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Aos fãs do Universo Kate Daniels que se recusam a aceitar o seu fim.
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MAPA DE ATLANTA PÓS-MUDANÇA


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Ilona Andrews
Copyright © 2021
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(Extra livro 0.5 da série Aurelia Ryder)


Autora decidiu adicionar como um Prólogo

Quatro anos depois da batalha de Atlanta

mesma? —O avô suspirou.

Sentei-me no chão da biblioteca, aquecendo-me em uma faixa de


luz suave que passava pela janela estreita e arqueada atrás de mim.
Sangue e sujeira manchavam meu jeans e minha camiseta. Tudo doía
e suportar o crivo de dores e sofrimentos era exaustivo. Meu corpo era
praticamente um grande hematoma. O lado direito doía mais,
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enviando uma pontada aguda de agonia pelas minhas entranhas toda


vez que eu respirava. A sétima costela estava quebrada.
Provavelmente quando o cara maior me chutou. Eu estava cobrindo
minha cabeça na hora, e a costela quebrada foi o menor dos dois
males. Eu estava me curando aos poucos, usando a magia, mas
precisava conservá-la. Eles viriam atrás de mim em breve.

— Tenho minhas razões, —eu disse a ele.

— São boas razões?

— As melhores.

O avô suspirou novamente. Seu rosto bonito, coberto por uma


barba grisalha bem cuidada, tinha uma expressão sofredora.

Meu irmão se aproximou do local perto da parede. Ele se moveu


de quatro, silencioso como um fantasma em patas acolchoadas.
Quando me materializei no palácio de Roland, Conlan viu o sangue
em meu rosto e imediatamente mudou de forma em uma explosão de
músculos. Na forma humana, Conlan estava com um metro e vinte
de altura, uma altura perfeitamente razoável para uma criança de
cinco anos. Eu sabia disso porque medíamos sua altura a cada seis
meses. Agora, em sua forma assustadora de guerreiro, ele era mais ou
menos da minha altura, armado com músculos poderosos,
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mandíbulas leoninas com presas de dez centímetros e garras que


podiam estripar um ser humano. Seu pêlo era muito escuro, quase
preto, e quando ele estava agitado, como agora, seus olhos dourados
brilhavam, duas luas de sangue carregadas com hormônios
metamorfos.

— Não é tão ruim. —Era pior.

Meu irmão deu uma patada na grossa corrente que se estendia das
algemas da minha perna e desaparecia no ar.

— Por favor, esqueça isso, —eu disse a ele.

Conlan pegou a corrente com a mão direita e a puxou, testando a


força.

— Pare. —Se ele a arrancasse da parede, todo o meu plano


entraria em colapso.

Ele se virou e estalou os dentes para mim. As enormes mandíbulas


se abriram e se fecharam, as presas deslizando umas contra as outras
como os dentes de uma armadilha de aço para ursos.

— Isso não foi legal.

Ele rosnou.
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O avô deu um passo à frente e colocou a mão no ombro do meu


irmão. — Você vai se atrasar para o jantar em sua casa.

O garoto soltou um grunhido baixo, meio rosnado meio suspiro,


que se transformou depois em um gemido.

— Eu sei. Sua irmã nunca faz nada sem um plano. Pode ir.

— Vou ganhar um abraço? —Estendi meus braços.

Ele resmungou, mas se aproximou e se aninhou em meus braços.


Eu o abracei, acariciando o pêlo macio.

— Não se preocupe. Vai dar tudo certo.

Conlan suspirou e de repente eu estava segurando o ar vazio.

— Por um centímetro ele quase mordeu meus dedos.

— Seu irmão ficou chateado. —O avô fechou um grande livro


antigo. — Alguém pode culpá-lo? Eu estou chateado. Se sua mãe
descobrisse, ficaria chateada.

Se Kate descobrisse, ela largaria tudo e cavalgaria para me salvar.


Eu tinha que evitar que isso acontecesse a todo custo.

— Sua avó ficará lívida.


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Minha avó foi quem me enviou para este inferno em primeiro lugar. Erra
queria vir pessoalmente, mas sua presença seria demais. Muito alta,
muito forte, muito bonita e muito cheia de magia. Ela chamaria a
atenção e seria tratada com medo e advertência que seu poder
merecia. Eu estava aprendendo a esconder meu poder e podia passar
por uma mera desconhecida e facilmente ser esquecida como uma
ameaça.

— Por que Moloch? —Perguntou Roland. — Por que agora?

— Há crianças nessa fortaleza do inferno. Ele tem mais de


quinhentos escravos construindo seu forte. Você tem que ver algumas
dessas pessoas. Elas são esqueletos ambulantes. Quando se olha nos
olhos delas, não há nada neles.

O fedor desse lugar, suor, urina, sangue, fezes, podridão de carne


infectada, permeando os estreitos túneis cheios de celas mal
iluminadas por opressivas lanternas mágicas. As vozes. Os cativos
mais novos choram, os que estão aqui por mais tempo gemem sem
palavras, como animais, e os que duram um pouco mais, ficam
olhando para o vazio, sem palavras, com os olhos vidrados. O ar
saturado até a borda com um miasma de dor e miséria.

Quando eles me arrastaram para a cela eu chorei com o impacto


de tanto sofrimento humano. Eu tive que sair. Era me ancorar aqui,
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na prisão mágica de Roland, ou enlouquecer e acabar fazendo algo


precipitado. Eu precisava de um lugar calmo agora.

— É isso que Moloch faz, —disse o avô. — Ele vê seu povo como
combustível a ser consumido para alcançar seus meios. Ele não sente
remorso. Acredita que é assim que as coisas devem ser. Este é o perigo
de se proclamar um deus-rei. Você começa a acreditar que é realmente
um.

— Ele não é um deus.

— Não. Ele é um homem, mas é pelo menos tão antigo quanto


eu, com toda a educação e magia que sua linhagem ancestral confere
e isso o torna infinitamente perigoso. Eu sei que você está ciente desse
fato, então vou perguntar novamente. Por que está aí? Você pode me
responder, ou ...

— Ou?

— Ou eu direi a Kate. Sua escolha.

Eu estava sem opções. Precisaria da ajuda dele de qualquer


maneira, eventualmente. — A vidente das Bruxas Oráculo me ligou.

As sobrancelhas do avô se ergueram. — Eu não sabia que você


mantinha contato com ela.
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— Nós somos amigas. Ela é apenas dois anos mais velha que eu.
Costumávamos ter dias das garotas e comprar maquiagem juntas. Eu
ligo para ela de vez em quando.

O avô franziu a testa, obviamente lutando com essa informação.


Eu dei a ele um momento.

— Existe uma profecia?

— Sim. —E ela me ligou frenética no meio da noite para entregá-


la.

— Diga-me.

— Quando a magia atingir seu auge, o Rei do Fogo deixará sua


fortaleza da miséria no Deserto Ocidental e viajará para o leste para
devorar a rainha que não governa e destruir a linhagem renascida.
Apenas aquela que compartilha o poder do Rei do Fogo pode se opor
a ele.

Assim que ouvi, contei à minha avó e, antes do sol nascer,


estávamos na Linha Ley rumo ao Arizona .

O Arizona, um estado no sudoeste dos EUA, é conhecido pelo Grand Canyon, uma fenda com quilômetros
de profundidade esculpida pelo rio Colorado. Flagstaff, uma cidade montanhosa coberta de pinheiros da espécie pinus ponderosa, é um
importante ponto de acesso ao Grand Canyon. Outro local natural de destaque é o Parque Nacional de Saguaro, que protege a paisagem
repleta de cactos do Deserto de Sonora. Tucson é território da Universidade do Arizona e abriga o Arizona-Sonora Desert Museum.
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Eu encarei Roland. — Ele vai matar Kate.

Ninguém jamais faria mal a Kate. Não enquanto eu estivesse respirando.

Ele ponderou minhas palavras. Seus olhos ficaram distantes e por


um momento um homem diferente emergiu de sua fachada sábia e
gentil, mais jovem, mais duro, cruel e afiado, como um tubarão vindo
das profundezas do oceano. O rei-mago imortal que quase matou
todos que amava para governar o mundo. Ah, vovô. Senti sua falta.

— Você não pode matar Moloch.

— Vou tentar com muita dedicação. —Eu havia planejado muitas


surpresas divertidas.

— Não, criança. Quando eu disse que você não pode matá-lo,


quis dizer que ele se regenera. Nossa família evoluiu para ter poder
sobre as terras que reivindicamos. A linhagem de Moloch evoluiu para
a habilidade de se restaurar.

— Vou cortar a cabeça dele. Quero ver ele regenerar isso.

— Ele vai, —disse o avô. — Eu não vi, mas meu pai viu.

Ele estava falando sério. Meu plano cuidadoso desmoronou sobre


si mesmo como um castelo de cartas. — Como isso é possível?
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O avô encolheu os ombros. — Magia de uma era passada. O


melhor que você pode fazer é destruir o suficiente dele para ganhar
tempo e fugir. A magia desta Era não é forte o suficiente para uma
reconstrução rápida e os períodos de tecnologia vão atrasá-lo ainda
mais. Se você conseguir infligir danos suficientes para garantir uma
morte temporária, ele não será um problema por pelo menos alguns
meses. O desmembramento é a sua melhor estratégia.

Eu dei a ele meu doce sorriso. — Obrigada.

— Você não fez a pergunta mais importante.

Ele fez uma pausa. Isso era um teste. Se eu fizesse a pergunta


correta, seria recompensada. Se eu falhasse, ele ficaria desapontado.
Eu precisava de sua ajuda desesperadamente.

Repassei na minha cabeça. Magia em seu auge, o Rei do Fogo,


fortaleza, Deserto Ocidental, a rainha que não governa, aquela que
compartilha o poder do Rei do Fogo ...

Era agora ou nunca. — Como posso compartilhar o poder de


Moloch?

Roland sorriu, sua magia brilhando por dentro. O sol nasceu, as


nuvens se abriram, as flores desabrocharam e o mundo sorriu com ele.
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— Os olhos, Julia. O poder de Moloch está em seus olhos.

A biblioteca desapareceu. Eu estava de volta à palha encharcada


de mijo em uma cela úmida, acorrentada à parede. A mulher
esquelética me lançou um olhar vazio. Ela provavelmente nem
percebeu que eu fui embora.

Os passos pesados ecoaram pelo corredor. Uma barra de metal se


abriu. Homens entraram na cela.

Mãos me agarraram e me levantaram, enquanto alguém


destrancava minhas algemas. Fechei os olhos e fingi estar desmaiada.
Já era tempo.

até o ápice da colina, escalando a encosta rochosa. Uma mão


forte agarrou meu pulso e me puxou para cima como se eu não pesasse
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nada. Minha avó me agarrou e apertou-me em um abraço. Todas as


minhas feridas gritavam e pingavam sangue.

— Como foi? —Ela perguntou.

Olhei por cima do ombro para o forte queimando atrás de mim.


As chamas rugiam, transformando a fortaleza em uma enorme
fogueira que pintava a noite com laranja.

— Ele arrancou meu olho, —eu disse a ela.

Erra respirou fundo.

— Mas tudo bem, —eu disse e arregalei os olhos para ela, um


castanho e o outro um verde brilhante. — Eu peguei um dos olhos
dele.
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por entre as nuvens ralas

enquanto eu cavalgava pela velha I-20 , mantendo-me no meio da


rodovia. A magia vinha corroendo as bordas das estradas
pavimentadas há décadas, e o asfalto perto do acostamento
frequentemente desmoronava sob o peso de um cavalo.

Não há nada para ver aqui, lua. Apenas uma mulher solitária, vestida
em um manto esfarrapado, cavalgando até sua cidade natal depois de ter ficado
longe por muito tempo.

Ao meu redor, pinheiros grossos erguiam-se em ambos os lados


da rodovia outrora movimentada. Escondidos na escuridão entre as
raízes e galhos, olhos brilhantes observavam Tulipa e eu. Os pontos
brilhantes em amarelo eram os olhos de guaxinins, brancos eram
veados, verdes eram raposas, vermelhos-neon em forma de triângulos
eram ‘sabe-se-lá-inferno-o-quê’. As criaturas da floresta me olhavam
com suspeita, mas se mantiveram distantes.

A Interstate 20 (I-20) é uma importante rodovia interestadual leste-oeste no sul dos Estados Unidos.
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As árvores acabaram abruptamente, substituídas por campos


cercados em arame farpado. Uma placa de sinalização apareceu à
frente.

BEM-VINDO A ATLANTA

Estamos felizes que a Geórgia esteja em seus planos.

Um pouco otimista da parte deles.

Abaixo, alguém havia rabiscado em tinta branca.

‘Louvado seja o Senhor e prepare as bolas de fogo.’

Isso sim combinava mais com Atlanta.

Uma forma escura voou acima da minha cabeça. A luz do luar


deslizou sobre ela, brilhando em suas penas, e então ela se elevou no

Atlanta é a capital do estado da Geórgia, nos EUA. A cidade desempenhou um papel importante na Guerra
Civil e no movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos na década de 1960. O Atlanta History Center registra o passado da
cidade, e o Martin Luther King Jr. National Historic Site é dedicado à vida do líder afro-americano Martin Luther King Jr. No centro da cidade,
o Centennial Olympic Park, construído para os Jogos Olímpicos de 1996, abriga o enorme aquário Georgia Aquarium.

A Geórgia é um estado do sudeste dos EUA cujo território abrange praias costeiras, campos agrícolas e
montanhas. A capital Atlanta abriga o Georgia Aquarium e o Martin Luther King Jr. National Historic Site, dedicado à vida e a lembranças do
líder afro-americano. A cidade de Savannah é famosa pela arquitetura dos séculos XVIII e XIX e pelas praças públicas frondosas. Augusta
sedia o torneio de golfe Masters.
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infinito índigo do céu. Como a maioria das águias, Turgan não


gostava de voar à noite, mas algo deve ter perturbado minha ave de
rapina . Ela decolou no momento em que deixamos a linha Ley e se
recusou a pousar em seu poleiro no meu ombro.

Outra placa apareceu na noite.

TODOS OS METAMORFOS VISITANTES

Apresentem-se ao Bando em 24 horas

Peguem a I-85 , dirijam-se ao nordeste, sigam seus narizes.

Vinte e quatro horas? Quando parti há oito anos, os metamorfos


visitantes tinham três dias para se apresentarem ao Bando. O tempo
os tinham mudado.

Um uivo alto e misterioso flutuou até as nuvens, levado pela brisa


noturna. Não era o uivo de um metamorfo. Apenas alguma

As aves de rapina, rapinantes, raptores ou aves predatórias são aves carnívoras que compartilham características
semelhantes, como bicos recurvados e pontiagudos, garras fortes e visão de longo alcance.
No Universo de Kate Daniels as Linha Ley são importantes vias mágicas, usadas para o transporte rápido de pessoas e cargas.

A Interstate 85 (I-85) é uma importante rodovia interestadual no sudeste dos Estados Unidos.
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monstruosidade inofensiva saindo para a noite. Muito longe para


causar qualquer preocupação. Tulipa sacudiu as orelhas e continuou.

Metamorfos eram uma raça paranoica e desconfiada. Lyc-V, o


vírus simbiótico que lhes dava a capacidade de se transformar em
animais, vinha com muitos dons. Alguns, como força, velocidade e
sentidos aprimorados, eram benéficos. Outros, nem tanto.

Os metamorfos viviam uma vida de disciplina e autocontrole,


caso contrário, estavam fadados ao Loupismo, um mergulho
catastrófico em um inferno repleto de hormônios que transformava os
metamorfos em assassinos sádicos. O Loupismo não tinha cura,
exceto uma lâmina no pescoço ou uma bala no cérebro.

Os metamorfos exigiam o tipo de estrutura social que a sociedade


comum não podia mais oferecer. Eles se segregavam em bandos, e o
resto da população, perfeitamente ciente de que cada metamorfo era
um assassino em potencial, estava satisfeita em deixá-los governar a
si mesmos.

De todos os bandos de metamorfos ativos do Continente dos


Estados Unidos, o Bando do Povo Livre do Código de Atlanta era o
maior e de longe o mais forte. A maioria dos bandos raramente
alcançava mais de cem membros. O Bando de Atlanta contava com
quase três mil metamorfos e sete clãs diferentes, definidos por suas
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formas animais e unificados sob o governo de um Senhor das Feras.


Era tão grande que era conhecido simplesmente como O Bando.
Apenas o bando dos Ice Fury no Alaska era maior.

No passado, eu era um dos raros humanos considerados membros


do Bando. Eu tinha vivido na Fortaleza, o enorme forte dos
metamorfos a nordeste da cidade. Todos os meus amigos tinham pêlos
e garras. Naquela época, o Bando tinha um outro Senhor das Feras, e
ele me tratou como sua irmã mais nova.

Os campos cercados terminaram e começaram as ruínas. Ajustei


o peso da lança na bainha nas minhas costas, cutuquei Tulipa e o
animal disparou em velocidade. Eu tinha um compromisso pela
manhã e precisava me apressar se quisesse chegar na hora certa.

A rodovia estreitou. Pegamos uma saída à esquerda na Avenida


Basilisk e seguimos enquanto ela fazia uma curva para o nordeste,
atravessando as ruínas expostas de arranha-céus tombados que um dia
estiverem em pé.

A magia odiava tecnologia. Ela vinha em ondas, inundando o


mundo, apagando luzes elétricas e motores a gasolina, corroendo
arranha-céus e gerando monstros. Então de repente, por mais
imprevisível que parecesse, a onda ia embora e a tecnologia mais uma
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vez funcionava. Feitiços fracassavam e as armas mais uma vez


cuspiam balas.

Quanto mais alto o edifício, mais cruelmente a magia o consumia.


A maioria dos arranha-céus e torres de escritórios haviam caído há
muito tempo. Muitos viadutos se desfizeram em pó ou ruíram. A
antiga paisagem urbana era apenas uma memória distante. Em seu
lugar, novos edifícios surgiram, construídos por artesãos
principalmente à mão para minimizar a erosão mágica.

Aqui e ali, as novas estruturas abraçavam a estrada, casas e


escritórios sólidos com paredes grossas, portas fortes e janelas estreitas
protegidas por grades de barras de metal. O suave brilho amarelo das
luzes elétricas lutava para iluminar a escuridão. A magia estava em
baixa agora. Se estivesse ativa, algumas das grades nas janelas
brilhariam prateadas e o brilho azul das lanternas a gás substituiria as
lâmpadas elétricas.

A cidade parecia a mesma de quando a deixei. As impressões


pareciam as mesmas também, perigosa, indiferente, vigilante, mas de
alguma forma ainda dolorosamente familiar. Lar, apesar de todos os
anos que estive fora. Eu tinha quase dezoito anos quando fui embora.
Agora tinha vinte e seis anos. Parecia uma outra vida.
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Nunca planejei ficar tanto tempo longe, e não era assim que eu
queria ter voltado para Atlanta. Minha família biológica estava morta,
mas a família que me adotou estava viva e bem, e eles me queriam de
volta há muito tempo. Se dependesse de mim, eu teria ligado antes e
eles teriam me encontrado na Linha Ley, me cercariam, me
abraçariam e todos iríamos para casa. Esse era o plano original.

Mas se eu fosse para casa agora, assinaria suas sentenças de


morte. Eu tinha que permanecer fora do radar e não podia me dar ao
luxo de ser reconhecida.

Não que houvesse a possibilidade de alguém me reconhecer.


Quando a maioria das pessoas voltava para casa após uma longa
ausência, a família dizia coisas como ‘Você emagreceu’ e ‘Esse corte
de cabelo é novo?’ Se eu fosse para casa, minha família perguntaria:
‘Quem diabos é você?’ Nada em mim era o mesmo. Nem meu corpo,
nem meu rosto, nem minha voz, nem meu cheiro.

Uma sugestão de movimento à esquerda me arrancou das minhas


memórias e me jogou de volta para o presente.

Eu tinha atravessado vários quarteirões de ruas desertas. À


esquerda, uma montanha de ruínas de um edifício tombado, ainda
mergulhado nas sombras da noite. À direita, uma parede se erguia,
construção nova, sólida, grossa e cercada por arame farpado. Adiante,
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a rua terminava, como se tivesse sido cortada por uma faca de gigante.
Um abismo se abria, caindo quinze metros abaixo, cerca de meio
quilômetro de diâmetro.

O abismo era novo, mas não era surpreendente. Ondas mágicas


não apenas geravam monstros, elas formavam novos rios, elevavam
colinas e dividiam o solo. Atlanta havia se adaptado ao novo abismo,
a existência de uma ponte de madeira de mão única que o atravessava
evidenciava isso.

A ponte não era o problema. Os três metamorfos que saíram das


sombras para bloqueá-la eram.

Não havia absolutamente nenhuma razão para uma patrulha do


Bando estar aqui a esta hora. O território deles ficava do outro lado
da cidade. A madrugada estava acabando, era um pouco antes do
amanhecer, deveriam estar voltando para a Fortaleza, prontos para
realizar sua meditação matinal e cair no sono como monstros bem-
comportados. No entanto, aqui estavam eles, vestidos com roupas
cinzas típicas do Bando e bloqueando meu caminho.

Atlanta era uma cidade horrível.

Todos os três eram homens e jovens e não mostravam intenção


de sair do meu caminho. Um pequeno comitê de boas-vindas.
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— Olá! —Gritei. — Preciso passar pela ponte.

O metamorfo do meio, que parecia ter cerca de vinte anos,


bronzeado, com longos cabelos escuros, sorriu para mim.

— Senha?

Que fofo ele é? — Por que preciso de uma senha? Esta ponte está no
território do Bando?

— Isso não importa, —disse o líder. — O que importa é que


somos três e você uma só.

Bem, olha só quem sabe contar.

— Se quiser cruzar a ponte, tem que nos dizer a senha, —o


metamorfo disse. — Se não sabe, terá que pagar a multa.

O metamorfo mais baixo à direita do líder sorriu e soltou uma


gargalhada sinistra. Boudas. Claro.

Boudas, metamorfos hienas , pertenciam a um dos menores dos sete


clãs do Bando. Não havia muitos deles, mas eram perigosos e

Metamorfos Hienas
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totalmente malucos. Lobos, chacais, ratos, todos eles podiam ser


convencidos com um bom argumento. Boudas faziam coisas do tipo
entrar na jaula de um urso polar em cativeiro e fazer cócegas com as
garras só para ver o que aconteceria.

Bem. Eu os contornaria.

Enrijeci minha perna direita um pouco. Tulipa se virou um pouco,


mais antecipando o comando do que obedecendo, o som de seus
cascos batendo muito alto no calçamento e se espalhando pela noite.
Mais dois metamorfos saíram das sombras, bloqueando meu
caminho.

Certo. Essa era a história da minha vida.

— Eu disse três? —O Bouda gritou. — Quis dizer cinco.

Uma patrulha normal do Bando era composta por dois


metamorfos, três se fosse na fronteira com a Nação, porque os
necromantes eram um inimigo perigoso. Cinco metamorfos
significavam uma equipe de ataque. Eles haviam executado algum
tipo de missão na cidade, e tive o azar de encontrá-los quando estavam
voltando. Viram uma mulher solitária tarde da noite, vestida em
calças jeans desbotadas, botas velhas e uma capa esfarrapada, um alvo
fácil de pouco ameaça. Se eles fossem lobos, chacais ou alguém do
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Clã Heavy, eu já estaria no meio da ponte agora. Mas eles eram


Boudas e gostavam de brincar.

Guiei Tulipa para desviar e me posicionar de frente para a ponte


novamente. Cinco Boudas seria uma luta difícil e, quando
percebessem que eu não estava brincando, iria se transformar em
violência real. Eu realmente não queria matar ninguém. Também não
tinha tempo para brincar.

— Ainda estou esperando pela senha, —disse o líder dos Boudas.

— 15 de maio, —eu disse.

— O que isso significa? —O metamorfo à esquerda perguntou.

— Aniversário de Andrea Medrano, —eu disse. — Bom o


bastante?

Os metamorfos pararam. Foi uma coisa engraçada de assistir: em


um momento, eles estavam exalando arrogância, no outro perderam a
força simultaneamente, como se alguém lhes tivesse dado um soco no
nariz com um jornal enrolado. Para eles, Andrea Medrano era a Líder,
juíza e executora. Eles a chamavam de Alfa. Eu a chamava de Andrea.
Ou tia Andy quando tentava ganhar a ajuda dela para algum ato
nefasto.
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O trio na ponte me olhou, suas expressões cautelosas. Se eles


continuassem me bloqueando e eu fosse alguém que Andrea conhecia,
seria um inferno a pagar. A única maneira de verificar isso seria ligar
para a Casa do Clã Bouda e falar com ela, o que significava que eles
teriam que responder a perguntas incômodas sobre porque me
pararam afinal de contas. O Bando se esforçava para manter um
relacionamento cordial com os humanos em geral e com a cidade de
Atlanta em particular. A punição seria rápida.

Uma sombra alta saiu das ruínas, como se tivesse materializado


da escuridão, e deslizou para frente com elegância. Ombros largos,
pernas longas, um cara grande, a mesma roupa cinza do Bando. Ele
deu mais um passo e vi seu rosto. Era um rosto que não apenas pararia
o trânsito, mas também causaria um engavetamento.

Seus olhos captaram o luar. Um brilho vermelho sangue rolou


sobre suas íris marrons.

— Agora, isso é uma revelação interessante, —disse Ascanio


Ferara. — Por favor me conte mais.

Foda-se tudo para o inferno.


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Ascanio olhou os Boudas perto da ponte. Todos os três


imediatamente olharam para baixo. Então, me barrar na ponte era uma
diversão não autorizada.

Quando fui embora, Andrea e seu marido Raphael, os alfas do


Clã Bouda, estavam preparando Ascanio para a posição de beta, o que
o tornaria o segundo na cadeia de comando do clã. Ele queria essa
posição mais do que qualquer coisa. Aparentemente, conseguiu o que
desejava e todas as dores de cabeça que vinham com isso.

Ascanio se voltou para mim e me examinou lentamente.

Fiz um esforço consciente para não prender a respiração. Ascanio


conhecia a antiga eu. Nós nos conhecemos quando eu tinha quatorze
anos e ele quinze, e passamos muito tempo juntos.

Nós nunca nos vimos.

Suas narinas vibraram ligeiramente. Ele estava a favor do vento,


e a brisa noturna levava o meu cheiro.

Eu sou uma desconhecida. Você nunca me viu antes.

Ascanio respirou fundo. Seus olhos se estreitaram.


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Meu batimento cardíaco parecia muito alto em meus ouvidos,


mas era lento e constante. Ele não me reconheceria. Às vezes, eu
mesma não me reconhecia quando me olhava no espelho agora.

O tempo se esticou, lento e viscoso como melaço. Ele me encarou,


e eu não tinha escolha a não ser encarar de volta.

Ascanio era lindo quando adolescente, quase andrógino . A beleza


ainda estava lá, nos olhos sem fundo sob as sobrancelhas escuras e nas
linhas perfeitas, mas seu rosto havia ganhado força. Suas feições se
alargaram ligeiramente. O tempo havia contornado sua mandíbula.
Nenhum traço de suavidade permaneceu. Era o rosto de um homem
agora, com contornos ásperos e ângulos definidos, e olhos que
irradiavam autoridade e poder. Se eu não o conhecesse, ele teria me
surpreendido.

— Você pronunciou o nome da minha alfa, —disse Ascanio. —


Importa-se de explicar?

— Não.

(Beleza andrógina) que ou aquele que apresenta características, traços ou comportamento imprecisos,
entre masculino e feminino, ou que tem, notavelmente, características do sexo oposto.
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O vermelho brilhou em suas íris. — Você conhece informações


confidenciais sobre minha alfa. Preciso saber como, porque estou com
ela há mais de uma década e nunca vi você.

— E o que vai fazer se eu não te disser?

— Vou ter que insistir. —Sua voz me disse que eu não iria gostar.

A primeira vez que nos encontramos, ele decidiu que seria uma
ideia brilhante me beijar. Eu joguei um punhado de acônito no rosto
dele, o joguei no chão e amarrei seus braços atrás das costas. E então
perguntei a ele se o bebê Bouda mimado perdeu sua mamadeira e seu
ursinho.

— Então, deixe-me ver se entendi, —eu disse. — Cinco de seus


metamorfos me barraram sem motivos fora dos limites territoriais do
Bando, exigiram que eu pagasse uma taxa para cruzar uma ponte
pública, e agora você está me ameaçando de agressão.

As sobrancelhas dele franziram levemente. Tudo isso teria sido


uma violação das políticas do Bando há oito anos.

— Eu não te ameacei ainda.

Planta venenosa para os lobos.


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— Eu me senti ameaçada. Estou tremendo de medo.

— Não vejo tremor algum, —disse Ascanio. — A solução é muito


fácil. Me diga como sabe do aniversário de Andrea Medrano e poderá
ir embora.

— Você não está entendendo a situação. Em primeiro lugar não


tem o direito de me deter aqui. —Eu deveria avançar ou recuar? Essa era
a questão.

— Você parece uma suspeita. Não tenho certeza de que deveria


estar vagando sem supervisão.

Ascanio não exigiria nada menos que submissão completa para


me deixar ir. Assim que eu desse um passo para trás, ele iria querer
meu nome, meus motivos para entrar na cidade e, assim que visse meu
rosto, meu endereço. Recuar custaria mais tempo e exigiria muita
mentira.

— E você parece um idiota, mas de alguma forma ninguém o


impede de vagar livre.

Um dos Boudas perto da ponte deu uma risadinha e tapou a boca


com a mão.

Ascanio ergueu as sobrancelhas. — Um idiota?


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— Uma mulher humana no meio de uma onda de tecnologia


contra seis metamorfos. Só um idiota não consegue entender como
essa matemática vai parecer para a polícia civil ou para a sua alfa. Ela
geralmente o incentiva a incomodar mulheres sozinhas tarde da noite?

