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EXAME GERAL
Adolfo Mª Chércoles, SJ e Hervé Coathalem,SJ
Se alguma coisa deve permanecer depois dos Exercícios Espirituais (EE) é a atitude
permanente de vigilância, suspeita e discernimento. Tal atitude manter-se-á através
do exame.
Inácio dava mais importância ao exame do que à oração. Tinha certo temor desta,
por causa dos excessos de alguns. É celebre sua frase, a respeito de alguém do
qual diziam era pessoa de muita oração: "quererão dizer de muita mortificação". E
não se referia à penitência física. A mortificação é não fugir da realidade. Tentamos
fugir dela, mas deveremos enfrentá-la, olhar para ela, não fugir. A matéria do exame
é, precisamente, a realidade.
O primeiro ponto do exame é "dar graças a Deus Nosso Senhor pelos benefícios
recebidos" (EE 43,2). Minha abertura para Deus parte do reconhecimento de que "é
próprio de Deus dar consolação à alma" (cf. EE 329). A primeira contagem que devo
fazer é para me sentir inundado de benefícios de Deus. Tenho que constatá-los,
contabilizá-los. Eu mesmo sou puro dom. A petição da "Contemplação para alcançar
amor" expressa preciosamente o que aqui se pretende: "Conhecimento interno de
tanto bem recebido para que eu, reconhecendo inteiramente, possa em tudo amar e
servir a sua divina Majestade" (EE 233).
Tudo começa com uma surpresa, a de sentir-me inundado de dons. Minha resposta
diante desta surpresa é a gratuidade. Quando a gente fica sabendo que alguém se
entregou a fundo perdido, desencadeia-se uma dinâmica de sair de si: porque me
sinto puro dom, cheio de surpresa e gratidão, posso "em tudo amar e servir".
O modo de entrar no exame é este: pedir que meus olhos se abram, para que eu
tenha acesso a minha realidade de pecado, desmontar minhas defesas, minhas
autojustificações: "pedir graça para conhecer meus pecados e rejeitá-los", porque é
impossível "rejeitá-los" por nós mesmos.
Para Inácio o pecado é a ignorância radical; por isso pede graça para conhecê-lo. É
a ofuscação por excelência da pessoa humana; por isso é graça que eu o descubra.
O exame é duro. É pôr-nos diante de Deus, que nos está inundando de benefícios,
desprotegidos de defesas, e pedir-lhe que Ele nos descubra nossa pobre realidade.
A grande graça da iluminação é que vejamos, porque estamos cegos. O exame vai
ser o lugar do encontro com Jesus. Só Ele converte em Luz nossa treva1.
Pode-se dedicar uma parte considerável do exame a estes três primeiros pontos. O
tempo restante ficará reservado à contrição e firme propósito (quarto e quinto
pontos), sempre no espírito do colóquio de misericórdia. O pesar pelas
infidelidades, assim como o reconhecimento pelos benefícios, pode ser estendido
com proveito, ao menos de uma maneira geral, a todos os pecados do passado.
Assim se alimentará e aprofundará constantemente o sentimento de compunção
humilde e confiante, tão fecundo para a vida espiritual. O firme propósito de emenda
e o impulso de reparação brotarão daí como que espontaneamente: "Que devo fazer
por Cristo?". Um olhar filial ao Pai ("Rezar o Pai nosso") encerrará o exercício do
"exame geral" (EE 43). No contexto deste deverá inserir-se o "exame particular"2, a
desenvolver-se na mesma atmosfera.
A exposição que acabamos de fazer, em íntimo contato com o texto e o espírito dos
Exercícios, basta para dissipar certas objeções. Estas supõem uma visão do exame
que não é a de Inácio, ou bem uma concepção equívoca da vida espiritual, quanto a
colaboração e prudente controle que normalmente nos corresponde.
b) Será que o exame leva a uma concepção puramente negativa da vida espiritual,
centrada na correção dos defeitos, na exclusão do pecado? Pelo contrário, trata-se
apenas do reverso de uma realidade totalmente positiva: pureza de consciência
(exame geral) e pureza de coração (exame particular), justa apreciação da parte de
colaboração da pessoa humana na vida espiritual, atitude de seriedade na sua
prestação de contas. Uma seriedade bastante humilde, mas que não tolera a
negligência nem a preguiça e que conduz à autêntica liberdade, à alegria e à paz.
c) Por fim, critica-se o exagerado esforço humano exigido pelo exame e sua
aplicação a pontos aberrantes da vida espiritual. Importa sublinhar que a atmosfera
em que deve desenvolver-se o exame não é de modo algum uma atmosfera de
introspecção egocêntrica. Para Inácio o exame de consciência é propriamente um
colóquio cheio de humilde arrependimento, todo ele impregnado de fé, de confiança
amorosa. Nada, pois, de semi-pelagianismo3. Trata-se simplesmente de equilíbrio
evangélico entre a parte de Deus, sempre primordial, e a do ser humano, que não
deixa de ser considerável na vida cristã e apostólica. Quanto aos erros que
pudessem acontecer na aplicação do exame particular, basta consultar um(a)
prudente orientador(a) espiritual. Ao longo dos Exercícios, Inácio insere o exame de
maneira orgânica, no meio do processo. Será útil levar em conta esta prática
inaciana também depois do retiro, na vida ordinária4.
5 - Conclusão
O exame não é uma fórmula sacramental que atua ex opere operato (por si mesma).
É um instrumento de prudência espiritual singularmente eficaz, sabendo-o utilizar,
pois está em íntima harmonia com a ordem da sabedoria evangélica e também com
a natureza humana5. Não foi uma invenção de Santo Inácio. Estava em uso na
Igreja e até fora dela, sob variadas formas, bem antes de Inácio. Este o adaptou à
vida apostólica, deixando espaço para a flexibilidade e a plasticidade desejáveis, no
que diz respeito aos elementos secundários.
NOTAS:
1
Aqui termina o texto de Adolfo Ma Chércoles. A continuação está tirada de H.
Coathalem, Commentaire du livre des Exercices. Col. "Christus",18. Paris 1965, pp.
114-116.
2
Cf. Artigo anterior. Coathalem apresenta os dois exames no mesmo capítulo do
seu Comentário aos EE.
3
O pelagianismo valorizava mais o esforço humano do que a ação da graça.
4
Dictionnaire de spiritualité. t.4, col. 1828-1829.
5
O exame é "um instrumento para manter desperta a sensibilidade" espiritual
(Chércoles).