sagrado, da lei.
Já vimos que, durante o exílio, os sacerdotes fizeram acréscimos no
Livro de Gênesis. A Ia narrativa da criação tem a sua participação (1,1-
2,4a). È interessante notar que já na I apágina da Bíblia haja uma referência

142
às festas religiosas, preocupação típica do clero, embora não exclusiva (cf.
Gn 1,14). A preocupação com as genealogias também tem origem entre
os sacerdotes (Gn 5; 10; ll,1 0ss). Sobre o dilúvio e a circuncisão você já
leu acima.
As marcas sacerdotais mais fortes, porém, estão nos Livros do Êxo­
do, Levítico e Números.

Monopólio da mediação entre Deus e o povo


Antes do exílio, o rei cumpria um importante papel na mediação
entre Deus e o povo. Em Jerusalém, o dogma da filiação diiina do rei legiti­
mava o monarca como principal mediador entre seus súditos e a divinda­
de. Sobre a doutrina dafiliação diiina do rei, você já leu nas páginas 63 e 64
do volume 3 desta série. O templo, os profetas da corte e os sacerdotes
tinham um papel importante nesse processo. Também no Reino do Nor­
te, o santuário era templo do rei, símbolo legitimador do reinado (cf. Am
7,13).
Mas tanto no sul como no norte, o movimento profético popular,
como resistência contra o reinado, lutava para constituir-se em uma forma
alternativa de mediação entre Deus e o povo.
Porém, no exílio e no pós-exílio, quando não havia mais rei, as
coisas mudaram. Com a volta de grupos de judeus da Babilônia, foram
reconstruídos o altar e o templo. Cada vez mais, a função da mediação
entre Deus e o povo passou a ser assumida com exclusividade pelos sa­
cerdotes e levitas. Passou a ser monopólio seu.
È interessante observar como em l-2C r, de autoria dos mesmos
círculos, os levitas assumem o papel dos profetas. Como os antigos pro­
fetas (Mq 3,8; Is 42,1; 61,1), agora também os levitas têm o dom do
“espírito de YHWH” (2Cr 20,14-20). Chegam a ser chamados de “viden­
tes” e “profetas” (lC r 25,5; 2Cr 29,25-30). Não deixe de ler as citações!
Os autores cronistas chegam a colocar os levitas no lugar dado aos profe­
tas pelos deuteronomistas. É a luta pela Palavra. O clero se apossa da
Palavra apresentando-se como a autêntica voz daprofecia (cf. Jo 11,51).
Compare 2Cr 34,30 com 2Rs 23,2!
Os escritos dos sacerdotes e levitas pós-exílicos dão testemunho de
como os responsáveis pelo culto no templo foram se apropriando da

143
tradição profética popular. Isso explica que a resistência, que os antigos
profetas exerciam contra os reis e suas estruturas de dominação, passa a j
ser expressa, de um lado, na literatura sapiencial popular (Rt, Jó, Ct, Jn, 1
Est, Jt) e, de outro, nas profecias anônimas, cujos oráculos foram acres­
centados a outros livros proféticos. E o caso de Zc 9-14. Zc 13,2-6 regis­
tra a crítica aos que haviam roubado a memória de resistência dos pobres,
a memória de luta dos verdadeiros profetas. Confira!
Temos, portanto, fortes divergências entre os autores dos escritos
sacerdotais no Pentateuco e na Obra Cronista por um lado, e, por outro,
os autores da literatura sapiencial de resistência, fruto do movimento pro­
fético popular anônimo. Nesse sentido, é importante termos claro que as
divergências teológicas são em grande parte a expressão, em nível de reli­
gião, dos conflitos de classe. Esse contraste teológico é também con­
seqüência do enfrentamento dos pobres da terra com a comunidade ju­
daica repatriada em torno de Jerusalém, que tinha o apoio dos persas. Para
se impor sobre o povo do campo que aí morava, os repatriados formu­
laram a fé de Israel a partir do ponto de vista de sua precedência sobre os
outros segmentos da população, o que eqüivalia, de fato, a oprimir os
mais pobres.

Principais preocupações do escrito sacerdotal


Foi no decorrer do século 5 a.C. que os sacerdotes e levitas coloca­
ram por escrito antigas tradições orais, como listas, rituais e genealogias,
acrescentando uma serie de novas prescrições. Atenção especial é dada às
questões que têm a ver com o culto, tais como o sábado, a circuncisão, o
santuário, a matança de animais para os sacrifícios, o ritual dos diferentes
tipos de sacrifícios, a pureza ritual, a ordenação dos sacerdotes e suas
funções, as normas sobre o puro e o impuro, etc.

Principais textos dos sacerdotes no pós-exílio


A maior parte do material literário produzido pelos sacerdotes e
levitas, entre os quais Esdras, tem um destaque especial, podemos encon­
trar em:

144
• Ex 24,12-40,lss
- 24,12-31,18: Modelo de santuário e prescrições relativas aos sa­
cerdotes.
- 32-34: O bezerro de ouro e a renovação da aliança (são textos mais
antigos, aqui inseridos e relidos na perspectiva pós-exílica dos sacerdotes).
- 35-40: Construção do santuário. É uma repetição quase literal de
25-31.
• Todo o Livro do Levítico
-1-7: Ritual dos vários tipos de sacrifícios.
- 8-10: Ritual de ordenação dos sacerdotes.
-11-16: Normas sobre o puro e o impuro e Festa da Expiação (16).
- 17-26: Lei de Santidade. Já vimos acima que Lv 17-26 também
tem os sacerdotes como autores, porém, na época do exílio.
- 27: Normas sobre tarifas e avaliações.
• Nm 1,1-10,28
-1-4: Recenseamento das tribos.
- 5-6: Leis diversas.
- 7-8: Ofertas dos chefes e consagração dos levitas.
- 9,1-10,28: Celebração da Páscoa e partida do Sinai.
Importante é lembrar que tudo o que é narrado nos textos acima
acontece junto ao monte Sinai. E claro que se trata de uma ficção literária,
para legitimar, sob a autoridade de Moisés, toda a legislação posterior.
Ainda outros trechos de Números devem ser desses mesmos cír­
culos sacerdotais:
-15-19: Normas sobre os sacrifícios e sobre o poder dos sacerdo­
tes e levitas.
- 26-31: Novo recenseamento e novas normas.
- 33-36: Memória da caminhada e prescrições sobre as fronteiras
da terra, aparte que cabe aos levitas, as cidades de refúgio e a herança para
as mulheres.
Para muitas pessoas, a leitura de todas essas prescrições torna-se
enfadonha. Por isso, caso não queira ler tudo, convidamos você a dar uma
olhada, pelo menos, em alguns capítulos, para ter uma ideia do jeito desses
textos de origem sacerdotal.

145
O Sinai e a instituição divina do culto
Para as tradições mais antigas em Israel, a experiência com YHWH
está intimamente relacionada com sua presença na libertação do poder
opressor do Egito e dos príncipes cananeus. É interessante observar que,
nos textos mais antigos, o eixo central é o Êxodo, a libertação, como
aparece no “credo” israelita (Dt 6,20-25; 26,1-11).
A medida que a tradição do Êxodo vai sendo conectada com a do
Sinai, a imagem que prevalece é a de um Deus solidário, presente no meio
do povo para promover a libertação dos hebreus diante da opressão do
faraó (Ex 3,1-4,17; 20,2). O Êxodo era o lugar da Aliança amorosa de
YHWH com Israel, expressa no Código da Aliança (Ex 19,1-24,11), cujo
coração é o Decálogo (Ex 20,2-17). As leis deveriam garantir a liberdade
e a solidariedade conquistadas no Êxodo (Dt 6,20-25).
Diferentemente dessas tradições mais antigas, a releitura desse perío­
do da história de Israel feita pelos sacerdotes muda o eixo fundamental da
fé do antigo Israel. Para eles, o centro está no Sinai como lugar da lei e do
culto. O monte santo passa a ser o lugar da instituição divina do culto.
Somente nesse monte, teve origem o legítimo culto de sacrifícios no altar
do templo.
No monte, são realçadas a glória, a santidade e a transcendência de
Deus. E o culto no templo deve reproduzir essa transcendência, essa san­
tidade e essa glória. Daí a excessiva preocupação com a pureza no ofere­
cimento de sacrifícios. Somente podiam ser ofertados pelos puros e san­
tos sacerdotes. Nem os levitas podiam ofertar no altar. Muito menos ho­
mens leigos. Mulheres e estrangeiros, nem falar! Aqui, vale a pena relem­
brar que foram os reis Ezequias e Josias que começaram a destruir os
santuários do interior, proibindo aos levitas exercerem seu sacerdócio e
levando-os ao templo de Jerusalém, onde exerciam funções subalternas.
Os rituais deviam ser executados rigidamente, de acordo com as prescri­
ções. E o que se pode constatar nos escritos sacerdotais do pós-exílio.
O culto com seus sacrifícios era interpretado fundamentalmente
como um ato em que se buscava o perdão de Deus. Somente com esse
ato de expiação dos pecados, as pessoas se tornavam suficientemente san­
tas para viver na presença de um Deus três vezes santo, totalmente outro.
A intenção fundamental do oferecimento de tantos sacrifícios era acalmar

146
permanentemente a ira de Deus, para que não viesse a acontecer uma
nova catástrofe sobre Israel, como havia sido no fim da monarquia, da
cidade santa e do templo, bem como o exílio com todas as suas con­
seqüências.

Uma literatura ambígua


Por um lado, a literatura dos sacerdotes e dos levitas no exílio e no
pós-exílio produziu esperança na pequena comunidade judaica seja no
cativeiro babilônico, como também em Judá. Contribuiu na manutenção
da identidade dojudaísmot, inclusive até os nossos dias.
A monarquia fracassara. No lugar do rei, apresentaram o sacerdó­
cio como o novo líder do povo, capaz de conservar as tradições, a união,
a identidade, a observância da lei, a pureza ritual. Pensavam que, assim
agindo, Deus ouviria os seus clamores, da mesma forma como escutara o
grito dos antepassados, quando foram oprimidos no Egito. O nto litúrgi-
co passou a ser a grande certeza da presença de Deus no meio do povo.
Em meio a esse conturbado e crítico período de centralização no
templo, havia uma legítima preocupação dos sacerdotes em preservar a
identidade da comunidade judaica repatriada. Os escritos sacerdotais pre­
tendiam, portanto, contribuir no sentido de garantir a identidade do Judaís­
mo. Queriam evitar que fosse absorvido pelo império, pelos povos vizi­
nhos ou amda pelo povo pobre da terra, especialmente os samantanos.
Por outro lado, não podemos deixar de perceber que a teologia
sacerdotal pós-exílica, especialmente a partir de Esdras, contribuiu decisi­
vamente para fazer do templo um lugar que legitima uma verdadeira pirâ­
mide social. Vejamos alguns aspectos:
• Não questiona o império, pois tem seu apoio.
• O dogma da retribuição reforça a resignação dos pobres.
• A doutrina do puro e do impuro discrimina, entre outros grupos,
os pobres, as mulheres e os estrangeiros.
• Concebe Deus como totalmente santo e inacessível. O povo não
tem mais acesso a ele. Antes da releitura sacerdotal dos antigos escritos de
Israel, o povo ainda tinha acesso direto a Deus. Não deixe de ler Ex 24,9-11!
Nos textos mais antigos inseridos em Ex 25-40, isto é, em Ex 32-34, Moisés
ainda aparece conversando com seu “amigo YHWH”. Leia 33,9-11. No

147
entanto, os sacerdotes pós-exílicos conseguiram impedir o acesso direto
do povo a Deus. Dificultaram inclusive o acesso do próprio Moisés a
Deus. Em Ex 40,34-35, você pode ler que nem Moisés tem mais possibi­
lidade de entrar na tenda de reunião e se encontrar com seu “amigo
YHWH”. Muito menos o povo.
• Para intermediar o acesso a YHWH, os sacerdotes se oferecem
como mediadores entre Deus e o povo através do culto no templo. Apre­
sentam-se como os verdadeiros substitutos de Moisés. Esse papel não só
sedimenta seu poder religioso, mas legitima também seu poder político e
garante sua supremacia econômica. O acesso a Deus no Santo dos Santos
do templo é restrito ao sumo sacerdote em somente um dia por ano, na
Festa da Expiação (Lv 16). Não é mais o profeta que pode falar com e em
nome de Deus. Agora, somente o sumo sacerdote. È o fim da profecia.
Além disso, para os sacerdotes pós-exílicos, somente o sumo sacerdote será
ungido com óleo (Ex 29,7; Lv 8,12). A partir de Esdras, portanto, o sumo
sacerdote passa a assumir não só o papel do profeta mas também o do rei.
• Nos escritos sacerdotais, há uma excessiva preocupação com o
clero, o culto e o templo.

Edição final do Pentateuco

A redação final do Pentateuco foi obra dos círculos sacerdotais


em torno de 400 a.C. A perspectiva final dessa última edição da Torá é a
ótica de sacerdotes e levitas. Foram eles que deram o toque final, a cor
dominante aos livros da lei.
Podemos dividir o conteúdo do Pentateuco da seguinte forma:
• Gn 1-11: Narrativas sobre as origens. Gênesis começa falando
das narrativas da criação e do projeto paradisíaco que Deus planejou para
a humanidade (1-2). Esta, porém, desobedeceu a Deus e estabeleceu rela­
ções de opressão entre pessoas, classes e povos. Até a terra vai sofrer das
feridas abertas pelo pecado (3-11). Destaca-se nesse bloco a teologia da
criação. YHWH é o criador da vida. Ele nos convida a sermos criadores
com Ele na geração, na defesa e na promoção da vida.

148
• Gn 12-50: Os pais e as mães em Israel Essa 2a parte de Gêne­
sis trata de dois temas. O primeiro é a respeito da vida e das andanças de
grupos pequenos de pastores seminômades (12-36). Sua caminhada é sus­
tentada pela dupla promessa de descendência numerosa e da definitiva
posse de terra. Deus chega a fazer aliança com Abraão, garantindo o cum­
primento da esperança desses sem terra. O segundo tema desse bloco é a
idade Jacó com toda sua família para o Egito, a casa da servidão (37-50).
Mesmo no Egito, permanece a esperança de sair para uma terra onde
corre leite e mel.
• Ex 1,1-15,21: A opressão e a libertação dos hebreus. A Iapar­
te do Livro do Exodo descreve a situação de opressão dos hebreus e seu
processo libertador movido pela fé em YHWH, o Deus que faz história
com quem luta por uma vida livre. Nesses capítulos, está presente a mais
antiga e mais importante experiência de Deus feita pelos hebreus. E a
teologia do Exodo, a primeira teologia da libertação. E a luta por vida digna
e por liberdade, uma vida com plena cidadania. Do ponto de vista teológi­
co e temático, esse bloco é o ponto alto do Pentateuco.
• Ex 15,22-18,27: Caminhada libertadora do Egito ao Sinai.
YHWH continua sustentando os hebreus a caminho da terra prometida.
De um lado, o deserto serve de espaço para superar o sistema e a ideolo­
gia do Império Egípcio. De outro, serve como ensaio de uma nova for­
ma de viver sua fé em Deus, bem como vivenciar novas relações econô­
micas e de poder.
• Ex 19,1-Nm 10,10: Aos pés do Sinai. Embora já tenha apareci­
do no bloco sobre os pais e as mães em Israel, é nesse bloco que se
localiza o ponto alto da aliança entre YHWH e Israel. A teologia da aliança
tem como centro o am or gratuito e fiel de Deus por seu povo. O sinal
concreto dessa aliança é a doação da lei no monte. Sua síntese é o Decálo-
go, cujo centro é a proteção da vida (“Não matarás!” - Ex 20,13). Já
vimos acima como, na edição final do Pentateuco no pós-exílio, os sacer­
dotes mudaram o eixo central do evento no Sinai para destacar a sacrali-
dade do culto, colocando em segundo plano a teologia do Exodo liberta­
dor. Enfatizam a observância da pureza ritual e legal. Como esse bloco

149
ocupa um terço de todo o Pentateuco, podemos perceber o quanto pe­
sou a mão dos sacerdotes e levitas na edição final dos livros da lei.
• Nm 10,11-21,35: Caminhada do Sinai até Moab. Continua a
caminhada em direção da terra. Nesse bloco, entre outros, são retoma­
dos os mesmos episódios da prim eira etapa da caminhada. Compare,
por exemplo, Ex 16 com Nm 11,1-9.31-35, bem como Ex 17,1-7
com Nm 20,1-13!
• Nm 22-Dt 34: Na estepe de Moab. Nesse bloco, se passam os
últimos acontecimentos narrados no Pentateuco. Depois dos capítulos fi­
nais de Números, vem o Livro do Deuteronômio. É apresentado como
um grande discurso de Moisés antes de sua morte. Ele começa lembran­
do o passado e passa a promulgar inúmeras leis, para, no final, concluir
seu discurso com bênçãos e maldições. O livro termina falando da aliança
em Moab e das últimas disposições de Moisés.
E importante chamar a atenção para o fato de o Pentateuco termi­
nar sem que seja cumprida a promessa da entrada na terra prometida. O
Deuteronômio e, portanto, todo o Pentateuco, termina sem que a terra
tivesse sido libertada. Essa era a situação dos judeus, quando a última
edição do Pentateuco foi produzida. Eram outra vez escravos, porém,
em sua própria terra (Ne 9,36-37). Portanto, fazia-se necessária uma nova
libertação na própria terra. A promessa de terra livre ainda estava por ser
cumprida. No seu conjunto, o Pentateuco propõe um projeto futuro de
esperança a seus destinatários no final da época de dominação persa. É a
continuidade da caminhada iniciada por seus antepassados em direção da
liberdade na terra prometida.

E, ainda hoje, o Pentateuco quer ser um conjunto de livros que


continua propondo esse mesmo projeto. É um convite a cada pessoa
e grupo que o lê a dar o próximo passo da caminhada em direção da
vida livre em terra libertada, em terra repartida, recriando sua esperan­
ça e concretizando em sua vida o propósito de Deus. Nesse sentido,
não é muito atual esse conjunto de livros?

150
Para você continuar sua reflexão
Leia Lv 13,1-46; 14,1-32, bem como Mc 1,40-45 e reflita! a) Qual
era a situação das pessoas leprosas quanto ao convívio social e quanto à
sua relação com Deus? b) Qual era o papel dos sacerdotes nos casos de
lepra? Por que se manda o leproso curado apresentar-se ao sacerdote?

3 Obra Historiográfica Cronista - OHC


Fazem parte da OHC os seguintes livros: lC r, 2Cr, Esd e Ne.

Comparando a OHD com a OHC


Na Iaparte deste volume, fizemos menção à Obra Historiográfica
Deuteronomista (Js,Jz, l-2Sm e l-2Rs).
A OLID é mais crítica à dinastia davídica. Há forte influência profé­
tica na edição final desse conjunto de livros, como já vimos. x\li se faladas
infidelidades de Davi, das suas desavenças com Saul, de seu adultério com
Betsabeia, do assassinato de Urias, dos dramas familiares, da revolta de
Absalão contra seu pai, bem como da resistência de Semei e de Seba
contra a dominação de Davi sobre as tribos do Norte.
Diferentemente da OHD, a OHC procura enaltecer a dinastia daví­
dica, omitindo, entre outras passagens, as citadas acima. Procura apresen­
tar um Davi livre de fraquezas e pecados. Sua dedicação ao templo, ao
culto e ao louvor de Deus é total. O único aspecto negativo de Davi que
ainda apresenta é o caso do censo feito por ele (2Sm 24 e lC r 21). Mas
esse pecado de Davi é tolerado na OHC, porque leva à compra do terre­
no sobre o monte Sião onde seria construído o templo, tão importante
para os redatores da OHC. Não deixe de ler 2Sm 24,18-25 e lC r 21,18-
22,1 e repare especialmente o acréscimo de lC r 22,1!
A OHC é uma releitura da história de Israel feita na ótica das castas
sacerdotais e dos círculos levíticos de Jerusalém em torno de 350 a.C. Não
é, portanto, uma versão feita a partir dos grupos discriminados pelo Juda­
ísmo ortodoxo. Pelo contrário, legitima a exclusão deles. Confirma o dogma
da pureza étnica de Israel e da doutrina da retribuição. Enaltece sobretudo
a tribo de Judá, da qual Davi é descendente. Idealiza Davi, apresentando-

151
o como um santo, totalmente voltado ao culto. Não é por acaso que quase
a metade dos salmos é atribuída a Davi. E que a edição final do Saltério
também foi feita pelos mesmos editores finais do Pentateuco e autores da
OHC. Os cronistas dão também destaque especial à tribo de Levi, para
reivindicar a importância dos levitas.
A OHC não é historiografia no sentido moderno da palavra. E mais
uma leitura teológica da vida de Israel que visa a atender as necessidades da
comunidade de repatriados. Os cronistas precisavam reforçar a identidade
do Judaísmo, a centralização no templo de Jerusalém, seu dogma de pureza
étnica, a superioridade de Judá e de Davi, no contexto do conflito que
produzia a discriminação dos pobres da terra e dos samaritanos.
Convidamos você a dar um passeio pela OHC, a partir de suas
grandes divisões como segue.

