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A coleta de lixo domiciliar na cidade

ARTIGO ARTICLE
do Rio de Janeiro: um estudo de caso baseado
na percepção do trabalhador

Home garbage collecting in the city of Rio


de Janeiro: a case study discloses the sanitation
workers point of view

Marta Pimenta Velloso 1


Jorge de Campos Valadares 2
Elizabeth Moreira dos Santos 3

Abstract This article discloses the sanitation Resumo Este artigo analisa, baseando-se na
workers point of view on specific topics such as visão do trabalhador, as condições de riscos e
health risks and unsafe conditions met during segurança encontradas no processo de trabalho
home garbage collecting process. Located in da coleta de lixo domiciliar. A unidade específi-
Rio Comprido neighbourhood, the choosen ca de estudo foi a Gerência de Limpeza Leste
workplace unit was the East Cleaning Manage- (LGL-3), situada no bairro do Rio Comprido,
ment District (Gerência de Limpeza Leste, da Companhia Municipal de Limpeza Urbana
LGL-3), branch of Rio’s Street Cleaning Munic- do Rio de Janeiro (COMLURB). O instrumen-
ipal Company (COMLURB). The method em- to utilizado na pesquisa foi a entrevista indivi-
ployed in this survey consisted of tape recorded dual e gravada, sendo enriquecida pela obser-
single interviews and video recording sanitation vação do pesquisador. O trabalhador percebe
workers daily operations, with written notes que, para melhorar suas condições de trabalho,
and comments by the researchers. Instead of be- torna-se necessária uma adaptação do trabalho
ing considered merely “garbage carriers”, the ao homem, ou seja, não usar o seu próprio cor-
sanitation workers are now asking for the basic po apenas como instrumento de carregar o li-
improvements in order to make this particular xo. Além disso, esses trabalhadores demandam
acitivity more suitable to meet the best of their a implantação de novos serviços na empresa,
human expectations. Besides, the sanitation tais como: serviços de atenção integral à Saúde
workers are claiming the company implemen- e cursos de treinamento para o serviço. Um dos
tation of new services like full health coverage grandes problemas identificados pelos trabalha-
and professional training courses. According to dores é a sua falta de valorização profissional,
sanitation workers, the disregard and profes- tanto pela empresa, quanto pela população.
sional underrating shown both by the company, Palavras-chave Saúde do Trabalhador; Saúde
and the general population, are their main Ocupacional; Acidentes de Trabalho; Acidentes;
sources of concern. Local de Trabalho
1 Centro de Saúde Key words Workers’ Health; Occupational
Escola Germano Sinval
Faria, ENS, Fiocruz.
Health; Occupational Accidents; Accidents;
2 Departamento de Workplace
Saneamento e Saúde
Ambiental, ENS, Fiocruz.
3 Departamento de
Grandes Endemias,
ENS, Fiocruz.
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Velloso, M. P.; Valadares, J. C. & Santos, E. M.

Introdução cimento do “lugar do outro”, e que a psicaná-


lise nomeou como recalcado. A aceitação da
Como a palavra lixo representa o resíduo sóli- falha, necessária para o processo da cultura, é
do desprezado pela população, os profissio- sempre provisória e dura até a realização de
nais encarregados da coleta desses resíduos são algum prazer. Antes do aparecimento de uma
chamados genericamente de “lixeiros” ou “ga- revolta, do acionamento do sistema motor, ou
ris” 1. O núcleo simbólico depreciativo asso- do silêncio re-sentido, um pensamento e uma
ciado à denominação dada à referida ocupa- ação modificadora devem ser viabilizados, na
ção se origina dos próprios lixeiros, de suas direção de melhora em relação ao mal-estar.
condições econômicas, sociais e de trabalho Voltaremos ao tema.
adversas, que dinamicamente interagem com A coleta seletiva que separa o lixo reciclá-
a imagem da população sobre eles. vel (vidro, agulhas, latas, madeiras) do restan-
De um lado, situações concretas de traba- te, além de evitar acidentes como cortes e feri-
lho em que esses trabalhadores vêem-se obri- mentos, pode contribuir para transformar a
gados diariamente a ter que lidar com uma visão estigmatizante desta profissão. O lixo,
realidade tão universalmente abjeta, de outro, visto como resíduo desprezado,passa a ser con-
os trabalhadores sequer recebem salários con- siderado matéria-prima, podendo ser trans-
dignos, socialmente eqüitativos até mesmo formado e reutilizado pela população.
