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O feitiço da leitura: o papel da escola

na formação de crianças leitoras


Ângela Coelho de Paiva Balça*

Nos dias de hoje, parece-nos inegável


a importância da leitura e de saber ler,
Resumo
para que os cidadãos se integrem ple-
Neste texto pretendemos reflectir namente na vida quotidiana, em termos
sobre o papel desempenhado pela profissionais e em termos de lazer.
escola na promoção da leitura e do De facto, Peças (1993) acentua que sa-
gosto pela leitura entre as crianças ber ler e saber escrever são actualmente
e os jovens. A escola cumpre um
desígnio capital no estímulo para a
e cada vez mais factores elementares de
aquisição de hábitos de leitura entre cidadania e de liberdade individual.
os mais novos e, consequentemente, As grandes preocupações com o pa-
na formação de crianças e de jovens pel desempenhado pela leitura e com o
leitores. domínio do código escrito na moderna
sociedade da informação não são ape-
Palavras-chave: escola; leitura; for- nas apanágio da sociedade portuguesa,
mação de leitores.
mas estão presentes em nível global.
Desse modo, a Unesco proclamou a
década 2003/2012 como a United Na-
tions Literacy Decade, ou seja, a Década
Internacional da Literacia, admitindo
que nos dias de hoje a literacia perma-

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????

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nece como um dos maiores desafios da de leitura e às práticas de leitura dos
humanidade, em nível global. A Unesco cidadãos, aceitando que é importante
apresenta, assim, a noção de literacy as saber ler e ler, e reconhecendo que a
freedom , dirigindo-se principalmente escola é o lugar privilegiado para a
aos milhões de excluídos do mundo produção de leitores.
inteiro, por razões ligadas à literacia. Já a segunda missão atribuída à es-
Dessa maneira, a Unesco pretende con- cola é eventualmente menos conhecida,
jugar vários esforços para que, dentro talvez porque mais moderna na escola
dos próximos anos, se possa inverter e na sociedade em geral. Na verdade,
essa situação e se possa encontrar um segundo M agalhães e Alçada (1988),
caminho, a fim de que a noção literacy embora há já algum tempo muitos pro-
for all seja uma realidade. fessores encaminhassem os alunos para
Na verdade é na escola que as a leitura, só recentemente se assinalou
crianças aprendem a ler e que, prova- àescola o objectivo de formar leitores. A
velmente, se formam crianças leitoras. leitura recreativa, de lazer, passou então
A formação de crianças leitoras será a ser vista na escola como uma aliada do
certamente facilitada se a família estudo, concordando-se que representa
colaborar activamente com a escola um enriquecimento pessoal.
e se a biblioteca escolar proporcionar Os próprios professores consideram
um espaço informal de leitura, bem importante a sua actuação para a aqui-
apetrechado com os mais diversos e sição do gosto pela leitura por parte
apelativos materiais de leitura. dos seus alunos e têm a preocupação
Na nossa perspectiva, na socieda- em realizar com as suas turmas acti-
de contemporânea duas missões, que vidades, que promovam o gosto pela
se complementam, são conferidas à leitura (M AGALH ÃES e ALÇADA,
escola:a primeira será promover a 1994). Por outro lado, notamos uma
aprendizagem da leitura e a segunda, mudança actualmente na família em
formar leitores. relação ao passado, uma vez que hoje
A primeira missão atribuída àescola uma percentagem elevada de pais au-
é pacífica e aceite pela sociedade em toriza a leitura recreativa em tempo de
geral. Assim, segundo Dionísio (2000), aulas, o que não sucedia antigamente
leitura e escola mantêm laços muito for- (M AGALHÃES e ALÇADA, 1994).
tes entre si, sobretudo porque é por acção De acordo com Dionísio (2000), a escola
da escola que os indivíduos aprendem a é o lugar privilegiado para a estruturação
ler. A leitura é um “produto”escolar, é de uma comunidade leitora, cuja acção
uma habilidade adquirida, que envolve se estenderá para fora desta instituição,
uma dimensão técnica que a posiciona uma vez que, para muitas crianças, é o
imediatamente no nível da escola. único lugar onde poderão tomar contacto
Para esta autora, a sociedade espera com o livro e com a leitura.
que a escola cumpra as expectativas Desse modo, a escola em geral e os
sociais, relativamente às capacidades professores em particular têm como mis-