As grandes etapas da releitura sacerdotal da história


lC r 1-10: Genealogias desde Adão até Saul, isto é, desde as ori­
gens até em torno de 1010 a.C. A genealogia desde Adão até Abraão
retoma as genealogias de Gn 1-11.
È importante perceber aqui a insistência no dogma de pureza étni­
ca. As genealogias querem provar que os judaítas e parte dos benjaminitas
são os israelitas legítimos, o único povo escolhido por Deus desde o iní­
cio. Quando os cronistas se referem a Israel, querem, de fato, referir-se a
Judá e parte de Benjamim.
Outros destaques. Há um interesse especial pela tribo de Judá da
qual Davi é descendente (lC r 2,1-17; 3,1-4,23). A intenção é destacar a
supremacia de Davi e de Judá sobre as tribos do Norte, os samaritanos.
Há também destaque para a tribo de Levi (lC r 5,27-6,66 - Almei­
da = 6,1-81; 9,14-34). Isso não acontece por acaso. Junto com as castas
sacerdotais sadoquitas, os levitas são autores dessa obra. Querem, portan­
to, valorizar o papel que exercem no culto do 2o templo, onde vão assu­
mindo a função de profetas, como vimos acima. Conforme seus escritos,
foram inclusive empossados por Davi e Samuel para exercer suas funções
no templo (lC r 9,22b). Como já vimos, conseguiram inclusive fazer do
sacerdote jebuseu Sadoc um descendente da tribo de Levi (lC r 5,27-34 —
Almeida = 6,1-8).

152
Chama também a atenção que, embora faça a genealogia das tri­
bos, a OHC omite totalmente a libertação da terra das mãos dos reis
cananeus e a rica experiência de fraternidade na época tribal. Moisés quase
desaparece no texto. E citado somente duas vezes (lC r 5,29 —Almeida
6,3; 6,34 - Almeida = 6,49). Essa omissão ajuda a apagar a memória
subversiva do Exodo. Tudo indica que essa omissão também se deve ao
fato de Moisés e a memória de libertação da opressão faraônica serem
importantes para as tribos do Norte, isto é, os samaritanos, tão despreza­
dos pela comunidade judaica repatriada.

lC r 11-29: O reinado de Davi (1010-970 a.C.). Nesses relatos,


convém destacar a ênfase que é dada a uma única dinastia, a de Davi, é
claro. O monarca representa o verdadeiro rei, que é YHWH.
Como já vimos acima, na OHC há omissões importantes da vida
de Davi narradas na OHD, mais crítica ao monarca. As omissões querem
apresentar um rei santo, idealizado e interessado no culto de Jerusalém.
Chegam a apresentar Davi como um novo Moisés. Em 2Cr, os cronistas
atribuem a Davi um título profético, chamando-lhe “homem de Deus”
(2Cr 8,14). É modelo de fidelidade à lei de Deus (2Cr 7,17). Seu Deus é
apresentado como o dos patriarcas (2Cr 21,12; 34,3). Por trás dessa idea­
lização de Davi está a esperança na vinda de um messias davídico.
Nos acréscimos feitos à OHD, os sacerdotes e levitas dão ênfase maior
à arca. Compare lC r 13; 15; 16 com 2Sm 6,2-11! Apresentam Davi conferin­
do dignidade especial aos levitas (lC r 15; 16,4; 23-25). Davi chega, inclusive, a
preparar todo o material para a construção do templo, desde a compra do
terreno (lC r 21,18-30) até das pedras, da madeira e dos metais (lC r 22,2-19),
bem como a organizar as doações para o santuário (lC r 29,1-9), deixando
para Salomão o projeto do templo prontinho (lC r 28,11-20).

2Cr 1-9: Reinado de Salomão (970-931 a.C.). Aqui, o acento prin­


cipal é a construção do templo, como único lugar da morada de Deus em
meio ao povo. Se há um só santuário, também um só será o culto. A
intenção é polemizar com os samaritanos que, na época da redação da
OHC, construíram um templo de YHWH no monte Garizim, que seria
destruído mais tarde por João Hircano (128 a.C.). Querem, portanto, des-
legitimar o culto celebrado pelos israelitas do Norte.

153
Omitem todo o capítulo 11 de lR s, onde se fala dos pecados de
Salomão e da opressão sobre os trabalhadores forçados. Igualmente, não
fazem nenhuma referência à forma sanguinária como Salomão usurpou o
trono que, por direito, pertencia a Adonias, seu irmão mais velho ainda
vivo (lR s 1-2). Idealizam, portanto, também a figura de Salomão, o gran­
de construtor do Io templo.

2Cr 10-36: O Reino de Judá (931-586 a.C.). Esse bloco exalta a


dinastia de Davi e a monarquia de Judá. Omite totalmente a história do
Reino do Norte, considerando-o idólatra, por ter se rebelado contra Davi,
o eleito de YHWH. Leia atentamente o discurso do rei Abias de Judá para
Jeroboão I, rei de Israel, em 2Cr 13,4-12! Nesse texto, os cronistas estão se
dirigindo aos samaritanos para lhes dizer que somente Judá é a única rea­
leza, que YHWH pertence ajudá, que Judá tem o único sacerdócio legíti­
mo e o único culto de acordo com a lei.

Esd 1-6: Retorno e reconstrução do altar e do templo (538-


515): E interessante notar que os cronistas não dizem nada a respeito da
situação dos cativos na Babilônia. Deixam, portanto, sem informações
um espaço de quase 50 anos.
Os seis primeiros capítulos do Livro de Esdras já nos levam ap er­
ceber o quanto eram importantes o culto, o altar e o templo no projeto
dos repatriados. Só consideravam legítimo o templo de Sião.
Como vimos acima demoradamente esse assunto, limitamo-nos
aqui a estas observações, lembrando, porém, que o templo assim concebi­
do definia os diferentes graus de santidade, legitimando uma pirâmide de
discriminações.

Esd 7-10; Ne 1-13: Reformas de Neemias e de Esdras (445-


398 a.C.). Novamente, os cronistas omitem informações sobre 70 anos
de história da comunidade judaica, isto é, desde 515 até 445 a.C.
Já vimos acima que a essência do projeto do governador Neemias,
nomeado pelo imperador persa, foi a reconstrução das muralhas de Jeru­
salém bem como a repovoação da nova capital da província e a garantia
da sustentação dos levitas responsáveis pelo culto.

154
Também vimos que o sacerdote e escriba Esdras, alto funcionário da
corte persa, voltou para Jerusalém e exigiu a observância rigorosa da Lei
referente à vida dos judeus, do templo, do culto, da pureza ritual e da pureza
étnica, com vistas à defesa da identidade da comunidade judaica repatriada.

4 Salmos
“ P ois em ti está a fo n t e da vid a.” (SI 36,10)

Antes de mais nada, convidamos você a refletir sobre sua vida de


oração. Que lugar ocupa a oração em sua vida, seja ela pessoal ou comu­
nitária? Qual é a oração que mais alimenta sua mística e intimidade com
Deus? E a oração já pronta, elaborada por outros ou é sua silenciosa
escuta e diálogo com Deus? Qual é o espaço que ocupam os salmos em
sua oração? Como são valorizados os salmos em sua comunidade eclesial?
São cantados ou simplesmente recitados?

Cinco coleções de salmos


O saltério pode ser comparado com os cancioneiros de nossas
comunidades. São cânticos litúrgicos que foram criados para serem canta­
dos nas celebrações e peregrinações, ou ainda para uso privado. Quando
rezados em comunidade, eram acompanhados por instrumentos musicais.
O título hebraico do Saltério quer dizer “hinos”. A palavra “salmo”
vem do grego e quer dizer “canto acompanhado com instrumento musi­
cal”. De fato, há muitas referências a instrumentos musicais. Confira, por
exemplo: SI 33,2-3; 46,1; 54,1; 81,3-4; 150,3-5. Como havia música e can­
to, também se rezava com alegria, batendo palmas e dançando. Veja SI
47,2; 150,4. Todo o corpo participava da oração e não apenas a mente.
Leia ainda SI 22,30; 63,5; 95,6; 138,2!
As notas introdutórias a boa parte dos salmos e que se referem ao
autor, à época de composição, ao gênero literário ou aos instrumentos
musicais a serem usados na sua execução, geralmente são acréscimos pos­
teriores. Entre outras questões, essas notas querem ajudar os dirigentes do
canto a entoarem a melodia certa.

155
Os editores finais do saltério são os mesmos que elaboraram a
OHC e os escritos sacerdotais do Pentateuco, fazendo sua edição final em
torno de 350 a.C. Porém, é possível que tenha havido acréscimos posterio­
res. Tinham interesse em organizar o Livro dos Salmos também em cinco
coletâneas: 1-41; 42-72; 73-89; 90-106; 107-150.
"Tua Pa lavro é Confira agora em sua Bíblia a fórmula semelhante
lâm pada para dos versículos finais de cada uma dessas coleções!
os meus passos, Por trás dessa divisão está a ideia dos sacer­
luz para meus dotes e levitas em editar o saltério, imitando os
cam inhos." livros da lei, o Pentateuco, também dividido em
(SI 1 1 9 ,1 0 5 ) cinco livros. Assim, cada parte do saltério corres­
ponderia a um livro da lei. Nesse sentido, os sal­
mos seriam a dimensão orante da lei. São, ao mesmo tempo, uma síntese
da história de Israel, da sua profecia, de sua sabedoria e da sua lei. De fato,
muitos salmos fazem referência à lei. Confira algumas das citações que
seguem: SI 1,2; 19,8-11; 37,31; 40,9; 78,1.5.10; 94,12 e todo SI 119.
Além dos 150 salmos do saltério, há muitas outras orações nos
demais livros da Bíblia. Somente para citar algumas: Ex 15,1-21; Jz 5,1-31;
ISm 2,1-10; Lc 1,46-55; 1,68-79; 2,29-32.

Várias coletâneas contribuíram para a edição final do saltério


Porém, antes da edição final do saltério, muitos cancioneiros já exis­
tiam e eram usados por diferentes grupos e também para a espiritualidade
pessoal. Citemos alguns exemplos.
•SI 3-41. Este cancioneiro é conhecido por “Saltério de Davi”.
Exceto o SI 33, todos os demais são atribuídos a Davi.
•SI 42-89. Esta coletânea de orações é cham ada de “Saltério
E loísta” porque, para referir-se a Deus, usa o nome de Elohim. Dentro
desse cancioneiro, podemos ainda perceber as seguintes subdivisões:
- SI 42-49; 84-85; 87-88: São os “Salmos dos filhos de Coré”. É
possível que seja o cancioneiro desse grupo de cantores.
- SI 50 e 73-83: São os “Salmos de A saf” . E provável que tenha
sido o livro de cantos desse grupo de levitas cantores.
- SI 51-70: Este é mais um “Saltério de Davi” . Exceto os SI 66-67
e 72, todos os demais são atribuídos ao patrono do culto.

156
•Outras coleções de salmos:
- SI 90-104. essa coleção reúne vários hinos monoteístas.
- SI 108-110 e 138-145: É um 3o “Salténo de Davi”.
- SI 120-134: Cancioneiro dos “Cantos de subida ou de peregrinação”.
- SI 105-107; 111-114; 116-118; 135-136 e 146-150: São os Aleluias”,
que convidam ao louvor de Deus.
Essa junção de coleções pré-existentes explica certas repetições. Veja,
por exemplo, que o SI 14 se repete no SI 53. O SI 70 está repetido em SI
40,14-18. O SI 57,8-12 se repete no SI 108,2-6. O SI 60,7-14 está repetido
do SI 108,7-14.

Salmos, a vida em forma de oração


Esses cânticos nos revelam a espiritualidade do povo de Israel. São
o coração do Primeiro Testamento. Eles são o cotidiano da vida transfor­
mado em oração. Toda a vida de Israel está espelhada nos salmos, que
estão profundamente enraizados na experiência do dia-a-dia. Talvez seja
por isso que são tão espontâneos. Diferentes situações da vida, como a
alegria, as dores, as esperanças, as vitórias e derrotas, são transformadas
em oração de louvor, de ação de graças, de súplica, de lamento e de
confiança.
Também os lugares de formação dos salmos são os mais diversos.
Eles nasceram no campo, na cidade, na terra de Israel, na Babilônia.
Podemos comparar os salmos com a água de um rio, pois percor­
rem e fertilizam a história, a mística, a vida das pessoas e comunidades que
os rezam.
Embora tenhamos salmos que falem na Ia pessoa do singular, é
preciso que os rezemos como cânticos comunitários, pois sua base é a
história de um povo, celebrada à luz da fé. Se os salmos com linguagem
individual foram colocados no cancioneiro das comunidades, isso quer
dizer que foram assumidos por toda a comunidade, já na época da Bíblia.

157
Mais de seiscentos anos de composição
Há alguns salmos muito antigos e são anteriores à monarquia.
Principalmente a partir do exílio, os sacerdotes passaram cada vez
mais e idealizar Davi como fundador e grande promotor do culto, como
vimos ao estudar a OHC. Essa é a razão por que muitos salmos são
atribuídos ao patrono do culto, embora tenham surgido só mais tarde.
Vários salmos sofreram um longo processo de formação. Com o passar
dos anos, foram modificados e reinterpretados.
De muitos salmos, é possível saber a época histórica em que foram
escritos, a partir das informações contidas neles. De muitos outros, po­
rém, não é mais possível descobrir a data aproximada de seu surgimento.

Numerações diferentes dos salmos


Na Bíblia Hebraica, há uma numeração dos salmos. Na Septuagin-
ta, a tradução para o grego, ela é diferente. Essa diferença se deve ao fato
de a tradução grega, por um lado, reunir em um só os Salmos 9 e 10, bem
como os Salmos 114 e 115. Por outro, divide em dois os Salmos 116 e
147 da versão hebraica. Resultam, assim, as seguintes diferenças de nume­
ração entre os textos hebraico e grego:

Hebraico Grego Hebraico Grego


1 -8.................. .......1-8 116,1-9................. ............ 114
9 ...................... .......9,1-21 116,10-19............ ............ 115
10.................... .......9,22-39 117-146............... ............ 116-145
11-113........... ....... 10-112 147,1-11.............. ............ 146
1 1 4 ................. .......113,1-8 147,12-20............ ............ 147
1 1 5 ................. .......113,9-26 148-150................ ............ 148-150.
Nesta introdução à Bíblia, sempre citamos os salmos na versão
hebraica, adotada pelas traduções modernas, que colocam entre parêntesis
a numeração da versão grega.

Uma proposta de classificação dos salmos


Há muitas maneiras de classificar os salmos. E só você conferir
introduções ao Livro dos Salmos em algumas Bíblias e encontrará uma

158
classificação conforme os gêneros literário dos salmos, a sua forma poé­
tica.
Como achamos a proposta de Marc Girard (Como ler o Uvro dos
Salmos. São Paulo: Paulus) própria para esta introdução, deixamo-nos gui­
ar por ele. Mais que classificar os salmos segundo sua forma poética, pro­
põe dividi-los com base nas ênfases teológicas, bem como a partir das
situações concretas da vida de onde nasceram.
Nessa perspectiva, pode-se dividir os salmos em quatro categorias
ou famílias, a saber, salmos de libertação, de instrução, de louvor e. de celebração
de eventos da tida. Cada categoria pode ser associada a uma ideia central ou
palavra-chave. Além disso, em cada família de salmos aparece com mais
clareza uma das três principais teologias que perpassam toda a Bíblia. Se­
guindo esses passos, vamos à classificação dos salmos.

1. Salmos de libertação
Os salmos de libertação também podem ser chamados de salmos
de súplica. Na maioria deles, podemos escutar o grito por socorro dirigi­
do a Deus.
A palavra-chave dessa categoria de salmos é “drama”, pois a vida
que está por trás do salmo é uma situação
de crise, de conflito ou de sofrimento diante "Em minha angústia
de situações de opressão política, social, eu gritei a YHWH,
moral, física, psicológica ou existencial. Atra­ e ele me responderá."
vés dessa família de salmos, as pessoas e a (SI 120,1)
comunidade buscam fortalecer sua luta por
libertação.
A ênfase teológica dos salmos de libertação é a teologia do Êxodo,
que nasceu no processo libertador da opressão. A libertação é o eixo fun­
damental da espiritualidade dos salmos e, de resto, de todas as Escrituras.
Se fazem memória de YHWH libertador do Êxodo, eles nos im­
pulsionam ainda hoje para continuarmos lutando por um mundo em que
todas as pessoas tenham acesso à dignidade.
Três quintos do salténo (89 salmos) podem ser classificados nesta
família de salmos.

159
SI 3; 4; 5; 6; 7; 9; 10; 11; 12; 13; 16; 17; 18; 20; 21; 22; 23; 25; 26; 27; 28;
30; 31; 32; 34; 35; 36; 38; 39; 40; 41; 42; 43; 44; 51; 54; 55; 56; 57; 58;
59; 60; 61,62; 63; 64; 66; 68; 69; 70; 71; 73; 74; 76; 77; 79; 80; 83; 85;
86; 88; 89; 90; 94; 102; 106; 107; 108; 109; 115; 116; 118; 119; 120;
123; 124; 125; 126; 129; 130; 131; 137; 138; 139; 140; 141; 142; 143;
144.

Sugerimos que você leia o SI 94 e perceba os elementos que analisa­


mos acima a respeito dos salmos de libertação.

2. Salmos de instrução
Os salmos de instrução também são conhecidos como salmos sa-
pienciais ou catequéticos. Querem educar para a
"Feliz o homem justiça, para a prática da aliança.
que não segue A ideia-chave dessa família de salmos é “li­
o caminho dos ção”, pois a comunidade medita sobre a vida, que
injustos... mas é, na verdade, a melhor escola para aprender de
na lei de YHWH Deus seus desígnios. São salmos que não são diri­
se com praz..." gidos diretamente a Deus, mas são dirigidos para
(SI 1,1-2) a comunidade, para pessoas a fim de que perm a­
neçam fiéis à aliança ou voltem a ela. A maioria
dos salmos desta classificação apela para que se escolham os bons valores
da vida. Para isso, censura, confronta com a Palavra de Deus, pede que se
escutem os conselhos dos sábios e se compare a prática dos justos com a
dos injustos.
A teologia que sobressai nos salmos de instrução é a teologia da
aliança que celebra a presença amorosa, fiel e gratuita do amor de Deus na
vida. i
Se os salmos são um testemunho de fé a respeito de um Deus que
faz aliança com a humanidade, eles continuam a fortalecer nossa mística e
nossa esperança, mobilizando-nos em favor de uma sociedade, cujos ali­
cerces são o amor, a fidelidade e a gratuidade nas relações interpessoais,
interculturais e com o próprio Deus.

