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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

ANA LAURA SOUSA SILVA

Análise comentada do “Discurso do Cacique Hatuey”

São Paulo
2022
ANA LAURA SOUSA SILVA

Análise comentada do “Discurso do Cacique Hatuey”

Versão original

Dissertação apresentada ao
Departamento de História da
Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo, para avaliação do curso
de primeiro semestre do bacharelado
em História.

Área de concentração: América


Colonial
Orientador: Prof. Dario Horácio
Gallardo Gutierrez

São Paulo
2022
INTRODUÇÃO
A história primitiva e colonial de Cuba possui pouco destaque na historiografia
contemporânea e é negligenciada inclusive pelos próprios historiadores da ilha. No
entanto, possui grande importância no que diz respeito à constituição da população
cubana – mesmo que o traço de ascendência indígena seja ignorado ou renegado –
e das características enraizadas ao longo dos séculos. A história de Cuba tem como
principal elemento a violência, que é precedente ao domínio colonial, mas esteve
presente em todo o seu processo histórico desde sua origem até a
contemporaneidade.
Os povos pré-colombianos habitantes da ilha de Cuba já estavam acostumados a
viver com o sentido prolongado de perigo externo e incertezas por conta, além de
desastres naturais, das disputas territoriais travadas entre as diferentes etnias, em
constante migração na busca por melhores condições de vida. O assentamento dos
espanhóis na região, a partir da chegada de Diego Velásquez em 1511, exacerbou
dificuldades que aqueles povos já enfrentavam, levando-os a uma crise que os
forçaria a lutarem mais arduamente pela sobrevivência.
O grande símbolo da resistência indígena de Cuba é o cacique Hatuey, ele foi o líder
mais frequentemente mencionado em crônicas e se tornou ícone da população
nativa aborígene de Cuba, relembrado por todos que desejam agregar novas
interpretações à história da ilha. Acabou, no entanto, como nome de uma marca
popular de cerveja que sobreviveu à Revolução Cubana, o que é representativo para
o entendimento do destino que tiveram os povos pré-colombianos: o extermínio
motivado por interesses econômicos.
Este trabalho, portanto, sustenta-se no objetivo de analisar o papel da fonte primária
“Discurso do Cacique Hatuey” enquanto retrato de um período histórico que carrega
em sua interpretação um importante enclave de cunho ético: até onde a ação
espanhola nas Índias seria legítima?

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CAPÍTULO 1: INFORMAÇÕES TÉCNICAS DO DOCUMENTO
1.1. AUTORIA: VIDA E OBRA DE BARTOLOMÉ DE LAS CASAS

O discurso que consta na fonte primária foi publicado pelo frei Bartolomé de Las
Casas (1474-1566), frade dominicano nascido em Sevilla, Espanha, apóstolo dos
indígenas que atuou como teólogo, político, jurista e cronista. Las Casas possui
grande importância para a historiografia da América Espanhola, ele se
autodenominava “procurador e protetor universal de todos os povos indígenas” e
seus escritos contribuíram mais do que qualquer outra história para forjar a opinião
mundial sobre a conquista espanhola, o que era sua intenção (BUENO, 1985).

Las Casas nem sempre condenou o sistema colonial. De início, desejava apenas
modificá-lo (BUENO, 1985) e inclusive criou um projeto denominado “Plano de
Reforma das Índias”, mas se deparou com enormes obstáculos que o levaram a
adotar posições radicais, impulsionando-o à mais completa intransigência. Segundo
o historiador Alonzo Imbert, o frei acreditava no apostolado e não na conquista. “Na
opinião dele, a Espanha só poderia justificar sua ação na América caso cumprisse a
missão de conduzir os índios à fé cristã”. O afastamento dessa determinação divina
era inaceitável e foi o que aconteceu quando os conquistadores se voltaram
avaramente para as riquezas das terras descobertas, praticando crimes e
barbaridades contra os nativos em nome do enriquecimento material.

