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COMENTÁRIOS II TM 3.

14-17

1.1 HENDRIKSEN

14, 15. Você, contudo, deve continuar nas coisas que tem aprendido e das
quais você se tem convencido.
Você (note a posição enfática no original, bem no início da oração, como no v.
10) deve seguir um curso que é o oposto exato daquele que foi seguido pelos falsos
mestres e seus adeptos. Timóteo, pois, é aqui admoestado a continuar ou
permanecer em “as coisas” (as doutrinas baseadas na Santa Escritura, ver vv. 15,
16) que ele aprendera e das quais se convencera. Quando ele as aprendera? E
quando se convencera delas? O tempo usado no original não especifica.
Simplesmente afirma o fato histórico de que Timóteo aprendera e se convencera. À
luz do contexto (v. 15) deduzimos que os dois fatos (aprender e convencer-se)
começaram a produzir-se numa idade muito tenra. É natural presumir que havia
continuado até o exato momento em que Paulo o admoesta a permanecer nessas
coisas. A aprendizagem havia crescido ao longo dos anos e a convicção se
aprofundara.
Note que aprender não basta. O que se aprendeu deve ser aplicado pelo Espírito
Santo ao coração, para que também se chegue ao convencimento, com uma
convicção que transforme a vida.
Segundo a construção gramatical mais natural, Paulo declara duas razões pelas
quais Timóteo deve perseverar nas coisas que aprendera e das quais se
convencera. Na realidade, as duas razões são apenas uma, porque o testemunho
de seres humanos a respeito dos assuntos de fé nada significam à parte da Palavra;
não obstante, visto que a Deus aprouve comunicar, por meio de indivíduos humanos
devotos, à mente e ao coração de Timóteo a mensagem da Palavra, é inteiramente
próprio falar de duas razões:
a. O caráter fidedigno daqueles que haviam instruído Timóteo nessas doutrinas
(v. 14b); e
b. a excelência superior das sagradas letras sobre as quais essas doutrinas
estão baseadas (v. 15).
A primeira razão é expressa nestas palavras: sabendo de quem as aprendeu.
Timóteo não deve jamais esquecer que ele aprendera essas coisas de ninguém
menos que o próprio Paulo (ver vv. 10 e 11, supra) e, retrocedendo no tempo,
daquelas duas mui estimadas dignidades: a avó Loide e a mãe Eunice (2Tm 1.5),
mulheres que, antes de sua conversão à fé cristã, introduziram o pequeno Timóteo
nas “sagradas letras”, e que, havendo uma vez aceitado a Jesus como seu Senhor e
Salvador, foram usadas como instrumentos nas mãos divinas em cooperação com
Paulo na importante tarefa de levar o jovem a ver em Cristo o cumprimento das
promessas do Antigo Testamento.
É evidente que Paulo, Loide, Eunice e outros que pudessem ter nutrido Timóteo,
não são considerados autoridades independentes, separadas da Palavra, mas como
fontes secundárias ou intermediárias de conhecimento, avenidas de instrução, e
mesmo assim só porque aceitavam as Escrituras! – Daí, aqui não se consideram
basicamente Tradição e Escrituras autoritativas (o que realmente significa Tradição
se sobrepondo às Escrituras). A Escritura sozinha (ver vv. 15 e 16) é a autoridade
final, e a tradição só é importante na medida em que adere às Escrituras e as
comunica. Quando assim ocorre, ela é de importância considerável, e isso
especialmente na educação dos filhos que ainda não sabem ler ou não sabem por si
sós interpretar as Escrituras!
Consequentemente, a segunda – e única que é realmente básica – razão pela
qual Timóteo deve perseverar nas coisas que aprendera e das quais se convencera
é: e que desde a infância você conheceu [os] sagrados escritos, os quais
podem fazê-lo sábio para a salvação pela fé [que está] em Cristo Jesus.
Princípios e métodos de educação em Israel antecedentes para a compreensão de 2
Timóteo 3.15
(1) Entre os judeus, a educação era definitivamente teocêntrica quanto a
princípios, conteúdo e métodos. O israelita piedoso ensinava seus filhos porque
Jeová lhe ordenava agir assim. Ele instruía seus filhos com respeito à verba et gesta
Dei (palavras e feitos de Deus), como registrado em “os sagrados escritos”. Isto é
evidente em todo o Antigo Testamento (Gn 18.19; Êx 10.2; 12.26, 27; 13.14–16; Dt
4.9, 10; 6.7, 9; 11.19; 32.46; Is 38.19; e muitas outras passagens; cf. também
Josefo, Antiquities, IV.viii.12).