160
Ao todo, 19 salmos cabem nessa classificação.

SI 1; 14; 15; 19; 24; 37; 49; 50; 52; 53; 75; 78; 81; 82; 91; 95; 112; 114;
127.

Propomos que você leia o SI 1 e verifique os elementos de que


falamos acima a respeito dos salmos de instrução.

3. Salmos de louvor
Os salmos de louvor expressam a alegria diante de Deus, diante das
maravilhas de sua criação. São orações de louvor dirigidas diretamente a
Deus ou à comunidade. Normalmente, há um convite inicial para o lou­
vor, seguido dos motivos pelos quais se louva a Deus.
A palavra-chave dessa categoria de salmos é “admiração”, pois a
comunidade e as pessoas se maravilham diante da
beleza da criação, contemplam a ação de Deus na "Nações todas,
história, um Deus que está próximo, que é rei e que louvai a YHWH,
é o Deus dos pobres. povos todos,
A ênfase teológica dos salmos de louvor é a g lo rific a i-o !"
teologia da criação, que tem como centro um pro­ (SI 1 17,1)
jeto de vida plena para nosso mundo.
Se os salmos celebram o Deus doador da vida, eles nos convidam
a sermos também em nossos dias cocriadores com Ele, gerando, promo­
vendo e defendendo a vida.
São 25 os salm os que podem ser classificad o s nesta fam ília
de salmos.

SI 8; 29; 33; 47; 92; 93; 96; 97; 98; 99; 100; 103; 104; 105; 111; 113; 117;
135,136;145,146,147,148;149,150.

Sugerimos que você leia o SI 8 e perceba os elementos que analisa­


mos acima a respeito dos salmos de louvor.

161
4. Salmos de celebração da vida
Como os salmos de louvor, também os salmos que celebram mo­
mentos especiais da vida são orações que expressam a alegria do povo, da
comunidade.
A ideia-chave dessa família de salmos é “fes­
"A terra deu seus ta”, pois celebram ocasiões especiais da vida, como
frutos; Deus, a entronização do rei, nascimentos, as colheitas, os
nosso Deus, casamentos ou as peregrinações.
nos abençoou." Nenhuma das três ênfases da teologia de Is­
(SI 67,7) rael, presentes nas categorias de salmos anteriores,
se destaca nos salmos de celebração da vida.
São 17 os salmos que podemos classificar nesta família de salmos.

SI 2; 45; 46; 48; 65; 67; 72; 84; 87; 101; 110; 121; 122; 128(?); 132; 133;
134(r).

Propomos que você leia um dos salmos acima e descubra qual o


evento da vida que está sendo celebrado.

Os Salmos, Jesus de Nazaré e a Igreja


Ao olharmos a vida de Jesus de Nazaré, logo percebemos que ele
viveu toda sua vida em profunda intimidade com seu Pai. Passava até
noites em oração (Lc 6,12). Sua oração (orar+ação) lhe deu as condições
necessárias para ficar fiel ao Pai e aos pobres, sem capitular diante das
tentações deste mundo.
E nessa sua vida de oração, certamente os salmos exerceram um
papel importante. Uma das fontes de sua espiritualidade foi o Livro dos
Salmos de seu povo. Os salmos faziam parte do dia-a-dia da oração de
Jesus e da Igreja primitiva.
Para perceber essa intimidade de Jesus e das primeiras comunida­
des cristãs com os salmos, convidamos você a comparar alguns dos tex­
tos abaixo. O movimento cristão de origem judaica releu todas as suas
Escrituras, e nelas também os salmos, fazendo ligações com diversas ce­

162
nas da vida de Jesus e colocando citações dos salmos na boca do próprio
Jesus, no sentido de clarear sua missão como Messias enviado por Deus.
Mt 4 ,6 ............ ....Sl 91,11-12 Lc 13,27........ .... Sl 6,9
Mt 5 ,4 ............ ....Sl 37,11 Lc 23,46........ .... Sl 31,6
Mt 13,35........ ....Sl 78,2 J ° 2 ,1 7 .......... .... Sl 69,10
Mt 2 1 ,9 .......... ....Sl 118,25-26 Jo 6,31 .......... .... Sl 78,24
Mt 2 1 ,1 6........ ....Sl 8,3 Jo 1 0 ,3 4 ........ .... Sl 82,6
Mt 2 1 ,4 2........ ....Sl 118,22-23 Jo 1 5 ,2 5 ........ .... Sl 35,19; 69,5
Mt 2 2 ,4 4........ ....Sl 110,1 Jo 1 9 ,3 6 ........ .... Sl 34,21
Mt 2 3 ,3 9........ ....Sl 118,26 At 1,20a........ .... Sl 69,26
Mt 26,23 ........ ....Sl 41,10 At 1,20b........ .... Sl 109,8
Mt 2 6 ,6 4 ........ ....Sl 110,1 At 2,25-28 .... .... Sl 16,8-11
Mt 27,34.48... ....Sl 69,22 At 2,34-35 .... .... Sl 110,1
Mt 27,35 ........ ....Sl 22,19 At 4,25-26 .... .... Sl 2,1-2.
Mt 27,46 ........ ....Sl 22,2
Ao percebermos como o Saltério foi tão importante na vida de
Jesus e das primeiras comunidades, sentimo-nos desafiados a fazer dos
salmos também a nossa oração. As orações do Saltério continuam muito
atuais, porque nasceram da vida do povo. Essa atualidade dos salmos nos
serve como escola de oração no sentido de nós, hoje, continuarmos a
reescrevê-los a partir de nossa realidade.

Limites nos salmos


Não poderíamos concluir essa breve introdução ao Livro dos Sal­
mos, sem falar dos seus limites. Quando as pessoas se abrem diante de
Deus, elas se revelam por inteiro, com transparência. Por isso, muitas vezes
não conseguem esconder seus sentimentos. E aí os limites aparecem.
Há alguns salmos com forte desejo de vingança. Neles não há sen­
timento de perdão. É o caso dos Sl 58,7-9; 69,24-29; 109,6-15; 137,9.
Não devemos esquecer, porém, que a matriz geradora desses poemas são
a paixão invencível pela justiça e a confiança absoluta no Deus que opera a
justiça e se coloca do lado de quem é pobre, marginalizado e excluído. É
só no contexto do conflito social, em alguns momentos, terrivelmente
radical, que salmos desse tipo podem ser compreendidos. Pense, por exem-
pio, como pode orar um povo em guerra, sentindo-se agredido e injusti­
çado pela prepotência de povos poderosos... Como esse povo “derrama­
rá” o seu coração diante de Deus? Calmamente, com “equilíbrio”, ou
inflamado pela paixão como quem grita de dor? Também a oração do
oprimido não tem de brotar, com autenticidade, de seu grito de dor e de
sua tomada de posição no combate da vida?
Em outros salmos transparece certa autossuficiência. Veja, por exem­
plo, 26,1-12!
Em outros ainda, como o Sl 60, percebe-se uma atitude de fecha­
mento nacionalista. Ou ainda, como no Sl 72,8-11, um desejo de domina­
ção imperialista.

Projetos de resistência
na sabedoria popular
Uma coisa nos surpreende ao olharmos para o projeto dos sacer­
dotes em torno da rigorosa observância da Lei a partir do 2° templo na
época de Neemias e de Esdras.
Durante a monarquia em Israel ejudá, a profecia exercia um papel
importante. Por um lado, denunciava os desmandos das autoridades. De
outro, defendia as vítimas daquela estrutura de exclusão, anunciando-lhes
dias melhores. Da mesma forma, durante o exílio babilônico, a profecia
ajudou o povo a analisar sua história a partir da infidelidade a YHWH,
preparando-o para um novo êxodo, para a reconstrução de sua identidade.
No pós-exílio, já percebemos uma certa ambigüidade no movi­
mento profético. Como vimos, Ageu e Zacarias (1-8) viam como central,
no projeto de reconstrução, o papel do templo. Diferentemente, o 3o
Isaías (56-66) se opôs a esse projeto e defendeu uma religião autêntica em
defesa da vida dos mais pobres.
Aos poucos, o sacerdócio do 2° templo foi pretendendo tomar o
lugar da profecia. O papel de intermediários entre o povo e YHWH,
antes desempenhado também pelo movimento profético, foi cada vez
mais monopolizado pelos sacerdotes. Esse monopólio era exercido atra­

164
vés do controle dos sacrifícios no altar do templo e através da estrita
observância da lei. A lei era considerada a expressão da vontade de Deus
e o único caminho para a verdadeira vida.
Dessa forma, a profecia, como movimento popular de resistência,
se vê desautorizada pelo templo de Jerusalém. Mas será que a profecia de
fato morreu? Não! Ela continuou de outra forma.
Foi especialmente na sabedoria popular que o movimento proféti­
co no pós-exílio buscou formas para se manifestar. De um lado, fazia suas
críticas a uma estrutura religiosa excludente. De outro, expressava sua vi­
são de como deveriam ser as relações num “novo céu e numa nova terra”.
Veremos depois, com o Livro do profeta Joel, que a resistência profética
popular vai gerar o movimento apocalíptico.
Neste capítulo, passaremos a analisar quatro livros da Bíblia, cujo
gênero literário é tipicamente sapiencial. Dois deles, Jó e Cântico dos Cân­
ticos ou Cantares, inclusive se encontram entre os livros que classificamos
como sapienciais. Embora não estejam na lista dos livros sapienciais, os
outros dois, Rute e Jonas, também têm uma forma literária que vem da
sabedoria. Sua linguagem é novelística. Rute e Jonas, junto com Ester,
Judite e Tobias, que estudaremos no próximo volume, são novelas bíbli­
cas. Como já vimos, podemos ainda incluir nesse gênero literário a história
de José no Egito (Gn 37-50, exceto os capítulos 38 e 49).
Os quatro livros (Jó, Ct, Rt, Jn) tiveram sua edição final em torno
do ano 400 a.C. Justamente na época em que foi imposto o projeto do 2o
templo sob Neemias e Esdras. Todos eles têm em comum a crítica a esse
projeto. Nisso são continuidade do movimento profético pré-exílico de
resistência em defesa da vida ameaçada. Com ênfases diferentes, questio­
nam a lei de pureza étnica (Jn, Rt e Jó), a doutrina da retribuição (Jó e Jn)
e a lei do puro e do impuro que, entre outras coisas, considerava a mulher
inferior ao homem (Ct). Além disso, defendem o direito dos pobres (Rt).
E o que passaremos a ver, começando por Jó.

165
1 Jó: uma nova experiência de Deus

“ C onhecia-te só de ou vir di^ er mas,


agora, viram -te m eus olhos.
P or isso, eu m e retrato e fa ç o p en itên cia
no p ó da cintça.” (Jó 42,5-6)

O grito dos pobres contra a teologia oficial


Antes de mais nada, é preciso que se diga que Jó é um nome sim­
bólico para representar todo o povo pobre e sofredor.
O Livro de Jó apresenta, em forma de diálogo dramático, uma
reflexão sobre o sofrimento e o mal. Jó não pretende dar uma solução
definitiva para o sofrimento. Porém, quer desvelar as verdadeiras causas e
seus causadores. Embora não consiga dar uma resposta definitiva sobre a
questão, percebe que a teologia tradicional de Israel já não serve mais. O
projeto de Deus escapa à nossa compreensão. Ele é soberano e livre. A
vida é muito mais complexa do que esquemas simplistas. Porém, a questão
do sofrimento não é o tema principal d ejó .
O tema central de Jó é a concepção de Deus, a imagem de Deus
que havia sido criada em Israel a partir do dogma da retribuição. E espe­
cialmente contra a religião baseada nessa
"As tendas dos ladrões doutrina, segundo a qual Deus devolve
gozam de paz, estão o bem com o bem e o mal com o mal,
seguros os que desafiam que Jó se insurge e se revolta. Ele ques­
a Deus, mesmo aquele tiona a doutrina expressa no provérbio
que o m anipula." “Quem aqui faz, aqui paga!”. Esse é o
(Jó 12,6) principal objetivo do Livro de Jó. Ele
quer questionar k falsa ideia de Deus, ma­
nipulada pela teologia oficial e baseada no raciocínio, em princípios dou­
trinários. Quer também apresentar uma visão de Deus solidário e defen­
sor dos pobres, baseada na experiência, na vida cotidiana. Jó chega a acu­
sar os representantes da religião oficial de em busteiros, charlatães, m entiro­
sos, p a rcia is, enganadores do p ró p rio D eus (13,4-10). Deus mesmo os re­
preende (42,7). Confira!

166
Por um lado, questiona a teologia oficial de seu tempo e ridiculariza
os teólogos oficiais e reconhecidos pelas autoridades eclesiásticas de então,
representados pelos “amigos” de Jó. Na verdade, os “amigos” de Jó são
o braço direito de Satanás, tentando maquiar, falsificar a imagem dos opres­
sores, apresentando-os como benfeitores. Mais tarde, Jesus diria o mesmo
dos que “tiranizam os povos” (Lc 22,24-26).
Nenhum sistema filosófico, nenhuma doutrina teológica e moral,
nenhum poder político têm resposta para tudo e para sempre. E preciso
ser mais contextual e ter os olhos abertos à vida real. È necessário resolver
os problemas na medida em que aparecem, fazendo permanentes sínteses.
O que se deve evitar é absolutizar, eternizar ou proclamar como dogmas
as doutrinas profundamente condicionadas por cada época.
Por outro lado, ao desmascarar a farsa da teologia oficial, do exer­
cício do poder e da mentira nas relações políticas e religiosas, Jó propõe
uma nova forma de entender as causas do mal e do sofrimento. A dor da
doença e da pobreza, das desgraças e da humilhação não vem de Deus
como castigo por causa do pecado de quem sofre. Os autores do Livro
de Jó nos revelam que os pobres daquele tempo tinham uma experiência
de Deus diferente daquela que era defendida pelos teólogos do templo.
Na ação dramática que se desenvolve nesse livro, as duas concepções de
Deus estão em disputa. Jó representa a resistência dos pobres contra a
imposição de uma compreensão de Deus imposta por doutrinas a partir
da ideologia da instituição dominante.

E interessante notar que ainda hoje, em muitos ambientes, não se


procura discutir as verdadeiras causas, por exemplo, da pobreza. Pre-
fere-se continuar afirmando que os pobres são pobres porque são
vagabundos, ignorantes, têm muitos filhos, ou ainda outras formas de
desviar das causas sociais geradas por um sistema que só se mantém à
custa da exclusão da maioria do povo. Como essa mentalidade ainda
se reproduz em seu lugar?
Por outro lado, que experiência de Deus fazem os pobres de
nossos dias? O que ela tem em comum com as doutrinas oferecidas
pelas instâncias de poder dominantes? A experiência de Deus feita
pelo povo pobre é homogênea? O que é que explica que, mesmo

167
entre os pobres, haja diferentes imagens de Deus? Como as institui­
ções oficiais reagem às novas formulações teológicas que surgem
lá onde as igrejas experimentam uma nova forma de viver o evan­
gelho na defesa da vida? Será que, tal como os “am igos” de Jó ,
ainda continuam tentando silenciar o grito que vem dos que so­
frem, dos excluídos?

A teologia da retribuição em Jó
Como vimos, o tema principal do Livro de Jó é a resistência contra
a teologia oficial do templo que compreendia YHWH como um Deus
justiceiro que retribui a cada pessoa segundo o cumprimento da lei. Aos
bons observantes da lei, a bênção, isto é, ri­
"Conform e eu vi, queza, vida longa, saúde, descendência e honra.
os que cultivam a Aos maus cumpridores da lei, o castigo, isto
m aldade e semeiam é, pobreza, morte prematura, doença, esteri­
o miséria, também lidade e desonra.
as colhem ." (Jó 4,8) Antes de olharmos como o dogma
da retribuição aparece em Jó, uma observa­
ção importante se faz necessária. Até o exílio, a doutrina da retribuição era
entendida como algo coletivo, de toda a comunidade. Até se dizia que as
conseqüências dos atos das pessoas eram hereditárias. Veja, por exemplo,
Ex 20,5; 34,7 J r 32,18; Lm 5,7; Ez 18,2!
Porém, os cativos na Babilônia consideravam injusto pagar pelos
pecados de seus antepassados (Ez 18,25.29). Então, o profeta Ezequiel
reelabora a ideia da responsabilidade coletiva e defende a responsabilida­
de pessoal. Cada pessoa é responsável por seus atos. Não deixe de ler
Ez 18,4b! Todo o capítulo 18 trata do asspnto. Isto também aparece
em Jr 31,29-30; Dt 24,16 e 2Rs 14,5-6. Confira!
E importante termos presente que, a partir do exílio, acentua-se
cada vez mais o aspecto pessoal no dogma da retribuição. No Livro de Jó
isso fica evidente.
Perceba, agora, como em Jó estão presentes e em oposição as con­
seqüências individuais, tanto da bênção como da maldição.
• Jó era rico e passou a ser pobre (1,14-17.20-21).

168
• Jó tinha filhos e filhas (1,13). Portanto, tendo descendentes, tinha tam­
bém futuro, continuava na história. Porém, Jó ficou sem suas filhas e seus
filhos, ficou como estéril, isto é, sem descendência e sem futuro (1,18-19).
• Os filhos d ejó , ao invés de ter vida bnga, tiveram morte prematura
(1,18-19). Isso podia ser considerado tanto conseqüência de algum peca­
do de seus antepassados como deles mesmos.
• Jó tinha saúde (2,5) e passou a sofrer em meio a terríveis doenças
(2,7-8).
• Além de todo esse sofrimento, Jó ainda teve de aguentar a des­
moralização por parte dos representantes das autoridades, os “amigos”
que desonram uma pessoa honrada, justa e inocente. E o que descrevem os
capítulos 3 a 37.

Jó e a teologia da gratuidade
O dogma da retribuição fazia crer que a bênção de Deus está em
primeiro lugar lá onde há riqueza, saúde, vida longa, honra e descendência.
Diante disso, reage o movimento dos pobres e doentes, considerados
pecadores pela religião oficial e, segundo ela, discriminados pelo próprio
Deus. Jó resiste, elaborando uma nova teologia. Não a partir de quem
acumula bens e saúde, mas a partir dos “porões da humanidade”, da
miséria, da doença e da tragédia. Jó é símbolo dessa resistência. Mais do
que ser o Jó paciente e resignado, ele é o Jó da indignação e até da revolta
contra a manipulação de Deus.

E hoje, qual é o jó que faz parte da teologia popular, o da paciên­


cia ou o da indignação?

Para a teologia oficial do templo, a relação com Deus se dava na


base de relações comerciais, de troca. Se eu cumpro a lei, Deus me recom­
pensa. Em caso de descumpri-la, Deus me retribui com castigos. Nesse
caso, não se cumpre a lei de forma gratuita, com base na graça, mas na
base do “toma lá, dá cá”. É um a religião sem gratuidade. Os amigos d ejó
pensam conhecer Deus. Defendem-no. Falam muito dele. Aliás, falam
mal dele (42,7-8). Mas quem, de fato, faz a experiência do Deus vivo é Jó,

169
o pobre, o doente, aquele que é desmoralizado e acusado como pecador
e castigado por Deus. Os “amigos” chegam a acusar Jó de desestabilizar a
teologia oficial (15,4).
Foi assim que, no passado, nasceu a reli­
"Subverfes até a gião de YHWH. Foi percebido em meio à luta
religião e dos hebreus por liberdade contra a tirania do fa­
desacreditas raó e dos reis cananeus. Foi também assim que
a devoção Jesus revelou a presença de Deus em meio aos
para com Deus." pobres.
(Elifaz - Jó 1 5,4) Os pobres do tempo de Neemias e Es-
dras lutam para se libertar da teologia oficial, re­
presentada pelos “amigos” de Jó. Elaboram aprópna teologia a partir de
sua experiência de Deus. Essa teologia “crítica” torna-se possível porque
há grupos de pobres que assumem resistir à opressão e lutar contra a
dominação econômica, social, política e cultural. O conflito com a classe
dominante gera conflito também com a teologia dominante.
Para eles, a relação com Deus é uma resposta gratuita ao criador e
defensor da vida. Sua fé é num Deus muito diferente daquele defendido
pelos representantes da instituição oficial. Experimentam um Deus vivo,
solidário, sempre disposto a estender a mão aos que mais dele precisam.
Percebem um Deus como seu aliado e não um cruel castigador. De uma
visão de Deus como inimigo (16,11-14; 30,11-18; 31,23) passam a experi­
mentá-lo como amigo e defensor (16,19-21; 19,23-29). A relação com a
divindade já não pode basear-se em trocas comerciais, do tipo “eu amo
porque a lei assim manda e em troca espero uma recompensa de Deus”.
Ao contrário, o verdadeiro amor não é uma imposição de fora. Brota de
dentro, é uma opção. Ama-se gratuitamente como resposta à gratuidade
com que Deus nos criou e primeiro nos ímou.