com outras categorias pertencentes ao setor Essa solução de racionalidade positiva en-
terciário, no qual se inserem. Assim, não exis- frenta, como obstáculos, concepções societá-
tem quaisquer condições em que a negociação rias que dificilmente associam a imagem do
social de prestígio profissional possa superar lixo (objeto desprezado) como material que
ambas as fontes de “mal-estar” psíquico, em pode ser retransformado e reinserido em um
relação à vida e à identidade profissional dos novo ciclo produtivo, e raramente incorpo-
“lixeiros”. ram informações sobre a relação coleta de lixo
O processo de trabalho de coleta de lixo e saúde do trabalhador.
domiciliar é constituído de uma tecnologia É nesse contexto que nasce o presente es-
precária, praticamente manual, onde o corpo tudo o qual visa, através da percepção do tra-
do trabalhador transforma-se em instrumen- balhador, registrar algumas de suas condições
to de carregar o lixo. de segurança e riscos à saúde provenientes des-
A vivência concreta dessa situação, isto é, o te processo de trabalho.
identificar-se com um instrumento de trans-
porte de dejetos, implica experiência de deter-
minadas condições desagradáveis do estado Metodologia
psíquico, sobretudo na vida emocional dos su-
jeitos. Para alguma mudança nessa realidade O presente, realizado entre junho de 1994 e ja-
é necessária uma consciência aguda da preca- neiro de 1995, envolveu a percepção do traba-
riedade humana, daquilo que é sempre falho, lhador, enriquecida pela observação partici-
com a qual o sujeito deve enfrentar o “real”, o pante do pesquisador.
“natural”, ou seja, seu próprio corpo como Como unidade de estudo, escolheu-se o
fonte de vida e, ao mesmo tempo, como con- trabalhador da Gerência de Limpeza Leste
tínuo resto da atividade de viver, que retorna (LGL-3) da Companhia Municipal de Limpe-
sempre insatisfeito. Essa precariedade provém za Urbana do Rio de Janeiro (COMLURB). A
da supressão necessária de um sentimento COMLURB é uma empresa municipal, subor-
oposto, daquilo que situaria o corpo e a vida dinada à Prefeitura, sendo responsável pela
como sempre “completos” e fonte inesgotável coleta, transporte e destino do lixo.
de gozo e que deve ser afastado para o apare- A empresa possui 26 gerências de limpeza,
localizadas nos diversos bairros do município,
cada uma delas sendo responsável pela sua res-
1 No início do século, os serviços de limpeza urbana foram
pectiva área de abrangência. Conta com um
entregues à iniciativa privada, quando então os “Irmãos total de 1400 coletores de lixo domiciliar. Na
Garys” assumiram a Companhia Industrial do Rio de Janei- gerência estudada, situada no bairro do Rio
ro, por autorização do Governo Municipal para desempe- Comprido, havia 29 trabalhadores, mas, por
nhar os serviços de coleta, transporte e destino do lixo. Des-
de então, os trabalhadores de coleta de lixo, passaram a ser motivos operacionais, somente foi possível en-
denominados pelo nome genérico de seus patrões “garis”. trevistar 24 deles. Assim, o grupo sob estudo
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foi composto por esses indivíduos, todos do mo: processo de trabalho em si (33,3%, dos
sexo masculino, com idades entre 25 e 56 anos trabalhadores), e falta de medidas preventivas
(média de 37 anos) e alfabetizados. Esses tra- (equipamento de proteção individual e trei-
balhadores possuíam vínculo empregatício namento) (Tabela 1). Somando-se a estes
com a empresa, sendo regidos pelo regime aqueles trabalhadores que identificam os aci-
CLT, e todos aceitaram participar voluntaria- dentes como resultado da falta de treinamen-
mente da pesquisa. to para o serviço (4,2%) e devido ao processo
Como instrumento de Coleta de Dados, de trabalho associado à falta de equipamen-
utilizou-se a entrevista semi-estruturada (Vel- tos de proteção individual (20,8%), verifica-
loso, 1995), abrangendo a percepção do tra- se que 58,3% dos trabalhadores relacionam os
balhador sobre as causas dos acidentes rela- acidentes ao processo de trabalho.
cionados ao seu trabalho, satisfação no traba- Concomitantemente, parece evidente que
lho e sugestões para melhoria das suas condi- o próprio trabalhador se auto-identifica co-
ções de trabalho. mo responsável pelos acidentes que sofre.
