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Nobel a

Saramago
O que publicámos há 20 anos

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

É
o único Nobel da Literatura de língua portuguesa. Há duas
décadas o escritor ficou a saber que a mais alta distinção
das Letras lhe tinha sido atribuída. Quando a notícia lhe foi
comunicada, Saramago estava no aeroporto de Frankfurt a
embarcar para Madrid, vindo da feira do livro daquela cidade alemã,
para onde voltaria para explicar ao mundo as emoções, as sensações
e os temores que um prémio de tamanha magnitude lhe provocara.

Neste caderno especial, recuperamos o noticiário do PÚBLICO desses


dias agitados que se seguiram ao anúncio da Academia sueca. Desde as
reportagens em Frankfurt e na aldeia onde nasceu, Azinhaga, no
Ribatejo, até aos textos de opinião de Eduardo Lourenço, Óscar Lopes
e Alexandre Pinheiro Torres. Na edição do dia 9 de Outubro de 1998,
foram publicadas ainda dezenas de reacções de políticos, escritores
e académicos, uma entrevista a Álvaro Cunhal, um perfil literário do
autor de Memorial do Convento e um depoimento então inédito de José
Saramago escrito a pedido do PÚBLICO sobre: “Ser escritor comunista,
hoje.”Na edição de 10 Outubro, publicámos uma pequena entrevista ao
escritor feita na sede da sua editora horas depois de aterrar em Madrid,
quando os “dias do caos” começavam a instalar-se na sua “nova” vida
como escritor vencedor do Prémio Nobel da Literatura.

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

9 de Outubro
Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos
Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

E Saramago chorou

Saramago, ontem, à chegada à Feira de Frankfurt: “Se me permitem, embora o prémio seja de todos, já que
estamos nisto, eu fico com o dinheiro”

Isabel Braga 9 de Outubro de 1998

Depois de vários anos em “lista de espera”, José Saramago ganhou


o Nobel da Literatura, quando já nem ele próprio tinha esperanças
de consegui-lo. Ficou surpreendido e emocionado ao saber da
notícia, no aeroporto de Frankfrut, momentos antes de apanhar
um avião de regresso a casa, depois de ter visitado a Feira do Livro a
decorrer naquela cidade alemã. O escritor dedicou o prémio a todos
os falantes de português. O anúncio foi recebido com orgulho em
Portugal. A Igreja não gostou.

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

E
ram 13 h em em ponto em Estocolmo e meio-dia em Portugal
quando a Real Academia Sueca anunciou aquilo que, seguindo
a norma habitual da venerável instituição, estava há várias semanas
prometido para “uma quinta-feira de Outubro”, sem data certa: o
nome do Nobel da Literatura 1998. O prémio foi para José Saramago, que
se tornou no primeiro escritor de língua portuguesa a receber a distinção.
Por uma vez, as especulações que todos os anos precedem o anúncio
do Nobel foram parcialmente cumpridas, pois José Saramago estava
há vários anos em “lista de espera” para o prémio, a par de outro
português, António Lobo Antunes, do britânico Salman Rushdie, do
belga Hugo Claus, do mexicano Carlos Fuentes, do peruano Vargas Llosa,
do brasileiro Jorge Amado ou do poeta chinês Bei Dao. O anúncio não
constituíu, portanto, uma completa surpresa como aconteceu em 1997,
quando o Nobel da Literatura foi atribuído ao italiano Dario Fo.
Embora fosse um “nobilizável” desde a década de 80, quando
publicou os romances que lhe deram maior projecção — “Levantado
do Chão” (1980), “Memorial do Convento” (1982) e “O Ano da Morte
de Ricardo Reis” (1984) -, ou talvez mesmo por isso, porque esperava
há muito tempo por um Nobel que não vinha, Saramago teve uma
surpresa. “É como levar uma pancada na cabeça. Continuamos a andar
e precisamos de nos recompor, antes de repensar nas coisas”, explicou,
quando lhe perguntaram qual a sua reacção.
E admitiu que quase perdera a esperança de ganhar o Nobel. “Não
tinha quaisquer indicações sobre o que iria acontecer. Na verdade, ia a
caminho de casa”.
O escritor, de 76 anos, recebeu a notícia no aeroporto de Frankfurt,
momentos antes de tomar um avião que, via Madrid, o levaria de
regresso a casa, em Lanzarote, nas Ilhas Canárias. Estava acompanhado
de um dos seus editores, José Oliveira, da Caminho. Ao saberem, os dois
abraçaram-se a chorar.

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“Preferia ter voltado para Espanha”

Um pouco mais tarde, já recomposto, Saramago estava de volta ao pavilhão


português na Feira do Livro de Frankfurt para enfrentar uma multidão de
jornalistas, a quem declarou, sorrindo, antes do início de uma conferência
de imprensa: “Francamente, preferia ter voltado para Espanha”. Os
“flashes” dispararam e muitas das pessoas que trabalham no pavilhão
português subiram para cima de cadeiras com uma rosa na mão.
Elegantemente vestido de cinzento, o escritor, a quem a agência Reuter
chama “o grande veterano das letras portuguesas”, dirigiu uma mensagem
a todos os falantes de português: “Aceitem como vosso um prémio que tem
que ser entregue a uma pessoa que o encara como pertencendo a todos”. E
acrescentou um gracejo: “Se me permitem, embora o prémio seja de todos,
já que estamos nisto, eu fico com o dinheiro.”
Este ano, o Nobel da Literatura é no valor de 7,6 milhões de coroas
suecas, cerca de 166 mil contos, que serão entregues oficialmente a 10 de
Dezembro em Estocolmo.
“Uma pessoa retira vantagens do facto de ser mais visível e audível...
Não tenho nada a acrescentar ao que tenho vindo a dizer há muito tempo,
continuarei a dizê-las. Se houver motivos para dizer outras coisas, fá-lo-
ei”, declarou ainda Saramago.
Uma das primeiras pessoas a cumprimentá-lo foi o seu antigo editor na
Alemanha, Michael Naumann, nomeado ministro alemão da Cultura do
recém-eleito Governo social-democrata alemão. Naumann declarou aos
jornalistas que o prémio “é muito importante para Portugal”. “Têm que
compreender que um país tão marginalizado pode tornar-se conhecido em
todo o mundo na área da literatura”, disse aos jornalistas, em Frankfurt.

Vaga de orgulho nacional

As vendas dos livro de Saramago, um escritor que alcançou o primeiro

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êxito literário já depois dos 60 anos, embora tivesse começado a escrever


ainda jovem — publicou o primeiro livro, “Terra do Pecado” em 1947 -, vão
disparar a partir de agora em todo o mundo.
Mas esse homem, que nasceu pobre, de uma família de agricultores,
abandonou o liceu para tirar um curso de serralheiro mecânico,
trabalhou como revisor, foi tradutor e jornalista, está longe de ser um
desconhecido fora de Portugal: as suas obras encontram-se traduzidas em
mais de 25 línguas e têm sido muito bem acolhidas pela crítica em termos
internacionais.
Em Portugal, Saramago recebeu muitas outras distinções, como o Grande
Prémio do Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (APE),
com “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, em 1991, e o Prémio Camões,
que distinguiu a sua carreira em 1995. “A atribuição do prémio Nobel da
Literatura a José Saramago suscitou uma vaga de orgulho nacional. Políticos
e intelectuais saudam este reconhecimento internacional no domínio
cultural, após os êxitos que foram, este ano, a Exposição de Lisboa e a
entrada de Portugal no núcleo duro da moeda única”, sublinha a AFP.
O Presidente da República, Jorge Sampaio, considerou o Nobel “a
consagração definitiva do português” na pessoa de um “artesão e de um
criador de uma obra universal”. “Todos nós, sejam quais forem as nossas
convicções políticas, lhe agradecemos ter-nos dado hoje uma grande
satisfação colectiva”.
O Conselho de Ministros também se congratulou com o
“reconhecimento internacional de Portugal”.
Militante comunista desde a juventude, o escritor interveio activamente
no processo revolucionário que se seguiu ao 25 de Abril e dirigiu o
“Diário de Notícias” durante o período marcado pela supremacia do PCP
na vida portuguesa. Foi então acusado de ter procedido a uma série de
“saneamentos” políticos.
Um dos seus livros, “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (1991) suscitou
várias reacções negativas por parte dos sectores mais conservadores

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e católicos. A Igreja não gostou que Saramago tivesse sido escolhido


para o Nobel e “L’ Osservatore Romano” manifesta-se contra a decisão
da Academia Sueca: Saramago “é ideologicamente um comunista
inveterado”, afirma o diário do Vaticano.
O autor de “Memorial do Convento” é a quarta personalidade de língua
portuguesa a ganhar um Nobel. Em 1996, o Bispo de Dili, D. Ximenes
Belo, e Ramos Horta, porta-voz do lider da resistência timorense, Xanana
Gusmão, foram distinguidos ex-aequo com o Nobel da Paz e, em 1949,
Egas Moniz recebeu o Nobel da Medicina.

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Feira de Frankfurt, momentos depois do anúncio do Nobel

A bagagem do viajante

Helena Ferro de Gouveia, em Frankfurt 9 de Outubro de 1998

F
altavam poucos minutos para o avião das 12h55, com destino a
Madrid, partir do aeroporto de Frankfurt. Na sala de embarque
um telefone móvel tocou, de um lado da linha Zeferino Coelho, do
outro José Saramago. Não foi um contacto rotineiro entre editor
e autor. A mensagem era a melhor nova que um escritor pode receber.
Depois de desligado o pequeno aparelho negro, Saramago passou a
transportar na bagagem o Prémio Nobel da Literatura.
“Estava no aeroporto prestes a embarcar quando chegou a notícia
de que tinha ganho o Prémio Nobel. Houve um momento de alegria, os
meus editores de Madrid, que estavam comigo, abraçaram-me. Depois
encaminhei-me na direcção da saída e, a direcção da saída, por muito
estranho que pareça, era um corredor muito comprido. O corredor
estava deserto e eram pelo menos cinquenta metros de corredor
deserto. Eu com a minha malinha de mão, com a minha gabardine no
braço, passei de repente da alegria enormíssima da notícia que tinha
recebido, para a solidão mais completa. Naquele momento a sensação
que eu tive, claro que eu dava por mim numa grande alegria, era uma
espécie de serenidade : pronto aconteceu”. Assim descreveu José
Saramago os minutos que se seguiram ao telefonema do seu editor,

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Zeferino Coelho, aos jornalistas, escritores e editores presentes na área


portuguesa da Feira do Livro de Frankfurt.
No stand 903, da Editorial Caminho, quando a novidade chegou através
de uma jornalista brasileira, quase não podiam acreditar. Corrida para o
aeroporto. Rosas vermelhas e taças de champanhe. Fotografias a preto e
branco, fotocopiadas, do autor com a legenda Prémio Nobel da Literatura
1998, coladas nas diversas editoras portuguesas. Aplausos espontâneos dos
“vizinhos” italianos e alguns “Viva Portugal” deram tonalidade à alegria.
Quando Saramago saiu da pequena sala azul, onde esteve fechado
durante algum tempo, após ter regressado à feira, foi “engolido” por
dezenas de jornalistas nacionais e internacionais que o seguiram até à sala
Dimension, onde se realizou uma conferência de imprensa.
Por entre olhares curiosos dos visitantes da maior feira do livro do
mundo, a enorme centopeia humana atravessou corredores, subiu e
desceu escadas rolantes e, estagnou finalmente para escutar o “homem
que vivia fora dos muros da cidade”( segundo o seu auto-retrato escrito
há quase trinta anos) e que “no dia exacto, nem antes, nem depois,
entraria na cidade”.
Sentado entre Zeferino Coelho e duas tradutoras dos seus livros, um
Saramago visivelmente feliz, respondeu durante pouco mais de uma
hora às questões colocadas. Agradeceu aos editores, aos tradutores,
aos leitores e manifestou a sua grande emoção por ter sido recebido em
Frankfurt da forma como foi.
“Tivemos de esperar quase um século para que isto sucedesse, durante
o qual os escritores portugueses trabalharam e bem, alguns teriam
merecido este prémio, provavelmente mais do que eu”, recordou.”Não
esperava o prémio, como não esperei nos cinco ou seis anos anteriores
em que se falava no meu nome. Há medida que os anos vão passando, e o
prémio não é atribuído, a `esperança de vida’ dele vai diminuindo, e só
é verdadeiramente uma esperança na primeira vez que o nome aparece
como possibilidade”.

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Algumas caras conhecidas do círculo das letras português ( Lídia Jorge,


Inês Pedrosa, Rui Zink, entre outros) presentes na feira para promoverem
as suas obras e participarem no programa cultural paralelo à exibição,
sentavam-se aqui e ali, sentindo talvez o Nobel de Saramago como um
prémio da Língua e por isso também um pouco deles.
“ O prémio pode despertar no interior do próprio país e nos países
de língua portuguesa mais do que uma curiosidade, um interesse
no sentido da defesa dessa língua e sobretudo da sua expansão aos
estrangeiros. É inevitável que um prémio como este chamará a atenção
para o mundo literário de língua portuguesa.”
Quanto ao dinheiro do prémio? “Prometo saber gastá-lo”, ironizou.
Pouco antes de deixar o recinto da feira houve tempo para um brinde
e uma derradeira pergunta.”Como é que pensa que vou comemorar? Vou
comemorar com a minha família, com a minha mulher, vou telefonar
a minha filha querida que ainda não lhe pude telefonar”, explicou ao
PÚBLICO o autor de “Provavelmente Alegria”.

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DEPOIMENTO

Ser escritor comunista, hoje

José Saramago 9 de Outubro de 1998

Q
ue significa hoje ser escritor comunista? À margem das
distinções mais ou menos subtis que poderíamos fazer entre
ser-se um escritor comunista e um comunista escritor (não é
certamente o mesmo, por exemplo, ser-se jornalista comunista
e comunista jornalista...), creio que a pergunta não vai dirigida ao alvo
que mais importa. Pelo menos em minha opinião. Tiremos o escritor
e perguntemos simplesmente: Que significa ser hoje comunista?
Desmoronou-se a União Soviética, foram arrastadas na queda as
denominadas democracias populares, a China histórica mudou menos do
que se julga, a Coreia do Norte é uma farsa trágica, as mãos dos Estados
Unidos continuam a apertar o pescoço de Cuba... Ainda é possível, nesta
situação, ser-se comunista? Penso que sim. Com a condição, reconheço
que nada materialista, de que não se perca o estado de espírito.
Ser-se comunista ou ser-se socialista é, além de tudo o mais, e tanto
como ou ainda mais importante que o resto, um estado de espírito.
Neste sentido, foi Ieltsin alguma vez comunista? Foi-o alguma vez
Estaline? A epígrafe que pus em “Objecto Quase”, tirada de “A Sagrada
Família”, contém e explica de modo claro e definitivo o que estou a
tentar exprimir. Dizem Marx e Engels: “Se o homem é formado pelas

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circunstâncias, é necessário formar as circunstâncias humanamente”.


Está aqui tudo. Só um “estado de espírito comunista” pode ter
presentes, como regra de pensamento e de conduta, estas palavras.
Em todas as circunstâncias.

(Depoimento de José Saramago, em exclusivo para o jornal


PÚBLICO, a propósito do debate de 07.10.98, na Feira de Frankfurt,
sobre o tema “Ser escritor comunista hoje”.)

