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ARTIGO DE OPINIÃO | OPINION ARTICLE 191

Loucura e direito penal: pistas para a


extinção dos manicômios judiciários
Madness and criminal law: clues to the extinction of judicial asylums

Haroldo Caetano1, Silvia Tedesco1

DOI: 10.1590/0103-1104202112815

RESUMO As interfaces entre a loucura e o direito penal, com a análise das medidas de segurança diante
da Lei Antimanicomial e das políticas de atenção à saúde mental no Brasil, assim como a experiência do
Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (Paili), integram os planos de desenvolvimento deste
artigo. Discutem-se aqui o tratamento penal da loucura, a natureza jurídica e os fundamentos teóricos
das medidas de segurança, bases a partir das quais são formuladas pistas que se voltam para o fechamento
dos manicômios judiciários.

PALAVRAS-CHAVE Hospitais psiquiátricos. Medidas de segurança. Transtornos mentais.

ABSTRACT The interfaces between madness and criminal law, with the analysis of security measures under
the Antimanicomial Law and the mental health care policies in Brazil, as well as the experience of the Crazy
Infractor Integral Care Program (Paili), make up the development plans of this work. This article discusses
the criminal treatment of madness, the legal nature and the theoretical foundations of security measures,
the basis on which clues are formulated that focus on the closing of judicial asylums.

KEYWORDS Hospitals, psychiatric. Security measures. Mental disorders.

1 UniversidadeFederal
Fluminense (UFF) – Niterói
(RJ), Brasil.
haroldocaetano@gmail.com

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 45, N. 128, P. 191-202, JAN-MAR 2021
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Introdução constitui. Portanto, na qualidade de recurso


terapêutico, a internação só será admitida por
A Constituição de 1988 inaugurou no Brasil tempo delimitado e quando outros recursos
o estado democrático de direito e, fundada extra-hospitalares não se mostrarem suficien-
no princípio da dignidade humana, passou a tes. A internação psiquiátrica passa a ser algo
prever que ‘nenhuma pena passará da pessoa absolutamente distinto, assim, de expedientes
do condenado’1, dispositivo que pressupõe a de natureza eminentemente punitiva ou ‘de
‘culpabilidade’ como condição essencial à apli- segurança’. Esta é prevista exclusivamente
cação da sanção penal. De sua parte, as medidas por breve tempo, indicada que é somente nos
de segurança, instituídas pelo Código Penal de períodos de crise mais grave, devendo ser jus-
1940 e mantidas na reforma de 1984, ainda se tificada por parecer abalizado de profissional
sustentam numa pretensa ‘periculosidade’ do competente da área da saúde mental. Outro
louco e funcionam como sanções penais sem ponto de grande importância é a vedação
suporte no agora necessário pressuposto da legal expressa da internação psiquiátrica em
culpabilidade. Como comentaremos mais à unidades que apresentem características asi-
frente, vista como espécie de sanção penal, lares, o que evidencia, desde uma primeira
a medida de segurança é imposta ao louco leitura, a inafastável ilegalidade do funciona-
mesmo diante de sua absolvição pelo juiz. A mento do Hospital de Custódia e Tratamento
contradição normativa deveria, evidentemen- Psiquiátrico (HCTP), denominação dada a
te, pender para a Constituição (que não admite partir de 1984 ao manicômio judiciário.
qualquer sanção penal fundada na ideia de Diante do ordenamento jurídico brasileiro,
periculosidade) com o reconhecimento da tem-se, então, uma disputa de interpretações
não recepção constitucional das medidas de sobre a norma positivada que transcende para
segurança, mas o que se tem ainda hoje, mesmo uma disputa política entre posições favorá-
passados mais de 30 anos do novo regime cons- veis e contrárias ao manicômio judiciário e,
titucional, é a continuidade da aplicação das por consequência, também diferentes quanto
medidas de segurança instituídas na primeira à aplicação e execução das medidas de se-
metade do século XX e o persistente funcio- gurança. Mesmo com a chegada das regras
namento do manicômio judiciário na maioria cristalinas da Lei Antimanicomial em 2001,
dos estados brasileiros. ainda há quem sustente – e não são poucos – a
De sua parte, a Lei nº 10.216/2001, conheci- legalidade do funcionamento dos manicômios
da como Lei Antimanicomial, veio para regular judiciários.
a atenção em saúde mental no País e trouxe Como não houve expressa alteração da le-
regras que delimitam a função da internação gislação penal no que diz respeito às medidas
psiquiátrica como um dispositivo terapêuti- de segurança para a sua adequação à ordem
co e que, como tal, deve observar os direitos constitucional pós-1988, o Brasil passou a ter
do próprio usuário dos serviços, voltando-se experiências distintas nessa matéria, conviven-
exclusivamente ao interesse de beneficiar sua do com modelos completamente diferentes,
saúde, de forma que o efetivo tratamento seja quando não antagônicos entre si. De um lado,
realizado pela inserção na família, no trabalho o manicômio judiciário, cujo funcionamen-
e na comunidade2. Como veremos, as pesquisas to baseia-se na legislação penal; no extremo
na área de saúde mental reforçam a natureza oposto, uma experiência antimanicomial que
psicossocial do transtorno mental, apontando, funciona desde o ano de 2006 no estado de
como orientação ético-clínica do tratamento, Goiás sob a sigla Paili, o Programa de Atenção
o acompanhamento técnico-especializado do Integral ao Louco Infrator, que se orienta
processo de construção e fortalecimento dos pelas regras definidas na Lei nº 10.216/2001,
nexos com a realidade social que também nos sem a utilização, em absoluto, da internação