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são (entre outras, claro) formar crianças BRINO, 2000) entre a criança e o livro.
leitoras, criando nelas o gosto pela leitu- Segundo Herdeiro (1980), é durante a
ra e, simultaneamente, fomentando a fase de escolaridade que se desenvolvem
aquisição de hábitos de leitura. os interesses e os hábitos de leitura na
No entanto, essa missão da escola criança e no jovem. Por isso, a escola
em formar crianças leitoras começa é o mais directo intermediário entre a
mais cedo, no contexto do jardim de criança e o livro, e da sua acção depende
infância, uma vez que, de acordo com a dimensão que o acto de ler adquire
Azevedo e Rosa (2003), o pré-escolar1 é para a criança e o carácter da relação
um momento altamente favorável para que se estabelece entre esta e o livro.
suscitar junto às crianças a emergência O professor deverá ter, pois, o papel
de práticas de literacia. de um mediador informado (BASTOS,
Segundo Silva (1997), durante o 1992; CERVERA BORRÁS, 1992), que
período do pré-escolar, pretende-se é capaz de propor e de orientar leitu-
que as crianças gradualmente tomem ras, de acordo com as capacidades e os
consciência das funções e das normas interesses das crianças.
do código escrito e, principalmente, que Um outro papel reservado ao profes-
tenham curiosidade em aprender mais sor é o papel de incentivador da leitura
sobre a leitura e sobre a escrita. e do gosto pela leitura (GOM ES, 1996;
Assim, o educador de infância pos- M AGALHÃES e ALÇADA, 1988; 1994;
sui um papel marcante, na medida em SOBRINO, 2000). Assim, os professores
que pode proporcionar a criação de con- devem incentivar as crianças a lerem,
textos que familiarizem a criança com nos seus tempos livres, os livros de que
o código escrito (AZEVEDO e ROSA, gostam, estimulando desse modo o gosto
2003), contribuindo, desse modo, para pela leitura. Os professores devem ain-
promover a emergência nas crianças da, dentro da sala de aula, proporcionar
da leitura e da escrita e para fomentar aos alunos um encontro agradável com
o gosto pelo livro, a curiosidade e o os livros, incentivando-os a ler.
gosto pela leitura. Um terceiro papel do professor seria
Aliás, segundo Debus (2003), a crian- o papel de orientador (H ERDEIRO,
ça dos zero aos seis anos ainda não de- 1980) das leituras das crianças. Para
codifica o código linguístico, mas faz-se desempenhar com eficácia esse papel,
leitora e apropria-se da leitura através o professor tem de conhecer os interes-
da mediação do educador de infância. ses das crianças, tem de ter em conta
Para a consecução com sucesso da as situações e os tipos de leitura, para
missão de formar crianças leitoras, os que possa guiar as leituras dos alunos
educadores de infância e os professores de forma a que estas vão ao encontro do
desempenham vários papéis:um pri- seu universo e, conjuntamente, criem
meiro papel do professor é o papel de novas solicitações, alargando o horizon-
mediador (HERDEIRO, 1980; BASTOS, te das crianças (HERDEIRO, 1980).
1992; CERVERA BORRÁS, 1992; SO- Além dos já referidos, parece-nos

