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1. (acon)(chegantes):
Já faz alguns anos que ocorreu o evento que escolhi para começar este
texto. Uma das mais significativas vivências que tive quando atuava
diretamente nesse local onde tal evento sucedeu, ele está sempre vivo em
minha memória, quiçá porque tenha sido uma das atividades em que as
crianças desse lugar mais se envolveram comigo. Não que fosse a única,
sempre tivemos muitos movimentos ali, mas este, em especial, serviu de
intensa mediação da minha relação com elas. Talvez minha formação em
Geografia despertasse algo em seus imaginários, algo que se correlacionava
com a temática que estava transcorrendo: tratava-se de um projeto que tinha
como tema os dinossauros e que acabou sendo denominado, por escolha
coletiva do grupo, por Lenda dos Dinossauros3.
Esse local é um espaço de Educação Infantil existente no interior de
uma universidade pública federal, situada na cidade de Niterói, estado do Rio
1
Graduado em Geografia. Doutorado em Educação. Pós-doutorado em desenvolvimento
humano pela Universidade de Siegen/Alemanha. Professor do Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora e Universidade Federal Fluminense.
Coordenador do Grupo de Pesquisas e Estudos em Geografia da Infância. E-mail:
jjanergeo@gmail.com
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Escolho esta epígrafe para começar este texto, informando aos leitores e leitoras que ela já
foi usada em outros trabalhos meus (ver, por exemplo, nas referências: LOPES, 2018,p.45),
porque creio que as palavras de Tolstoi abrem com grande presença o que este texto irá
tratar.Porém, mais do que isso, é também uma referência e marca de um intenso respeito que
nutro por esse autor e seu projeto de educação. Conhecemos Liev Nikoláievich Tolstói, esse
escritor russo nascido em setembro de 1828 (falecido em novembro de 1910, aos 82 anos), por
sua grande produção literária, que envolve clássicos como “A morte de Ivan Ilitch”, “Guerra e
Paz”, “Anna Karenina”, entre muitos outros, mas, para mim, além desse imenso valor literário,
encontra-se o trabalho desenvolvido com as crianças camponesas em sua residência Iasnaia
Poliana, região da atual federação russa de Tula, calcado em uma proposta pedagógica
libertária. Ver referências: TOLSTÓI, 1988.
3
Para maiores detalhes sobre o desenvolvimento desse projeto, ver nas referências: Lopes e
Mello (2012).
de Janeiro, Brasil. Para desdobrar os fatos que desejo narrar de tal evento,
fazem-se necessárias algumas descrições que estarão acompanhadas de
mapas, croquis e imagens, na esperança de que as palavras e as figuras criem
aproximações com essa instituição e os com os meus ditos.
Mapa 01:
Brasil-Niterói-Creche
BRASIL
NITEROI
Croqui 1:
Organização espacial da Creche UFF
Fonte: www.uff.br/creche
Hall
4
Coloco essa afirmação no passado, porque, nos anos posteriores a esse evento, essa
configuração interna sofreu diversas mudanças. Portanto, a que descrevo aqui se situa,
exatamente, no momento ocorrido neste trabalho.
Eram peças, cartazes, dizeres, objetos, desenhos, fotografias, um
conjunto de materiais que, configurando-se como uma exposição, tinha um
tempo de existência e permanência. Como ocorre nas exposições de modo
geral, havia alterações de acordo com o que se desejava mostrar e com os
trabalhos que estavam em processo no decorrer das rotinas da vida cotidiana
daquele grupo.
A localização de todos esses objetos nesse hall era intencional, pois era
o ponto espacial primeiro que se abria aos olhos tanto dos adultos quanto das
crianças que ali chegavam.
Entendíamos que o espaço deveria declamar algo para quem ali
comparecesse, que fosse uma primeira narrativa, um forte (acon)(tecimento),
uma presença (acon)(chegantes), um (acon)(chego) na pausa dos movimentos
das pessoas, na chegada de cada um à creche. Era o desejo de um hiato.
Interrupção. As muitas narrativas que se ouviam por ali, de certa forma,
certificavam essas intencionalidades, validavam as aspirações. O espaço
dizia!. Era pura paisagem!