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manicomial. Também merece registro, nesse No primeiro caso, diante da ‘inimputabili-


campo, a existência de outras práticas anti- dade’ (art. 26, caput), o agente é absolvido no
manicomiais pelo País, de natureza mista, em processo, sendo, todavia, submetido à medida
que políticas antimanicomiais convivem com de segurança em razão de sua presumida pe-
o HCTP no mesmo território. riculosidade3. No segundo, em face da ‘semi-
É, pois, o panorama nacional das medidas de -imputabilidade’ (art. 26, parágrafo único),
segurança, com suas fortes contradições, que embora reconhecido como culpável e seja a
motiva este artigo, pois não parece aceitável princípio condenado pela prática criminosa,
que o Brasil, federação que é e sob o pálio da o agente tem a pena substituída por medida
Constituição de 1988, conviva com interpreta- de segurança já na sentença condenatória,
ções tão diferentes da norma na aplicação e na por força de sua capacidade penal reduzida3.
execução das medidas de segurança. Pessoas Tem-se nessas hipóteses, então, medidas de
com transtornos mentais em situações jurí- caráter pretensamente preventivo que se
dicas similares não deveriam ter destinos tão destinam a evitar a prática futura de crimes
diferentes pelo simples fato de residirem neste por parte daquele que é identificado como
ou naquele estado, notadamente quando a Lei perigoso. Embora expostas de forma asséptica
Antimanicomial traça em sua completude, como providências voltadas ao tratamento
desde 2001, os caminhos a serem trilhados curativo do indivíduo, as medidas de segurança
no campo da atenção em saúde mental em constituem-se, essencialmente, em sanções
todo o País. penais que não se fundam na culpabilidade,
mas, sim, na presumida periculosidade do
agente, conceito que vem da ficção jurídica
Medidas de segurança construída a partir da junção entre a prática
criminosa e o transtorno mental. Por defini-
Nos termos em que estão reguladas no Código ção, as medidas de segurança são, portanto, as
Penal3, as medidas de segurança são as sanções sanções penais aplicáveis aos loucos.
aplicáveis a quem pratica o crime, mas que não
tem responsabilidade penal por não dispor, no
momento do ato, de capacidade para reconhe- Periculosidade
cer o seu caráter delituoso, ou por ter reduzida
a capacidade de compreensão do ilícito em A ‘teoria da periculosidade’, ideia sedutora
função de um transtorno mental. para muitos e que vem sendo, desde 1940, uti-
lizada como fundamento para a imposição das
Art. 26 - É isento de pena o agente que, por medidas de segurança com seu inafastável
doença mental ou desenvolvimento mental caráter sancionatório, é aplicada acriticamente
incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação como justificativa para a segregação indeter-
ou da omissão, inteiramente incapaz de enten- minada (e muitas vezes perpétua) de quem
der o caráter ilícito do fato ou de determinar-se tem algum transtorno psiquiátrico. A questão
de acordo com esse entendimento. é resolvida em uma equação simplificadora:
Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de Prática do crime + loucura = absolvição +
um a dois terços, se o agente, em virtude de medida de segurança.
perturbação de saúde mental ou por desenvol- A medida de segurança é um legado da
vimento mental incompleto ou retardado não Escola Positiva do Direito Penal, de raiz deter-
era inteiramente capaz de entender o caráter minista, segundo a qual o homem não governa
ilícito do fato ou de determinar-se de acordo suas próprias ações e não tem liberdade de
com esse entendimento. agir. Para o positivismo criminológico, a in-
fração penal é expressão sintomática de uma

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personalidade antissocial, anormal e perigosa. inaugurou a ditadura do Estado Novo. Já a