(2) Naturalmente, o conteúdo desse corpo de educação teocêntrica era “O temor
do Senhor é o princípio do saber, e o conhecimento do Santo é prudência” (Pv 1.7;
9.10). Este era também seu propósito: “De tudo o que se tem ouvido, a suma é:
Teme a Deus e guarda os seus mandamentos; porque isto é o dever de todo
homem” (Ec 12.13).
(3) A princípio, como se depreende claramente de muitas das passagens citadas,
a educação física, mental, moral e espiritual da criança estava centrada
exclusivamente no lar, com a participação tanto do pai quanto da mãe. Os filhos
pequenos, meninos e meninas, recebiam a instrução de sua mãe, a qual ficava
encarregada da educação das meninas em idades mais avançadas. Em
contrapartida, os meninos logo ficavam sob o cuidado do pai. Mesmo em épocas
posteriores (quando o pai e a mãe recebiam ajuda externa na educação de seus
filhos; ver (14)) a influência dos pais piedosos e seus esforços em guiar seus filhos
no temor de Deus continuou sendo proeminente.
(4) As crianças, por sua vez, eram admoestadas a prestar atenção à instrução de
seu pai e a não rejeitar o ensino de sua mãe (Pv 1.8; 6.20). Eram ensinadas a
honrar e a obedecer aos seus pais (Êx 20.12; 21.15–17; Lv 20.9; Dt 21.18; Pv 30.17;
cf. Ef 6.1–3). As Escrituras refutam a falsidade destrutiva da alma de que se deve
permitir à criança fazer “o que lhe agrada”. Os pais piedosos não infligiam essa
crueldade a seus tenros filhinhos!
(5) A razão pela qual não se deixava tudo a critério da criança consistia em que o
pequenino era considerado não só imaturo (esta era uma razão por si só suficiente),
mas também pecador por natureza, e portanto incapaz de escolher por si só o bem
(Sl 51.5).
(6) Compreendendo que nenhuma sabedoria ou piedade humana é capaz de
competir com os tremendos prejuízos causados pelo pecado, os pais piedosos
encomendavam seus filhos a Deus e ao seu benevolente cuidado (Jó 1.5).
(7) Em Israel, a educação centrada em Deus tinha início quando a criança era
ainda bem pequena (1Sm 1.27, 28; 2.11, 18, 19; cf. Josefo, Against Apion, I.12;
Susana 3; 4 Macabeus 18.9). O propósito de começar bem cedo é expresso de
forma muito bela nas palavras de Provérbios 22.6: “Ensina a criança no caminho em
que deve andar [literalmente, “segundo seu caminho”), e ainda quando for velho não
se desviará dele.”
(8) Em meio à difícil tarefa de educar adequadamente seus filhos, os israelitas
recebiam muito incentivo da promessa do pacto de Deus: “Estabelecerei minha
aliança entre mim e ti e tua descendência depois de ti no decurso das gerações,
aliança perpétua, para ser o teu Deus e de tua descendência” (Gn 17.7; Sl 74.20;
105.8, 9), uma promessa que se concretiza organicamente no coração e na vida de
todos os que pelo poder revigorante da graça soberana de Deus estão firmemente
resolvidos a render-se completamente a ele. (Cf. At 2.38, 39; Gl 3.9, 29.)
(9) Em vista do fato de que a criança era considerada pecadora por natureza,
mas que pela graça era passível de mudança interior, não se descartava a disciplina
como algo sem proveito ou injusto. A vara da correção não era poupada, todavia era
usada com discrição, visto que a repreensão sábia era considerada geralmente
melhor que centenas de varadas (Pv 13.24; 23.13, 14; em também 17.10).
(10) Acima de tudo, os pais amavam seus filhos e os educavam no espírito do
amor (Sl 103.13). As crianças judias não eram forçadas a devotar todo seu tempo ao
trabalho e ao estudo. Tinham seus jogos (Zc 8.5; Mt 11.16–18).
(11) Ainda que os israelitas piedosos tomassem muitas decisões por seus filhos,
eles os preparavam para saber escolher por si mesmos (Js 24.15).
(12) A educação em Israel era de um caráter muito prático. Tudo indica que
mesmo as crianças menores muitas vezes aprendiam a ler e a escrever (Is 10.19; cf.
Josefo, Against Apion, II. 25), embora seja impossível precisar a extensão dessa
habilidade (cf. Is 29.11, 12). É bem notório que ensinavam às crianças um trabalho e
as estimulavam a aprender uma profissão.