Talvez, para quem está lendo estas linhas, a imagem que se segue não
tenha a mesma potência de quem era um chegante, de quem estava em
mobilidade e fazia sua primeira parada, uma suspensão no deslocamento.
Mas,mesmo assim, é necessário partilhar o que essa aresta da creche entoava
naquela ocasião:
Imagem 1:
Exposição Lenda dos Dinossauros
Foi assim, nesse encontro, de um adulto (eu), que não sabia que aquele
dinossauro, criado por peças coletadas no espaço externo da creche, pelos
paleontólogos do Grupo II7, montado a partir dos gravetosfósseis8 e de uma
caixa de papelão, estava faminto por ainda não ter comido seu lanche matinal.
O aviso daquela pequena menina me salvou de ser devorado, ao me dar a mão
e me levar para outro lugar mais seguro. Agradeci pelo cuidado que ela tivera
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Essa e outras notas de campo fazem parte do acervo de registros que temos coletado
durante os vários anos de pesquisas em nosso grupo e constituem o que chamo de
Documentação Geográfica da Infância. São escrituras que evidenciam as múltiplas linguagens
e formas de ser e estar de bebês e crianças nos espaços, nos tempos e grupos sociais que
fazem parte de suas vidas. Trazer esses registros não é mera escolha arquitetônica para
compor o texto, mas, sobretudo, uma escolha política e uma forma de assumir o quanto a
humanidade se humaniza nessas relações com bebês e crianças.
7
Na Creche UFF as crianças eram agrupadas por idades aproximadas. O Grupo 01 recebia as
crianças bem pequenas; o Grupo 02 era formado por crianças com idades variando entre 03 e
04 anos e o Grupo 03 as crianças maiores, em torno de 04 e 05 anos.
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Faço referência ao termo usado pelas crianças que montaram o dinossauro a partir de
gravetos e outros materiais em expedições “paleontológicas” em torno da creche. Essas eram
expressões usadas por elas.
comigo e prometi que jamais chegaria tão perto novamente. Afinal, seus dentes
eram terríveis.
Imagem 2:
Detalhe do dinossauro e sua boca com grandes dentes
Imagem 3:
Fósseis e objetos diversos coletados pelos paleontólogos da creche
AD: Foto com detalhe da mesa presente na exposição. Em cima da mesa,
cartões com materiais com formatos diversos de argila e um papel em pé
no qual está escrito: Fósseis e objetos encontrados no pátio gramado da
Creche UFF, em uma caçada junto com os paleontólogos do Grupo 01.
16/09/10. GII.
Fonte: Acervo GRUPEGI.
Abri a primeira parte deste texto com uma citação de Tolstoi e continuo
com suas palavras para iniciar esta segunda seção.Reafirmo sua posição e
convicção, presentes na epígrafe acima, de que o único critério para a
“instrução” é o da liberdade! Com esses princípios, esse escritor e educador
fez de sua residência Isnaia Poliana (Я́ сная Поля́на)10 um lócus de uma
singular e significativa experiência, como ele mesmo aponta em carta a E.P.
Kovalevski, datada de 12 de março de 1860:
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Partes dos argumentos expressos nesse texto fazem parte de um livro, ainda não publicado,
que tem o seguinte título: Terreno Baldio. Essa obra que está no prelo, sairá em breve e está
sendo elaborada como parte de minha tese para professor titular junto a Universidade Federal
de Juiz de Fora
10
A tradução literal para esse termo seria “Clareira Limpa”. Atualmente, essa localidade abriga
o Museu Tolstói. Para maiores detalhes sobre esse local, situado aproximadamente a 300 km
de Moscou, visite o sítio eletrônico em: http://www.yasnayapolyana.ru/
passou a viver em Gomel, que acabou tornando-se sua cidade natal, ambas
situadas da Bielorússia- e com vivências temporais também diferenciadas –
quando o bielorruso nasceu, Tolstói já tinha mais de 60 anos. Não é só o
idioma original que irá aproximar essas duas pessoas, mas também seus
projetos societários e as suas formas de conceber o ser humano e suas
relações com o mundo,calcadas na dimensão e na aspiração da liberdade
como marca da existência, da experiência e da vivência.