A entrevista foi individual e os dados ob- Agregando-se as categorias: descuido do tra-
tidos foram gravados, sendo as falas do tra- balhador (12,5%), ritmo acelerado do traba-
balhador interpretadas, conforme estudo de lhador (8,3%), ingestão de bebidas alcoólicas
caso descrito em Becker (1994), onde o autor (8,3%), descuido do trabalhador e bebida
descreve a análise de dados, baseada na obser- (4,2%), constata-se que 33,3% dos trabalha-
vação participante do pesquisador. dores se julgam responsáveis pelos acidentes.
É interessante notar que 8,4% dos trabalha-
Causas de acidentes relacionados dores dividem sua responsabilidade com a da
ao trabalho empresa, na percepção de causalidade dos aci-
dentes. Desses, (4,2%) consideram que os aci-
Os trabalhadores polarizam sua percepção dentes ocorrem devido ao processo de traba-
das razões para se acidentarem. De um lado, lho e 4,2% à falta de EPI (Equipamento de
cerca de um terço dos trabalhadores, identifi- Proteção Individual).
cam o processo de trabalho como responsável Essa polarização, claramente, se evidencia
pelos agravos por eles sofridos em sua ativida- através da fala do trabalhador.
de, podendo aí se eximir até mesmo de suges- “...O latão pesado de 200 litros, que a COM-
tões. De outro, se auto-responsabilizam por es- LURB já proibiu, às vezes força e tem que ter
ses eventos, exigindo, em certas circunstâncias, quatro pessoas para levantar. A falta de segu-
uma perfeição, uma completeza imaginária. rança, porque viajamos pendurados com risco
Constatou-se que o maior percentual de de cair e esse negócio de trabalhar em morro,
acidentes foi por eles atribuído às causas ine- chão esburacado, com peso de tudo quanto é es-
rentes ao processo de trabalho, traduzidas co- pécie (vidro, lata que corta e machuca). A falta

Tabela 1
Percepção dos 24 coletores de lixo domiciliar estudados da Companhia Municipal de Limpeza Urbana
do Rio de Janeiro, em relação às principais causas atribuídas aos acidentes ocorridos durante o trabalho
de coleta, jul/94.

Causas n %
Inerentes ao processo de trabalho 8 33,3
Devido ao processo de trabalho e falta de EPI 5 20,8
Descuido do trabalhador 3 12,5
Ritmo acelerado do trabalhador 2 8,3
Ingestão de bebidas alcoólicas 2 8,3
Falta de treinamento para o serviço 1 4,2
Inerentes ao processo de trabalho e ao descuido do trabalhador 1 4,2
Descuido do trabalhador e bebida 1 4,2
Descuido do trabalhador e falta de EPI 1 4,2
Total 24 100,0
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de segurança é atribuída à própria Companhia, ca abalado e aí vem a insegurança da gente ali.


porque deveria ter um meio de trabalho, onde o A cabine é para o motorista, porque tem dife-
trabalhador não colocasse totalmente o corpo rença do motorista para o gari, tem a discrimi-
como um objeto de carregar o lixo: Usasse uma nação e muitos deles se acham donos daquela
coisa fora do corpo...” cabine. Quando está sol ou quando está choven-
“...Por causa do caminhão, às vezes uma lu- do, o gari vai atrás do caminhão para evitar con-
va furada, uma bota saltando a sola. Você nun- flito com o motorista, mesmo que ele ofereça a
ca está esperando que aquele furinho da luva gente não vai, porque nós estamos sujos e ele,
vai pegar uma borda de latão. Você pede a Deus por estar “limpinho” acha que não devíamos es-
que não aconteça. Uma vez, em Botafogo, o ca- tar ali...”
minhão passou por cima da cabeça de um cole- A interação entre as características do pro-
ga. Ele vinha andando atrás do caminhão e es- cesso de trabalho e as condições específicas do
corregou. O caminhão passou em cima da cabe- ambiente, sejam elas variações de tempo ou
ça dele...” condições referentes à topografia da cidade do
A culpabilização de si próprio também é Rio de Janeiro, também estão claramente iden-
explicitada claramente nos depoimentos dos tificadas pelo trabalhador como desencadea-
trabalhadores. doras de acidente.