Reflexo de uma doença ou de uma anomalia, o ideia de culpabilidade, na qualidade de pres-
crime não deve ter como resposta, então, uma suposto da sanção penal, somente aparece na
sanção penal de natureza retributiva. Segundo Constituição de 1988. Até antes desse ano, o
essa perspectiva, a pena deveria ganhar, pois, direito penal da culpabilidade ainda não havia
a companhia da medida de segurança, esta de sido elevado à condição de princípio consti-
caráter preventivo e que seria capaz de alcançar tucional, de forma que o panorama jurídico
os objetivos da correção, da educação, da inocui- anterior permitia sanções penais baseadas
zação e da cura, proporcionando, na perspectiva também na periculosidade do agente, caso
do positivismo criminológico, a readaptação das medidas de segurança.
do delinquente à vida normal da sociedade. A sutil distinção decorre do tratamento
Em resumo: se, por um lado, a culpabilidade é constitucional do tema nas constituições an-
a premissa fundamental de aplicação da pena; teriores a 1988, em que a regra fundamental
por outro, será a periculosidade, a partir do definia que nenhuma pena poderia passar da
Código Penal de 1940, o pressuposto para a pessoa do ‘delinquente’. Se antes a pena não
imposição da medida de segurança. poderia passar da pessoa do ‘delinquente’, com
Acontece que a periculosidade, essa ideia a Constituição de 1988, ela (a pena) não pode
tão arraigada na tradição jurídico-penal brasi- passar da pessoa do ‘condenado’1. O delinquen-
leira, não logrou acolhimento na Constituição te não era apenas o indivíduo imputável, pois
de 1988, que trouxe novas balizas para a apli- poderia ser identificado também entre aqueles
cação do direito penal dentro de parâmetros sem responsabilidade penal, caso do louco que,
democráticos. Distintamente dos regimes an- assim, era submetido à medida de segurança,
teriores, ao prever que ‘nenhuma pena passará providência de conteúdo sancionatório. Já
da pessoa do condenado’1, a Constituição de o condenado, a quem se reserva a pena no
1988 passou a exigir a culpabilidade como ambiente pós-1988, pressupõe a culpabilidade
pressuposto, agora fundamental e inegociá- do agente, como demonstramos.
vel, para a imposição de qualquer medida de A Constituição de 1988 forma o alicerce
caráter sancionatório pela justiça criminal, de jurídico assentado na dignidade humana, um
maneira a demonstrar a não recepção da teoria dos fundamentos do Brasil como estado demo-
da periculosidade no texto constitucional e, crático de direito; e, se o texto constitucional
por consequência, a inconstitucionalidade não faz exceções, a dignidade do louco está
das medidas de segurança. contemplada, devendo assim ser respeitada
A Constituição de 1988 trouxe uma inovação pelas instituições do Estado. De tal sorte, se
cuja relevância fica mais evidente quando a a Constituição não admite a imposição de
comparamos com as constituições anteriores. sanções penais sem o pressuposto basilar da
Desse fragmento do inciso XLV do art. 5º1, culpabilidade, o que se tem no plano da valida-
que diz que nenhuma pena passará da pessoa de das normas é a não recepção constitucional
do condenado, é que será possível extrair um da teoria da periculosidade e do sistema de
decisivo elemento da aplicação da sanção medidas de segurança nela fundado.
penal, com repercussão fatal para as medidas
de segurança.
A responsabilidade penal pessoal, pela qual Lei Antimanicomial
a pena não pode passar da pessoa do agente
do delito, não é algo novo, pois se fez presen- A Lei nº 10.216/2001 contemplou no plano
te desde a Constituição do Império (1824), normativo o modelo historicamente defendido
vindo a se repetir nos textos constitucionais pelos ativistas da Luta Antimanicomial, tendo
posteriores, à exceção da Constituição que como diretriz a reformulação das políticas

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de atenção à saúde mental mediante a trans- eficientes e pouco nobres, como denunciado
ferência do foco do tratamento, que antes se por Arbex10, tornou-se, como comentaremos
concentrava na internação em instituição mais à frente, dispositivo dos serviços de saúde,
hospitalar, para uma rede de atenção psicos- de caráter excepcional, por período breve e
social estruturada em unidades de serviços que seja justificado por parecer clínico. Como
comunitários e abertos2. Essas reformulações explica Bicalho11(53), a reforma psiquiátrica
se devem a pesquisas científicas, desenvolvidas contempla, assim,
por décadas, como destacado por Amarante4,
Delgado5, Carvalho et al.6, que revelam ser o [...] a substituição de manicômios por uma rede
transtorno mental de base psicossocial. Passa- de serviços de atenção psicossocial, além de
se a entender que tanto a proliferação enrique- propor uma mudança de atitude em relação à
cedora da vida como seus impasses e colapsos loucura através da participação política ativa por
não são gerados exclusivamente no interior parte da comunidade como um todo, por meio
da vida psíquica, de modo que não podem ser de dispositivos coletivos e grupais que propor-
buscados apenas no indivíduo isolado, enfo- cionem uma mudança cultural na sociedade,
cando nele os problemas e as dificuldades. Os através de um processo de desospitalização e
transtornos mentais emergem do esgarçamen- desinstitucionalização da loucura.
to, da fragilização e do empobrecimento dos
vínculos sociais, sempre considerados como O lugar do louco deixou de ser o mani-
vias de mão dupla. Portanto, o cuidado compe- cômio para ser a vida em sociedade; e, para
tente, dirigido à saúde mental, não pode se dar garantir a assistência à saúde mental no ter-
em locais nos quais as relações psicossociais ritório da cidade, atuam os dispositivos subs-
são rarefeitas ou inexistentes. Cabe acom- titutivos que compõem a Rede de Atenção
panhar os processos de constituição desses Psicossocial (Raps), instituída por meio da
nexos e, atentando para o caráter recíproco Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro/201112,
destes, não desconsiderar a responsabilidade e mais recentemente incluída na Portaria de
de todos aí implicados, para assim intervir Consolidação nº 3, de 28 de setembro/201713,
clinicamente, caso a caso, na reconstrução e ambas do Ministério da Saúde. Por sua vez, a
no fortalecimento dos nexos existenciais que Raps deve ser estruturada de forma a contem-
nos constituem7-9. plar uma série de serviços de atenção à saúde
Todo e qualquer atendimento em saúde mental, com destaque para a instituição dos
mental deve, necessariamente, obedecer à Lei Centros de Atenção Psicossocial (Caps).
nº 10.216/2001, verdadeiro estatuto jurídico A internação está legalmente prevista,
do louco, voltado à proteção e à garantia dos sendo um recurso terapêutico possível e
direitos da pessoa com transtorno mental. eventualmente necessário no atendimento à
Fundada na dignidade humana e na liberda- pessoa com transtorno mental, embora seja
de como princípios, a assistência em saúde excepcional e somente aplicável quando outros
mental passou a ter como objetivo maior a recursos extra-hospitalares não se mostra-
reinserção social do paciente. De meramente rem aptos para o tratamento. Nos termos da
psiquiátrica, a atenção em saúde mental foi Lei Antimanicomial, a internação poderá ser
ampliada para contemplar o amparo psicos- voluntária, involuntária e compulsória, esta
social do indivíduo, e este, antes manejado última definida como sendo a que decorre de
feito objeto ao talante de interesses diversos, uma ordem judicial. Está proibida, em qual-
é reconhecido como sujeito, com direitos bem quer hipótese, a internação em instituições
definidos; e a internação psiquiátrica de longa com características asilares, o que determina
duração, comprovadamente provocadora de a ilegalidade do manicômio judiciário, estabe-
agravos, outrora utilizada com objetivos nada lecimento asilar por excelência, incompatível