(13) Quanto à metodologia, como regra geral, os israelitas não tinham aversão
pela memorização. Até certo ponto, a necessidade exigia e o senso comum ditava
que a memorização recebesse um lugar de proeminência no sistema educativo (Is
28.10). Às vezes esse método podia receber uma ênfase indevida, assim como na
atualidade se põe bem pouca ênfase sobre ele.
A noção de que os educadores só deviam fazer aquelas perguntas que ninguém
senão a criança deve responder (!) só era favorecida por homens como Eli (“Por que
fazem essas coisas?”, 1Sm 2.23), que fracassou miseravelmente na tarefa de criar
seus filhos. Deus exigia que, ao fazer perguntas, fossem dadas respostas definidas
(Êx 13.8; Dt 6.7; 6.20–25; 11.19; Js 22.26–28); que aos filhos fossem ensinados os
estatutos de Jeová; que se transmitisse de geração em geração um corpo de
verdade em relação às palavras e aos feitos de Jeová.
(14) Ainda que a princípio a educação da criança fosse considerada como tarefa
e responsabilidade só dos pais, em períodos posteriores os sacerdotes e levitas,
profetas e tutores especiais (especialmente no caso das famílias abastadas, Nm
11.12; 2Sm 12.25; 2Rs 10.1; 1Cr 27.32; Is 49.23), “homens sábios”, escribas e
rabinos, todos davam sua contribuição para elevar o nível cultural da juventude e da
nação.
Depois do exílio (especialmente no tempo de Simão ben Shatah, cerca de 70
a.C.), devido à influência dos escribas, surgiu gradualmente uma nova ordem de
instituições educacionais ou “escolas”. A escola era chamada “casa” ou “lugar”
(hebraico, Beth). A escola primária ou elementar se denominava Beth-Ha-Sefer
(“lugar de escrever”); a escola que os jovens talentosos frequentavam se chamava
Beth-Ha-Midrash (“lugar de estudo”), enquanto para as massas surgiu a Beth-Ha-
Keneseth (“lugar de assembleia”). No curso do tempo, esse “lugar” (ou “casa”) de
assembleia começou a ser conhecido por seu nome grego, de igual significado,
“sinagoga”.
(15) À luz do livro de Daniel é evidente que o sistema de educação religiosa se
centralizava no lar, fosse formal (comunicando instrução específica e sistemática) ou
informal (ensinando pelo exemplo) – em conexão com as festas, uniram-se a
educação formal e a informal – realmente teve eficácia. Mesmo nas terras do exílio,
os jovens que haviam sido criados nos caminhos de Jeová se negavam, mesmo
com o risco de perder a vida, a contaminar-se ou a render homenagem a pessoa ou
coisa que não fosse o Deus de seus pais. Desse modo, através da escura noite do
cativeiro e do domínio estrangeiro, o exemplo de piedade paternal, a doutrinação
nos estatutos de Jeová (Sl 119.33), serviu como uma lâmpada para os pés e luz
para o caminho (Sl 119.105). Também serviu para estreitar a unidade do povo, e
onde quer que fosse praticada com diligência, evitou a perda de sua identidade
espiritual e, em muitos casos, fez com que fossem uma bênção para seus vizinhos
pagãos.
Por conseguinte, a avó Loide e a mãe Eunice haviam instruído o “pequeno”
Timóteo (2Tm 1.5) à maneira dos israelitas piedosos. Note a expressão “desde a
infância”. Literalmente, Paulo diz: “desde pequeno.” Em algumas passagens, a
palavra usada no original indica uma criança ainda não nascida (Lc 1.41, 44); em
outros lugares simplesmente uma criança bem pequena, um bebê ou infante (Lc
2.12, 16; 18.15; At 7.19; 1Pe 2.2). Não obstante, quando Paulo escreve: “Você,
contudo, deve continuar nas coisas que tem aprendido e das quais se convenceu,
porque… desde a infância você tem conhecido [os] sagrados escritos”, ele não está
pensando somente na primeira infância de Timóteo, mas está se referindo à vida de
Timóteo desde os dias de sua infância até esse exato momento. Ao longo de todo o
período, Timóteo passou a conhecer os escritos sacros, havendo aprendido a
conhecê-los cada vez melhor.
Isso também indica que a expressão “sagrados escritos” não significa apenas o
“ABC que você aprendeu da Bíblia quando era pequeno” (como muitos intérpretes
afirmam). Por “escritos sagrados”, o apóstolo simplesmente quer dizer o Antigo
Testamento. As palavras têm uma história. O fato de que γράμμα tenha o sentido
primário “aquilo que é delineado ou traçado”, daí caráter, letra, escrito, de forma
alguma nos compele a aceitar tal significado aqui. Ver C.N.T. sobre João 7.14, 15.