“... O que acontece mais com certos colegas “... Em tempo de chuva, o estribo fica escor-
é falta de atenção, porque se eles tiverem atenção regando. Acho que devia ter um lugar para o ga-
muitos acidentes podem ser evitados. Eu tenho ri viajar dentro. O carro particular tem uma
quatorze anos de companhia e nunca sofri um parte no meio para o gari sentar, quando vai
acidente por descuido de minha parte. O pri- embora. Só trabalha na traseira, quando está
meiro alerta para o próximo: tem que pegar a coletando o lixo, nenhum carro da COMLURB
bolsa com atenção. As pessoas quebram um vi- tem isso...”
dro, botam na bolsa de plástico, e fura a bolsa. “... A gente trabalha no sol, na chuva e não
Desde o momento que fura, bate na perna...” pode parar. O corpo da gente sente à beça a di-
“... Eu nunca fiquei inseguro trabalhei até ferença...”
correndo. O que leva as pessoas se acidentarem Esta desestruturação e o sofrimento men-
é a pessoa ficar descuidada. O serviço é perigo- tal do trabalhador o fazem duplamente vulne-
so por causa do caminhão, tem que estar com rável. De um lado, a consciência do risco no
atenção...” trabalho, a impossibilidade de romper a pre-
“... Falta de atenção do cara. A gente, que cariedade das interações trabalho e ambiente
trabalha na rua, tem que ter muita atenção...” em que a sua própria “sujeira” é fator decisi-
Reitera-se que essa culpabilização é poucas vo. Do outro, a necessidade de descarregar
vezes absoluta. O trabalhador relativiza, “o ser- frustrações e a agressividade podem induzir o
viço é perigoso”,deixando perceber que tem cla- trabalhador a recorrer a bebidas alcoólicas, co-
reza das condições precárias de seu trabalho. mo forma de aliviar a tensão interna. Dupla
“... Muito acidente, o que causa é falta de vulnerabilidade porque se trata de um alívio
atenção do trabalhador, eu passei a observar is- arriscado, agravante da culpa.
so, depois que fiz um curso no SENAI. Eu tra- “... Os acidentes estão quase todos envolvi-
balho em morro, com o carro vazando óleo, o lu- dos com a bebida. O trabalho é feito na rua. Se
gar para você segurar cheio de óleo...” o cara fizer o trabalho conforme deve ser feito
Da mesma forma, nesse processo de rela- (devagar, botar atenção no serviço) não acon-
tivização, o trabalhador se localiza na ansie- tece nada...”
dade originada pelo trabalho, na desestrutu- “... Por causa do próprio trabalho tá certo.
ração de suas relações psico-afetivas com seus Mas acontece muitos acidentes com nós que tra-
colegas de trabalho e na ansiedade gerada pe- balha na rua, porque cada um gosta de tomar
la sua luta de sobrevivência e associações com um “gorozinho”, às vezes, o cara toma um “pou-
seus problemas. quinho” demais, aí já não é problema da Com-
“... Muito nervosismo dentro do serviço. A panhia, já é problema do trabalhador...”
gente sai de casa com um pensamento,mas,
quando a gente sobe no caminhão modifica tu-
do. O cara fica apreensivo porque está traba-
lhando de tênis e muita gente falando com ele.