Quantos de nós ainda hoje temos uma prática religiosa orientada


para merecer uma cadeira no céu? Certo dia, durante uma celebração
da eucaristia em nossa comunidade, o celebrante falou que não era a
simples participação na missa que garantia um lugar no céu. Em meio
aos fiéis, uma mulher perguntou: “Então, por que eu venho à missa?”

170
Jó e a lei de pureza étnica
Leia agora, os dois primeiros capítulos d ejó !
Você percebeu que Jó é da terra de Hus (1,1), isto é, da terra de
Edom que fica fora de Israel. Ao colocar o protagonista desse drama em
terras estrangeiras, podemos deduzir, pelo menos, duas intenções.
• De um lado, o texto quer refletir sobre o sofrimento como uma
experiência humana universal O sofrimento, seja ele conseqüência da pobreza,
da falta de perspectivas de futuro, da morte prematura dos filhos ou da
doença, é um a experiência comum a todos os povos. Faz parte do coti­
diano de inúmeras pessoas em todo o mundo. Nós não nos deparamos
todos os dias com situações de sofrimento?
• De outro lado, ao situarem o personagem central entre os estran­
geiros, os autores d e jó querem questionar a ideologia oficial do templo
que defendia apureza étnica dos judeus. E justamente um estrangeiro quem
faz uma nova experiência de Deus, descobrindo a verdadeira religião. E a
religião da gratuidade, do Deus que escuta o clamor dos que sofrem.
Questiona também os teólogos oficiais que, em nome da religião, desmo­
ralizam as vítimas do sistema, acusando-as injustamente de culpadas.

Satanás
Convém que façamos aqui uma reflexão sobre esse personagem
presente nos dois primeiros capítulos dejó.
Satanás (Satã em hebraico) tem a sua origem nos tribunais que se
reuniam nas portas das aldeias. A palavra significa “promotor”, ou
seja, aquele membro do tribunal encarregado de acusar o réu. Pos­
teriormente passou a significar adversário, acusador, inimigo. É nesse
sentido que ele aparece diante de Deus para acusar Jó e fazer-lhe mal.
Sua figura é semelhante à de um promotor público ou à de um procu­
rador na corte de Deus.
Desde as origens de Israel até o exílio babilônico, a teologia
israelita não era dualista, isto é, que atribuía o bem a Deus e o mal ao
demônio. Para Israel, tudo vinha de Deus, tanto o bem quanto o mal. A
doutrina da retribuição o confirma, como você já viu. Leia agora Is 45,7
e Am 3,6! Você pode conferir ainda ISm 16,14-23; 2Sm 24,15-16 e
lR s 22,22!
171
Aos poucos, porém, Israel vai incorporando em sua teologia cren­
ças de outros povos. E o caso do dualismo persa, para quem os males
vinham dos demônios e as coisas boas procediam das divindades.
O dualismo entrou em Israel e também em todo o Antigo Ori­
ente de cultura semita a partir da dominação persa, quando foi ampla­
mente difundida a crença dos persas em demônios. A cultura grega e
todas as culturas indoeuropeias sempre foram dualistas. Na Pérsia,
havia uma demonologia bem desenvolvida. Segundo essa crença, to­
dos os malefícios, desde males psíquicos e mentais até as doenças, as
tentações e as desgraças, eram atribuídos a demônios. Era uma infini­
dade de demônios ou espíritos maus. Acreditava-se, inclusive, que ha­
via um que era o chefe desse exército demoníaco. Este chefe era uma
figura suprema do mal como a divindade suprema persa, Ahura Ma­
zda, era a figura suprema do bem.
Um exemplo que deixa bem claro que a crença em demônios em
Israel foi introduzida tardiamente é o relato a respeito do recensea-
mento feito pelo rei Davi. 2Sm 24,1, um texto mais antigo, diz que foi
YHWH quem mandou que o rei fizesse o censo. Quando a mesma
história foi escrita novamente na OHC, durante o século 4 a.C., o
censo, considerado pelo povo um mal que visava à tributação, foi
atribuído a uma ordem de Satanás (lC r 21,1). Desse modo, YHWH
foi substituído por Satanás no texto. Em outras palavras, o mal come­
ça a ser atribuído a Satanás. Não deixe de ler as duas citações!
Adotar essas categorias dualistas ajudava Israel a resolver contra­
dições contidas em sua maneira de conceber e formular a fé. Como
compreender que Deus pudesse ser, ao mesmo tempo, o princípio do
bem e do mal? Ficava mais fácil imaginar que a responsabilidade pelo
mal era de outro princípio, “adversário” de Deus, embora, no final
das contas, submetido a seu poder e a seus propósitos de salvação.
A primeira vez que aparecem referências a Satanás como sinôni­
mo do demônio no Primeiro Testamento é em textos da época de
dominação persa em Judá. E o que você pode conferir, além de lC r
21,1 e Jó 1-2 que você já leu, em Zc 3,1-2. Em Lv 16,8ss, o nome de
um dos demônios do deserto é Azazel.
Em textos antigos, Satanás é traduzido simplesmente por adver­

172
sário, traidor ou inimigo. Veja, por exemplo, ISm 29,4; lR s 11,23!
Isso se deve à mudança da imagem de Deus no pós-exílio, bem
como à mudança do conceito de mal. Os deportados tiveram contato
com as cortes babilônicas e persas, bem como com sua religião em
que as divindades são sempre mais levadas para cima, para os céus,
para longe das pessoas. Quanto mais alto ficavam as divindades, tanto
mais poderosas elas eram. Aqui na terra, tanto mais pequeninas tam­
bém eram consideradas as pessoas diante de tanto poder divino. Daí a
necessidade de anjos para servirem de intermediários entre o distante
Deus e a humanidade. Essa imagem de Deus também influenciou os
judeus repatriados, passando a conceber YHWH como um rei pode­
roso, cercado por uma corte de anjos que estava a seu serviço. Certa­
mente o 3o Isaías tenta resgatar YHWH como aquele que é uma pre­
sença libertadora em meio aos pobres, ao polemizar com os que de­
fendiam um Deus que mora somente em lugares sublimes. Não deixe
de ler Is 57,15!
E interessante notar que a crença dualista dos persas e a fé em
YHWH, como origem tanto da bênção quanto da maldição, convivi­
am em Israel desde o exílio. O dogma da retribuição continuava e, ao
mesmo tempo, ia-se assimilando elementos da crença persa em espíri­
tos bons ou anjos e em espíritos maus ou demônios. No Livro d ejó ,
as duas crenças estão claramente presentes. Em Jó 1-2, aparece Satanás
como causador dos males. Para os “amigos” de Jó, todo seu sofri­
mento era considerado como castigo de Deus.
Por outro lado, Jó questiona essa teologia dos representantes da
doutrina oficial defendida pelos sacerdotes do 2° templo. Sua ex­
periência de Deus e sua vida justa o levam a concluir que não pode ser
de Deus que vêm os males sobre ele. Nem tampouco os atribui a
demônios. E o caso da pobreza. Jó vê na exploração a causa principal
da pobreza, como se pode ler em 24,1-12. Jó faz uma nova experiên­
cia de Deus, diferente tanto da teologia israelita da retribuição quanto
da demonologia persa. Resgata, portanto, a teologia do Êxodo.
Em Israel, a demonologia somente teve um forte desenvolvi­
mento com a opressão dos gregos a partir de 332 a.C., época do
advento da apocalíptica entre os judeus. Sobre o movimento apoca­

173
líptico como resistência do povo sofredor contra os impérios que
oprimem, nós voltaremos a falar nos próximos volumes. Voltaremos
a falar também da demonologia.

Data e autores do Livro de Jó


A redação final do Livro d e jó deve ser situada em torno do ano
400 a.C. Como a doutrina da retribuição individual se fortaleceu durante
o 2 templo, pode-se situar com segurança a edição da obra nessa época.
Foi especialmente na época das reformas de Neemias e Esdras que
se reforçou a compreensão de um Deus abstrato, distante, terrível (3,23;
7,17-21), que castiga (4,7-9), sádico (10,1-17), que não ouve o clamor dos
sofredores (19,7; 24,12), que não se deixa encontrar (23,3-8), arbitrário
(23,13-14), que intimida (23,15-16), carrasco (30,21).
A resistência popular que está por trás d e jó questiona o Deus da
instituição dominante e apresenta uma nova visão do divino presente na
vida a partir de outro contexto. E a experiência de Deus de quem sofre
por causa da miséria, da doença, da opressão. E a experiência da gratuida­
de nas relações com o sagrado em oposi­
"Por que não me fechou
ção a um relacionamento com bases co­
as portas do ventre
merciais, de troca.
e não me escondeu da
Dito isso, podemos concluir que os
vista tanta m iséria?"
(Jó 3,1 0)
autores do Livro d e jó são as vítimas que
aparecem nas denúncias de Ne 5,1-5; Is
59,3-9;Jó 3,17-19; 7,1-2; 24,1-12. Ao ler esses textos, chegamos a uma só
conclusão. Por trás dos autores d e jó estão os camponeses empobrecidos,
os sem-terra e pessoas escravizadas.

Diferenças na linguagem e no conteúdo


No Livro d ejó , há pelo menos duas diferenças muito claras.
Por um lado, a moldura do livro, isto é, a parte inicial (1,1-2,10) e a
parte final (42,10-17), tem a mesma forma, o mesmo gênero literário. Estão
escritas em prosa. São narrativas que expressam a forma comum de narrar
os fatos. Essas duas partes formam, na verdade, uma lenda completa.
A essa moldura devemos acrescentar a apresentação dos “amigos”
d e jó (2,11-13), bem como a repreensão feita a eles por Deus (42,7-9). A
174
apresentação e a repreensão dos “amigos” também estão em prosa. En­
quanto isso, a parte central da obra está escrita em verso. São discursos em
forma poética (3,1-42,6).
Outra diferença importante entre o corpo central da obra e sua
moldura é o conteúdo, a sua visão teológica. A moldura inicial nos apre­
senta um Jó resignado e paciente. Não deixe de le rjó 1,20-22! A moldura
final apresenta Jó sendo recompensado em dobro por Deus. Essa visão
de Deus está bem de acordo com a doutrina da retribuição. E dessa mol­
dura do livro que nasceu a ideia da “paciência de Jó ”.
Bem diferente da compreensão de Deus nas partes inicial e final é a
visão teológica do corpo da obra. Aqui devem ser incluídas a apresenta­
ção e a repreensão dos “amigos” . Esses textos apresentam a experiência
de Deus feita pelos pobres, rejeitando uma religião mercantilista e pro­
pondo uma relação com o sagrado, baseada na graça, na gratuidade. Apon­
tam outras causas para a situação de pobreza do povo. Não é ele, em
primeiro lugar, o próprio culpado de seu sofrimento. E indicam os verda­
deiros responsáveis (24,1-12; 30,2-8). Jó não tem respostas para todas as
suas perguntas. Muitas ficam abertas. Porém, essa parte central do livro
nos revela um Jó indignado, rebelde, que resiste, não aceita a doutrina da
instituição dos poderosos e se revolta contra os “amigos”, os teólogos
oficiais da estrutura religiosa da época.
Essa composição do livro nos leva a crer que a moldura da obra
(1,1-2,10; 42,10-17) formava uma narrativa isolada e completa, um conto
à parte. Certamente já existia, sendo, portanto, anterior à parte central da
obra (2,11-42,9). A lenda não só é anterior, mas deve ser também um
conto importado. A referência a jó como estrangeiro (1,1), nos faz crer
também que essa narrativa deve ter sua origem entre os povos árabes.
Israel assumiu a lenda, possivelmente na época de Salomão (970-931 a.C.),
relendo-a a partir de sua fé em YHWH.

Jó: um livro ambíguo?


Assim como o temos hoje, o Livro de Jó parece ambíguo. De um
lado, a suaparte central (2,11-42,9) questiona e se rebela contra a teologia
da retribuição, fortemente presente na moldura do texto.

175
De outro, as partes inicial e final parecem diminuir a força da nova
experiência de Deus feita por Jó. Parecem ser uma camisa de força que
serve de mordaça para a religião da gratuidade. Até certo ponto, diminu­
em o significado da experiência de Deus feita pelas vítimas da estrutura
dominante simbolizadas por Jó. Poderíamos até dizer que a teologia ofici­
al, quando não consegue eliminar a teologia popular, acaba assumindo-a
para manter o controle sobre ela. E a cooptação da resistência e do seu
discurso, a fim de esvaziar sua força de contestação e de mudança, para
que tudo fique como está.
Nesse sentido, o final do livro parece anular a tese defendida por Jó
em todos os seus discursos. Se você lê Jó 42,10-17, percebe que Deus
duplicou todas as suas posses, abençoando-o mais do que no princípio.
Porém, mais do que deixar-se domar pelo “Jó paciente” da mol­
dura do livro, o “Jó rebelde” do texto em verso parece querer questioná-
lo, para que deixe de ser resignado e acomodado à situação de miséria e à
teologia mercantil da classe dirigente. O Jó rebelde parece querer libertar o
Jó paciente de sua resignação diante da doutrina da retribuição. Quer aju-
dá-lo a ser sujeito de sua vida para que deixe de ser objeto de manipulação
nas mãos de seus “amigos”.
A própria ambigüidade do livro pode muito bem estar revelando
o quão conflitivo foi o debate nesse tempo em torno das concepções de
Deus e da vida do povo.

O final do Livro de Jó
A respeito do epílogo do Livro de Jó (42,10-17), pelo menos duas
coisas ainda devem ser ditas.
Em primeiro lugar, precisamos nos perguntar: Quem estava inte­
ressado em cooptar e anular o resgate do Deus que é solidário prefe­
rencialm ente com os pobres e deles é defensor? Ainda há hoje quem se
aproprie da experiência do Deus libertador, transformando-a em teolo­
gia que legitima o modelo de sociedade vigente? Não é isso fazer de uma
religião libertadora uma ideologia que sustenta e mantém os pobres resig­
nados e acomodados? Não é isso tirar deles a capacidade de dizerem sua
palavra, para que continuem repetindo a ideologia imposta pelos donos
do mundo? E mais. Tirar deles a capacidade de escutarem o clamor da

176
realidade com seus ouvidos, para que continuem escutando somente o
que lhes é apresentado pela mídia? Não é também tirar-lhes a capacidade
de enxergar a vida com seus próprios olhos, mantendo as viseiras que
impedem de ver a vida como ela é? Por fim, impedi-los de caminhar com
suas pernas como sujeitos de sua própria história, para que continuem
sendo eternos manipulados por aqueles que por eles decidem?
Em segundo lugar, é preciso notar algumas diferenças significativas
entre aparte inicial (1,1-2,10) e esse final do livro. Diferenças que mos­
tram, de um lado, uma forte influência dos pobres, que exigem a partilha
dos bens. De outro, temos a presença significativa de mulheres que reivin­
dicam o reconhecimento de sua dignidade. Exigem também parte na par­
tilha da herança. Confira!
• Jó é reabilitado e é retribuído em dobro.
• Os irmãos e amigos o visitam e repartem com ele dinheiro, dan­
do-lhe um anel de ouro, que também simboliza a aliança de Deus com seu
povo.
• O Jó reabilitado não tem mais escravos como tinha antes (cf. 1,3).
• Agora, suas filhas ganham nome.
• Também elas recebem herança e não somente os seus irmãos
como era a tradição. As mulheres recebiam herança somente na medida
em que não tinham irmãos (Nm 27,1-11; 36,1-12).
Podemos, portanto, perceber significativos avanços, como a parti­
lha de bens com os pobres, a ausência da escravidão, o reconhecimento
das mulheres que recebem nome e têm sua beleza destacada, bem como a
partilha da herança de igual forma entre filhos e filhas.
Qual das duas teologias, em tensão no Livro de Jó, Jesus assume
em seu Evangelho? Procure lembrar textos de partilha, de resgate da dig­
nidade da mulher, de solidariedade para com os mais pobres e de gratui­
dade na relação com Deus e com outras pessoas.

Divisão do livro
Convidamos você a ler o Livro de Jó, seguindo a proposta de
divisão a seguir.
1. Prólogo (1,1-2,10) e epílogo (42,10-17): uma moldura antiga
em prosa para um quadro novo.
177
2. Apresentação dos “amigos” (2,11-13) e reprovação de Deus
(42,7-9): Ainda em prosa, são como as dobradiças que encaixam a mol­
dura ao corpo do livro (3,1-42,6), que está em forma poética.
3. Debate entre Jó e os três sábios (3-27): é uma discussão teo­
lógica em três rodadas (3-14; 15-21; 22-27). Os teólogos da doutrina da
retribuição interpretam a pobreza, a doença e as demais desgraças na vida
de Jó a partir da religião tradicional. Querem que Jó assuma que sua misé­
ria é castigo de Deus por causa de algum pecado seu. Depois da fala de
cada um de seus “amigos”, Jó se rebela. Nega-se a reconhecer sua culpa.
Rebate os argumentos apresentados pela religião mercantilista. A partir de
sua experiência de Deus, não permite a falsificação da imagem de YHWH.
4. Elogio da sabedoria (28): deve ser acréscimo posterior.
5. Discurso final de Jó (29-31): nesse discurso, Jó faz sua própria
defesa, declarando-se justo (29). Se é justo, também é inocente (31). Se no
passado havia prosperidade e se no presente há miséria, então por que
tanto sofrimento?
6. Discurso de mais um sábio (32-37): o quarto sábio aparece
como paraquedista, pois não é citado nem na apresentação dos “amigos”
nem na reprovação de Deus. E um discurso que, tal como as reflexões
dos outros três sábios, quer defender a santidade e a justiça de Deus. No
entanto, ao vir em defesa de Deus, abafa a angústia humana, enganando
aqueles que sofrem. Como Jó 28, também deve ser acréscimo posterior.
7. Diálogo entre Jó e Deus (38,1-42,6): Deus questionajó sobre
os grandes enigmas do universo. Ele é o criador e senhor da vida que
triunfa sobre o mal (38,2-40,2). Sem resposta às questões levantadas por
Deus, Jó sente-se pequeno e silencia (40,3-5). Deus volta a desafiá-lo (40,6-
41,26). E Jó reconhece o poder e a liberdade de Deus, o grande criador
(42,1-6). Ele cria gratuitamente. E graça, é dom. Em resposta à liberdade
humana, Deus não elimina o opressor. Porém, é parceiro dos oprimidos,
dando-lhes as forças necessárias para resistir, lutar e vencer os sofrimentos
e suas causas. Jó superou a visão de Deus recebida na catequese ministrada
por seus “amigos”, os escribas do templo. Sua compreensão de Deus
parte, não do conhecimento abstrato de doutrinas, mas da sua experiência
de sofrimento no cotidiano. Por isso, pede perdão por ter acreditado em

178
Deus a partir das categorias e princípios abstratos da doutrina da retribui­
ção, cultivando uma falsa visão de Deus.