Em Josefo, “escritos sagrados” significa o Velho Testamento (Antiquities, X. x. 4;
Against Apion, I. 10). Ele apresenta a lista dos livros pertencentes a ele em Against
Apion, I. 8. Esta lista mostra que seu Antigo Testamento era o mesmo que o nosso
(ver a explanação em meu livro Bible Survey, pp. 19, 20).
Paulo usa a expressão “escritos sagrados” aqui no versículo 15, porém “toda
escritura” no versículo 16, pela simples razão de que ele deseja estabelecer uma
distinção entre o Antigo Testamento (v. 15) e qualquer outra que tenha o direito de
chamar-se escritura divinamente inspirada (v. 16). A última compreende mais que a
primeira. Não obstante, Paulo não estaria errado em dizer que Timóteo fora instruído
em “toda escritura” desde os dias de sua infância, pois quando ele era bem
pequeno, Loide e Eunice só conheciam o Antigo Testamento. Mas era
definitivamente certo que, desde sua mais tenra idade até o momento em que Paulo
está escrevendo essas palavras, Timóteo estivera constantemente aumentando seu
conhecimento do Antigo Testamento. Que ele, pois, permaneça firme na fé. Que ele
continue apegado àquilo que aprendera tão plenamente e do que se convencera de
todo o coração!
Que esta é a explicação correta, também se torna claro à luz das palavras que se
segue, ou seja: “os sagrados escritos… os quais podem fazê-lo sábio para a
salvação.” As letras do alfabeto (mesmo quando aprendidas na própria Bíblia!), o
simples ABC, não podem fazer alguém sábio para a salvação; os escritos sagrados
podem! Eles são “o testemunho de Jeová” e seus “mandamentos” que fazem uma
pessoa sábia (Sl 19.7; 119.98; em ambos os casos o mesmo verbo é usado na
Septuaginta como é aqui em 2 Timóteo 3.15; ver LXX Sl 18.8; 118.98). São essas
que levam uma pessoa a escolher o melhor meio com o fim de alcançar a meta mais
elevada. E essa é a verdadeira sabedoria! Note bem: “sábio para a salvação” (Rm
11.11; Fp 1.19; 2.12, etc.). O que está incluso nesse rico conceito já foi explicado em
relação a 1 Timóteo 1.15.
Ora, essa maravilhosa obra de Deus, pela qual os pecadores são emancipados
do maior dos males e entram na posse do maior dos bens, não é produzido de uma
forma mecânica por simplesmente ouvir, ler ou estudar “os escritos sagrados”. É
necessário aprender a visualizar Cristo Jesus no Antigo Testamento. É necessário
que a pessoa renda sua vida (note: “pela fé”) ao Salvador Ungido, sem o qual “os
escritos sagrados” não têm sentido (sobre Cristo como o cumprimento do Antigo
Testamento, ver Lucas 24.27, 32, 44; Jo 5.39, 46; At 3.18, 24; 7.52; 10.43; 13.29;
26.22, 23; 28.23; 1Pe 1.10).
16, 17. Paulo agora expande a ideia que ele acaba de expressar. Ele faz isto de
três formas:
a. Não é somente “os escritos sagrados” (v. 15) que são de inestimável valor;
também o é “toda escritura”.
b. Esta literatura sagrada não só “faz sábio para a salvação” (v. 15), mas é
também definitivamente inspirada por Deus e, como tal, capaz de levar uma
pessoa a ser inteiramente apta “para toda boa obra”.
c. Beneficiará não só a Timóteo (v. 15), mas também fará o mesmo a todo
“homem de Deus”.
Consequentemente, Paulo escreve: Toda escritura [é]162 inspirada por Deus e
útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para preparar na justiça.
Toda escritura, distinta de “[os] escritos sagrados” (ver a respeito comentário
sobre o v. 15), significa tudo o que, por meio do testemunho do Espírito Santo na
igreja, é reconhecido pela igreja como canônico, ou seja, com autoridade. Quando
Paulo escreveu estas palavras, a referência direta era a um corpo de literatura
sagrada que ainda então compreendia mais que o Antigo Testamento (ver
comentário sobre 1Ts 5.18; também, nota 160). Depois, no final do 1.° século d.C.,
“toda escritura” já havia sido completada. Ainda que a história do reconhecimento,
da revisão e da ratificação do cânon fosse um tanto complicada, e a aceitação dos
66 livros de forma virtualmente universal não tenha ocorrido imediatamente em
todas as regiões em que a igreja estava representada – sendo uma das razões o
fato de que por longo tempo certos livros menores ainda não haviam chegado a
todos os rincões da igreja –, não obstante permanece verdadeiro que os crentes
genuínos que foram os recipientes originais dos vários livros de inspiração divina os
consideraram imediatamente como investidos de autoridade e majestade divinas.