O barulho atrapalha, o psicológico da gente fi-
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Mudanças capazes de melhorar pamento nenhum, por causa dos movimentos
as condições de trabalho que a gente faz. Eles não dão capa para a gente
trabalhar, se estiver chovendo a gente trabalha
Coerentemente com a racionalidade que embaixo de chuva...”
apóia a percepção de causas dos acidentes, foi “... Não pegar desses latões grandões (200 li-
unânime entre os entrevistados a resposta de tros) e que não socassem bastante o lixo, para
que a melhoria das condições de trabalho só não ficar tão pesado, ainda mais quando chove
aconteceria a partir da própria empresa. Esta, ele enche de água e fica mais pesado...”
segundo eles, não estaria propiciando condi- O grupo de trabalhadores evidencia a ne-
ções adequadas de trabalho. Na fala dos entre- cessidade de medidas preventivas especiais e
vistados, evidenciou-se que se houve aprimo- da existência de um serviço de atenção à saú-
ramento tecnológico e operacional, estes não de do trabalhador, que contemple não só a
se fizeram acompanhar de uma melhora nas atenção médica integral, como também trei-
condições de trabalho: contratação de carros namento em primeiros socorros relaciona-
de empresa particular, mas salários atrasados; dos à exposição ao risco. O trabalhador per-
usina de reciclagem, mas manutenção precá- cebe que os cuidados da empresa estão vol-
ria dos veículos coletores de lixo. tados somente à limpeza, negligenciando a
O trabalhador percebe que, apesar do in- sua saúde.
vestimento da empresa em desenvolvimento “... Equipamentos, materiais de forma ade-
tecnológico e operacional, seus instrumentos quada para o nosso uso. Eu trabalho na coleta
de trabalho estão em processo de deteriora- hospitalar, tem que ter uma roupa especial; lu-
ção. va, porque a gente entra em certos hospitais que
“... A COMLURB tem tudo para ser uma existe muito tipo de infecção. Por isso estamos
ótima Companhia. O lixo é muito rico, é uma tentando para ver se consegue algum dia, al-
Companhia que nunca vai entrar na falência, guém para zelar pela gente. Até agora, traba-
entra se os outros quiser. Porque o lixo nunca lhamos com uniforme comum e chega em casa
acaba e a matéria-prima dela é o lixo. Ainda tem que separar aquela roupa. A luva fica sepa-
mais agora com essas Usinas que eles criaram e rada lá e a roupa a gente leva para lavar em ca-
que estão reciclando direto e a frota da compa- sa. Minha companheira já furou até o dedo num
nhia está no estado que está. Tem carro aí que grampo que estava dentro da minha roupa...”
dá pena, porque não tem manutenção...” “... Assistência médica melhor para os fun-
As empresas particulares contratadas pela cionários, se a gente não tiver bem de saúde não
COMLURB (para realizar a coleta do lixo em vai adiantar a gente fazer um certo tipo de es-
alguns bairros da cidade) são identificadas pe- forço, que a gente não vai conseguir. Tem muito
lo trabalhador como responsáveis, pelos efei- colega meu que trabalha na COMLURB, que
tos prejudiciais sobre suas condições de tra- não agüenta esse tipo de serviço de coleta e eles
balho, tais como: atraso no pagamento do sa- continuam aí...”
lário e situação precária dos veículos coleto- “... Primeiros socorros, mais conhecimento
res de lixo. ao gari, o cara só sabe que vai pegar o lixo. Tem
“... Esse prefeito não quer botar carro novo gente, que trabalha com lixo contaminado...”
para trabalhar. Não tem carro, ele inventou es- Durante as observações do processo de tra-
se negócio de empresa particular e esses carros balho, verificou-se que os trabalhadores, nem
que estão pagando uma fortuna e a gente recebe sempre trajavam uniforme completo, ou seja,
dia 7, porque tem que pagar as duas empresas, apresentavam-se sem botas, sem luvas, sem
então fica feio o negócio. Nós não temos carro, boné, com calça e blusa em estados precários.
está tudo quebrado, novo é a casca, mas por Na entrevista, alguns trabalhadores, alegaram
dentro...” que o uso freqüente das luvas causava derma-
Os trabalhadores percebem, além da ne- tite de contato, além de dificultar o serviço,
cessidade de medidas preventivas, a necessi- devido à perda de tato.
dade de mudanças relacionadas à adaptação Outro ponto enfatizado pelo trabalhador
do trabalho ao homem. é a sua falta de participação no poder decisó-
“... Sugestões? A melhor coisa que eles tinham rio da empresa, com relação ao seu trabalho.
que fazer é dar material que a gente precisa pa- Simultaneamente, as falas refletem o senti-
ra trabalhar. A roupa, o sapato, a luva e capa. mento de desamparo do trabalhador, em re-
Além desses, a gente não pode mais usar equi- lação aos seus direitos, no âmbito da empresa.