O que significa hoje ajudar as pessoas a elaborar uma nova teolo­


gia a partir de sua própria experiência de Deus? De um Deus que não
aceita relações comerciais, de troca, de retribuição? Como colaborar
na promoção de uma nova mentalidade religiosa que considera a gra­
tuidade como elemento importante na verdadeira religião? Como aju­
dar as pessoas a entender as reais causas da pobreza, da doença, das
desgraças, em vez de atribuí-las a demônios ou a Deus? A quem inte­
ressa continuar atribuindo a Deus ou a espíritos maus as causas da
pobreza? Será que essa ideologia não quer maquiar ou esconder os
verdadeiros responsáveis pela situação de miséria em que se encon­
tram três quartos da humanidade?

Para você continuar sua reflexão


Leia e reflita sobre o significado da fala de Jó em 42,1-6 na vida
dos pobres e doentes de seu tempo e de nossos dias!

2 Cantares: novas relações de gênero

“ E u sou do m eu am ado, e o m eu am ado


é todo m eu .” (Ct6,3)

O assunto de cantares
Na sua origem, os poemas de amor do Livro Cântico dos Cânti­
cos, ou Cantares, devem ter sido compostos para servirem como canções
de amor, especialmente em casamentos.
Acima de tudo, este livro trata da mais profunda e mais universal
experiência da humanidade, que é o amor. Amor que envolve paixão entre
pessoas afetivamente ligadas, entre mulheres e homens. Em Cantares, essa
relação amorosa é vivenciada entre um pastor (1,7) e uma camponesa
(1,6) que também é pastora (1,8).

179
Aparentemente, Cantares não fala de Deus. Apenas uma única vez
faz referência a YHWH (8,6). Estabelecendo uma ponte entre o amor
humano e Deus, Cantares celebra a
relação afetiva como fazendo parte
" G rave-m e, como selo em
do amor de Deus. Celebra a pre­
seu coração, como selo
sença do amor de Deus na experiên­
em seu braço; pois o am or
cia de amor e paixão entre pessoas.
é forte, é como a morte!
O amor humano é como um espe­
Cruel com o o abismo é a
lho que reflete o amor de Deus. A
paixão. Suas chamas são
chamas de fogo, uma relação entre pessoas que se amam
faísca de YHW H!" é sacramento, sinal da presença do
(C t8 ,ó ) próprio Deus. A sexualidade tam­
bém é caminho de salvação.

Nem sempre, Cantares foi lido assim


Cantares entrou na Bíblia graças à leitura alegórica ou figurada que o
Judaísmo e o Cristianismo dele fizeram. Hoje, podemos dizer agradecidos:
“Ainda bem que interpretaram os poemas como sendo uma metáfora!”.
Para os rabinos, o noivo é Deus, e a noiva, a comunidade de Israel.
Eles interpretaram os cânticos de amor na perspectiva da teologia da ali­
ança. Essa tradição foi desenvolvida pela profecia e compreendia a rela­
ção de Deus com seu povo através da metáfora do casamento (Os 1-3; Jr
2,2; 3,1-13; Is 50,1; 54,5; 62,4s; Ez 16; 23).
Para os cristãos, o noivo é Jesus, e a noiva, a Igreja (Mc 2,18-20;
J o ,2 ,l- ll; Ap 19,7-8).
Lendo esse livro como parábola, tanto judeus como cristãos quere­
mos ver, no amor do noivo, a paixão, a fidelidade e a ternura de Deus por
toda a humanidade. A nós só resta responder, de forma apaixonada, com
nosso “amor fiel a Deus e ao próximo como a nós mesmos” (cf. Mc
12,29-31).

Releitura de Cantares a partir de seu contexto de origem


Nas últimas décadas, grande foi a contribuição das mulheres para
voltarmos a ler Cantares novamente a partir da intenção original de seus
redatores. E aqui não podemos deixar de enfatizar o importante papel de
mulheres, seja na compilação, seja na edição final de Cantares.
180
É verdade que a origem primeira desses poemas de amor deve ser
situada na tradição dos povos do Antigo Oriente e dos ritos das festas de
casamento. Quando foram editados na Judeia, possivelmente já existiam
como poemas isolados também na tradição de Israel.
Porém, quando o livro foi compilado, ele quis responder a uma
situação muito concreta. Era a luta das mulheres por sua emancipação em
uma sociedade patriarcal. E nenhum momento da história de Israel é mais
adequado para situar a edição final de Cantares do que o contexto pós-
exílico. E mais precisamente, a época de Neemias e Esdras em torno do
ano 400 a.C.

No Judaísmo ortodoxo, piora ainda mais a situação da mulher


Por um lado, a rigorosa defesa da identidade do Judaísmo levou
Esdras e Neemias a excluírem as mulheres estrangeiras do convívio com
seus maridos judeus (Ne 13,23ss;Esd 9-10).
Por outro, o projeto dos sacerdotes do 2o templo, colocando a
mulher numa situação subordinada, levou à elaboração e observância da
lei do puro e do impuro. Ela atingiu em cheio especialmente as mulheres.
Foram elas as maiores prejudicadas. Sobre a lei da impureza, você leu
acima nos itens ‘A observância rigorosa da lei do puro e do impuro”, “A
lei da pureza e as mulheres” e “As mulheres reagem”.
Antes do exílio, as mulheres tinham um espaço de influência política
e religiosa não somente na corte, mas também nos santuários tribais que
existiam em Judá e em Israel. No pós-exílio, o espaço da política e da
religião fica centralizado no templo e é controlado por homens.
Como você pôde perceber, o 2o templo e as reformas de Neemias
e Esdras tiveram um papel importante no processo de gradativa exclusão
das mulheres. Pelo simples fato de serem geradoras de vida, eram consi­
deradas impuras quando menstruavam e davam à luz suas crianças. Os
principais interesses em jogo nessa negação da dignidade da mulher vi­
nham não só da parte de homens machistas ignorantes, mas também das
pretensões do estado e do templo, dirigidos por homens.
Muitas mulheres, porém, não aceitaram esta situação de forma re­
signada. Por isso, muitas das novelas bíblicas têm como protagonistas per­
sonagens femininos (Rt, Est,Jt).

181
Cantares propõe novos homens e novas mulheres
A cultura patriarcal considera a mulher inferior ao homem. Por isso,
devia ficar submissa primeiro a seu pai e a seus irmãos. Mais tarde, a seu
marido, aos teólogos da religião e aos governantes. Essa já foi a realidade
das mulheres no tempo de Salomão (Gn 3,16). Diante disso, Cantares
propõe, em vez de submissão, relações de respeito, de reciprocidade e de parceria.
Propõe relações de gênero com base na igualdade, no companheirismo e
na solidariedade entre homens e mulheres. As mulheres, que estão por trás
da edição de Cantares, resgatam o projeto de Deus no que diz respeito às
relações de gênero. Recuperam Gn 1,26-27 e Gn 2,21-24 que proclamam
cidadania igual diante de Deus, tanto para as mulheres quanto para os
homens. Nesse sentido, Cantares não só propõe um novo jeito de ser
mulher, mas rediscute também o modelo de masculinidade, com vistas à
construção de um novo homem.
A busca de pureza diante de Deus, fazia com que os homens con­
siderassem o corpo da mulher impuro, como também toda atividade
sexual, inclusive dos homens. Considerar as mulheres impuras certamente
era uma medida adotada pelos homens para legitimar o monopólio mas­
culino dos espaços de poder religioso e político. Dessa forma, marginali­
zavam, culpavam e controlavam as mulheres. Diante disso, Cantares canta
sem preconceitos a beleza e a pu reza do corpo da m ulher (1,9-10.15; 4,1-7;
6,4-7; 7,1-10). Porém, não deixa de descrever também o corpo do ho­
mem (5,10-16).
E interessante perceber como a linguagem do amor está presente
no texto. Citemos alguns exemplos: o cheiro (1,3.12-14; 2,13; 4,11), o
olhar (1,15-16; 2,9; 4,9; 6,5), o toque (1,2b; 2,6; 3,4; 4,10), o lamber (2,3-5;
4,10-11.16; 5,1) e o beijo (1,2; 7,10).
Há também várias metáforas para se referir à sexualidade da mu­
lher, tais como: vinha (1,6; 8,12), jardim/vegetação (4,12.16; 5,1), monte
de mirra/incenso (4,6), porta (8,9b. Compare com Jó 3,10!). Outras figuras
se referem à sexualidade do homem. Veja, por exemplo, fruto (2,3), bandei­
ra (2,4), imagens de movimento, como o vento (4,16). Além disso, pode­
mos perceber imagens que evocam o ato sexual: casa do banquete (2,4-6), ir
ao monte de mirra e incenso (4,6), ir ao jardim (4,12-5,1), sob a macieira, a
árvore afrodisíaca, isto é, que desperta o amor, a paixão (2,3,8,5).

182
O machismo desqualificava a mulher como incapaz, proibindo-a
de exercer qualquer função econômica, social, política ou religiosa. Diante
disso, Cantares destaca o pa pel da mulher como trabalhadora e como líder, capa^de
tomariniáativas. Ela é independente diante de seus irmãos (8,8-10) e, diante
do poder do dinheiro, que inclusive compra mulheres, ela protesta e afirma
ser dona de seu corpo, de sua sexualidade, sua vinha (8,11-12). Ct 3,1-4 e
5,2-8 mostram que ela é corajosa e enfrenta os guardas da cidade.

Mais elementos confirmam a perspectiva feminista de Cantares


• O p a i da Sulamita não é mencionado nenhuma vez em Cantares.
Será esquecimento? Ou há uma intenção por trás dessa omissão? Enquan­
to isso, sua mãe é lembrada sete vezes (1,6; 3,4.11; 6,9; 8,1.2.5). E é na casa
dela que os noivos se entregam apaixonadamente um ao outro, consu­
mando o amor (8,1-4). Isso faz lembrar Gn 2,24, em que também o
homem deixa sua casa paterna para se integrar à casa de sua amada. Isso é
tanto mais significativo quanto mais se tiver presente que, numa sociedade
patriarcal, é a mulher quem deixa sua família para passar a fazer parte da
família do marido. E também a Sulamita que procura livremente seu ama­
do. Ela não é comprada e nem dada em casamento para ser propriedade
do marido. Até pouco tempo atrás, era a mulher quem simbolicamente
negava a identidade de sua família, assumindo o sobrenome do esposo
como sinal de total pertença à casa do patriarca. Muitas vezes, porque
fazia parte da tradição, ou até inconscientemente. Contudo, como tarda­
mos para entender a mensagem de Cantares!
• Outro elemento que supera uma relação unilateral em que a mu­
lher pertence ao marido como sua propriedade é a total reáproádade vivida
pelos noivos num cenário de total liberdade no campo. Como ele, tam­
bém ela é única, exclusiva para seu amado. Nessa perspectiva, há um re­
frão que se repete. Confira 2,16; 6,3; 7,11 (Almeida —7,10). E o noivo
declara sua total fidelidade à amada (6,9).
• Cantares reivindica o direito de a mulher manifestar publicamente seus
sentimentos sem ser reprimida. Seu desejo é que o amado a cubra de beijos
(1,2). Beij ar na rua era uma atitude de prostituta. Mas a Sulamita nem se
importa com uma sociedade preconceituosa e hipócrita. Além disso, a
mulher tem a iniciativa.

183
• Ainda, Cantares denuncia ajornada dupla imposta às mulheres. A
Sulamita, além de fazer todas as tarefas na casa, ainda tem que trabalhar de
sol a sol no campo. E mais. Ela denuncia também o preconceito contra os
camponeses, pois é olhada com desdém por ter sua pele queimada pelo
sol e por trabalhar no campo (1,5-6).
• E interessante notar que a relação amorosa é de total gratuidade. E a
vivência do prazer, da plena realização por amor. Cantares nem chega a
falar em filhos, que eram o primeiro objetivo do casamento.
• Ao ler Cantares, descubra ainda outros elementos que revelam
como esse livro resgata o projeto original de YHWH para as relações
humanas: “Façamos a humanidade à nossa imagem e semelhança... E a
criou homem e mulher.” (cf Gn 1,26-27).
Antes de passar para o próximo item, convidamos você a conferir
Tt 2,4-5, procurando perceber o “lugar” da mulher em relação ao mari­
do, aos filhos e à casa. Não deixe de ler!
Embora o texto seja do Segundo Testamento, certamente ele resu­
me bem quais eram os deveres que se esperava de uma mulher ideal na
cultura patriarcal. Destaquemos três aspectos do que você pôde perceber:
• Era da mulher o dever do cuidado dos filhos.
• Também devia ser boa dona-de-casa.
• Suas obrigações em relação ao marido eram amá-lo, ser-lhe fiel e
submissa. Sobre a sujeição das mulheres a seus esposos, leia ainda Est 1,9-22!
Diante disso, a dimensão revolucionária de Cantares ganha ainda
mais valor. Resgata a dignidade da mulher simplesmente por ser mulher e
não enquanto mãe, esposa ou administradora da casa.

Cantares propõe a xalomização das relações de gênero


O nome do noivo é Salomão (3,7-11). O da noiva é Sulamita (7,1 —
Almeida = 6,13). Esses nomes não foram escolhidos ao acaso. Foram
muito bem pensados, pois seu significado faz parte da mensagem desses
poemas de amor.
Ambos vêm da palavra xalâm, que significa paz, plena realização,
harmonia, felicidade, bem-estar, equilíbrio. Ao optar por esses nomes, fica
mais uma vez claro que o projeto de Cantares para as pessoas que se
amam é a xalomização de suas relações. É uma proposta de convivência

184
pacífica, harmoniosa, equilibrada, feliz e que busca o bem-estar das pesso­
as envolvidas. São promotoras da paz e vivem plenamente realizadas. Não
deixe de ler 8,10!
Pensar necessariamente no rei Salomão, portanto, não faz justiça a
Cantares. Como todos os reis, também o monarca Salomão mantinha
suas muitas mulheres em estado deprimente, subordinadas, submissas e
como objetos de prazer para estarem a serviço de seus caprichos sexuais.
Chamar o noivo de rei (3,9.11) também não é necessariamente uma
referência ao monarca. Era comum na época que se chamasse o noivo de
rei e a noiva de rainha. Num casamento, não são eles, na verdade, a rainha
e o rei da festa? Veja, por exemplo, em 1,12.13 como “rei” e “amado” se
correspondem.
A Sulamita representa não somente as mulheres de Judá, mas espe­
cialmente as mais pobres. Tal como Rute, e mais tarde Ester e Judite, a
Sulamita é símbolo também do povo pobre que luta por novas relações
na comunidade de Israel no pós-exílio. Ela representa o mesmo grupo
de Ne 5,1-5 que exige justiça e solidariedade. Luta pelo bem-estar, pela
xalomização das relações interpessoais e sociais. Nesse sentido, Cantares
é mais do que a restauração do plano original de Deus para as relações
amorosas. E a restauração do xalôm para todo um povo empobrecido.
E assim, podemos passar para uma outra possibilidade de interpretação
de Cantares.

Uma interpretação histórica de Cantares


Para podermos perceber em Cantares uma análise histórica da época
pós-exilica, faz-se necessário que busquemos no livro dois ambientes niti­
damente distintos. Uma leitura histórica de Cantares nos faz perceber que
o livro é também uma tomada de posição diante dos conflitos vividos em
Judá no período persa.
Por um lado, o pastor e a Sulamita são figura dos descendentes dos
pobres da terra que não haviam ido ao cativeiro babilônico. Eles viram
sua situação de pobreza piorada, no momento em que os filhos dos anti­
gos prisioneiros de guerra voltaram da Babilônia e retomaram muitas das
terras de seus antepassados. Como Rute, como a camponesa Sulamita, os
pobres da terra propõem a reconstrução do povo a partir da casa, da

185
família, do clã camponês, com o protagonismo especial das mulheres, tal
como em Ne 5,1.
Por outro lado, em 1,4 o rei simboliza os repatriados, articulados
em torno dos sacerdotes do 2° templo e da rigorosa observância da lei.
Esdras e Neemias implantaram esse projeto com o apoio do Império
Persa. Eles propõem a reconstrução a partir da cidade de Jerusalém, dalei
e do templo.
Nessa sociedade excludente, a cidade oprime o campo. A campo­
nesa, símbolo do povo, é escrava no harém da cidade. Isso fa2 lembrar
Ne 5,5. Confira! No harém da cidade, havia muitos perfumes, e luxo não
faltava. Faltava, contudo, o essencial. Não havia amor.
No campo, a Sulamita vivia livre. Na cidade, porém, era escrava
sem liberdade. Quando tenta fugir, é maltratada. Os guardas a desonram.
Leia 2,7-3,5 e 5,2-8 e tente perceber essa realidade por trás da metáfora!
Ct 1,4 parece um apelo da Sulamita, para que o amado venha res­
gatá-la. Ct 2,8-9 e 5,2-4 parecem descrever o amado vindo em seu auxílio
para libertá-la do harém.
Além disso, Cantares afirma que as vinhas pertencem aos campo­
neses e não aos donos da cidade (1,6; 8,12).

A estrutura de Cantares
Depois dessas considerações, propomos que você faça agora uma
leitura corrida de Cantares, seguindo a proposta de divisão abaixo.
1,1-4: Título e introdução.
1.5-8,4: Quatro cantos de amor. Todos eles têm a mesma terminação.
1,5-2,7 3,6-5,8
2,8-3,5 5,9-8,4.
8.5-14: A conclusão contém as seguintes subdivisões:
a força do amor (w. 5-7),
a liberdade do amor (w. 8-10),
a gratuidade do amor (w. 11-12),
a intimidade do amor ( w 13-14).

186
Como Cantares nos pode ajudar a considerar especialmente as
mulheres como pessoas e não como objetos de propaganda ou de
prazer sexual? Numa sociedade em que a cultura machista ainda é
forte, que contribuição Cantares nos traz na busca de novas relações
de gênero? Que contribuição Cantares tra2 para a construção de uma
nova identidade tanto da mulher como do homem? Como podemos
descobrir e viver as relações de amor e paixão como expressão do
amor maior de Deus?
Cantares valoriza o afetivo, o sentimento, a festa e agratuidade. Como
vivenciamos esses valores? Será que não valorizamos demais a militância
nas comunidades, nos movimentos sociais? Como chegar ao equilíbrio?

Para você continuar sua reflexão


Leia Ct 5,9-8,4 e destaque as principais mensagens desse canto de
amor para a época de sua redação e para a nossa!

3 Rute: uma estrangeira fiel


a YHWH resgata direitos do pobre

“ Foi, p o is, e p ô s-se a ca ta r esp igas


num campo atrás dos sega d oresT (Rt2,3)

Rute, uma novela entre os livros históricos


O Livro de Rute é um livro sapiencial, cujo gênero é a forma de
novela bíblica. Nisso, assemelha-se aos livros de Jonas, Ester, Judite e To-
bias. Embora esteja entre os livros que chamamos históricos, Rute não
pertence ao mesmo gênero literário. Também neste livro percebemos muitas
memórias de lutas e experiências de mulheres. Certamente mulheres con­
tribuíram com sua tradição e composição.
Rute se encontra entre os livros dos Juizes e ISamuel. Porum lado,
foi ali inserido porque começa dizendo: “Durante o governo de um dos

187
juizes...” (1,1) e, de outro, porque termina descrevendo agenealogiade Davi
(4,13-22).

A realidade na época de Rute


O pano de fundo de Rute é a realidade descrita acima no período
de Neemias e Esdras. Pobreza e escravidão se tornaram corriqueiras no
campo por causa da exploração por parte das elites da Judeia e por causa
dos altos tributos cobrados pelos persas. Além disso, houve a expulsão
das mulheres estrangeiras com seus filhos, como já vimos.
Rute tem tudo a ver com essa situação. Havia fome (1,1), migração
forçada (1,1.7), pobreza extrema que obrigava a recolher as sobras da
colheita (2,2) e falta de terra para a maioria da população (2,3; 4,3.9).
Também os nomes das pessoas que fazem parte do elenco da novela de
Rute revelam a realidade do povo daquele tempo. E o que veremos no
próximo item.
Dito isso, podemos localizar a época de redação do livro em torno do
ano 400 a.C. Seus autores devem ser buscados entre os mesmos grupos
que estão por trás de Jó, Cantares e Jonas, ou de círculos próximos a eles.
Fazem parte do mesmo movimento de resistência contra a centralização
do Judaísmo no templo de Jerusalém. Sua defesa do universalismo do
amor de YHWH faz crer que seus autores representam a continuidade do
movimento profético de Isaías. Confira Is 42,6; 49,6; 56,1-8!