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PRÉ-PUBLICAÇÃO
Cadernos de Lanzarote — V

9 de Outubro de 1998

“José Saramago Prémio Nobel da Literatura 1998”, dirá uma tarjeta


grená, com letra branca, mandada fazer pela Editorial Caminho
para cintar o 5º volume dos “Cadernos de Lanzarote”. O livro será
posto à venda em todo o país no próximo dia 15. Com uma tiragem
de seis mil exemplares, o novo diário de Saramago começa com
a transcrição de uma carta da escritora judia norte-americana
Barbara Probst-Solomon, a propósito do “Evangelho Segundo Jesus
Cristo”, e termina 228 páginas mais à frente, com um texto sobre a
passagem do ano, vivida na sua casa da ilha espanhola de Lanzarote.
Em pré-publicação, transcrevemos o que José Saramago escreveu,
faz agora um ano, sobre a atribuição do Nobel ao seu antecessor, o
dramaturgo italiano Dario Fo.

9 de Outubro
Foi muito simples. Encontrávamo-nos na cozinha, Pilar e eu, sós, quando
a rádio informou que o Prémio Nobel tinha sido atribuído a Dario Fo.
Olhámo-nos tranquilamente (sim, tranquilamente, jurá-lo-ia se fosse
necessário) e eu disse: “Pronto. Podemos voltar ao nosso sossego.”
Falámos depois sobre o que naquele momento sentíamos, e ambos

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estivemos de acordo: alívio. Amanhã partiremos para Colónia, onde


me reunirei a alguns colegas a fim de iniciarmos o périplo que nos foi
traçado, e a outros que virão ou já se encontram em terras alemãs, para
cabal execução dos planos da presença portuguesa na Feira do Livro de
Frankfurt. Iremos directamente a Colónia num voo “charter” que sairá
de Fuerteventura de manhã cedo: teremos de madrugar se não queremos
perder o avião.

14 de Outubro
Frankfurt. Pilar telefonou hoje para casa, a saber se havia alguma
novidade, e realmente, sim, havia novidade, a mais inesperada de todos
as possíveis, aquela que nunca seríamos capazes de imaginar: nada mais
nada menos que uma chamada telefónica de Dario Fo a dizer: “Sou um
ladrão, roubei-te o prémio. Um dia será a tua vez. Abraço-te”. Mal saído
do assombro em que a notícia me tinha deixado, disse a Pilar: “Suponho
que uma coisa assim nunca terá acontecido na história deste prémio...”,
e Pilar, sábia, respondeu-me: “Não há que perder a confiança na
generosidade humana...”

16 de Outubro
Encontrava-me eu a cumprir tranquilamente as minhas obrigações
na área da Feira destinada à representação dos editores portugueses,
quando me vieram dizer que Dario Fo estava a dar uma conferência de
imprensa e que, depois de terminada, me viria cumprimentar. Quem
o disse mal parecia acreditar na informação que me estava a dar, mas
eu tinha presente na memória algo que os mais ignoravam: a chamada
telefónica que Fo tinha feito para minha casa logo no dia seguinte ao
anúncio do prémio. Quando ele chegou daí a pouco, rodeado de uma
nuvem de fotógrafos, fui ao seu encontro, abracei-o e felicitei-o. Os
“flashes” estralejaram à nossa volta, o mundo (esse mundo mínimo a
quem estas coisas continuam a interessar) ia ficar a saber que o respeito

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

e a estima ainda não se extinguiram de todo entre a gente das letras,


que é possível estarem frente a frente um vencedor e um vencido, sem
presunção o que ganhou, sem despeito o que perdeu, e conversarem,
simplesmente, como dois amigos. Quando Dario Fo se retirou, levando
atrás os admiradores e os fotógrafos, pensei: “Também isto nunca teria
sucedido na história do Nobel...”

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

UMA REVOLUÇÃO LITERÁRIA

A torrente domada

Torcato Sepúlveda* 9 de Outubro de 1998

José Saramago domina a torrencialidade barroca que herdou do


Padre António Vieira com uma respiração muito própria, que se
traduz numa pontuação pessoalíssima. Os excessos insurreccionais
comunistas são controlados por uma ironia civilizada. Ele quer que
a revolução seja literária e seja dele. A Academia Sueca acha que
sim, há quem ache que não.

N
ão vale a pena esboçar a evolução estilística do escritor José
Saramago, comparando os seus livros actuais — nomeadamente
a partir de “Levantado do Chão” (1980) — com a obra romanesca
anterior. Por exemplo: “Terra do Pecado” (1947). É um romance
escolarmente devedor da geração oitocentista de 70, cheio de boas
intenções e bons conselhos. “Terra do Pecado” não serve para nada.
Já “Deste Mundo e do Outro” — crónicas jornalísticas compiladas em
1971 — e “As Opiniões que o ‘DL’ Teve” — editoriais publicados no “Diário
de Lisboa”, em 1972 e 1973 — podem elucidar a viagem literária do autor.
Como cronista, Saramago utilizava uma linguagem simples, jornalística,
da qual a ironia não estava ausente. Mas era uma ironia sobretudo

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

política, não a ironia do absurdo de que a grande literatura normalmente


se socorre. Sobretudo a partir de “Levantado do Chão”, e até de “Manual
de Pintura e Caligrafia” (1977), José Saramago começa a sua lenta
insurreição literária: o problema político, que permanece, transforma-
se em questão ontológica. A ironia refina, embora o romancista não
desdenhe, por vezes, de baixar ao nível do chão: “Era quase noite quando
a Rua do Século ficou limpa de pobres”, escreve em “O Ano da Morte de
Ricardo Reis” (1984).
Seja como for, a escrita de Saramago solidificara-se sobretudo desde
“Memorial do Convento” (1982). Uma prosa torrencial invadia a literatura
portuguesa. Torrencial, mas não caótica como sugerem alguns críticos.
Não há escrita mais policiada do que a de Saramago. A sua conhecida
torrencialidade está domada por uma respiração muito pessoal e uma
pontuação que escandalizaram certas boas almas lusitanas. Que nunca
leram Joyce, nem Proust, nem sequer o galego, de língua castelhana,
Gonzalo Torrente Ballester. Vai longe a correcção jornalística das crónicas
anteriores à Revolução de 25 de Abril de 1874.
Cada obra ficcional de Saramago é a metáfora do mundo tal como
Saramago o vê. Não convém dizer agora que é a metáfora do mundo tal
como ele é. O mundo é pior, muito pior do que aquele que Saramago
descreve. Para essas metáforas, o romancista convoca a História e os
mitos — como em “Memorial do Convento”, “História do Cerco de Lisboa”
(1989) ou “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (1991) -, mas também a pura
ideia, como em “A Jangada de Pedra” (1987). Porém, desde a Blimunda
do “Memorial do Convento”, até ao Ricardo Reis saramaguiano, desde o
passado até ao presente, toda a ideia, toda e realidade é chamada para
a construção de uma catedral barroca, na qual está contida a revolução.
Qual revolução? A comunista? Também a comunista, evidentemente, mas
sobretudo a insurreição cidadã de um céptico que exige que o mundo
tenha razões para existir. Dá-se o caso de nem o mundo saber porque
existe, nem Saramago conseguir encontrar razões para que ele exista.

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Antepassado barroco

No seu domínio do caos, José Saramago descende — família que ele não
rejeita — do barroco. A leitura do Padre António Vieira é presente em toda
a sua obra mais recente: “Quem disser que a natureza é indiferente às
dores e preocupações dos homens, não sabe de homens nem de natureza.
Um desgosto, passageiro que seja, uma enxaqueca, ainda que das
suportáveis, transtornam imediatamente o curso dos astros, perturbam a
regularidade das marés, atrasam o nascimento da lua e, sobretudo, põem
em desalinho as correntes de ar, o sobe-e-desce das nuvens (...)” (“O Ano
da Morte de Ricardo Reis”). Não é de estranhar que o heterodoxo jesuíta
António Vieira influencie o comunista heterodoxo José Saramago. Na peça
“In Nomine Dei” (1993), Saramago pretende chegar a Deus pelo excesso
e, afinal, chega ao Diabo. A personagem central não pede desculpa do
seu radicalismo, pede desculpa dos crimes consequentes, como se Vieira
pedisse perdão dos crimes da Inquisição, não da fé, e Lenine pedisse
perdão da burocracia estalinista, não da Revolução de Outubro de 1917.
Tanto ideologicamente como estilisticamente, a obra de José Saramago
é um excesso contido. Adivinha-se o homem de fé por detrás das ironias
civilizadas; suspeita-se que o comunista não parou à porta da ficção.
Dúvidas tanto mais legítimas quanto Saramago rejeita a omnipotência do
narrador. Para ele, essa figura da análise literária é pura ficção; para ele,
o supremo arquitecto é o autor: “Nos meus romances, há pelo menos um
homem dentro: eu”, disse em várias entrevistas. Camilo Castelo Branco e
Flaubert não seriam mais claros. A realidade pode ser ordenada por quem
não vê, como em “Ensaio Sobre a Cegueira” (1995), ou as identidades
diluídas, como em “Todos os Nomes” (1997). O autor está lá para
disciplinar o mundo que cria.
Saramago quer que todos os extremismos do mundo, todas as
revoluções estejam contidas na sua obra. Ele acha-se o grande insurrecto
romântico, o serralheiro-mecânico que despiu o fato-macaco para

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

enrolar a “lavallière”. Óscar Lopes disse, em entrevista ao PÚBLICO, que


Saramago não possui” uma cultura realmente estável”, e que “a gente
sente essa fraqueza nos seus romances”. O fato-macaco continuaria mais
visível do que a “lavallière”. A Academia Sueca não considerou assim.
Quem somos nós?...

*jornalista “free-lancer”

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Bibliografia de José Saramago


9 de Outubro de 1998

POESIA "O evangelho segundo Jesus Cristo" /


"Os poemas possíveis" / Portugália Ed. Caminho, 1991
Ed. 1966, Ed. Caminho, 1982 "Ensaio sobre a cegueira" /
"Provavelmente alegria" / Livros Ed. Caminho, 1995
Horizonte 1970, Ed. Caminho, 1985 "Todos os nomes" / Ed. Caminho, 1997
"O ano de 1993" / Ed. Futura 1975, ENSAIO
Ed. Caminho, 1987 "As opiniões que o DL teve" /
"O ouvido", in "Poética dos cinco Ed. Futura, 1974
Sentidos" / Livraria Bertrand, 1979 "Deste mundo e do outro" /
PROSA Ed. Arcádia 1971, Ed Caminho, 1985
“ Terra do Pecado” / Editorial "A bagagem do viajante" / Ed. Futura
Minerva, 1947; Caminho, 1997 1973, Ed. Caminho, 1986
"Manual de Pintura e Caligrafia" / "Os apontamentos: crónicas políticas"
Moraes Ed. 1977, Ed. Caminho, 1984 / Seara Nova, 1976, Ed. Caminho, 1990
"Objecto quase" / Moraes Ed.1978, "Viagem a Portugal" / Círculo de
Ed. Caminho, 1984 Leitores 1981, Ed. Caminho, 1984
"Levantado do Chão" / TEATRO
Ed. Caminho, 1980 "A noite" / Ed. Caminho, 1979
"Memorial do Convento" / "Que farei com este livro?" /
Ed. Caminho, 1982, Círculo Ed. Caminho, 1980
de Leitores, 1984 "A segunda vida de Francisco
"O ano da morte de Ricardo Reis" / de Assis" / Ed. Caminho, 1987
Ed. Caminho, 1984 "In nomine Dei" / Ed. Caminho, 1993
"A jangada de pedra" / Ed. Caminho DIÁRIOS
1986, Círculo de Leitores, 1987 "Cadernos de Lanzarote" / Vol. I-IV,
"História do cerco de Lisboa" / 1994-97, Ed. Caminho (o vol. V
Ed. Caminho, 1989 será publicado dentro de dias)

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Como me fiz escritor?

Carlos Câmara Leme 9 de Outubro de 1998

E
m Fevereiro de 1997, o professor da Faculdade de Letras de Coimbra
Carlos Reis (actualmente director da Biblioteca Nacional) propôs
uma longa conversa de três dias com o autor de “Memorial do
Convento”. A ideia era tentar perceber como é que nasceu o escritor
José Saramago, que leituras/autores o marcaram mais. O que é que pensava
dos prémios? A obra “Diálogos com Saramago” sairá, em princípio, em
Dezembro na Caminho e o PÚBLICO, na altura, assistiu à conversa.
O romancista estava a escrever “Todos os Nomes”, ia nas 80 páginas,
mas estava disponível para falar sobre a sua carreira. Carlos Reis entrou
a matar: como é que se formou o escritor José Saramago? Respondeu
depois de algum silêncio, como é habitual: “Aprendi a ler com o `Diário e
Notícias’.” Lia tudo, confessou, das notícias aos anúncios.
Qual foi o primeiro livro que leu? A memória não falha. A sua mãe
entrou numa papelaria e comprou-lhe “O Mistério do Moinho”. Neste
caso, porém, a memória é traiçoeira — o autor é inglês, mas Saramago
não se recorda do seu nome. Carlos Reis quer intervir, mas ele não
deixa. “Só sei que este senhor se preparou desde muito cedo para
ser escritor, mas não tinha consciência disso.” Lê Eça, Raul Brandão,
Almada Negreiros e Montaigne.

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Um dia entrou na biblioteca da escola que frequentava, a Afonso


Domingues. Pegou num livro de Ricardo Reis, mas não sabia sequer
que era um heterónimo de Fernando Pessoa (recorde-se que Saramago
escreveu “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, por muitos considerada a
sua obra-prima).
Escreveu o primeiro livro em 1947, “Terra do Pecado”, uma história
de uma senhora viúva, com uma referência explícita a Juliana,
personagem de “O Primo Basílio”, de Eça de Queirós. O editor não
está pelos ajustes. Diz-lhe: “Como é que um puto de 24 anos pode
saber tanto de viúvas como de pecado?” Embora tenha sido reeditado
recentemente, só o espreita de vez em quando, para ver se “não existem
muitos disparates”. Em 1949, escreve “Clarabóia”, em memória do seu
avô. Nunca o publicou. Porquê? “Não está mal construído. É ingénuo,
como não podia deixar de ser.”
O salto dá-se em 1980. É a mudança com “Levantado do Chão”. Tem,
como na maior dos seus livros, um problema comum: “A este mundo vêm
milhões de pessoas e a história não deixa rasto da sua passagem. Não é
por acaso que no `Memorial’ — acrescenta — disse que todas as pessoas
deviam escrever as suas autobiografias.”
Insiste no acaso ou no destino para responder à questão de saber por
que é que se tornou escritor: “Se o meu pai não me tivesse trazido para
Lisboa, existia o `Memorial’? Seria o escritor que sou? Não sei?”
E as personagens como aparecem? Passam por pessoas reais?
Saramago nem pestaneja: “Nem pensar.” Mas não existe nenhum
contorno autobiográfico na sua escrita? “Há muito de meu no
Raimundo da Silva [`Manual de Pintura e Caligrafia’] ou no Baltazar
[`Memorial do Convento’]. Mas são excepções. As outras são as
mulheres. Nascem como nascem os meus livros. Aparecem à medida
que vou escrevendo.”
Na conversa, quando se falou de prémios, Saramago foi muito
claro: o Nobel é “uma invenção diabólica”. Explicou porquê:

24
Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

“Agita a comunicação social durante algumas semanas, o autor vende


mais uns exemplares, o que não quer dizer mais leitores.” “Os prémios,
a maior parte das vezes, tornam-se motivo de invejas, de arranjinhos.”
Agora, que ganhou o Prémio Nobel da Literatura, o que é que o autor
de “A Jangada de Pedra” dirá sobre o assunto?

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

PERFIL

O homem que nasceu


duas vezes

Saramago, entre Carrilho e Guterres, numa visita a Mafra, cenário de “O Memorial do Convento”

Alexandra Lucas Coelho 9 de Outubro de 1998

C
hama-se Saramago por equívoco. Quis o acaso que o notário, no
momento do registo, não estivesse tão sóbrio como a circunstância
pedia. E assim, José, filho de camponeses da Azinhaga, aldeia no
concelho da Golegã, ganhou um apelido que apenas existia como
alcunha: “Saramagos”, era como na região chamavam aos seus pais —
Sousa, de apelido verdadeiro. Não fosse a lenda do notário ébrio e entre
os prémio Nobel da Literatura estaria agora José Sousa, 75 anos, o homem
que nasceu duas vezes.