Bartolomé de Las Casas embarcou para a América em 1502, já possuindo formação


em Direito pela Universidade de Salamanca. Em 1511, recebeu seu primeiro
repartimiento de índios, tornando-se encomiendero, prosseguindo com sua vida de
descobridor-conquistador. Nesse contexto, participou da conquista de Cuba,
comandada por Diego Velasquéz e Panfilo de Narváez, dois anos mais tarde. Foi
durante sua residência de um ano na ilha que decidiu abandonar suas posses e
seus lotes de escravos para consagrar sua vida à defesa dos indígenas no Novo
Mundo (BUENO, 1985).

Assim, de 1514 até o ano em que morreu, em 1566, Bartolomé de Las Casas lutou
firmemente contra o massacre provocado pelos colonizadores aos povos indígenas
da América. Fez dezenas de denúncias, protestos e pedidos, exigindo que os
indígenas fossem interpretados como verdadeiros proprietários dos reinos e terras
usurpados pelos espanhóis. Na prática, conseguiu duas vitórias (que sempre
considerou insuficientes): as novas leis promulgadas em 1542, que praticamente
encerraram o sistema de encomiendas, e as doutrinas jurídicas expostas na
Universidade de Salamanca que viriam a lhe garantir a vitória legal da polêmica
contra Juan Gines de Sepúlveda, partidário da “servidão natural” dos índios da
América.

O que se tornou a atividade primordial de Las Casas, no entanto, foi a escrita de


crônicas que descreviam o processo de colonização da América, testemunhado por
ele, enquanto alertavam a Espanha e toda a Europa para injustiças e atrocidades
cometidas pelos conquistadores no Novo Mundo (BUENO, 1985). A obra mais
famosa dele se tornou a Brevíssima Relación de La Destruición de las Indias
Ocidentales, rapidamente transformada num best-seller com edições na Holanda,
Inglaterra e Alemanha. Não se sabe ao certo quando Las Casas começou a escrita
do livro, supõe-se que tenha sido após seu retorno à Espanha, em 1540, sendo
fatual que sua conclusão ocorreu ainda no ano de 1542, uma década anterior à
publicação, sendo, portanto, prévio ao debate com Sepúlveda em 1550 – conhecido
como “controvérsia de Valladolid” –, apesar do lançamento posterior (GUTIÉRREZ,
2010). Foi nessa obra em que denunciou os conquistadores, chamando-os de “sujos
ladrões”, “tiranos cruéis” e “sangrentos destruidores” e descreveu os massacres
cometidos nos territórios do Novo Mundo, dentre eles a ilha de Cuba, nas Antilhas,
onde ocorreu o assassínio do Cacique Hatuey, mártir da resistência indígena a
quem atribuiu o impactante discurso, presente em outra obra sua, a Historia de Las
Indias III.