Ele deu um passo à frente. A ameaça saiu dele como o ar do


asfalto quente.

— Já que sou um idiota, talvez a tire do cavalo do meu jeito idiota,


enfie você em uma de nossas casas, em algum lugar com um porão
profundo, e espere até que decida responder às minhas perguntas.
Você pode registrar uma reclamação, se sair de lá.

— Agora você está me ameaçando? Só estou confirmando, assim


ficamos ambos esclarecidos.

— Quando eu te ameaçar, você não terá dúvidas.

— Nesse caso, faça. Puxe-me do cavalo.

Ele não se mexeu. Eu o peguei no blefe. Ascanio tinha muitos


defeitos, mas ele não machucaria uma estranha aleatória, muito
menos uma humana, sem razão. Se descobrissem que o Bando estava
sequestrando jovens mulheres humanas na rua, as consequências
seriam catastróficas e, com cinco testemunhas, isso seria algo que logo
36

se espalharia. Metamorfos fofocavam pior do que idosas entediadas


na igreja.

A frustração brilhou em seus olhos e morreu. Eu venci.

Era hora de relaxar. Eu não queria antagonizá-lo muito. — Por


que não fazemos isso: você me deixa ir e eu não vou registrar uma
reclamação formal. É uma situação em que todos ganham.

Ascanio ergueu a mão para me silenciar e se afastou, olhando


para o muro do outro lado da rua. Um momento depois, o resto dos
metamorfos se virou e olhou para lá também.

Um garoto saltou da escuridão e pousou no canto da parede, o


único local livre de arame farpado.

Ele era grande e musculoso, apenas quinze centímetros mais


baixo do que eu. Cabelo castanho escuro cortado curto, rosto
bronzeado e olhos cinzentos, tão claros que eram praticamente
prateados.

Conlan.

Quando eu fui embora, Conlan não tinha nem dois anos. Nós nos
vimos centenas de vezes ao longo dos anos quando visitamos nosso
37

avô em sua prisão sobrenatural, mas já fazia oito anos desde que eu o
vi pessoalmente.

Se estivéssemos sozinhos, eu o teria puxado da parede e o


abraçado com tanta força, que ele precisaria de toda a sua força de
metamorfo para sair desse abraço.

Nossos olhares se conectaram.

Ele não deu nenhuma indicação de que me reconheceu. Meu


irmãozinho, o mestre da artimanha.

Ascanio deu um suspiro zombeteiro. — O pequeno príncipe nos


agracia com sua presença. Você está muito longe do território de seus
pais, Vossa Alteza.

Vossa Alteza estava sentado de pernas cruzadas na parede. —


Você está muito longe da casa de seu clã, Beta Ferara.

Ascanio sorriu lentamente, mostrando os dentes. — Vá embora


agora.

— E se eu não fizer? —Conlan semicerrou os olhos para Ascanio.


— Você vai tentar me colocar em seu porão especial?

Um dos Boudas riu e sufocou o riso antes que Ascanio pudesse


olhá-lo com raiva.
38

— Isso não é da sua conta, —disse Ascanio com voz áspera.

— Eu mesmo decido o que é da minha conta. —Conlan apoiou o


cotovelo no joelho e apoiou o queixo no punho. — Mas não se
preocupe. Não vou atrapalhá-lo. Continue com sua tentativa de
extorsão, roubo e esquema de sequestro. Só quero ver como tudo vai
acabar.

— E depois? —Perguntou um dos Boudas atrás de mim. — Vai


correr para casa e contar ao papai?

Meu irmão virou a cabeça e olhou para ele. Ouro rolou sobre seus
olhos e brilhou intensamente.

O Bouda tagarela tentou encarar o olhar de Conlan. Um segundo


tenso se passou. O Bouda olhou para baixo.

Ascanio não iria deixar isso passar. Conlan acabara de forçar a


submissão em um de seus subordinados. Eu tinha que intervir na
situação antes que se tornasse violenta.

— Pelo que vejo, você incomoda não só apenas mulheres


solitárias no meio da noite. Também intimida crianças.

Ascanio olhou para mim.

É isso aí. Ainda estou aqui.


39

— Vou atravessar esta ponte, —eu disse a ele. — Você pode tentar
me impedir. Tenho certeza de que a criança e eu podemos vencê-lo.

— Você deveria tentar detê-la, —Conlan gritou. A pele sobre a


mão esquerda dele ondulou e fluiu, transformando-se em metade pata
metade mão dos infernos, desproporcionalmente grande e armada
com garras do tamanho de dedos humanos. — Será divertido.

— Nós dois sabemos o que acontece todas as vezes quando você


sai em busca de diversão, —disse Ascanio. — Preciso lembrá-lo? —
Ele fingiu olhar ao redor. — Não tenho algemas de Loup a minha
disposição agora.

Ele não tinha o quê?

O rosto de Conlan se contraiu. Ele estava a um fio de ficar peludo.


— Isso foi há muito tempo. Por que não providencia algumas e depois
veremos o que vai acontecer?

Nada. Isso é o que vai acontecer.

Cutuquei Tulipa. Ela abaixou a cabeça e pisou forte em direção a


ponte. Os Boudas que o bloqueavam hesitaram.

Eu os fixei com meu olhar e brandei com a mesma voz que usava
quando queria que os soldados no meio de uma matança me
obedecessem. — Saiam.
40

Os dois da esquerda pularam para o lado. O Bouda da direita


estava sozinho, sem saber o que fazer.

Com o canto do olho, vi Ascanio acenar para ele. O Bouda


recuou.

Ascanio calculou as chances dele e não gostou do resultado. Em


uma luta com metamorfos, não havia garantias. Se Conlan se
machucasse, ou pior, se machucasse alguém, haveria muitas
perguntas. Eu podia imaginar como seria essa conversa. ‘Como o filho
de Curran se machucou?’ ‘Bem, havia uma mulher ...’ ‘E o que deu em
você para deter uma mulher humana no meio da noite? Além disso, por
que está faltando um braço em Bob?’ Ascanio era um idiota, mas não
era burro.

Ascanio moveu os dedos, sinalizando em direção a cidade. Os


Boudas passaram por mim, saltando na ponte e começaram a correr.

Olhei para a parede. Conlan havia ido embora. Bom trabalho.

Ascanio se voltou para mim. — Você e eu nos encontraremos


novamente, em breve.

— Não, não vamos.


41

Olhos vermelhos como sangue me fixaram. — Pense nas coisas


que lhe perguntei.

Ele correu passando por mim na ponte, alcançando sua equipe


com uma facilidade ridícula. Eles dispararam noite adentro com uma
velocidade que deixaria os cavalos de corrida com inveja e
desapareceram de vista.

A minha primeira noite de volta a Atlanta poderia ter sido pior.


Eu ainda tinha todos os meus membros e meu cabelo não estava
pegando fogo. O que diabos foi aquilo sobre as algemas de Loup? Eu
tinha visto Conlan uma ou duas vezes por semanas durante anos, e
meu irmão nunca mencionou nada envolvendo Ascanio e algemas de
Loup. Na verdade, ele nunca mencionou Ascanio, ponto final. Eu
teria que descobrir sobre isso na próxima vez que conversássemos ...

O fantasma de uma presença disparou meus alarmes. Os


minúsculos pêlos da minha nuca se arrepiaram. Algo se esgueirava
nas profundezas das ruínas à minha esquerda. Me assistindo. Eu não
conseguia ver ou ouvir, mas sabia que estava lá, escondido na
escuridão, da mesma forma que os povos primitivos sabiam quando
um tigre estava à espreita na boca de sua caverna.

Eu poderia descer do cavalo e dizer olá, mas não havia como


saber o que encontraria, e todos os meus instintos me alertavam para
42

recuar. Tulipa ficou tensa sob mim. Ela também não gostou do que
estava escondido na escuridão.

Não havia sentido em procurar encrenca. Eu já tinha perdido


bastante tempo. Mudei meu peso na sela e Tulipa trotou, atravessando
a ponte.

Ninguém nos seguiu.

em um grande pedaço de concreto no meio da rua. À minha


volta, velhas ruínas do centro da cidade se espalhavam sob o céu cinza
pálido antes do amanhecer. Esqueletos de metal de arranha-céus
destruídos se projetavam do mar de escombros. Alguns prédios
haviam tombados inteiros, outros pela metade, e o que sobrou
encaravam o mundo através dos buracos negros das suas janelas
vazias. Liquens estranhos revestiam suas paredes, alguns se

Os liquens são seres vivos muito complexos que constituem uma simbiose de um organismo formado por
um fungo e uma alga ou cianobactéria.
43

amontoando em cristas nos tijolos e argamassas como fósseis de


conchas antigas, outros caindo em longos fios carmesim que se
moviam e estremeciam sem qualquer vento.

As cercas decorativas que antes margeavam as calçadas tinham


espinhos de trinta centímetros de comprimento. Videiras
sobrenaturais, pontilhadas de flores, derramavam-se das ruínas
destruídas.

A primeira onda mágica apunhalou Atlanta no coração, deixando


uma ferida aberta e irregular que cortou o centro comercial da cidade.
A ferida sangrava magia mesmo durante a tecnologia mais forte, e seu
fluxo havia deformado esta área além de todo o reconhecimento. Os
habitantes locais a chamavam de Unicorn Lane. Nada era o que
parecia aqui, e tudo que morava aqui tentaria te matar. Até mesmo os
mais poderosos em magia evitavam esse local. Para entrar em Unicorn
Lane, você tinha que estar desesperado ou louco. Que bom que eu era
os dois.

Na minha frente havia um pequeno espaço limpo e livre de


entulho. Uma estela de três metros de altura—uma estreita laje de

Estela provém do termo grego stela, que significa "pedra erguida" ou "alçada". A palavra entrou no uso comum da
arquitetura e da arqueologia para designar objetos em pedra individuais, ou seja, monolíticos, nos quais eram efetuadas esculturas em relevo
ou textos
44

pedra com quatro lados iguais—estava projetada no centro do espaço.


Uma matilha de pequenos animais de pêlos ruivos, que pareciam um
cruzamento de esquilos com mangustos , disparou por um caminho
estreito e em torno da estela. A criatura que os perseguia não tinha
nome. Era mais ou menos do tamanho de um grande rottweiler e
mexia nos entulhos sobre seis patas. Seu pêlo era uma floresta de
agulhas pretas, finas como cabelos. Parecia um ouriço-do-mar , exceto
pela cabeça com longas mandíbulas e dentes de dinossauro. A fera
correu atrás dos pseudo-esquilos, escorregou e bateu em um carro
abandonado envolto em musgo laranja.

O musgo ficou vermelho brilhante com o impacto. A fera


cambaleou, balançou e desabou, com a lateral do seu corpo coberto
de uma substância escarlate. As agulhas caíram, se desmanchando.

Os mangustos são mamíferos pequenos e ágeis, conhecidos por matar najas e outras cobras venenosas. O
mangusto se lança contra o crânio da cobra, tentando quebrá-lo com uma mordida poderosa. Há mais de quarenta espécies de mangusto.
Eles vivem na Ásia, na África e no sul da Europa.

esquilo

Rottweiler é uma raça de cães molossos desenvolvida na Alemanha. Criada por açougueiros da região de Rottweil para o
trabalho com o gado, logo tornou-se um eficiente cão de guarda e boiadeiro, e cão de tração. Devido à sua utilidade, tornou-se popular em
todo o mundo ao decorrer do século XX.

Echinoidea é uma classe de organismos pertencentes ao filo Echinodermata que agrupa invertebrados marinhos
dioicos de corpo globoso ou disciforme, geralmente espinhosos, com 3-10 cm de diâmetro, revestidos por um tegumento coriáceo.
45

Uma poça espessa de sangue marrom se espalhou da criatura.


Dezenas de outras criaturas do tamanho de ratos saíram das ruínas
como uma maré cinza-azulada para beber o sangue.

Tulipa relinchou para mim pela terceira vez.

— Tudo bem. —Eu desci do concreto e a soltei. — Não vá muito


longe.

Tulipa sacudiu a cabeça e saiu correndo rua abaixo, um borrão


branco de velocidade.

— Isso é uma boa ideia? —Uma voz feminina familiar perguntou.

Eu virei. Sienna estava ao lado da estela. Ela usava uma longa


capa escura e seu capuz estava abaixado, revelando seu rosto e cabelo
loiro avermelhado, cortado em um novo corte curto. Sua pele era
pálida, seu rosto tinha traços delicados e gentis e seus olhos eram
distantes. Antes da Mudança, as pessoas costumavam desenhar fadas
que se pareciam com ela. Depois da Mudança, ninguém jamais
desenharia uma fada que se parecesse tão delicada assim.

— Tulipa vai ficar bem. O que aconteceu com seu cabelo?

Ela sorriu. — Poder extra necessário para um feitiço.


46

Sienna era uma Oráculo que via o futuro. Eu havia me


concentrado tanto nas profecias dela nos últimos quatro anos que às
vezes me esquecia que ela era uma bruxa.

Eu me aproximei e nos abraçamos. Antigamente ela costumava


ter uma saúde muito frágil, quase esquelética, e às vezes ainda se
esquecia de comer, porque vivia com um pé em outros espaços
temporais. Sienna parecia forte agora. Isso era bom.

— Por que aqui? —Eu perguntei, acenando para a estela.

— Tenho meus motivos.

Sienna olhou para o monumento, havia um único nome gravado


nele. SAIMAN.

— Sempre me perguntei por que nada mais estava escrito aqui, —


disse ela.

— É assim que ele queria.

Lembrei-me do dia em que o enterramos. Chovia tanto que todos


parecíamos estar chorando. Eu não tinha certeza se alguém realmente
estava. Saiman havia apunhalado pelas costas muitos daqueles que
carregavam seu caixão.
47

Neto de um gigante do gelo, Saiman era um especialista em


magia. Ele também era um polimorfo. Poderia se transformar em
qualquer pessoa que quisesse, qualquer idade, qualquer sexo, qualquer
forma dentro dos limites humanos, e usou esse dom para viver uma
vida totalmente egoísta, usando pessoas, manipulando-as, pisoteando
sobre elas em uma busca hedonística de riqueza e prazer. Então a
cidade teve que se unir para enfrentar uma terrível ameaça e Saiman
teve uma breve e brilhante oportunidade de deixar de lado sua
covardia e assumir uma atitude. Ele assumiu e morreu.

Eu não tinha chorado por ele, nunca confiei nele, mas lamentei
que tivesse morrido. Muitas pessoas, pessoas melhores, também
morreram naquela batalha.

Sienna olhou para a estela, ou melhor, através dela, para algo que
só ela podia ver. Eu esperei.

Ela me ligou ontem. ‘Esta será a sua última chance de pará-lo.


Encontre-me no túmulo do Saiman antes do amanhecer’. Então desligou.

Apressá-la e fazer perguntas não levaria a nada. Sienna pesava e


media cada palavra cem vezes antes de dizê-la. E mesmo assim, a
maior parte do que dizia não fazia sentido até que fosse tarde demais.
Eu apenas tinha que ser paciente e esperar descobrir o que suas
palavras significavam a tempo.
48

Última chance. A última.

Quatro anos atrás, ela me ligou no meio da noite. Sienna já havia


previsto muitos desastres antes, guerras, pragas, dragões. Nada a
abalava, mas naquela noite sua voz tremia. Ela me disse que um deus
antigo renasceu como um avatar no Arizona. Moloch , o Comedor de
Crianças, a divindade dos cananeus condenada no Velho Testamento,
que se alimentava de crianças queimadas vivas nas fogueiras de suas
forjas e touros de metal. Por quase três décadas ele vinha construindo
seu domínio, preparando-se para expandir, e naquela noite Sienna viu
seu primeiro alvo.

Moloch mataria Kate. A mulher que me criou como filha.

Kate era muito mais do que minha mãe. Ela era o nexo, um ponto
de conexão para muitas pessoas que, de outra forma, cortariam as
gargantas umas das outras. O Bando, que suspeitava de todos os
forasteiros, os Mestres dos Mortos, que pilotavam vampiros com suas
mentes como se fossem drones, os Covens de bruxas que protegiam

Moloque, Moloc ou Moloch é o deus ao qual os amonitas, uma etnia de Canaã (povos presentes na península
arábica e na região do Oriente Médio), cultuavam. Também é o nome de um demônio na tradição cristã e cabalística.
49

seus conhecimentos preciosos com bestas e maldições, os


desconfiados e ariscos Neopagãos, a Ordem da Ajuda Misericordiosa,
que afirmava que seu caminho era o único caminho—todos deviam
favores a Kate. Ela era respeitada por todos, amada por alguns, temida
por outros, mas nenhum deles a tratava levianamente. Kate era a
única pessoa capaz de transformar as facções de Atlanta em uma força
unificada.

Oito anos atrás, ela fizera exatamente isso, e Atlanta se


posicionou contra um perigo que deveria ter acabado com tudo. A
cidade sobreviveu contra todas as probabilidades. Agora Kate havia
se mudado, para a costa perto de Wilmington , e só vinha a Atlanta
apenas no verão. Sem ela a cidade havia se rachado novamente. Mas
essas rachaduras ainda podiam ser reparadas.

Se Moloch matasse Kate, Atlanta entraria em colapso e ficaria à


mercê do poder do deus antigo. Todo mundo com quem eu me

A besta (pronuncia-se bésta), balestra ou balesta (derivações do latim tardio ballista) é uma arma com um arco de
flechas adaptado a uma das extremidades de uma haste e acionado por um gatilho, o qual projeta virotes - dardos similares a flechas, porém
mais curtos.

Wilmington é a cidade mais populosa do estado norte-americano do Delaware, no


condado de New Castle. Foi fundada em março de 1638 e incorporada em 1731. Situa-se na confluência dos rios Christina e Brandywine.
50

importava na Costa Leste morreria tentando vingar a morte dela. Os


conflitos entre as facções da cidade iriam explodir em guerra. Na Costa
Oeste , Erra, a tia de Kate e a mulher que eu chamava de minha avó,
estava tentando ressuscitar o antigo reino que ela deixou para trás há
milhares de anos. Minha avó uma vez se perdeu na vingança e se
tornou uma abominação para proteger seu povo. A morte de Kate iria
catapultá-la para o caminho da vingança mais uma vez, e desta vez
ela não sobreviveria.

Sienna me disse que eu era o curinga. Dependia de mim impedir


que a profecia se tornasse realidade.

Naquela noite, há quatro anos, desliguei o telefonema com Sienna


e, de manhã, Erra e eu partimos para a fortaleza de Moloch. Ele
pensou que estava seguro em seu covil. Eu me deixei ser capturada,
matei seus guardas, abri caminho até o seu salão de adoração e
decepei sua coluna. Ele arrancou meu olho. Meu avô havia me dito
que o poder de Moloch estava nos olhos dele, então extrai um olho

A "Costa Leste" dos Estados Unidos, também conhecida como "Costa Atlântica", refere-se ao conjunto de estados
mais orientais dos Estados Unidos, banhados pelo Oceano Atlântico. No entanto, o sentido popular dado à expressão "East Coast" é mais
frequentemente aplicado apenas à metade norte da região.

A "Costa Oeste" dos EUA, também conhecida por "Costa do Pacífico" designa geralmente os três estados mais
ocidentais do grupo de estados contíguos: Califórnia, Oregon, Washington, e Alasca.
51

dele de seu crânio enquanto ele estava caído a meus pés e coloquei o
olho em minha cabeça. Em seguida, cortei seu corpo em pedaços e o
joguei em sua própria forja. Depois coloquei fogo em sua fortaleza
infernal.

Em dois anos, Moloch se regenerou, como meu avô havia me


avisado que faria. Eu tinha ganhado algum tempo para todos nós, mas
o futuro permanecia inalterado. Kate ainda morreria. A partir do
momento em que senti o olho de Moloch se enraizar em minha
cabeça, tudo o que fiz foi para evitar que a profecia acontecesse. Lutei
com Moloch repetidas vezes, mas não importa o quanto eu lutasse,
não conseguia alterar as visões de Sienna. Se Kate encontrasse
Moloch, ela morreria. Se eu fosse para casa, ela morreria. Se eu a
avisasse, ela morreria.

— Moloch falou comigo de novo, —disse Sienna.

Escutar o nome do maldito em voz alta era como levar um choque


com um fio elétrico. Controlei a raiva. — O que ele disse?

Ela olhou para mim. — Ele me provocou. Moloch não pode ver
o que eu vejo. Está preocupado.

Qualquer coisa que preocupasse Moloch era ótimo para nós.


52

— Um homem santo foi assassinado. Seu nome era Nathan


Haywood. Moloch enviou seus sacerdotes para a cidade. Ele quer algo
conectado a este assassinato.

— Algo ou alguém?

Sienna balançou a cabeça. Eu não receberia uma resposta. —


Encontre antes que ele o faça. Se Moloch encontrar o que procura,
tudo estará perdido. O futuro se torna uma certeza.

Kate não morreria. Não enquanto eu ainda estivesse respirando.

— Julie, —Sienna chamou.

Eu me assustei. Havia abandonado esse nome há anos. Julie


Olsen se foi, fundida no caldeirão da magia. Agora eu era Aurelia
Ryder.

— Não vá para casa. Se Kate te ver, ela vai te reconhecer. E vai


morrer. Curran morrerá. Conlan morrerá. Todos que você ama irão
embora.

Um pico frio de medo martelou em minha espinha. — Conlan me


viu.

— Conlan não importa. Kate é quem não pode te ver. —Ela


estendeu a mão e agarrou minhas mãos. — Você deve deter Moloch
53

desta vez para sempre. Não importa o custo. Não haverá mais
chances. É isso.

— Eu prometo, —eu disse a ela.

— Ande sempre com um pouco de suco de limão com você. Por


precaução. —Ela puxou a capa ao redor dela e foi embora.

Suco de limão. Certo.

Fiquei ao lado do túmulo de Saiman e observei o nascer do sol,


espalhando rosa e vermelho no céu. A noite ainda estava em pleno
andamento no Arizona. Daqui a três horas, Moloch acordaria e
olharia para o céu exatamente como eu estava olhando agora. Ele era
atraído pelo sol. O sol era uma bola de fogo, e o fogo dava a Moloch
poder.

Quer dizer que você enviou seus sacerdotes para Atlanta, hein? Não se
preocupe, Comedor de Crianças. Cuidarei bem deles e, quando terminar,
desejará nunca ter renascido.

Soltei um assobio estridente. Turgan decolou da ruína para a


direita e pousou no meu braço, com todos os seus quase seis quilos.
Pés amarelos com garras pretas agarraram a braçadeira acolchoada
em meu antebraço. A águia dourada mudou seu peso, asas abanando
minha cabeça, e olhou para mim com seus olhos âmbar.
54

Tulipa veio correndo em volta de um monte de entulho. Era hora


de pegarmos a chave e irmos para nossa nova casa. Eu tinha um
assassinato para resolver.

Ela era cerca de dez anos mais


velha do que eu, tinha trinta e poucos anos, pele castanha escura, uma
abundante cabeleira preta que mantinha trançada e grandes óculos
redondos, e olhava para a casa à nossa frente com o que só poderia ser
descrito como apreensão. Eu realmente não poderia culpá-la.

Construída na virada do século 20, a casa costumava ser uma


grande mansão Pré-guerra. Quando a comprei, há dois anos, ela tinha
três andares de altura, paredes brancas, uma ampla varanda
circundante e colunas jônicas altas sustentando seu telhado de duas

A Ordem Jônica é uma das ordens arquitetônicas clássicas. Suas colunas possuem capitéis ornamentados com duas
volutas, altura nove vezes maior que seu diâmetro, arquitrave ornamentada com frisos e base simples. Possui vinte e quatro linhas verticais.
55

águas . Seus quase dois mil metros quadrados de área útil foram
divididos em oito apartamentos, cada um com uma entrada e varanda
separadas.

Oito meses atrás, contratei Tamyra, uma engenheira estrutural,


para destruí-la. Ela entrou com uma equipe de pedreiros e
carpinteiros, reforçou a estrutura, reconfigurou a planta baixa de
acordo com minhas instruções, esculpindo uma área útil retangular de
cerca de quinhentos metros quadrados dentro da casa, e então
cuidadosamente derrubou as paredes externas, empilhando mais
pedaços de concreto e madeira retirados dos prédios caídos nas
proximidades, formando montes de escombros ao redor da casa.

Vista de fora, a casa parecia uma ruína, um monte de entulho


coberto por um telhado, algumas colunas tombadas, outras ainda de
pé, enterradas nos escombros. O estábulo reforçado com a porta
blindada estava bem escondido atrás. Um caminho estreito conduzia
à entrada, guardada por uma porta de aço grossa revestida por uma
folha de madeira manchada. Sem janelas, exceto a pequena localizada
à direita da porta e protegida por uma grade de metal que me dava

Água de telhado, também chamado água, pano de telhado, pano, vertente de telhado, vertente e, no estado
de Sergipe, nordeste do Brasil, corte de telhado, refere-se à superfície usualmente plana e inclinada, usada como cobertura de uma
edificação, que vai do espigão horizontal (cumeeira) ao beiral, sobre a qual escoam as águas pluviais numa única direção.
56

uma vista do jardim da frente da minha cozinha. Sem pontos fracos.


Nenhum sinal de que fosse habitável, exceto pela varanda. Invisível
da rua, a menos que alguém escalasse outro prédio, a varanda ficava
recuada sob o telhado, protegida por grossas barras de aço e prata que
desciam até a fundação de cimento. Eu já tinha visto o interior da
casa, e era tudo que eu queria que fosse.

A expressão de Tamyra dizia que ela havia tomado coragem em


me dizer algo. — Senhorita Ryder ...

— Sim?

— Sei que você investiu muito dinheiro nesta casa, mas uma vida
humana vale mais.

— Você está tentando me dizer que a casa não é segura?

— A casa está perfeitamente segura. Resistirá a um terremoto. É


uma fortaleza e tenho orgulho disso. Estou falando sobre isso.

Ela virou à esquerda e olhou para o oeste, onde a rua 17ª NE


rolava colina abaixo, depois virou para à direita onde a Unicorn Lane
fervilhava de magia a quinhentos metros de distância. Antes da
Mudança, este era um bairro de casas imponentes e grandes quintais,
rodeados de árvores, com vistas das torres de escritórios de Midtown
e etiquetas de preços correspondentes a sua localização.
57

Agora toda a área estava abandonada. Unicorn Lane continuava


crescendo com cada onda mágica, rastejando lentamente, centímetro
a centímetro.

— Você não acreditaria nas merdas que vimos rastejar para fora
dali nos seis meses que passamos aqui, —disse Tamyra.

Eu acreditaria. É por isso que paguei a eles o dobro do valor


normal.

— Existem outras casas, —disse a engenheira estrutural.

Mas nenhuma como a minha. Dez anos atrás, quando eu ainda era
Julie, estava voltando para casa depois de matar uma manticora . A
besta havia arranhado minha perna antes de morrer, profundamente,
quase até os ossos. Eu estava cansada, suja e sangrando, então peguei
um atalho, o desviou passava por muito perto da Unicorn Lane e um
bando de ghouls ferozes me perseguiu até esta casa. Naquela época,
um bando de seis ghouls representava um problema para mim.

Manticora é uma criatura mitológica, semelhante às quimeras, com cabeça de homem, três afiadas fileiras de dentes
de tubarão e com voz trovejante - e corpo de leão, olhos de cores diferentes e cauda de escorpião ou de dragão com a qual pode disparar
espinhos venenosos, que matam qualquer ser, exceto o elefante.

Ghoul, encontrado em dicionários como guli, gulio, goula ou até gula, também normalmente traduzido em obras de
fantasia como carniçal, é um ser semelhante a um demônio ou humanoide monstruoso originário da religião árabe pré-islâmica associado a
cemitérios e ao consumo de carne humana.
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Eu subi no telhado para escapar deles e observei o sol se pôr


lentamente atrás da Unicorn Lane até Derek me encontrar. Ele
expulsou os ghouls, rastreou meu cavalo e então me deu um sermão
sobre as vantagens de não pegar atalhos estúpidos a caminho de casa.
A memória disso estava vívida em minha mente. Eu, no meu cavalo,
e ele, caminhando ao meu lado na noite deserta, brigando comigo
com sua voz rouca.

Isso foi há muito tempo, em outra vida. Derek deixou Atlanta


dois anos depois de mim. Ninguém o viu desde então.

Uma criatura laranja disparou voando do telhado do outro lado


da rua. Puxei minha faca, dei um passo à frente e a cortei. Um corpo
de morcego do tamanho de um cachorro médio caiu no chão aos meus
pés, sacudindo seus membros. O sangue jorrou do coto de seu pescoço
para o asfalto. Sua cabeça com mandíbulas longas e pontiagudas rolou
e pousou na minha bota.

Tamyra agarrou a arma em seu quadril.

— Um Gritador, —eu disse a ela e chutei a cabeça de volta para


Unicorn Lane. — Nada para se preocupar. Obrigada por sua
preocupação, Senhorita Miller. Agradeço, mas estou exatamente
onde preciso estar.
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Ela suspirou e estendeu um chaveiro e um maço de jornais


enrolados. — Não há cópias dessas chaves, conforme você pediu.
Aqui estão todos os jornais da semana passada.

Peguei as chaves e os jornais. — Obrigada. Você gostaria que eu


a acompanhasse?

Ela balançou a cabeça. — Meu marido está estacionado a alguns


quarteirões da rua 15.

— Grite se precisar de ajuda.

— Certo. —Ela foi embora.

Fui até a porta da frente e enfiei a chave na fechadura. Os pinos


bem lubrificados deslizaram suavemente, abri a porta e entrei.

A porta da frente levava direto para a sala de estar, com uma


encardida lareira a lenha à esquerda. O interior da casa, com cerca de
setenta e cinco metros quadrados, não parecia nada especial: piso de
madeira velho, limpo, paredes danificadas que viram dias melhores, um
sofá surrado e encardido voltado para a lareira. À direita, uma
minúscula cozinha quadrada esperava, com uma mesa de café da
manhã abandonada e duas cadeiras, limpas, mas muito usadas e
velhas. Uma pequena geladeira amassada zumbia no canto. Bem à
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frente, na outra extremidade da sala, um pequeno corredor levava a


um quarto à esquerda e um banheiro à direita.