Não obstante, o que se deve enfatizar é que esses livros são a Bíblia inspirada não
porque a igreja, em certa data, muito tempo antes, assim tenha decidido (a decisão
do Concílio de Hipona, 393 d.C.; de Cartago, 397 d.C.); ao contrário, os 66 livros, à
luz de seu próprio conteúdo, imediatamente testificam ao coração do homem que ele
tem o Espírito Santo vivendo nele, de que ele é um oráculo vivo de Deus. Daí os
crentes se encherem de profunda reverência onde quer que ouvem a voz de Deus
que lhes fala por intermédio da Santa Escritura (ver 2Rs 22 e 23). Toda escritura é
canônica porque Deus a fez assim!
A palavra divinamente inspirada, que ocorre somente aqui, indica que “toda
escritura” deve sua origem e seu conteúdo ao sopro divino, ao Espírito de Deus. Os
autores humanos foram guiados poderosamente pelo Espírito Santo. Como
resultado, o que eles escreveram não só está isento de erro, mas é de valor
supremo para o homem. É tudo o que Deus quis que fosse. Constitui a infalível regra
de fé e prática para a humanidade.
Não obstante, o Espírito não suprimiu a personalidade humana do autor, mas a
elevou ao seu maior nível de atividade (Jo 14.26). E, visto que a individualidade do
autor humano não foi destruída, encontramos na Bíblia uma ampla variedade de
estilo e linguagem. Em outros termos, a inspiração é orgânica, não mecânica. Isto
também implica que ela nunca deve ser considerada em separado das muitas
atividades que serviram para levar o autor humano ao cenário da História. Ao fazê-lo
nascer em determinado lugar e tempo, ao conceder-lhes alguns dons específicos, ao
equipá-lo com um tipo definido de educação, ao fazê-lo passar por experiências
predeterminadas, e ao fazê-lo lembrar-se de certos fatos e suas implicações, o
Espírito preparou sua consciência humana. Em seguida, o mesmo Espírito o impeliu
a escrever. Finalmente, durante o processo da escrita, o mesmo Autor Primário,
numa conexão completamente orgânica com toda a atividade precedente, sugeriu à
mente do autor humano esta linguagem (as próprias palavras) e o estilo que seria o
veículo mais apropriado para a interpretação das ideias divinas para o povo de toda
estirpe, posição, idade e raça. Portanto, embora cada palavra seja verdadeiramente
de um autor humano, é ainda mais verdadeiramente a palavra de Deus.
Embora a expressão inspirada por Deus ocorra somente aqui, a ideia se
encontra em muitas outras passagens (Êx 20.1; 2Sm 23.2; Is 8.20; Ml 4.4; Mt 1.22;
Lc 24.44; Jo 1.23; 5.39; 10.34, 35; 14.26; 16.13; 19.36, 37; 20.9; At 1.16; 7.38;
13.34; Rm 1.2; 3.2; 4.23; 9.17; 15.4; 1Co 2.4–10; 6.16; 9.10; 14.37; Gl 1.11, 12; 3.8,
16, 22; 4.30; 1Ts 1.5; 2.13; Hb 1.1, 2; 3.7; 9.8; 10.15; 2Pe 1.21; 3.16; 1Jo 4.6; e Ap
22.19).
Ora, em virtude do fato de “toda escritura” ser inspirada por Deus, ela é útil ou
benéfica ou proveitosa. Ela é muito prática, sim, um instrumento ou ferramenta
indispensável para o mestre (implícito aqui). Timóteo faria bem em usá-la:
a. para o ensino. O que está implícito é a atividade de comunicar conhecimento
acerca da revelação de Deus em Cristo. Ver sobre 1 Timóteo 5.17. Isto é sempre
básico a tudo mais.
b. para repreensão (cf. Sl 38.14; 39.11). É preciso fazer advertências baseadas
na Palavra. Os erros em doutrina e em conduta devem ser refutados no espírito de
amor. Os perigos devem ser realçados. Os falsos mestres devem ser expostos (cf.