1.2. O DISCURSO DO CACIQUE HATUEY EM “HISTORIA DE LAS INDIAS”


O discurso que Bartolomé de Las Casas atribui ao cacique taíno está presente em
uma de suas principais obras, descrita por Lewis Hanke como a que levou o esforço
intelectual mais duradouro de toda a sua vida, tomando mais de trinta anos de
dedicação em sua escrita. O frei começou a redigir Historia de Las Indias em 1527 e
terminou escrevendo três volumes. O manuscrito mais antigo foi concluído em
novembro de 1559 e deixado para o Monastério de São Gregório, comprado, então,
pela Biblioteca Nacional de Madrid no ano de 1904. Já o mais conhecido, foi doado
por Las Casas, também em novembro de 1559, para a Academia de História de
Madrid, tendo sido descoberto por Juan Bautista Muñoz quando ele analisava os
arquivos da Espanha em busca de material para a escrita da História da América
que a Academia o encarregara de escrever (HANKE, 1951).
Hanke diz que Las Casas, como um historiador, utilizou fontes originais, impressas e
manuscritas, além de sua própria vivência – ele aparentemente tinha uma memória
excelente –, para escrever tanto Historia Apologética quanto Historia de Las Indias
(HANKE, 1951).
Las Casas tinha o objetivo de relatar a verdadeira história do que havia ocorrido nas
Índias, denunciando as calamidades, mortes e destruição. Escreveu oito
justificativas para a composição de Historia de Las Indias, dentre elas: “Livrar a
nação do gravíssimo erro de crer que os indígenas do Novo Mundo não são
homens, pois os espanhóis os haviam considerado, e ainda consideram, como
bestas brutais incapazes de virtude e doutrina, e consequentemente, corromperam
os bons costumes que tinham os índios e aumentaram o mal entre eles” e também
“Dar uma descrição verdadeira das virtudes e pecados dos espanhóis nas Índias”.
É no segundo volume da obra que está contida a crônica que relata a vida,
perseguição, captura e morte do cacique Hatuey, incluindo o tocante discurso que
ele direciona ao seu povo frente à conquista de Cuba por Diego Velásquez.
Para a compreensão das motivações e repercussões da obra, é necessário antes
entender o processo histórico, primitivo, que permitiu a formação de Cuba.

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CAPÍTULO 2: HISTÓRIA PRIMITIVA DE CUBA
2.1. PRÉ-HISTÓRIA E GEOGRAFIA
Cuba é uma ilha integrante do imenso arquipélago do Caribe, e sua história reflete
essa realidade geográfica imutável. Lá habitaram alguns povos pré-colombianos,
sendo o povo mais antigo na ilha o guanahatabeye, imigrante dos territórios sul-
americanos que hoje formam a Venezuela e a Colômbia (GOTT, 2006). Indícios
arqueológicos sugerem que os guanahatabeyes foram empurrados para o oeste
pela chegada de duas ondas subsequentes de imigração: os taínos e os ciboneys,
que desempenhavam atividades de agricultura, cerâmica, coleta de alimentos e
caça. Irei me debruçar principalmente sobre os taínos ao longo desta análise, por se
tratar da etnia em destaque na fonte primária enquanto habitante dos arredores do
porto no qual os espanhóis desembarcaram pela primeira vez nas Antilhas. Os
taínos se assentaram na área compreendida entre as cidades de Baracoa,
Guantánamo e Punta de Maisí (TABÍO, 1966), todas situadas na Província de
Guantánamo, na costa sudeste de Cuba.

Baracoa é o porto mais próximo do Haiti e foi de lá que a expedição de Diego


Velásquez partiu para conquistar Cuba em 1511. Os taínos lá foram percebidos
como um “povo simples pelos primeiros obedientes e muito hospitaleiros, pouco
dados aos prazeres sexuais ou outras atividades físicas exigentes”, eles viviam em
casas bonitas e se locomoviam através de canoas bem construídas, conforme
descrição de Colombo em seu diário de viagem (COLOMBO, 1493). Cultivavam a
raiz da mandioca, colhida e cozida para produzir pão, plantavam algodão e tabaco,
comiam milho e batata (GOTT, 2006). “Eles tinham comida em abundância e tinham
tudo do que precisavam para viver: muitas safras bem-organizadas, de cuja
abundância fomos testemunhas — ela matou nossa fome” (LAS CASAS, 1986),
escreveu Bartolomé de Las Casas.

Sem dúvidas, os taínos tinham um alto nível de desenvolvimento para a agricultura a


ponto de se assentarem numa região com fatores ambientais não muito favoráveis
para a rápida adaptação dos povos indígenas — havia pouca fertilidade da terra,
cuja vegetação majoritária de plantas xerófitas oferecia poucas possibilidades para a
alimentação por meio da produção coletora e menos ainda por meio das atividades
agrícolas (TABÍO, 1966).

Segundo Bartolomé de Las Casas, os taínos permaneceram cerca de apenas 50


anos na região de Cuba, informação que é sustentada por uma pesquisa
arqueológica da Academia de Ciências de Cuba. Eles haviam chegado à Baracoa
pouco tempo antes da exploração europeia e foram exterminados rapidamente após
o contato.