Parecia tão familiar.

Não tinha percebido até agora, mas eu havia subconscientemente


recriado minha primeira casa, aquela onde eu morava com meus pais
biológicos. Não era uma cópia exata, mas tinha a mesma vibração do
trabalhar muito por muito pouco dinheiro e uma recusa obstinada em
admitir a pobreza. Tudo o que faltava eram garrafas vazias de Tito's
e Wild Irish Rose na pia.

Entrei na cozinha e olhei para a pia. Vazia.

Meu pai biológico era carpinteiro. Ele morreu enquanto construía


uma ponte quando eu tinha oito ou nove anos. Um pedaço de um
viaduto em ruínas caiu sobre ele, esmagando-o instantaneamente. O
pedaço era muito pesado para ser removido e eles nunca recuperaram
o corpo dele. Tivemos que enterrar um caixão vazio com algumas de

Tito's Handmade Vodka é uma marca de vodka feita pela Fifth Generation, fundada por Tito Beveridge em 1997 em Austin,
Texas - especializada em vodka feita de milho amarelo, é destilada 6 vezes e não envelhecida em vez de batata ou trigo.

Wild Irish Rose - Vinho barato.


61

suas coisas favoritas dentro. Eu não conseguia mais me lembrar de


como ele era.

Lembrava-me de minha mãe biológica um pouco melhor. Ela era


magra, tinha estrutura óssea frágil, olhos grandes e castanhos e
cabelos loiros. Eu costumava ser parecida com ela. Seu nome era
Jessica Olsen e, nas minhas lembranças, ela estava sempre cansada.

Quando meu pai biológico estava vivo, vivíamos bem. Eu tinha


roupas, comida, brinquedos e até um skate. Sua morte nos destruiu.
Pouco depois do funeral, um homem apareceu em casa tentando
convencer minha mãe a vender as ferramentas de meu pai. Ela não
vendeu as ferramentas e tornou-se ajudante de carpinteiro.

O dinheiro ficou escasso. Durante a semana, minha mãe


trabalhava em longos turnos. Seu corpo frágil não era feito para
arrastar vigas pesadas, mas fez isso de qualquer maneira. Os fins de
semana eram os piores. Não havia nada a fazer, exceto lembrar que
meu pai não estava lá. Em um fim de semana desses, minha mãe
começou a beber e não parou até segunda-feira. No fim da semana
seguinte, ela fez de novo. Então começou a beber depois do trabalho.

Todas as pessoas travam uma luta em aceitar a perda de alguém


que amam. Minha mãe não era uma pessoa má. Apenas lutou mais
do que a maioria. Ela nunca quis me abandonar. Tentou escapar de
62

sua miséria e, de alguma forma, esqueceu que eu existia. Eu passei


muita fome. Usei roupas rasgadas. Ocasionalmente, ela tinha
momentos de lucidez, se lembrava que eu existia, e então haveria
comida na mesa e camisetas limpas e remendadas. Mas então ela se
afastava novamente.

Eu me tornei uma garota de rua. Morri de fome, roubei, levei


umas surras e aprendi que os predadores humanos eram muito piores
do que qualquer coisa que as ondas mágicas poderiam jogar em mim.
Eu estava tão desesperada para que alguém me amasse que pensei que
os meninos de rua eram meus amigos, mesmo quando me batiam e
roubavam. À noite, voltava para casa. Eu ainda me lembrava da
esperança frágil que sentia ao chegar até a porta da frente. Talvez hoje
eu irei abrir e mamãe estará bem.

Então, um dia, minha mãe biológica desapareceu e foi quando


Kate me encontrou. Naquela época, Kate trabalhava para a Ordem da
Ajuda Misericordiosa e me encontrou durante um trabalho. Ela não
precisava se importar comigo, mas se importou, e me prometeu que
iria encontrar minha mãe. As coisas não saíram como planejado, e
minha mãe e eu acabamos no meio de uma invasão de demônios do
mar. A memória me bateu, pegajosa e revoltante: eu pendurada em
uma cruz, amarrada a ela por cordas que cheiravam a peixe podre, e uma
massa de demônios do mar abaixo, raspando a carne do corpo de minha
63

mãe com suas línguas. Os olhos castanhos dela estavam olhando para
o céu nublado, leitosos e vazios ...

Estava pendurada naquela cruz, observando os demônios


devorarem o cadáver de minha mãe, e esperava contra todas as
probabilidades que Kate me resgatasse. E ela me resgatou.

Saí da cozinha, cruzando a sala de estar para o curto corredor que


levava ao único quarto e banheiro. A parede do corredor estava em
mau estado, toda de gesso e papel de parede velho, marcada com
buracos onde fotos deviam estar penduradas. Segui o corredor até
onde ele fazia uma curva em L um pouco antes do banheiro e parei
antes do local mais sujo. Eles fizeram um bom trabalho escondendo a
porta.

Escolhi a grande chave de metal do chaveiro que Tamyra havia


me dado, a inseri em um orifício de aparência indefinida no gesso a
cerca de um metro do chão e girei. Um pedaço da parede cedeu
quando a porta pesada se abriu para dentro. Eu passei por ela.

Um grande espaço se espalhava diante de mim, brilhando com a


luz do sol que fluía por uma enorme claraboia acima. Quatro colunas
de gesso, pintadas em creme suave e claro, com acabamento
ligeiramente áspero, elevavam-se em direção à claraboia. O chão era
de ladrilho de calcário, da mesma cor arenosa das colunas e das
64

paredes. Um riacho artificial de sessenta centímetros de largura cheio


de água limpa corria da porta da frente até a parede dos fundos,
dividindo a casa em duas. Havíamos aproveitado uma fonte natural
para isso. O riacho terminava em uma piscina rasa, onde lírios e
botões de lótus descansavam na água.

À esquerda do riacho, três degraus levavam a uma plataforma


elevada, sustentando uma mesa de madeira. Atrás da mesa, um
caldeirão de metal afundado no chão, com um metro de diâmetro,
grande o suficiente para uma pequena fogueira. Fileiras de prateleiras
embutidas nas paredes ofereciam espaço de armazenamento infinito,
e alguns dos meus suprimentos já tinham sido entregues: feixes de
lascas de madeiras variadas, sacos de ervas secas e minerais, e caixotes
de vidro e potes de plástico e garrafas esperando para serem separadas.
Atrás deles, perto da parede vazia, estavam cinco caixotes compridos.
Minhas armas.

À direita, uma cozinha foi construída contra a parede, com uma


grande ilha, um fogão a gás, uma mesa de jantar grande o suficiente

Os lírios são as flores do gênero Lilium da família Liliaceae, originárias do hemisfério norte com ocorrências na
Europa, Ásia, América do Norte, e América do Sul. Mais da metade das espécies são encontradas na China e no Japão. As plantas
atingem, normalmente, de 1,20 a 2 metros de altura.

Nelumbo nucifera é uma planta aquática do gênero Nelumbo, conhecida popularmente como lótus, flor-de-lótus, loto-
índico e lótus-índico. Apesar disto, esta planta não integra a família Nymphaeaceae, onde estão classificados a maioria dos lótus, fazendo
parte da família Nelumbonaceae.
65

para acomodar oito pessoas e um conjunto de sofás macios com


estofados em verde e azul. As prateleiras deste lado da sala
guardariam livros e ingredientes da despensa. Aqui e ali, mesinhas e
almofadas de pelúcia ofereciam lugares para sentar sob transparentes
dosséis de fino tecido verde bordados em dourado e escarlate. As
plantas floresciam em grandes vasos de cerâmica e videiras pingavam
das paredes.

Estátuas de metal repousavam entre as flores, algumas delicadas,


outras ferozes. Belas luminárias a gás, feitas de vidro, e lâmpadas
elétricas pontilhavam as paredes.

Passar pela porta em arco na parte de trás da sala me levaria ao


quarto e ao banheiro com um luxuoso chuveiro e uma banheira
quadrada com quase dois metros de lados, afundada no chão.

Casa … bem, quase.

Fui até a mesa na plataforma e puxei a tampa de uma pequena


caixa ao lado dela. Dentro estava um gládio simples em uma bainha
simples e um pedaço de tecido de algodão macio. Tirei o gládio, tirei

Gládio é uma espada curta utilizada na Antiguidade, que os autores latinos chamavam ense. É o mais antigo tipo de
espada curta de lâmina recta de dois gumes conhecida. Caracteriza-se pela sua lâmina, tradicionalmente, bastante larga e quase da mesma
largura do punho à ponta.
66

a lâmina da bainha e a coloquei sobre a mesa. A primeira espada que


Kate me deu.

O pacote foi o próximo. Eu o desenrolei e tirei um vaso fino da


cor verde claro, com um segundo pacote estreito dentro. Coloquei o
vaso na mesa, puxei o pacote menor e separei as camadas de tecido
com cuidado, prendendo a respiração. Uma rosa de metal esperava
dentro do tecido.

Ufa. Ela sobreviveu à viagem. Derek tinha feito essa rosa para
mim anos atrás, quando o conheci. Naquela época, ele ajudava Kate
em um trabalho.

Coloquei a rosa no vaso. Pronto. Agora eu estava em casa.

Espalhei o jornal sobre a mesa. Não demorei muito para


encontrar o que eu procurava.

Por que Sienna esperou três dias para me contar?

Examinei os artigos e o obituário. O pastor Haywood deve ter


sido amado. O artigo falava dele como se fosse um santo. Uma

Rosa de metal
67

fotografia mostrava uma fila de enlutados se estendendo pelo


quarteirão da cidade. Pessoas chorando. Pessoas se abraçando. A
morte do pastor parece que surpreendeu Atlanta. A cidade estava
sofrendo.

O artigo mais recente mencionava que a investigação estava


sendo encaminhada para a Ordem da Ajuda Misericordiosa. Perfeito.

Eu tinha uma maneira de entrar. Era arriscado, mas muito melhor


do que tentar resolver isso enquanto lidava com a Divisão de
Atividade Paranormal de Atlanta.

Mal eram oito da manhã. Se eu seguisse em frente, poderia chegar


à Ordem às nove.

Olhei para cima. A lâmina do gládio estava sobre minha mesa,


refletindo o brilho da claraboia.

Kate não tinha apenas me resgatado. Ela me acolheu. Se algo


tentava me machucar, ela o matava. Quando eu tinha um problema,
ela me dava apoio para resolvê-lo e, quando eu precisava de ajuda, ela
me ajudava. Kate me matriculou na escola e me incitou a fazer meu
dever de casa. Ensinou-me a usar armas e me deu a minha primeira
aula de lança. Ela me amava com sinceridade e sem reservas.
68

A família dela se tornou minha família. Andrea Medrano, sua


melhor amiga, tornou-se tia Andy. A tia de Kate, Erra, a Devoradora
da Cidade, a antiga princesa que despertou em nossa era, se tornou
minha avó. O pai de Kate, o megalomaníaco imortal, decidiu ser meu
avô. Curran, o marido de Kate e ex-Senhor das Feras, cuidou de mim
como se eu fosse sua própria filha, e quando Conlan nasceu, nunca
pensei nele como algo além de meu irmão.

Nunca usamos palavras como ‘mãe’ e ‘filha’, mesmo após a


adoção oficial. Ela me chamava de Julie e eu a chamava de Kate. Ela
se casou com Curran, e eu o chamava de Curran.

Escorreguei nisso apenas uma vez. Oito anos atrás, deixei Atlanta
com Erra. Eu queria encontrar meu próprio caminho e tinha meus
motivos. Em duas semanas, a saudade de casa se instalou e me
consumiu, até que não consegui mais suportar. Três meses depois de
partir, liguei para casa. Kate atendeu. Eu queria dizer oi, mas o que
saiu foi ‘Mãe?’ Ela respondeu: ‘Sim, filha?’ E então conversamos como
se nada tivesse acontecido. Nenhuma de nós nunca mencionou isso
novamente. Ela nunca me culpou por ir embora. Kate tinha feito a
mesma coisa quando tinha a minha idade. Ela não precisava me dizer
que eu era bem-vinda a qualquer momento. Era algo dado como certo.
69

Kate, Curran e Conlan eram minha casa. Meu lugar seguro, meu
abrigo, proteção, estabilidade e afeto, onde eu era amada. Era minha
vez de protegê-los do perigo, e meu primeiro passo era assumir a
custódia do caso Haywood e manter os sacerdotes de Moloch longe
deles.

um complexo no

cruzamento da Centennial Park com a Andorf’s Avenue. O prédio de


cinco andares era uma mistura de fortaleza com búnquer e tinha
todas as vantagens e desvantagens de uma construção pós-Mudança:
janelas estreitas protegidas por grades de metal com barras de prata,

Centennial Olympic Park é um extenso parque público localizado no centro de Atlanta, Geórgia.

Um búnquer (do alemão bunker, possivelmente de origem ânglica escocesa; pronúncia em alemão: [búnkәr])
é uma estrutura ou reduto fortificado, parcialmente ou totalmente construído embaixo da terra (subterrâneo), feito para resistir a projéteis
de guerra. Alguns tipos de búnqueres podem ser considerados sinônimos de casamata.
70

paredes de pedras grossas e um telhado plano, guardado por balistas


e metralhadoras M240 . Uma parede de quase três metros de altura
com arame farpado e torres de vigilância por todo o lugar. Com magia
ou com tecnologia, os Cavaleiros estavam prontos para pulverizarem
qualquer um.

Fui direto para o portão da frente e parei diante de uma guarita


baixa com paredes reforçadas e janelas escuras protegidas por grades
de metal. O portão na parede de pedra por trás da guarita estava
totalmente aberto, e através dele eu podia ver estábulos e um pátio de
exercícios. O núcleo da Ordem foi reformado e ampliado. Agora
caberiam quatro de seus antigos quartéis-generais neste novo lugar.

Um Cavaleiro de pele escura mais ou menos da minha idade com


uma cicatriz no pescoço e cabelo preto curto saiu. Ele carregava uma
espada tática em seu quadril.

— Nome?

A balista era uma máquina de guerra da antiguidade que disparava grandes dardos. Eram também
apoiadas nas Ameias dos castelos. A balestra, ou besta, é o nome dado a uma balista portátil para um soldado disparar dardos.

A M240, oficialmente Machine Gun, 7,62mm, M240, é uma metralhadora de multi propósito desenvolvida
pelos Estados Unidos a partir do modelo belga FN MAG. No serviço ativo desde a década de 70, ela já participou de diversos combates, como
no Afeganistão, na Guerra do Golfo e no Iraque.
71

— Aurelia Ryder.

— Propósito da visita?

— Estou aqui para ver o Cavaleiro-Protetor Nikolas Feldman.

O Cavaleiro me olhou. — Ele está esperando por você?

— Não. Mas ele irá querer me ver.

— O que te dá tanta certeza?

— Eu tenho uma Torre.

A expressão do cavaleiro não mudou. — Isso significa alguma


coisa?

Não, sou só uma pessoa maluca dizendo bobagens aleatórias na porta de


sua fortaleza de fanáticos armados. — Por que você não liga e descobre?

— Espere aqui.

Ele voltou para dentro da guarita.

Eu esperei.

A Ordem se originou imediatamente no caos formado após a


Mudança, logo após a primeira onda de magia que derrubou aviões
do céu e minou toda a energia da rede elétrica. A onda durou três dias,
72

dando à luz monstros e despertando poderes aleatoriamente. O


apocalipse havia chegado e destruído nossa civilização tecnológica
com um golpe, como um martelo cósmico. Durante essa onda, Jared
Stone, um ex-soldado do Exército, se uniu a alguns de seus vizinhos
para proteger suas casas dos pesadelos mágicos que devastavam seu
bairro, e a Ordem nasceu.

Stone modelou sua criação de acordo com as ordens dos


cavaleiros medievais, enfatizando disciplina estrita, educação e,
acima de tudo, competência, e deu a ela uma missão simples: proteger
a humanidade de todas as coisas mágicas. Os Cavaleiros ajudavam
qualquer um que procurava por socorro. Rico, pobre, não importava.
Se você se deparasse com um problema mágico que não pudesse
resolver, a Ordem aceitaria seu pedido de socorro e resolveria seu
dilema. Nos termos deles.

Com o passar dos anos, a Ordem cresceu. À medida que o


controle do governo federal se enfraqueceu e os Estados ganharam
poder, as forças de segurança passaram a confiar cada vez mais nos
Cavaleiros. Eles tinham núcleos em todas as grandes cidades, eram
especialistas em descartar materiais perigosos mágicos, e eram letais.

Infelizmente, a Ordem levava sua missão literalmente, e a


definição dos Cavaleiros sobre o que era humano ou não era bastante
73

limitada. Ocasionalmente, eles mostravam suas verdadeiras intenções


preconceituosas e a sociedade os fazia recuar. Pressionados, os
Cavaleiros ajustavam suas políticas para resistirem a tormenta da
opinião pública e, mais cedo ou mais tarde, as autoridades voltavam
a bater na porta deles e tudo voltava como antes. Pelo menos até o
próximo massacre promovido por eles.

Um garoto magricela com cabelos castanhos e cor de areia, com


cerca de dezesseis anos, saiu trotando dos estábulos dentro do
perímetro murado. Nós acenamos um para o outro.

O Cavaleiro colocou a cabeça para fora da guarita. — Você pode


entrar. Peyton levará seu cavalo.

Desmontei e entreguei as rédeas a Peyton. Ele sorriu para mim e


olhou para Tulipa. A égua relinchou.

— Comporte-se, —eu disse a ela.

— Cor bonita, —Peyton me disse.

— Obrigada. —Caminhei em direção ao prédio.

— Senhora, —Peyton gritou.

— Sim?

— Sua égua tem sangue no queixo.


74

Eu me virei, tirei um pano do bolso e limpei a mancha de sangue


do rosto de Tulipa. — Pronto. Tudo limpo.

Peyton me lançou um olhar desconfiado e ele e Tulipa se


afastaram.

Eu amava minha égua, mas ela sempre fazia uma grande bagunça
quando se alimentava.

Cavaleira me encontrou nas portas da Ordem. Ela era mais


alta do que eu uns quinze centímetros, pele morena, corpo atlético,
esguia, olhos castanhos claros e um olhar intenso, nem piscava. Seu
cabelo castanho escuro, trançado, caía sobre os ombros em quatro
tranças grossas. Ela me acompanhou pelo saguão da frente, depois
pelo longo corredor até o escritório de Nick, e apontou para a cadeira
na frente da mesa dele. — Sente. Quieta. Aguarde.

Sentei e segurei meus punhos na minha frente, imitando patas. —


Au-au!
75

— Perfeito. —Ela se virou, saiu do escritório e parou no corredor


perto da porta aberta.

A Ordem da Ajuda Misericordiosa, a própria alma da cortesia nesta era


selvagem.

Sentei-me na cadeira e estudei o escritório. Mesa simples, cadeiras


simples, uma fileira de estantes contra uma parede cheia de uma
variedade de livros, todo o tipo de livro, desde ciência forense a
bestiários, um suporte de armas contra a parede oposta, contendo três
espadas, uma lança , uma clava , um rifle e uma espingarda. Um
escritório espartano e funcional para um homem espartano e
funcional.

Nick Feldman e minha família tinham uma história complicada.


Feldman possui um código moral, ao qual adere fanaticamente. Ele
também era profundamente paranóico, resoluto e, uma vez que
decidisse que alguém era uma ameaça, podia se tornar violento
repentinamente. Essa conversa teria que ser feita com muito cuidado.

[Armamento] Arma ofensiva formada por uma haste que tem na extremidade um ferro pontiagudo.

Porrete, clava (do latim clava), bastão (do latim tardio bastone) ou maça (do latim mattea) é um tipo de taco
ou bastão mais grosso numa das extremidades e geralmente feito de algum material sólido - podendo ser de madeira, pedra, ou metal -
normalmente utilizado para fins de necessária força física ou em batalhas de estilo corpo a corpo, em especial pelas forças policiais.
76

Passos ecoaram pelo corredor. Nick Feldman entrou, se


aproximou de sua mesa, e eu quase caí da cadeira.

Nick estava grisalho.

A última vez que o vi, ele tinha cabelo castanho que mantinha
cortado muito curto. Estava mais comprido agora, o suficiente para
ser escovado, mas era cinza-aço. Ele tinha envelhecido.

Oh, uau!

Nick Feldman me lançou um olhar frio. Seus olhos estavam


muito pálidos, nítidos contra o pano de fundo de sua pele bronzeada,
e receber esse olhar era como olhar para o cano de uma arma. Eu
provavelmente deveria cair de joelhos e implorar por misericórdia,
mas ainda estava lutando com o choque que os cabelos grisalhos e as
linhas ao redor de seus olhos me deram, então eu apenas olhei de
volta, meu rosto em branco.

Quantos anos ele tinha agora? Kate tinha ... trinta e oito, então ele
tinha quarenta e um. É assim que as pessoas ficavam aos quarenta e
um?

Ele não parecia enfraquecido pela idade. Na verdade, a aparência


madura o deixou mais duro. Alto e de ombros largos, seu corpo
transmitia uma força dura e vigorosa. Suas maçãs do rosto estavam
77

mais definidas. Uma cicatriz cruzava sua bochecha esquerda, e seu


rosto irradiava autoridade e pessimismo estoico. Se você o
catapultasse no tempo para um comboio de Cruzados de olhos vazios
e armadura gasta que cortara o caminho pela Terra Santa após anos
de luta, ele se encaixaria perfeitamente.

Nick acenou para mim com a mão. — Vamos ver isso.

Tirei a Torre do bolso e coloquei em sua mesa. Era um distintivo


de metal do tamanho de uma carta de baralho com a imagem de uma
torre gravada em um lado. Nick o virou. O outro lado estava gravado
com o número quatro. Uma assinatura corria embaixo do número,
prateada e incrustada em metal, como se alguém tivesse assinado o
distintivo com fio de prata enquanto o metal ainda resfriava da forja.
Damian Angevin.

Nick pegou o distintivo e o estendeu. A Cavaleira que me


acompanhou entrou, pegou a Torre e saiu.

As cruzadas foram expedições militares organizadas por católicos da Europa Ocidental, com o objetivo inicial
de reconquistar para o mundo cristão lugares sagrados, como o Santo Sepulcro, em Jerusalém, na Palestina. ... As cruzadas foram também
uma luta de cristãos contra muçulmanos.

A Terra Santa é uma área localizada entre o rio Jordão e o mar mediterrâneo, atualmente dividida entre Israel,
Cisjordânia e Jordânia. É chamada terra santa devido ao seu valor histórico para as três grandes religiões monoteístas do mundo:
cristianismo, judaísmo e islamismo.
78

Nick me estudou com seus olhos claros.

Eu havia passado muito tempo com minha avó. Tecnicamente,


ela era minha tia-avó adotiva, mas nós duas concordamos que ‘avó’
era mais fácil e mais curto e se encaixava melhor em nosso
relacionamento. Erra não envelhecia. Ela tinha milênios de idade,
mas parecia perpetuamente ter cerca de quarenta anos, e eram
impressionantes e magníficos quarenta. Nick tinha quarenta e um e
parecia que tinha visto o inferno.

— Você tem estado bem, Cavaleiro-Protetor? —Eu não deveria


ter dito isso. Simplesmente escapou.

Nick franziu as sobrancelhas. — Nós nos conhecemos?

— Não.

A magia se espalhou pelo mundo, saturando-o em um único


instante de tirar o fôlego. De repente, me senti mais leve, mais forte,
meus sentidos ficaram mais nítidos. Minha habilidade sensitiva
entrou em ação, e cores vivas floresceram em meu campo de visão.
Tênues redemoinhos de cada tom azul deslizaram sobre os móveis e
o chão—trilhas recentes de magia humana dos visitantes do escritório
de Nick. Uma mancha verde de um metamorfo, um toque de roxo,
velho e desbotado—a trilha suja de um vampiro—e a trilha do próprio
79

Nick, um amálgama de azul e safira com listras amarelas brilhantes e


elétricas. Pisquei para desligar.

Todas as coisas vivas emanavam magia, e a intensidade das


trilhas que deixavam para trás variavam. Um mago humano andando
pela rua emanava muito pouco, e a sua trilha seria fraca e desaparecia
em minutos. O mesmo mago em uma luta por sua vida deixaria para
trás uma explosão azul que poderia persistir por dias, contanto que a
tecnologia não a apagasse. Os visitantes do escritório de Nick estavam
sob alguma pressão. Olhando para a expressão de estátua de pedra
dele, eu não conseguia imaginar por quê. Nick treinou bastante essa
expressão para torná-la natural.

No corredor, uma mulher xingou. A Torre percebeu que a mão


que a segurava não pertencia ao seu dono e foi ativada. Perguntar à
Cavaleira se ela precisava de um pouco de babosa para essa
queimadura não seria prudente, mas era muito tentador.

A Cavaleira voltou e depositou o distintivo embrulhado em um


pano sobre a mesa. — É verdadeiro. —Ela se virou e voltou para seu
posto perto da porta.

Peguei o distintivo. Um formigamento de magia passou pelos


meus dedos e desapareceu, me reconhecendo. Eu coloquei de volta no
bolso. A Torre me concedia o direito de pedir ajuda à Ordem e me
80

dava autoridade equivalente a um Capitão-Cavaleiro, o que


significava que eu estava acima na cadeia de comando de todos no
escritório, exceto Nick.

Os Cavaleiros-Protetores supervisionavam escritórios regionais,


núcleos individuais da Ordem, e sua posição vinha com muita
autonomia. Apenas o Grão-Mestre da Ordem e o Cavaleiro-Senescal
tinham posição superior.

Teoricamente, a Torre constituía uma ordem direta do Grão-


Mestre para prestar qualquer assistência que eu solicitasse. Na prática,
tentar forçar uma obediência a Nick terminaria em desastre. Eu
precisava da cooperação dele.

— Para se obter uma Torre, é necessário realizar um serviço de


grande valor para a Ordem, —disse Nick.

E eu realizei.

Nick esperou. Mantive minha boca fechada.

— Qual é a sua relação com o Grão-Mestre? —Perguntou Nick.

— Não tenho autorização para responder.

Erra gostava de descrever seu relacionamento com o chefe da


Ordem como ‘complicado’. Do meu ponto de vista, não havia nada de
81

complicado nisso. Damian Angevin estava desesperadamente


apaixonado por minha avó. Depois que ele concedeu a ela a primeira
Torre, ela a deu para mim. Ele descobriu e a presenteou com outra,
para que ela tivesse uma por garantia. Minha avó gostava dele, no
entanto, o coração dela pertencia a um homem que morreu há mais
de dois mil anos. Damian sabia disso, mas ele nunca desistia de um
desafio.

Nick recostou-se na cadeira, fazendo uma excelente atuação de


uma rocha de granito. — Nunca ouvi falar de você, Senhorita Ryder.

— Eu não sou conhecida.

— Existem apenas quatro torres, —disse Nick.

Cinco, mas quem estava contando?

— Conheço todas as quatro pessoas que são destinatárias das


Torres.

Ótimo. Como sou sortuda.

— Sua torre está registrada para você, o que significa que uma das
quatro pessoas concedeu a você autoridade para usá-la. A quem você
pertence, Senhorita Ryder?
82

Eu pertencia ao Novo Shinar e à minha avó, a Portadora da Peste,


a Devoradora de Cidades, Rigmur Pana-Shinar—a Voz do Reino
Antigo. Na grande tradição da linha real, eu tinha conquistado minha
cota de títulos também, o mais famoso deles era Dananu Edes-Shinar—
a Força da Novo Shinar. Nick tinha realmente ouvido falar de mim.
Ele simplesmente não sabia disso.

Mencionar qualquer uma dessas tolices estava fora de questão


porque Nick odiava com a paixão de mil sóis meu avô, minha avó e
qualquer coisa relacionada a Shinar. A Torre obrigava o Cavaleiro-
Protetor a obedecer, mas se soubesse quem eu era, ele tornaria as
coisas o mais difíceis que pudesse.

Essa conversa exigiria tato. Dos quatro destinatários da Torre,


Nick provavelmente veria Hannah Salazar como o mal menor. Ex-
oficial, ela comandava um pequeno exército particular no Novo
México, e seu pessoal salvou o núcleo da Ordem local durante o
último Flare a um alto custo.

— Eu pertenço a alguém que valoriza a disciplina e a


responsabilidade, Cavaleiro-Protetor. Jurei cumprir ordens, e essas
ordens exigem que eu mantenha a confidencialidade. Não gosto de

Flare significa um alargamento, dilatação, erupção. Na trama o Flare é um período onde a magia vem com força total e desenfreada,
costuma acontecer a cada sete anos.
83

heroísmos e missões secretas. Prefiro missões simples, onde o inimigo


está as claras, mas é assim que minha cadeia de comando quer
trabalhar, então devo fazer o meu melhor. Espero que entenda.

Pronto, sou uma mercenária com mentalidade militar. Não se preocupe


comigo. Não há segredos obscuros profundos aqui.

Nick ponderou sobre mim por um longo momento. — Muito


bem. O que você precisa?

para frente. — Três dias atrás, um homem foi assassinado.


Quero investigar o caso sobre a morte dele.

Nick suspirou. — Aqui é Atlanta, Senhorita Ryder. Seja mais


específica. Com qual dos sete assassinatos na minha mesa você
gostaria de brincar?

— Pastor Haywood.

Nick folheou a pilha de arquivos em sua mesa, tirou um e me


ofereceu. — Bem. É todo seu.
84

Hã? Fácil assim?

Nick me estudou. — Algo errado?

— Eu esperava mais resistência.

— E você terá. Só não será de mim. Quanto sabe sobre Atlanta?

— Não tanto quanto eu gostaria.

— Fique um pouco aqui e desejará saber menos.