26
Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

A primeira vez que José Sousa Saramago nasceu foi num dia de Outono,
16 de Novembro de 1922, numa casa pobre do Ribatejo, sem janelas (ver
página 9), depois do pai ter regressado da I Guerra Mundial decidido a
emigrar para a capital. Entre a Carris e a PSP — os dois únicos caminhos
que pareciam possíveis a um camponês recém-chegado a Lisboa — o pai
de Saramago escolhe a PSP, onde fica até à reforma.
São duros os primeiros tempos na capital. Até aos 12 anos, José
Saramago vive em quartos, em águas-furtadas. Faz a Primária numa
escola da Morais Soares, dois anos de Liceu no Gil Vicente, apenas dois
anos, antes de ir aprender o ofício de serralheiro mecânico na escola
industrial Afonso Domingues, em Xabregas.
Aos 18 anos está pronto para trabalhar como aprendiz, nas oficinas dos
Hospitais Civis de Lisboa. Por esta altura, ele que nunca teve uma estante
em casa, ele que recebeu o seu primeiro livro quando já era adolescente
— um policial, comprado pela mãe numa tabacaria da Praça do Chile —
começou a passar noites na Biblioteca do Palácio Galveias, perdido entre
livros, à toa, ao acaso, centenas de livros, maus e bons, como sempre,
quando se começa.
Inquieto, passa de serralheiro a desenhador, de desenhador a
admnistrativo, até ir parar a uma companhia de seguros. Aos 22 anos casa-
se, tem uma filha a que chama Violante — hoje uma bióloga e vereadora do
PS na câmara do Funchal — e mete-se a escrever um romance a que chama
“A Viúva”. Quis a Minerva, que o editou em 1947, que o título fosse alterado
para “Terra de Pecado”, para grande embaraço do estreante, até hoje.
Estava José no seu décimo ano de companhia de seguros, quando
lhe aparece um salvador chamado Nataniel Costa, editor literário da
Estúdios Cor, que está de partida para a diplomacia e lhe oferece o lugar.
Dedica-se então, por inteiro, aos romances dos outros. Os portugueses
atentos às livrarias só voltarão a encontrar esse tal José Saramago num
livro de poemas, publicado em 1966, quase duas décadas passadas sobre
“Terra do Pecado”.

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Em 1969 estabelece um compromisso que dura até hoje, resistente


às dúvidas e aos desmoronamentos: torna-se militante do PCP. Dois
anos depois inicia, no Diário de Lisboa, o seu tempo de jornalista, aliás
cronista, crítico, editorialista — notícias e reportagens nunca fez, que
se lembre, nem uma. A revolução há-de erguê-lo à direcção-adjunta do
Diário de Notícias, aonde chega na Primavera de 75. O Verão é escaldante.
O comunista José Saramago, implacável no processo de 22 jornalistas
saneados politicamente, ganha aqui inimigos para sempre.
Tomba com o 25 de Novembro e começa a atravessar um deserto.
Durante cinco anos faz traduções para sobreviver, traduz “muitíssimo”,
recordará depois, banalidades e clássicos, como “Anna Karenina” de
Leão Tolstoi. A partir do francês.
Em 1980 acontece uma luz, um maná que lhe permite equilibrar as
finanças, um empurrão para o que será o seu segundo nascimento: o
Círculo de Leitores contrata-o para um guia que se chamará “Viagem a
Portugal”. É desse desafogo que surgirá “Levantado do Chão”.
Nas páginas de um Alentejo em que os homens erguem a cabeça nasce
José Saramago pela segunda vez, como escritor definitivo para sempre.
É a vida verdadeira a que só falta uma aparição chamada Pilar del Rio.
Falta pouco.
Depois de várias editoras, incluindo a D. Quixote, o terem recusado,
o livro é publicado pela Moraes, que já tinha editado um inesperado
“Manuel de Pintura e Caligrafia”, romance que só “Levantado do Chão”
ajudará a redescobrir. A partir daqui é uma torrente fantástica.
É Saramago revelado aos portugueses e ao mundo.
Até que “O Ano da Morte de Ricardo Reis” traz a Lisboa uma jornalista
do El País, fascinada com o livro — Pilar del Rio, sevilhana de olhar
brilhante a entrar no mundo de José Saramago. Ela a perguntar, ele a
responder. Ele, alto, seco, austero, uma linha fina no lugar do sorriso,
iluminado por uma andaluza que toda a gente (mas toda a gente)
descreve como encantadora. Casam-se a 29 de Outubro de 1988, vai

28
Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

fazer agora dez anos e ficam a viver no apartamento de Saramago,


na Rua dos Ferreiros, à Estrela, não muito longe da Madragoa onde o
escritor morou muitos tempo.
E então partem para uma ilha atlântica, Lanzarote, uma paisagem lunar
de vulcões e crateras onde erguem uma casa, com cães, marmeleiros e
pereiras — um lugar mais perto da felicidade. José Saramago tem 70 anos,
Pilar 40 e poucos.
É aqui que o escritor, agora traduzido um pouco por todo o mundo,
começará a anotar os dias, para não perder o fio ao tempo. Os dias
deste tempo em que Gorbatchov come pizza na televisão e Diana e Dodi
morrem a fugir de carro (“Cadernos de Lanzarote vol. V”), e os dias da
consagração, das inúmeras viagens, dos colóquios, das entrevistas, dos
prémios — tantos, cada vez mais, nacionais e estrangeiros, depois do
tardio Grande Prémio da APE ter compensado a fúria moralizadora de
um tal Sousa Lara. Ainda viria o Camões e agora o Nobel. Nunca mais, em
Outubro, José Saramago terá de dizer que suspirou de alívio — como disse
o ano passado, quando Dario Fo ganhou.
O Nobel ganhou um homem com apelido de planta (“crucífera
e rasteira, que é comestível e cresce sem cultura”, na definição do
dicionário de Língua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo). A planta
que os pobres da Azinhaga comiam para espantar a fome.

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

As polémicas de Saramago

Helena Pereira e São José Almeida 9 de Outubro de 1998

Diário de Notícias, 1975

M
ilitante comunista desde 1969, José Saramago deixa de assumir
uma posição discreta quando é nomeado director-adjunto do
“Diário de Notícias” em 10 de Abril. Ao lado do director, Luís de
Barros, torna-se, então, o defensor do “verdadeiro socialismo”,
contra a “democracia burguesa” e os “salazaristas do CDS”.
Durante o “Verão quente”, o jornal transforma-se em palco de
saneamentos por motivos puramente políticos. Muitos jornalistas
queixam-se de serem obrigados a relatar tudo o que se passava com o PCP
e outras forças progressistas e que os artigos são passados a pente fino.
As repreensões verbais sucediam-se. O processo ficou conhecido
pelo “Manifesto dos 24”, quando um conjunto de jornalistas resolveu
organizar-se para denunciar o clima interno. Vinte e duas pessoas foram
afastadas sem indemnizações.
Em 1991, Saramago ripostava, a esse respeito: “O jornal tinha uma certa
linha e não podia transformar-se numa espécie de tribuna onde toda a
gente poderia dizer do jornal aquilo que quisesse.”

30
Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Em Novembro de 1975, a livraria do “Diário de Notícias” no Chiado é


destruída por uma bomba. Uma semana depois, dá-se o 25 de Novembro,
e Saramago, Luís de Barros e um conjunto de jornalistas alinhados com as
suas posições são afastados, por sua vez, do jornal.

PCP, 1989

E
m Dezembro de 1989, Jorge Sampaio, então líder do PS, era eleito
presidente da Câmara de Lisboa à frente de uma histórica coligação
entre o PS e o PCP. Ao seu lado, como presidente da Assembleia
Municipal, foi eleito o escritor e militante comunista José Saramago.
A cadeira do poder foi ocupada por brevíssimo tempo. É que Saramago
estava empenhado na contestação que era então feita à orientação
política imprimida ao PCP pela direcção dos comunistas portugueses.
Face ao clima de críticas e acusações mútuas entre contestatários e
direcção, Saramago bateu com a porta.
Recordemos: alguns militantes comunistas tinham-se organizado numa
associação política, o INES. Saramago não fazia parte, mas estava do
mesmo lado da barricada. O clima de confrontação aumentava. Cunhal
aparece no 69º aniversário do PCP, em 6 de Março de 1990, para apontar
o dedo aos militantes que faziam críticas. Por esses dias no “Avante!” sai
um artigo assinado pelo então membro da comissão política Jorge Araújo,
em que este aponta ponto por ponto os “pecados” do INES. Saramago
pede um encontro com Álvaro Cunhal. Conversam durante algumas
horas. E cada um ficou com a sua razão. Só que Saramago abandonou os
Paços do Concelho de Lisboa.
As divergências ideológicas entre o escritor e e a liderança de Cunhal
mantiveram-se, mas Saramago fez questão de nunca abandonar o PCP.
Nem de deixar de acreditar que é possível ser comunista hoje.

31
Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Sousa Lara, 1992

E
m Abril de 1992 os papéis invertem-se. O PÚBLICO descobre que o
nome de José Saramago foi retirado da lista de candidatos ao Prémio
Literário Europeu. O então subsecretário de Estado da Cultura,
Sousa Lara, resolve substituir o “Evangelho Segundo Jesus Cristo”
por um romance de Agustina Bessa-Luís. Motivo: o romance de Saramago
“ataca princípios que têm a ver com o património religioso dos cristãos e,
longe de unir os portugueses, desunia-os naquilo que é o seu património
espiritual”. Saramago comenta: “É o regresso à Inquisição.” Depois de
um aceso debate sobre a cultura em Portugal, o Governo do PSD acaba
por repor o livro na lista de candidatos. Mal toma conhecimento disso,
Saramago escreve ao presidente do júri internacional do Prémio Literário
Europeu a pedir que não tome em consideração o “Evangelho...”. Explica
que essa é a única maneira de “denunciar e combater as arbitrariedades
e os abusos de poder verificados”. Ontem, em reacção ao Prémio Nobel
atribuído a Saramago, Sousa Lara reiterava (ver Reacções): “Aquilo que
fiz fiz convicto de que estava a fazer o que devia. Fá-lo-ia na mesma, se na
altura soubesse que o senhor José Saramago iria receber o Prémio Nobel.”

Mafra, 1993

J
osé Saramago tornou célebre a vila de Mafra com o livro
“Memorial do Convento”, mas aquele concelho recusa-se a
distinguir o escritor. Propostas não faltam, mas esbarraram
sempre com a maioria social-democrata de Mafra. Em Abril
de 1993, a CDU apresentou na Assembleia Municipal uma proposta
para a atribuição da Medalha de Ouro do concelho a José Saramago.
Os socialistas concordaram, mas o PSD fez vinca-pé. Até hoje. As
reservas dos representantes sociais-democratas são claras: trata-se

32
Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

de um escritor comunista. A Escola Secundária de Mafra, por sua vez,


espera há alguns anos autorização para adoptar o nome do escritor.
O pedido seguiu recentemente para o Ministério da Educação. No
entanto, a autarquia, que segundo a lei deve ser consultada, deu um
parecer negativo, após um longo período de silêncio. Nesse mesmo ano,
Saramago fixa residência na ilha de Lanzarote, em Espanha.

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Com um punhado de canções

Nuno Pacheco 9 de Outubro de 1998

P
aralelamente à sua produção literária, José Saramago escreveu
também letras para canções. Não foram muitas e circunscreveram-
se praticamente à década de sessenta. O cantor/compositor Luís
Cília foi quem mais o cantou. Na trilogia “La Poésie Portugaise de
Nos Jours et de Toujours”, editada em França, quando Cília se encontrava
no exílio, musicou e gravou seis poemas de Saramago: “Dia não” e
“Contracanto” (vol. 1, 1967); “Há-de haver” e “Não me peçam razões” (vol.
2, 1969); e “Poema à boca fechada” e “Venham leis” (vol. 3, 1971). “Dia não”
foi também gravado por Manuel Freire no álbum “De Volta” (1978), com
arranjos e direcção musical de Luís Cília. Mais tarde, Saramago escreveu
“Tríptico de D. João”, a que Fernando Lopes-Graça viria a dar forma
musical, em 1990, numa obra homónima para barítono e piano.
O título de um dos livros de Saramago, precisamente aquele que
o lançou, “Levantado do Chão”, inspirou ainda o cantor/compositor
brasileiro Chico Buarque que, a partir dele, compôs uma canção para o
movimento dos Sem-Terra no Brasil intitulada precisamente “Levantados
do chão” (o próprio Saramago associou-se à campanha em 1997,
escrevendo o prefácio do livro “Terra”, do fotógrafo Sebastião Salgado).
O tema, que integrou o mini-CD “Terra” (no Brasil acompanhava o livro

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

de Salgado, em Portugal foi vendido à parte) tinha música de Milton


Nascimento — que, nesse mesmo ano, o incluiu também no seu álbum
“Nascimento” — e o refrão rezava assim: “Como então? Desgarrados da
terra?/ Como assim? Levantados do chão?/ Como embaixo dos pés uma
terra/ como água escorrendo da mão.”

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

A mão esquerda de Deus...

Eduardo Lourenço* 9 de Outubro de 1998

D
as histórias bíblicas, a de José é a mais romanesca. Thomas Mann
retomou-a por sua conta. E Deus, mesmo só com uma mão, tirou
da sua Internet infinita com “todos os nomes” o do autor do
“Memorial” para lhe oferecer um conto mais fantástico que o do
Livro Santo. Pela mesma ocasião, curou aquilo que José Régio e todos
nós portugueses temos vivido como “a chaga do lado” da nossa pouca
visibilidade no mundo.
O merecido sucesso de José Saramago coroa um destino de escritor
que deve tudo à violência da sua vontade de escalar os céus, sem
pressa, dando tempo ao tempo. José Saramago pertence à linhagem
mais rara dos que se julgam, dos que escrevem depois de ter vivido.
E à mais rara ainda, sobretudo na nossa tradição, de não ceder à
natural tentação de se vingar da vida, do mundo, da História, glosando
compulsivamente a sua experiência subjectiva e fazendo girar o
mundo à sua volta. Isso não o coloca fora de uma mais arcaica tradição
nacional: a do alegorismo que é sempre espelho de uma verdade
já revelada. No horizonte da sua ficção há essa íntima convicção de
uma verdade de rosto exclusivamente humano que lhe servirá para
invocar, por contraste, a inumanidade ofuscante que caracteriza o

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

tempo da cegueira que nos coube. E lhe coube. Salvou-o da hagiografia


e do dogmatismo um miraculoso dom de ironia e uma quase mais
inexplicável candura ou simplicidade diante da vida quando a vontade
de poderio e o cego arbítrio as não desvirtuam.
De hoje em diante haverá um “mito Saramago”, como existe em torno
de Fernando Pessoa, que, como todos os mitos, não tem tanto a ver
com o valor das respectivas obras mas com o vazio que vêm preencher
no nosso imaginário nacional, em busca do reconhecimento universal.
Toda a nossa cultura beneficiará dessa aura que podia ter recaído sobre
outros mas lhe coube e assenta como um diadema invisível ao autor no
“Todos os Nomes”, a mais bela e profunda das suas alegorias. A alegoria
do nome comum que os deuses, como quem joga, extraíram do lote
dos possíveis para lhe conferir — porque o seu nome é a sua obra — um
nome próprio de aqui em diante se tornará no nome colectivo da nossa
literatura, que, mesmo ignorada — e não tanto como isso -, sempre
esteve vocacionada para uma visibilidade universal.
O mais alto dos prémios não pode inventar o que não existe. Dá-o a
ver e proporciona-nos a alegria de nos rever nele como portugueses.
Mais nada se lhe pode pedir.