2.2. A CONQUISTA
Os espanhóis desembarcaram pela primeira vez em Cuba no porto de Baracoa, que
foi considerada pelo historiador Richard Gott como uma “escolha insensata dos
primeiros conquistadores, a quem talvez faltasse familiaridade com o terreno ou
alternativa”. É possível que eles tenham se deixado levar por Colombo, que viu o
lugar de passagem na sua viagem em 1492 e fez um relato apressado. O primeiro
assentamento espanhol permanente no Caribe foi estabelecido a leste de Cuba, no
porto de Santo Domingo, na ilha que chamaram de Hispaniola. Nicolás Ovando foi o
seu primeiro governante, em 1498, e incorporou os indígenas locais ao sistema de
trabalho forçado que se tornaria modelo para Cuba.

Somente em 1511 foi enviada uma expedição de Hispaniola para Cuba, Velásquez
tinha ordens de Diego Colombo (filho de Cristóvão e sucessor de Ovando) para
conquistar e se estabelecer na ilha, mas seus homens se depararam com uma forte
resistência indígena inflexível que perduraria por várias décadas. O primeiro líder
das forças indígenas de que falam as crônicas foi Hatuey, cacique ou chefe taíno
originário de Hispaniola.

Hatuey testemunhou um grande massacre de índios em Xaraguá, Hispaniola,


organizado por Nicolás de Ovando em 1503, e sem ver nenhum futuro naquela ilha,
cruzou as águas até Cuba com muitos de seus seguidores. Eles se estabeleceram
nas montanhas acima de Baracoa, e quando os espanhóis seguiram suas canoas
até Cuba, em 1511, Hatuey encarregou-se de mobilizar a resistência local. Ele
sabia, por experiência própria, o futuro que lhes estava reservado.

Velásquez, o oponente de Hatuey, viajou pela primeira vez às Índias na segunda


expedição de Colombo, em 1494, aos 29 anos. Ele foi um dos maiores
conquistadores primitivos da América Latina, governador de Hispaniola e de Cuba, e
soberano de Yucatan. Ele “bem poderia ter conquistado o México, se não tivesse
sido obstruído em suas ambições por Hernan Cortés” (GOTT, 2006). Ele era visto
por seus contemporâneos como um administrador competente e era tido como o
homem mais rico das Américas no seu tempo.

Ele foi um comandante militar bem-sucedido nas campanhas genocidas contra os


indígenas de Hispaniola. Esteve presente no massacre de Xaraguá, em 1503, que
desencadeou a fuga de Hatuey para Cuba. De cepa distinta daquela de Nicolás de
Ovando, planejou tratar os índios cubanos de modo diferente, pois, em função da
sua experiência anterior em Hispaniola, achava um erro chacinar as populações
locais, já que os colonizadores necessitavam de índios, não apenas e tão-somente
para lhes ceder a terra, mas também para fornecer alimento e força de trabalho
(GOTT, 2006).

Partiu para Cuba nos últimos dias de 1510, navegando a partir da costa noroeste de
Hispaniola, com três embarcações e um exército de 300 homens. Cruzando as 60
milhas do Canal do Vento, ele se estabeleceu em Baracoa, batizando-a de Nuestra
Señora de la Asunción. Recebido desde o primeiro dia com hostilidade, foi atrás do
líder indígena nas montanhas acima de Baracoa. Hatuey foi caçado, capturado e
queimado vivo.