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que ainda podemos identificar um ou- entre a criança ou o jovem leitor e a
tro papel da escola e do professor, que realidade literária um encontro gra-
será um papel formativo (BALÇA e tificante, é indispensável possibilitar-
COSTA, 2000). Na verdade, cremos que lhes o contacto com áreas da escrita
o professor não poderá ir só ao encontro relacionadas com os seus interesses e
do gosto dos alunos, das suas preferên- com as suas necessidades.
cias em termos de leitura, pois, como Para que o professor possa actuar de
afirma Cervera Borrás (1992), não é forma esclarecida, proporcionando entre
possível gostar daquilo que se ignora. o aluno e o livro uma relação comunica-
Ao professor cabe actuar de forma tiva, pode ser relevante o seu conheci-
competente e mesmo inovadora, propor- mento das etapas de desenvolvimento
cionando às crianças, de acordo com o intelectual da criança e do jovem e as
seu nível etário e com o seu nível de com- consequentes alterações das suas prefe-
petência leitora, obras de diversos auto- rências literárias (BASTOS, 1992).
res, de estilos diferentes, que abordem Na mesma linha, para Santos
outros temas, ajudando-os a descobrir a (2000), uma condição fundamental
multiplicidade que encerra o mundo do para promover o gosto e o prazer pela
livro, da leitura e da literatura. leitura e para formar bons leitores é
Na realidade, M agalhães e Alçada proporcionar às crianças e aos jovens
(1994) alertam para o facto de ser uma o contacto com livros apropriados
mais valia o conhecimento, que os para a sua faixa etária, tendo sempre
professores (e os pais) possivelmente presente a relação entre as etapas de
tenham dos gostos e das preferências desenvolvimento da criança e do jovem
das crianças. Esse conhecimento per- e os seus interesses literários.
mitirá aos adultos o diálogo com as
No entanto, não podemos deixar de
crianças e a consequente orientação
reflectir sobre as observações de Sousa
das suas leituras, sem agressões.
(1992), que recomenda alguma pru-
Segundo estas autoras, forçar as
dência em relação ao facto de pensar-
crianças a lerem obras de que não gos-
mos que apenas os textos contribuem
tam ou proibir a leitura das obras que
para o desenvolvimento do gosto pela
mais apreciam representa um corte no
diálogo entre o adulto e a criança, que leitura nos alunos. Para esta autora,
pode dar origem ao afastamento da mais importante do que os textos é a
criança da leitura. O ponto de partida alteração do próprio contexto pedagó-
para despertar nas crianças o prazer da gico da sala de aula, enquadrado por
leitura seria, então, saber claramente princípios de avaliação. A alteração
quais os livros a que elas aderem espon- desse contexto pedagógico permitirá
taneamente e explorar esse gosto. que os alunos leiam voluntariamente,
Realmente, também Bastos (1992) com uma maior autonomia, o que im-
apresenta uma opinião semelhante, plicará também uma maior liberdade
quando afirma que, para que exista na escolha das obras a ler.

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Na verdade, segundo Dionísio da sua própria produção literária. O
(2000), a escola deve criar condições professor terá, então, de desenvolver
para proporcionar aos seus alunos nas crianças a criatividade, para que
experiências de leitura que não sejam se efective a construção de um novo
“dolorosas”, ou seja, que os alunos não repertório literário.
façam uma associação exclusiva entre Dessa forma, segundo Debus (2003),
o livro e o estudo com um carácter o ideal seria pensar a criança como
imposto. A escola deve, assim, propor- receptora e produtora de cultura, isto
cionar situações em que os encontros é, a criança recebe a produção cultural
entre os alunos e os livros sejam “po- produzida para ela, mas ela própria é
tencialmente mais felizes”, sejam em também produtora de cultura.
função das suas preferências. Na verdade, cremos que estes pa-
Desse modo, a escola deve ser a in- péis desempenhados pelo professor,
termediária entre a leitura, os livros e na promoção do gosto pela leitura e no
os seus alunos, e deve proporcionar aos fomento dos hábitos de leitura dos alu-
estudantes um contacto com a leitura e nos são complementares. O professor
com os livros que não se revista do carác- deve ser um interlocutor competente e
ter negativo, que por vezes está presente deve ousar na escolha e na aproxima-
no binómio leitura/tarefas escolares. ção dos livros à criança leitora.
No entanto, achamos que Debus O professor tem, acima de tudo,
(2003) introduz um ponto inovador de estar informado sobre as criações
nesta relação entre a escola / professor, literárias para as crianças e para os
a criança, a leitura e os livros. Segundo jovens e, igualmente, sobre o nível de
esta autora, deve-se constituir “uma competência leitora e sobre as pre-
tríade produtiva e dialógica”, para que ferências de leitura dos mais novos,
se substancie um trabalho efectivo com para que possa cumprir com eficácia
o texto literário. Esta “tríade produtiva estes papéis.
e dialógica”representa três aspectos do No entanto, parece que não basta
trabalho do professor, que promovem o ao professor estar informado sobre as
encontro da criança com a leitura lite- mais recentes criações literárias ou so-
rária, contribuindo naturalmente para bre os gostos literários dos seus alunos,
a formação de crianças leitoras. para promover o gosto pela leitura.
Assim, o professor tem que conhecer Outro factor que terá algum peso na
o repertório literário que as crianças já promoção do gosto pela leitura e na
possuem, que trazem do espaço fami- formação de hábitos de leitura nos alu-
liar para dentro da escola e, por outro nos serão os hábitos de leitura e o gosto
lado, o professor deve comprometer-se pela leitura do próprio professor.
em ampliar este repertório inicial das Em diversos estudos, inúmeros auto-
crianças. O aspecto inovador dessa res, quase de forma unânime, estabele-
tríade cremos ser o facto de o profes- cem uma relação forte entre o gosto pela
sor encarar as crianças como autoras leitura e os hábitos de leitura do docente