* ensaista, Vence, 8 de Outubro de 1998

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Luz e cegueira

Óscar Lopes* 9 de Outubro de 1998

Q
uando, em 1980, me pediram um artigo sobre “Levantado do Chão”,
mal pude conter a surpresa de encontrar um grande escritor no
autor de poemas ou contos de gosto ironicamente neoclássico, ou
francamente barroco, que a mesquinha intriga obrigara a deixar o
jornalismo pela profissionalização literária.
É que esse romance de gente alentejana tão imaginativo na percepção de
três gerações acossadas pela desgraça — e focadas, pode dizer-se, em três
estilos diferentes, a uma luz variável de proximidade afectiva e física — era
já uma obra para ler, reler e ficar, na escolha definitiva e, todavia, sempre
variável de impressões a que apetece de vez em quando regressar, para
descobrir novos ângulos de visão.
Depois veio “Memorial do Convento”, que o lança para a grande escala de
leitura e apreciação. Era, pode dizer-se, ainda o neo-realismo, em posição
retrospectiva, a duzentos e tal anos de distância. E permeado de uma lição
que revia uma época e a sua cultura para outra visão que permitia sentir
as diversas linhas ideológicas em conflito, e desse modo actualizar a sua
notação rigorosa e contemporânea — como se o mito da passarola do padre
Bartolomeu de Gusmão e a inquisição se traduzissem para a época em que
vivemos e vibrássemos por novos e então inconcebíveis ideais.
Depois, com “O Ano da Morte de Ricardo Reis” avulta simultaneamente
o ano da revolta dos vasos de guerra e um problema incluso, que o

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

transforma: em que sentido existiu Ricardo Reis? Em que sentido o


imaginário pode comungar da nossa realidade, mais do que isso, pode
transformá-la numa estocada certeira ao coração?
Estávamos perante um escritor que se refundia a partir da própria
realidade desvendada no seu íntimo. Neste livro, Fernando Pessoa renasce
no mais enigmático dos seus heterónimos, e obriga-nos a pensar a nossa
própria época — e não já a de Pessoa.
A partir daí desenham-se as novas e imprevistas dimensões de um escritor.
Em “A Jangada de Pedra” é a Península Ibérica que se desagarra da visão
comum, e se desloca, Atlântico fora, a impor a revisão histórica de toda
a epopeia peninsular. Em “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, a religião
oficial serve de base a todo um libelo contra a dogmatização do poder
político que nos faz ver a verdade sanguinolenta da luta de massas nas suas
versões ocidentais de há vinte séculos daquela mentira em que a tragédia
comum se carnavalizava.
É da maior importância não esquecer no Saramago romancista o
Saramago dramaturgo de três admiráveis peças, de que apenas recordarei
“In Moine Dei”, texto de ópera pedida a Saramago para uma finalidade
comemorativa e cujo mérito os portugueses não conhecem — porque nunca
viram a ópera. Está aí uma das lições mais transparentes de um escritor
que não se deixa cair na simples propaganda e aprende, para sempre, uma
verdade que nos deslumbra de evidência, com o desmascaramento total
de grande mentira e das mentiras menores que a luta por vezes impôs aos
protagonistas da verdade.
E ficamos como o protagonista de “Ensaio sobre a Cegueira”, com o
calçado e a roupa todos sujos, impregnados do fedor dos subterrâneos
onde, mal se sabe porquê, estivemos encerrados à espera, finalmente, de
ver a luz.

* ensaísta, co-responsável, com António José Saraiva,


pela “História da Literatura Portuguesa”

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

A sorte grande

Alexandre Pinheiro Torres* 9 de Outubro de 1998

E
m algumas terras do país, foi costume dizer por aqueles intelectuais de
café, aquém eu chamam escritores camarários, que José Saramago nem
sabia pôr as vírgulas. Ou que elas faltariam. Que melhor escritor que ele
seria outro ou aqueloutro pela pose do cachimbo ou a falta do cabelo.
Aos longo dos tempos alvitraram-se candidaturas desde um António
Correia de Oliveira até ao Teixeiras de Pascoaes cujo dossier foi chumbado
pela Academia das Ciências. Agora mais recentemente foi a plétora. Todos
os escritores o mereciam. Era uma sorte grande geral. Só que essa grande
sorte geral calhou a José Saramago. E encheu-me da mais inteira alegria
porque foi ele, afinal, quem escreveu o “Levantado do Chão”, “O Ano da
Morte de Ricardo Reis” como o “Ensaio sobre a Cegueira” obra que, a meu
ver ( e já o disse em público e em privado) supera “A Peste”, de Camus.
Há uma frase dele — creio que em “A Jangada de Pedra” — onde alguém,
diz que com o homem começa o que não é visível. Quem o diz é, evidente,
é o próprio Saramago. Quem diz seja o que for num romance é sempre
o próprio Autor, desmultiplicado nessa caixa de engrenagens que são
as personagens, pontos de vista, intrigas, etc., Estudem-se as teorias
da literatura que se quiserem. Quem manda é o Autor que tudo urde,
planeia, rindo-se de teorias.

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Saramago é um dos raríssimos escritores europeus que proclama


nas entrelinhas que quem manda é só ele — seja quais forem as ilhas da
história. E mais nos diz que quem não tem história, real ou imaginária,
escusa de gastar papel.
Com a vitória de Saramago temos um novo triunfo da solução
referencial no romance. Romance, sem vírgula. Mas nos conte como o
mundo é, ou foi, ou é provável que venha a ser.
Até por isto, o Prémio Nobel para José Saramago prova por que
caminhos a literatura romanesca deve seguir. Porque o Mundo é o caos
que se sabe, em justiça e até aquilo que na Inglaterra já se chama o
“capitalismo dos banditos”.
A literatura ou tem uma ética ou não tem nada. Porque o homem
moderno é cego surdo e mudo perante a História e não percebe que
é necessário que se esfregue os olhos, se deixe cair as escamas e se
comece a ver.

*romancista

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Álvaro Cunhal sobre o seu camarada José Saramago

”Muito original e não me


parece fácil de imitar”

“A obra de Saramago não se insere numa tendência realista, designadamente do neo-realismo,


nem dele se aproxima”

António Melo 9 de Outubro de 1998

S
ão os três companheiros de partido há dezenas de anos. Álvaro
Cunhal foi secretário-geral do PCP e a sua figura ainda se projecta
dentro do partido. Saramago é, desde ontem, um “Nobel da
Literatura”. Óscar Lopes é o incontornável historiador da literatura
portuguesa. Mas em muitas aspectos as suas opiniões divergem. Óscar
Lopes não teria “nobelizado” Saramago. Cunhal não partilha da opinião
de Óscar Lopes e di-lo nesta entrevista ao PÚBLICO.

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

PÚBLICO — Está de acordo com a entrega do prémio Nobel da


Literatura a José Saramago?
Álvaro Cunhal — Em relação ao prémio é uma grande alegria, não
só para mim como para todos os portugueses que sentem alegria pelo
reconhecimento mundial de um grande escritor português. E, também,
de toda a literatura portuguesa, nem sempre reconhecida em toda a sua
variedade e na sua história.
P. — Mas discorda dos critérios que levaram a Academia de Estocolmo
atribuir este prémio?
R. — É necessário rectificar a informação que inicialmente circulou
a esse respeito, que o próprio documento oficial da Academia sueca
esclarece. Nas primeiras notícias dizia-se que a “criatividade de Saramago
conduzia a uma realidade virtual” e até à “irrealidade” e fora isso que
levara à atribuição do prémio. Não é isso que diz a tradução oficial do
comunicado da Academia sueca. Diz é “que, com parábolas portadoras
de imaginação, compaixão e ironia torna constantemente compreensível
uma realidade fugidia”. O que é completamente diferente da primeira
versão e me levou a discordar publicamente dela.
P. — E sobre a obra premiada qual é a sua opinião?
R. — No que considero os marcos fundamentais, e em poucas palavras,
vemos que, no que respeita à história, há na obra de Saramago dois livros
que, sendo de ficção, de imaginação, de sonho, têm uma reflexão muito
interessante relativamente à história portuguesa, que são o “Memorial do
Convento” e “O Cerco de Lisboa”, ou seja, duas obras que nos obrigam a
reflectir sobre aspectos muito interessantes da história.
Um outro aspecto é em relação à época de vida de Saramago e de todos
nós: a Revolução de Abril. Lê-se em “Levantado do Chão”, onde se fala
sobre a reforma agrária e as transformações democráticas.
Temos a criatividade artística, n’”O Ano da Morte de Ricardo Reis”,
onde vemos a relação do artista com a sua obra, as contradições que
pode haver entre o artista, a criatividade, a sua vida e a obra que escreve.

43
Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Esta obra é também de interpretação estética e humana, em termos de


imaginação, de sonho e ficção.
Há ainda, embora isso muitas vezes não seja considerado, a fantástica
inquietação humana, não em relação a uma visão pessimista do futuro da
humanidade, mas em termos da inquietação, da angústia que a própria
realidade actual do mundo traz à consciência do ser humano: o “Ensaio
sobre a Cegueira”. Não há dúvida que é cruel. Mas não é a crueldade do
pensamento de Saramago, mas da vida, da perspectiva que se oferece ao
ser humano no mundo contemporâneo. É essa angústia que leva a um
livro de profunda sensibilidade para a observação do que pode vir a ser,
se não se evita, a humanidade num futuro próximo.
Cito, finalmente, uma outra obra, voltada para outra realidade, tratada
por vezes de uma maneira superficial, a natureza humana. Ele escolheu
para o estudo dessa natureza, nas suas virtudes, nos seus defeitos, mas
na sua verdadeira humanidade, um terreno particularmente sensível
que foi “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”. Não há aí uma mensagem
antirreligiosa, mas de compreensão humana no tratamento de uma
situação evangélica.
Creio que isto são grandes riquezas, grandes afirmações na obra de
Saramago, voltada para a realidade, através de uma intervenção muito
criativa cheia de sonho, de imaginação e com um tratamento literário, em
termos formais e linguísticos, muito superior.
P. — Fez uma discurso de admiração à obra de Saramago, mas essa
opinião não é partilhada, por exemplo, por Óscar Lopes, que considera
que a retórica esconde uma ausência de conteúdos.
R. — Não estou de acordo [com essa apreciação]. A obra de Saramago
não se insere numa tendência realista, designadamente do neo-realismo,
nem dele se aproxima. É certo que Óscar Lopes, que referiu, não tendo
nada contra a obra [de Saramago], disse que se tivesse de escolher,
preferia outro escritor. São opiniões, que aceito, como muitas outras.
P. — Óscar Lopes cita, concretamente, Cardoso Pires...

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

R. — Exactamente. Não queria citá-lo, porque já ouvi mais nomes que


apontaram como merecedores do Nobel.
P. — Acha que o Nobel da Literatura foi bem atribuído?
R. — Sabe, hoje não queria citar nenhum outro, pois como disse, já
hoje ouvi muitas citações e até alguém que perguntado sobre o assunto
citou uma meia dúzia de nomes. Acho que é muito forte, até porque
se percebe que é para desvalorizar, no fim de contas, a atribuição do
prémio a Saramago.
Quando fiz aquela valorização estava a fazer uma interpretação da obra
de Saramago, no seu aspecto estético e no seu aspecto humano. Mas não a
fazer comparações. Estou a dizer porque é que valorizo essa obra.
P. — Como é que o escritor Álvaro Cunhal/Manuel Tiago, que tem um
outro tipo de escrita, analisa a obra de Saramago? Acha que ele pode ser
o introdutor de uma escola literária, como o fez o neo-realismo?
R. — Leio-a como lhe diz que lia. Não sou pelas escolas literárias. Em
relação ao realismo, ele não se pode dividir em velho e novo. Nunca
adoptei muito a palavra neo-realismo. É muito difícil estabelecer onde
é que começou e onde é que acabou, quem é que é ou não é realista ou
neo-realista. Basta ir ao Museu do Neo-Realismo e ver as citações que
são feitas de vários escritores para ver que alguns foram e deixaram de
ser e outros nunca foram.
Escolas é um termo que não é o melhor na literatura e, falando de
Saramago, não sei se terá continuação a maneira de ver dele, porque é
muito original e não me parece fácil imitar. Creio que sobre as obras que
referi, fazer a mesma coisa, ou seja, agarrar num tema histórico e tratá-lo
em termo de ficção, há exemplos que são verdadeiros fracassos. Não têm
a penetração nem a criatividade de observação de Saramago.
Não posso dizer, por isso, que seja este escritor que marca a partir de
agora outro tipo de literatura. Acho que há uma variedade crescente de
considerar as formas da escrita literária. Digo que Saramago é um grande
escritor, um escritor ímpar na literatura portuguesa, de grande valor

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

estético e pronuncio-me, aqui, não enquanto crítico literário, mas em


termos de análise de valor estético.
Quanto à pergunta que me é dirigida sobre o que pensa desta
maneira de escrever ficção quem também tem escrito, creio que citar
esse escritor, neste dia em que estamos a falar de Saramago, seria
completamente injustificado.

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Como são escolhidos os prémios Nobel

O secretismo
da Academia Sueca

Isabel Braga 9 de Outubro de 1998

É
numa sala dourada, à volta de uma mesa com 18 cadeiras, na
Academia Sueca, na cidade velha de Estocolmo, que se sentam os
membros do júri do Prémio Nobel da Literatura. Mas nem todos
os lugares estavam ontem preenchidos: nos últimos nove anos, a
instituição criada em 1786 foi abalada com os pedidos de demissão de
quatro dos seus membros, entre eles o escritor sueco Knutt Ahnlund, de
75 anos, que se foi embora há dois anos, em protesto contra a “miopia”
que considerava caracterizar a selecção dos laureados.
Ficaram 14, oito escritores, cinco professores e um alto funcionário,
cuja nomeação é vitalícia. E destes, poderão ter ontem faltado alguns, que
não cumpriram as suas obrigações: ler os livros dos candidatos — cerca
de 200 apresentados até Fevereiro do ano a que o prémio se refere — e
discuti-los em reuniões todas as quintas-feiras às 17 h, na Academia Sueca.
A escolha do Nobel da Literatura obedece sempre ao mesmo
processo: há uma votação final — numa quinta-feira de Outubro, qual
exactamente só se sabe dois dias antes — em que os membros do júri
escrevem num papel um nome, seleccionado de um pequeno grupo
que ficou da lista inicial de prosadores e poetas de todo o mundo
apresentados por outros prémios Nobel, academias, universidades ou

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

professores. Os papéis de voto são contados e o laureado é aquele que


obtém pelo menos metade dos votos mais um.
O que sucedeu ontem, na reunião que decidiu a escolha de José
Saramago, ninguém sabe ao certo. A verdade é que o secretário
permanente da Academia Sueca, Sture Allen, de 69 anos, surgiu, como
sempre, imperturbável às 13 h (de Estocolmo), e anunciou o vencedor.
O segredo é regra absoluta na Academia Sueca e Sture Allen não quer
falar das lutas que dividem os membros da instituição que Alfred Nobel
encarregou de premiar o mais proeminente escritor ou poeta do ano e
que reune supostamente os guardiões máximos da pureza literária.
“Tudo o que acontece aqui é secreto, por isso não posso falar de nada”,
afirmou ao jornal britânico “The Independent”.
As más línguas dizem que Sture Allen nem sequer gosta de livros.
“Não estou preparado para me definir como um amante da literatura.
Mas toda a gente sabe que não se pode ser secretário permanente se não
se gosta de livros”.
Nomes como Jorge Luís Borges, James Joyce, Marcel Proust, Franz
Kafka ou Berthold Brecht nunca receberam um Nobel. A razão disso ficará
para sempre no segredo da velha Academia Sueca. Talvez a miopia de que
falou Knutt Ahnlund seja uma explicação.