1Tm 5.20; Tt 1.9, 13; 2.15; então Ef 5.18; e ver C.N.T. sobre João 16.8–11).
c. para correção (ver M.M., p. 229). Se repreensão enfatiza o aspecto negativo
da obra pastoral, a correção enfatiza o lado positivo. O pecador deve ser não só
advertido a abandonar a vereda errada, mas deve ser também guiado na vereda
certa ou reta (Dn 12.3). Isto também “toda escritura” é capaz de fazer. A Palavra,
especialmente quando é usada por um consagrado servo de Deus que é diligente no
cumprimento de seus deveres pastorais, é restaurada em seu caráter (cf. Jo 21.15–
17).
d. para a preparação na justiça (cf. 2Tm 2.22). O mestre deve preparar seu povo.
Cada cristão necessita ser disciplinado, de modo que prospere na esfera onde a
vontade santa de Deus seja considerada normativa. Este é o caráter do treinamento
na justiça (cf. Tt 2.11–14).
O mestre (neste caso de Timóteo, porém a palavra se aplica a alguém a quem as
almas humanas são confiadas) necessita de “toda escritura”, a fim de capacitá-lo a
cumprir sua quádrupla tarefa (ensinar, administrar repreensão, corrigir, treinar na
justiça), com um glorioso propósito em mente, propósito este que a sua própria
maneira e a seu próprio tempo Deus levará à concretização nos corações de todo
seu povo: a fim de que o homem de Deus seja equipado, plenamente equipado
para toda boa obra.
O homem de Deus (ver sobre 1Tm 6.11) é o crente. Cada crente, considerado
como pertencente a Deus, e como tal investido com o tríplice ofício de profeta,
sacerdote e rei, recebe aqui este título. Para exercer adequadamente este tríplice
ofício, o crente deve ser bem equipado (note a ênfase do original; literalmente,
“…que equipado possa ser o homem de Deus”); sim, de uma vez por todas,
plenamente equipado (cf. Lc 6.40) “para toda boa obra” (1Tm 5.10; 2Tm 2.21; Tt
3.1). Paulo (e o Espírito Santo falando por intermédio dele) não se satisfaz enquanto
a Palavra de Deus não cumprir plenamente sua missão e o crente não tiver
alcançado “a medida da estatura da plenitude de Cristo” (Ef 4.12, 13).
O ideal a ser concretizado é deveras glorioso! O poder para alcançá-lo vem de
Deus. Daí, que Timóteo permaneça firme. Que ele permaneça na doutrina genuína,
aplicando-a sempre que se lhe depare a oportunidade.1

1.2 CAVINO

14. Tu, porém, permanece nas coisas que aprendeste. Ainda que a impiedade
estivesse crescendo e prevalecendo, não obstante o apóstolo diz a Timóteo que se
mantivesse firme. Certamente que este é um teste real para nossa fé, quando com
zelo infatigável resistimos a todos os intentos do diabo, recusando-nos a alterar o
curso frente a todos os ventos que sopram, e assim permanecemos inamovíveis na
verdade de Deus como uma âncora segura.
Sabendo de quem o aprendeste. A intenção de Paulo aqui é enaltecer a certeza
de sua doutrina, porquanto não devemos perseverar em coisas nas quais temos sido
erroneamente instruídos. Se desejamos ser discípulos de Cristo, então devemos
desaprender tudo quanto aprendemos à parte dele. Por exemplo, nossa instrução
pessoal na fé pura começou quando rejeitamos e esquecemos tudo o que
aprendemos sob o jugo do papado. O apóstolo não está dizendo a Timóteo que
retivesse, indiscriminadamente, todo e qualquer ensino a ele transmitido, mas
somente o que soubesse ser a verdade; o que ele quer dizer é que devemos fazer
uma seleção. Sua alegação de que o que ele ensina deve ser recebido como
revelação divina não é feita por sua própria causa, como um indivíduo em particular.
Ao contrário, Paulo ousadamente afirma a Timóteo sua autoridade apostólica,
sabendo que sua fidelidade era notória e sua vocação aprovada, até onde lhe era

1 William Hendriksen, 1 e 2 Timóteo e Tito, org. Cláudio Antônio Batista Marra, trad.
Valter Graciano Martins, 2a edição, Comentário do Novo Testamento (São Paulo, SP:
Editora Cultura Cristã, 2011), 362–374.
possível saber. Estando seguramente persuadido de que havia sido instruído pelo
apóstolo de Cristo, Timóteo poderia deduzir disto que a doutrina tinha por fonte não o
homem, mas Cristo mesmo.