Vigotski, em obras diversas (ver, por exemplo, Vigotski, 2018), chegou a
citar, em muitos momentos, Tostói, quer seja para exemplificar seus próprios
postulados, como ao falar dos mecanismos da imaginação criadora: “Antes de
criar a imagem de Natacha em Guerra e Paz, Tolstói precisou destacar cada
um dos traços de duas mulheres de sua intimidade. Sem isso ele não teria
como remoer e misturar as duas para conseguir criar a imagem de Natacha”
(obra citada, p. 38), quer seja para evidenciar os trabalhos pedagógicos de
Tolstói, como aparece na passagem a seguir:
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A partir dessa afirmação, posso propor para o leitor a mudança no título deste artigo. Se, no
começo da leitura, ela apresentava a seguinte estrutura: "Um dinossauro faminto, um adulto e
uma criança: o espaço e as geografias do viver", creio que daqui para frente pode ser lido
como "Um dinossauro faminto, um adulto e uma criança: o espaço geográfico e as geografias
do viver". A não inclusão do “geográfico” inicialmente foi intencional, desejava fazer todas as
reflexões antes de inserir esse vocábulo.
Goulart, como, por exemplo, o mais recente Goulart e outras, 2019), de
[con]vivências e [co]existências.
Pensar a dimensão espacial na Educação Infantil é assumir que tal
dimensão faz parte do desenvolvimento das pessoas que aí convivem, sejam
os bebês, as crianças e os adultos e, como já expressei anteriormente, é
marcada por transformações constantes, reconhecendo que há uma
topogênese nesse processo:
Poderia assim perguntar: não existiria um componente
geográfico no desenvolvimento humano? A partir das
contribuições dos teóricos citados anteriormente, levanto a
hipótese de que a teoria é histórico-cultural, mas
também geográfica. A questão que faço é se, na interface da
filogênese, da sociogênese, da ontogênese, que demandam
microgêneses singulares em cada ser humano, não coexiste
também uma dimensão espacial. Cada um de nós, em nosso
desenvolvimento compartilhado com outros seres humanos,
nesse momento histórico, constructos da história humana na
própria história geológica da Terra, partilhando nossas culturas,
somos ou não atravessados pelas condições geográficas de
nossas paisagens, de nossos territórios e lugares? Não há em
nós reminiscências dos locais que ocupamos e que nos
ocupam? Das paisagens em que transitamos e que em nós
transitam? Eis a questão síntese: seria possível pensarmos em
uma “topogênese”? (LOPES, 2018, p. 49)
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O termo topo é um radical de origem grega que se liga à dimensão do espaço e designa
lugar, como na palavra Topografia, por exemplo, ou na conhecida expressão de Tuan:
Topofilila (TUAN, Y.F. Topofilia. Rio de Janeiro: Difel, 1980). Aqui uso para fazer referência a
essa forma adultocentrada na produção do espaço que deixa de fora as vivências, as lógicas e
autorias infantis nesse processo.
15
Os fragmentos foram retirados de Lopes (2018, p. 81-2).
Interespaços na Creche UFF
Cortina de uma
“[...] o espaço produzido e das salas de
organizado com as crianças atividades
e como expressão de pintadas com as
conhecimento de mundo, de crianças
autonomia e autoria as
crianças, do
trabalho coletivo e
comunitário, do saber que
emerge do grupo e as suas
possibilidades de
ressignificar os
conhecimentos de todos que
ali estão
presentes”.
Interespaços na Creche UFF
“Pedaços de madeiras
presos à parede do
corredor junto às
portas das salas se
transformam em cabides
que, associados ao nome
de cada criança e um
símbolo que serve de
legenda, tornam-se
elementos
“[...] os corredores amplos
importantes na orientação
e as diversas passagens
e localização das crianças
sem portas possibilitam os
no espaço, propiciando se
deslocamentos, os
acharem naquele local”.
acessos, o movimento em
sua plenitude, mas
“As flores impressas no
também
chão designam os locais
o olhar profundo, uma
onde as crianças podem
busca da totalidade do
circular em sua autonomia,
ambiente, um contemplar
são locais destinados a
e ser contemplado para e
elas na creche, e seu
pelo outro, a escuta e o
traçado orienta os acessos
murmúrio típico das
às salas de atividades, ao
crianças”.