Nick se levantou e puxou uma corda pendurada em um rolo de


plástico preso na parede traseira. O plástico se desenrolou em um
mapa de Atlanta com seções coloridas em diferentes cores.

— A configuração de territórios, —disse Nick. — Pelo menos até


semana passada. Atlanta é menos uma cidade e mais uma coleção de
territórios reivindicados por diferentes facções. Existem três estradas
principais, Interestadual-20 que vai de leste a oeste, Inter-85 que vai
de norte a sul, e Peach Loop, que é uma nova estrada que circunda a
cidade.

Ele apontou para o nordeste, onde um ícone cinza representava


um castelo estilizado situado no meio de uma área tingida de verde.
— A Fortaleza, a sede do Bando. O território deles se estende quase
até a Inter-85.
85

Nick tocou em um ícone de um palácio branco localizado no


Noroeste, no cruzamento entre Inter-85 e Inter-20, colorido em
vermelho. — O Casino. Costumava pertencer a Nação, exceto que
particularmente a Nação de Atlanta agora se autodenomina Instituto
Oriental de Necromancia, também conhecido como ION. Eles ainda
são as mesmas pessoas. Ainda pilotam vampiros com suas mentes,
financiam suas pesquisas com jogos de azar e pensam que são
melhores do que todos e, portanto, têm direito a tratamento especial.

A Nação foi criada por meu avô. Milhares de anos atrás, Roland
acidentalmente fez o primeiro vampiro, e quando ele acordou na era
moderna, decidiu fazer bom uso deles. Antes de seu exílio, Roland
estabeleceu a Nação, uma organização de necromantes capazes de
pilotar vampiros com suas mentes. Ele deu a eles um nome moderno,
porque ‘navegador’ parecia muito menos assustador do que
necromante, e os espalhou pelo mundo. A Nação se firmou como uma
mistura de corporação, instituto de pesquisa e, geralmente,
propriedade de empresas de entretenimento comunitário. Os casinos
eram seus favoritos.

Agora que meu avô não estava mais em cena, a Nação se dividiu
em organizações independentes. O ION de Atlanta era mais
independente do que a maioria. Durante a luta final entre Kate e
86

Roland, a Nação de Atlanta apostou seu apoio em Kate. Muitos


outros navegadores viram isso como uma traição.

Nick apontou para uma seção cinza centrada em uma torre. — O


território da Ordem. Você estará relativamente segura aqui.

Ele moveu o dedo para uma área que se estendia ao norte e ao sul
da Inter-20, pintada em tantas cores que parecia que uma criança
muito entusiasmada com tinta de dedo tinha enlouquecido depois de
se encher de açúcar.

— Os Pagãos. Os Covens estão aqui, os neos-vikings ali, então


temos os Druidas, os Gregos, os Volhvs, os Egípcios, os devotos das
religiões africanas tradicionais ...

Sua mão sacudiu o mapa para sudeste. — Os representantes dos


Cherokee , Apalachee , Muscogee Creek e outras tribos estão aqui.
Além disso, cada uma das principais religiões tem sua própria esfera

Os cheroquis ou cherokees (em cherokee: ᎠᏂᏴᏫᏯᎢ Aniyvwiyaʔi, ou ᏣᎳᎩ, Tsalagi) são um grupo étnico iroquês, sendo um dos povos
nativos dos Estados Unidos. São uma nação iroquesa que, até o século XVI, habitava o atual território do leste dos Estados Unidos, até serem
expulsos para o Planalto de Ozark. Nos Estados Unidos, são conhecidos como uma das "cinco tribos civilizadas". Com mais de 310 mil
membros, a nação Cherokee é a maior das 567 tribos reconhecidas pelo governo federal dos Estados Unidos
Os Apalachee são um povo nativo americano que viveu historicamente no Panhandle da Flórida. Eles viviam entre o rio Aucilla e o rio
Ochlockonee, na cabeceira da baía de Apalachee, uma área conhecida pelos europeus como província de Apalachee. Eles falavam uma língua
muskogeana chamada Apalachee, que agora está extinta. Os Apalachee ocuparam o local de Velda Mound começando por volta de 1450 CE, mas a
maioria o abandonou quando os espanhóis começaram a colonizar no século 17. Eles encontraram os exploradores espanhóis pela primeira vez em
1528, quando a expedição Narváez chegou. Inimigos tribais tradicionais, doenças europeias e invasão europeia reduziram severamente sua população.
Os sobreviventes se dispersaram e, com o tempo, muitos Apalachee se integraram a outros grupos, particularmente a Confederação Creek, enquanto
outros se mudaram para outros territórios espanhóis, e alguns permaneceram no que hoje é a Louisiana. Cerca de 300 descendentes nas paróquias
de Rapides e Natchitoches afirmam uma identidade Apalachee hoje.
A Muscogee (Creek) Nation é uma tribo nativa americana reconhecida federalmente com base no estado americano de Oklahoma. A
nação descende da histórica Confederação Creek, um grande grupo de povos indígenas das florestas do Sudeste.
87

de influência e centro de poder, espalhados por toda a cidade, sendo


os cristãos os mais numerosos. Apocalipse ou não, ainda estamos no
Cinturão da Bíblia.

Nick deu um passo para trás e acenou com a mão, envolvendo o


mapa.

— É tão divertido quanto parece. Ocasionalmente, algo os une,


mas na maioria das vezes, eles não conseguem concordar sobre onde
o sol nascerá amanhã. São como pedras em um saco, esmagando-se
umas contra as outras. Todos querem se expandir, mas a cidade é
limitada, então eles se protegem, esperando uma oportunidade.

— E essa área azul-esverdeada menor no Sudeste?

Nick fez uma careta. — Esse é o condomínio fechado Lennart-


Daniels.

O que? — Condomínio fechado?

— Sim. É muito exclusivo.

Aposto que é. — O que significa?

— Fique fora daí. Lennart uma vez liderou o Bando, e Daniels


reivindicou—palavras dela, não minha—a cidade inteira no passado.
Agora eles passam a maior parte do tempo em Wilmington porque
88

seu filho frequenta uma escola particular lá, mas eles voltam no verão
para visitar a família e amigos. Essa família é complicada.

Não me diga.

— Eles têm problemas com o Bando e com os ION e não são


receptivos a estranhos. A vizinhança inteira consiste em famílias de
metamorfos que deixaram o Bando com eles. Imagine três ruas cheias
de metamorfos-ursos e ex-combatentes do Bando fanaticamente leais
a Lennart e Daniels. Se você invadir, posso não conseguir tirá-la de lá.

Isso era mentira. Nick visitava minha família regularmente. Kate


o considerava seu meio-irmão. Conlan o chamava de ‘tio’. Às vezes,
quando Nick fazia algo particularmente estúpido, Kate se referia a ele
como ‘Seu tio Estúpido’ e nem sempre fora do alcance de sua voz.

Se um dos Cavaleiros de Nick acidentalmente vagasse por sua


vizinhança e fizesse uma bagunça, Kate e Curran com certeza
devolveriam o pobre cordeiro perdido para Nick. Além disso, como o
Cavaleiro-Protetor, Nick poderia e iria a qualquer lugar da cidade, e
todos os figurões cujo território ele invadiu teriam que usar dos bons
modos quando pedissem educadamente que ele fosse embora.

— Enquanto você está no caso, mantenha-se afastada da


Associação dos Mercenários. Lennart e Daniels não a administram
89

mais, mas eles ainda possuem uma parte dela, então não vá lá
procurar seu pessoal.

Bem, minha manobra de se passar por uma das mercenárias


particulares de Hannah Salazar funcionou. Ele pensava que eu era
uma mercenária, claramente uma profissão que ele não gostava. Isso
e o fato de eu chegar e pegar um de seus casos, provavelmente
significava que se eu tivesse problemas, o Cavaleiro-Protetor não teria
pressa em me resgatar. Que bom que na maioria das vezes eu não
precisava ser resgatada.

— O assassinato do pastor Nathan Haywood aconteceu aqui. —


Nick tocou uma área no Sudeste, perto de Peach Loop. — Em terra
de ninguém. Você tem o Warren ao leste. É uma área empobrecida,
cheia de moradores de rua e gangues de rua. O PAD não faz muitas
visitas para Warren. O pastor Haywood escolheu deliberadamente
este bairro. Ele era um verdadeiro cristão. Vivia com simplicidade, era
humilde e fazia milagres. Este era um homem que ministrava a todos
os necessitados, especialmente aos pobres. Ele os alimentava, os
curava e espalhava a palavra de seu deus.

— Você o conhecia?

Departamento de polícia de atividades paranormais de Atlanta


90

— Eu o vi curar pessoas. Ele não era uma fraude.

Pós-Mudança, a fé tinha poder. Se pessoas suficientes


acreditassem em um deus, a divindade aumentaria em poder e às
vezes seus sacerdotes ganhariam habilidades mágicas. Ninguém sabia
ao certo se esses poderes eram o resultado da divindade imbuindo seus
escolhidos com magia ou se a fé da congregação fortalecia o clero
diretamente, mas suas novas habilidades eram um fato.

— O pastor Haywood nunca recebia nenhum dinheiro ou crédito


pelo que fazia. Sua magia era baseada na fé, então só funcionava com
aqueles que compartilhavam de suas crenças, mas quando
funcionava, era extraordinário. Ele era um bom homem, que pensava
não ter magia própria e se via como um instrumento de um poder
superior. Você sabe como esse homem milagroso morreu?

— Não.

— Olhe no arquivo.

Eu abri o arquivo. Uma fotografia colorida me encarou: O toco de


um corpo estava esparramado em uma poça de sangue no chão. A
cabeça estava faltando, arrancada, a julgar pelos pedaços irregulares
de pele em volta do pescoço.
91

O peito do cadáver estava uma bagunça sangrenta. Algo com


garras ferozes o rasgou, quebrando suas costelas, e as lascas dos ossos
se projetavam da carne manchada de vermelho. Sangue espesso e
escuro acumulou-se dentro da cavidade torácica, onde costumavam
estar os órgãos vitais.

— Algo arrancou o coração, —eu disse.

— Sim. —Nick recostou-se na cadeira. — É muito cedo para dizer


se o culpado é algo ou alguém. A força e as garras necessárias para
abrir um ser humano assim podem indicar um metamorfo ou um
vampiro ou meia dúzia de bestas mágicas vistas recentemente dentro
dos limites da cidade. Sua suposição é tão boa quanto a minha.

O Cavaleiro-Protetor parecia entediado. Nick não sabia como ser


sobre o seu trabalho nada mais do que indiferente. Ele nunca se
vinculava a nada, mas aqui estava um homem santo, um pastor que
ele conhecia pessoalmente e claramente admirava, assassinado de
uma forma horrível e Nick estava fingindo não se importar. Ele
também não estava me dando detalhes.

Por que tanto apatia fingida, titio? O que está escondendo?

— Ele tinha algum inimigo? Você tem alguma pista ou suspeita?


92

— Não e não. O pastor Haywood era amado por sua congregação


e respeitado por seus colegas. O assassinato foi anunciado no jornal
há dois dias, e ainda há centenas de pessoas de luto em vigília na igreja
onde ele era diácono .

Estudei a fotografia e a coloquei de volta no arquivo suavemente.


Eu tinha visto muitos mortos. Muitos eu mesma os matei, e às vezes
meu trabalho parecia pior do que isso. Mas havia algo profundamente
triste sobre o assassinato do pastor Haywood. A brutalidade disso, a
selvageria absoluta disso fazia você querer socar algo. Ele era um
homem de bom coração, e alguém literalmente o arrancou. Ele era
uma luz no mundo. Tínhamos tão poucas luzes.

Tracei a imagem do corpo com minhas pontas dos dedos. Você


não será esquecido. Prometo que encontrarei o responsável e impedirei que
machuquem mais alguém.

Percebi que Nick estava me observando e fechei o arquivo.

— A Ordem foi solicitada pela Bispa Metodista da Geórgia do


Norte para intervir porque a forma da morte torna este caso uma
bomba-relógio na política local. O PAD ficou muito feliz em nos

O termo diácono é aplicado aos clérigos de igrejas de origem cristãs, nas suas várias denominações. Na Igreja ocidental, clérigo que
tem a segunda das três maiores ordens sagradas, aquela imediatamente inferior à de sacerdote, e cuja função é assistir um sacerdote ou
bispo, pregar, batizar e distribuir a comunhão.
93

passar o problema. O caso pousou na minha mesa esta manhã. Tudo


o que sabemos está nesse arquivo e agora é seu.

Nick abriu uma gaveta de sua escrivaninha, tirou um formulário,


escreveu em uma letra cursiva indecifrável e o estendeu.

— Para os fins desta investigação, vamos torná-la uma Cavaleiro-


Defensor.

Um membro recruta da Ordem. Perfeito.

— Vá pelo corredor, vire à esquerda, segunda porta à direita, dê a


eles este papel, e eles farão para você seu próprio distintivo de membro
recruta. Enquanto estiver de posse do referido distintivo, você
representa a Ordem da Ajuda Misericordiosa. Se ferrar com tudo, vai
me achar menos do que misericordioso, e não importa o favor que seu
superior pense que eles merecem, vou chutar seu traseiro para fora de
Atlanta. Entendido?

Direito e reto. Isso é tudo que ele iria me dar. — Entendido. Algum
conselho?

Nick sorriu como um lobo mostrando suas presas. — Divirta-se,


não ofenda ninguém e tente não morrer.
94

da Ordem, percebi que alguém


me seguia. Justiça seja feita, esse alguém não estava fazendo muito
esforço para ser discreto, então não foi uma grande descoberta minha.

Eu me mexi na sela, virando minha cabeça ligeiramente. A


Cavaleira que me escoltou até o escritório de Nick estava me seguindo
a pé, sem fazer nenhum esforço para se esconder. Ela deve ter decidido
que mesmo se eu soubesse que ela estava lá, não poderia fazer muito
a respeito.

Eu a deixei me seguir pela Magnum, através da ponte pós-


Mudança que cruzava os trilhos da ferrovia e pela estreita Avenida
Packard. Normalmente, a teria ignorado e a deixado que me seguisse
alegremente onde quer que fosse, mas eu estava indo para a cena do
crime e tinha a sensação de que havia coisas lá que não queria que ela
visse.

A Avenida Packard me levou a Rua Ted Turner, repleta de


empresas de recuperação e escritórios de construção. A Rua Turner
95

corria ao lado do Centro em ruínas. Limpar as ruínas em busca de


metal e outros materiais utilizáveis era um grande negócio. O tráfego
passou de inexistente para engarrafado, à medida que a rua canalizava
carroças com suprimentos, artesãos e trabalhadores. Meus pais
biológicos costumavam trabalhar aqui.

Eu deveria ter virado para o sul, para a direita. Em vez disso, virei
para o norte. Os edifícios no cruzamento me bloquearam da visão da
Cavaleiro. Cutuquei Tulipa fazendo-a se mover em trote. Ela acelerou
o passo, esquivando-se agilmente da multidão.

Um prédio desabado apareceu à esquerda, branco puro, seus


quatro andares restantes erguendo-se dos escombros. Chegamos lá,
desmontei e toquei no pescoço de Tulipa. — Dê a volta no quarteirão.

Ela disparou pela rua.

Mergulhei em um buraco em um antigo prédio de escritórios. Do


lado de fora, parecia que o interior havia desabado completamente ali,
mas havia uma abertura estreita à direita, se você soubesse para onde
olhar. Eu me espremi pelo buraco, na escuridão, corri uma dúzia de
metros até a parede interna e pulei. Minhas mãos agarraram os apoios
familiares em pura memória muscular, e eu subi, todo o caminho até
o terceiro andar exposto. Caminhei até a parede meio destruída e olhei
para fora da lacuna, me mantendo escondida.
96

A Cavaleira saiu correndo do trânsito e parou embaixo. Se ela


estivesse me rastreando por magia, não teria nenhum problema em
me encontrar. Se estivesse rastreasse pelo cheiro, provavelmente
seguiria Tulipa. O cheiro de um cavalo era mais forte e mais fácil de
rastrear do que o da pessoa que o montava.

Ela olhou para a esquerda. Para a direita. Parecia confusa.

Perdeu alguma coisa?

A Cavaleira girou em um círculo lento, examinando as ruas, e foi


para a direita, descendo a Avenida Trinity. Nem magia nem cheiro,
simplesmente a antiga e boa visão. Ela me perdeu, mas deduziria
corretamente que eu iria para a cena do crime, então, em vez de perder
tempo me procurando, provavelmente decidiria ir até a cena do crime
e me esperar por lá.

Na teoria, a Avenida Trinity seria uma boa maneira de chegar à


igreja do pastor Haywood. Mas a Avenida Trinity passava pela Ponte
Wolf, que atravessava os escombros e cruzava a Inter-85. Nessa hora
do dia, as equipes das empresas de recuperação estariam
transportando as primeiras cargas de material recuperado do Centro.
Ao mesmo tempo, os carroceiros estariam transferindo a carga desta
manhã da Linha Ley do Norte para o Oeste. A Ponte Wolf estaria
intrafegável, com cascos de cavalos das carroças encaixados nos para-
97

choques dos carros. Levaria pelo menos meia hora, quarenta e cinco
minutos se fosse um dia agitado de embarque. Ela provavelmente era
uma Cavaleira competente. Nick não tolerava incompetência. Mas
reconheci quando ela falou um sotaque de quem vinha da região de
Upper Midwest , e eu passei muito tempo fugindo de monstros nessas
ruas, desde que praticamente comecei a andar. Atlanta era minha
cidade.

Desci e assobiei. Poucos segundos depois, Tulipa veio trotando


da esquina. Montei e rumei para o sul na Turner.

Vinte e cinco minutos depois, desmontei em frente à capela


Garden Lane. Se havia jardins aqui, nenhum vestígio deles
permaneceu. A rua fazia fronteira com o Warren, uma colcha de
retalhos de casas em ruínas e apartamentos degradados que haviam
sido atingidos por magia tantas vezes que todos que puderam se
mudar, o fizeram. A vizinhança parecia desolada, prédios
abandonados olhando para o mundo através dos buracos negros de
suas janelas, líquens de uma cinza feio grudados nas paredes que
pareciam sugar a cor da tinta e da argamassa, e árvores pretas. As

O Upper Midwest é uma região na porção norte do Midwestern dos Estados Unidos do
U.S. Census Bureau. É em grande parte uma sub-região do Centro-Oeste. Embora os limites exatos não sejam uniformemente acordados, a
região é definida como referindo-se aos estados de Iowa, Michigan, Minnesota e Wisconsin.
98

árvores eram as piores, suas cascas eram negras como carvão e


ligeiramente difusas. Até as folhas tinham ficado escuras e finas,
afiadas o suficiente para cortar.

Contra esse pano de fundo, a capela quase brilhava. Branca e


recém-pintada, com uma porta vermelha brilhante, empoleirava-se na
esquina como um farol de segurança. Um jovem policial estava à
porta, um gládio em um quadril e um revólver antigo no outro. Traços
de magia às vezes permaneciam até mesmo durante as ondas de
tecnologia, e os revólveres tendiam a falhar menos do que as armas
semiautomáticas.

Pessoalmente, eu preferia lâminas. Elas sempre funcionavam.

O policial inclinou a cabeça, dando-me uma expressão neutra.


Em seus vinte e poucos anos, bronzeado e em forma, com cabelo
preto-azulado, ele não era um novato, mas também não era um
veterano próximo a se aposentar. O policial estava no auge de sua
vida, e a maneira como se posicionava me disse que gostava de cada
minuto dela.

Ele observou a capa esfarrapada que escondia a maior parte de


mim, o alforje gasto em Tulipa e o arco que se projetava da bainha
presa à sela e me classificou como ‘siga em frente’. Para ele claramente
eu não tinha o que fazer nesta rua.
99

Empurrei meu capuz para trás. Ele piscou. A expressão neutra


sumiu do rosto dele. De repente, ficou alerta e profissional e passou a
me dar sua expressão de ‘fodão prestativo’.

O meu rosto ataca novamente.

Como muitas adolescentes, passei por uma fase em que me


achava a coisa mais feia da Terra, mas aos dezoito anos percebi que
era bonita. Costumava ter um daqueles rostos de duende que podiam
ser lindos ou tímidos. Meu rosto antigo parecia um vestido preto
simples. Eu poderia deixá-lo mais sofisticado, enfeitando-o ou mais
simples.

Isso não era mais uma opção. Meu novo rosto causava impacto,
não importa o que eu fizesse com ele. Sujo, limpo, com maquiagem,
sem maquiagem, não importava. O olho que eu havia absorvido me
remodelou. Ninguém nem se lembrava do meu rosto antigo, exceto
eu.

— Posso ajudá-la, senhora? —O policial perguntou.

Peguei meu distintivo da Ordem recém-cunhado e apresentei a


ele. — Estou aqui para tirar esse assassinato de suas mãos.

— Nunca vi você antes. Eu teria me lembrado se nos


conhecêssemos. —A expressão dele mudou um pouco. Ele havia
100

pensado em usar comigo seu ‘sorriso suave’, mas decidiu que atuar o
papel de ‘colegas de profissão’ poderia funcionar melhor.

— Acabei de me transferir.

Ele me lançou um olhar compreensivo. — Os novatos sempre


ficam com os serviços de merda.

— Não é que tens razão? —Eu sorri para ele.

Ele ergueu as sobrancelhas ligeiramente. Esperei, mas nada saiu


de sua boca.

— Eu gostaria de ver a cena do crime, policial ... —deixei em


aberto.

— Policial Fleming. Por aqui.

Ele abriu a porta vermelha e entrou. Eu o segui.

O interior da igreja estava limpo e claro. A luz do sol inundava


pelas janelas e pela claraboia redonda, bem acima de onde o púlpito
deveria estar, dessa forma, o pastor de pé ali, ficaria iluminado pela
luz vindo de cima durante o sermão. Mas o púlpito não estava em
lugar nenhum.

Fleming caminhou pelo corredor entre os bancos. — Você não é


daqui.
101

— Não, —eu menti.

— Então, de onde você é?

— De uma cidadezinha do interior no Oeste.

Ele assentiu. — Certo, cidadezinha do interior. A perícia já fez o


trabalho dela, mas tente não alterar nada. Até que seu chefe assine
toda a papelada, o caso ainda é nosso, o que significa que a minha
cabeça será cortada se você estragar tudo.

Ele pensava que eu tinha acabado de sair de uma fazenda. Oh, isso
seria interessante.

O policial Fleming me lançou seu olhar sério para comunicar que


estava prestes a passar uma ‘Importante Informação’. — Vou te dar
algumas informações básicas. Esta região foi espancada por magia.
Você viu as árvores negras?

— Sim.

— Ficará pior à medida que você for mais fundo na região. Todos
que podiam se mudar, o fizeram. A igreja costumava prosperar, mas
depois dos dois primeiros Flares, o restante dos pouquíssimos
moradores a fecharam, porque todos haviam ido embora. Ela ficou
abandonada por um tempo, então o pastor Haywood perguntou se
102

poderia reabri-la para ministrar a aqueles que ficaram no Warren.


Concordaram. O pastor morava aqui também, em um pequeno
apartamento nos fundos. A porta da igreja nunca ficava trancada, e se
alguém tocasse a campainha na porta dos fundos, ele receberia, dia ou
noite.

— Você o conhecia.

— Sim. A maioria das pessoas por aqui o conhecia. Costumamos


ver todo tipo de merda em Atlanta. A maior parte dessas merdas são
justificáveis, de alguma forma. Pessoas necessitam de algo, comida,
medicamentos, madeira para aquecer o inverno, não tem dinheiro
então roubam. Outros perdem perde a cabeça, são tomados pela raiva
e acabam ferindo outras pessoas. É ruim, mas faz sentido. Isso, o que
aconteceu aqui não faz sentido. É demoníaco.

Ele parou. A plataforma elevada onde o púlpito deveria estar


estava vazia, cheia de vidros quebrados. O sangue seco manchava as
tábuas do assoalho de pinho, formando uma crosta escura. A luz que
fluía pela claraboia quebrada pintava um círculo brilhante no sangue,
e o vidro estilhaçado cintilava, como diamantes deitados em veludo
cor de vinho.

Olhei ao redor. Uma pilha de lascas de madeira estava jogada


contra a parede esquerda—o púlpito.
103

Algo desceu pela claraboia e o jogou para o lado. O púlpito voou


para a parede e se estilhaçou em lascas.

— Primeira vez em Atlanta? —Fleming perguntou.

— Hum-rum.

— É uma cidade difícil.

Você deveria conhecer Los Angeles. Ficará de cabelo branco da noite para
o dia. — Então, eu percebi.

— Pode ser difícil se orientar.

— Parece que sim. —Por favor, Entediado Veterano, esclareça esta


humilde novata.

— Você já encontrou um lugar para ficar? —Disse Fleming. —


Posso recomendar algumas regiões mais seguras.

A última coisa que eu precisava era ele tentando descobrir onde


eu estava hospedada. Eu precisava dar um fim nessa conversa.

— A Ordem gosta de ficar de olho em nós. Estarei no quartel por


alguns dias.

— Avise-me quando deixarem você sair para uma pausa e eu


mostrarei a cidade.
104

Pausa? — Eu posso aceitar essa oferta generosa.

Ele sorriu para mim. — Feliz por ajudar.

Pisquei, trazendo minha habilidade sensitiva em foco. Traços de


cores translúcidos apareceram. Prata azulada brilhante, a cor da
magia humana infundida com divindade. Pastor Haywood. Trilhas e
trilhas de prata estavam por toda parte, mas a plataforma sangrenta
brilhava com ela. A cascata retorcida de magia emplumada estendeu-
se da claraboia por todo o caminho, como se alguém tivesse pegado
uma teia de aranha radiante, tecida de pura luz, amassado e jogado
da claraboia para o chão.

Um rastro de verde brilhante, um tom familiar, conduzia à


plataforma. Metamorfos, muito recentes para estarem envolvidos no
assassinato. Eu me agachei, olhando mais de perto. Uma trilha
particular de verde grama se destacou.

Ugh. Como sou sortuda.

— Algum metamorfo esteve aqui recentemente?

— Não.

Certo. Os metamorfos não desceram pela claraboia. A trilha


começava na porta. Alguém os deixou entrar, o que significava que os
105

policiais lhes deviam um favor ou algum dinheiro havia trocado de


mãos. Provavelmente ambos.

Aproximei-me mais, no espaço entre a primeira fila de bancos e a


plataforma. Uma segunda trilha de metamorfos. Esses desceram pela
claraboia e foram embora apenas algumas horas atrás. Estranho. Duas
equipes de metamorfos separadas? Por quê?

Uma única trilha verde no segundo conjunto de trilhas dos


metamorfos refletiu a luz, brilhando com magia. Era o mais lindo
verde-menta, translúcido e puro, que eu já tinha visto. As outras
trilhas de metamorfos, verde grama ou verde caçador, se degradaram
ligeiramente, desbotando um pouco no ambiente. Mas aquele verde-
menta permaneceu, ainda brilhante e vibrante. Se pudesse comparar
as trilhas, as outras eram aquarela, enquanto esta era um acrílico
metálico. Chamava a atenção. Eu nunca tinha visto nada parecido.

Por mais bonito e estranho que fosse, a trilha era muito recente
para ser relacionada ao assassinato.

Pisei na plataforma e me ajoelhei, tentando analisar a explosão de


prata. Tanta energia gasta tão rapidamente. A morte não foi
instantânea. O pastor Haywood ficou cara a cara com seu agressor e
reagiu. A luta não durou muito, mas foi selvagem e brutal.
106

A magia era muito densa. Eu precisava de um ponto de vista


melhor.

Deitei-me de costas e olhei para o funil da teia de prata que se


estendia até o teto.

— Você está bem? —Fleming perguntou.

— Hum-rum.

Parte da prata era tingida com ouro. Ela espiralava para baixo,
emplumada e fina, misturando-se com o azul prateado do pastor
Haywood. Amarelo geralmente significa magia animal, mas nem
sempre. Quando Nick se infiltrou entre os oficiais do meu avô, eles
forçaram o corpo de Nick a absorver um poder de outra fonte, e é por
isso que a assinatura da trilha dele tinha listras amarelas. Ainda assim,
ouro tão claro... Uma besta divina?

— Lembra que eu disse para não mexer na cena? Não sei como
lhe dizer, mas você está contaminando as coisas por todo o lugar.

— Desde que o pastor Haywood morreu, dezessete pessoas


estiveram nesta cena. Elas caminharam ao redor da igreja, e algumas
delas provaram o sangue ali. Se você está preocupado com a
contaminação, é tarde demais para isso.
107

Cruzei a plataforma para a direita, tomando cuidado para evitar


o sangue, e vi um leve brilho púrpura no canto. Olha só.

Eu me aproximei. Um sigilo foi queimado nas tábuas do piso de


madeira. Um boneco de palito com um círculo onde estaria a cabeça
e uma lua crescente em vez de pés. Seu braço direito se dobrava em
um ângulo de quarenta e cinco graus e se unia a outra linha paralela
na vertical, formando um H. O braço esquerdo, virado para baixo, era
mais comprido e fazia uma leve curva na extremidade final.

O sigilo brilhava com um lilás elétrico intenso. Ainda estava ativo.

Uma raiva familiar se agitou dentro de mim. Os sacerdotes de


Moloch não mataram o pastor, mas contaminaram seu santuário,
deixando um deles para vigiá-lo e contaminá-lo com o poder de
Moloch. Este era um lugar sagrado, um refúgio onde o pastor
Haywood ministrava, e Moloch e seus sacerdotes o profanaram.

Um sigilo (/ˈsɪdʒəl/; pl. sigilla ou sigils) é um tipo de símbolo usado na magia. O termo geralmente se refere a um tipo
de assinatura pictórica de um anjo ou outra entidade. No uso moderno, especialmente no contexto da magia do caos, refere-se a uma
representação simbólica do resultado desejado do praticante.