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com o tratamento no campo da saúde mental e a partir das ideias racistas de Cesare Lombroso,
sem nenhuma sintonia com o objetivo permanen- mesmo sendo de frágil sustentação científica,
te agora indissociável do atendimento em saúde é ainda a cortina de fumaça que justifica a ex-
mental, que é a reinserção social do paciente. clusão pura e simples do louco infrator.
A lógica manicomial dá lugar à lógica da Por outro lado, como o ‘populismo mani-
inclusão social em toda a sua plenitude, sem comial’ denunciado por Caetano14 é resposta
espaço para qualquer exceção no atendimento fácil, principalmente quando se está diante de
em saúde mental, de forma que a internação um tema tão complexo, não faltam autorida-
psiquiátrica, seja ela voluntária, involuntária des públicas, médicos e juristas a sustentar o
ou compulsória, regular-se-á sempre pelos funcionamento dos manicômios judiciários
dispositivos da Lei Antimanicomial. Se os laços em pleno século XXI, indiferentes à absoluta
familiares e sociais são frágeis quando pre- falta de fundamento da teoria da periculosi-
sente um transtorno mental severo, a ruptura dade e à vigência de uma lei taxativa quanto
causada por uma internação, particularmente à ilegalidade da internação asilar. Aliás, não
quando de longa duração, pode simplesmente é sem motivo que a Lei Antimanicomial leva
inviabilizar o objetivo maior do tratamento esse nome, pois veio para promover uma
adequado, qual seja, a reinserção social do transformação radical na forma como vemos
indivíduo. Essa perspectiva de inclusão social e lidamos com a loucura em qualquer de suas
explica, como se percebe, a opção do legisla- manifestações, e que, talvez por essa radica-
dor pelos recursos extra-hospitalares e pela lidade, por elevar a liberdade à condição de
estruturação de uma rede de atendimento mais importante recurso terapêutico, sofra
que se volte para a assistência do sujeito no tanta oposição para as mudanças que ainda
território, de maneira a envolver e fortalecer não foram implementadas.
os seus vínculos familiares e sociais. A legalidade, premissa elementar na atuação
A Lei nº 10.216 fez do lema do Movimento do sistema de justiça criminal, tem como
Antimanicomial um princípio normativo conteúdo a limitação do poder punitivo em
orientador de toda a política de atenção à saúde face da liberdade individual, sendo esta a sua
mental no Brasil. Agora é lei: a liberdade é dimensão política, expressão do liberalismo
terapêutica! penal. Ocorre que essa dimensão política é,
O maior problema é que, não obstante a conforme explica Prando15, continuamente
vigência da Lei Antimanicomial desde o ano tensionada pela polarização entre a limitação
de 2001, ainda não conseguimos abandonar a e a justificativa do poder punitivo, expres-
cultura manicomial, arraigada que está em prá- sa na disputa entre o exercício da liberdade
ticas centenárias e que, diante da complexidade, individual e as demandas por ordem. Essas
dos preconceitos e da desinformação que acom- tensões entre liberdade e controle punitivo
panham o tema da loucura, torna muitas vezes se apresentam visíveis nas relações entre a
sedutora a internação asilar, ideia que é ainda loucura e o direito penal, mais até do que em
mais difícil de superar quando se tem prevista qualquer outra área entre aquelas que são al-
no Código Penal a internação em manicômio cançadas pelas agências do aparato repressivo
judiciário, disposição que não foi revogada de do Estado. Não é sem motivo, pois, a negativa
maneira expressa pela Lei Antimanicomial. de tantos à aplicação da Lei Antimanicomial,
Ao mesmo tempo, o quadro grotesco e caótico especialmente aqueles que insistem no mani-
de qualquer manicômio judiciário brasileiro, cômio judiciário como algo válido a despeito
espaço de permanente violação de direitos da expressa disposição legal que proíbe tal
humanos, é ignorado pela grande maioria da instituição. Nas medidas de segurança, como se
população. Nesse contexto, a teoria da periculo- percebe, a legalidade não é apenas tensionada.
sidade, edificada no século XIX principalmente É simplesmente negada.