“[...] Ao mesmo tempo hall de entrada, ao
existem recortes, pátio externo”.
reentrâncias nas formas
que criam cantos
possíveis de se tornarem
lugares acolhedores [...]”
Interespaços na Creche UFF
Corredor da entrada
Como pode ser percebido, o espaço é um documento vivo. Ao ser
concebido na dimensão da [con]vivência, da [co]existência e das
interespacialidades, emergem fronteiras onde residem as possíveis liberdades
sobre as quais dialogamos anteriormente, pois elas contêm as possibilidades
de criação do novo, da reelaboração criadora (tvotycheskaia pererabotka)
expressa por Vigotski (obra citada).
Mas, para isso, é necessário romper com o topoadultocentrismo e tecer
uma justiça existencial (Lopes, 2019), que reconheça que as atividades
autorais de bebês e crianças estão envolvidas com a criação do inexistido.
Esse giro espacial requer uma amorosidade espacial (Lopes, 2019) como
escolha ética de habitar essa relação.16
Por isso, volto a afirmar, neste momento em que é preciso fechar este
texto: todo espaço, em suas diferentes escalas, é um patrimônio cultural, uma
narrativa do grupo social que o habita, é uma linguagem em torno da qual se
materializam as relações que se forjam nas diferenciadas instituições e fora
delas, é um documento que expressa a [co]existência de diferentes pessoas
em [con]vivências, que contam em contas suas geografias do viver.
Sabemos, pelas nossas lógicas adultas e acadêmicas, que os
dinossauros e seres humanos nunca se encontraram na história geológica da
Terra, mas, no estar com as crianças e com suas criações, tem-se sempre a
possibilidade de romper a obliteração e instituir o inexistido. Eu estava lá,
aquele dinossauro faminto estava lá, aquela criança estava lá.
Naquele hall, fui salvo de ser devorado por um dinossauro, agora não
mais extinto, criado por gravetofosseis, revivido nesse interespaço forjado por
muitas vozes, escutas e mãos. Foi assim que continuei vivendo e, a partir
daquele instante, pude continuar minhas andanças pelas muitas trilhas no
planeta. Com as crianças, com os bebês, aprendi e continuo aprendendo
16
Esses termos “justiça existencial” e “amorosidade espacial” podem ser encontrados de forma
mais detalhada no livro Lopes, J.J.M Terreno Baldio, ainda no prelo. São criações a partir de
meus encontros com muitos autores, como Boaventura Santos (obras diversas), M. Bakhtin
(obras diversas), Paulo Freire (obras diversas), entre outros. Trago como exemplo, a título de
ilustrar essa afirmação, como exemplo, a passagem de Paulo Freire a seguir: “E que é o
diálogo? É uma relação horizontal de A com B. Nasce de uma matriz crítica e gera criticidade
(Jaspers). Nutre-se do amor, da humildade, da esperança, da fé, da confiança. Por isso, só o
diálogo comunica. E quando os dois pólos do diálogo se ligam assim, com amor, com
esperança, com fé um no outro, se fazem críticos na busca de algo. Instala-se, então, uma
relação de simpatia entre ambos. Só aí há comunicação.” (FREIRE, P. Educação como Prática
de Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra.1967. pg. 107)
muitas coisas, entre elas que o não desmapeamento dos espaços dos outros
sempre nos salva dessa condição de “extinção individual a que cotidianamente
somos submetidos” (Lopes; Barenco, 2012, p. 72).
Referências
GOULART, Cecília M. A.; GARCIA, Inez Helena Muniz; CORAIS, Maria Cristina
(Orgs. Alfabetização e discurso.
Dilemas e caminhos metodológicos. Campinas: Mercado das Letras. 2019.
LOPES, Jader Janer Moreira; MELLO, Marisol Barenc; PEREIRA, Luiz Miguel.
O espaço intercorpóreo como formador do corpotexto de bebê. (no prelo)