Esta passagem nos ensina que devemos exercer a mesma preocupação, tanto
para evitar-se a falsa segurança em questões que são indefinidas, ou seja, todas as
coisas que os homens ensinam, quanto para sustentar a verdade de Deus com
inabalável firmeza. Também aprendemos que devemos acrescentar à nossa fé o
discernimento que nos possibilita a distinguir a Palavra de Deus da palavra do homem,
de modo que não aceitemos descriteriosamente tudo quanto nos é oferecido. Nada é
mais estranho à fé do que uma credibilidade simplória que nos convida a aceitar tudo
indiscriminadamente, não importando qual seja sua natureza ou fonte, pois o principal
fundamento da fé é sabermos que ela tem sua origem e autoridade em Deus.
E de que foste confiado. Ao acrescentar que a Timóteo foi confiado seu ensino,
Paulo adiciona força à sua exortação. Confiar uma coisa a alguém é mais do que
simplesmente entregá-la. Timóteo não havia sido instruído como se faz a uma pessoa
comum, mas como à alguém que pudesse fielmente passar às mãos de outros o que
havia recebido.
15. E que desde a infância. O fato de que Timóteo fora acostumado, desde a
infância, a ler as Escrituras era também um poderoso impulso à fidelidade, pois este
prolongado hábito pode fazer um homem muito melhor preparado contra qualquer
gênero de fraude. Era um sábio cuidado que nos tempos antigos se tomava em
assegurar-se de que aqueles que eram destinados ao ministério da Palavra fossem
desde a infância instruídos na sólida doutrina da piedade e houvessem bebido as
profundas águas dos escritos sagrados, para que, ao assumirem o desempenho de
seu ofício, não se revelassem aprendizes inexperientes. E assim, se porventura
alguém tenha adquirido desde sua tenra juventude um sólido conhecimento das
Escrituras, o mesmo deve considerar tal coisa como uma bênção especial da parte de
Deus.
Que podem fazer-te sábio para a salvação. É uma recomendação por demais
sublime das Escrituras dizer que a sabedoria suficiente para a salvação não pode ser
encontrada em outra parte, e o versículo seguinte explica seu significado muito bem.
Ao mesmo tempo, porém, ele nos diz o que devemos buscar na mesma Escritura, pois
os falsos profetas também fazem uso dela em busca de pretexto para o seu ensino.
Para que ela nos seja proveitosa para a salvação, temos de aprender a fazer dela um
uso correto.
Pela fé que está em Cristo Jesus. Que proveito há se porventura alguém se
interessa apenas por especulações curiosas? Que proveito há se porventura ele só
adere à letra da lei e não busca a Cristo? Que proveito há se porventura ele perverte
o significado natural com as interpretações estranhas à fé? O apóstolo tem boas
razões para lembrar-nos da fé que está em Cristo, a qual é o centro e a suma da
Escritura. Pois o que imediatamente se segue também depende da fé.
16. Toda a Escritura – ou a totalidade da Escritura, embora não faça nenhuma
diferença no sentido. Ele agora explica mais plenamente sua breve recomendação.
Primeiro, recomenda a Escritura por causa de sua autoridade; e, a seguir, por causa
do benefício que dela advém. Para asseverar sua autoridade, ele ensina que ela é
inspirada por Deus. Porque, se esse é o caso, então fica além de toda e qualquer
dúvida que os homens devem recebê-la com reverência. Eis aqui o princípio que
distingue nossa religião de todas as demais, ou seja: sabemos que Deus nos falou e
estamos plenamente convencidos de que os profetas não falaram de si próprios, mas
que, como órgãos do Espírito Santo, pronunciaram somente aquilo para o qual foram
do céu comissionados a declarar. Todos quantos desejam beneficiar-se das Escrituras
devem antes aceitar isto como um princípio estabelecido, a saber: que a lei e os
profetas não são ensinos passados adiante ao bel-prazer dos homens ou produzidos
pelas mentes humanas como sua fonte, senão que foram ditados pelo Espírito Santo.
Se alguém objetar e perguntar como é possível saber que foi assim, minha
resposta é a seguinte: é pela revelação do mesmo Espírito que Deus se tem feito
conhecer como seu Autor, tanto aos discípulos quanto aos mestres. Moisés e os
profetas não pronunciaram precipitadamente e ao acaso o que deles temos recebido,
senão que, falando pelo impulso de Deus, ousada e destemidamente testificaram a
verdade de que era a boca do Senhor que falava através deles. O mesmo Espírito que
deu certeza a Moisés e aos profetas de sua vocação, também agora testifica aos
nossos corações de que ele tem feito uso deles como ministros através de quem
somos instruídos. E assim não é de estranhar que muitos ponham em dúvida a
autoridade da Escritura. Pois ainda que a majestade divina esteja exibida nela,
somente aqueles que têm sido iluminados pelo Espírito Santo possuem olhos para ver
o que deveria ser óbvio a todos, mas que, na verdade, é visível somente aos eleitos.