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As normas definidas pela Lei – fechada ao ingresso de novos ocupantes. O


Antimanicomial devem ser sempre respeita- manicômio judiciário tornou-se ilegal em face
das na atenção em saúde mental e, como tal, da redação do art. 4º, § 3º, que veda expressa-
alcançam a pessoa submetida judicialmente à mente a internação de pessoas com transtornos
medida de segurança de internação, contem- mentais em estabelecimentos com caracterís-
plada no texto legal na figura da ‘internação ticas asilares2.
compulsória’ (art. 6º, III). Logo, assim como Quanto aos indivíduos há muito tempo con-
nas outras duas modalidades de internação psi- finados nos manicômios judiciários ou em
quiátrica (voluntária e involuntária), também a relação aos quais esteja caracterizada situação
internação compulsória observará a reinserção de grave dependência institucional, decor-
social como finalidade do tratamento (art. rente do seu quadro clínico ou de ausência de
4º, § 1º) e só será utilizada quando houver a suporte social, deveriam – e ainda devem – ser
necessidade clínica da internação enquanto beneficiados de políticas específicas de alta
recurso terapêutico, uma vez que, sendo de planejada e reabilitação psicossocial assistida.
caráter excepcional, será aplicável apenas Tal é a determinação inequívoca do art. 5º da
quando outros recursos extra-hospitalares lei. Em outras palavras, a Lei Antimanicomial
se mostrarem insuficientes (art. 4º, caput)2. fecha a porta de entrada e determina a abertura
A internação psiquiátrica será sempre pre- planejada da porta de saída dos manicômios
cedida de relatório médico circunstanciado judiciários, desviando ambos os fluxos de pa-
(art. 6º, caput)2, o que pressupõe, mesmo na cientes para tratamento em meio aberto, nos
hipótese compulsória, que o juiz deva funda- serviços da rede substitutiva.
mentar sua decisão na indicação clínica desse
recurso terapêutico. Sem o relatório médico
que indique minuciosamente a necessidade da Programa de Atenção
internação, esta não será possível em hipótese Integral ao Louco Infrator
nenhuma, pois, assim como previsto em outro
dispositivo da própria Lei Antimanicomial, a
(Paili)
pessoa com transtorno mental tem o direito de
O Paili revela, por suas rotinas sintonizadas
ser tratada com humanidade e respeito e no com a reforma psiquiátrica, uma política
interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, pública de saúde mental que logrou superar
visando alcançar sua recuperação pela inserção obstáculos institucionais históricos e que de-
na família, no trabalho e na comunidade [art. monstra a plena viabilidade da erradicação dos
2º, parágrafo único, inciso II]2. manicômios judiciários. Com a implementação
do Programa em 2006, o sistema de justiça
A internação psiquiátrica é, nos termos da criminal goiano deixou de fazer uso da inter-
Lei, um recurso terapêutico a ser utilizado no nação manicomial, que desde então não mais se
interesse exclusivo da pessoa com transtor- apresenta como resposta possível para a pessoa
no mental, não sendo juridicamente válida a com transtorno mental em conflito com a lei.
medida sob qualquer outro argumento, como, Como demonstrado, a Lei nº 10.216/2001
por exemplo, para a garantia da segurança colocou o manicômio judiciário na ilegalida-
pública ou, ainda, como visto, a pretexto do de. Já não há base normativa que permita a
superado conceito de periculosidade. internação de pessoas com transtorno mental
Por sua vez, a internação asilar está proibida em estabelecimentos com características asi-
no Brasil desde o início da vigência da lei, de lares, o que resulta da proibição expressa no
sorte que a porta de entrada dos manicômios art. 4º, § 3º daquela lei. O Paili surge, então,
judiciários está – ou pelo menos deveria estar em função de uma necessidade do sistema de