Os nomes artísticos dos personagens da novela


descrevem a vida real
O nome de cada artista do elenco da novela é uma metáfora, uma
figura de épocas diferentes vividas por Israel. Cada nome traz um sentido
escondido, que revela a função do personagem dentro do episódio. Antes
de continuar seu estudo, leia novamente Rt 1,1-5!
Vamos aos nomes:
• Tiümelec, nome do marido, significa M eu Deus éRei.
• Noemi, nome da esposa, quer dizer Graça ou Graciosa.
• Mara, outro nome da esposa, significa A margura ou Amargosa.
• Maalon, o nome do primeiro filho, quer dizer Doença.
• Quelion, nome do segundo filho, significa Fragilidade.

188
• Orfa, nome da primeira nora, quer dizer Costas.
• Rute, nome da segunda nora, significa. A miga ou Saciada.
• Boo% nome do parente próximo, quer dizer Pela Força.
• Obed, nome do filho de Rute, significa Servo.
Mais leituras seriam possíveis. Porém, propomos uma possibilida­
de de interpretação do simbolismo desses nomes. Acompanhe!
Elimelec e Noemi podem ser uma referência à época das tribos quan­
do a vida na terra libertada era Graciosa e prazerosa (Gn 2,4b-25). Não
havia rei humano. Somente Meu Deus era Rei (Jz 8,22-23). Mas no momen­
to em que se impôs a monarquia, em que se destronou YHWH para
colocar em seu lugar um monarca (Gn 3,5; ISm 8,7), a vida do povo
transformou-se em A margura (Mará), como bem descreve Gn 3,8-24.
M-aalon tQ uelion, os reinos de Israel e de Judá, enfraqueceram-se, oferecen­
do ao povo nada mais do que Doença e Fragilidade. Tudo isso aconteceu
porque uma parte do povo foi infiel a YHWH e deu as Costas (Orfa) não
só a Deus, mas também ao povo. Rute, porém, a A miga dos pobres, se
esforça por reconstruir o projeto original de Deus para seu povo a partir
daqueles que ela mesma encarna em seu ser, isto é, a partir das mulheres,
dos pobres, das viúvas, dos migrantes, dos estrangeiros e dos que não têm
filhos ou futuro. Tudo isso é possível Pela Força (Boo%) de YHWH presente
na luta pela partilha na casa do pão (Belém), pelo resgate da terra e por garan­
tia de futuro, não através do poder da opressão, mas através do poder
popular e participativo, do poder que é sen iço (Obed = Servo), como no
tempo das tribos.
Ao ler o Livro de Rute, você poderia procurar descobrir a situação
econômica, social, familiar, política e religiosa daquela época e que trans­
parece no texto. Poderia também identificar quem planeja e como executa
todos os planos. Em terceiro lugar, é interessante listar os direitos das
pessoas pobres, especialmente das mulheres, que são resgatados e qual seu
significado naquele contexto.

Diante de YHWH, todos os povos sãos irmãos


O Livro de Rute é muito mais do que o romance entre Rute e Booz
ou o bom relacionamento entre a sogra Noemi e a nora Rute, como você
já percebeu. Dois são os temas principais.

189
De um lado, Rute é estrangeira e está plenamente integrada em
Israel (Rt 1,16-17). Só isso já nos leva a concluir que essa narrativa vem em
defesa de outras culturas. Também os povos estrangeiros são povos de
Deus e YHWH não é Deus exclusivo de Israel.
E mais. Rute é moabita. Os judeus despreza­
"Teu povo será vam quem era de Moab. Consideravam-nos bastar­
meu povo, e dos (Gn 19,30-38). Seu acesso à assembleia israelita
teu Deus será era expressamente proibido, como você pode ler
meu Deus." em Dt 23,4-7 (Almeida = 23,3-6). Nesse sentido, o
(Rt 1,1 6) Livro de Rute é universalista. Apresenta uma nova
visão teológica. Diferentemente do exclusivismo de
Esdras e Neemias, defende a universalidade do amor de Deus. O texto
quer questionar os judeus quanto a seu desprezo pelos moabitas. Não é
por acaso que faz de uma moabita a bisavó de Davi, o rei tão venerado
pelo Judaísmo (Rt 4,13-17). Em outras palavras, os autores do texto que­
rem dizer que, se o grande rei era descendente dos moabitas, não havia
razão para tanto desprezo por esse povo e, por extensão, por todos os
povos.
Se Rute está na genealogia dejesus (Mt 1,5), certamente os autores
do Evangelho segundo Mateus querem sinalizar o universalismo de sua
missão, aberta a todos os povos.

A fé em YHWH exige o cumprimento do direito dos pobres


De outro lado, um segundo tema central em Rute é a resistência à
observância estreita da lei da circuncisão, do sábado ou do puro e do
impuro. Noemi e Rute insistem no resgate de outras leis que as autorida­
des do templo estavam deixando de lado. Sogra e nora fazem valer o
direito dos pobres. Exigem o cumprimento de três leis que não eram
observadas em favor dos pobres. São as leis do respigar, do resgate e do
levirato. Vejamos uma a uma.

As leis do respigar, do resgate e do levirato


O primeiro passo que as duas viúvas dão é fazer valer a lei de respigar
ou catar as sobras das colheitas nos campos, para que não faltasse o pão na
mesa dos pobres e migrantes estrangeiros (Rt 2; Lv 19,9-10; Dt 24,19-22).
190
Não deixe de ler as citações de Levítico e Deuteronômio! Mas aos pobres
não era somente permitido por lei buscar alimentos na terra de outros em
época de colheita. Havia uma lei que garantia esse direito durante todo o
ano. Confira Dt 23,25-26!
Os pobres, que se viam obrigados a respigar
"O problema
as sobras nos campos dos outros, eram sem-terra. A do povo
perda da terra era um dos problemas fundamentais nordestino
que está por trás da novela de Rute (Ne 5,3-5). Justa­ não é a seca,
mente porque não tinham terra para plantar e colher mas a cerca."
é que respigavam em terras alheias, a fim de não pas­ (D. Pedro
sarem fome, mesmo morando em Belém, na casa do Casaldáliga)
pão. Portanto, havia pão. O problema é que estava
acumulado e bem guardado em algum lugar. Nem todos tinham acesso a
ele. Rute reivindica o direito dos pobres de também eles terem acesso ao
pão. A lei do respigar quer assegurar aos pobres o direito de recolher as
sobras que ficam no campo depois da colheita.
Noemi e Rute lutam também para que a lei do resgate da terra seja
cumprida (Rt 4,1-12; Lv 25,25). Confira a citação de Lv! Quando alguém,
por motivo de pobreza, era obrigado a vender sua terra, então seu paren­
te mais próximo tinha a obrigação de resgatar essa terra, isto é, devia
comprá-la de volta, não para si, mas para o parente pobre que corria o
risco de perdê-la definitivamente. No mesmo sentido do resgate da terra,
havia ainda a lei do resgate de pessoas. Leia Lv 25,47-49! Quando uma
pessoa, por motivo de pobreza, era obrigada a se vender como escrava,
então seu parente mais próximo tinha a obrigação de resgatar essa pessoa,
isto é, devia pagar para que o irmão pobre pudesse reaver a sua liberdade.
O objetivo da lei do resgate, seja da terra ou de pessoas, era fortalecer e
defender a família como base da organização social.
Noemi e Rute alcançam seu objetivo porque conseguem que Booz,
em combinação com a lei do resgate, se comprometa com a lei do leiirato
ou ki do cunhado (Rt 3,12; Dt 25,5-10). Leia as citações! O objetivo da lei do
cunhado era garantir a continuidade da família e impedir que, por falta de
um herdeiro, a família se acabasse e seu patrimônio passasse para outros.
Desse modo, as viúvas conseguiam futuro não só para si, mas também
para seus maridos falecidos, que passavam a ter descendência. E interes­

191
sante notar que Rute e Noemi conseguiram que Booz combinasse entre si
a lei do resgate e a lei do levirato. Além disso, conseguem ampliar a lei do
cunhado, na medida em que já não é mais so­
"Aquele que tinha o mente o irmão que deve observar essa lei, mas
direito de resgate qualquer parente do clã deve observá-la, tal
disse a Booz: como Booz.
'Com pra-a tu !'" Assim, é resolvido um segundo grande
(Rt 4,8) problema da época em que o texto foi escrito.
E a reconstituição da família e do clã que esta-
vam sendo desintegrados por causa da pobreza. Dessa forma, o clã cam­
ponês é restaurado.
Portanto, Rute e Noemi resgatam os grandes valores da época das
tribos, como a fraternidade entre famílias e clãs, a partilha do pão, da terra
e a garantia de descendência para todos. Resgatam igualmente a dignidade
c o direito de mulheres independentes, que tomam suas vidas nas suas
próprias mãos, sem depender de algum homem tutor.

Rute e o Judaísmo
No volume anterior, vimos como se formou o Judaísmo no pós-
exílio. Compare agora as características fundamentais do Judaísmo com a
proposta dos autores de Rute!

Características Projeto dos autores de Rute


principais do
Judaísmo oficial
O local principal da cena é Belém e não Jeru­
( ) templo de Jerusalém salém.
como centro de Aliás, Jerusalém nem aparece no texto. Ne­
poder do sagrado, nhuma vez se faz referência ao tempb. Sacerdotes
sob o controle dos e reis são propositalmente deixados fora na pa­
sacerdotes a serviço do rábola de Rute.
rei imperial, Seu objetivo não é restaurar o estado de
legitimando a Judá em torno da reconstrução do templo,
exclusão. como propunham Zorob abei, Josué, Ageu e

192
Zacarias. Nem é reconstruir Judá a partir de
Jerusalém como quis Neemias. Muito menos é
demarcar claramente a identidade do Judaís­
mo, como queria Esdras em torno da rigorosa
observância da lei. Rute luta para resgatar o pro­
jeto tribal que vem de uma aldeia do interior.
Vai na mesma linha de Mq 5,1.

Em vez de se preocupar com o estrito cum­


primento dessas leis, Rute e Noemi vêm se asso­
A rigorosa ciar ao clamor do povo nas ruas e nos campos
observância da ki, que exigia reformas sociais do governador Nee­
especialmente do mias (Ne 5,1-5). A novela de Rute defende o
sábado, da circuncisão cumprimento das kis que garantem a lida daspessoas
e da lei do puro e do excluídas, especialmente a das mulheres pobres (leis
impuro. do respigar, do resgate da terra e do levirato).
Ao colocar mulheres como as principais per­
sonagens dessa narrativa, os autores certamente
quiseram fazer também uma crítica à lei da im­
pureza que reduzia as mulheres a um grau de
inferioridade naquela sociedade.
E queriam dar visibilidade à resistência e à
luta das mulheres contra esta situação.

A ideologia da pureza Não há referências à questão da pureza ét­


étnica que levou a nica. Pelo contrário. O texto é crítico à exclusão
comunidade judaica de estrangeiros. Rute é moabita e diz: “Teu Deus
pós-exílica a fechar-se é meu Deus...”. Boa parte da novela se desen­
cada vez mais na sua rola na terra estrangeira de Moab.
identidade nacionalista, Em vez de desprezar os pobres da terra, as
cultivando desprezo principais protagonistas dessa história vêm jus­
por outros povos e tamente resgatar leis que não eram aplicadas,
outras manifestações pois vinham em defesa da vida dos campone­
religiosas, bem como ses empobrecidos.
pelos pobres da terra.

193
A divisão do livro
A proposta mais comum de divisão para estruturar o Livro de
Rute é a seguinte:
1. Quadro inicial (1,1-5): Descreve a realidade de fome, de falta
de terra, da migração para o estrangeiro e da falta de futuro ou descen­
dência. E a total desintegração da casa dos pobres.
2. A reconstrução da vida do povo (1,6-4,12): A caminhada de
reconstrução do povo é descrita numa novela de quatro capítulos ou pas­
sos:
- Io passo (1,6-22): Atraída pela boa-notícia da visita de Deus à
terra natal dando pão, Noemi decide voltar. O centro desse passo está nos
w . 15-18. E a palavra-chave, que aparece 12 vezes, é “voltar”.
- 2o passo (2,1-23): Rute toma a iniciativa de catar a sobra da co­
lheita, fazendo valer o direito dos pobres. Os w . 8-14 formam o centro
do 2° passo. E “catar a sobra da colheita” ou “respigar” é a palavra-chave
que também aparece 12 vezes.
- 3opasso (3,1-18): Booz aceita o convite de Rute e se comprome­
te a cumprir a lei do resgate. O centro do 3opasso está nos w 9-13. E a
palavra-chave é “resgatar”, aparecendo, desta vez, em 7 oportunidades.
- 4° passo (4,1-12): Booz cumpre a lei do resgate e se casa com
Rute. Assim, garante a posse da terra e o futuro da família de Noemi e
Elimelec. Os w 5-8 formam o centro desse passo. E novamente a pala-
vra-chave é “resgatar”, aparecendo 14 vezes.
3. Quadro final (4,13-17): Descreve o nascimento de Obed. O
quadro final é o oposto do quadro inicial, descrevendo a nova esperança
que nasceu para o povo. Mais do que ser a esperança em Davi, precursor
da monarquia davídica, a esperança é numa sociedade parecida com o
tribalismo, onde somente YHWH é rei do povo (Jz 8,22-23). E o que
significa Elimelec (meu Deus érei), sogro de Rute.
4. Apêndice (4,18-22): é a genealogia de Davi, de quem a estran­
geira Rute é bisavó.

194
“Força reunida”
Para concluir esta introdução ao Livro de Rute, gostaria de partilhflt
com você um poema que foi elaborado por um grupo de estudo sobrt
Rute. A melodia é do canto “Adeus Sarita”.
A deu s M oabel N esta nova realidade
Vou p a r t ir p r a nova terra , D e igu aldade e de ju stiça ,
L evando as com panheiras A s m u lheres vão ca n ta r:
P ra te r p ã o , felicid a d e. “N ão sou su b m issa !”
C om a fo r ç a reunida Todo p o vo reunido
Ju n to a R ute e M aria
Vamos lutar.
/:P or nova sociedad e
E nganar leis e sistem a s
Vamos lutar:/
E a h istó ria recontar.

Que postura temos diante de outras culturas e crenças? Que luzes


a luta de Rute e Noemi traz para nosso engajamento no resgate do
direito de todas as pessoas à subsistência, à terra, ao trabalho, à família,
a um lar? Qual é o espaço que nossa sociedade oferece, apresenta para
o protagonismo das mulheres?
Rute refaz as relações típicas do clã a partir das mulheres, dos
pobres, e não a partir do templo. O que a luta de Rute tem a ver com
nosso engajamento em refazer, hoje, o tecido social, não tanto a partir
do Estado, mas a partir da organização e articulação da sociedade civil?
Quais são as leis que hoje são aplicadas? Em favor de quem? Con­
tra quem? Nossa constituição declara que todas as pessoas têm direito à
vida, à saúde, à educação, ao trabalho, a um lar... Diz que a terra tem
uma função social. Que o salário mínimo deve ser o suficiente para
atender as necessidades básicas de uma família. O que fazemos para
exigir o cumprimento da Constituição? Será que a maioria das leis que
são cumpridas não são a favor de quem pode pagar? Os direitos só
valem para quem tem dinheiro? E os deveres, somente para quem não
pode pagar? O Código Civil não é aplicado para quem tem, enquanto
o Código Penal, para quem não tem?

195
Para você continuar sua reflexão
a) Quais são e o que significam as leis que Rute e Noemi fizeram
acontecer em favor dos pobres? b) Interpretando para nossos dias, o que
significam na prática de hoje essas leis de Israel?

4 Jonas: YHWH não faz acepção entre os povos

“E u sabia que tu és um D eus benévolo


e m isericordioso, lento p a ra a cólera,
cheio de a m or e que se a rrep en d e do mal. ”
Gn 4,2)

Origem, data e destinatários de Jonas


Como Jonas trata dum tema que também é comum a Rute, seus
autores devem ser dos mesmos círculos de resistência popular. Sua teolo­
gia está enraizada no movimento profético que segue a linha teológica do
Livro de Isaías. Por trás de Jonas, certamente devemos situar também os
grupos de resistência dos samaritanos e outros grupos étnicos que o Judaís­
mo pós-exílico foi discriminando cada vez mais.
Como sua crítica irônica se dirige especialmente aos teólogos exclu­
sivistas do templo de Jerusalém, faz sentido situarmos o Livro de Jonas
em torno de 400 a. C.

O tema principal de Jonas


Da mesma forma como Rute, o Livro de Jonas é outra grande
parábola, outro conto. Seu conteúdo pode ser profético. Porém, Jonas
não é profeta. Pelo contrário. Sua atitude é racista e que, em vez de se
alegrar com a inclusão de povos estrangeiros na universalidade do amor
de YHWH, fica triste, aborrecido e quer morrer. O livro foi considerado
profético pela tradição de Israel porque em 2Rs 14,25 se fala de um pro­
feta que tem o mesmo nome do principal personagem desta história. Mas
o Livro de Jonas não tem nada a ver com aquele profeta da corte do rei
Jeroboão II (782-753 a.C.).

196
Toda a obra se desenvolve em torno de um grande tema. É a
postura nacionalista e racista da comunidade judaica em torno do 2otem­
plo em Jerusalém (Esd 4,1-3; Ne 13,3). Jonas é como que a personificação
dessa atitude mesquinha e excludente. Na verdade, Jonas representa apo­
sição de Neemias e Esdras, que consideram como o verdadeiro Israel
somente a comunidade de Israel repatriada em torno de Sião e o grupo
que ainda continuava na Mesopotâmia. Além disso, não pensam na salva­
ção de outros povos. Esperam ainda que Deus castigue os povos opres­
sores no Dia de YHWH (3,4). Dia em que o Israel fiel à lei seria salvo.
O profético no Livro de Jonas é o anúncio do projeto de YHWH
para todos os povos. Inclusive aos impérios, de ontem e de hoje, simbo­
lizados por Nínive, a capital do antigo Império Assírio. Os impérios preci­
sam deixar de praticar a violência. Devem aderir ao projeto de justiça e de
amor, de respeito e de promoção da vida. Somente quando deixarem sua
prepotência e tirania, a fraternidade universal será possível. A fé nesse Deus
da vida não é exclusividade de nenhuma nação. YHWH é misericordioso e
não é Deus nacional de um nenhum povo. E Deus de toda a humanidade.