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com a promoção do gosto pela leitura e estratégia evidente para promover o
dos hábitos de leitura nos alunos. gosto pela leitura o simples facto de os
Desse modo, Tonucci (1989) afirma alunos verem os professores lerem. Para
que um professor que não goste de ler este autor, quando o professor recomen-
nunca poderá suscitar nos seus alunos da um livro aos seus alunos, o principal
o gosto pela leitura. Do mesmo modo, é que ele já tenha lido esse livro.
M agalhães e Alçada (1988) partilham M añà Terre (1996), de algum modo,
opinião idêntica, afirmando que um sintetiza essa relação entre o professor, o
professor que não goste de ler não conse- aluno e a leitura ao afirmar que, se o pro-
guirá transmitir o gosto pela leitura aos fessor ler e tiver uma ampla experiência
seus alunos, uma vez que dificilmente se leitora e, simultaneamente, conhecer
transmite um gosto que se não tem ou o bem a criança, conseguirá propor um
entusiasmo por algo que não se pratica. livro que lhe desperte o desejo de ler.
Segundo Sousa e Gomes (1994), é Na verdade, Sobrino (2000) dis-
fundamental, para formar leitores, que tingue, na actuação da escola, uma
o adulto sinta a leitura como algo im- animação contínua da leitura de uma
prescindível e que transmita às crianças animação esporádica da leitura. Assim,
e aos jovens o entusiasmo e o prazer que uma animação contínua da leitura na
a leitura lhe proporciona. Para Gomes escola é uma animação que se realiza
(1996), um adulto só transmite o gosto de forma permanente, diária, sem
de ler se tem enraizada a paixão pelos li- praticamente nos apercebermos dela,
vros e se foi formado no sentido de saber criando um ambiente favorável ao en-
comunicar essa paixão às crianças. contro dos alunos com os livros.
Do mesmo modo, Sobrino (2000) A animação esporádica da leitura na
sublinha que as crianças só adquirem escola é efectivada através de diversas
hábitos de leitura duradouros se pro- práticas, que têm como objectivo pro-
fessores convictos e entusiastas pela mover o encontro dos alunos com os
leitura forem capazes de as contagiar livros, estimular o gosto pela leitura,
com o gosto e o prazer pela leitura. fomentando a aquisição de hábitos de
Assim, as estratégias propostas, leitura nos alunos.
para que o professor comunique aos No entanto, Sobrino (2000) alerta
seus alunos a sua predilecção pela para o facto de, se não existir uma ver-
leitura e pelos livros estão relaciona- dadeira animação contínua da leitura na
das com a partilha de leituras entre o escola, as práticas que constituem a ani-
professor e os seus alunos. mação esporádica da leitura revelarem-
Para Lage Fernández (1999), a me- se muito pouco eficazes na conquista e
lhor estratégia para formar leitores é na formação das crianças leitoras.
compartilhar leituras com os alunos, Realmente, toda a comunidade es-
contagiando-os com o entusiasmo por colar tem um papel a desempenhar na
aquilo que se lê. Nesse sentido, Cortés promoção da leitura junto das crianças
Criado (2001) propõe como sendo uma e, consequentemente, na formação de