Boneco de palito

Sigilo de Moloch
108

Por que vigiar uma cena de crime? O que eles queriam com isso?
Tinha que puxar o sacerdote de Moloch para fora de seu buraco
escondido e descobrir. Dependendo de quem estava escondido no
sigilo, a coisa aqui podia ficar complicada.

A Cavaleira estaria aqui a qualquer minuto. Qualquer coisa que


ela testemunhasse seria relatada a Nick, e eu não estava pronta para
responder aos tipos de perguntas que isso levantaria. Poderia tentar
voltar esta noite, mas se a coisa escondida no sigilo matasse alguém
antes, nunca me perdoaria. Eu precisava quebrar o sigilo e tinha que
ser agora.

Livrar-me do policial 'Entediado Veterano’ seria um problema.

— Você pode me dar um pouco de privacidade, policial Fleming?

— Não.

Merda. — Então, preciso que você dê um passo para trás, por


favor.

Fleming deu dois passos deliberados para trás. Seu rosto me disse
que era o mais longe que ele estava disposto a ir. Fazer algo muito
chamativo na presença dele estava fora de questão. Bem.

— Eu volto já.
109

Passei por ele e saí da igreja. À esquerda, alguns tijolos estavam


soltos de um canteiro de flores. Isso serviria. Peguei um e voltei para
a igreja.

Fleming estava exatamente onde eu o havia deixado. Ele olhou


para o tijolo na minha mão. — Não quebre nenhuma janela,
Cidadezinha do Interior.

Fui até o sigilo, coloquei o tijolo no chão, alcancei minha capa e


encontrei o cabo da minha faca. Era uma faca simples, uma
reminiscência de uma Bowie com uma lâmina de aço de vinte e três
centímetros, espigão completo e um cabo de couro empilhado, para
que minha mão não escorregasse.

— Policial Fleming?

— Sim?

— Proteja-se.

Faca Bowie

Partes de uma faca. O espigão é a continuação da lamina que fica por dentro
do cabo.
110

Arranquei minha capa e arrastei meu pé pelo sigilo. Um


aglomerado de escuridão do tamanho de um homem saiu dele, como
um fantasma em um manto de fumaça. Suas mãos terminavam em
garras negras de sete centímetros de comprimento, as pontas
brilhando com um fogo incandescente. Um Ma’avir, um dos
sacerdotes de Moloch. Um não tão poderoso.

O fantasma se aproximou de mim. Eu me esquivei, deixando as


garras rasgar o ar por um fio da minha garganta, e apunhalei a faca no
peito do fantasma, martelando uma gota da minha magia através dele.

A faca afundou na carne. Eu puxei para fora. O fogo sangrou


através da fumaça.

O Ma'avir guinchou e cuspiu uma torrente de chamas. Eu me


esquivei e cortei novamente, cortando a capa protetora da criatura, da
esquerda para a direita e para cima. A fumaça se espalhou como uma
velha lona, revelando um vislumbre de um corpo carbonizado envolto
em chamas.

O fantasma se debateu, tentando me despedaçar com suas garras.


Rápido, mas não o suficiente. Eu girei para a esquerda, em torno dele,
trazendo meu braço em um arco de dentro para fora e enterrei minha
lâmina em suas costas.
111

A criatura gritou.

Agarrei a faca, alimentando-a com magia, e a arrastei para baixo,


cortando cartilagens e ossos, cortando os sigilos marcados em sua
carne, até que alcancei o sigilo principal na parte inferior de suas
costas. Minha lâmina o atingiu. O sigilo quebrou e desapareceu em
um flash lilás.

A fumaça desapareceu, como um pedaço de seda preta saindo de


vista. O fogo explodiu do sacerdote.

Por um instante, o Ma'avir foi envolvido pelas chamas, uma coisa


escura se debatendo em um inferno, como uma vela demoníaca
blasfemadora. Ele queimou e uivou.

Tirei o tijolo do chão.

O fogo vacilou, deixando para trás uma forma humanoide,


ressecada, carbonizada, careca, com o rosto coberto por uma máscara
de metal. Eu chutei a espinha da criatura. Ele caiu com um estalo seco.
Eu o virei de costas e esmaguei o tijolo em seu rosto. A máscara
retiniu.

Bati de novo, de novo e de novo, com selvageria controlada e


metódica. A máscara rachou. Outro golpe. O metal se partiu. Pedaços
da máscara se desfizeram, revelando um rosto de pesadelo. Não tinha
112

lábios, os dentes estavam à mostra em um sorriso grotesco. Seu nariz


era um buraco na carne dura de seu crânio. Ele deveria estar morto,
mas de alguma forma estava vivo, uma abominação envolta em magia
suja, olhando para mim com olhos arregalados, suas íris cheias de
fogo.

Um som áspero atravessou os dentes do sacerdote, meio gemido,


meio rosnado, tão fraco que tive que me esforçar para ouvi-lo. —
Glória ao Rei do Fogo ...

— Seu deus não está aqui, —eu disse a ele calmamente. — Ele
não se importa. Não vai te salvar.

— Ele virá por você. Você pertence a ele. O mundo


pertence a ele.

— O mundo pertence a mim e à minha espécie, Ma'avir.

Mergulhei a faca em seu peito e torci. O sacerdote teve uma


convulsão, a agonia retorcendo seus membros.

— Diga-me por que você está aqui, e sua morte será rápida.

O Ma'avir murmurou novamente, — Misericórdia ...

— Você serve ao deus que se alimenta de crianças queimadas


vivas em seu fogo. Não há misericórdia no mundo para vocês.
113

Torci a faca novamente. Seu grito atingiu meus tímpanos.

— Diga-me.

— O assassino do sacerdote, —ele sussurrou. — Moloch o quer.

— Por quê?

Olhos ferozes olharam além de mim para o pedaço do céu através


da claraboia destruída. A magia que deu ao Ma'avir sua não-vida
perversa estava se exaurindo. Ele estava acabado.

Palavras de uma oração antiga em uma língua morta há milhares


de anos sibilaram da boca da criatura. — Ó Grande Moloch, Deus
entre os reis, irei até ...

Não irá. Inclinei-me para perto do sacerdote, tão perto que podia
sentir o calor moribundo subindo dele e sussurrei em seu ouvido na
mesma língua de sua oração. — Não haverá rituais de morte para
você. Morra e se torne nada.

Eu me levantei, coloquei o tijolo no rosto da criatura e pisei nele.

Uma onda de explosão de fogo saiu do cadáver, rugindo como


um animal enfurecido. Todas as janelas da igreja explodiram. O
prédio estremeceu uma vez e depois tudo ficou quieto. A fumaça subia
dos bancos da frente, chamuscada pelo calor.
114

O corpo do sacerdote derreteu em nada. Restaram apenas minha


faca e o tijolo, manchados de fuligem e magia lilás. Esse era o
problema de matar Ma'avir. Quando um dos sacerdotes-assassinos de
Moloch morria, sua magia manchava a arma que os matava e, pior,
outros de sua espécie poderiam rastreá-la da mesma forma que cães
de caça seguiam um cheiro. A mancha duraria até a próxima onda de
tecnologia. Eu não queria que eles me rastreassem.

Ainda não.

Olhei para o lilás salpicado em minhas mãos e me concentrei. Um


fino vapor vermelho saiu de mim, invisível a olho nu, limpando minha
pele. Não funcionava em armas ou roupas, infelizmente. Eu já tinha
tentado antes.

Um pequeno ruído me fez virar para a direita. Algo se moveu


entre os bancos. Lentamente, cautelosamente, o policial Fleming se
levantou. Dois olhos arregalados me encararam de um rosto
manchado de fuligem.

A porta se abriu e a Cavaleira entrou na igreja.

— Você perdeu. —Tirei minha capa do chão, a vesti e saí da


plataforma.

Ela xingou.
115

Passei por Fleming. — Desculpe pelas janelas, ‘Cidade Grande’.

Ele ficou boquiaberto. Pisquei para ele e me dirigi para a porta.

a Avenida Gammon, a duas


quadras da igreja do pastor Haywood. À minha volta, árvores negras
aglomeravam-se na estrada, suas folhas afiadas anormalmente
imóveis apesar de uma leve brisa. Um pequeno prédio de dois andares
com janelas fechadas por tábuas velhas no canto à direita, seus tijolos
marrons sujos manchados de mofo cinza. Quando eu corria pelas
ruas, este prédio servia como ponto de encontro para as gangues de
crianças do Norte de Warren.

Os meninos de rua conheciam o pastor Haywood. Ele os


alimentava, os curava e provavelmente os escondia quando a ocasião
exigia.
116

Enfiei a mão no bolso, tirei uma onça de prata e a segurei. Prata


era o metal preferido para a maioria dos trabalhos relacionados à
magia. Era fácil de moldar, reagia aos feitiços melhor do que qualquer
outro metal, até mesmo ouro, e era venenosa para uma ampla
variedade de criaturas mágicas, tudo isso a tornava terrivelmente cara.
A prata podia ser comprada em várias formas: pós, varetas, barras e
arames. Eu estava segurando uma barra de uma onça, cinco
centímetros de comprimento, três centímetros de largura e tão fina
quanto dez pedaços de papel empilhados juntos. Na rua, valia cerca
de cinquenta dólares.

Joguei a barra no ar e a peguei em meu punho. — Prata.

Sem resposta.

Eles conheciam todos os policiais da área, então sabiam que eu


não era um. Eu era uma estranha e, portanto, ameaçadora, mas
também era alguém que estava ali oferecendo prata. Dinheiro de papel
pode ser rasgado ou queimado. Algumas das notas pré-Mudanças
mais antigas continham plástico e às vezes se desfaziam nas ondas
mágicas. Mas a prata sempre tinha valor e era fácil de esconder e
vender.

Uma onça (abreviada: oz, da antiga palavra italiana onza, agora escrita oncia) é uma unidade de medida de massa. Uma onça equivale
aproximadamente 30 gramas.
117

— Pastor Haywood. —Eu segurei a barra. — Sejam rápido.


Tenho coisas para fazer.

A janela fechada com tábuas do primeiro andar tremeu. A seção


inteira balançou e uma figura se contorceu e caiu na grama. Um
menino correu até mim. Dez, talvez doze anos, magro, imundo,
fedorento, o cabelo uma bagunça de emaranhados castanhos na
cabeça. O rabo de um rato pendurado em um cordão amarrado em
suas calças. Quando eu fui embora, os Rabos de Ratos eram uma
pequena gangue no lado leste de Warren. Eles devem ter se
expandido.

Olhos azuis claros olharam para mim em um rosto sujo. — O que


quer saber, senhora?

Olhei para a prata em minha mão. — Algo estranho aconteceu


com o pastor Haywood nas últimas semanas?

— Prata primeiro.

Eu zombei dele e fiquei ligeiramente entediada. Tulipa começou


a andar.

— Espere, espere! —O garoto pulou na frente da minha égua.

Tulipa mostrou os dentes.


118

— Não me aproximaria muito se eu fosse você, —eu disse a ele.


— Ela morde.

O garoto deu um passo para o lado. — Um cara foi vê-lo.


Conhecemos todo mundo que anda por aqui, mas esse cara nunca
tínhamos visto antes. Nós nos lembraríamos dele.

— Por quê? Me fale sobre ele. —Eu deixei cair a barra.

Ele a pegou no ar com uma rapidez felina e assobiou. Persianas


bateram, arbustos farfalharam e cinco garotos se aproximaram, todos
com menos de 12 anos, todos igualmente imundos. Eles mantiveram
distância em um semicírculo irregular.

Peguei outra barra de prata. — Contem-me sobre esse cara


estranho. Onde vocês estavam quando o viu?

O líder olhou para uma criança pequena, de cerca de sete ou oito


anos, com galhos e contas pendurados em seu cabelo escuro.

— Diga a ela.

— Eu o vi, —disse a garota.

— Onde estava quando o viu?

— Lá dentro.
119

— Por que você estava lá dentro?

— O pastor nos dava biscoitos, —disse a garota.

— Que tipo de biscoitos?

— Aveia. Se alguém se machucasse, ele curava e dava biscoitos.

Ah. Então era isso. — Você se machucou só para ganhar biscoitos?

Ela assentiu.

— Como?

— Eu corri e caí.

— O que aconteceu quando você foi ver o pastor?

— Ele curou a minha perna e me deu leite e um biscoito. Era


deeeesse tamanho. —Ela mostrou o tamanho do biscoito separando
os dedos indicadores das suas pequenas mãos.

— Você comeu o biscoito na igreja?

Ela assentiu.

— Então o que aconteceu?

— Eu estava comendo o biscoito, então chegou um pançudo.


120

Pançudo significa alguém bem de vida, boas roupas, joias caras,


bem alimentado. Uma pessoa endinheirada.

— Alguém mais viu o pançudo? —Eu perguntei.

As crianças balançaram a cabeça.

Isso foi o que eu pensei. Não era ‘nunca tínhamos visto antes’. Era
‘ela nunca tinha o visto antes’.

Eu precisava separar a garota deles. Tiraria mais informações dela


dessa forma.

— Você sabe onde fica o Mercado Central?

Ela assentiu.

Inclinei-me e ofereci minha mão à garota. — Mostre-me onde é e


você pode me contar sobre o pançudo no caminho. Vou te dar essa
prata no final.

O líder deu um passo à frente da garota. — Não. Nós não


conhecemos você.

Eu adicionei uma segunda onça a primeira.

Ele balançou sua cabeça.


121

A garotinha tentou passar por ele e ele a bloqueou. — Eu disse


não. Não é seguro.

Um menino de rua que cuidava das crianças menores. Raro.


Provavelmente ele era um novato nessa vida. Algumas pessoas
pensavam que as gangues de meninos de rua eram como os Garotos
Perdidos de Peter Pan . Não era nada disso. Na rua, tudo se resumia à
sobrevivência. Os garotos mais fortes atacavam os mais fracos. Este
menino não duraria muito.

Peguei meu distintivo da Ordem e mostrei a ele. — Eu não vou


machucá-la.

Ele olhou para o distintivo, pensando. — Certo.

Sim, um novato. Ainda confiava nos oficiais da lei.

Eu me abaixei. A menina agarrou meu braço. Eu a levantei na


sela na minha frente. Ela não pesava nada. Partimos para o norte, em
direção à antiga Inter-75.

— Como era o pançudo?

Os garotos Perdidos são personagens da peça de J. M. Barrie em 1904, Peter Pan, ou O Garoto que Não
Cresceria e posteriores adaptações e extensões da história.
122

— Forte.

— Alto ou baixo?

— Alto.

— Qual era a cor do cabelo dele?

— Castanho.

— A pele dele era escura ou clara?

— Clara.

A pequena gangue estava nos seguindo, tentando ser discreta


enquanto se esgueirava pelos arbustos, passando pelas casas em
ruínas.

— Como era o rosto dele?

Ela franziu o cenho. — Ele tinha um olhar falso. Como se ele


fosse bom na frente das outras pessoas, mas ruim quando está sozinho.

— Ele parecia o tipo de cara que bateria em você se você roubasse


dele?

Ela assentiu. Seus ombros se curvaram um pouco. Ela já havia


apanhado antes e aprendeu a desvencilhar.
123

— Você se lembra do que o pançudo disse ao pastor?

— Ele disse que tinha um artefato sagrado.

Era só o que faltava. — Que tipo de artefato sagrado?

Ela balançou a cabeça. — Não me lembro. Eu não estava ouvindo


bem. O pastor e ele conversaram, e então o pastor disse que pensaria
sobre isso, e o pançudo foi embora.

— Então o que aconteceu?

— No dia seguinte, um carro chegou e o pastor entrou nele. Ele


nunca entrou em carros. Ele voltou mais tarde.

— Ele parecia bem quando voltou?

Ela assentiu. — Na manhã seguinte, ele foi morto. —Sua voz


ficou muito baixa. — O pastor era legal.

Ele era, e agora se foi. Não haveria mais leites e biscoitos. Não
haveria mais cura quando se machucasse. Ela perdeu o único lugar
seguro que tinha. A garota era a menorzinha e a mais fraca da gangue.
Eu podia sentir suas costelas esfregando contra meu braço. Faminta.
Tão faminta que aprendeu a se machucar só para conseguir comida.

Eu queria tirá-la da rua. Precisava.


124

Se a levasse comigo, onde a colocaria? Eu tinha um trabalho a


fazer. Mais cedo ou mais tarde, me tornaria um alvo.

Qualquer pessoa próxima a mim seria um alvo em potencial. Se


eu a deixasse na parte falsa da casa, aquela que fiz questão de parecer
um lugar miserável, ela ficaria entediada e fugiria. A menina era uma
criança de rua, acostumada a se movimentar. Se eu a deixasse na área
secreta da casa, ela não seria capaz de manter as mãos longe das
minhas coisas. Havia coisas naquela sala que poderiam comê-la ou
virar sua pele do avesso.

Eu havia prometido à minha avó que pararia de tentar resgatar


todas as crianças sem-teto que encontrasse nas ruas. Era uma
promessa que eu não podia cumprir. Como princesa de Shinar, meu
trabalho era cuidar de todas as crianças de rua—não apenas a que
estava na minha frente—e decretar mudanças que garantissem que
mais nenhuma criança fosse jogada fora como lixo. Fiz isso, e a Nova
Shinar estava a caminho de ser um lugar onde nenhuma criança
passava fome, mas a Nova Shinar estava longe daqui, e a criança em
meus braços estava aqui agora.

Erra tentou salvar a todos e precisou se tornar um monstro pelo


bem de seu povo. Ela não queria que eu seguisse o mesmo caminho.
Disse que isso iria arrancar a minha alma, fio por fio. Minha posição
125

como princesa de Shinar me deu autoridade de trazer mudanças


radicais e coube a mim a responsabilidade dessas mudanças, já que
nem todo mundo entendia a situação dessas crianças de rua.

A garotinha na minha frente era muito pequena. Mesmo que ela


sobrevivesse pelos próximos dois anos, eu sabia exatamente o que
estava por vir: abusos, mais abusos, estupros, espancamentos, drogas,
morte. Poucas crianças chegavam à idade adulta, e aquelas que
conseguiam não viviam muito.

Mas se os sacerdotes de Moloch a vissem comigo e colocassem


suas garras nela, eles a cozinhariam viva só para me machucar. Eu
tinha que deixá-la ir. Depois que isso acabasse, a encontraria
novamente.

— Qual o seu nome?

— Marten .

Marten é a denominação comum dado aos mamíferos mustelídeos do gênero Martes. Estes animais são
carnívoros e semidigitígrados e têm uma pele muito apreciada. Sua gestação dura 2 meses, tendo em média 2 ou 3 filhotes. A marten

americana (Martes americana) , também conhecida como marta americana, é uma espécie de mamífero norte-americano,
membro da família Mustelidae. A espécie é por vezes referida simplesmente como a marta do pinheiro. O nome "marta do pinheiro" é
derivado do nome comum das espécies distintas da Eurásia, Martes martes. A marta americana difere do pescador (Pekania pennanti) por
ser menor em tamanho e mais clara.
126

Normalmente, os meninos de rua tinham apelidos como Ratos ou


Doninhas. — Quem te deu esse nome?

— Eu me dei esse nome.

— Por que Marten?

— Porque são inteligentes e fofos. E rápidos. Ninguém consegue


pegá-los.

— Os esquilos também são rápidos.

— Os esquilos são burros. As Martens-americanas comem


esquilos.

Justo. — Antigamente havia um prédio azul na esquina da


Avenida Harpy, Marten. Ainda existe esse prédio?

Ela assentiu.

Deixei cair a prata em sua mão suja. — Eles vão tomar de você
assim que eu for embora. Deixe-os que fiquem com a prata.

Ela suspirou. — Dougie não toma nosso dinheiro. Dougie é muito


legal. Ele não é mau. Ele é ...

— Fraco.
127

Marten concordou. Ela não era fraca. Nem um pouco. Dougie era
maior e mais velho, mas Marten duraria mais.

— Dê a ele a prata de qualquer maneira. —Ela não poderia


protegê-la, e isso apenas faria dela um alvo. — Vá para o prédio azul
amanhã. Passe pela segunda porta. Dentro, vire à esquerda, conte oito
passos. Há uma tábua solta no chão. Vou deixar algo lá para você.

Ela semicerrou os olhos para mim.

— Fique escondida pelos próximos dias. Se algo mais estranho


acontecer ou se alguém aparecer perguntando sobre isso, corra, vá
direto para a Ordem e pergunte por Aurelia. Eles vão mantê-la segura
até eu chegar lá. Diga às outras crianças também. Qualquer pessoa
que aparecer com perguntas sobre o pastor Haywood, fujam e se
escondam.

Eu a soltei do cavalo. Ela correu, as pernas magras voando, a


prata agarrada em seu pequeno punho. A pequena gangue fechou-se
sobre ela. Dougie passou o braço em volta dos ombros de Marten, me
lançou um olhar cauteloso enquanto fugiam dobrando a esquina.

Marten é o que eu era. Exceto que eu tinha treze anos quando


Kate me tirou das ruas.
128

De repente, tive vontade de voltar para casa. O sentimento me


arranhou como garras, rasgando minha determinação, tentando
alcançar o lugar vulnerável e afetuoso que eu estava tentando blindar.
Eu podia imaginar minha casa na minha mente: a cozinha iluminada
pelo sol, Curran deslizando pela casa, silencioso como um fantasma,
Conlan pulando a cerca depois de correndo pela floresta ao lado, o
grande e fedorento poodle o seguindo, e Kate parada na cozinha,
cozinhando algo, sua espada ao alcance. Eu queria ir para casa e abraçar
os três. Estive fora por oito anos. Falar ao telefone não era suficiente.
Encontrar com Conlan na prisão mágica de Roland não foi nada
comparado a receber um abraço pessoalmente. Eu estava com tanta
saudade de casa que se eu fosse um lobo, teria uivado. Precisava ver
minha família e ter certeza de que eles estavam bem.

Mas se eu fizesse isso, morreriam.

Exalei lentamente, reafirmando o controle.

Esta cidade era ruim para mim. Estava abrindo feridas que há
muito tempo haviam cicatrizado.

Eu era uma princesa de Shinar. Mais do que isso, eu era a criança


que Kate criou. As pessoas da nossa família não perdiam tempo
sentindo pena de nós mesmas. No lugar disso matávamos o monstro
que bloqueava a porta da frente, então podíamos ir para casa.
129

Apressei Tulipa a continuar, e ela começou a descer a rua, com as


patas leves. Embora muitas denominações, incluindo metodistas ,
rejeitassem relíquias sagradas, a existência de artefatos e relíquias
mágicas era um fato. Alguns itens religiosos ganharam atributos
mágicos após a Mudança. Encontrar e vender esses artefatos se tornou
um negócio pequeno, mas lucrativo, e até formou uma profissão
especializada: caçadores de relíquias.

Esses caçadores eram conhecidos como pessoas rudes. Não


tinham nada a perder, se arrastavam para templos abandonados,
abriam tumbas amaldiçoadas e cavavam sepulturas em solo sagrado,
em uma época em que os mitos provavam ser reais e os monstros de
contos de fada se transformavam em carne e osso. Eles fariam quase
qualquer coisa por dinheiro.

De acordo com o arquivo de Nick, o pastor Haywood tinha muito


poucos bens, então era improvável que os caçadores de relíquias
tivessem tentado lhe vender um artefato mágico. Provavelmente, eles
queriam saber se o objeto que encontraram era real. Como servo de
seu deus, o pastor Haywood teria sido capaz de reconhecer uma
relíquia de sua divindade e avaliar seu poder.

O metodismo foi um movimento de avivamento espiritual cristão ocorrido na Inglaterra do século XVIII que deu origem a Igreja
Metodista em 1739 e enfatizou a relação íntima do indivíduo com Deus, iniciando-se com uma conversão pessoal e seguindo uma vida de
ética e moral cristã.
130

Eu precisava procurar por alguém que tinha ou pensava ter um


item sagrado cristão. O primeiro passo seria entrar em contato com a
cadeia de comando do pastor Haywood e ver se eles o indicaram a
alguém.

Eu não tinha muita esperança. O pastor Haywood era conhecido


o suficiente para que alguém pudesse ter o encontrado sem precisar
que o indicassem. Mas ainda assim valia a pena tentar.

Infelizmente, tudo isso tinha que esperar. Precisava colocar


Proteções na minha nova casa, e eu tinha que fazer isso agora.

Quando mencionei os metamorfos para Fleming, ele não me


contradisse e não fez perguntas. Um policial que não tivesse ideia de
que os metamorfos haviam pisoteado a cena do crime que ele estava
guardando iria querer saber os detalhes. ‘Por que eu estava afirmando
que metamorfos estiveram lá?’ ‘Quantos metamorfos?’ ‘Quando eles
vieram?’ Fleming simplesmente ignorou. Provavelmente devia um
favor ao Bando ou recebeu dinheiro deles. De qualquer maneira,
Fleming relataria a minha presença ao Bando na primeira chance que
tivesse. Uma equipe seria enviada para o local e eles me rastreariam.

Havia maneiras de despistar o olfato de um metamorfo. Acônito


funcionava bem. A substância tinha o mesmo efeito em um
metamorfo que teria em um humano se ele enfiasse a cabeça dentro
131

de um balde de pólen. Se um único metamorfo estivesse seguindo meu


cheiro, usar acônito poderia ser uma opção. Mas eu não seria
rastreada por um único metamorfo. Eu seria rastreada por uma
equipe, então despistar minha trilha com acônito era inútil. O
rastreador líder poderia ser afetado, mas o restante da equipe iria
apenas contornar o acônito, se espalhar e pegar meu cheiro
novamente.

Um confronto com o pessoal do Bando era iminente, mas queria


tê-lo em minha casa, segura atrás de minhas Proteções.

Eu só estava em Atlanta há menos de um dia. Era muito cedo


para começar a matar pessoas.

na cozinha falsa, colocando o primeiro lote de biscoitos no


forno, quando algo roçou na borda da minha Proteção externa. Eram
quase oito da noite. Demoram muito.

Passei pelo Mercado Central no caminho de volta. Os


metamorfos devem ter se esforçado muito para seguir minha trilha
132

pelo Mercado ao ar livre. Deve ser difícil rastrear cheiros depois que
cavalos fazem xixi nele.

Pendurei o pano de prato no ombro e caminhei até a porta da


frente, deixada aberta para liberar o calor do fogão. O pôr-do-sol
queimava no céu, um laranja intenso e sangrento. Eu me concentrei,
focando em minha visão sensitiva. Três, dois …

Acionada. A magia sensitiva me atingiu. Um flash verde brilhante


pulsou no ar vazio e desapareceu. À esquerda, uma forma escura de
quatro patas saltou de trás de alguns escombros e disparou pela rua,
pouco mais que um borrão na luz fraca. O metamorfo que encontrou
minha casa estava agora correndo para relatar.

Voltei para a cozinha, sentei-me à minha mesa estrategicamente


triste e esperei. Eu estava exausta. O cansaço envolvia meus ombros
como um cobertor pesado. Muita magia foi gasta muito rapidamente
esta tarde preparando o perímetro das Proteções de defesa.

Aprendi a arte das Proteções com meu avô. Roland adorava


ensinar e eu estava com fome de aprender. Mais tarde, minha avó e
seus servos refinaram minha educação, mas a base de minha perícia
mágica foi construída por Roland. Se alguém precisa aprender magia,
estudar com um mago megalomaníaco brilhante, que pensa que está
133

sempre certo e mal pode esperar para deslumbrar qualquer um com


milênios e milênios de conhecimento, era a escolha certa.

Nas poucas horas desde que voltei do Mercado Central, construi


três barreiras concêntricas de Proteções. A barreira externa,
indetectável pela maioria das pessoas e criaturas que a cruzassem, me
avisaria se alguém chegasse, me permitiria testar a magia do intruso e
dispararia uma explosão de cor invisível para qualquer um que não
fosse sensitivo como eu.

A Proteção do meio circulava a casa, protegendo a entrada da


frente. Escolhi uma Proteção rúnica, uma barreira defensiva simples
que era alimentada por runas do Futhark Antigo , esculpidas em
estacas de ossos cravadas no solo. Estável, poderosa e comum o
suficiente para não levantar nenhum tipo de desconfiança. Era
também a primeira Proteção que a Academia da Ordem ensinava aos
seus Cavaleiros em treinamento, então combinava bem com o meu
disfarce.

A terceira Proteção isolava o corredor que levava ao quarto da


frente e à porta secreta, protegendo toda a área secreta interna. Eu

O Futhark antigo é a versão do alfabeto rúnico usada na Escandinávia e Alemanha desde o século II até ao século IX.
Foi sucessivamente substituído pelo Futhark recente. É constituído por 24 caracteres conhecidos como runas.
134

tinha levantado o Escudo de Enki em quatro horas, em vez das doze


que normalmente exigia e estava com uma dor de cabeça latejante
como consequência do esforço. Mesmo assim, o vovô ficaria
orgulhoso.

Sentia falta dele. Ele era O Monstro em nossa família de


monstros, mas ainda era meu avô, não por nascimento, mas por
escolha. Quando meu avô queria ser amado por alguém, ele era uma
força imparável e havia decidido que queria que eu gostasse dele.
Roland não estava entediado em sua prisão—ele era brilhante demais
para isso—mas planejava sair, e Conlan e eu éramos seu elo com o
mundo exterior. Já haviam se passado mais de seis semanas desde
minha última visita. Eu estava atrasada.

A magia me beliscou. Espiei para fora da cozinha a tempo de ver


pela porta aberta a rua iluminada com verde. Ascanio saiu das
sombras e caminhou até minha casa. Bem que achei aquele rastro de
magia verde, que notei na cena do crime, parecer familiar.

Alguém do Bando estava interessado no assassinato do pastor


Haywood e enviaram Ascanio para investigar. Por quê? Essa ordem

Enqui (Enki) era uma divindade da mitologia suméria, conhecido mais tarde como Ea ou Easarru (Ea-šarru) na acadiana
e babilônica. Era o deus da água doce primordial, sabedoria e criação e foi cultuado entre 3 500 até 1 750 a.C.
135

tinha vindo do topo da cadeia de comando ou era um assunto do Clã


Bouda? Alguém estava dando as ordens ou ele estava agindo por conta
própria? Todas eram boas perguntas.