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justiça criminal em executar as medidas de medida de segurança é atendida e acompanha-


segurança que, mesmo com incompatibilida- da na Raps, sem espaço para a exceção. Para
des insuperáveis, não chegou a ser revogada as situações de crise, entretanto, a internação
expressamente pela Lei Antimanicomial. pode ser um recurso terapêutico importante,
Se o funcionamento do manicômio ju- a ser utilizado quando houver a indicação
diciário já não tem amparo jurídico, o Paili clínica, sempre com o objetivo de beneficiar
oferece a possibilidade de uma conciliação, a saúde do paciente e pelo período estritamen-
mesmo que provisória, das disposições da Lei te necessário do ponto de vista terapêutico.
nº 10.216/2001 com aquelas do Código Penal, Conforme destaca Costa17(115),
de forma a garantir, enquanto não vem uma
(desejável) definição quanto à inconstitucio- [...] o Paili constitui o primeiro programa bra-
nalidade das medidas de segurança, a atenção sileiro estruturado no âmbito da saúde pública
integral à pessoa com transtorno mental em que aceitou o desafio de trilhar novos caminhos
conflito com a lei, fazendo valer os seus direi- junto às pessoas com transtorno mental em
tos agora expressamente declarados mesmo conflito com a lei. Ao contrário das múltiplas
nesse ambiente jurídico conturbado. experiências de consolidação de novos servi-
Com o Paili, Goiás superou o manicômio ços extra-hospitalares desenvolvidas desde a
judiciário. Contudo, a forte cultura manicomial instituição da Lei 10.216/01 – a exemplo dos
tem permitido a utilização desses estabeleci- CAPS que hoje totalizam mais de 2.000 no
mentos no restante do País, até mesmo onde Brasil –, o PAILI é o único Programa na área
existem outras iniciativas que buscam atuar ligado à estrutura de uma Secretaria Estadual
em sintonia com a Lei nº 10.216/2001. É o que de Saúde, não contando com outras atuações
ocorre, por exemplo, em Minas Gerais, onde nas quais possa se mirar e perceber eventuais
funciona o Programa de Atenção Integral ao contradições ou equívocos.
Paciente Judiciário (PAI-PJ). Embora tenha
sido uma iniciativa importante pelo seu pionei- Desde sua criação, o Paili acolhe pessoas
rismo, o programa mineiro tem especificidades submetidas à medida de segurança por juízos
que o distinguem substancialmente da política criminais de todas as regiões do estado de
goiana, pois não integra o Sistema Único de Goiás. Ademais, convém desde já ressaltar que
Saúde (SUS) – e, sim, a estrutura do Tribunal o acompanhamento dos casos não implica a
de Justiça daquele Estado –, não contempla transferência do paciente, quando residente
toda a população em medida de segurança e no interior do estado, para a capital goiana.
convive com três manicômios judiciários em Usualmente, o Programa dispara soluções de
pleno funcionamento, como constatado por atendimento no território do próprio paciente,
Diniz16, nas cidades de Barbacena, Juiz de o que, aliás, deriva dos princípios que orientam
Fora e Ribeirão das Neves, que seguem com o tratamento, que deve ser feito, preferencial-
a prática da internação asilar exatamente nos mente, em meio aberto, e de seu objetivo maior,
moldes estabelecidos pelo Código Penal. Por que é a reinserção social, conforme dispõe a
essa lógica atualmente em funcionamento Lei nº 10.216/20012.
em Minas Gerais, os casos compreendidos A partir da criação do Paili, as pessoas com
como ‘problemáticos’ acabam resultando transtorno mental submetidas à medida de
em internação nos manicômios judiciários segurança no estado de Goiás passaram a ser
lá existentes. direcionadas para a Raps e demais serviços
O Paili não segue essa metodologia e não de saúde e de assistência social, de sorte que
abre espaço para a internação asilar, muitas o Programa, instituído com destinação exclu-
vezes perpétua, que caracteriza o funcio- siva para o público em medida de segurança,
namento do HCTP. Em Goiás, a pessoa em acompanha os pacientes no âmbito da Justiça e

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dos dispositivos do SUS e, também, do Sistema na Constituição, da teoria da periculosidade e