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Comunicado
da Academia Sueca

9 de Outubro de 1998

José Saramago, “que, com parábolas portadoras de imaginação,


compaixão e ironia, torna constantemente compreensível uma
realidade fugidia”

“M
anual de Pintura e Caligrafia”, que saíu em 1977, ajuda-
nos a entender o que viria a acontecer mais tarde. No fundo,
trata-se do nascimento de um artista, tanto o do pintor como
o do escritor. O livro pode, em grande parte, ser lido como
uma autobiografia mas, na sua intensidade, encerra também o tema
do amor, assuntos de natureza ética, impressões de viagens e reflexões
sobre a relação entre o indivíduo e a sociedade. A libertação alcançada
com a queda do regime salazarista transforma-se numa imagem final
portadora de abertura.
“Memorial do Convento”, de 1982, é o romance que o tornou célebre.
É um texto multifacetado e plurissignificativo que tem, ao mesmo tempo,
uma perspectiva histórica, social e individual. A inteligência e a riqueza
de imaginação aqui expressadas caracterizam, de uma maneira geral, a
obra saramaguiana. A ópera “Blimunda”, do compositor italiano Corghi,
baseia-se neste romance.

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

“O Ano da Morte de Ricardo Reis”, publicado em 1984, é um dos


pontos altos da sua produção literária. A acção passa-se formalmente
em Lisboa no ano de 1936, em plena ditadura, mas possui um ambiente
de irrealidade superiormente evocado. Este ambiente de irrealidade é
acentuado pelas repetidas visitas do falecido poeta Fernando Pessoa a
casa da personagem principal (que é extraída da produção pessoana)
e das suas conversas sobre os condicionalismos da existência humana.
Juntos deixam o Mundo após o seu último encontro.
Em “A Jangada de Pedra”, publicada em 1986, o escritor recorre a um
estratagema típico. Uma série de acontecimentos sobrenaturais culmina
na separação da Península Ibérica, que começa a vogar no Atlântico,
inicialmente em direcção aos Açores. A situação criada por Saramago dá-
lhe um sem-número de oportunidades para, no seu estilo muito pessoal,
tecer comentários sobre as grandezas e pequenezas da vida, ironizar
sobre as autoridades e os políticos e, talvez muito especialmente, com os
actores dos jogos de poder na alta política. O engenho de Saramago está
ao serviço da sabedoria.
Existem todas as razões para também mencionar “História do Cerco
de Lisboa”, de 1989, um romance sobre um romance. A história nasce da
obstinação de um revisor ao acrescentar um não, um estratagema que dá
ao acontecimento histórico um percurso diferente e, ao mesmo tempo,
oferece ao autor um campo livre à sua grande imaginação e alegria
narrativa, sem o impedir de ir ao fundo das questões.
“O Evangelho segundo Jesus Cristo”, de 1991, romance sobre a vida
de Jesus, encerra, na sua franqueza, reflexões merecedoras de atenção
sobre grandes questões. Deus e o Diabo negoceiam sobre o Mal. Jesus
contesta o seu papel e desafia Deus.
Um dos romances destes últimos anos aumenta consideravelmente
a estatura literária de Saramago. É publicado em 1995 e tem como
título “Ensaio sobre a Cegueira”. O autor omnisciente leva-nos numa
horrenda viagem através da interface que é formada pelas percepções

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

do ser humano e pelas camadas espirituais da civilização. A riqueza


efabulatória, excentricidades e agudeza de espírito encontram a sua
expressão máxima, de uma forma absurda, nesta obra cativante.
“Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso
que estamos cegos, Cegos que vêem, cegos que, vendo, não vêem.”
O último dos seus romances, “Todos os Nomes”, sairá este Outono,
em tradução sueca. Trata-se de uma história sobre um pequeno
funcionário público da Conservatória dos Registos Centrais de
dimensões quase metafísicas. Ele fica obcecado por um dos nomes e
segue a sua pista até ao seu trágico final.
A arte romanesca multifacetada e obstinadamente criada por Saramago
confere-lhe um alto estatuto. Em toda a sua independência, Saramago
invoca a tradição que, de algum modo, no contexto actual, pode ser
classificada de radical. A sua obra literária apresenta-se como uma série
de projectos onde um, mais ou menos, desaprova o outro mas onde todos
representam novas tentativas de se aproximarem da realidade fugidia.

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Reacções

9 de Outubro de 1998

Almeida Santos*
“Sinto orgulho em ser português. Tenho uma grande admiração pelo
José Saramago como escritor e sobretudo tenho uma grande admiração
pela literatura portuguesa, que hoje vê reconhecido o seu mérito
internacional. Tivemos sempre grandes escritores. A língua portuguesa
precisava deste certificado de mérito e de maturidade. Finalmente foi
José Saramago que nos deu essa grande alegria. Estou muito feliz, felicito
José Saramago e felicito Portugal.”
*presidente da Assembleia da República

António Guterres*
“Quero felicitar vivamente José Saramago e com ele todos os escritores
portugueses. Já há muito tempo que a literatura portuguesa merecia
esta distinção, que é para nós um motivo de profundo orgulho. É um
testemunho do reconhecimento internacional do papel que Portugal
tem na construção do mundo moderno. Um papel em que a literatura
portuguesa sempre se afirmou, com uma enorme pujança.”
*primeiro-ministro

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

António Mega Ferreira*


“É uma enorme alegria, um grande entusiasmo. É uma grande
consagração da literatura e da língua portuguesa, sem dúvida. Mas
convém não esquecer que este prémio é sobretudo de José Saramago.
Estamos todos alegres, todos felizes, é todo um povo que se orgulha e
fica satisfeito, mas é um prémio do José Saramago. É um prémio dado à
qualidade literária de um grande, grande escritor. Ainda por cima uma
pessoa que, em si mesma, é incómoda em algumas das suas atitudes — o
que, do meu ponto de vista, torna o prémio ainda mais interessante.”
*presidente da administração da Parque Expo Serviços

D. António Rafael*
“José Saramago é uma alma inquieta, de quem espero ainda mais na
sua caminhada em busca da verdade. Estou contente, mas preferia
que o distinguido tivesse sido Miguel Torga. Nunca li qualquer livro
de Saramago, mas fiquei chocado com a forma como tratou a religião
católica em ‘O Evangelho segundo Jesus Cristo”. É um problema sério de
José Saramago. Mas registei com agrado uma expressão recentemente
proferida por Saramago, quando afirmou que gostaria de ter fé.”
*bispo de Bragança

António Sousa Lara*


“Não fiquei surpreendido. Obviamente José Saramago é um vencedor,
criou o seu público, criou uma imagem, enfim, é um homem de vitória,
portanto tem que ter mérito. E depois tem também um bom `lobby’, não
brinquemos na forma. Viu-se no episódio de que eu fui protagonista o
que foi o `lobby’ poderoso de José Saramago, em termos internacionais.
Mesmo os jornais de direita de vários países do mundo que têm páginas
literárias fizeram campanha por ele. Não revejo a minha posição em
relação a “O Evangelho segundo Jesus Cristo” [que Sousa Lara, como
subsecretário de Estado da Cultura, retirou do concurso para o Prémio

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Literário Europeu em 1991]. Mas, como cidadão, educado no tempo em


que se cultivava o patriotismo, regozijo-me por um português e Portugal
terem recebido o Prémio Nobel.”
*antigo subsecretário de Estado da Cultura

Baptista-Bastos*
“É mais do que justa a atribuição do Nobel a Saramago, que começou
a ser um grande escritor quando era jornalista e escreveu crónicas
absolutamente admiráveis nas páginas do ‘Jornal do Fundão’, ‘A Capital’ e
‘Diário de Notícias’. Recuperando uma tradição do jornalismo português,
fez intrusão na literatura. Todos os grandes escritores portugueses
tiveram relações privilegiadas com a imprensa. José Saramago escreve
num território idiomático admirável porque é rigorosamente português.
Honra a literatura e o país que com frequência o hostilizou.”
*jornalista e escritor

Carlos Carvalhas*
“É com grande alegria e emoção que, e meu nome e em nome do nosso
partido, te envio um grande abraço de parabéns. Hoje é um grande dia
para Portugal, para a literatura, a cultura e a língua portuguesas e para os
valores e ideais que sempre defendeste. É também um grande dia para os
militantes do PCP e para todos os ‘levantados do chão’.”
*secretário-geral do PCP

Carlos Reis*
“Foi com grande emoção que recebi a notícia de que Saramago tinha
ganho o Nobel. Foi uma emoção esperada, porque há muito que
ele merecia esta distinção e há muito mais tempo que a literatura
portuguesa a merecia. Representa também a distinção de um
escritor que soube aprender a ser um grande escritor, que renova
constantemente os temas e a linguagem narrativa e dá uma grande lição

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

de inconformismo. Tem revelado uma extraordinária capacidade para


problematizar e repensar a literatura.”
*director da Biblioteca Nacional

Czeslaw Milosz*
“Não suporto a escrita de José Saramago. É uma escrita da moda, cheia de
humor mas de um humor baixo. Não suporto essa escrita.”
*poeta polaco, Nobel da Literatura de 1980

Darcísio Padilha*
“Foi com grande júbilo que recebi a notícia. A obra de José Saramago,
bastante conhecida do público brasileiro, revela marcante originalidade
no tocante ao estilo e no relativo à penetração na densidade do mistério
existencial. Se os portugueses descobriram o Brasil, está na hora de nós,
brasileiros, volvermos nossas vistas para a originalidade do génio literário
português, adentrando-nos na floresta rica e trágica de José Saramago.”
*presidente da Academia Brasileira de Letras

Dario Fo*
“É uma honra ter recebido o mesmo prémio que José Saramago. Gostaria
de felicitá-lo pessoalmente. Encontrei-o o ano passado na Feira de
Frankfurt e considero-o uma pessoa admirável.”
*Nobel da Literatura de 1998

D. Duarte Pio*
“José Saramago é um autor de leitura difícil e muito pesada, que insulta
abertamente os sentimentos cristãos. O Nobel podia ter sido melhor
entregue. Duvido que os membros do júri tenham lido os seus livros.
O Nobel é, no entanto, uma honra para a língua portuguesa.”
*pretendente à coroa portuguesa

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Eugénio de Andrade*
“Estou muito contente por o Nobel ter sido concedido a um escritor
português. Mas o meu candidato seria um poeta e não um prosador,
pois penso que a poesia é a expressão do génio português.”
*poeta

D. Januário Torgal Ferreira*


“Lá por não partilhar das suas ideologias, não podemos condenar um
escritor, ou dizer que não merece um prémio. A arte é perfeitamente
autónoma. Quanto a Saramago, posso até discordar da informação
romanesca, posso discordar da construção frásica. Pessoalmente, não
me agrada um certo tipo de escrita demasiadamente pós-moderno
para o meu gosto. Era capaz de cair muito mais, do ponto de vista
literário, para os braços de Miguel Torga, Sophia de Mello Breyner ou
Jorge Amado. Mas é indiscutível que tudo isso nos deve honrar, como
expressões artísticas e estéticas de Portugal.”
*secretário da Conferência Episcopal

Jorge Amado e Zélia Gattai*


“O Prémio Nobel foi atribuído a um dos mais expressivos escritores
contemporâneos. A notícia causou-nos grande satisfação, pois José
Saramago é um dos escritores que mais o merece. O Nobel faz finalmente
justiça à língua portuguesa. Ficamos duplamente felizes porque foi
concedido a um grande e querido amigo.”
*escritores brasileiros

Jorge Sampaio*
“Saúdo fraternalmente José Saramago, como homem e como escritor.
Como homem, pela sua capacidade de intervenção e de testemunho, da
qual sempre deu provas ao longo da vida — tenha-se ou não concordado

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

com ele em vários momentos. Como escritor, porque os temas que


aborda, as interrogações que formula e as respostas que procura dar
têm uma dimensão de facto mundial e global e, finalmente, porque é a
consagração do português.”
*Presidente da República

José Aparecido de Oliveira*


“Recebi com grande emoção a notícia. Esta escolha faz justiça a um
dos maiores escritores de língua portuguesa de todos os tempos. Sei
que Jorge Amado — outro nome sempre lembrado para o Nobel —
também deve estar exultante, pois é uma distinção que envolve todos os
escritores do nosso idioma.”
*Ex-embaixador do Brasil em Portugal

José Eduardo Agualusa*


“É extremamente bom o facto de José Saramago ter ganho o prémio
Nobel da Literatura. É um prémio para a Língua Portuguesa, porque de
certeza que vai chamar a atenção para os outros escritores lusófonos.
É um prémio bem merecido, apesar de poder também ser atribuído a
outros nome como João de Melo Neto, Jorge Amado ou mesmo António
Lobo Antunes. É muito conhecido e respeitado no Brasil. No Brasil não
foi uma grande novidade, porque nos últimos dias tem sido alvo de
destaque na imprensa.”
*escritor angolano

José Manuel Mendes*


“É um momento de profunda alegria para os leitores e amigos do escritor
e sobretudo para a literatura portuguesa. A APE, que foi proponente da
candidatura de José Saramago ao Nobel, não pode deixar de exprimir
todo o seu júbilo. Felicitamos afectuosamente o grande escritor que
o Mundo já reconhecera e consagrara e saudamos o conjunto dos

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

autores que foi considerado pelo Comité de Estocolmo. Uns e outros são
significativos criadores deste universo intraficável que é a escrita nas suas
dimensões mais inventivas e renovadoras.”
*presidente da Associação Portuguesa de Escritores (APE)

Isabel Pires de Lima*


“Saramago ganhou um prémio porque conseguiu conjugar de modo
excepcional problemáticas nacionais com questões universais,
construindo alegorias, arquétipos e mitos que ultrapassam fronteiras.
E fê-lo de modo novo, através de um trabalho de linguagem e de
construção narrativa, extremamente inovador, que exige do leitor
o constante salto do real para o fantástico, do conhecido para o
sobrenatural, do prosaico para o insólito, e confronta-o com a
multiplicidade contraditória da realidade humana, num clima de
plenitude alegórica, de busca moderna e de oscilação ontológica pós-
moderna. Saramago ganhou porque é um escritor “jovem”. Os dois seus
últimos romances são a prova disso: revelam momentos de viragem na
sua obra, indiciando que Saramago, no seu percurso de escritor recusa o
imoblismo, viaja de modo idêntico às suas personagens.”
*professora da Faculdade de Letras do Porto

Lídia Jorge*
“É uma extraordinária alegria. Ganha uma obra profunda, grande, de uma
amplitude não só portuguesa mas também universal. Escritores que aqui
estavam [em Frankfurt] abraçaram-se todos como se fosse uma alegria que
lhes cabe a cada um. Ao ganhar Saramago, ganha a literatura portuguesa.”
*escritora

Luciana Stegagno Picchio*


“Este é o prémio mais justo dos últimos 15 anos. Durante todos os anos
em que foi atribuído o Nobel, nunca tinha sido reconhecido este bloco

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

linguístico de mais de 200 milhões de pessoas. Estávamos à espera há


muito tempo desta notícia, com aquela angústia de quem não vê chegar as
malas no aeroporto. Desta vez chegou. É justo. Saramago merece o Nobel.”
*especialista italiana em literatura portuguesa

Manuel Alegre*
“Recebi a notícia com alegria e com satisfação. É um dia grande para
Portugal e para a literatura portuguesa. Custou, mas foi. Há muito que a
literatura de língua portuguesa merecia um Prémio Nobel, foi Saramago
que o ganhou. É um acto de justiça em relação à nossa literatura e em
relação à sua obra, porque Saramago é um grande escritor.”
*poeta e deputado pelo PS