Ascanio nunca foi bom em seguir ordens. Não seria estranho para
ele se estiver investigando por conta própria, mas ele também nunca
agia sem almejar algum tipo de benefício.

Ele bateu no batente da minha porta. Saí da cozinha e fui até a


porta da frente.

— O super-herói metamorfo. Nos encontramos novamente, e tão


cedo.

Ascanio ficou paralisado.

Da última vez que nos encontramos na ponte, eu estava montada


a cavalo, no escuro, a uma dúzia de metros de distância com o capuz
cobrindo minha cabeça. Agora, menos de um metro nos separava. Ele
podia ver meu rosto e isso queimou um fusível em seu cérebro. Por
um momento, Ascanio esqueceu-se de ser gracioso e simplesmente me
olhou com uma intensidade enervante e concentrada.

Meu cronômetro na cozinha disparou.

Ascanio piscou. — Você está fazendo biscoitos?


136

— Sim, estou. Com licença.

Fui para a cozinha. Atrás de mim, a magia dobrou pela casa,


como um gongo. Ascanio tentou me seguir e bateu direto na minha
segunda Proteção.

Tirei a fornada de biscoitos do forno, deslizei a segunda bandeja,


reinicie meu cronômetro mecânico e voltei para a porta.

Ascanio se apoiou na porta, braços cruzados e um leve sorriso nos


lábios em uma pose que ele deveria achar ser sua melhor pose sexy e
indiferente. Eu não tinha certeza se deveria jogar minha calcinha aos
seus pés ou apenas cair para trás com minhas pernas no ar. Ele deve
ter percebido que parecia um idiota e se corrigiu rapidamente, como
um motorista que derrapou no acostamento e jogou o volante
tentando voltar para a rodovia.

— Bela Proteção, —disse ele.

— Afasta gente intrometida.

Uma luz rubi rolou sobre as íris dele. — Posso pegar um biscoito?

— Não.

Ele deu um suspiro falso. — Tenho a sensação de que esta


conversa começou com o pé esquerdo.
137

— Vejam só, não é apenas um super-herói que temos aqui, mas


também um mestre detetive, —mantive minha voz baixa e amigável.
Na minha mente, o agarrei e o sacudi até que todas as coisas que eu
queria saber sobre o assassinato do pastor Haywood caíssem de sua
cabeça chocantemente bonita.

Ele piscou. — Não sou apenas um rosto bonito.

— Não me lembro de dizer que você era bonito.

O sorriso permaneceu nos lábios dele, mas sua postura ficou mais
alerta. — Deixe-me dizer o que eu descobri sobre você.

Sorri de volta para ele. — Mal posso esperar. Me surpreenda.

Seu olhar se fixou em meus lábios. Ele piscou novamente.

Perdeu sua linha de pensamento por um segundo aí, amigo?

— Você fingiu ser uma simples civil humana na ponte. Visitou a


Ordem e tem um distintivo deles, que diz que você está designada para
Atlanta, exceto que não está, porque o Núcleo de Atlanta nunca tem
mais de vinte Cavaleiros e com você eles teriam vinte e um.

Justo.

— Você usou seu novo distintivo para obter acesso à cena do


crime, mas não o usará para ficar nas acomodações no Núcleo da
138

Ordem. Em vez disso, está morando em um casebre na periferia da


área mais perigosa da cidade, flertando com o desastre e assando
biscoitos com lascas de chocolate caras.

Aí vem a brilhante dedução.

Ascanio me atingiu com um olhar direto. — Então eu me


pergunto: por que a Ordem está tão envolvida no assassinato do Pastor
Haywood que chamaria um Cavaleiro-Cruzado para resolver isso?

Não foi uma dedução ruim. Quando a Ordem tinha


particularmente uma grande e desagradável bagunça em suas mãos,
eles jogavam um Cruzado nela, que limparia a bagunça e
desapareceria ou morreria tentando. Os Cruzados trabalhavam
disfarçados, usavam métodos pouco ortodoxos e desfrutavam de
quase total liberdade para agir como os convinha. Se eles errassem, a
Ordem teria uma desculpa plausível.

Os Cruzados eram perigosos como o inferno e muitas vezes


loucos. Eles não faziam o que faziam para receber elogios. Faziam
porque acreditavam em sua causa. Antes de Nick Feldman se tornar
o Cavaleiro-Protetor, ele era um Cruzado, um dos melhores da
Ordem.

— Não vai me responder?


139

Eu sorri para ele novamente. — Você esperava que eu


respondesse?

Ascanio se afastou da porta e olhou para a minha humilde


morada, atrás de mim. — Este lugar é espelunca.

— Obrigada.

— Seja lá quem alugou isso aqui para você não deveria ter
autorização para possuir imóveis. Nick nunca deveria ter deixado
você ficar aqui.

Citando o primeiro nome do Cavaleiro-Protetor como se fossem melhores


amigos? — Eu gosto daqui. Calmo, pitoresco, mas agora que você me
visitou, terei que colocar uma placa de ‘Proibido Intrometidos’.

— Não estou aqui para te vender nada. Mas posso lhe oferecer
acomodações melhores. Você é nova na cidade, e esta não é uma boa
vizinhança.

— As pessoas não param de me dizer isso.

— Porque é verdade.

Meu cronômetro disparou novamente. — Segure esse


pensamento.
140

Voltei para a cozinha, tirei minha segunda fornada e desliguei o


forno. Era bom que o gás ainda queimava mesmo durante as ondas
mágicas mais fortes.

— Eu posso providenciar uma casa melhor, —Ascanio gritou da


porta. — De graça.

Isso foi muito rude. Ascanio não era rude. Ele estava tentando me
testar. Voltei para a frente e levantei minha cabeça, inalando
profundamente, da maneira que os metamorfos fazem quando tentam
sentir o cheiro no ar. Os olhos dele se arregalaram.

— Você está sentindo esse cheiro? —Eu perguntei a ele. — Que


cheiro é esse? Não consigo identificar ...

Ele franziu a testa.

Eu arregalei meus olhos. — Suborno! É isso aí.

Ele recuou em um falso choque teatral. — Eu venho aqui, ofereço


a você um lugar mais seguro pela bondade do meu coração, e você me
acusa de suborno.

— Agora é a minha vez de perguntar: Por que o Bando está tão


envolvido no assassinato do pastor Haywood que eles enviariam o beta
do Clã Bouda para investigá-lo e, esse mesmo beta, subornou o
141

Departamento de Polícia de Atlanta para obter acesso à cena do crime e


depois perseguiu, tentou intimidar e coagir uma Cavaleira da Ordem?

— Não me lembro de ter intimidado você. Se eu quisesse


intimidá-la eu romperia esta barreira de Proteção. —Ele sorriu,
mostrando-me seus dentes brancos e afiados. — E pegaria todos os
seus biscoitos.

Ele prometeu quebrar a barreira com total confiança. Isso não era
arrogância, isso era a experiência falando.

A Proteção rúnica deteria um metamorfo mediano, mas Ascânio


Ferara nunca fora mediano. Todos os metamorfos tinham duas
formas, um animal e a outra humana. Aqueles com talento tinham
uma terceira, a forma de Guerreiro, uma mistura de humano e animal,
devastador em combate. Curran considerava a forma de Guerreiro de
Ascanio uma das melhores, isso era um grande elogio vindo de um
homem que já foi Senhor das Feras.

Parecia que eu não era a única que tinha ficado mais forte. Eu
teria que reajustar minhas expectativas.

Fui até a cozinha, peguei um biscoito, sussurrei em linguagem


esquecida um pouco de magia nele, voltei para a porta e desativei a
Proteção.
142

Ascanio piscou.

Estendi o biscoito para ele. — Você acha que é a Proteção que


está me mantendo segura. Quer biscoito? Venha pegar.

Ele me estudou por um momento, seu rosto calculista. Ascanio


era muito rápido e tinha noventa e nove vírgula nove por cento de
certeza de que era mais rápido do que eu.

O biscoito estava na minha palma, esperando. Perfeitamente


inofensivo.

As narinas de Ascanio vibraram ligeiramente. Ele estava


provando o ar procurando cheiro de veneno. Não que isso fosse
machucá-lo. O Lyc-V, o vírus metamorfo, comeria o veneno no café
da manhã e pediria mais um pouco.

Suspirei. — Você quer o biscoito ou não?

Ele se moveu tão rápido que sua mão era um borrão. Seus dedos
tocaram o biscoito e o atravessaram, roçando minha palma, tão leve,
como o bater das asas de uma mariposa. Quando eu era criança de
rua, achava que tinha um toque leve. Achava que era rápida.
Comparada com Ascanio, eu era uma amadora absoluta. Naquele
tempo se Ascanio quisesse tomar algo da minha mão eu nem notaria
ele pegando.
143

Ascanio olhou para o biscoito perfeitamente sólido em minha


mão.

— Qual é o problema? —Eu perguntei. — Você não quer?

Senti asas de mariposa na palma da minha mão. Ele tentou


novamente.

— Belo truque, —disse Ascanio.

— Você disse que podia pegar todos os meus biscoitos e não


conseguiu pegar nem mesmo um. Estou desapontada. —Eu levantei
o biscoito até a boca e dei uma mordida. — Humm. Delicioso. Não
sabe o que está perdendo.

Ele agarrou o biscoito, tentando tirá-lo da minha boca. Seus dedos


tocaram meus lábios.

— Ei! Espaço pessoal.

Ascanio abriu a boca.

Uma metamorfa cruzou o pátio e parou ao lado de Ascanio. —


Eu o vi!

O vermelho explodiu nos olhos de Ascanio. — Você tem certeza?


144

— Sim! —Ela acenou com a mão na frente do próprio rosto. —


Eu vi o rosto dele.

— Vamos terminar isso mais tarde. —Ascanio se voltou para ela.


— Mostre-me.

Eles correram para a escuridão.

Eu saí na porta e gritei. — Espere! Você esqueceu seu biscoito.

Um uivo distante na Unicorn Lane foi minha única resposta.


Tudo bem. Eu sabia que ele tinha me ouvido.

Entrei, ativei a Proteção e fechei a porta atrás de mim. Então, o


Bando, ou alguém dele, estava definitivamente interessado neste
assassinato. Infelizmente, eu ainda não tinha ideia do porquê.

Vejamos, coisas que aprendi com esse encontro: Ascanio era


incrivelmente rápido e não tinha vergonha de usar dinheiro para
conseguir o que queria, e o que ele queria era o assassino do pastor
Haywood. Sua visita não foi um desperdício completo, mas também
não foi enormemente útil.

Se o Bando quisesse acesso a informações do assassinato do


Pastor, eles podiam ter solicitado pelos canais apropriados. Na
maioria das vezes, a cidade os deixava lidar com isso. Eles eram os
145

melhores rastreadores e se esforçavam para ser gentis com as


autoridades. Eles também cuidavam de seus próprios criminosos. Se
um metamorfo cometesse um assassinato, o Bando faria uma
investigação interna, o capturaria e o puniria ou, dependendo da
situação política, os entregaria às autoridades da cidade. Era um
acordo de mão dupla—o Bando evitava suspeitas desnecessárias e os
policiais sangravam menos tentando fazer seu trabalho. Subjugar um
metamorfo enfurecido não era um passeio no parque.

Mas o Bando não solicitou acesso. Em vez disso, subornaram um


policial.

Até agora, tanto Ascanio quanto Nick estavam interessados neste


caso, mas fingiam o máximo que podiam que não estavam.

O interesse de Nick me preocupou. Anos atrás, antes de Nick se


tornar Cavaleiro-Protetor, ele era um Cruzado e sua última missão
antes de sua promoção foi se infiltrar na organização de Roland. O
vovô fizera algo com ele, algo terrível de que nenhum dos dois jamais
falou. A missão terminou em um desastre, e Nick assistiu todo o
Núcleo de Atlanta, sete Cavaleiros, serem massacrados por meu outro
tio que não estava em seu juízo perfeito. Nick em nenhum momento
quebrou seu disfarce. Eu não conseguia nem imaginar quanto de sua
alma isso tinha custado a ele. Ele assistiu os Cavaleiros morrerem um
146

a um e mesmo assim continuou com sua missão, até que um imbecil,


que era o Cavaleiro-Protetor na época, o expôs enquanto morria e se
certificou de que todo o sacrifício de Nick tivesse sido em vão.

No início, depois que seu disfarce foi descoberto, Nick ficou


emocionalmente instável. Essa experiência potencializou cada
tendência maluca que ele tinha. Então Nick se dedicou a se opor
fervorosamente a Roland e a tudo que ele representava. Ele costumava
chamar Kate de abominação na cara dela. Kate não se importava. Ele
era o único filho de seu antigo tutor, e ela o via como um irmão e o
ajudava em qualquer chance que tinha. Era assim que Kate se movia
pelo mundo.

Eu deveria ter ficado ressentida com Nick, mas não fiquei. Ele era
um Cavaleiro da Ordem no sentido mais verdadeiro, e se dedicava
totalmente à missão da Ordem de proteger a humanidade contra todas
as ameaças. Kate ainda representa uma ameaça potencial de
proporções catastróficas. Mas Kate também é amiga de Nick e, se ela
precisar de ajuda, ele larga o que quer que esteja fazendo e cavalga
com armas em punho e espadas à mostra, como fez mais de uma vez.
Ele simplesmente se recusa a ver o conflito entre essas duas coisas.
Nick trabalha com Kate quando precisa, gosta genuinamente de
Conlan e vai sempre jantar na casa de Kate e Curran, mas está sempre
alerta para qualquer sinal de Kate caindo na loucura. Se ela decidir se
147

tornar uma tirana, Nick será o primeiro na linha a atravessá-la com


sua lâmina.

Era possível que seus anos como Cavaleiro-Protetor o tenha


estabilizado emocionalmente, mas eu duvidava muito disso. Sua
paranoia era um lago escuro e sem fundo, e ele era excelente em
subterfúgios.

Fui para o corredor, deslizei a porta secreta, entrei em minha casa


real e fechei a porta atrás de mim. A porta retiniu no lugar com um
baque suave. O Escudo Enki fluiu ativado, separando o mundo
exterior.

Sussurrei uma palavra, e as lanternas a gás acenderam, banhando


a câmara com uma luz amarela brilhante. Mais um benefício de um
treinamento de qualidade. Minhas lanternas a gás vinham com um
interruptor de desligamento mágico e brilhavam em uma variedade de
cores, enquanto as lanternas da maioria das pessoas eram azuis e
brilhavam continuamente quando a magia terminava. Eu não era fã
de luz azul, exceto um toque raro aqui e ali. Era uma cor muito fria.

Fui até minha mesa e sentei na cadeira.

Até agora, este assassinato tinha apenas perguntas e nenhuma


resposta.
148

Concentrei-me na conexão familiar em minha mente, procurando


por Turgan. Uma luz brilhou em minha mente e se desdobrou na visão
de uma casa com janelas bem iluminadas. Nick Feldman estava
sentado à mesa da cozinha, perto da janela do primeiro andar,
comendo um sanduíche e lendo um livro grosso. A visão se inclinou
ligeiramente quando Turgan reajustou seu aperto no galho.

— Fique com ele, —eu sussurrei.

A minha ave de rapina estalou o bico em entendimento.

Eu soltei a mente dela e a imagem desapareceu.

A águia me chamaria se algo acontecesse. Contanto que a magia


permanecesse, eu saberia cada movimento que Nick fez. Amanhã eu
iria investigar mais fundo, mas antes que pudesse fazer isso, precisava
descobrir por onde começar.

Puxei uma grande pilha de papéis em minha direção. Três meses


do Jornal da Constituição de Atlanta, eu os peguei no caminho para
casa. Vamos ver se alguém anunciou alguma descoberta de novas
relíquias cristãs.
149

supervisão. Ascanio não tinha


deixado ninguém para ficar de olho em mim. Talvez ele tenha
decidido que eu não valia ser supervisionada. Talvez ele tenha
esquecido de mim. Ambas as possibilidades eram igualmente
improváveis, o que significava que quem quer que me seguisse
resolveu me seguir de longe, rastreando minha trilha de cheiro. No
momento em que parei no prédio azul para esconder um embrulho
para Marten, eu já tinha borrifado acônito nas minhas pegadas duas
vezes. Não iria apagar totalmente meu rastro, mas por que eu iria
facilitar para eles?

Vinte minutos depois, fui até a Igreja Metodista de São Lucas na


orla do Tuxedo Park. No rolo compressor de destruição provocada
pelo lento apocalipse mágico, os endinheirados de Atlanta fugiram
para o norte. Bairros como o Tuxedo Park tinham a vantagem de ser
mais antigos, com mansões históricas que resistiram muito melhor do
que as modernas torres de escritórios e arranha-céus. Enquanto os
arranha-céus caíam e desabavam, lugares como Villa Juanita, uma
150

propriedade exclusiva em Tuxedo com mil metros quadrados, não


sofreram danos, ainda eram tão opulentos quanto a um século e meio
atrás.

A Igreja de São Lucas ficava na divisa entre o rico Tuxedo Park e


o novo centro de negócios que havia surgido ao longo da Rodovia
Peachtree. Chamar de igreja era um eufemismo. A enorme catedral,
construída com tijolos e concretos brancos, ocupava cinco acres com
seus terrenos e edifícios auxiliares. Um testamento dos valores
estoicos do Renascimento Gótico, todo o complexo era uma fortaleza:
um hospital, uma escola e um centro administrativo, tudo organizado
em um único retângulo limpo com a frente da catedral e o centro,
parecendo umprimo menor de Notre Dame .

Um trecho de gramado margeava a catedral, o Campo de


Matança, outra divertida peculiaridade imobiliária de nosso
apocalipse. Uma longa passagem cortava o gramado, levando a um
amplo terraço antes da escada para a igreja. O terraço estava cheio de
buquês de flores. Rosas, lírios e flores silvestres repousavam na
calçada, com velas acesas entre as flores e pequenas cruzes de
madeira. A cidade transformou este espaço em um memorial ao

A Catedral de Notre-Dame de Paris é uma das mais antigas catedrais francesas em estilo gótico. Iniciada sua
construção no ano de 1163, é dedicada à Virgem Maria e situa-se na Île de la Cité em Paris, rodeada pelas águas do rio Sena.
151

pastor Haywood. Algumas pessoas enlutadas ainda estavam por aqui,


três dias depois, orando, sentados no muro baixo de pedra que
margeia o terraço.

Fui até o estacionamento lateral, desmontei, amarrei o Tulipa e


caminhei até as portas a pé.

Um homem branco de meia-idade, com o cabelo calvo penteado


para trás e usando óculos de aro metálico, veio ao meu encontro na
entrada e deu uma longa olhada em minha capa esfarrapada. Sob a
capa, eu usava uma camiseta verde, uma calça marrom confortável
presa por um cinto contendo bolsas de ervas, pó de prata e outras
coisas úteis, e um par de tênis de corrida. Nada especial.

Esta manhã, abri o caixote de armas menor e tirei duas facas


idênticas à que perdi ontem. Eu também carregava uma espada de
lâmina achatada. A lâmina tinha cinquenta e cinco centímetros de
comprimento e a parte mais larga cerca de cinco centímetros de
diâmetro. Pesando menos de um quilo, tinha o peso e as dimensões
perfeitas para ser uma boa esquartejadora. A capa escondia tudo isso,
mas não conseguia esconder Dakkan, minha lança . Minha avó não

Lança de duas pontas


152

gostou nem um pouco desse nome, porque a tradução mais próxima


de Dakkan para o inglês seria ‘Stabby ’. Ela alegou que não era um
nome adequado para uma arma, então depois que a primeira Dakkan
quebrou, eu disse que a nova se chamaria Sharpy McStabbison, a
Filha de Stabby. Ela resmungou e deixou meus aposentos, seguida
pela multidão de seus conselheiros, todos me dando olhares de
reprovação.

Dakkan descansava dividida em duas partes na bainha nas


minhas costas. Quando as partes estavam encaixadas, a lança
alcançava quase dois metros. As duas pontas afiadas se projetavam
sobre meu ombro direito, fáceis de agarrar, e a sentinela na porta da
igreja claramente estava tendo dificuldades para descobrir por que eu
carregava duas varas de metal nas costas.

Depois de alguns segundos estranhos, ele decidiu parar de


ponderar sobre minha escolha de arma. — Como posso ajudá-la?

Peguei meu distintivo da Ordem. — Meu nome é Aurelia Ryder.


Estou investigando o assassinato do pastor Haywood.

Afiada.
153

O homem estremeceu ligeiramente. — Terrível. Parece um


pesadelo ... —Ele se conteve. — Você se importaria de esperar? A
bispa está na residência e ela pode querer falar com você.

— Eu não me importo.

— Por favor siga-me.

O interior da igreja estava dez graus mais frio. Uma luz suave fluía
para a área de recepção através dos vitrais coloridos em uma dúzia de
tons de azul e vermelho. Pelas portas abertas, eu podia ver todo o
interior da igreja, fileiras e mais fileiras de bancos de madeira com
almofadas de cobalto, uma plataforma elevada com um simples
púlpito de madeira sobre ela. Não havia opulência nesta igreja, tudo
era muito bem feito e de boa qualidade, mas simples.

Eu tinha feito algumas leituras sobre os metodistas enquanto


viajava pela Linha Ley para a cidade. Os metodistas sempre viram a
cura como um importante tema teológico e, depois que a magia
destruiu o mundo, eles se concentraram nela com uma intensidade
ainda maior. Como resultado, as congregações metodistas
aumentaram, e surgiu a necessidade de ter uma pessoa de referência
para grandes áreas geográficas, geralmente um bispo, às vezes eleito,
às vezes nomeado. A bispa que eu estava prestes a encontrar era
154

responsável por toda a Geórgia do Norte. Ela poderia abrir muitas


portas. Mas também poderia fechá-los com força.

Uma porta lateral se abriu e uma mulher de meia-idade em um


terno bege entrou, o homem que me encontrou seguindo de perto. A
mulher estava na casa dos cinquenta e poucos anos, seu cabelo preto
e liso, penteado em um coque elegante. Ela possuía características que
sugeriam origem do Leste Asiático.

A mulher estendeu a mão. — Hazel Chao. Eu sou a Bispa


Metodista da Geórgia do Norte.

Eu apertei a mão dela. Ela tinha um aperto de mão firme. —


Aurelia Ryder, Cavaleira da Ordem.

— É um prazer conhecê-la, embora eu desejasse que fosse em


melhores circunstâncias. Por que não conversamos no jardim?

Eu a segui pela porta lateral, por um corredor e por outra porta


que dava para fora. Saímos em um grande pátio ajardinado, com a
catedral logo atrás de nós e edifícios auxiliares nos três lados, cada um
com três andares de altura e torres nos cantos.

— Um bom lugar para resistir a um cerco, —observei.


155

— ‘O velho mundo está morrendo e o novo mundo luta para nascer:


agora é a hora dos monstros’, —ela citou.

— E os monstros precisam de castelos, —eu disse. — Embora eu


duvide que Antonio Gramsci tivesse nossos tipos de monstros em mente.

Havia duas traduções dessa citação e, como costumava acontecer,


a menos precisa soava melhor.

Ela me lançou um olhar surpreso e sorriu. — E eu só acabei de


mostrar meu próprio preconceito. Não esperava que você fosse bem-
educada.

— Minha família valoriza muito a educação. Entre aprender


esfaquear pessoas, é claro.

— Claro. —Ela olhou para o homem. — Está tudo bem, Gerald.


Não acredito que a Cavaleira irá me machucar, e se ela tentar, não
tenho certeza se você conseguirá impedi-la de qualquer maneira.

Gerald me lançou um olhar desconfiado e entrou.

As personagens citam um trecho da obra Cadernos do cárcere de Antonio Gramsci.


156

A Bispa e eu descemos o caminho. À direita, as abelhas zumbiam


em torno das delicadas flores rosas de louro-da-montanha . À
esquerda, arbustos de rododendros explodia em ramos de flores
vermelhas. Iridáceas azuis e amsonias delimitavam o caminho,
oferecendo flores roxas e azuis. Eles devem ter colmeias em algum
lugar do local.

— Vou ser franca, —disse a Bispa Chao. — A morte do pastor


Haywood foi um golpe devastador. Para mim foi também uma perda
pessoal, ele era um dos meus amigos mais queridos. A contribuição
dele para a Igreja e para o povo de Atlanta foi inestimável. Quem quer
que o tenha matado abriu um buraco em nossa cidade. Vou ajudá-la
no que puder.

— Obrigada.

O Kalmia latifolia, vulgarmente chamado louro-da-montanha, chita ou colher, é um arbusto sempre-verde da família
das urzes, Ericaceae, nativo do leste dos Estados Unidos. Sua faixa se estende do sul do Maine ao sul da Flórida e oeste a Indiana e Louisiana.

Rhododendron é um gênero que arrola cerca de 1024 espécies de plantas lenhosas da família Ericaceae, tanto perenes
quanto decíduas. Ocorrem principalmente na Ásia, embora também estejam difundidas ao longo da região das montanhas Apalaches, na
América do Norte.

Iridaceae é uma família de plantas com flor monocotiledóneas da ordem Asparagales, com distribuição cosmopolita, que
agrupa cerca de 2244 espécies, repartidas por 66 géneros e 7 subfamílias. No Brasil ocorrem 190 espécies, das quais 107 são endemismos.

Amsonia é um género botânico pertencente à família Apocynaceae.


157

— Preciso de respostas, tenho uma responsabilidade para com sua


congregação e para com a cidade em geral. Ele significava muito para
muitas pessoas. Era amado, mas foi assassinado com uma violência
chocante e por razões desconhecidas.

Ela colocou muita ênfase no ‘desconhecidas’. Atlanta via o pastor


Haywood como um santo. A Bispa tinha acabado de me avisar,
indiretamente, que se eu descobrisse qualquer segredo desagradável
que levou ao assassinato do Pastor, a responsabilidade de arruinar a
memória do homem santo recairia sobre meus ombros. Interessante.

Eu tinha que permanecer no personagem, então era minha vez de


usar citações sofisticadas. — ‘Pois cada um carregará sua própria
carga’.

A Bispo Chao olhou para mim. — Gálatas 6:5.

— Minha carga é descobrir quem matou o pastor Haywood. Seus


pecados, sejam eles quais foram, são a carga dele. A carga da senhora
é lidar com as consequências de sua perda. Pense em mim como uma
ferramenta. Eu não escolho lados. Não caberá a mim o que as pessoas
farão com as minhas descobertas.

— Entendi, —disse a Bispa Chao. — Talvez esta seja uma


conversa que eu deva ter com o Cavaleiro-Protetor.
158

Ah, Nick iria adorar isso. — Possivelmente.

Se o pastor Haywood tivesse feito algo sórdido, o golpe para a


Igreja seria devastador. Perguntas seriam feitas. A bispa seria acusada
de saber, e se ela dissesse que não sabia, cobrariam dela sua
ignorância.

A Bispa Chao suspirou. — Então, como posso ajudá-la, Cavaleira


Ryder?

— Pouco antes de sua morte, o pastor Haywood foi abordado por


um homem sobre um ‘artefato sagrado’.

A Bispa franziu a testa. — É mesmo? Que tipo de artefato


sagrado?

— Minha fonte não sabe dizer. Ela estava mais preocupada em


ganhar biscoitos na hora. Eu sei que o pastor Haywood saiu de carro
no dia seguinte e voltou várias horas depois.

— Nathan? —Perguntou a Bispa Chao. — Você tem certeza?

— Por que isso seria incomum?

— Ele ficava enjoado quando andava de carro. Preferia caminhar


ou andar a cavalo. Além disso, a maioria das pessoas a quem ele
ministrava não possuem veículos e por causa disso fazia questão de
159

não ter um também. Não queria se diferenciar. —Ela sorriu um


sorrisinho triste. — Nathan realmente enjoava terrivelmente. Vomitou
duas vezes no caminho para sua própria ordenação. Tivemos que
convencê-lo a voltar para o ônibus, porque ele declarou que, já que
Jesus andou, ele também o faria. E isso foi há trinta anos.

A onda de magia foi embora. Nós duas paramos, nos ajustando à


repentina ausência de energia. A tecnologia temporariamente
ganharia vantagem. Não iria durar, mas enquanto a magia não
voltasse eu teria menos ferramentas à minha disposição.

— Então, esse artefato deve ter chamado muito a atenção dele?

— Sim. Não consigo imaginar o que o faria entrar em um carro,


especialmente com alguém que ele não conhecia. Eu não entendo o
porquê ele não me ligou. Nathan sempre me ligava quando acontecia
coisas assim.

— Era comum o pastor Haywood autenticar artefatos?

A Bispa Chao suspirou novamente. — Às vezes. Ninguém gosta


de falar sobre isso, mas os itens sagrados são um grande negócio.
Principalmente relíquias cristãs. Noventa e nove por cento delas são
falsas, mas esse um por cento pode fazer milagres.
160

Nem todos os milagres eram benignos. Há alguns anos, a Vara de


Arão foi encontrada no Egito. Quando acionada, se transformou em
uma enorme serpente quase impossível de matar que devorou várias
dezenas de pessoas antes que o exército finalmente conseguisse afogá-
la.

— Nathan tinha o dom de discernimento, —continuou a Bispa.


— Mas ele era seletivo no uso de sua habilidade. Há cinco anos, os
católicos pediram-lhe que autenticasse as lascas de unha de um santo,
porque queriam um perito independente. Infelizmente, as lascas não
pertenciam a nenhum santo. Ninguém sabia a origem delas, mas as
lascas induziam a loucura nos devotos. Nathan passou três dias
delirando. Depois disso, ele foi muito cuidadoso.

— Você tem certeza de que o pedido não veio por meio de alguma
Igreja?