Único de Assistência Social (Suas), o que do sistema de medidas de segurança definido
acontece por meio do trabalho de sua equipe no Código Penal.
técnica de forma integrada e articulada com Por sua vez, a política instituída em Goiás
a rede de atenção primária, nos municípios com o Paili, visto este como mecanismo de
onde não há atenção especializada em saúde transição para a superação do manicômio ju-
mental, e com outros serviços que possam diciário, coloca em xeque, explica Costa17(117),
assegurar o melhor atendimento disponível
para esses indivíduos. O conceito de periculosidade, contrariando
Uniram-se em Goiás o Ministério Público, o elementos colocados pelo senso comum de que
Poder Judiciário e diversas agências do Poder somente a contenção e um aparato de vigilância
Executivo para, com os movimentos sociais são capazes de cessar o risco que determinada
ligados à saúde mental, dar um salto de qua- pessoa representa à sociedade.
lidade com a adoção de uma política universal
de atenção integral ao louco infrator. O Paili Como se pode observar, o Paili emergiu dos
obedece às diretrizes do SUS, notadamente rizomas da loucura para se apresentar como
quanto à universalidade de acesso aos servi- importantíssima experiência que deixou no
ços em todos os níveis de assistência (art. 7º, passado o manicômio judiciário. Contudo,
inciso I, da Lei nº 8.080/9018), de forma que desde então, está adstrito ao seu lócus, o
as pessoas submetidas à medida de seguran- estado de Goiás, embora venha se apresen-
ça no estado já não correm o risco de uma tando como máquina de guerra, pressionando
internação asilar, manicomial, desde 26 de e constrangendo os demais estados brasileiros
outubro de 2006. pela simples demonstração da viabilidade de
uma sociedade sem manicômios judiciários.
Ao mesmo tempo, todavia, é pressionado pela
Conclusões grande força que sustenta o funcionamento
dessas casas de horrores em quase todo o
O compromisso deste texto é com a potência restante do País.
da vida em liberdade e com as práticas que Este trabalho tem, então, o firme propó-
sejam capazes de contemplar as diferenças e sito de oferecer pistas que possam auxiliar
os incontáveis modos singulares de existência. na transposição dessa experiência para além
Assim, a pretendida extinção dos manicômios das fronteiras goianas, para que a figura do
judiciários apresenta-se como consequên- manicômio judiciário seja definitivamente
cia de um novo compromisso ético-político extirpada de todo o Brasil. Afinal, diriam
a envolver toda a sociedade, como efeito da Deleuze e Guattari19, os mil platôs produtores
ressignificação da loucura e do reencontro com de mundos não param de atuar e outras prá-
o louco, agora reconhecido na qualidade de ticas antimanicomiais estão também para ser
sujeito de direitos e cuja dignidade não pode inventadas. No entanto, é a prática estabelecida
ser relativizada. em Goiás a que, pelo menos assim acreditamos
A lei está posta. A Constituição de 1988 ter demonstrado, aponta para uma direção
forma o alicerce jurídico assentado na digni- bastante promissora que pode lançar luzes
dade humana, um dos fundamentos do Brasil nesse campo e servir de referência à política
como estado democrático de direito, no qual pública nos demais estados brasileiros.
a dignidade do louco está contemplada. De O tema é atravessado por questões das mais
igual forma, não mais se admite a imposição variadas ordens, seja no âmbito da política,
de sanções penais sem o pressuposto basilar da clínica, do direito, da saúde, da assistência
da culpabilidade, o que indica a não recepção, social, complexidade essa que exige cuidados

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para que as eventuais soluções sejam etica- tratamento, as medidas de segurança levam, pelo
mente orientadas. Nesse processo de constru- contrário, à cronificação do transtorno mental
ção de possibilidades, é de vital importância mesmo nos quadros clínicos menos graves, o que
o despertar do Movimento Antimanicomial é facilmente verificável logo ao primeiro contato
que, depois de muito tempo silente diante do com qualquer manicômio judiciário.
sofrimento do louco infrator, agora vem canali- As disposições do Código Penal relativas
zando energias para se voltar com vigor na luta às medidas de segurança são anteriores à Lei
pelo fechamento dos manicômios judiciários. Antimanicomial e, conforme observado, por
O louco é sujeito de direitos. A dignidade um princípio elementar em matéria de vali-
humana não admite a coisificação de seres dade das normas, foram derrogadas por esta
humanos que, nos manicômios, perdem a con- última, que tratou integralmente da atenção a
dição de sujeitos para serem tratados como ser dispensada a toda e qualquer pessoa com
objetos, manejados ao talante da autoridade, transtorno mental e que, sem abrir espaço para
seja do médico, da polícia, dos funcionários exceções, é aplicável também ao louco infrator.
ou do juiz. Desde 2001, a Lei Antimanicomial Ocorre que as regras hermenêuticas parecem
passou a dispor sobre a proteção e sobre os ter sido esquecidas nesse campo, no qual tem
direitos das pessoas com transtornos mentais, prevalecido a própria cultura manicomial, de
redirecionando o modelo da assistência em forma que a maioria dos juízes não reconhece
saúde mental no Brasil, para o que elegeu como a vigência da lei nova para fazer valer a norma
objetivo irrenunciável a reinserção social da anterior, embora formalmente revogada. Com
pessoa com transtorno mental. A internação isso, prevalecendo no âmbito do sistema de
psiquiátrica ainda é uma possibilidade tera- justiça criminal o pensamento conservador
pêutica, mas que somente será utilizada em pautado pelo saber psiquiátrico, o manicômio
caráter excepcional. Está terminantemente ganha sobrevida e se faz presente em quase
proibida, contudo, a internação em condições todos os estados brasileiros, excetuado, como
asilares, de maneira que a porta de entrada dos visto, o estado de Goiás, assim como algumas
manicômios judiciários está (ou pelo menos outras experiências locais, eventualmente de
deveria estar) fechada ao ingresso de novos um município ou de uma região metropolitana.
ocupantes desde 2001. Obstáculo de vulto à política antimanico-
Conforme demonstrado, as justificativas mial é a seletividade, é a proposta de ações que
voltadas a dar sustentação ao manicômio judi- não sejam viáveis para todo e qualquer caso
ciário são frágeis do ponto de vista legal. Isso clínico, o que expõe certos perigos à espreita
porque as medidas de segurança constituem-se das ações nesse campo. Não têm sido inco-
em institutos jurídicos ultrapassados, funda- muns, em face do apego histórico e cultural às
mentados na teoria da periculosidade, ideia práticas manicomiais, propostas que buscam
que não encontra qualquer sintonia com a restringir a política antimanicomial aos casos
Constituição de 1988. Aliás, é, no mínimo, con- considerados ‘mais brandos’, para assim per-
traditório considerar a medida de segurança mitir que os indivíduos com transtorno mental
uma forma de ‘tratamento’, como pretende severo (os ‘mais perigosos’, alguém poderia
a legislação penal, uma vez que se apresen- dizer) sejam levados ao manicômio judiciá-
ta como tratamento que se volta não para a rio. Tais propostas não raras vezes assumem,
cura de alguma enfermidade, mas, sim, para mesmo que involuntariamente, uma postura
fazer cessar a periculosidade, algo que não se manicomial e reforçam a posição contra o
constata a partir do diagnóstico clínico e que fechamento definitivo dessas instituições.
deriva exclusivamente de uma ficção legal Afinal, para certos casos, os considerados ‘mais
criada a partir da infeliz parceria entre a psi- difíceis’ ou ‘mais perigosos’, segundo critérios
quiatria e o direito. No lugar de funcionar como técnicos sempre duvidosos e questionáveis,