Eis o significado da primeira cláusula, a saber: que devemos à Escritura a mesma
reverência devida a Deus, já que ela tem nEle sua única fonte, e não existe nenhuma
origem humana misturada nela.
É também proveitosa. Agora vem a segunda parte da recomendação apostólica,
ou seja: que a Escritura contém a perfeita norma de uma vida saudável e feliz. Ao
expressar-se assim, o apóstolo quer dizer que a Escritura é corrompida por um
pecaminoso mau uso quando este propósito da utilidade não é buscado nela. E assim,
ele indiretamente reprova as pessoas levianas que estavam alimentando outras
pessoas com vãs especulações como com ar. Por esta mesma razão podemos hoje
condenar a todos aqueles que, sem nenhuma preocupação pela edificação, comovem
com muita arte, sim, porém com questões sem qualquer proveito. Sempre que
engenhosas mesquinharias desse gênero forem introduzidas, as mesmas devem ser
repelidas com esta frase, usada como um escudo: “a Escritura é proveitosa”. Segue-
se daqui que é errôneo usá-la de forma inaproveitável. Ao dar-nos as Escrituras, o
Senhor não pretendia nem satisfazer nossa curiosidade, nem alimentar nossa ânsia
por ostentação, nem tampouco deparar-nos uma chance para invenções místicas e
palavreado tolo; sua intenção, ao contrário, era fazer-nos o bem. E assim, o uso
correto da Escritura deve guiar-nos sempre ao que é proveitoso.
Para o ensino. Aqui ele enumera um a um os muitos e variados usos da Escritura.
Antes de tudo ele faz menção do ensino, visto que ele mantém a precedência acima
de todos os mais. Visto, porém, que a doutrina, por sua própria natureza, é às vezes
fria e inanimada, ele adiciona a reprovação e a correção.
Seria por demais demorado explicar o que podemos aprender das Escrituras, e no
versículo anterior ele já apresentou um breve sumário delas na palavra “fé”. Na
verdade, esta é a principal parte de nosso conhecimento – fé em Cristo. Em seguida
vem a instrução para a normatização de nossas vidas, à qual são acrescentados os
incitamentos das exortações e reprovações. Assim, a pessoa que faz um correto uso
da Escritura não carece de nada, nem para a salvação nem para um viver saudável.
A única diferença entre “reprovação” e “correção” é que a segunda é resultante da
primeira. Reconhecer nossa iniqüidade e encher-nos de convicção do juízo divino
sobre ela é o princípio do arrependimento. Instrução na justiça significa instrução
numa vida piedosa e santa.
17. Para que o homem de Deus seja perfeito. Perfeito, aqui, significa completo,
a pessoa em quem não existe nada que seja defeituoso, porque ele assevera
categoricamente que a Escritura é suficiente para efetuar a perfeição. Portanto,
qualquer pessoa que não fica satisfeita com a Escritura, busca saber mais do que
convém e mais do que lhe é bom saber.
Aqui, porém, suscita-se uma pergunta. Ao falar da Escritura, Paulo tinha em mente
o que chamamos Velho Testamento; como é possível dizer que ele pode fazer uma
pessoa perfeita? Se esse é o caso, o que depois foi acrescentado pelos apóstolos é
aparentemente supérfluo. Minha resposta é que, no que tange à substância da
Escritura, nada se acrescentou. Os escritos dos apóstolos nada contêm além de
simples e natural explicação da lei e dos profetas juntamente com uma clara descrição
das coisas expressas neles. Paulo, pois, estava certo ao celebrar os louvores da
Escritura nesses termos; e, visto que hoje seu ensino é mais completo e mais claro
pela adição do evangelho, devemos confiadamente esperar que a utilidade da qual
Paulo fala se nos torne muito mais evidente, caso estejamos dispostos a fazer a prova
e a recebê-la.2

2 João Calvino, Pastorais, org. Franklin Ferreira e Tiago Santos, trad. Valter Graciano
Martins, Primeira Edição, Série Comentários Bíblicos (São José dos Campos, SP:
Editora Fiel, 2009), 260–265.

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