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leitores, uma vez que qualquer plano de Ainda para Veloso (2002), é através da
promoção da leitura implementado na es- hora do conto que podemos cativar as
cola requer trabalho em equipe e implica crianças e estabelecer a cumplicidade
todo o colectivo vinculado à escola. para uma efectiva semiose literária.
M uitas são as práticas de animação Esse vínculo emocional, essa partilha
da leitura esporádica promovidas pela e esta interacção enriquecedoras, entre
escola, com o intuito de promover a professor e crianças, propiciado pela
leitura e o livro e de formar crianças hora do conto contribuem para o de-
leitoras, como, por exemplo, as feiras do senvolvimento do prazer de ler e para
livro, o encontro com escritores ou ilus- a formação de crianças leitoras.
tradores, a visita àbiblioteca escolar ou Outra prática para a animação da
à biblioteca pública ou a dinamização leitura esporádica é a leitura na sala de
da biblioteca de turma (M agalhães e aula, quer do professor quer dos alunos.
Alçada (1994); Gomes (1996). Se, para Sousa (1992), a leitura é fun-
Porém, dentre as inúmeras práticas damentalmente um acto de natureza
para a animação da leitura esporádica privada, há autores que consideram
na escola, gostaríamos de distinguir, por- como sendo uma estratégia válida para
que talvez sejam mais comuns no quoti- promover o gosto pela leitura entre os
diano da prática pedagógica, a “hora do alunos a leitura em voz alta.
conto”e a leitura na sala de aula. Intimamente relacionada com a hora
A hora do conto, de um modo geral do conto, surge-nos a leitura em voz
mais frequente na educação pré-escolar alta feita pelo professor para os alunos.
e no 1ºciclo do ensino básico, segundo Tonucci (1989) e Cortés Criado (2001)
Gomes (1996), apresenta dois objecti- salientam o valor afectivo desta leitura
vos, que concorrem para fomentar na em voz alta para a criança, que escuta o
criança o gosto pela leitura. adulto que lhe lêum livro, configuran-
Assim, a hora do conto daria res- do-se essas ocasiões como momentos de
posta à necessidade infantil de ouvir atenção, de partilha e de enriquecimen-
histórias – que, segundo Albuquerque to interior para a criança.
(2000), é uma das maiores paixões das Já Debus (2001; 2003) coloca a ên-
crianças –, proporcionando as condições fase no valor linguístico e formativo da
para que no futuro venham a apreciar leitura em voz alta feita pelo professor.
outras leituras. Por outro lado, estimula Para esta autora, a leitura em voz alta
nas crianças a curiosidade pelo código feita pelo professor permite aos alu-
escrito, pela leitura, criando nelas o nos aproximarem-se da norma culta
desejo de aprender a ler. da língua, tomarem contacto com um
Na verdade, Lage Fernández (1999) e vocabulário rico e ampliarem as suas
Veloso e Riscado (2002) salientam que a capacidades linguísticas.
hora do conto favorece e implica um vín- M enos pacíficas são as considerações
culo afectivo entre o educador / professor, em torno da leitura em voz alta feita
contadores de histórias e as crianças. pelos alunos, na sala de aula. Tonucci