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“... A firma tinha que ouvir mais a gente so- “... As pessoas têm nojo da gente, acham que
bre os problemas que acontecem na rua. Eles só a gente tem uma doença contagiosa...”
punem a gente, nunca conversam para saber a “... A gente entra no ônibus, o pessoal se afas-
nossa razão. ‘Tão sempre dando razão à popula- ta da gente...”
ção e não escutam a gente. Poxa! Eu queria estar A proximidade com o lixo e com o lixeiro,
trabalhando para alguém que se preocupa com que é imediatamente ao lixo associado, passa a
o meu serviço, sabendo que estou na rua, estou ser uma situação indesejável. A identificação
correndo risco lá. Um dia o caminhão estava se refere a proximidades que são denegadas. A
ruim e eu não consegui falar pelo telefone porque posição ereta afastou o homem de odores das
estava ocupado, quem atendeu foi a secretária fezes e da urina, por onde se orientava no ter-
dele e não deu o recado. Eles só querem cobrar ritório, em busca de contatos com parceiros e
de você. Está tudo ‘certinho’, está tudo bom. Eu esse afastamento o levou ao que Freud deno-
não me lembro de alguém elogiar alguém no tra- minou de recalcamento orgânico. O lixo per-
balho. Me lembro sim elogiarem uma guarni- manece na vida emocional do sujeito, como
ção lá na Gávea. Na COMLURB eles não elo- algo estranho (Freud, 1918) e, por isso, in-
giam, a gente é igual cachorro...” quietante, inútil ou daninho e, assim sendo,
deve ser excluído (Freud, 1925). O lixo, nessa
Satisfação no trabalho condição, lembra tudo o que é “resto” e, com o
percurso do seu destino, acompanhamos in-
Segundo as falas dos coletores de lixo, tor- conscientemente o destino do nosso próprio
nou-se possível categorizar dois grupos de tra- corpo, quer como imagem de fragmentação,
balhadores: o primeiro relacionado à categoria quer como representação de decomposição
dos que se dizem satisfeitos (75%) e o segun- final.
do referente àqueles que se sentem insatisfei- Esses trabalhadores ressentem-se da des-
tos (25%). valorização da empresa, seja através da falta
A categoria de trabalhadores que se diz “sa- de participação no poder de decisão, em rela-
tisfeita” é bastante questionável, já que a maio- ção ao seu trabalho, ou mediante à negligência
ria desses mostrou-se ressentida com a empre- da mesma, no que diz respeito à sua saúde, ao
sa e/ou com a discriminação da população baixo salário e à falta de incentivos e/ou grati-
diante do seu trabalho. Além disso, a minoria ficação pessoal que recebem para desempe-
“totalmente” satisfeita respondeu as pergun- nhar um serviço altamente penoso.
tas sem entusiasmo e com certo temor. “... Muito gari sabe, mais que um chefe, do
Os depoimentos obtidos tornam evidente que um fiscal. Às vezes ele tem uma sugestão me-
que a categoria dos trabalhadores, que se di- lhor, mas não é válido...”
zem “satisfeitos”, valoriza seu trabalho, porque “... A Companhia acha que está tudo bom,
o mesmo representa sua sobrevivência. ela quer a cidade limpa. O esforço que a gente
“... Sinto satisfeito, ele garante o sustento da faz, o tempo que a gente vai gastar, a barra que
minha família. Quanto a isso, tudo bem. Meu a gente vai ter que correr, para ela tanto faz...”
problema está nesses acidentes...” “... Eu saio para rua, faço a minha tarefa,
“... Estou satisfeito, porque o que tenho é pe- acabo a minha, ajudo a do meu colega e não te-
lo trabalho. Minha casa, estou construindo ou- nho uma compensação...”
tra por cima, graças à Deus...” “... A pessoa para eles só tem valor se tiver
“... Fui criado na roça e não tive estudo, pa- ali, na função. Agora se depender da gente so-
ra mim é um bom trabalho...” frer um acidente ou ter que afastar do serviço,
Apesar de “satisfeitos”, essa categoria de tra- eles parecem que abandonam a pessoa de uma
balhadores ressente-se da discriminação da vez por todas...”
população em relação ao seu trabalho. “... Me lembro que a gente fez uma greve aí e
“... Eles discriminam, eles olham para o ga- a cidade ficou suja à beça. O prefeito deu um
ri como eles olham um “porco”. Eles não sabem cansaço na gente e gastando o dinheiro em bo-
que o gari é um homem ou uma mulher igual a beira, a Lagoa Rodrigo de Freitas já é área de
eles...” lazer...”