Manuel Maria Carrilho*


“A vitória de Saramago é a consagração de uma obra original, que
dignifica a cultura e a literatura portuguesa. Este prémio é a consagração
de um autor, um trajecto e uma capacidade criadora singular, mas
também da cultura e dos valores portugueses. É também um prémio
para a cultura portuguesa, que nos últimos anos tem deixado uma
marca no mundo.”
*ministro da Cultura

Manuel Monteiro*
“Estou muito satisfeito com a atribuição do Nobel a Saramago, embora
não seja um admirador do seu estilo. Como português fico sempre
satisfeito quando um compatriota é galardoado ao mais alto nível. Mas,
para que não haja nenhuma hipocrisia, devo acrescentar que ficar
contente não é propriamente apreciar Saramago. Quando as pessoas são
galardoadas, é fácil batermos todos palmas e esquecermos as críticas que
fizemos em relação a essas pessoas no passado.”
*antigo presidente do PP

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Marcelo Rebelo de Sousa*


“Recebi a notícia com enorme satisfação, porque é realmente muito
prestigiante para Portugal e para a literatura portuguesa. Mas sobretudo
é justíssimo para Saramago, que tem uma produção literária riquíssima,
muito diversificada há muitos, muitos anos, e de excepcional qualidade.
E uma grande honra para todos os portugueses e é uma grande justiça
para Saramago.”
*presidente do PSD

Maria Alzira Seixo*


“Estou muito feliz por dois motivos: ele merece amplamente o prémio
pela dimensão da sua obra e pelo trabalho consciente de escritor. 1. É
um escritor notável. 2. É porque a atribuição deste galardão consagra
definitivamente a nossa literatura no plano internacional e faz do dia de
hoje um grande dia de festa. Para todos nós, em Portugal.”
*professora da Faculdade de Letras de Lisboa, autora de “Essencial sobre José
Saramago”, ed., Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

Maria Teresa Horta*


“Estou contente pela literatura portuguesa, mas tenho muita pena que
se continue a esquecer as mulheres. Existem escritoras em Portugal com
melhores obras, que não foram indigitadas, como Maria Velho da Costa,
Sophia de Mello Breyner Andresen e Agustina Bessa-Luís. Toda a gente
sabe que não são os melhores autores que ganham o Nobel: por exemplo,
Marguerite Yourcenar e Marguerite Duras morreram sem o Nobel.”
*escritora

Mário Soares*
“Até que enfim! Até que enfim que temos um Nobel para a literatura de
expressão portuguesa! Foi um acto de justiça, porque a nossa literatura
tem uma grande qualidade, tal como a literatura africana e brasileira de

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

expressão portuguesa tem grande qualidade. Mas Saramago é, realmente,


um escritor universal. Não nos podemos esquecer que Saramago é hoje o
escritor [português] mais lido e mais conhecido em todo o mundo.”
*ex-Presidente da República

Mia Couto*
“É um prémio para toda a literatura portuguesa. Estou muito contente
que o prémio tenha sido atribuído a um amigo de Moçambique, país
que várias vezes visitou e noutras ocasiões combateu pela divulgação da
literatura moçambicana.”
*escritor moçambicano

Miguel Sousa Tavares*


“Penso que o Nobel é um acto de justiça à língua e à literatura
portuguesas, que chega, pelo menos, com 20 anos de atraso. Mas já
se tinha percebido que, mais ano menos ano, ele havia de chegar e
para o receber só poderiam ser Saramago ou Lobo Antunes, os melhor
divulgados e promovidos no estrangeiro. Coube a sorte a Saramago, para
quem o Nobel ainda chegou a tempo, ao contrário de outros, como Torga,
Nemésio ou Jorge de Sena. Pessoalmente, rompo o consenso nacional,
porque acho que Saramago escreve muito bem, mas não é um grande
escritor. Felizmente, o júri do Nobel não pensou o mesmo que eu.”
*jornalista

Nelson Saúte*
“É um marco para a obra da língua portuguesa. Este Prémio chega numa
altura em que seria grave que ninguém tivesse ainda ganho o Nobel da
literatura em língua portuguesa. Era bom que passasse a ser uma porta
para que a lusofonia saísse do gueto.”
*escritor moçambicano

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Rachel de Queiroz*
“Sinto-me também premiada com a atribuição do Prémio Nobel da
Literatura ao português José Saramago. É um grande escritor da nossa
língua, que admiro profundamente.”
*escritora brasileira e vencedora do Prémio Camões de 1993

Violante Saramago Matos*


“Recebi a notícia quase incrédula. Estou muito emocionada. Mas a
verdade é que a gente acaba sempre por pensar ‘talvez este ano venha a
acontecer’. Mas pela primeira vez este ano passou-me completamente a
data do Nobel da Literatura, embora soubesse que ele era efectivamente
mais uma vez candidato. Também acho que era tempo de a literatura
portuguesa ser reconhecida, porque temos efectivamente muito bons
escritores — temos e tivemos -, e já fazia falta um Nobel para a língua
portuguesa. E fico muito feliz por ter sido ele o escolhido.”
*filha de José Saramago, vereadora do PS na Câmara do Funchal

D. Ximenes Belo*
“Alegro-me e orgulho-me com a atribuição do prémio a José Saramago,
a quem endereço os meus sinceros parabéns, bem como a todo o povo
português.”
*Bispo de Díli e Nobel da Paz 1996

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Azinhaga, aldeia natal do escritor, ainda se lembra de uma guerra antiga

Os Catarinos contra os
Saramagos

A população da Azinhaga, terra onde nasceu José Saramago, não tirou ontem os olhos da televisão

José António Cerejo 9 de Outubro de 1998

F
oi há 75 anos, num dia de inverno, dia mal ou benfadado, que
começou esta história. O tempo era o da azeitona e os homens eram
quem a varejava — da oliveira para o pano da apanha e daí para o
lagar dos senhores. João Sousa, Saramago por alcunha, amigo do
seu amigo, apanhador de azeitona, achou por bem presentear o cunhado
Catarino com uma chibinha de estimação.
No meio do trabalho, contudo, o mau feitio do amigo deu para molestar

63
Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

a chibinha que fora do João. Palavra puxa palavra — “já me desta a chiba,
agora não tens nada a ver que eu lhe bata ou não” — e a guerra estalou
entre os Saramagos e os Catarinos da Azinhaga do Ribatejo.
Ao fim de duas semanas de “provocações”, no tal domingo em que
começa a história, estavam os homens no largo da aldeia, nas horas
arrastadas do contento de quem havia tomado patrão para a semana e
do desespero de quem tinha ficado sem trabalho — era assim a “praça do
pessoal” desse tempo em que os pobres “só tinham deles as estradas para
passar” — quando se levantou a zaragata. Os paus voaram sobre as cabeças
e os catarinos pegaram-se com os saramagos. Tudo por causa da chibita.
João Sousa, que vinha de uma fazenda arrendada onde estivera a
sachar morangos, ainda foi avisado: “João não vás por aí que nem pau
levas contigo.” Pouco depois, entre gritos e estalidos de paus ferrados
de junco, armas temíveis dos salteadores de estradas e dos homens
honrados da borda d’água, em frente à casa do Marquês de Rio Maior,
já a umas dezenas de metros do largo, João Sousa caiu num charco de
sangue. E o Catarino da chibita seguiu-se-lhe na infelicidade.
Levados de carroça para a Golegã, os dois cunhados tiveram sortes
distintas: João morreu horas depois e Catarino, com a atenuante de
também ter ficado gravemente ferido, acabou por passar dezoito meses
na cadeia.
No rescaldo da briga ficou uma viúva com duas crianças de colo —
Maria da Piedade e João — e duas famílias divididas por um ódio mortal.
A viúva, pobre como todos os assalariados da Azinhaga, teve de
procurar sustento em Lisboa. Maria da Piedade cresceu, fez-se costureira,
e ficou pela Parede até voltar a fixar-se na terra, aos 50 anos.
João aprendeu a encadernador e ainda está para Lisboa.
Mas este não foi o único “exílio” que marcou a década de 20 dos
Saramagos. Pouco tempo depois, também um dos irmãos de João de Sousa
resolveu fugir aos desentendimentos com os catarinos e à falta de trabalho
da lezíria. Levou um filho com perto de dois anos, o único membro da

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

família a quem o padre pôs a alcunha no nome, e marchou para a capital.


O pai chegou a sub-chefe da polícia de Segurança Pública e o filho
chegou ontem a Prémio Nobel da Literatura.
Orgulhosa, como toda a aldeia, tanto a metade comunista como a
metade socialista, a antiga costureira Maria da Piedade (Damião por parte
do marido) confirma a guerra dos catarinos contra os saramagos, relatada
ao PÚBLICO por Fernanda Pereira, uma sua parente, e acrescenta-lhe
um ponto essencial: “Por causa dessa briga é que o meu tio, o pai do José
Saramago, foi para Lisboa”.
Lá mais para trás, na genealogia do autor de Levantados do Chão,
estão os avós Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinhas, criadores de
porcos que entraram neste século sem terra própria e com os animais
a comer bolotas de sobreiros que nunca foram seus. Nas memórias
da gente da Azinhaga, onde já quase se apagou o galardão salazarista
de “aldeia mais portuguesa de Portugal”, que foi atribuída à terra nos
meados deste século, resta pouco da criança e do jovem que por ali
gozou férias de verão até quase à idade adulta. Vizinhos do Almonda,
que passa encostado ao casario, do Tejo que corre a menos de um
quilómetro, do Paúl de Boquilobo e da terra que lhe dá o nome e deu
vida ao general Humberto Delgado, que está a seis quilómetros dali, os
da Azinhaga remexem agora as suas memórias em busca do passado do
seu conterrâneo ilustre.
“Ele era danado para a brincadeira”, lembra um homem de 75 anos,
por sinal Manuel Catarino pelo baptismo. “Então não havíamos de estar
contentes?”, pergunta surpreendido perante a pergunta mais disparatada
que alguém ali podia fazer ao fim da tarde de ontem.
Senhor de memórias mais recentes é António Mendes Gomes, um
azinhaguense de meia idade que preside á Filarmónica local e já foi
presidente da Assembleia de Freguesia da aldeia. “A última vez que ele
cá veio foi por altura da Festa de Maio, aqui há três anos. Nessa altura
perguntou-me quem era o dono da casa em que nasceu e eu respondi-lhe

65
Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

que era eu. Fomos lá ver, ele reconheceu-a de quando era rapaz e pediu-
me para não mexer nela e para lhe fazer um preço. Gostava de a comprar
para um museu ou para lá ir de vez em quando.” Até hoje não voltou
a haver oportunidade de falar no assunto, mas a casa lá está à espera
de quem lá nasceu. Pobre como eram os saramagos, a meio da rua que
atravessa a terra, chegou até hoje sem uma única janela, nem à frente
nem atrás, e com a porta afundada meio metro em relação ao nível a que
agora passa a estrada.
Era aí que viviam os saramagos que não quiseram mais guerras com os
catarinos e era por este universo ribatejano de homens que “tomavam
patrão na praça do trabalho”, que passaria certamente um romance a que
o mais célebre filha da Azinhaga deu nome na década passada, mas que
nunca escreveu: “O Livro das Tentações”.

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Ensaio sobre a Cegueira”


é número um na Internet

Isabel Coutinho 9 de Outubro de 1998

“B
lindness: A Novel”, a tradução para inglês de “Ensaio sobre
a Cegueira” de José Saramago, ocupava ontem ao fim do
dia o primeiro lugar da lista de “best-sellers” “Hot 100” da
famosa livraria da Internet Amazon.com. No início do dia, já
a secção “What we are reading” (o que estamos a ler) desta livraria “on
line” destacava este livro, o último de Saramago a ser publicado nos
Estados Unidos, que era vendido com 40 por cento de desconto. “O
Prémio Nobel da Literatura foi anunciado! Citando a sua “imaginação,
compaixão e ironia”, a Academia Sueca premiou com o galardão mais
honroso da literatura contemporânea o romancista José Saramago, de
Portugal, o autor de ficções intensas, provocadoras e controversas tal
como `Blindness’, `The Gospel According to Jesus Christ’, e `The History
of the Siege of Lisbon’. Quer esteja a escrever sobre os horrores de um
imaginário epidémico ou registando a crónica ficcionada da vida de Jesus
Cristo, Saramago cria parábolas para a nossa idade moderna: uma obra
obsidiante, irónica, negra e com momentos de beleza transcendente.
Visite a nossa secção dedicada aos prémios literários”, lê-se na Amazon.
Tal como é habitual nesta livraria, colocaram no “site” o primeiro
capítulo e um resumo do livro. Têm também excertos de críticas de

67
Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Andrew Miller da “The New York Times Book Review”; de Robert Taylor
do “The Boston Globe”; de Richard Eder, do “The Los Angeles Times
Sunday Book Review” e da “Booklist”. Existem ainda duas críticas de
leitores, um deles de Oakland, na Califórnia, que diz que leu o livro em
português e que lhe lembra “A Peste” de Albert Camus. E o outro de um
leitor de Bogotá, na Colombia, Andres Garcia, que antecipava em 7 de
Agosto deste ano o Prémio Nobel: “Brilhante, um dos melhores livros da
década. Este livro é mesmo uma obra prima. Foi um grande sucesso na
Europa e na América Latina, e estou certo que o será também nos Estados
Unidos. Uma lenda sobre a vida, a dor e o espírito humano. Saramago é
um génio. Leiam-no antes que receba o Prémio Nobel”.
Outra das obras que tem vários fãs entre os habituais frequentadores da
Amazon é “The Gospel According to Jesus Christ”. Está lá uma opinião de
Gregorio Umbelino, que vive em Santarém e que recomenda a leitura do
livro dizendo: “A história já vocês conhecem, mas a versão de Saramago
é para ser recordada.” E um leitor de Chicago confessa ter lido a obra
num grupo de leitura que dirige e que todos os alunos, incluindo ele,
concordaram que o livro é um “verdadeiro tesouro”.
A morada da Amazon é www.amazon.com.

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

10 de Outubro

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Assim vai “el nuestro” Nobel

josé Saramago e a sua mulher, Pilar del Rio, ontem na conferência de imprensa em Madrid:
“Sou mais um emigrante”

Nuno Ribeiro, em Madrid 10 de Outubro de 1998

Recebeu telegramas e telefonemas, da Real Academia Espanhola


ao seu antecessor no Nobel da Literatura, Dario Fo. Chega a Lisboa
na terça-feira depois de uma passagem obrigatória por Lanzarote.
Ontem, aos jornalistas de Espanha, fez questão de sublinhar que
não é exilado mas mais um emigrante. Dos que pagam impostos.
Confrontado com as críticas que lhe foram dirigidas pelo
“L’Osservatore Romano”, o órgão oficial da Santa Sé, limitou-se a
dizer que “a Igreja tem uma capacidade especial para insultar.” As
primeiras 24 horas do laureado Saramago foram, assim, passadas
em castelhano. Com os espanhóis a ouvir “el nuestro” Nobel.