2.3. O EXTERMÍNIO DOS INDÍGENAS

Foi dito pelo próprio frei Bartolomé de Las Casas que, logo após a execução do
cacique Hatuey, os indígenas tentaram continuar a resistência, com a liderança
.
passando às mãos de Caguax, um aliado de Hatuey, outro refugiado de Hispaniola.
Foram derrotados novamente por Velásquez, dessa vez com a ajuda de Pánfilo de
Narváez, antes conquistador de Valladolid e que se tornou efetivo da ilha cubana.
Eles reprimiram as forças nativas e mataram Caguax (GOTT, 2006). Os indígenas
imploraram por piedade aos espanhóis e outros participaram de uma onda de
suicídios, enforcando-se por desespero. Muitos fugiram para as montanhas e nunca
mais foram vistos, outros foram assassinados pelos conquistadores, até que em
toda a ilha de Cuba, não viram mais os índios, dando-os por exterminados.

Na maioria das versões da história primitiva de Cuba, os indígenas saem cedo de


cena. Argumenta-se geralmente que desapareceram ainda no século XVI por causa
das matanças, doenças e suicídios (GOTT, 2006). “Parece-me absolutamente
improvável que os cubanos de hoje retenham sequer um corpúsculo de vermelho
aborígene”, escreveu a conceituada historiadora americana Irene Wright em 1910.

No entanto, essa interpretação é questionada pelo historiador Richard Gott em sua


obra “Cuba – Uma Nova História”, ele alegou que a grande vastidão da ilha de Cuba
permaneceu efetivamente além do controle espanhol. Ele escreveu, ainda, que o
elemento indígena foi se diluindo com os anos, e com as novas ondas de
colonizadores e escravos, mas nunca desapareceu completamente. Para Gott, a
geração de uma população mestiça foi uma das marcas dos primeiros anos do
século XVI em outras partes do continente americano, mas também em Cuba. Na
maioria dos casos, gerações sucessivas de mestiços reivindicaram os nomes e a
língua de seus pais espanhóis, embora indubitavelmente também carregassem a
cultura e os genes das suas mães indígenas (GOTT, 2006).

Gott argumentou a favor de sua tese também com acontecimentos mais recentes,
como a viagem do antropólogo Stewart Culin, da Universidade da Pensilvânia, para
Baracoa em 1901, informado sobre a presença de “uma tribo de índios selvagens”, e
lá encontrou povoados com índios e mestiços que pôde fotografar. Gott informou
ainda que, posteriormente, no século XX, em 1945, Antonio Nuñez Jiménez,
geógrafo e revolucionário cubano, encontrou índios puros nos contrafortes da Sierra
Maestra e publicou a fotografia de um deles.

Ele parece colocar em destaque a questão da permanência, mesmo que modesta,


dos indígenas para contrapor a identificação e historiografia cubana que rejeitou em
larga escala os povos que estiveram lá antes dos espanhóis sequer saberem da
existência das Antilhas. A maior parte dos próprios historiadores cubanos no período
após a Revolução se recusava a admitir, ou mesmo discutir, a possível
sobrevivência dos índios. Há um muro de silêncio semelhante em outros países do
Caribe (GOTT, 2006).