“... Uma vez um vizinho meu que passava Essa categoria, além de ressentida com a
na minha porta e bebia na minha barraca, me desvalorização pela empresa, sente inseguran-
viu trabalhando num carro, eu falei com ele e ça devido à contratação de quatro empresas
ele não respondeu...” particulares (Cavo, Enterpa, SPL e FIAT) pe-
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la COMLURB, por ocasião da última greve dos rem álcool durante o serviço. A recomenda-
coletores de lixo em Abril de 1994. ção freqüente da COMLURB aos trabalhado-
“... Eu e meus colegas nos dedicamos ao tra- res para “não ingerirem bebidas alcoólicas du-
balho, mas não sabemos se estamos agradando. rante o serviço” e a autoculpabilização desses
Eles contrataram esses carros particulares e fa- trabalhadores pelos acidentes atribuídos ao
laram que esses caras estão fazendo um bom ser- consumo das mesmas sugere que os coletores
viço...” de lixo estudados consomem álcool com fre-
qüência, inclusive durante a jornada de traba-
lho. A esses trabalhadores não é permitido ne-
Discussão nhum espaço seja decisório seja participativo
e terapêutico para elaborarem a ambigüidade
O processo de trabalho não é visto isolado do que vivenciam.
ambiente onde o trabalho é desenvolvido. Sis- O sentimento de impotência do trabalha-
tematicamente o trabalhador integra o pro- dor para transformar suas condições de vida
cesso de trabalho às condições específicas da e a insatisfação referente ao seu trabalho, po-
cidade do Rio de Janeiro, tais como: a topo- dem também estar relacionados à ingestão de
grafia, o tráfego e a própria violência do coti- álcool referida. Estes profissionais se dizem
diano da cidade. “satisfeitos” com a profissão pelo fato de a
Segundo os autores (Cohn et al 1985 & Fa- mesma representar sua sobrevivência. No en-
leiros, 1992), o Estado atribui como principais tanto, a insatisfação dessa categoria pode ser
causas dos acidentes de trabalho, àquelas re- evidenciada, seja através da sociedade que lhe
ferentes aos atos inseguros do trabalhador, e confere a identidade de “porco” e de “infecta-
as campanhas destinadas à prevenção de aci- do capaz de contagiar” ou através da própria
dentes são dirigidas somente aos trabalhado- empresa. Esta deseja ver a cidade limpa, mas
res, excluindo-se os patrões. No grupo estu- negligencia não só os riscos físicos, químicos e
dado, a autoculpabilização é também um dos biológicos aos quais o trabalhador fica expos-
fatores identificados como causadores de aci- to como também a sobrecarga psíquica a que
dentes. Pode-se então assumir, que a culpa so- estão sujeitos pela sua identidade social.
bre o ato inseguro transmitida pelo Estado, Os trabalhadores estudados percebem, co-
através dos seus órgãos oficiais, induz ao tra- mo mudanças capazes para melhoria das suas
balhador uma visão fragmentada das causas condições de trabalho, diversos fatores, tais
referentes aos acidentes ocorridos. como: distribuição de EPIS (conforme a de-
Isto pode ser entendido, considerando a manda), treinamento, atenção médica inte-
orientação fornecida pela COMLURB aos co- gral, manutenção de seus instrumentos de tra-
letores de lixo, quando a chefia enfatiza a ne- balho, adaptação do trabalho ao homem e sua
cessidade de usar equipamentos de proteção participação junto à empresa em decisões re-
individual (EPIS) e de não ingerir bebidas al- lacionadas ao seu trabalho. Merece destaque
coólicas para evitar acidentes. Essas recomen- o fato de vários deles resistirem, mesmo quan-
dações representam quase uma ameaça ao tra- do disponíveis, ao uso dos equipamentos de
balhador, dada a natureza enfática de sua pre- proteção.