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(1989) e Lage Fernández (1999) só vêem Já Castro (1998) aponta como possí-
sentido na leitura em voz alta feita veis factores para a escola não promover
pelos alunos na sala de aula se esta for leitores a escolha dos textos para leitura,
previamente trabalhada e se estiver re- as dimensões textuais privilegiadas ou
lacionada com actividades como o teatro, as orientações de leitura valorizadas.
a leitura de poesia ou a leitura de textos Sousa (2000) afirma que, quer os
a turmas de alunos mais novos. textos e quer as práticas de leitura pre-
Para os alunos mais velhos, Cadório sentes na escola não contribuem para
(2001) propõe como uma estratégia formar crianças leitoras. Segundo a au-
eficaz que sejam os próprios alunos a tora, a escola reproduz uma comunidade
partilhar com os outros colegas as suas de leitores, mas por obrigação, uma vez
experiências de leitura, uma vez que que na escola lê-se por necessidade, por
pode ser estimulante para estes alunos imposição, não pelo prazer da leitura.
perceberem que os colegas aderirem e Parece-nos que vários factores po-
gostarem de ler determinada obra. derão contribuir para que a escola não
Contudo, apesar de todas essas pre- esteja a desempenharem plenamente
ocupações relacionadas com a formação a sua função de promover a leitura
de crianças leitoras, evidenciadas pela e de formar crianças leitoras. Assim,
escola em geral e pelos professores em cremos que os factores enunciados por
particular, há autores, como Peças (1993), Peças (1993), Castanho (1997), Castro
Castanho (1997), Castro (1998) ou Sousa (1998) ou Sousa (2000) se prendem,
(2000), que afirmam que a escola, enquan- fundamentalmente, às práticas de
to instituição, nem promove a leitura, não leitura na escola e aos recursos edu-
forma crianças e jovens leitores. cativos, como sejam as bibliotecas
Segundo Peças (1993), as práticas escolares e os materiais de leitura
de leitura (e de escrita) na escola não que a escola apresenta para leitura às
contribuem para o desenvolvimento crianças e aos jovens.
linguístico dos alunos e não concorrem De acordo com Castro e Sousa (1998),
para a formação de crianças leitoras, existe uma tendência na escola, de que
na medida em que o envolvimento de os professores (mas também os pais) con-
leitura que a escola proporciona aos siderem que a formação de leitores está
seus alunos é “paupérrimo”, quer em completa nos primeiros anos de escola-
qualidade, quer em diversidade. ridade, não “entendendo que os alunos
Para Castanho (1997), a escola não mais velhos são leitores em construção”.
promove a leitura junto dos seus alunos, Desse modo, a escola não promove acti-
em razão de determinados factores, como vidades relacionadas com a promoção da
bibliotecas reservadas a espaços fecha- leitura para os níveis mais adiantados de
dos e falta de bibliotecários qualificados escolaridade, deixando de proporcionar
ou a inexistência / escassez de diversos o contacto entre os jovens leitores e com
materiais de leitura em locais de fácil materiais de leitura cativantes.
acesso para os alunos. Esse não-entendimento por parte