Jonas, uma novela em quatro capítulos


A novela de Jonas também se divide em quatro capítulos. Vamos
por partes.
1,1-3: é a exposição do problema.
A missão que Deus confia a Jonas é denunciar a maldade, as injus­
tiças da cidade de Nínive, símbolo dos impérios que oprimem. Como
Jonas encarna a teologia exclusivista do 2o templo, ele não concorda com
a possibilidade de estrangeiros e, ainda mais, opressores de seu povo, vi­
rem a se converter a YHWH. Por isso, foge para Társis, na direção oposta
de Nínive. Társis quer dizer “refinaria”. E é uma referência às colônias
fenícias no ocidente que forneciam metais a Tiro (Is 23,1.10; Ez 27,13;
38,13).
Iocapítulo: 1,4-16
Entre outras descobertas que você pode fazer ao ler esses versícu­
los, gostaria de destacar uma novidade importante. Os marinheiros, que
são estrangeiros (1,5) se convertem a YHWH (w. 10.14.16). Logo esses

197
que, além de serem discriminados por prestarem culto a outras divinda­
des, eram também considerados impuros e imorais! Mesmo sem querer, a
missão da qual Jonas tenta fugir já começa a pro­
"Foram tomados duzir resultados. Estrangeiros aderem a YHWH,
por um grande oferecem-lhe sacrifícios e fazem votos. O inte­
tem or em relação ressante é que eles não são sacerdotes com cre­
a YHW H." denciais para ofertar no altar. E mais. Oferecem
(Jn 1,16)
os sacrifícios longe de Jerusalém, fora do altar
do templo.
2ocapítulo: 2,1-11
Ao ser jogado para fora do barco, Jonas não pode se afogar no
fundo do mar. Caso assim fosse, morreria com ele a missão de denunciar
a maldade dos opressores estrangeiros. Por isso, Deus o protege através
de um grande peixe que o salva (v. 1). Dessa forma, o peixe impede seu
afogamento, vomitando-o sobre a terra firme (v 11). Jonas não aceitava
que YHWH fosse misericordioso com estrangeiros. E, nesta segunda cena,
vemos Deus exercendo sua misericórdia para com Jonas.
O salmo de Jn 2,2-10 certamente é uma acréscimo posterior. O
conto de Jonas não perde sua unidade se o lermos omitindo o salmo, que
é uma composição de citações de vários outros salmos. O Jonas do salmo
não é o mesmo da novela. No salmo transparece um Jonas piedoso, en­
quanto na novela ele é bastante teimoso e reticente.
3ocapítulo: 3,1-10
Enquanto os dois primeiros episódios acontecem no mar, as duas
cenas seguintes se desenvolvem na terra.
Alguns destaques
z\iguns dessa
u e sia q u es u e ssa j3a cena. Para desgosto de Jonas (4,1), foi
suficiente um dia de pregação para que
"O s ninivitas creram em os ninivitas se convertessem de sua mal­
Deus e se converteram do dade. Faltavam ainda dois dias para
seu caminho perverso." percorrer toda a cidade. Mas eles mes­
(cf. Jn 3,5.10) mos se encarregaram de propagar o
anúncio do Dia de YHWH.
O povo da cidade se converte a Deus, fazendo jejum e penitência
(v 5). Mas não basta a conversão das pessoas. E necessário que as estrutu­

198
ras de opressão sejam transformadas. É o que podemos perceber na ade­
são do rei a YHWH, deixando de ser rei, isto é, despindo-se de suas vestes
reais e saindo do seu trono (v 6). E mais. Aderir a YHWH é o mesmo que
aderir à justiça. Daí por que a cidade opressora deixa de praticar injustiças,
convertendo-se de seu caminho perverso, cheio de violência ( w 8.10). A
essa altura, poderíamos dizer com Pedro: “Agora reconheço que Deus
não faz distinção de pessoas, mas lhe agrada quem o temer e praticar a
justiça.” (At 10,34-35. Veja ainda Dt 10,17-18).
Conversão pessoal e estrutural andam juntas. Não basta querer trans­
formar apenas as pessoas isoladamente. Da mesma forma, não é suficiente
mudar as estruturas de poder sem a conversão das mentes e dos corações.
Agora, YHWH exerce sua misericórdia e perdoa aos que aderiram
ao seu projeto, deixando de lado sua opressão estrutural (vlO).
4o capítulo: 4,1-11
No Io e no 3o episódios, temos o confronto de Jonas com pessoas
estrangeiras. Na 2a e na 4a cenas, temos o confronto de Jonas com YHWH.
Jonas fica indignado com a mise­
ricórdia de YHWH para com os estran­ "O nde há ofensa que dói,
geiros. Ele até sabe que “YHW H é um que eu leve o perdão;
Deus benévolo e misericordioso, lento onde houver a discórdia,
para a cólera, cheio de amor e que se que eu leve a união
arrepende do mal” (v.2 —cf Ex 34,6). e tua paz."
Porém não aceita que Deus exerça sua (Francisco de Assis)
compaixão em relação a um povo es­
trangeiro e por cima opressor de Israel. Tamanha misericórdia de Deus
não cabe nos dogmas estreitos do Judaísmo pós-exílico, na mentalidade
dos senhores do templo, da lei e de Jerusalém. Para a comunidade judaica
repatriada, a misericórdia de Deus vale para ela. Não, porém, para os
outros, para os que não observam a lei. Para estes, Deus deveria reservar seu
severo juízo de condenação.
Os defensores da pureza étnica e da exclusividade de Israel como povo
especialmente eleito por YHWH como sua propriedade exclusiva (Ex 19,5;
Dt 7,6) preferem a morte (w 3.8.9) a converter-se à proposta de Rute e dos
autores do próprio Livro de Jonas. São capazes de se aborrecer até à morte
quando uma planta murcha. Porém, não são capazes de aceitar que YHWH
199
tenha pena de pessoas, os moradores de Nínive, a grande cidade (cf. Jn 4,11).
E continuam fechados em seu nacionalismo que exclui.
Mais tarde, Jesus diria que os escribas ortodoxos de seu tempo
ainda continuavam “coando um mosquito, mas engoliam um camelo” (cf.
Mt 23,24) ou que eram capazes de pagar o dízimo dos temperinhos, mas
deixavam o mais importante da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade
(cf. Mt 23,23). E voltou a insistir na misericórdia de Deus, ao contar a
parábola do filho pródigo (Lc 15,11-32). Convidou-nos a termos uma
postura diferente da de Jonas, dizendo-nos: “Sede misericordiosos como
vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36). Insistiu na inclusão dos pobres, dos
samatiranos, das mulheres e dos estrangeiros em seu projeto. Jesus se inse­
riu no movimento profético de resistência que já existia antes dele e conti­
nuava em sua época. Conhecia muito bem a luta dos autores de Jó, de
Rute, de Cantares e de Jonas. Não é por acaso que faz referências aoLivro
de Jonas (Mt 12,38-41; Lc 11,29-32).
A novela termina de forma inusitada. Para a indignação dos teólo­
gos do templo, marinheiros estrangeiros aderiram a YLIWH. Os opresso­
res ninivitas passaram de suas ações perversas e violentas para a vivência
da justiça de YHWH. Mas, tal como os “amigos” de Jó, Jonas, símbolo
da comunidade judaica nacionalista e exclusivista do 2° templo, continua
sem se converter. Parajonas, serviriam muito bem as palavras de Is 55,8:
“Meus pensamentos não são vossos pensamentos. E os vossos caminhos
não são os meus caminhos, oráculo de YHWH”
Um bom resumo da mensagem dessa novela você encontra em Ez
18,23.32; 33,11, um texto anterior a Jonas. Não deixe de conferir!
Ao ler o Livro de Jonas, você não pode deixar de comparar sua
visão aberta em relação às pessoas estrangeiras com a visão nacionalista de
Esdras e Neemias (Esd 9-10 e Ne 13,23ss). São duas maneiras diferentes
de compreender Deus. A parábola de Jonas foi criada para criticar a pos­
tura fechada de Neemias e Esdras, do Judaísmo, dos autores da OHC.

Como nos relacionamos com quem não é de nosso país ou do


nosso credo? Qual é a política de países centrais em relação aos mi­
grantes de países periféricos? Como encarar hoje as diferentes formas
com que as diversas culturas expressam sua fé? Será que não criamos

200
uma imagem de Deus demais parecida com nossa cultura? Reconhe­
cemos que outras culturas têm o mesmo direito? Nossa forma de
julgar as pessoas é parecida com a do Deus pleno de misericórdia?
Como é possível fazer com que a grande Nínive de hoje deixe de ser
perversa e não continue praticando tanta violência contra as nações?
Até que ponto excluímos de nossa pastoral setores dominantes ou
pertencentes às elites? Qual é a estratégia pastoral para atingir hoje as
grandes cidades? Será que também nós não procuramos fugir muitas
vezes da missão profética a que somos vocacionados?

Para você continuar sua reflexão


Qual é a mensagem central do Livro de Jonas?

A profecia de Joel
“ D epois derra m arei o m eu espírito
sobre todas as p e s s o a s (J1 3,1)

Uma diferença significativa entre o Livro de Joel


e os Livros de Rute, Jó, Cantares e Jonas
Acima, vimos que os Livros de Jonas, Rute, Cantares e Jó são fruto
da resistência popular contra a imposição do Judaísmo legalista no pós-
exílio, especialmente na época de Neemias e Esdras. Resistem contra uma
equivocada visão de Deus, que era manipulado em favor dos interesses
do 2° templo. Rebelam-se contra a rigorosa observância dos dogmas da
retribuição, das leis do puro e do impuro e da pureza étnica da comunida­
de judaica repatriada.
Diferentemente desses livros, Joel (YHWH ê Deus) nos revela outra
realidade, outra problemática. Suas profecias têm outra origem, outros obje­
tivos e destinatários. Revelam a crise da comunidade judaica em torno de Sião.
Joel é profecia em tempo de crise nas instituições do Judaísmo e na
vida do povo. È um texto feito por profetas com muita intimidade com

201
o culto no templo de Jerusalém. É provável que Joel tenha sido um pro­
feta que atuava junto ao culto. Era, portanto, alguém com uma elevada
formação teológica. Tinha fortes vínculos com os sacerdotes do templo,
os escribas e os levitas. È possível que fosse levita, uma vez que estes se
consideravam profetas, como já vimos em lC r 25,5 e 2Cr 29,25-30. E o
mesmo grupo que está por trás da edição final dos Provérbios, do Penta­
teuco, da OHC e dos Salmos, como vimos acima.
Por outro lado, o profeta revela também um profundo conheci­
mento da vida do campo e tem consciência da situação de quem nele
trabalha. A existência de um clero de “resistência”, ou seja, capaz de se
preocupar com as antigas tradições de liberdade, está na origem do movi­
mento apocalíptico. A profecia de Joel se encontra nesta encruzilhada e foi
importante para a comunidade cristã como veremos.
Sua pregação terá se restringido a Judá e particularmente ajerusa-
lém. Destina-se à comunidade fiel que aí se reúne em torno do templo e
da observância da lei. Em 1,2, o profeta se dirige aos anciãos, os respon­
sáveis em manter viva a memória dos feitos de YHWH na história de
Israel. Em 1,13 dirige-se aos sacerdotes. Em 1,2; 2,1.23; 3,5; 4,1.6.19 fala
aos habitantes da terra de Judá, de Sião e de Jerusalém. O templo é um de
seus interesses principais (1,9.13-14.16; 2,15-17; 4,17-18.20).

Época do Livro de Joel


Como os livros que vimos acima, Joel também pode ser situado
em torno de 400 a.C. Há diversas razões para essa datação.
• Como não faz nenhuma vez referência ao rei, supõe-se que a
monarquia já não exista em seu tempo.
• Como se refere muito aos sacerdotes, são fortes os indícios de
que Joel tenha atuado no pós-exílio, quando o sacerdócio adquiriu grande
importância.
• Diferentemente da postura crítica dos profetas pré-exílicos, Joel
tem uma atitude muito positiva em relação ao templo e ao culto. O tem­
plo a que se refere, certamente é o que foi inaugurado em 515 a.C.
• Além do mais, 4,2-3 faz uma referência explícita ao exílio como já
ocorrido.
• As muralhas de Jerusalém já estão novamente reconstruídas (2,7.9).

202
• Em 4,6 já menciona os gregos que participavam no tráfico de
escravos.
• Além disso, Joel nenhuma vez faz referência ao antigo Reino do
Norte. Quando fala em Israel está se referindo a Judá, linguagem que se
tornou comum no pós-exílio.
• Joel jáparece estar distante dos assírios e babilônios, os grandes
opressores dos israelitas antes do exílio. Nenhuma vez os menciona, em­
bora cite diversos países estrangeiros (fenícios, filisteus, egípcios, edomitas,
gregos e sabeus).
• Em Joel, há quase trinta referências a textos do Primeiro Testa­
mento, especialmente de Amós, Isaías, Jeremias, Ezequiel, Naum, Sofoni-
as, Abdias e Malaquias. Isso significa que conhecia esses livros proféticos e
aproveitou muitos dos seus textos para elaborar o seu livro.

Causas da crise no tempo de Joel


Na época de Joel, a comunidade judaica vivia uma profunda crise.
Segundo o texto do profeta, a difícil situação era conseqüência de princi­
palmente três causas.
A primeira que ele lembra foi uma terrível praga de gafanhotos (1,4).
A segunda causa era a invasão de um exêráto inimigo, tão voraz como o
leão (1,6-7) e tão arrasador como a praga dos gafanhotos (2,20.25). Joel
diz que o inimigo vem do norte. Certamente é uma referência aos persas.
Em Ne 5,1-5, você já leu como a cobrança de tributos pelos persas em­
pobreceu e levou à escravidão o povo da terra e também muitos judeus
repatriados. Você viu também em Ne 9,36-37 que a opressão persa redu­
ziu os israelitas a escravos em sua própria terra, levando a uma desgraça
tão grande que seus produtos agrícolas, seus rebanhos e seus próprios
corpos já não mais lhes pertenciam, mas passaram a pertencer ao império.
A partir da praga dos gafanhotos, Joel usa a invasão desse exército
de insetos como metáfora, como figura para se referir à dominação de­
vastadora dos persas (2,25). Sua maldade é grande (4,13 —Almeida =
3,13) e foi longe demais (2,20).
E a terceira causa da crise foi uma grande seca (1,15-20).

203
Conseqüências da praga, da seca e da ocupação estrangeira
A situação do povo já estava calamitosa com a remessa de pesados
tributos para a Pérsia. E mais. O povo da terra ainda pagava o dízimo ao
templo para a manutenção dos sacrifícios e dos profissionais da religião.
Sustentava ainda o administrador persa na província de Judá. Imagine
agora como terá aumentado o sofrimento, especialmente dos campone­
ses, com a vinda da praga dos gafanhotos na lavoura e de uma seca pro­
longada. O país ficou devastado.
Antes de continuar seu estudo, leia agora as citações que seguem e
faça uma lista das conseqüências na agricultura, na fruticultura, na pecuária,
na natureza e no culto do templo, causadas pela ocupação estrangeira e
agravadas pela seca e pela praga de gafanhotos: 1,4;
"A alegria 1,6-7; 1,9.13.16; 1,10-12; 1,16-20.
desapareceu E mais. A violência da dominação estrangeira
do meio demoliu celeiros. Desertificou e despedaçou a vida
das pessoas." do povo, simbolizado pela “vinha” e pela “figueira”.
(JH ,1 2 ) Veja que a vinha e a figueira não são somente referên­
cias aplantas. Também eram símbolo do povo. Quan­
to à vinha, veja, por exemplo, Is 5,1-7 e Mt 21,33-46. Quanto à figueira,
confira Mt, 21,19-21 e Lc 13,6-9!
A situação ficou tão dramática que se tinha a sensação de que Deus
havia abandonado Israel. Ao fazer um forte chamado à penitência (2,12-17),
o profeta conclui seu apelo com uma frase usada pelas nações mais fortes
para zombar de Judá: “Onde está o teu Deus?” (cf 2,17). Algumas déca­
das antes, o profeta Malaquias já repreendera o povo porque dizia: “Onde
está o Deus da justiça?” (cf. Ml 2,17). Mais de um século antes, durante o
exílio babilônico, os judeus já haviam experimentado esse mesmo despre­
zo por parte dos babilônios. Confira no Salmo 42!

O papel do profeta Joel


Tanto sofrimento era interpretado a partir das categorias da doutri­
na da retribuição. Tanta calam idade era vista como castigo de Deus. A
angústia diante da crise aumentou porque se achava que era funda­
mental manter os sacrifícios no altar do templo para que Deus voltas­

204
se a abençoar o povo. Ao ler 2,12-14, você perceberá a presença dessa
visão de Deus, tão combatida por Jó. Lembra?
Se Deus está irado com o povo, o que era preciso fazer? Joel con­
clama o povo ao arrependimento daquilo que causou a ira de Deus. O
apelo à conversão já aparece em 1,13-14 e volta com toda força em 2,12-17.
Porém, em nenhuma parte de sua obra, o profeta diz quais foram os
pecados da comunidade judaica pós-exílica. Confira os textos e perceba
como a desgraça do povo se transformou em súplica!
E interessante notar que Joel insiste em que não bastam sinais exter­
nos de arrependimento. E preciso ir mais longe. A conversão passa pelo
coração (2,13), o lugar das decisões para uma nova prática. Dois séculos
antes, o profetajerem ias denunciara o perigo das aparências da circunci­
são. Por isso, conclamou à circuncisão do coração e do ouvido (Jr 4,4;
6,10). Da mesma forma, Joel faz críticas às aparências exteriores dos ritos
de penitência, de jejum. Certamente, Joel tinha diante de seus olhos o que
Isaías já dissera sobre o jejum que agrada a Deus (Is 58,1-12). E a prática
de solidariedade para com os mais excluídos.
Como Jonas (Jn 4,2), ele acredita na misericórdia de Deus (2,13).
Mas YHWH somente voltará atrás, arrepender-se-á, voltando a dar
bênção ao povo (2,14), na medida em que este também retornar a Ele.
Por isso, Joel chama todas as pessoas a participarem dessa penitência, tal
como fizeram os ninivitas (Jn 3). Não somente conclama as autoridades,
isto é, os anciãos e os sacerdotes. Apela a todo o povo, desde os adultos,
passando pelos jovens e até as crianças (1,13-14; 2,16-17).

Deus se arrepende e anuncia a bênção


A resposta misericordiosa de YHWH é o anúncio de uma abun­
dante bênção. E ela já chegou. Leia 2,18-27 e identifique em que consiste
concretamente a resposta de Deus diante do arrependimento do povo!
Na leitura que fez, você percebeu que gafanhotos e seca sumiram e
tudo ficou novamente verdejante. Comida já não falta mais. E isso é sinal
da presença de Deus no meio do povo. A honra de Deus é um povo com
dignidade (2,27). J 12,27 e 4,17 é a resposta à pergunta de 2,17b.
Porém, a esperança na libertação da opressão estrangeira ainda con­
tinua apenas uma promessa (2,20). Nesse sentido, a esperança na vinda do

205
Dia de Y\ IWH contra as nações opressoras, com overem os no próximo
item, é o desejo de liberdade política que ainda não aconteceu e é anun­
ciado como promessa a se realizar no futuro.

O D ia d e YH W H e o dom do espírito
Antes de retomar sua leitura neste volume, convidamos você a reler
o item “O D ia de YHWH” nas páginas 125 e 126 do volume 4.
Como em Sofonias, também na teologia de Joel, o Dia de YHWH
exerce um papel importante.
A primeira vez que anuncia o grande diaé em 1,15. Em 2,1-11, Joel
anuncia o Dia de YHWH contra o país, isto é, contra Judá, para que se
arrependa e volte a Deus. Confira!
O arrependimento, a mudança de vida descrita em 2,12-17 é con­
seqüência desse anúncio do Dia de YHWH contra todo o povo.

Um esclarecimento. Na Bíblia traduzida por Almeida, usada pe­


los evangélicos, o Livro de Joel tem somente 3 capítulos. J1 3,1-5 nas
traduções católicas corresponde a jl 2,28-32 na tradução feita por Al­
meida. E o capítulo 4 nas traduções católicas corresponde ao capítulo
3 na tradução dos evangélicos.

A partir de Jl 3,1 (Almeida = 2,28), o Dia de YHWH se volta contra


as nações opressoras. Como a dominação dos persas continuava muito
sólida, o profeta joga para o futuro a esperança na libertação política do
império.
Antes de chegar o grande dia, Joel anuncia o dom do espírito de
YHWH a “toda carne”. E o espírito de profecia. Não deixe de ler 3,1-5
(Almeida = 2,28-32) e compare esse texto com Nm 11,25-30! Veja ainda
em At 2,16-21 como Pedro se valeu dessa citação ao fazer seu discurso
após a forte experiência do espírito feita pela comunidade cristã de Jerusa­
lém no dia de Pentecostes! Compare ainda com Ez 37,1-14!
Convém destacar aqui que Joel, como Moisés, já antecipa o que
Paulo diria mais tarde em G13,28. Paulo diria que batizar-se em nome de
Jesus significa superar todas as formas de discriminação, sejam elas cultu-

206
Dia de YHWH contra as nações opressoras, como veremos no próximo
item, é o desejo de liberdade política que ainda não aconteceu e é anun­
ciado como promessa a se realizar no futuro.