sença nos treinamentos e folhetos de orienta- Uma pesquisa posterior seria convenien-
ção da empresa, enquanto outras recomenda- te, para determinar as possíveis associações
ções de igual ou maior importância, nem sem- feitas pelos sujeitos dessa necessidade de tato
pre são transmitidas, como por exemplo, me- e, portanto, de contato com o lixo e a necessi-
didas preventivas contra doenças infecciosas dade inconsciente de punição ligada à culpa-
(dengue, febre amarela, tétano, hepatite, cóle- bilidade, mas, antes de tudo, as relações des-
ra), posturas adequadas para levantar e trans- ses fatos e a realidade social como mantene-
portar pesos, cuidados com materiais que ofe- dora de uma situação de “superego social”
recem risco (lata, garrafa, vidro, seringa, subs- (Freud, 1930), que impede “consciência” e a
tância inflamável) e cuidados com infecções conscientização transformadora. O superego
(da pele, dos olhos, dos aparelhos digestivo e é uma instância interna e inconsciente que, na
respiratório). re-apresentação, pode ser questionado, depen-
Vários autores (Pereira, 1978; Robazzi, dendo da situação do sujeito (Valadares, 1994).
1984; Ilário, 1989; Betancourt, 1993) relatam Seria conveniente a introdução de medi-
a problemática dos coletores de lixo consumi- das práticas, objetivas e inadiáveis como uma
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coleta seletiva, que separe o lixo reciclável (vi- manifestação, sem marginalizar, por não estar
dro, lata, madeira, agulha), para evitar aciden- submetido à hierarquia, tem mais oportuni-
tes como cortes e ferimentos, dado que o pro- dade de encaminhar sugestões, sem o impedi-
cesso de trabalho se estrutura através de uma mento de uma censura externa que aciona me-
tecnologia primária, praticamente manual, o canismos superegoístas sempre internos aos
que expõe o trabalhador a doenças e aciden- sujeitos. Os encontros podem estar vincula-
tes, relacionados ao esforço excessivo exigido dos a alguma atividade de lazer: artesanato, ou
pela demanda ocupacional. cursos de treinamento em atividades artísti-
Além das medidas de modificação de am- cas, técnicas, esportivas, etc., sem ligação ne-
biente físico e de instrumentos de trabalhos, cessária com o trabalho ou, ainda, outra opor-
poderiam ser considerados a possibilidade de tunidade graciosamente oferecida ao traba-
criação e incentivo a grupos contínuos de en- lhador. Poder-se-ia acompanhar o desenvol-
contro de trabalhadores, sem nenhuma obri- vimento de tal atividade, com uma pesquisa
gação institucional, com a opção de encami- sobre melhoria na incidência de doenças, aci-
nhar, esporadicamente, alguma recomenda- dentes, satisfação no trabalho, acesso à melhor
ção ou reivindicação às empresas e à Prefeitu- condição de cidadania, a qual é menos valori-
ra. Esses grupos, formados em cada unidade zada, pelos indivíduos, do que a condição de
de coleta e tratamento, e que poderiam se reu- sujeito.
nir quinzenalmete no horário de trabalho, de- Pensamos, assim, que algum trabalho de-
vem escolher internamente um coordenador ve ser desenvolvido, no sentido de produzir,
e um relator. Um coordenador escolhido “de entre trabalhadores, um movimento em dire-
fora” institucionalizaria o processo e impedi- ção à autonomia, somente conseguido com
ria movimentos mais ligados à imaginariza- um encaminhamento de encomendas sociais,
ção, sempre acolhida no pequeno grupo (Vala- ou seja, com o deslocamento contínuo dos
dares, 1994). Essa prática foi a causa de fracas- ideais, e, portanto, das lideranças. A procura
so de muitas medidas ligadas às comissões de de autonomia é uma das figuras do real, so-
proteção contra acidentes de trabalho. Esse ti- mente manifestadas nos “restos”, naquilo que
po de agrupamento que acolhe toda a sorte de ainda não foi elaborado pelo homem.

Referências
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