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

C
hegou de Frankfurt, desdobrou-se em entrevistas na capital
espanhola, almoçou com os seus editores de Espanha e tem
hoje pela frente um dia de múltiplos contactos. É o frenesim das
primeiras 24 horas de Prémio Nobel que, ironiza, “tal como as
misses de beleza tem a vigência de um ano”. Entre fotos e câmaras de
televisão, José Saramago adiantou, ontem, ao PÚBLICO, que “a igreja tem
uma capacidade especial para insultar”. Daí, que seja com normalidade,
que recebe as críticas do jornal oficial da Santa Sé.
“Acho a atitude do Vaticano a mais lógica, não seria aliás normal que
tivesse outra, o seu fundamentalismo não ocorre pela primeira vez, ainda
recordo o que se passou o ano passado com o Dario Fo”, diz Saramago.
Está visivelmente cansado e recorda o telefonema que recebeu, momentos
antes, do italiano, Nobel em 1997: “Queria felicitar-me e repetir, com muita
graça, o que me disse há precisamente um ano, que ia tê-lo [o Prémio
Nobel] e que a sua previsão se tinha confirmado”. É um episódio contado
no quinto volume dos “Cadernos de Lanzarote”, já no prelo: em 14 de
Outubro de 1997, na sua casa na ilha, José Saramago recebe um telefonema
rápido de Dario Fo, dizendo: “Sou um ladrão, roubei-te o prémio. Um
dia será a tua vez. Abraço-te”. Contudo, na conversa de ontem com o
dramaturgo italiano a postura da hierarquia eclesiástica voltou a ser tema:
“O Vaticano deve meter-se naquilo que lhe compete, salvar as almas que
possa, mas a Igreja tem uma capacidade especial para insultar”, sublinha.
Horas antes, numa conferência de imprensa, o discurso, menos
cansado, foi mais fluído e a mensagem ainda mais clara: “Respeito a fé
mas não a instituição, que tratem das suas orações e deixem as pessoas
em paz”. Ao fim da tarde de ontem, numa sala de conveniência “roubada”
a um dos directores da sua editora espanhola, com a serpentina do
trânsito de Madrid aos pés, Saramago já recebeu notícias de Portugal:
“Ali, mesmo dentro da Igreja, ouviram-se vozes contrárias a este tipo de
reacções”. As que são próprias aos tempos do “pensamento único” e que
o escritor antevê irá desembocar, finalmente, no “pensamento zero”.

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

“Cunhal telefonou-me para Frankfurt”

A José Saramago não o surpreende, portanto, a desfavorável opinião


religiosa sobre um tema que, em princípio, não deveria ocupar o exército
de clérigos da hierarquia. Acha, contudo, estranho que na postura oficial
o apelidem de “comunista recalcitrante”, com o adjectivo a merecer-
lhe um comentário jocoso: “Está mal utilizado, deviam ter dito que sou
coerente, não necessitei de deixar de ser comunista para ganhar o Prémio
Nobel — e esta é uma indirecta”.
Já anteriormente, com malícia, na conferência de imprensa, Saramago
assumia a sua condição ideológica: “Os erros do comunismo foram muitos,
e também os crimes, mas o Papa João Paulo II herdou a Inquisição e é Papa;
eu sou herdeiro de todos esses erros [os do comunismo], não tenho outro
remédio, mas mesmo assim penso que um dia se vai poder viver de forma
diferente no Mundo, pelo que continuarei a pensar o que penso”.
Dos seus camaradas do PCP recebeu telefonemas: “Álvaro Cunhal
telefonou-me para Frankfurt para felicitar-me, disse-me que este prémio
é um motivo de orgulho para todos nós, não apenas os comunistas,
mas para todos os portugueses”. Também Carlos Carvalhas falou com
o escritor para a Alemanha, diz ele que “com a mesma afectividade e
carinho”. A Saramago não lhe surpreendem os comentários de Cunhal
sobre a sua obra literária, do “Levantado do Chão” ao “Ensaio sobre a
Cegueira”: “Desde sempre que tem um carácter mais aberto, é um grande
leitor, e é natural que sendo quem é política e ideologicamente, o facto de
eu ter ganho o Prémio Nobel o tenha sensibilizado”.

“Pessoa merecia mil prémios Nobel”

Na terça-feira, o escritor chega a Lisboa, cinco dias depois do veredicto da


Academia Sueca. Um regresso que alguns consideram tardio, desfasado
do tempo imediato à concessão do galardão. José Saramago, contudo,

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

esclarece: “Não há nenhuma reconciliação necessária com Portugal


porque não há conflito; tive, na verdade, um conflito com o governo
que governava em 1992 e, então, pensei que naquele caso concreto e
pontual o governo se portava como nos tempos do fascismo e surgiu
a possibilidade de ir viver para outro lugar”. Saramago acentua este
caso, repete-o, quando em Espanha não poucos jornalistas quase que
o remetem para a triste condição de exilado. “Sou como muitos outros
portugueses, mais um emigrante, que paga os impostos em Portugal. Sou,
mesmo, um contribuinte ultra-líquido, até ao último tostão”, desabafara
pela manhã perante os “media” espanhóis.
“Sou português, não quero nem posso ser outra coisa, mas por
circunstâncias várias a minha Pátria cresceu, que é o que mais
podemos desejar”, acentua quando lhe lêem o telegrama da Real
Academia Espanhola que o felicita, “reconhecendo com toda a justiça a
excelência da sua obra literária que honra, simultaneamente, as letras
portugueses e a cultura ibérica”. Saramago que em Espanha é um dos
autores estrangeiros mais populares e que mais vende, é hoje o grande
protagonista de um programa de uma rádio espanhola com plateia de
portas abertas e aplauso garantido.
“Não nasci para isto”, assegurou de manhã entre correrias de
fotógrafos e a “entrada”, em sucessivos directos nos canais de televisão
de Espanha. Recordou a origem da sua família ribatejana, os Saramago
de alcunha, e sentenciou: “O facto de ser Prémio Nobel não significa que
seja o único que o merecia em Portugal; Fernando Pessoa merecia mil
prémios Nobel”.

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Vaticano hostil,
Igreja portuguesa satisfeita
I.B. 10 de Outubro de 1998

O
órgão oficial do Vaticano, “L’Osservatore Romano”, inquietava-se
na sua edição de quinta-feira com a atribuição pela Academia Sueca
de Estocolmo, do prémio Nobel da Literatura a José Saramago. É
uma “escolha política”, Saramago “continua a ser um comunista
inveterado”, afirmava aquele diário.
O principal argumento do Vaticano contra o Nobel português é o livro
“O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, uma prova, segundo “L’Osservatore
Romano”, da “visão substancialmente anti-religiosa de Saramago. “Isto
para não falar de “O Memorial do Convento”, que “exprime toda a veia
anti-clerical do escritor”, acrescenta o órgão oficial da Igreja de Roma.
As reacções da Igreja portuguesa foram, pelo contrário, de satisfação
com a escolha do Nobel da Literatura. O secretário da Conferência
Episcopal Portuguesa, D. Januário Torgal Ferreira, criticou mesmo as
posições de “L’Osservatore Romano”, considerando-as “demasiado
redutoras”. “Já não estamos nos tempos do Index. Que uma pessoa não
partilhe ideologias comunistas ou socializantes,como é o meu caso (...),
é perfeitamente legitimo. Acho que nestas, como noutras coisas, a arte é
perfeitamente autónoma”, declarava ontem aquele dignatário da Igreja
portuguesa.
O bispo resignatário de Setúbal, D. Manuel Martins, foi mais longe
e disse à Rádio Renascença estar “extraordinariamente feliz com a
atribuição de um Prémio Nobel a um compatriota”. E acrescentou que
ficaria muito contente se José Saramago “que escreve lindamente, se
deixasse iluminar por ideais cristãos, já que, infelizmente, nessa linha
deixa muito a desejar”.

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

O labirinto e a sua metáfora

Ilustração: André Carrilho

Manuel Vázquez Montalbán* 10 de Outubro de 1998

O
Prémio Nobel premeia, finalmente, um escritor de língua
portuguesa, um escritor difícil, que se digladia com o
literariamante correcto e que agora, mais do que nunca, precisa
de ser apresentado para escapar do imaginário construídos pelos
tópicos, como se tratasse de um balão de banda desenhada. O imaginário
de Saramago está ligado a um escritor tardio, como Buffalino ou Camileri,
jornalista e comunista, nascido à sombra da estética de Pessoa em “O Ano
da Morte de Ricardo Reis”, construtor de utopias irónicas impossíveis em
“A Jangada de Pedra”, interpretada como uma paróbola anti-europeísta,

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

exemplo de um escritor comprometido com a literatura e a ideologia, mas


possuidor dessa verdade literária que não depende da ideologia.
“Ensaio sobre a Cegueira” introduz-nos o Saramago actual, em busca
de um discurso em que a Vida, História e Morte se tornam parcimónia
expositiva, como se o escritor se concedesse a si próprio um tempo sem
limites de exposição literária, em contradição com os limites biológicos
e históricos. Pode dizer-se, inclusive, que Saramago parece afastar-se da
esperança laica, da História, do optimismo histórico, forcejando, tratando
de não se render perante a tendência do pessimismo biológico. “Todos os
Nomes” parece-me ser uma das obras mais reveladoras da relação ética-
estética no actual Saramago. Vida, mundo, tempo, espaço encontram
neste romance o plutónico referente do arquivo onde está tudo escrito.

Cenografia

O protagonista busca e rebusca e na geometria enfileirada do arquivo


da Conservatória Geral do Registo Civil concebido como um universo
de arquivos ou como o Universo arquivado, materialização da relação
do espaço com o tempo, um e outro embalsamados. Se para Borges o
Universo era ou mereceria ser uma Biblioteca, Saramago propõe-nos que
seja a Conservatória Geral do Registo Civil com dois sujeitos dominantes:
o chefe e o Sr. José, o funcionário probo da estirpe dos funcionários
decimonónicos passado pela náusea do autodidacta e a indeterminação
de Joseph K.. Saramago recreia-se na construção de uma romance de
funcionários públicos em atmosfera oitocentista como se procurasse uma
cenografia falsamente naturalista, uma cenografia enterrada, sepultada,
pré-kafkiana, um dos momentos mais conseguidos do livro.
Se no romance ensimesmado dos anos 60 e 70, os protagonistas
levavam trinta páginas a subir uma escadaria e 40 a abrir uma janela,
em “Todos os Nomes” o Sr. José demora 40 a abrir uma pasta, com
a íntima satisfação de proprietário da memória das vidas de todos

76
Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

nos seus dados mais óbvios. O leitor vê-se submerso pela intriga
da descoberta esperada e assume a aproximação até que chegue a
luminosidade da notícia de uma mulher que vai transportar o Sr. José
e o leitor para fora do Registo, talvez com a esperança de uma fuga do
labirinto. Importa dizer que se a metáfora do mundo é o Conservatário,
o labirinto é a da vida. Talvez essa mulher que desperta o Sr. José,
fazendo-o emergir da própria substância de um papel bolorento, seja
Ariadne oferecendo-lhe o fio redentor.
O labirinto interior está separado do exterior pela pele, mas Valery
escreveu que o mais profundo no homem é a pele. O Sr. José, o próprio
Saramago, pensa que não tomamos decisões, mas que são decisões que
nos levam a nós. E aqui temos a primeira presença de Beckett: “Isto não
é mover-se, isto é ser movido.” Nas suas andanças atrás da construção
de uma mulher real, o Sr. José vai-a desconstruindo, porque a indagação
levá-lo-á à morte, dentro dos dois hemisférios separados da Conservatória
de Registos, o dos mortos e o dos vivos. O chefe, sabedor das pequenas
e angustiadas transgressões, que o Sr. José teve que perpetrar para
atravessar o subtil tabique que separa a vida da morte, propõe-lhe que
contemple os dois hemisférios como se fosse um só.
Numa patética cena quase final, a indagação permite-lhe ouvir a
voz da mulher procurada numa banal gravação de um atendedor de
chamadas. O protagonista confessa ter ficado sem pensamentos e a
voz da fita é a segunda contribuição de Beckett, o referente de “Krap’s
Last Tape”. A vida está gravada, só gravada, e só faz sentido ao redor
dessa voz. Romance da intriga morosa ao ritmo lento dos passos de
um funcionário. Romance, literatura de amor, toda a de Saramgo
sobre o sensorial e os corpos concretos: trata-se de construir um mito
emocional com a parcimónia de um burocrata incapaz de assumir que a
sua angústia se chama angústia. Ou o leitor assume esse tempo moroso,
identificação da relação do tempo e do espaço embalsamados, ou não
entrará no labirinto e na sua metáfora.

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Deram o Nobel da Literatura a um grande escritor e a uma grande


literatura que o mereciam. Porque a notícia não é só prémio para
Saramago mas a primeira vez que se deu o Nobel a um escritor da língua
portuguesa, apesar de Eça de Queirós, de Torga ou de Jorge Amado.

*escritor, Exclusivo PÚBLICO / “El País”

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Reacções europeias

Isabel Braga 10 de Outubro de 1998

Os jornais espanhóis foram os que mais efusivamente saudaram


a atribuição do Nobel a José Saramago, com honras de destaque
no”El Mundo” e várias páginas no “El País”. O italiano “La
Reppublica” rejubilou com o prémio e chamou a atenção para
as críticas do Vaticano ao escritor. Todos os grandes jornais
ingleses, bem como o “Herald Tribune”, noticiaram o Nobel
português, embora de forma mais discreta, com excepção do
“The Guardian”, que dedica ao assunto uma página inteira. Muito
mais discretos ainda foram os jornais franceses: o “Libération”
está em greve e não foi publicado ontem e o “Le Monde” não
disse uma palavra sobre o assunto.

Itália

“O Nobel desembarca em Portugal”, era o título de um dos vários


artigos que o diário italiano “La Reppublica” dedicava ontem ao Nobel
português da Literatura ao longo de duas páginas. “Até que enfim” (em
português)! A expressão de júbilo e alívio atravessou o Atlântico de um
lado ao outro, ligando o Brasil e Portugal, passando pela Madeira, Porto

79
Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Santo, Açores e Cabo Verde, fantasmas de uma mítica Atlântida que hoje
fala português”, afirma o “La Reppublica”.
“Uma vitória que já não se esperava”, é o título de outra notícia do
mesmo jornal, que transcreve e comenta as reacções negativas de
“L’Osservatore Romano”: “É como se o órgão oficial do Vaticano visse o
mundo povoado de prémios Nobel vermelhos. Dario Fo [Prémio Nobel
da Literatura em 1997] divertiu-se muito com os comentários do órgão
oficial do Vaticano. Para estes senhores, o prémio Nobel está-se a tornar
num sofrimento permanente”.

Espanha

O diário espanhol “El País” publica em primeira página a notícia “José


Saramago consegue o primeiro Nobel para a língua portuguesa”, ilustrada
com uma fotografia a três colunas do escritor na conferência de imprensa
na Feira do Livro de Frankfurt.
Seis páginas no interior do jornal abordam o assunto em vários tons,
incluindo uma “biografia essencial” de Saramago e um editorial intitulado
“Um Nobel Ibérico”, onde se afirma que “finalmente se fez justiça à língua
portuguesa, falada por 200 milhões de pessoas em sete países da Europa,
África e América.”
“Saramago — traduzido em dezenas de países, com leitores de uma
fidelidade indefectível — acrescentou prestígio mundial à sua língua com
uma produção literária de indiscutível peso estético e cultural. É, sem
dúvida, um dos autores com maiúscula desta época, cuja criatividade
faz com que cada uma das suas obras seja substancialmente distinta da
anterior”, considera o “El País”.
O outro diário espanhol de maior circulação, “El Mundo” dedica um
destaque de seis páginas ao Nobel português, abrindo com uma notícia
de Frankfurt, em que conta que o escritor, “quase a chorar de emoção,
dedicou o prémio a toda a literatura portuguesa”. “A hora de um menino

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

pobre” é o título da biografia do autr no “El Mundo”, que também publica


um texto sobre a sua mulher, a espanhola Pilar del Río, e um editorial
assinado por Saramago, que se intitula “Alegra-te esquerda”.