— Absolutamente. Vou verificar, mas desde o episódio das lascas,


todas as solicitações como essas são encaminhadas diretamente para
mim.

Vara de Aarão foi a vara usada por Aarão para executar sinais prodigiosos diante de Faraó e que
serviu como sinal de escolha para o sacerdócio por Deus quando da rebelião de Corá.
161

Então, ou eles o abordaram por conta própria ou ela estava


mentindo. Se a Bispa estava mentindo, era uma atriz incrível, porque
parecia genuinamente surpresa.

— Você entende, —disse ela. — Nathan não se importava com


dinheiro ou prestígio. Seja lá o que mostraram a ele deve ter sido algo
verdadeiramente extraordinário.

— Quem são os caçadores de relíquias mais proeminentes da


região? Quem teria o tipo de reputação que convenceria um homem
como o pastor Haywood ficar longe de sua igreja?

O rosto dela se contorceu com desdém. Eu poderia muito bem ter


perguntado a ela quem eram os melhores cafetões da vizinhança.

— Eu diria Waylon Billiot, mas ele morreu há três ou quatro anos.


Além dele Darryl Knox e Dakota Mooney. Darryl e Dakota eram
casados. Eles tiveram algum tipo de desentendimento, e rumores
dizem que Dakota atirou no ... nas partes de baixo dele. Agora não
suportam um ao outro. Há também Mark Rudolph, que é
extremamente desagradável. Vou pedir a Gerald para lhe dar uma
lista. Pode levar algumas horas.

— Obrigada, —eu disse a ela. — Passarei por aqui no final do dia


para pegar.
162

— Essas pessoas não são agradáveis e razoáveis, Cavaleira Ryder.


São o tipo de pessoas que cruzam um oceano cheio de monstros, sobe
em tumbas escuras cheias de horrores e depois vende o que encontra
pelo valor mais alto. São capazes de atirar em você por um dólar. Se
decidirem que está interferindo nos negócios deles, vão retaliar.

— Obrigada pelo seu conselho.

— Mantenha-me informada, —pediu a Bispa Chao. — Por favor.

— Irei, —eu prometi.

pela rua deserta. Atrás de mim, populus e carvalhos


imponentes cobriam os altos muros que protegiam as casas do Tuxedo

Populus (L.) é um gênero ao qual pertencem cerca de 40 espécies arbóreas ou arbustivas da família Salicaceae (à qual
também pertence o salgueiro), vulgarmente conhecidas como choupos ou álamos. O gênero surgiu no período Cretáceo Inferior, alcançando
maior expressão no Terciário.

Um carvalho é uma árvore ou arbusto do gênero quercus da família das fagus, Fagaceae. Existem
aproximadamente 600 espécies existentes de carvalho. O nome "carvalho" também está relacionado a outras espécies e gêneros, sobretudo
Lithocarpus, bem como Grevílea-robusta e Casuarinaceae.
163

Park. Adiante estavam as ruínas urbanas. Depois de deixar St. Luke's,


virei para o sul e depois para o leste, na Rodovia Oeste de Paces Ferry.
Logo a rodovia cruzaria a nova Rodovia Peachtree e eu viraria à
direita novamente, rumo ao sul, para o Entroncamento Jesus .

O Entroncamento Jesus, também conhecido como o lugar mais


seguro em Atlanta, ficava no cruzamento de três estradas, Peachtree,
Leste Wesley e Oeste Wesley. Era um lugar onde três igrejas
formavam um triângulo irregular: a Catedral de Cristo Rei, a igreja
principal da Arquidiocese Católica de Atlanta, a Segunda Igreja Batista
Ponce de Leon e a Catedral de São Phillip, lar de uma das maiores
Congregações episcopais no país. Uma boa parte de Buckhead estava
em ruínas, mas o Entroncamento Jesus permanecia intocado, um
farol de segurança entre o caos, os templos de culto protegidos das
presas da magia pela fé de seus congregantes.

O pastor Haywood já havia trabalhado com os católicos antes, e


entre todas as denominações cristãs, a igreja católica comprava a
maioria das relíquias e oferecia os preços mais altos. Se eu fosse
vender um artefato sagrado, ofereceria primeiro aos católicos.

Jesus Junction, na cultura popular de Atlanta, na Geórgia, é um apelido para um cruzamento em que três igrejas estão localizadas. O
cruzamento está localizado na Peachtree Road, East Wesley Road e West Wesley Road, na área de Buckhead da cidade.
164

Eu tinha acabado de passar pelo Centro Histórico de Atlanta


quando ouvi um tilintar. Era um som estranho e desconcertante, como
se alguém tivesse afiado algumas moedas de metal e agora as
sacudisse dentro de um saco. Eu já tinha ouvido isso antes.

Tulipa sacudiu as orelhas.

O tilintar voltou, insistente. Dim. Dim. Raspagem de metal contra


metal, agudo o suficiente para fazer qualquer um se encolher.

Interessante. Eu fiz Tulipa parar. Vamos ver no que isso vai dar.

Dois homens saíram das ruínas do Banco Regions e entraram na


estrada. O da esquerda, com um metro e oitenta de altura,
constituição robusta e uma corrente de ouro no pescoço bronzeado,
parecia um típico valentão de rua, do tipo que ganhava dinheiro
cobrando dívidas e levava soco inglês no bolso. Ele usava jeans, uma
regata e um par de tênis personalizado, pintado à mão. Um rifle
pendurado em seu ombro. Era um homem grande, mas perto do outro
cara, parecia uma criança.

O segundo homem era mais alto que o primeiro por uns bons
quarenta centímetros. Ombros enormes, peito largo, braços

O soco-inglês é uma arma branca de metal, que se encaixa nos quatro dedos da mão. Ela é utilizada para aumentar o
ferimento na pessoa atingida por um golpe. Paulo conta que já usou o objeto contra uma pessoa. “No carnaval, vieram dois caras estranhos,
eu estava com a minha namorada.
165

estranhamente longos cheios de músculos. Ele usava calças


camufladas enfiadas em botas amarelas gigantes e uma camiseta
marrom que deixava seus ombros nus. Um taco de madeira de um
metro e meio pendurado em seu cinto. Cada centímetro de sua pele
visível estava coberto com densos pêlos vermelhos, combinando com
a juba gordurosa pendurada em sua cabeça.

Seu rosto brutal exibia uma queimadura de sol permanente,


exceto a área coberta pela barba.

Os dois homens caminharam até o meio da rua e pararam,


bloqueando meu caminho. O idiota da esquerda não seria um
problema. Sua arrogância me dizia que ele era forte e provavelmente
confiava na força bruta e em sua massa ao invés de velocidade e
habilidade. O gigante ao lado dele era outra história. Ele se movia
como um homem com metade de seu tamanho, com uma espécie de
suavidade animalesca. Como um urso, aparentemente desajeitado,
mas grande e rápido, difícil de ser parado em um ataque. Isso não seria
nada agradável. Com aquele taco, seu alcance seria mais longo do que
o meu por meio metro. Com magia, ele não seria um problema. Mas
a magia havia ido embora e ele pesava pelo menos uns oitenta quilos
a mais do que eu.

Dim, dim. Continuaram se aproximando.


166

O homem menor tirou o rifle do ombro e apontou para mim. —


Não se mova.

Escolhi essa estrada para evitar o trânsito. Buckhead costumava


ser uma cidade periférica, uma parte alta da cidade ancorada por um
grupo de hotéis, escritórios, condomínios e restaurantes, nenhum dos
quais resistiu depois da Mudança. O local também gerava materiais
perigosos e contaminados pela magia durante as ondas mágicas.
Assim como o centro da cidade e o centro comercial de Atlanta,
Buckhead eram um tesouro para as equipes de recuperação, mas os
centros eram mais seguros e por isso, até agora, a maior parte da
cidade deixou Buckhead entregue a seus próprios recursos.

Esses dois não eram simples ladrões. Esta estrada não era
movimentada, e o tilintar persistente me disse que eles estavam bem
longe da casa deles. Estavam esperando por mim? Por quê?

Eu poderia atirar neles agora com meu arco, mas havia uma boa
chance de matá-los e qualquer resposta morreria com eles.

Um enorme cachorro apareceu atrás do prédio do Regions, o


animal tinha quase um metro do ombro ao chão e músculos
monstruosos. Seu peito era tão musculoso e largo que sua parte
traseira parecia destoar do resto. Ele pisava o chão com patas do
tamanho de melões. Um único golpe esmagaria um crânio humano.
167

A cabeça com mandíbulas largas e grandes estava presa a um


pescoço mais grosso que minha coxa. Longas pontas de metal saíam
de seu crânio, percorrendo todo o caminho pela espinha até a cauda
longa. Seu pêlo era uma floresta de agulhas de metal azulado.

Um Caçador de Ferro. Só havia um lugar em Atlanta de onde essa


coisa podia ter vindo.

A besta me viu. Seus olhos turquesa focados em meu rosto. Ele


abriu a boca cavernosa, exibindo presas de dez centímetros e rosnou.
Os espinhos ficaram eretos com um tilintar metálico. O Caçador deu
um passo em direção a minha direção e parou abruptamente,
segurado por uma corrente grossa enrolada em sua garganta.

Um momento depois, seu domador surgiu bamboleando. Ele


tinha a altura do homem menor, mas o peso do gigante, e carregava a
maior parte desse peso em uma barriga de cerveja. Branco, peludo e
vestindo um macacão jeans sem camisa. Um facão pendurado em
uma bainha em seu quadril. Ele segurava a corrente do cachorro com
a mão esquerda e uma segunda corrente, esticada atrás do prédio, com
a direita.

O domador se apoiou, puxando o Caçador e puxou a outra


corrente. Um pequeno corpo apareceu e caiu aos pés do domador.
168

Dougie.

O rosto do garoto era um grande hematoma inchado, seus lábios


cortados, seu olho direito inchado e fechado. Seu cabelo estava
coberto de sangue. Sua calça jeans estava rasgada e a carne
ensanguentada aparecia pelos buracos. Eles o arrastaram, esfolando
seus joelhos. A corrente estava enrolada em sua cintura estreita e tinha
arrancado a pele desde as costelas até o estômago. Dougie não tinha
caído aos pés do domador da maneira que uma pessoa normalmente
cairia. Ele desabou como uma boneca de pano, sem ossos e sem fazer
nenhum esforço para se segurar.

O mundo para mim ficou vermelho em um único segundo


furioso. Eles espancaram uma criança. Quebraram seus ossos. Eles o
colocaram em uma corrente e o arrastaram pela cidade. A raiva
queimou em mim como uma tempestade de fogo.

O domador puxou a corrente, levantando a criança a um metro


do chão. — É ela?

Sem resposta.

O idiota sacudiu a corrente. O menino balançava como uma


boneca quebrada.

Eu iria matá-lo lentamente.


169

— É ela?

Dougie abriu um olho até uma pequena fenda. Sua voz era pouco
mais que um sussurro. — Não.

O domador o largou e olhou para o gigante. — É ela.

Se eu mostrasse o menor interesse ou preocupação com o garoto,


eles o torturariam para que eu os obedecesse. Precisava que eles se
concentrassem em mim.

— Uau, as montanhas realmente têm olhos, —gritei. — E cabelos


nojentos.

O gigante olhou para mim. — Você parece uma boa reprodutora.

— E vocês parecem que seus pais se conheceram em uma reunião


de família .

Seu companheiro com o rifle franziu a testa.

— Pense um pouco mais. Entenderá o que eu quis dizer. —


Continuei provocando.

Aurelia está insinuando que os pais deles são primos e consequentemente tiveram filhos com problemas. É um tabu, por isso a frase
pode ser vista como uma ofensa.
170

O domador mostrou os dentes amarelados para mim. — Vadia


malcriada.

Malcriada é o meu nome do meio. — Finalmente entendeu? Não


tenha vergonha. É difícil ser filho do Pé-grande .

Dougie desabou, esquecido no chão. Isso mesmo, concentre-se


em mim.

— Desça do cavalo e deite-se no chão, —ordenou o idiota com a


arma.

Eu precisava afastá-los do menino. Levantei meu braço e apontei


para o atirador com o rifle.

— O que é isso? Vai atirar em mim com o dedo, sua vadia idiota?
Desça do cavalo e deite-se no chão. Eu não vou te dizer de novo.

Saí de cima de Tulipa e bati nela com a mão. Ela trotou para o
lado, fora do caminho. Os três homens me observaram. Dougie ficou
imóvel.

Assobiei uma vez, uma nota curta e afiada, e caí no chão.

O Pé-grande é descrito como uma criatura na forma de um grande macaco que vive nas regiões selvagens
e remotas dos Estados Unidos e Canadá.
171

Turgan desceu do céu como uma pedra, arranhando com as suas


garras o rosto do atirador. O homem gritou.

Um tiro foi disparado. Eu pulei, corri para a esquerda, atrás do


prédio da Regions, e assobiei novamente. A águia cruzou o céu,
voando alto. A coisa toda levou menos de dois segundos.

Puxei Dakkan para fora e encaixei as duas partes da lança. O


prédio bloqueou a rua. Eu não conseguia vê-los, mas eles também não
podiam me ver.

O atirador ainda estava gritando.

— Cale a boca, —o gigante rosnou, sua voz fria e cruel.

— Arrancou a porra do meu olho!

Ouvi um baque vindo de um soco. — Cale a boca ou vou esmagar


sua cabeça.

Os gritos morreram. Eu me movi para o leste, circulando o prédio,


movendo-me silenciosamente ao longo da parede.

— Larry, solte a porra do Caçador nela.

A corrente retiniu no chão.

Eu esperei.
172

O Caçador dobrou a esquina, seguindo meu cheiro, suas patas


enormes raspando na pedra em uma chuva de faíscas. As presas
lançavam saliva para o ar. A boca cavernosa se abriu amplamente ...

Eu esfaqueei Dakkan na boca aberta da besta. A lança atingiu o


tecido mole dentro da garganta, cortando músculos, cartilagens e
ossos até o cérebro. Puxei a lança livre. O Caçador tropeçou seu
ataque interrompido abruptamente. O sangue jorrou de sua boca.

Eu me movi um pouco para trás e enfiei a lança no pescoço da


besta, cortando a coluna vertebral. O Caçador desabou, as agulhas
tilintando como um saco de moedas derramadas no chão. Um a menos.
Eu me virei e continuei circulando o prédio.

— Charger? —Larry gritou.

Virei a esquina e me pressionei contra a parede. Ele estava na rua,


a apenas alguns metros de distância. Dougie estava enrolado como
uma bola à direita de Larry.

Aguente. Estou chegando.

Vinte metros rua abaixo, na direção de onde eu estava vindo, o


atirador olhava para as ruínas.
173

Ele agarrou seu rifle com a mão direita. Sua mão esquerda
segurava um pano pressionado no olho ferido. O gigante não estava à
vista.

— Charger! Volte aqui, garoto.

Saltei de trás do prédio e enfiei a lança nas costas do domador. A


lâmina de metal deslizou na carne, rasgando o rim e o fígado enquanto
eu a subia. Larry sufocou. Torci a lança na ferida. Ele gemeu em uma
voz estranhamente alta. O homem sagraria lentamente até morrer e
sofreria cada segundo. Ele nunca mais colocaria outra criança em uma
corrente.

O corpo de Larry estremeceu na minha lança. Uma bala atingiu


seu estômago. O som do rifle foi como o estouro de um foguete. A
repentina falta de uma das visões comprometia a percepção de
profundidade e consequentemente a mira de um atirador.

— Larry, saia da frente! —O atirador gritou.

Girei Larry para a minha esquerda, usando seu corpo como


escudo, puxei a lança e corri de volta para as ruínas.

Atrás de mim, o rifle estalou novamente, a bala passando zunindo


e ricocheteando em uma parede de tijolos a quinze centímetros de
distância. Curvei a esquina e continuei me movendo para o local onde
174

duas colunas retangulares antes emolduravam a entrada. Eu me


escondi atrás da primeira coluna e esperei.

O domador choramingou, fragmentos de palavras incoerentes


escapando entre seus soluços.

— Foda-se, —o atirador murmurou à minha direita. — Foda-se,


vadia, foda-se ...

Isso mesmo. Chegue mais perto.

— Eu vou te encontrar, porra. Vou explodir sua cabeça.

Uma bota apareceu.

— Vou atirar em você no meio dos seus olhos e ...

Ele gorgolejou quando a lâmina de Dakkan deslizou por seu


pescoço. Seu olho remanescente arregalado, sua boca aberta ... Ele
tentou dizer algo, mas o sangue jorrava de sua garganta, manchando
sua pele de um vermelho brilhante.

Uma forma escura saltou do telhado e caiu em cima de mim. Não


houve tempo para puxar a lança. Eu desviei para a esquerda, tentando
desesperadamente recuar. Uma bota pousou na minha coxa. A dor
explodiu até o osso. O golpe de raspão me jogou no ar como uma
175

boneca de pano. Eu voei, enrolando-me em uma bola, direto para o


‘abraço suave’ de uma pilha de tijolos e caí de lado. Ai!

O mundo girou. Tentei me concentrar através da névoa de visão


embaçada. O gigante estava vindo em minha direção, brandindo seu
taco. Se eu tivesse sido um pouco mais lenta, ele teria quebrado meu
fêmur. Eu não podia me dar ao luxo de ser atingida novamente.

Pus-me de pé. O gigante se abateu sobre mim, balançando o taco,


seus olhos frios. Recuei para a esquerda, depois para a direita, o taco
assobiando a centímetros do meu rosto. Ele estava entre mim e minha
lança, me empurrando contra a pilha de tijolos. Se um único golpe me
acertasse, eu estava morta.

Ele balançava o taco sem parar. Esquerda, direita, esquerda ...

Eu me abaixei, evitando um golpe, peguei um tijolo da pilha e


joguei em seu rosto. Atingiu-o bem entre os olhos e ricocheteou. Ele
rugiu, a poeira do tijolo vermelho chovendo em sua testa.

Porra.

O gigante balançou o taco da direita para a esquerda. Entre um


balanço e outro deslizei por baixo e corri para a direita, a única
maneira que pude, saltando sobre o lixo em direção a uma rua lateral.
176

Minha perna gritava em protesto. Cada passo martelava uma ponta


quente de dor em minha coxa.

Cheguei à rua lateral e olhei para trás.

O gigante pendurou o taco na cintura. Lentamente ele se inclinou


para frente e se apoiou em seus braços. Algo em sua pélvis moveu-se
com um estalo. A linha de sua espinha se realinhou. O gigante correu
em minha direção de quatro.

Que diabos …

Ele galopou em minha direção em uma marcha desconexa


familiar, o tipo de passo para o qual o corpo humano não foi feito,
mas era anormalmente rápido. Em uma fração de segundo, minha
mente analisou as minhas chances. Ele iria me pegar.

Eu não poderia fugir dele, mesmo se minha perna não estivesse


pegando fogo de dor. Ele me deu uma vantagem porque sabia disso.

O gigante corria como um vampiro.

Eu o trataria como um. Tirei uma faca da bainha do meu cinto.


A voz do meu tio ecoou na minha cabeça. ‘Espere pelo momento certo.
Respire’.

Vinte metros.
177

Quinze.

Oito.

Três.

‘Agora’, a voz de Hugh na minha mente comandou.

Eu desviei. O impulso do gigante o fez passar por mim e eu girei


minha faca, direto na nuca dele. A lâmina atingiu suas vértebras,
cortando profundamente a cartilagem. Ele rolou para a frente, com o
sangue ensopando seus ombros e costas, agachou-se e saltou sobre
mim.

Filho da puta. Ele deveria ter caído como uma pedra. Deveria estar
paralisado.

Eu me esquivei, mas não o suficiente. Um braço enorme me


envolveu em um abraço de urso. Levantei meu braço direito para
mantê-lo livre. Ele recuou, me puxando do chão, seus braços me
esmagando. Minhas costelas gritaram de agonia. O mundo ficou preto
e confuso.

Afundei minha faca em seu olho. Ele uivou e eu o esfaqueei na


orelha. Ele me jogou de lado como um gato selvagem.
178

Rolei para longe e fiquei de pé. De repente, consegui respirar.


Meus pulmões doíam a cada respiração.

O gigante correu para mim, batendo descontroladamente,


chutando, balançando, um buraco sangrento onde seu olho
costumava estar. Seu pescoço jorrava sangue. Recuei em direção à rua
principal. Ele me perseguiu, mas seus movimentos começaram a ficar
lentos. Esquivar-se dele agora era brincadeira de criança. Corri até
onde o menino ainda estava deitado na calçada.

O gigante estava respirando pesadamente agora, cada expiração


era um suspiro torturado.

Eu me agachei perto do corpo de Larry e peguei seu facão.

O gigante olhou para mim com o seu olho restante percebeu a


minha intenção. Ele virou.

— Não, —eu disse a ele.

O gigante cambaleou com as pernas trêmulas. Eu o deixei dar dois


passos e cortei a parte de trás de seus joelhos.

Bom facão. Afiado.

O gigante tombou como uma árvore derrubada.


179

Caminhei na frente dele. Ele estava tentando rastejar para frente.


Agarrei seu cabelo e o girei para que ele pudesse ver Dougie. O esforço
enviou um raio cegante de dor através de mim, mas eu não me
importei.

Agarrei o cabelo do gigante e forcei sua cabeça para cima. —


Diga-me quem o contratou e a dor vai acabar.

Ele rosnou. Não havia nada de humano no som. Seu rosto era
uma máscara de raiva, mas não havia força nele. Sua boca caiu, seus
olhos fixos, sem foco.

— Diga-me quem o contratou.

— Foda-se.

Eu não iria conseguir arrancar nada dele.

Dougie estava olhando para nós com um olho.

— Olhe para o menino, —eu disse ao gigante.

As mãos dele tremiam. Puxei sua cabeça para cima, forçando-o a


olhar para o garoto. Seus olhares se conectaram.

Abaixei o facão no pescoço do gigante. Desta vez, a lâmina cortou


bem a carne e o osso. A cabeça do gigante rolou para longe. Seu olho
180

ainda estava piscando. Sua boca se moveu tentando formar palavras,


mas sem pulmões, nada saiu.

Assobiei para Tulipa e tirei o garoto do chão. Ele era muito leve
e estava mole.

— Eu não disse a eles, —o garoto sussurrou. — Não contei sobre


você e Marten.

— Eu sei.

— Dói.

— Eu sinto muito. Estou aqui com você agora.

— Não deixe que eles me machuquem mais, —ele sussurrou.

— Eles estão todos mortos. Estou aqui.

Tulipa correu. Eu o coloquei sobre a sela em seu estômago. Era a


melhor posição. Ele gemeu baixinho.

— Fique comigo, Dougie.

Ele estremeceu.

— Fique comigo.

— Certo ...
181

Agarrei a cabeça do gigante, enfiei no alforje, corri para pegar


minha lança e acariciei a bochecha de Tulipa.

— Devagar.

Tulipa andou. A maioria das pessoas conhecia os quatro tipos


diferentes de compassos dos cavalos: marcha, trote, galope leve e
galope rápido. Aqueles mais familiarizados com cavalos sabiam a
diferença entre marcha e uma marcha intermediária de quatro tempos,
entre um trote e um galope. Tulipa tinha seu próprio passo, rápido e
suave como a seda. Eu tinha montado dezenas de cavalos e nenhum
deles era igual a ela.

— Fique comigo, Dougie.

Corri ao lado dela, tentando bloquear a dor e falhando. Os


choques de dor tornaram-se uma cadência torturante para a minha
corrida. Empurrei a dor para um lugar estranho, onde ela ficou como
um pano de fundo para o que eu tinha que fazer. Voltar para a St.
Luke's era a única coisa que importava, e quando a igreja finalmente
apareceu na minha frente, quase me surpreendeu.

Tirei Dougie da sela e o carreguei escada acima até as portas.


Pessoas saíram correndo.

Alguém me acenou para a direita. — Por aqui.


182

Eu o segui pela igreja, pelo jardim, até o hospital, onde pessoas de


uniforme tiraram o menino dos meus braços e o carregaram.

Esperei no banco junto à recepção. Os minutos passaram.

A Bispa Chao veio correndo pelas portas, passando por mim e


pelo corredor. Uma mulher de uniforme saiu para falar com ela. Um
momento depois, uma porta se abriu e um homem alto e negro vestido
em um jaleco saiu para o corredor.

Ele e a Bispa se aproximaram de mim.

— Ele está vivo, —disse o médico. — Uma perna quebrada, os


dois braços quebrados, ferimentos internos. Saberemos mais assim
que fizermos mais exames.

— Ele vai sobreviver?

— Não há garantias. Se tivermos uma onda mágica nas próximas


horas, as chances dele aumentarão.

— Eu pagarei todas as despesas, o que ele precisar.

— Não haverá necessidade, —disse a Bispa.

O médico se virou e saiu correndo.

A Bispa Chao sentou-se ao meu lado. — O que aconteceu?


183

— Uma gangue de Honeycomb. —Só os Honeycombes tinham


Caçadores de Ferro. — Eles estavam atrás de mim especificamente.
Ontem conversei com alguns meninos de rua que testemunharam o
pastor Haywood saindo de sua igreja em um carro para identificar o
artefato. O menino ferido era um deles. O líder deles. Os
Honeycombes o espancaram, o acorrentaram e o arrastaram pela
cidade, tentando me encontrar.

Eles devem ter usado o Caçador para me rastrear até a igreja e,


em seguida, fizeram uma boa dedução sobre qual estrada eu pegaria
ou me viram sair e correram na minha frente.

A Bispa Chao fechou os olhos por um longo momento. —


Faremos tudo o que pudermos.

— Obrigada. E se alguém vier perguntar, ligue para a Ordem. Por


favor.

— Parece que você precisa ser examinada.

Eu me levantei. — Obrigada novamente, mas preciso ir a um


lugar.

Caminhei em direção às portas. Dougie não contou aos


Honeycombes sobre Marten, mas isso não significava que fossem as
únicas pessoas procurando por ela. Eu tinha que encontrá-la.
184

— Senhorita Ryder, —ela chamou atrás de mim. — Tenha


cuidado.

A Cavaleira que originalmente me acompanhou saiu do escritório


mais próximo. Um lento sorriso esticou os lábios dela.

— Um caminhão atropelou você?

— Uma criança veio aqui procurando por mim?

A Cavaleira acenou com a cabeça. — Me siga.

Eu a segui até seu escritório. Marten estava sentada em uma


cadeira, mastigando biscoitos de chocolate e bebendo de uma caneca
grande. Ela me viu e sorriu, apresentando-me os dentes manchados
de chocolate.
185

Apoiei-me contra a porta. Levei quase trinta minutos para chegar


ao Núcleo, e o tempo todo eu imaginei o corpo rasgado de Marten
descartado como lixo em alguma ruína.

— Sua bolsa está pingando, —observou a Cavaleira.

Segurei a bolsa ensanguentada. Ela estendeu a mão para o lado,


puxou uma bandeja de metal de uma gaveta e a colocou sobre a mesa.
Eu coloquei a bolsa ensanguentada na bandeja. A Cavaleira se sentou
atrás da mesa. A placa dizia ‘Stella Davis’.

Encostei-me na parede e olhei para Marten. — O que aconteceu?

Ela engoliu em seco. — Fui comprar biscoitos. —A menina


lançou um olhar desconfiado para Stella. — Naquele lugar que você
me falou.

Claramente, a Cavaleira da Ordem não era considerada confiável


com informações confidenciais, como a localização do estoque de
biscoitos, por exemplo. Stella revirou os olhos.

— Eu comi um biscoito e escondi o resto. Então voltei para a Casa


dos Ratos. Havia dois caras assustadores e um Taker lá. Eles tinham
um cachorro com pelo de ferro.

Taker: Sequestrador, aproveitador, raptor, captor, comprador, tomador.


186

Um Taker significava o mais alto nível de perigo, alguém de quem


se deve fugir, alguém que leva crianças e elas nunca mais são vistas.

— O que esses caras assustadores estavam fazendo?

— Conversando com Dougie. —Marten deu outra pequena


mordida em seu biscoito.

Falar com essa menina era como arrancar dentes. — Você


conseguiu ouvir o que eles conversaram?

Ela assentiu.

Stella rosnou. — O que você ouviu?

— Eles estavam perguntando sobre a mulher da Ordem. Dougie


mentiu e disse que mostraria aonde você foi. E então ele foi pelo
caminho errado e eles o seguiram.

— O que você fez depois?

— Corri para o lugar secreto, peguei os biscoitos e vim para cá.


Como me disse para fazer.

Stella olhou para mim. — Ela apareceu aqui cerca de duas horas
atrás. Comeu três biscoitos gigantes e bebeu quase um litro de leite. —
A Cavaleira olhou para Marten. — Me pergunto para onde foi tudo
isso?
187

— Para a minha barriga. —Marten esfregou a barriga inchada e


sorriu. Então seu sorriso desapareceu. — Dougie está bem?

— Dougie se machucou, —eu disse a ela. — Ele está no hospital


agora.

— Posso vê-lo?

Eu balancei minha cabeça. — Levo você mais tarde, quando ele


estiver se sentindo melhor.

Nick Feldman apareceu na porta. — O que está acontecendo


aqui? Quem é esta criança?

— Ela é uma testemunha material, —eu disse.

Nick apontou para minha bolsa. — E o que é isso?

— Evidências.

Ele olhou para a bolsa. — Bem, agora eu me sinto mal. Eu não


dava nada por você. Por que suas evidências estão sangrando na mesa
da Cavaleira Davis?

Fui até a mesa, abri a bolsa e a puxei para baixo. Os dois


Cavaleiros e Marten olharam para a cabeça do Honeycomber.

— O Taker! —Marten disse.


188

Todo o humor evaporou do rosto de Nick. — Pegue isso e traga


para o meu escritório.

Ele se virou e marchou pelo corredor.

Stella se inclinou para frente e sussurrou: — Oooh, você está


encrencada.

Marten arregalou os olhos. — Oooh.

Peguei a bandeja e segui o Cavaleiro-Protetor.