Leslie Bethell apresentou posicionamento semelhante logo no início de sua obra


“Cuba, a Short History” (p.1), ao escrever que algumas famílias “brancas”
espanholas (ou crioulas) de Cuba tinham também sangue indígena. Ele informou
que algumas poucas comunidades de taínos sobreviveram no leste da ilha.
CAPÍTULO 3: INTERPRETAÇÕES E REPERCUSSÕES
3.1. A “GUERRA JUSTA” E A “SERVIDÃO NATURAL” DOS INDÍGENAS
Os colonizadores que chegavam às ilhas do Caribe, encontrando as populações que
lá já existiam, enxergavam as novidades condicionados nos costumes enraizados
pela fé católica na Espanha. Desse modo, a religiosidade refletia diretamente na
atuação dos espanhóis no Novo Mundo e nas interpretações e debates filosóficos
que surgiam a partir dela.
A polêmica mais relevante nesse contexto refere-se à legitimidade da exploração
aos indígenas no debate que questiona a “servidão natural” desses povos e a
“guerra justa” a ser travada contra eles. Na Espanha, existia uma preocupação das
autoridades para que as conquistas fossem feitas de acordo com a legalidade, por
isso as controvérsias – enquanto debates – foram permitidas e promovidas pela
própria Coroa. Assim, deve ser ressaltado que, na Espanha, houve debate, e os
conquistadores, quando questionados, tiveram que explicar suas ações ante as
autoridades, o que não aconteceu em outros países, como, por exemplo, na
Alemanha e na Inglaterra, onde os argumentos econômicos foram suficientes
(GUTIERREZ, 2014).
É importante dizer que a consciência global que hoje criminaliza os feitios dos
conquistadores não possuía tanta abrangência na época da conquista, o
pensamento foi sendo moldado ao longo dos séculos, após reinterpretações dos
fatos históricos engatilhadas por temáticas posteriores, como a guerra de
independência, no século XIX, e a Revolução Cubana no século XX.
Ainda no contexto do século XVI, ocorreu uma importante polêmica entre Bartolomé
de Las Casas e Juan Ginés de Sepúlveda, conhecida como “controvérsia de
Valladolid”, que aconteceu no ano de 1550 na cidade espanhola Valladolid.
Sepúlveda foi o filósofo responsável por elaborar o argumento da “guerra justa” que
teve seu ponto alto durante a controvérsia.
As premissas que permitiam a aceitação do argumento tinham grande influência por
terem como fundamento o texto aristotélico Política, logo, tornavam-se indiscutíveis
pela autoridade presente em Aristóteles naquela época. Com base no texto, foram
criados dois importantes silogismos, como descrito por Jorge Gutierrez:
“O primeiro foi: os bárbaros são naturalmente escravos; os índios são bárbaros;
logo, os índios são naturalmente escravos. e o segundo: é lícito fazer a guerra
contra os naturalmente escravos para subjugá-los; os índios são naturalmente
escravos; logo, é lícito fazer a guerra contra os índios para subjugá-los”
(GUTIERREZ, 2014).
Portanto, só restava comprovar a barbárie presente nos indígenas para legitimar
teoricamente a escravidão e as ações armadas contra eles. O problema-chave,
então, consistiu em determinar a relação entre a barbárie e a humanidade nos
índios.

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Para Las Casas, no entanto, não era válido aplicar o adjetivo “bárbaro” aos
indígenas sem antes distinguir as diversas classes de barbárie que existiam no texto
aristotélico e na própria realidade. Estas eram, no mínimo, quatro, e ele as explicou
com detalhes em pelo menos três obras: na Historia de las Indias, em que narrou
sua controvérsia contra Quevedo, na Apología e na Apologética Historia.
Ele concluiu, a partir do estudo de Política, que “nem todos os bárbaros carecem de
razão nem são servos por natureza ou indignos de se governar a si próprios”. Seu
dizer era facilmente constatável na época: os índios viviam em grandes
agrupamentos com regimes políticos e sociais, tinham grandes cidades, reis, juízes
e leis; e tudo isso dentro de uma organização na qual havia comércio, compra,
venda, aluguel, e todos os tipos de contratos próprios do direito.
Las Casas acusou Sepúlveda de falsear contra os índios a doutrina de Aristóteles,
por ignorância ou maldade, e difamar os povos pré-colombianos para todo o mundo.
Através do estudo e da diferenciação entre os diversos tipos de barbárie, ele
destruiu os silogismos dos conquistadores e, apesar dos poucos resultados práticos
ainda naquela época, ele contribuiu grandiosamente para a formulação do
pensamento se desenvolveu nos séculos posteriores sobre os direitos humanos e os
direitos dos povos.
No entanto, nem mesmo Bartolomé de Las Casas esteve imune de críticas e
reinterpretações que tentaram deslegitima-lo, como no caso da historiadora
Consuelo Varela em sua introdução e notas em edição de Brevíssima Relación de
Destruición de las Indias. Varela, contudo, utilizou fontes de segunda mão sem
comprová-las, como demonstrado pelo mestre em Letras da Universidade Federal
do Pernambuco (UFPE), Juan Pablo Martín Rodrigues.