Grã-Bretanha

Um extenso artigo de página e meia no “The Guardian”, de Londres,


fala de Saramago como “o autor que recebeu finalmente o que lhe
era devido pela Academia Sueca”. Sob o título “Parábola dos poderes
políticos em Portugal ganha prémio Nobel”, o jornal cita declarações de
Mário Soares sobre Saramago e fala do escritor através de entrevistas
com editores ingleses da sua obra. As tensões dentro da Academia
Sueca são ainda matéria de notícia para “The Guardian”. O “Financial
Times” refere o prémio Nobel, num pequeno artigo que sublinha o
facto de Saramago ser o primeiro português a recebê-lo. “Mais do que
nas personagens, na intriga ou no incidente, as obras de José Saramago
centram-se principalmente nas palavras”. Outro pequeno texto do
mesmo jornal noticia que os fundos do prémio Nobel se ressentiram este
ano do “caos” que atingiu os mercados das acções. A primeira página
do “Herald Tribune”, jornal americano com sede em Paris, anuncia o
Nobel para Saramago, descrevendo-o como um escritor “que venceu na
literatura relativamente tarde” e cujos romances têm “leitores fiéis em
toda a Europa”. “Saramago, o ateu, um estranho na sua própria terra”
é o título do jornal “The Independent” sobre a atribuição do Nobel da
Literatura. Para este diário, o escritor é um “outsider” no seu próprio
país e não está “nada preocupado com isso”. “Sou céptico, reservado,
não ando por aí a rir-me para as pessoas, a abraçá-las e a tentar fazer
amigos. Apenas escrevo”. O jornal britânico faz a biografia do escritor,
caracteriza a sua obra como “irónica e imaginativa” e recorda que
“O Evangelho Segundo Jesus Cristo” foi um livro que “ofendeu as
convicções católicas portuguesas”. “Não tenho pressa. Apercebo-me

81
Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

de que estou a conseguir realizar tudo o que desejei na vida”, disse


Saramago ao “The Independent”.

Irlanda

O mais importante jornal da Irlanda, “The Irish Times” declara que


Saramago ganhou “finalmente” o Nobel e que “a fama e fortuna”
bafejaram tarde a sua carreira. E considera o escritor “o mais conhecido
em língua portuguesa”. As origens rurais de Saramago são recordadas —
embora com algumas imprecisões, diz-se por exemplo que ele nasceu no
Sul do Alentejo, quando é natural do Ribatejo.

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Livrarias sem “stocks” e editora incapaz de satisfazer encomendas

Saramago esgotou-se

Clara Barata 10 de Outubro de 1998

Muitas livrarias nem sonhavam que o Nobel da Literatura deste ano


seria português. Por isso, os livros de Saramago esgotaram. Quanto
aos compradores, há desde os conhecedores da obra do autor de
“Memorial do Convento” até curiosos que nunca leram nada dele, e
ficam desanimados com a falta de parágrafos e pontuação. A Barata
vendeu cem exemplares de Saramago em quatro horas.

E
ncontrar um livro de José Saramago ontem à tarde em Lisboa era
uma questão de sorte, pois a maioria das livrarias foi apanhada
desprevenida, depois de vários anos de grande alarido em torno do
favoritismo de Saramago na corrida ao Nobel.
Quem apostasse nas livrarias do Chiado, ficaria defraudado, pois os
“stocks” esgotaram na quinta-feira e, pelas 18h de ontem, quando o
PÚBLICO por lá passou, deparava com montras decoradas com recortes de
jornais em que se noticiava o Nobel português e pouco mais. Quem fosse à
Barata ou à FNAC, já podia levar para casa o seu primeiro livro de Saramago,
ou mais um exemplar para a colecção — ou mesmo a colecção inteira.
“O teatro, a poesia e as crónicas ficaram. Os romances mais polémicos
foram-se todos na quinta-feira”, explicou América Messias, da Livraria

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Portugal, na Rua do Carmo. “Quando é anunciado o Nobel, acontece


sempre isto. Há pessoas que nunca leram nada do autor e vêm à
procura de um livro qualquer, para não fazer má figura; há os que
sempre tiveram vontade de o ler mas nunca o fizeram, e decidem-se
nessa altura; e há também os que já leram alguma coisa, mas que vêm à
procura de outras obras”.
Como as livrarias se desabituaram de ter bons “stocks” — quem já
tentou, sabe como é difícil descobrir um clássico tão óbvio como “D.
Quixote” -, o galardão de Saramago e a inevitável curiosidade dos seus
potenciais leitores deixou-as sem livros.
A Editorial Caminho (que publica toda a obra de Saramago) e a sua
distribuidora, a Transdig, também não estavam preparadas para os
pedidos que choviam de todos os lados.
“Sei que a Caminho até mobilizou toda a frota particular dos seus
vendedores, mas mesmo assim não conseguem dar resposta”, disse
Manuel Vicente, gerente da Bertrand do Chiado. “Se tivéssemos
adivinhado... Mas ninguém estava à espera disto este ano”, desabafou.
Por isso, os 80 exemplares de várias obras do Nobel português venderam-
se rapidamente durante a tarde de quinta-feira.
Ao fim da tarde de ontem apenas restavam nas prateleiras da mais
velha livraria de Lisboa três livrinhos, das obras menos conhecidas do
escritor: “A Bagagem do Viajante” (crónicas), “Terra do Pecado” (o seu
primeiro romance, de 1947) e “A Noite” (teatro). Havia também um único
exemplar de uma tradução francesa de “O Ano da Morte de Ricardo Reis”
(na montra) e meia dúzia de uma tradução para inglês do mesmo livro.
A montra principal da Bertrand, no entanto, estava decorada a preceito,
com o que restava dos livros portugueses e as duas traduções disponíveis,
além de recortes de jornais. “Se soubéssemos o que se ia passar, tínhamos
encomendado uns 200 exemplares”, afirmou Manuel Vicente.

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

O exemplo da FNAC

Mais atenta e, sobretudo, mais ambiciosa quanto ao volume de vendas


esteve a FNAC. “O nosso ‘stock’ de Saramago era forte e reforçámo-lo com
uma encomenda de três mil exemplares”, explicou Eduardo Boavida,
responsável pelo sector de livros na “megastore” lisboeta. Por isso os
escaparates estavam cheios de livros do Nobel. “Ensaio sobre a Cegueira”
e “O Evangelho segundo Jesus Cristo” eram os mais procurados entre os
cerca de 200 exemplares vendidos entre quinta e sexta-feira. Num dia
normal, a FNAC vende entre 20 e 30 livros de Saramago.
Na Barata, na Avenida de Roma, havia livros de Saramago. “Tínhamos
50 em ‘stock’, que esgotaram a meio da tarde de ontem [quinta-feira].
A nova encomenda chegou pelo meio-dia, e já vendemos cerca de 100”,
disse ao PÚBLICO, pouco depois das 16h, Graça Didier, a responsável pela
livraria.
As obras de maior sucesso vêm com cintas apelativas anunciando
o verdadeiro fenómeno de vendas que este escritor é em Portugal:
“Ensaio sobre a Cegueira” vai na segunda edição e a tiragem nos 55 mil
exemplares — um feito assinalável, pois uma boa tiragem em Portugal
raramente vai além dos três mil volumes.
Pelas contas da Caminho, divulgadas pela agência Lusa, Saramago já
vendeu 617.500 exemplares de todas as suas obras. A este número há que
acrescentar o 291.400 exemplares editados pelo Círculo de Leitores, o
que dá um total de 1.108.900 exemplares vendidos desde 1979, quando
Saramago passou a ser editado pela Caminho. Reimpressões pós-Nobel,
por ora não, diz a Editorial Caminho. Só se verificar uma necessidade
imperiosa de o fazer.
Quanto aos potenciais leitores de Saramago pós-Nobel, há-os de vários
tipos. O PÚBLICO encontrou alguns, na FNAC e na Barata, onde ainda
se podiam encontrar livros. “Gosto muito de Saramago, sobretudo do
‘Memorial do Convento’, por causa da sua imaginação, estilo hiperbólico

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

e ironia. Acho fabuloso”, comentou Isabel Pequito Valente, uma jovem


bancária licenciada em literatura portuguesa. Ana Trigo, professora do
ensino secundário, prefere Ferreira de Castro ou Miguel Torga. “Li o
‘Evangelho..., mas preciso de o reler”. Conversou ontem com os seus
alunos do 11º ano sobre Saramago, mas estes não se mostraram muito
impressionados com o Nobel. Alda Brás, outra professora, aprecia mais
o Nobel. “Os meus alunos ficaram muito contentes e motivados para o
ler, embora nenhum o tenha feito até agora. Um deles tentou, mas não
conseguiu, porque era muito difícil.”
Quanto a José Manuel Carapeto, capitão da GNR reformado, que se
auto-intitula “um amante de livros, nunca leu Saramago. “Possivelmente,
um dia destes levo um. Mas não sei, à primeira vista parece muito chato,
porque não tem parágrafos nenhuns. Deve ser preciso muita paciência
para ler este livro”, comenta, com um exemplar do “Ensaio sobre a
Cegueira” na mão.

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Brasil inclui-se entre os “contemplados” pelo Nobel

”A língua portuguesa
perdeu a virgindade”

Mário Negreiros no Rio de Janeiro 10 de Outubro de 1998

“E
nfim” — com esta manchete, o “Jornal do Brasil” resumiu o
tom adoptado pela imprensa brasileira diante da conquista
do Prémio Nobel de Literatura por José Saramago. O que
se ressalta é, para lá da vitória pessoal de Saramago, o
reconhecimento dos méritos coletivos da língua portuguesa pela
Academia sueca, e nisso o Brasil se inclui.
A fotografia de Saramago com as rosas da vitória nos braços ilustra
as primeiras páginas dos principais jornais brasileiros, mas quem deu
maior destaque ao Prémio foi “O Globo”, que dedicou 5 das 7 páginas do
seu caderno de cultura ao escritor português. Também a manchete d’”O
Globo” reflectia o orgulho colectivo que o primeiro Nobel de literatura
conquistado por um escritor de língua portuguesa suscitou no Brasil:
“A Língua Consagrada”, exulta o jornal carioca, que ao longo das suas
páginas faz uma análise da obra de Saramago, menciona a infância pobre
e a militância comunista, e publica uma entrevista, feita em Frankfurt,
em que o escritor declara que o Nobel que acabara de receber não abre
caminho para os brasileiros porque “a literatura brasileira não precisa
que um escritor português abra caminho para chegar ao Nobel. Até
mesmo se deve dizer que os brasileiros já deviam ter ganhado antes o

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Nobel e que eles é que abririam caminho para a literatura portuguesa.


Eles é que mereciam ganhar mais do que eu. A verdade é que os escritores
brasileiros [ João] Cabral [de Melo Neto], [ Jorge] Amado e [Carlos]
Drummond teriam sido grandes escolhas. Tem que chegar o momento
em que o Nobel decida olhar finalmente para o outro lado do Atlântico,
porque lá estão escritores que merecem mais do que eu”.
A generosidade de Saramago foi correspondida por um dos citados.
Jorge Amado, o eterno cotado (e eterno preterido) para a conquista do
Nobel, amigo pessoal de Saramago e cicerone preferencial nas constantes
viagens do escritor português ao Brasil, declarou que “ao reconhecer
a literatura portuguesa com esse prémio a Saramago, um dos mais
expressivos escritores do nosso tempo, o Prémio Nobel finalmente fez
Justiça”. Jorge Amado também disse que ele e a mulher, Zélia Gatai,
estão “duplamente satisfeitos”, porque, além de ser um grande escritor,
Saramago é um grande amigo do casal.

Um afecto correspondido

Os vínculos de Saramago com o Brasil são, de facto, estreitos e


alimentados por viagens frequentes ao país. Ele é amigo de alguns
dos maiores escritores brasileiros, como, além de Jorge Amado, João
Ubaldo Ribeiro e Rubem Fonseca, e do compositor (e autor de dois
romances) Chico Buarque de Hollanda, que compôs as músicas do CD
que acompanha o livro “Terra”, com texto de Saramago sobre a luta dos
sem-terra brasileiros e ilustrado pelas fotografias do também brasileiro
Sebastião Salgado.
O afecto de Saramago pelo Brasil é correspondido. Depois de Fernando
Pessoa, é o escritor portugues mais lido no país e, entre os contemporâneos,
não há quem lhe faça sombra, apesar da exigência que Saramago impõe aos
seus editores brasileiros de que a ortografia portuguesa seja mantida nas
edições brasileiras — o que o poderia afastar do mercado do Brasil.

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

A reacção entre os seus pares brasileiros não podia, portanto, ser


diferente. A ex-presidente da Academia Brasileira de Letras, Nélida
Piñon, disse que “ao ganhar o Prémio Nobel, José Saramago celebra
a língua portuguesa. É o reconhecimento pela sua devoção a uma
literatura estética intransigente e sem concessões. Ele conseguiu firmar
a lingua portuguesa nessa Europa que sempre teve grandes escritores.
É um homem com idéias de grande densidade ética”. O poeta Ferreira
Gullar segue-lhe as palavras: “Este prémio tem um significado para
a `descoberta’ que o Nobel faz da literatura em língua portuguesa.
Era inexplicável que nenhum autor que pertence a esta lingua fosse
lembrado depois de tantos nomes obscuros terem recebido o prémio”.
O campeão de vendas, Paulo Coelho, cuja qualidade literária é muito
discutivel, exprimiu-se no mesmo tom: “A língua portuguesa ganhou
um prémio Nobel e isso é importante para todos os que escrevem em
português. Saramago representa uma tradição de bons livros e uma
consistente forma de pensar”. Chico Buarque não desafinou: “A língua
portuguesa, feliz por ter sido lembrada, exulta por Saramago, que
sempre a tratou tão bem”. António Torres acrescentou um toque de
humor: “A língua portuguesa finalmente perdeu a virgindade. Saramago
é um dos bons e velhos contadores de histórias deste século, um dos
maiores narradores da nossa língua. Demorou a ser descoberto mas,
quando o foi, chegou arrasando quarteirão. Finalmente, um português
vai embolsar um milhão de dólares”.
Entre a série de exultações, o toque de amargura fica por conta de
Sérgio Sant’anna: “Não tenho nada contra o Saramago mas não conheço
a obra dele. O facto de terem premiado um escritor de língua portuguesa
não quer dizer que possamos [os brasileiros] estar mais perto do Nobel.
Pelo contrário, é capaz de eles pensarem que com isso premiaram
literatura brasileira, de Angola. Por quê nunca cogitaram um brasileiro?”.

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Nobel a José Saramago – O que publicámos há 20 anos

Uma carta de Angola

10 de Outubro de 1998

I
ntelectuais angolanos de várias tendências, nomeadamente
escritores, jornalistas e músicos, enviaram ontem a José Saramago
uma carta colectiva felicitando-o por ter sido distinguido com o
prémio Nobel da literatura.
A carta, assinada em primeiro lugar pelo escritor Pepetela, explica
que os seus signatários procuram, por esse meio, evitar a Saramago a
“maçada” de receber muitas mensagens individuais, que de outra forma
lhe iriam ser enviadas pelos “homens de cultura e espírito angolanos”.
“Queremos agradecer-te, José, pela tua obra imensa e importantíssima”,
afirma a carta, que está a ser assinada por um número crescente de
personalidades. Saramago é considerado “um homem coerente, solidário
com os que precisam de apoio, defensor intransigente das suas ideias e
sem vergonha de ser o que é, nestes tempos tristes de tanta apostasia”.
“Queremos agradecer-te, José, por teres estado connosco, angolanos,
desde a época sombria do colonialismo que juntos combatemos”.
Dizem ainda os intelectuais angolanos que o prémio Nobel foi atribuído
“no dia de Che Guevara” (comemorado em Angola) e que “um cazumbi
(espírito amigável de alguém já morto) deve ter passado pela cabeça
do júri”. A carta acrescenta que é obrigação do premiado continuar a
escrever diariamente. “Faz parte da nossa obrigação ser-te gratos, como é
tua obrigação escrever para nós todos os dias”.

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