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da escola dos alunos mais velhos como Segundo Escarpit (1999) e Sobrino
sendo leitores a formar parece-nos que (2000), é nesta fase que se perdem muitos
começa logo muito cedo, no 1ºciclo do leitores, uma vez que os alunos muitas
ensino básico. Gomes (1996) assinala vezes se limitam a ler (com dificuldade
que, no 1ºciclo do ensino básico, é co- e com relutância, de acordo com Cadório
mum assistir-se a um recuo no contacto (2001) as obras obrigatórias previstas nos
com os livros e na sensibilização para programas escolares, não sendo incenti-
a leitura em relação às crianças que vados pela escola a lerem algo mais do
frequentaram a educação pré-escolar, que essas leituras impostas.
que se manifesta designadamente na No entanto, segundo Escarpit (1999)
actividade de ouvir histórias. e Cadório (2001), isso não significa
Por outro lado, ainda segundo Gomes que os alunos mais velhos não leiam
(1996), algumas práticas de leitura, e, portanto, que não se continuem a
adoptadas no 1ºciclo do ensino básico implementar estratégias que levem
não concorrem para formar nas crianças à manutenção do gosto pela leitura
o gosto e o prazer pela leitura. Dentre nesses mesmos alunos.
essas práticas de leitura destacam-se o Essa perda de leitores deve-se, ain-
encarar a leitura como uma actividade da, ao facto de, segundo Escarpit (1999)
de decifração dos signos escritos e de e Sobrino (2000), o professor desconhe-
oralização do texto sem colocar no mes- cer a literatura juvenil, motivo por que
mo plano a compreensão e a descoberta não pode orientar as leituras dos seus
de linhas de sentido o uso excessivo dos alunos, iniciando-os simultaneamente
manuais escolares e o raro recurso ao na literatura clássica, por imposições
livro, quer como fonte de prazer, quer programáticas, por vezes de modo for-
como fonte de conhecimentos. çado e com resultados negativos, não
Do mesmo modo, Veloso (2001) assi- fornecendo uma ponte entre as leituras
nala essa questão quando afirma que, juvenis e as leituras adultas.
já no 1ºciclo do ensino básico as práti- Segundo Cadório (2001), uma estraté-
cas adoptadas são muito condicionadas gia possível para estabelecer essa ponte
pelos conteúdos dos programas escola- entre as leituras dos alunos, sobretudo
res, levando os professores a excluírem entre leituras programáticas impostas
da sua prática pedagógica momentos e leituras livres, pode ser a mistura, na
de exclusiva fruição do texto, enca- sala de aula, de obras do cânone literário
rando-os como uma perda de tempo, o instituído com obras de literatura juve-
que certamente não contribuirá para nil, capazes de atrair os jovens.
a formação de crianças leitoras. Assim, talvez a escola possa propor
Por outro lado, como afirma Escarpit materiais de leitura cativantes aos seus
(1999), àmedida que os alunos avançam alunos mais velhos, contribuindo não só
no nível de escolaridade, vão abandonan- para a manutenção de hábitos de leitura
do as leituras infantis e nem sempre ace- nos alunos, evitando a tal perda de leito-
dem de imediato às leituras adultas. res nessas faixas etárias, mas também

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propiciando condições para que se possa literário: da investigação às práticas. Actas
ganhar mais jovens para a leitura. do I Encontro Internacional. Braga:Univer-
sidade do M inho, Instituto de Estudos da
Apesar de todas as críticas apontadas
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da leitura e na formação de crianças BALÇA, Ângela C. P.; COSTA, Paulo J. L. A
escola como promotora de alunos leitores:que
leitoras, na realidade é na escola que
espaço para a literatura infanto-juvenil? In:
muitas crianças tomam contacto pela Ángel Suárez M UÑOZ.
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único lugar onde poderão conviver com del niño,tradiciones y literatura infantil. Actas
o livro, com a leitura e com a literatura del seminario internacional yexposiciones de li-
infantil e juvenil. Na verdade, como afir- teratura infantil. Badajoz:Diputación Provincial,
ma Dionísio (2000), a escola é um lugar 2000. p. 71-78.
natural de formação de leitores. BASTOS, Glória. Para uma pedagogia da lei-
tura:o papel da Literatura infantil e juvenil.
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Letras, n. 10, p. 26-29, 2002.

N otas
1
Departamento de Pedagogia e Educação, Universidade
de Évora, Portugal.
2
O sistema educativo português, até à data, compreen-
de, entre outras, a educação pré-escolar (dos 3 aos 5
anos) e a educação escolar, dividida em ensino básico,
ensino secundário e ensino superior. O ensino básico
compreende o 1ºciclo (dos 6 aos 10 anos), o 2ºciclo
(dos 11 aos 12 anos) e o 3ºciclo (dos 13 aos 15 anos),
sendo assim a escolaridade obrigatória de 9 anos. Em
M aio de 2004, a Assembleia da República aprovou
uma nova Lei de Bases da Educação, a entrar em vigor
brevemente, que consagra como sendo de 12 anos a
escolaridade obrigatória, tornando não só obrigatórios
o ensino básico, como também o ensino secundário.

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