O Dia de YHWH e o dom do espírito


Antes de retomar sua leitura neste volume, convidamos você a reler
o item “O Dia de YHWH” nas páginas 125 e 126 do volume 4.
Como em Sofonias, também na teologia de Joel, o Dia de YHWH
exerce um papel importante.
A primeira vez que anuncia o grande dia é em 1,15. Em 2,1-11, Joel
anuncia o Dia de YHWH contra o país, isto é, contra Judá, para que se
arrependa e volte a Deus. Confira!
O arrependimento, a mudança de vida descrita em 2,12-17 é con­
seqüência desse anúncio do Dia de YHWH contra todo o povo.

Um esclarecimento. Na Bíblia traduzida por Almeida, usada pe­


los evangélicos, o Livro de Joel tem somente 3 capítulos. J1 3,1-5 nas
traduções católicas corresponde a J12,28-32 na tradução feita por Al­
meida. E o capítulo 4 nas traduções católicas corresponde ao capítulo
3 na tradução dos evangélicos.

A partir de J13,1 (Almeida = 2,28), o Dia de YHWH se volta contra


as nações opressoras. Como a dominação dos persas continuava muito
sólida, o profeta joga para o futuro a esperança na libertação política do
império.
Antes de chegar o grande dia, Joel anuncia o dom do espírito de
YHWH a “toda carne”. E o espírito de profecia. Não deixe de ler 3,1-5
(Almeida = 2,28-32) e compare esse texto com Nm 11,25-30! Veja ainda
em At 2,16-21 como Pedro se valeu dessa citação ao fazer seu discurso
após a forte experiência do espírito feita pela comunidade cristã de Jerusa­
lém no dia de Pentecostes! Compare ainda com Ez 37,1-14!
Convém destacar aqui que Joel, como Moisés, já antecipa o que
Paulo diria mais tarde em G13,28. Paulo diria que batizar-se em nome de
Jesus significa superar todas as formas de discriminação, sejam elas cultu-

206
Com o fim da monarquia em Israel, os profetas exílicos e pós-
exílicos anunciaram novos tempos. Passaram a ter um tom mais consola­
dor. Anunciaram esperança em um futuro bem mais otimista. Foi o caso
de Ezequiel, do 2° Isaías, de Ageu e Zacarias (1-8). Ezequiel, por exemplo,
anunciou a punição dos povos estrangeiros (Ez 25-32), a era do espírito
(Ez 37,1-14) e a fonte de água que geraria um novo paraíso a partir do
templo (Ez 47,1-12). Anos se passaram e nada disso havia se concretizado.
Então Joel mantém a esperança dos profetas anteriores e garante que ela
não cairá no vazio. E volta a anunciar o cumprimento dessa nova era que
acontecerá no Dia de YHWH, dia de libertação para Judá e de desgraça
para as nações.
A condenação dos povos estrangeiros que oprimiram Israel será
num grande julgamento no vale da Decisão, no vale de Josafá (Deus julga).
Joel cita Tiro, Sidônia, Filisteia, Egito e Edom (4,4.19). Leia agora 4,2-3.5-
6.19 e faça um levantamento dos crimes e das injustiças de que essas na­
ções são acusadas pelo profeta!
A libertação política diante dos povos opressores trará também a
prosperidade e o bem-estar econômico para Judá. Não deixe de ler 4,17-
18 e compare com Ez 47,1-12!

Luzes e sombras da profecia de Joel


Certamente há aspectos m vixtopositiivs no Livro de Joel e que aju­
dam a iluminar nossa caminhada. Citemos alguns exemplos:
• Necessidade permanente de conversão ao projeto de Deus. Uma
conversão no coração e não apenas nas aparências.
• Confiança na misericórdia de YHWH.
• A efiisão do espírito que rompe barreiras de gênero, de idade e
de classes sociais.
• O protesto anti-imperialista.

Até que ponto nós hoje permitimos a ação do espírito de Deus em


nossas vidas, em nossas comunidades? Será que as estruturas sociais,
econômicas, políticas e eclesiais não limitam demasiadamente o agir
do espírito de YHWH, que ainda hoje quer superar todas as formas
de discriminação e de exclusão?

208
Mas há também limites, ou sombras que nos incomodam. Vejamos:
• Joel não inclui todos os israelitas, como os descendentes das tri­
bos do norte. Para ele, Israel se reduz ajudá, em torno de Sião, de Jerusa­
lém e do templo. Seu destinatário é a comunidade pós-exílica exclusivista
e nacionalista, fechada em seus dogmas.
• Apesar de falar da efusão do espírito sobre “toda carne” (3,1-
Almeida = 2,28), Joel, tal como o personagem Jonas, exclui os estrangei­
ros do projeto de Deus (4,17). Nisso não concorda com Is 42,6; 49,6;
56,1-8. Nem com os autores dos livros de Jonas e Rute. Joel não visualiza
uma forma de incluir os poderosos estrangeiros em um mundo baseado
em relações de justiça e de liberdade. Refere-se a eles como vítimas do
castigo de Deus, como espetáculo da justiça divina no Dia de YHWH.
• Insiste na centralização no templo de Jerusalém (3,5; 4,17.21). Nisso
discorda do movimento profético de Isaías (Is 57,15; 66,1-2) e da maioria
dos profetas pré-exílicos.

O Livro de Joel
O Livro de Joel, embora possamos dividi-lo em duas partes bem
delimitadas, é um livro que tem unidade. O tema do Dia de YHWH per­
passa toda a obra.

Ia parte (1,1-2,27): Seca, praga de gafanhotos e opressão


1.1-2,17: Situação de desgraça e penitência.
1.1-12: Lamentação sobre a miséria do país.
1,13-20: Convite à penitência e à oração.
2.1-11: o Dia de YHWH contra Judá.
2,12-17: Novo convite à conversão.
2.18-27: Resposta favorável de YHWH: o fim da seca, da praga e,
no futuro, da opressão.

2a parte (3-4 - Almeida = 2,28-3,21): A efusão do espírito


e o Dia de YHWH
3.1-5 (Almeida = 2,28-32): A era do espírito.
4.1-17: Julgamento das nações opressoras.
4.18-21: Libertação de Judá.

209
Para você continuar sua reflexão
C om pare J1 3,1-5 (A lm eida = 2,28-32) com Nm 11,25-30 e
At 2,14-21 e responda: a) O que há de comum nos textos de J1 e de Nm? b)
A partir da experiência das comunidades primitivas, o que o texto de Joel,
lembrado por Pedro, representa hoje para sua vida e a de sua comunidade?

210
Conclusão da 2a parte
A 2“ parte deste volume foi dedicada ao estudo do período da
dominação persa em Judá. Inicialmente vimos algumas informações bási­
cas sobre o novo império no Oriente Médio a partir de 539 a.C. Sua
estratégia de dominação tem uma novidade. Respeita as culturas locais,
inaugurando o moderno sistema de dominação através da ideologia. Ou­
tra inovação dos persas foi a cobrança dos impostos somente em moeda.
Além do aramaico como língua oficial, observamos a organização do
império em satrapias, províncias e distritos. Discutimos ainda a relação de
Judá com a Pérsia enquanto província autônoma.
Num segundo momento, estudamos as primeiras décadas de recons­
trução da comunidade judaica no pós-exílio. Por um lado, examinamos o
projeto de reconstrução dos repatriados em torno do templo. Primeiro,
Sasabassar comandou a reconstrução do altar. Não levou adiante sua in­
tenção de reconstruir o templo, porque os “samaritanos”, também cha­
mados de “povos da terra”, resistiram. E que o regresso dos cativos da
Babilônia criou um conflito inevitável com os remanescentes, especial­
mente por causa da posse da terra.
Uns 15 anos depois de Sasabassar, Zorobabel foi nomeado gover­
nador da província pelo rei persa. Veio acompanhado pelo sumo sacer­
dote Josué e pelos profetas Ageu e Zacarias. Sua missão foi continuar as
obras do 2o templo. Num contexto de instabilidade política no império,
Zorobabel e Ageu procuraram libertar Judá da dominação persa. Mas seu
projeto foi abortado. Josué e Zacarias, então, levaram a cabo a missão,
inaugurando em Judá a era do poder religioso centralizado nas mãos dos
sacerdotes apartir do santuário de Jerusalém. Examinamos ainda a situa­
ção dos sacerdotes sadoquitas e levitas antes e depois do exílio, bem como
a função do 2° templo para a comunidade judaica e para os persas, espe­
cialmente como legitimador da discriminação. Nisso, a teologia da retri­
buição também deu sua parcela de contribuição.

211
Por outro lado, analisamos o projeto dos remanescentes que fize­
ram duras críticas à elite sacerdotal, ao templo, a uma piedade apenas
aparente e à exclusão de pessoas estrangeiras. Seu projeto é pela inclusão
de estrangeiros, por uma nova espiritualidade que valoriza a vida e a pre­
sença de Deus nos pobres mais do que no templo e por um culto que
coloca a prática da justiça acima de meras aparências. E possível escutar
ainda hoje sua voz em Is 56-66.
Décadas mais tarde, o grupo de Malaquias profere oráculos contra
os responsáveis pelo culto, criticando seu desleixo nos sacrifícios, sua omis­
são nos casamentos mistos e na falta de solidariedade para com os mais
fracos.
Num terceiro momento, detivemo-nos no estudo da consolidação
do projeto do templo, comandado pelo governador Neemias e pelo sa­
cerdote e escriba Esdras na segunda metade do século 5.
Mais uma vez, estamos diante de um período de instabilidade no
império. A satrapia do Egito se revoltou contra o poder central com a
ajuda dos gregos. Nesse contexto, Neemias veio como pessoa de absoluta
confiança do rei para reconstruir e repovoar Jerusalém, a fim de que ser­
visse de fortaleza militar na região. A reedificação de Jerusalém certamente
também interessava aos judeus como um dos símbolos da sua identidade
e a fim de transferir para lá a capital da província de Judá.
Neemias também foi forçado pelos pobres da terra a exigir dos
nobres o perdão das dívidas, a devolução das terras hipotecadas e a liber­
tação de homens e mulheres do campo já escravizados por causa de suas
dívidas.
A principal tarefa de Esdras foi o ensino da Lei de Moisés, legiti­
mando as reform as culturais e religiosas decretadas pelo governador
Neemias. A observância rigorosa da lei ratificou as medidas de purifica­
ção do templo, de reorganização do sustento dos levitas, do cumprimen­
to da lei do sábado e da dissolução dos matrimônios mistos.
Na seqüência, examinamos algumas conseqüências da aplicação da
lei de pureza étnica contra os estrangeiros, da lei do puro e do impuro
especialmente contra os pobres da terra e, de modo especial, contra as
mulheres. Fizemos também algumas observações sobre alei como a ver­
dade, avida e o caminho para Deus. Nopós-exílio, o papel que antes era

212
da profecia foi assumido pelos sacerdotes do templo. Eles passaram a ser
os principais mediadores entre YHWH e o povo. Aos poucos, também a
Lei de Moisés passou a cumprir essa função. Para concluir, fizemos algu­
mas observações sobre a formação do Judaísmo como um modo de
vida intimamente vinculado à Lei de Moisés, cuja observância era o prin­
cipal meio para pertencer à comunidade judaica.
Num quarto momento, estudamos a respeito da edição final de co­
letâneas já existentes anteriormente. E o caso dos Provérbios, do Penta­
teuco e dos Salmos. A OHC foi uma elaboração dos sacerdotes e levitas.
l-2C r são uma releitura da história de Israel desde Adão até o fim do
Reino de Judá. Esdras e Neemias descrevem a formação do Judaísmo
desde o retorno de grupos da Babilônia, passando pela reconstrução do
altar, do templo, dos muros de Jerusalém, até a reorganização da comuni­
dade judaica em torno da lei. Esdras foi o principal responsável pela exi­
gência do cumprimento da lei, com o apoio do Império Persa.
Os responsáveis por toda a obra redacional, que compreende a
edição final do Pentateuco, dos Provérbios, da Of IC e do Livro dos
Salmos, são os sacerdotes e levitas no século 4 a.C. Sua ótica é a defesa da
teologia oficial do Judaísmo pós-exílico, com ênfase no templo, na lei e no
sacerdócio. Por causa de sua grande preocupação em garantir a identidade
da comunidade, os responsáveis pelo Judaísmo cometeram excessos. Seu
zelo pelo cumprimento restrito da doutrina da retribuição, do dogma de
pureza étnica e da lei do puro e do impuro discriminou setores importan­
tes, como os pobres, os doentes, as mulheres e os estrangeiros.
Num quinto momento, vimos que os Livros de Jó, Cantares, Rute e
Jonas são fruto da resistência popular contra a imposição desse Judaísmo
ortodoxo no pós-exílio, especialmente na época de Neemias e Esdras.
Resistem contra uma equivocada visão de Deus que era manipulado em
favor dos interesses do 2° templo.
O teólogos de Jerusalém, apoiados pelo Império Persa, queriam
justificar a pobreza e o sofrimento dos pobres com o dogma da retribui­
ção, mantendo-os resignados e submissos. Jó conspira contra essa mani­
pulação do Deus da gratuidade, para que o povo pudesse tomar nas suas
mãos as rédeas de sua própria história e caminhada de fé.
Pretendiam também justificar a discriminação e submissão da mu­

213
lher através da imposição da lei do puro e do impuro. Cantares resiste,
resgatando, entre outras questões, a dignidade da mulher e propondo re­
lações de gênero com total reciprocidade. Rute defende o papel de lide­
rança e protagonismo das mulheres.
Queriam ainda aplicar as leis que lhes convinham, deixando de lado
aquelas que contribuíam no resgate da cidadania dos mais pobres. Rute e
Noemi exigem o cumprimento do direito dos pobres. O direito de catar
espigas em plantações alheias, a fim de não passarem fome. O direito do
resgate da herança para que os sem-terra não precisassem ficar amontoa­
dos em acampamentos à beira das estradas. Por fim, lutaram também
para que fosse aplicada outra lei “esquecida” . A lei do levirato ou do
cunhado, a fim de que os clãs pudessem ter futuro e as viúvas, perspectivas
de vida.
Por último, aplicavam rigorosamente a lei de pureza étnica, discri­
minando os pobres da terra, a quem acusavam de se terem misturado
com estrangeiros. Discriminavam os israelitas que eram do antigo Reino
do Norte, os samaritanos. Excluíam ainda os povos estrangeiros. Contra
essa discriminação, a parábola de Jonas resgata a imagem do Deus miseri­
cordioso, que não faz acepção de pessoas e de povos. Porém, agrada-lhe
quem o temer e praticar a justiça, seja de qualquer nação que for.
Diferentemente desses livros, Joel nos revela outra problemática.
Suas profecias têm outra origem e outros destinatários. Revelam a crise da
comunidade judaica em torno de Sião. Joel é profecia em tempo de crise
nas instituições do Judaísmo e na vida do povo. E um texto feito por
profetas, talvez levitas, com muita intimidade com o culto no templo de
Jerusalém. E se destina à comunidade fiel que aí se reúne. O templo é um
de seus interesses principais.
Ao estudarmos o Livro de Joel, vimos que uma seca e uma praga
de gafanhotos aprofundaram a crise do povo, que j á era grave por causa de
ocupação estrangeira. Joel conclama os judeus a fazerem penitência, diante
da ameaça do Dia de YHWH. Como o povo se penitencia, Deus perdoa e
anuncia uma nova era para Israel e o fim das nações que oprimem.
O próximo volume desta série será sobre os últimos séculos que se
referem ao período do Primeiro Testamento e, ao mesmo tempo, sobre a
vida e a pregação de Jesus de Nazaré.

214
Para orar e aprofundar

si 10 Sl 118 Jó 36,22-37,24
Sl 19 Sl 119 Pr 1,20-33
SI 22 Sl 126 Ct 1,5-2,7
Sl 23 Nm 6,24-26 Jn 2,3-10
Sl 50 lC r 16,8-36 Is 63,7-64,12
Sl 78 Jó 5,8-16 Ne 9,5-37
Sl 85 Jó 25,2-26,14

Sugestões de leitura
GALLAZZI, Ana Maria; GALLAZZI, Sandro. Mulher: fé na vida. A
P alairana Vida. CEBI: São Leopoldo, n. 35/36.
GIRARD, Marc. Como ler o Livro deAgeu. São Paulo: Paulus.
KIPPENBERG, H. G. Religião eformação de classes na antiga Judeia. São Paulo:
Paulus.
OLIVA, Alfredo dos Santos. Como ler o Livro de Esdras e Neemias. São Paulo:
Paulus.
ROSSI, Luiz Alexandre Solano. Como ler o U vro de Zacarias. São Paulo:
Paulus.
SHIGEYUKI, Nakanose; PEDRO, Enilda de Paula. Como ler o U vro de
Malaquias. São Paulo: Paulus.
MESTERS, Carlos. O Rio dos Salmos —das nascentes ao mar. A Palavra
na Vida. São Leopoldo: CEBI, n. 9.
CEBI-MINAS GERAIS. O mais belo cântico da Bíblia. A Palaira na Vida.
São Leopoldo: CEBI, n. 77.
PEGORINI, Nilson, OLIVEIRA, Paulo Quiquita de. Proposta de Rotei­
ro para Estudo do Livro de Jó. A Palaira na Vida. São Leopoldo: CEBI,
n. 103.

215
OLIVA, José Raimundo. Jó, Sábio e Profeta. Ensaios. São Leopoldo: CEBI,
n. 1
NÜSSE, Dietlind. “Eu sabia... Por isso fugi” —Jonas e a Misericórdia de
Deus. Ensaios. São Leopoldo: CEBI, n. 2.
MUTZENBERG, Maria Helena da S. Fazer o Mundo como um Jardim
de Delícias —Um estudo do Cântico dos Cânticos. Ensaios. São Leopoldo:
CEBI, n. 3.
ROTEIROS PARA REFLEXÃO II. Formação do Povo de Deus - Pen­
tateuco. São Leopoldo: CEBI, São Paulo: Paulus.
ROTEIROS PARA REFLEXÃO V Livro dos Salmos. São Leopodo:
CEBI, São Paulo: Paulus.
ROTEIROS PARA REFLEXÃO VI. Livros Sapienciais e Novelas Bíbli­
cas. São Leopoldo: CEBI, São Paulo: Paulus.
BALANCIN, Euclides M.; STORNIOLO, Ivo. Como kro Cânticos dos Cân­
ticos —o am orê uma faísca de Deus. São Paulo: Paulus.
BALANCIN, Euclides; STORNIOLO, Ivo. Como kro Livro de Gênesis. São
Paulo: Paulus.
BALANCIN, Euclides; STORNIOLO, Ivo. Como kro liv r o do Êxodo. São
Paulo: Paulus.
DIETRICH, Luiz José. O Grito de Jó. São Paulo: Paulinas.
GIRARD, Marc. Como k ro Livro dos Salmos. São Paulo: Paulus.
MESTERS, Carlos. Como k ro Litro de Rute —Pão, Família, Terra. São Pau­
lo: Paulus.
STORNIOLO, Ivo. Como k ro Livro de Jó. São Paulo: Paulus.
STORNIOLO, Ivo. Como k ro Livro do Levítico. São Paulo: Paulus.
STORNIOLO, Ivo. Como kro Livro dos Números. São Paulo: Paulus.
STORNIOLO, Ivo. Como k ro Livro do Deuteronômio. São Paulo: Paulus.

216
U M A INTRODUÇÃO A BIBLIA
VO LV EXIL.IO BABILONICO

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