3.2. HATUEY COMO ÍCONE CONTEMPORÂNEO


Ainda que os regimes imperialistas, mercantilistas e, posteriormente, capitalistas
tentassem manipular a imagem dos indígenas para justificar e facilitar a própria
atuação nas terras desses povos, os grandes heróis da remota resistência nativa
são celebrados ainda hoje pelos movimentos sociais que lutam contra os inúmeros
atentados contra os Direitos Humanos.
Isso se expressa em vários artigos jornalísticos, obras literárias e manifestos que, ao
abordarem acontecimentos recentes, fazem alusões que reforçam a memória e o
legado do cacique Hatuey, dentre outros líderes da resistência indígena, para
denunciar atrocidades – assim como fez, no passado, Bartolomé de Las Casas – e
incentivar a resistência.
Não à toa, Hatuey é conhecido como “O Primeiro Herói Nacional de Cuba”. Ele
revive também nas artes plásticas, no ramo industrial (no nome ou identidade visual
de diversas marcas e produtos, como bebidas, charutos, alimentos), no cinema –
filme “También la lluvia” – e em monumentos nas cidades Baracoa e Yara, em Cuba.
Aos pés da estátua em Yara, que retrata o momento de sua execução (que
aconteceu nessa cidade), há uma placa que diz "À memória do Chefe Hatuey, nativo
inesquecível, precursor da liberdade cubana, que ofereceu a sua vida, e glorificou a
sua rebelião no martírio das chamas em 2/2/1512. Delegação dos Monumentos de
Yara, 1999".

CONCLUSÃO
O discurso do cacique Hatuey tem como propriedade a denuncia direta dos crimes
cometidos pelos conquistadores espanhóis contra a humanidade. Foi publicado
ainda no século XVI, algumas décadas após a execução do líder indígena, mas
ainda hoje é relembrado com finalidade similar: a reinvidicação de direitos aos povos
oprimidos por regimes econômicos cruéis que ultrapassam todos os limites em prol
do enriquecimento. A questão indígena no Caribe foi pouco destacada pela
historiografia cubana, mas ao longo do aumento das lutas sociais em todo o mundo,
a história de Hatuey e de outros mártires é consagrada para além de Cuba.
Assim, torna-se possível a reinterpretação de uma história que, após 500 anos de
seu acontecimento, faz se urgente mais uma vez. As controvérsias que começaram
naquele contexto ainda hoje possuem pautas em aberto e encabeçam temas de
debates atuais, especialmente no que se refere a uma problemática que permeia a
história do mundo desde tempos muito distantes: as disputas étnico-raciais e as
tentativas de argumentação em prol da existência de uma “supremacia racial
(branca)”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A história de Cuba convém como um forte exemplo de como a busca avarenta por
riquezas, a custo de qualquer coisa, acaba em dor e destruição para a população
submetida à exploração.
E muito embora se fale a respeito da conquista espiritual como pautada na
religiosidade católica e nas crenças transcendentais, é necessário reconhecer os
aspectos econômicos que estiveram por trás das conquistas ultramarinas desde o
princípio. O próprio frei Bartolomé de Las Casas decepcionou-se com o rumo que
tomou a colonização espanhola por fugir do aspecto religioso enquanto extraía todas
as riquezas antilhanas sem mais justificar-se no cristianismo e inclusive utilizando a
Bíblia para mascarar os horrores que eram cometidos.
O senhor daqueles cristãos, não era mais um Deus transcendental, e sim o ouro.

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REFERÊNCIAS
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BIBLIOGRAFIA
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EXPOSITO, Cesar Rodriguez. Hatuey, el primer libertador de Cuba. La Habana:
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RODRIGUES, Juan Pablo Martín. Bartolomé de Las Casas: a pena contra a
espada. Recife: Universidade Federal do Pernambuco, 2006.
SUESS, Paulo. La Conquista Espiritual de La America Española: 200 documentos-
siglos XVI.

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