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Loucura e direito penal: pistas para a extinção dos manicômios judiciários 201

ainda restaria possível a internação no mani- segregação e pela contenção física ou química
cômio judiciário com todas as características do indivíduo, absolutamente incompatível com
que o pacote impõe, notadamente a indeter- o tratamento eficaz no modo como é proposto
minação do tempo de internação, com a segre- pelas pesquisas e pela prática consolidada na
gação muitas vezes perpétua do louco. O mais área da saúde mental. Da mesma forma que a
nefasto seria, então, não assumir a absoluta dignidade humana não pode ser relativizada
ilegalidade dos manicômios judiciários, pois para que a tortura seja admitida sob qualquer
qualquer brecha nessa premissa que deve ser pretexto, seja por violência física ou psicológi-
inegociável acabará inexoravelmente por re- ca, também o manicômio não pode ser mantido
forçar a própria lógica manicomial. A recusa como instituição indicada para ‘certos casos’,
da universalidade na oferta das políticas do os casos ditos como difíceis ou os ‘mais peri-
SUS, a simples promessa não acessível a todos, gosos’. Como as práticas manicomiais são cul-
de modo a provocar a exclusão de grande turalmente arraigadas, sobretudo no sistema
parcela das pessoas que deveriam ser igual- de justiça criminal, esta seria a chave para a
mente contempladas, enfraquece sua potência perpetuação dos próprios manicômios judici-
como política pública. A atenção em saúde ários que, com o passar do tempo e a contínua
mental, como se vê logo no primeiro artigo pressão por mais segregação, não tardariam em
da Lei Antimanicomial, deve ser assegura- retomar o seu pleno funcionamento.
da ‘sem qualquer forma de discriminação’, Vale reforçar que não existe ser humano
o que pressupõe políticas públicas de cunho perigoso. Perigosa é a produção de medo nas
universal, acessíveis a todos, de maneira que pessoas. Perigosa é a própria teoria da peri-
os serviços jamais poderão ser seletivos, pois, culosidade, inspirada no trabalho de Cesare
caso contrário, seriam não mais do que orna- Lombroso, de indisfarçável cunho racista e que
mentos grotescos em alguma das sete cabeças não se sustenta em bases científicas. Perigosa é a
da mitológica Hidra de Lerna em vã tentativa sociedade contaminada por uma produção con-
de disfarçar-lhe o aspecto monstruoso. tínua de preconceitos sobre a loucura. Já não
Não há meio termo no campo da política de cabe a teoria da periculosidade como referência
saúde mental orientada segundo os ditames para pensar o humano na sua complexidade e na
da Lei Antimanicomial, que exige a assun- dimensão das inúmeras possibilidades do ser e,
ção de uma postura ética diante do outro, o como consequência, não deve ser fundamento
louco, cuja dignidade e direitos devem ser para a definição de recursos terapêuticos no
obrigatoriamente respeitados. Pelas mesmas âmbito da saúde mental.
razões, não se pode admitir a possibilidade
de reformar o manicômio para fazer dele um
lugar humanizado, o que jamais será, mesmo Colaboradores
que viesse algum dia a dispor de espaços
limpos e serviços hospitalares de qualidade. Caetano H (0000-0001-5680-9800)* e Tedesco
O manicômio judiciário é instituição asilar, S (0000-0002-3866-019X)* colaboraram
um lugar caracterizado essencialmente pela igualmente para a elaboração do manuscrito. s

*Orcid (Open Researcher


and Contributor ID).

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Recebido em 13/11/2019
Aprovado em 18/08/2020
Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve

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