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XXXVI
E há poetas que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!…
Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem não pensa.
10 E olho para as flores e sorrio…
Não sei se elas me compreendem
Nem se eu as compreendo a elas,
Mas sei que a verdade está nelas e em mim
E na nossa comum divindade
15 De nos deixarmos ir e viver pela Terra
E levar ao colo pelas Estacões contentes
E deixar que o vento cante para adormecermos
E não termos sonhos2 no nosso sono.
PESSOA, Fernando, 2010. Poesia dos Outros Eus. 2.a ed. Lisboa: Assírio & Alvim (p. 65)
1. “casa certa”: na primeira versão do poema “casa artística”; 2. Variante do verso: “Afrouxando, e sem sonhos”.
2. Explicita a contradição presente no verso “Penso nisto, não como quem pensa, mas como
quem não pensa.” (v. 9).
Proposta de correção
1. As comparações com um “carpinteiro” (v. 3) e com “quem construi um muro” (v. 5) servem ao sujeito
poético para colocar em destaque o trabalho formal, minucioso e exigente dos poetas que se dedicam a
uma poesia elaborada, pensada e produzida como outras construções humanas. Face a esses poetas, que
“trabalham nos seus versos” (v. 2), o sujeito poético manifesta admiração e estranheza.
2. Ao recusar o pensamento, afirmando que se aproxima de “quem não pensa”, o “eu” enunciador serve-se,
contudo, do verbo “pensar” para designar a ação que pratica (“Penso nisto”). Deste modo, envolve-se na
intelectualização que rejeita e expressa a contradição que sua poesia frequentemente denuncia.
3. O sujeito poético discorre, na última estrofe, sobre a importância do contacto com a natureza como única
forma de aceder à “verdade” (v. 13). No último verso, em jeito de conclusão, recupera a sua atitude
antimetafísica, para rejeitar qualquer atividade mental que se oponha à autenticidade dos elementos
campestres que descreveu, incluindo os “sonhos” que ocorrem durante o “sono”.