— Feche a porta, —Nick ordenou, sentando-se atrás de sua mesa.

Fechei a porta e coloquei a bandeja na frente dele.

— Explique.

Eu contei tudo o que aconteceu.

Nick ponderou a cabeça, pensando.

Bati na cabeça nojenta na minha frente. — Quem é ele?

— Jasper. Sem sobrenome. Estuprador, sequestrador, traficantes


de escravos. Você sabe sobre Honeycomb?

— Eu sei que eles não gostam de forasteiros.


189

— Era um parque de trailers para aposentados. Agora é um lugar


que embaralha a realidade.

Honeycomb ficava bem no fundo do Desfiladeiro de Honeycomb,


uma fenda que se abriu no sudeste de Atlanta. De acordo com os
arquivos da cidade, antes da Mudança, era um lugar agradável, com
belas casas pré-fabricadas e paisagismo bem cuidado. Eu só conheci a
Honeycomb pós-Mudança, quando já tinha se transformado em um
pesadelo. A magia deformou as casas e estilhaçou a realidade em
pedaços. As casas pré-fabricadas, simples ou conjugadas, se
multiplicaram desordenadamente, crescendo umas em cima da outras
como uvas em um cacho. Pessoas de fora nunca entravam em
Honeycomb sem um guia. Era um lugar onde as pessoas
acidentalmente atravessavam paredes e nunca saíam. Um passo
errado e qualquer um desapareceria para sempre.

— Ninguém entra em Honeycomb, e os Honeycombes se


aventuram na cidade apenas quando precisam de dinheiro, —
continuou Nick. — Eles não são exigentes. Fazem qualquer trabalho
de merda por qualquer dinheiro. Nós nem sabemos quantos moram
lá. Pode ser dez, pode ser cem.

— E quanto a Jasper?
190

— Até esta manhã, Jasper era o líder deles. —Nick se recostou.


— Parabéns. Você matou o rei de Honeycomb.

— Acha que sentiremos sua falta?

— Eu duvido. Mas não posso descartar a possibilidade de que


você acabou de se tornar alvo de vingança de uma gangue de idiotas
loucos. Parece que ser discreta não é mesmo sua praia, não é,
Senhorita Ryder?

— Jasper não me achou por acaso, Cavaleiro-Protetor. Ele me


rastreou. Ninguém me conhece na cidade, o que significa que alguém
o contratou para investigar o assassinato de Haywood ou garantir que
eu não o investigasse.

Nick fez uma careta. — Provavelmente a segunda opção. Ele era


astuto de certa forma, mas não era lá muito inteligente.

Ele também não era totalmente humano na definição estrita dessa


palavra. — Você sabe quem geralmente o contratava?

— Jasper era o que você poderia chamar de trabalhador


independente. Peça a Cavaleira Davis para lhe dar a lista de
associados conhecidos. Não tenha muitas esperanças.

Nick me fixou com seu olhar novamente. — Não entre em


Honeycomb. Isso é uma ordem. Não encontrará nenhuma
191

testemunha lá e não conseguirá levantar nenhuma informação


naquele lugar. Ninguém irá falar com você. Eles a capturarão e você
desaparecerá.

Nisso nós concordamos. Entrar em Honeycomb era inútil.


Conseguiria muito mais tentando descobrir quem contratou Jasper.
Eu não sabia qual era o objetivo de quem o contratou, mas ele tinha
uma longa conta a pagar pelos ossos quebrados de Dougie.

Percebi que Nick estava esperando uma confirmação.

— Prometo não entrar em Honeycomb. Mas se eu fosse contratar


alguém em Honeycomb, como faria isso?

Nick suspirou. — Qual parte de ‘não entre em Honeycomb’ você


não entendeu?

— Já disse que não vou entrar. Mas eles devem ser contratados de
alguma forma. Ou é simplesmente ir para a beira do Desfiladeiro de
Honeycomb e gritar a plenos pulmões?

Nick balançou a cabeça. — Há uma linha telefônica.

— Em Honeycomb? Como?

— Ninguém sabe. Rumores dizem que funciona e, qualquer um


que souber o número, é só discar que alguém atenderá.
192

Eu o encarei.

Nick encolheu os ombros. — Você perguntou.

— Você sabe o número?

— Não. E se eu soubesse, não diria a você.

Uma vaga ideia começou a se formar em minha cabeça.

— O que quer que esteja planejando, eu não aprovo, —disse Nick.

— Você aprova alguma coisa?

— Sim. Agora, eu aprovo a ideia de você dar o fora do meu


escritório. Vou lidar com as consequências da morte de Jasper, se
houver. Faça o que precisa fazer e não morra.

E aqui estava eu, planejando uma morte horrível. — Você já me


disse isso antes.

— Eu quero que você realmente me escute desta vez. —Ele


vasculhou a gaveta de sua escrivaninha, tirou um frasco de plástico e
colocou dois comprimidos na palma da mão. — Tome.

Estendi minha mão e ele colocou os comprimidos nela.

— Pegue isso e saia.


193

Eu saí. Nick Feldman acabara de me presentear com dois


comprimidos concentrados de ibuprofeno, vendidos somente com
receita médica. No mundo pós-Mudança, o medicamento valia seu
peso em prata. Ohh! Engoli os comprimidos e voltei para o escritório
de Stella.

Marten estava enrolada na cadeira, cabisbaixa.

— O que foi?

— Ela comeu todos os biscoitos, —disse Stella secamente. —


Agora está com dor de barriga.

— O Cavaleiro-Protetor me disse para pedir uma lista dos


associados conhecidos de Jasper.

Stella deu um suspiro e se levantou. — Espere aqui. Não toque


em nada.

Ela se foi. Olhei para Marten. A menina olhou para mim.

— Você tem mãe? —Eu perguntei.

— Não.

— Pai?

— Não.
194

— Tia, tio, primos? Algum parente vivo?

Ela balançou a cabeça.

Eu tinha que mantê-la segura e fora das ruas. O que vou fazer com
ela? Precisava encontrar um lugar seguro com alguém que a vigiasse
24 horas por dia, sete dias por semana, porque deixada por conta
própria, ela fugiria. Alguém forte o suficiente para protegê-la de outro
Jasper.

Stella voltou com um único pedaço de papel. Olhei para ele.


Quatro nomes. Um arquivo impressionante. Uma verdadeira
abundância de informações.

Mantive minha voz casual. — Obrigada. Mais uma coisa, a linha


telefônica para Honeycomb, é mais no lado leste ou no lado oeste do
Desfiladeiro?

— Oeste. Depois da Avenida Martha.

Eu balancei a cabeça para ela e estendi minha mão para Marten.


— Vamos.

A menina pulou da cadeira. — Para onde estamos indo?

— Vamos encontrar algumas pessoas legais. Elas ficarão de olho


em você até que seja seguro. —E a impedirão de fugir.
195

Ela olhou para mim. — Eles vão me alimentar?

— Com toda certeza.

— Certo. —Ela pegou minha mão e saímos do Núcleo.

da Associação dos Mercenários acenou me


chamando para o balcão dele. Oito anos se passaram e ele parecia
exatamente o mesmo, como se eu tivesse o visto ontem. Altura
mediana, constituição média, pele bronzeada, cabelos castanhos,
perpetuamente por volta dos quarenta e cinco anos. Ele parecia um
barman experiente, calmo, reservado e pronto para sacar a espingarda
de debaixo do balcão e explodir o que quer que rompesse as enormes
portas de metal da Associação.

Ninguém se lembrava do nome dele. Ele era apenas o


Recepcionista, encarregado de organizar e atribuir trabalhos,
encontrar mercenários específicos para cada tipo de trabalho que
chegava na Associação e lidar com outras tarefas administrativas
mundanas. Ele sempre esteve lá, e suspeitava que sempre estaria.
196

O Recepcionista viu Marten segurando minha mão e sorriu.


Marten sorriu de volta. Para uma criança, Marten estava muito ciente
de sua fofura e ela usava isso sem cerimônia. No caminho para cá,
parei no 75 Market e comprei três mudas de roupa, produtos de higiene
pessoal e uma mochila. De alguma forma, ela acabou com uma
pequena sacola de doces, uma tira de carne seca e um pêssego, todos
livremente presenteados pelos seguranças da loja. Se Marten tivesse
acesso ao mercado, não estaria tão magra, mas normalmente a
segurança do mercado perseguia os garotos de rua. Minha presença
validou a presença dela, e minhas feições suavizaram qualquer dúvida
que alguém pudesse ter. As pessoas te tratavam de maneira diferente
quando se é bonita. Isso é fodido, mas é verdade.

— Como podemos te ajudar? —O Recepcionista perguntou.

— Eu gostaria de ver Barabas Gilliam.

— Você tem hora marcada?

— Não, mas tenho dinheiro.

O Recepcionista assentiu. — Deixa-me ver o que posso fazer.

Eu recuei um pouco. O Recepcionista pegou o telefone, falou e


acenou para nós novamente.
197

— Ele a receberá em cerca de quinze minutos, se não se importar


em esperar.

— Nós não nos importamos.

Marten e eu caminhamos para uma área de recepção de clientes


à esquerda e um pouco em frente ao balcão do Recepcionista, onde
várias cadeiras acolchoadas estavam dispostas em formato de U em
torno de uma mesa de café. Do balcão, o Recepcionista podia ficar de
olho em nós e nas portas da frente.

Antigamente, a Associação costumava ser um hotel de luxo em


Buckhead, uma torre oca com um pátio no centro. O topo da torre
havia se partido há muito tempo, roído por uma onda de magia e
depois atacado por um gigante. As reformas estabilizaram o edifício,
mas a altura foi limitada em cinco andares. Qualquer coisa mais alta
do que isso estava à mercê de danos feitos pela magia. Agora, o antigo
hotel servia de base para cerca de trezentos mercenários, abrigava
alojamentos, um arsenal, celas de contenção, armazenamento,
quartel, uma enfermaria e todo tipo de força de trabalho disponível
para ser contratada.

Atrás de nós, uma praça de alimentação ocupava uma boa parte


do chão. Várias pessoas de aparência rude comiam nas mesas,
198

algumas sozinhas, outras em grupos. O ar cheirava a pão fresco, carne


cozida e café forte.

Depois que Curran desistiu de ser o Senhor das Feras, ele se


tornou o proprietário majoritário da Associação dos Mercenários. Seu
primeiro ato foi modificar a qualidade da comida que era servida. Os
metamorfos comiam muito e com frequência.

Marten fungou. — Cheiro gostoso.

— Pensei que sua barriga estava doendo?

— Já passou.

Stella estava certa. Essa garota era um poço sem fundo.

Nós esperamos. Barabas ocupava um grande escritório à nossa


esquerda, atrás de uma parede de vidro. Normalmente a porta estava
aberta e você podia vê-lo trabalhando em sua mesa através do vidro.
Hoje, as persianas atrás do vidro bloqueavam a vista e a porta estava
fechada. Ele deve ter desejado privacidade.

Ninguém nos incomodou. Os mercenários ficavam cada um na


sua. Eles se uniam para trabalhos maiores, mas a maioria deles era do
tipo lobo solitário. Cuidavam de trabalhos que os policiais não
podiam ou não conseguiam, desde remoção hostil de materiais
perigosos a guarda-costas especializados e escolta armada. Viviam no
199

limite entre mercenários e assassinos de aluguel, então geralmente


tendiam a permanecer do lado bom da lei, mas, além disso, qualquer
trabalho era justo se pagasse o suficiente.

Olhei casualmente para as vigas expostas do teto acima de nós.


Vazias.

A porta do escritório de Barabas se abriu levemente, quando


alguém parou com uma mão na maçaneta da porta. Uma risada baixa
e masculina, um resmungar profundo veio da brecha da porta
entreaberta.

Curran.

Peguei Marten em meus braços e fui direto ao banheiro feminino.


Atrás de mim, a porta se abriu com um rangido fraco. Não corra, não
corra, não corra ... Curran era um felino. Se eu corresse, ele me notaria.

Empurrei a porta do banheiro e entramos. Encostei-me na porta


e me preparei. Um longo momento se passou. Outro …

Marten piscou para mim e disse em voz baixa: — Por que estamos
nos escondendo no banheiro?

— Não estamos nos escondendo. Estamos executando uma


manobra evasiva.
200

— Por quê?

— Porque isso nos dará mais uma vantagem em nossa estratégica.

Marten concordou.

Vozes animadas vieram abafadas pela porta. Curran riu


novamente. Foi preciso cada gota da minha força de vontade para
manter a porta fechada. Ele não me reconheceria. Claro que não. Mas
se me reconhecesse, eu teria muitas perguntas para responder. Não
tinha certeza se poderia mentir para Curran, e se tentasse, ele
provavelmente saberia.

As vozes recuaram. Alguém gritou: — E fique fora, seu


vagabundo de praia! —Mais risadas se seguiram. Finalmente,
acabou.

Esperei mais meio minuto e saí do banheiro. A porta de Barabas


estava aberta. As venezianas estavam fechadas, e eu o vi sentado em
sua mesa, com os cabelos vermelhos pontiagudos, que lembravam
chamas ou agulhas de ouriço.

— Ele vai recebê-la agora, —o Recepcionista falou.

Entrei no escritório de Barabas, coloquei Marten em uma das


duas cadeiras do cliente e sentei na outra.
201

Barabas olhou para cima. Ele tinha um rosto comprido, com


feições angulares e olhos verdes inteligentes e afiados. Sua pele, tão
pálida que por pouco não brilhava à noite, provavelmente só resistia
a uma queimadura de sol por causa do poder regenerativo do vírus
Lyc-V, o vírus metamorfo. Ele usava um terno, apesar do calor, mas
tirara o casaco e arregaçara as mangas da camisa azul, expondo os
braços magros e musculosos. Ele também não havia mudado.

Não prenda a respiração. Aja naturalmente. Você não tem mais o mesmo
cheiro.

Barabas estudou a mim e Marten. — O que posso fazer por você?

Coloquei uma barra de ouro estreita em sua mesa. Tinha quase o


comprimento do meu dedo, um centímetro e meio de largura por um
centímetro e meio de altura.

As sobrancelhas de Barabas se ergueram. Ele pegou o telefone. —


Charles, preciso de você por um segundo.

Um momento depois, um homem hispânico mais velho entrou


pela porta. Ele pegou a barra, olhou atentamente para ela e o largou.
— É de verdade.

Barabas assentiu e Charles saiu sem dizer outra palavra.


202

O Mestre-Senhor da Associação dobrou os dedos na frente dele.


— A Associação está à sua disposição.

Por vinte mil, é melhor que esteja mesmo. — Esta é Marten.

Barabas estendeu a mão. — É um prazer conhecê-la, Marten. Eu


sou Barabas Gilliam. Dirijo a Associação.

Marten deu um pequeno aceno para ele, mas manteve as mãos


para si mesma.

— Marten é uma criança de rua, —eu disse. — Ela não confia em


ninguém, especialmente em homens adultos.

— Isso é uma boa decisão. —Barabas recostou-se na cadeira.

— Eu preciso que você a proteja.

— Você tem alguma autoridade legal sobre esta criança?

Eu sabia que isso estava por vir. Antes de assumir o comando da


Associação, Barabas era advogado do Bando. — Não. No entanto, ela
não tem parentes vivos. É órfã e vive na rua. Eu não a sequestrei.

Barabas se voltou para Marten. — Você é órfã?

— Sim.
203

— Ela é testemunha de um assassinato. —Tecnicamente, isso não


era verdade, mas explicar os detalhes levaria um tempo e Barabas não
precisava conhecê-los. — Pessoas violentas estão procurando-a.

— Quanto tempo você acha que ela exigirá proteção?

— Uma semana.

Barabas olhou para a barra de ouro. — Você está pagando pelo


menos o dobro do que realmente o serviço vale, possivelmente mais.

— Acho que não entendeu. Eu quero que você a proteja


pessoalmente. Você ou ...

Merda. Eu não podia chamar nenhum deles pelo primeiro nome,


e Barabas e Christopher se casaram depois que eu fui embora. Quem
adotou o sobrenome de quem? Era Christopher Gilliam, Christopher Steed ou
Christopher Gilliam-Steed? Ou Christopher Steed-Gilliam? Se eu dissesse a
coisa errada, isso significaria que eu os conhecia antes que eles se
casassem. Barabas nunca deixaria isso passar.

— ... um membro da sua família. —Sim! Essa foi por pouco. — Por
isso, o pagamento extra. Se ela exigir proteção depois de uma semana,
retornarei com um pagamento semelhante.

Isso prejudicaria meus fundos imediatos, mas valeria a pena.


204

— E se você não voltar?

— Então espero que faça o que acha certo. Você tem reputação
de ser um homem ético.

Barabas ponderou o ouro, olhou para Marten e olhou para mim.


— Muito bem. Eu tenho a pessoa certa para isso. —Ele levantou a voz
levemente. — Sophia!

Marten olhou para ele.

A porta se abriu e uma adolescente entrou, com uma mochila


pendurada em um ombro. Ela tinha cerca de quatorze anos,
constituição atlética, vestida em um short e uma blusa. Um par de
óculos de sol vermelho rubi pousava em sua cabeça. Seu cabelo,
puxado para trás em um rabo de cavalo curto, era um tom mais claro
de loiro platinado. Barabas tinha a pele pálida, mas ela era de
porcelana branca, e seus olhos, rodeados por cílios brancos, tinham
um estranho tom de lavanda. Uma albina .

— Que foi pai?

Albinismo é uma condição causada pela deficiência na produção de melanina. Pessoas com esse problema
apresentam a ausência de pigmentação e, dependendo do grau, apresentam alterações até mesmo na cor dos olhos e dos cabelos.
205

— Esta é minha filha, Sophia, —disse Barabas.

Barabas tinha uma filha? E Conlan não me disse isso?

— Prazer em conhecê-la, —disse Sophia.

— Ela é um membro da minha família e está qualificada


exclusivamente para essa tarefa.

Um brilho vermelho rolou sobre os olhos de Sophia e, por um


segundo, vi o contorno de uma longa pupila horizontal antes de se
contrair em uma forma redonda humana. Uma metamorfa
mangusto . Como Barabas.

O albinismo em humanos era raro, aproximadamente um caso


para dezessete nascidos. Nos mamíferos, ocorria um pouco mais
frequentemente, cerca de um em cada dez mil. Albinismo em
metamorfos não existia. Os albinos apresentavam maior risco de
queimaduras solares e câncer de pele, e a falta de pigmentação ocular
às vezes causava problemas de visão que exigiam cirurgia corretiva.
Havia estudos que teorizava que o Lyc-V removia o albinismo no

Os mangustos são mamíferos pequenos e ágeis, conhecidos por matar najas e outras cobras
venenosas. O mangusto se lança contra o crânio da cobra, tentando quebrá-lo com uma mordida poderosa. Há mais de quarenta espécies
de mangusto. Eles vivem na Ásia, na África e no sul da Europa.
206

útero, embora não houvesse consenso sobre como exatamente isso era
feito. Eu já tinha visto milhares de metamorfos. Nem um único albino
entre eles.

Só havia uma maneira de Sophia existir, e essa maneira era muito


ilegal. Barabas sabia disso melhor do que ninguém. O que você e
Christopher fizeram e como vocês se safaram?

— Qualificada para quê? —Sophia perguntou.

— Guarda-costas especializada, vinte e quatro por sete, por uma


semana, —disse Barabas.

— Hora extra?

— Pagamento mais da metade.

— Bônus de risco?

— Situacional, dependendo do nível da ameaça.

Sophia estreitou os olhos. — Quero isso por escrito, com a escala


de bônus de risco especificada.

— Feito, —disse Barabas.

Queridos deuses, ele fez uma pequena versão feminina de si mesmo.

Sophia sorriu. — Quem eu estarei protegendo?


207

— Eu, —disse Marten.

— Oi. Eu sou Sophia. —A filha de Barabas estendeu a mão.

Marten apertou. — Oi. Eu sou Marten. O que tem na sua bolsa?

— Uma nagaina.

Tal pai tal Filha.

— O que é uma nagaina? —Perguntou Marten.

Sophia deslizou a mão na mochila e tirou uma cobra. Grande e


preta. A cobra envolveu o braço dela e empinou, exibindo um peito
amarelo brilhante. Marten congelou.

— Sophia, você está assustando a cliente, —disse Barabas.

— Não se preocupe. Ela é uma cobra egípcia. São muito dóceis e


não cospem veneno. —Sophia sorriu. — E elas não comem Martens-
americanas. —Sophia deslizou a cobra de volta para a bolsa.

— Você tem certeza disso? —Eu perguntei a Barabas.

Naja haje a naja-egípcia é uma espécie de naja nativa do norte e centro da África e da Arábia, sendo
uma das maiores najas.
208

— Absoluta. Sophia tem muita experiência, apesar da idade, e


Marten ficará mais confortável com ela.

— Esta não será uma tarefa tranquila. Ambas estarão em perigo.

— E é exatamente por isso que Sophia será perfeita para ela. —


Barabas sorriu, uma exibição discreta e controlada de seus dentes. —
Ela pode se dedicar completamente a essa tarefa. Durante o dia, elas
estarão aqui, na Associação. Durante a noite, estarão em nossa casa.
Se surgirem problemas, eu e meu marido vamos lidar com eles. Além
disso, vivemos em uma comunidade bastante restrita. Garanto-lhe, é
muito seguro.

Aposto que é. — É essencial que ninguém a interrogue sobre o


assassinato, incluindo Ascanio Ferara.

Sophia estalou os nós dos dedos. — Oh, isso não será um


problema.

Conlan odiava Ascanio, e agora Sophia também não era fã.


Ascanio com certeza tinha jeito com as crianças.

— O Bando tem interesse neste caso? —Barabas perguntou.

— Ainda não sei. No entanto, o Senhor Ferara definitivamente


tem. Isso será um problema?
209

— Nem um pouco, —disse Barabas. — Não estamos sob a


autoridade do bando.

Como todos que saíram do Bando com Curran e Kate, Barabas


gozava de um status especial e eu contava com isso.

— Ótimo. Aqui estão suas roupas e produtos de higiene pessoal.


—Passei a bolsa para Barabas. — O pagamento deve cobrir a comida
dela, mas certifique-se de que ela coma algo além de biscoitos.

Barabas assentiu. — Isso não será um problema.

— Você gosta de muffins de mel ? —Sophia perguntou a Marten.

Eu amava muffins de mel. Martha, a mãe adotiva de Curran os


fazia. Mataria por um dos muffins de mel de Martha agora. Eu
comeria e choraria aqui mesmo no escritório.

Os olhos de Marten brilharam. — Eles são gostosos?

— Muito gostosos.

— Então eu gosto deles.

Muffins de mel
210

— Eu tenho alguns em minha sala. —Sophia estendeu a mão.

Marten pulou da cadeira, piscou para mim e pegou a mão de


Sophia. Elas saíram do escritório.

Essa piscadela significava problemas.

— Ela é muito boa em fugir, —eu disse.

— Sophia é muito boa em evitar fugas. Prometo a você, Senhorita


Ryder, que a menina será bem tratada, será banhada, alimentada e
colocada na cama à noite e, acima de tudo, estará sob supervisão
constante.

Tive a sensação de que Barabas iria engolir essas palavras, mas


não havia mais nada que eu pudesse fazer. Tinha dado todos os avisos
que poderia dar. Eu os contratei para fazer um trabalho e tinha que
deixá-los fazer.
211

da rua Martha.

Imaginei que havia cinquenta por cento de chance de Stella ter me


enviado em uma perseguição furada. Claramente, ou ela não confiava
em mim ou decidiu se vingar por eu ter a enganado. Justo, um ponto
para ela. Eu respeitava que ela fosse cautelosa e tentasse se vingar. No
lugar dela, faria a mesma coisa.

O Honeycomb ficava no fundo de um desfiladeiro, uma fenda no


chão com cerca de cinco quilômetros de comprimento e quinhentos
metros de profundidade, era mais conhecido como o Desfiladeiro de
Honeycomb. O Desfiladeiro puxava ferros e outros metais para si
mesmo, recolhendo-os de ferros-velhos e da fábrica abandonada da
Ford. A área ao redor estava em ruínas, e subir e voltar pelos
escombros com uma perna ferida e um ombro machucado era todo
tipo de diversão que eu não precisava.

Se a magia estivesse em alta, eu poderia ter convocado Turgan e


a ordenado explorar o Desfiladeiro. A águia encontraria a linha
212

telefônica em segundos. Mas com a magia em baixa, olhar através dos


olhos de Turgan não era uma opção. Turgan era um pássaro
inteligente, mas ela era apenas um pássaro. Dizer a ela para encontrar
um cabo sozinha era como perguntar a Lassie se Timmy caiu num
poço . Palavras como ‘cabo’ não tinham significado para uma ave de
rapina.

Em vez disso, caminhei por entre os escombros e os prédios


abandonados por mais de uma hora antes de finalmente encontrá-lo,
um único cabo telefônico, na beira do Desfiladeiro, preso em um poste
no topo de um prédio de três andares em ruínas. O telhado do prédio
sumira, deixando o interior exposto, e o alto poste de madeira estava
ancorado aos restos do piso superior com um monte de concreto.
Escalar o referido poste com a minha coxa machucada provou ser um
inferno, mas depois de deslizar algumas vezes e xingar em meia dúzia
de idiomas, finalmente cortei o cabo, desci e me sentei na beira do
andar de cima em ruínas, balançando meus pés sobre o abismo.

O Desfiladeiro se estendia à minha frente, mergulhando


profundamente abaixo, estreito neste local, com apenas alguns metros
de diâmetro. Uma floresta de espigões curvos de metal crescia no
fundo, subindo pelas laterais. Pilhas de lixo, sucata misturada com

A frase de efeito "Timmy caiu num poço", originada do programa de TV Lassie, é uma expressão idiomática comum na cultura popular
usada para efeito humorístico, especialmente quando deduzindo esse fato dos latidos de Lassie.
213

terra, cresciam aqui e ali, entre as carcaças destruídas de carros


abandonados, desmanchando-se lentamente no Desfiladeiro. A névoa
se espalhava entre os espigões e os montes de lixo, enrolando-se em
longos tentáculos, tentando chegar até a beira e os prédios
abandonados erguendo-se do outro lado. Mais à esquerda, um pássaro
deslizou acima da abertura. Vendo o pássaro daqui, parecia uma
cegonha. As aparências enganavam. Honeycomb gerava pássaros
Estinfálicos com penas de ferro que cortavam como lâminas de
barbear.

Minha perna doía. Outras partes de mim também doíam, mas a


perna precisaria de atenção quando chegasse em casa. As pílulas de
Nick diminuíram um pouco a dor, mas não o suficiente para amenizá-
la. Ficar sentada parecia um luxo pecaminoso.

Eu tinha sido descuidada. Deveria ter antecipado o ataque de


Jasper vindo de cima. Não fiz porque estava focada em salvar o
menino. Agora eu estava pagando por isso.

O rosto de Dougie apareceu diante de mim. Valeu a pena.

De acordo com a mitologia grega, as Aves do Lago Estínfalo eram enormes criaturas aladas, que de tão grandes
podiam barrar a luz do sol. Suas asas, cabeça e bico eram feitos de ferro, com o qual devoravam os frutos de toda a região e acabando com
todos os recursos.
214

Quando eu era adolescente, teria atirado com uma arma de fogo


em Jasper. Naquela época, usar uma espingarda ou um rifle não era
um problema. Eu costumava ser uma boa atiradora. Não tão boa
quanto Andrea Medrano, mas decente o suficiente. Agora poderia
acertar um alvo com um arco montada a cavalo a galope, mas as
armas de fogo não eram mais uma opção para mim.

Todos os seres vivos geravam magia. Alguns a armazenavam,


como os metamorfos, o que os permitia ainda se transformar durante
a tecnologia. Outros, como eu, a emanavam. Ao longo dos anos,
aprendi a encobrir essas emanações. Era como colocar uma capa por
cima, escondendo meu poder durante as ondas mágicas. Sem essa
capa eu era como um gerador mágico em miniatura. Eu emanava
magia mesmo durante a tecnologia e por isso causava um curto-
circuito em tudo que funcionava ao meu redor com a tecnologia.
Armas não funcionavam mais para mim. Carros a gasolina eram uma
aposta. Às vezes eu podia dirigir um, às vezes nem o motor ligava.

Vovó me avisou que isso aconteceria se eu reivindicasse minha


herança mágica. Kate costumava ter o mesmo problema, e eu achava
isso engraçado. Sua magia causava curtos-circuitos em telefones e
armas. A maioria das vezes que Kate tentava fazer uma ligação, o
telefone não funcionava, então ela desligava o aparelho chateada e
desistia. Se eu tentasse no mesmo momento fazer a ligação, o telefone
215

funcionava perfeitamente. Agora eu estava pior do que ela. Pelo


menos Kate poderia disparar uma arma. Tudo bem que ela não
conseguiria acertar a água ao redor de um barco no meio do lago, mas
a arma dispararia. Acabei me pegando com um sorrisinho no rosto
diante dessas lembranças.

Ainda assim, trocar a capacidade de usar a tecnologia pela


habilidade de usar a magia foi uma escolha fácil na época. Eu queria
saber de onde vim e do que minha linhagem era capaz. Não me
arrependi, mas pagava por isso até hoje. Ainda assim foi a opção mais
sábia. A magia venceria, eventualmente

Sentei-me em silêncio, apreciando ficar quieta. Os Honeycombes


pareciam não ter pressa em consertar o telefone. Eles provavelmente
nem notariam por algumas horas, até que um deles tentasse usar o
telefone e percebesse que a linha estava muda.

Eu precisava de um telefone na minha casa. Os telefones


funcionavam para mim na metade do tempo, e cinquenta por cento
era melhor do que zero.

Eu estava na cidade há mais de vinte e quatro horas e até agora


não fiz nenhum progresso. Matei um Ma’avir medíocre, uma vitória
insignificante. Descobri que o assassinato do pastor Haywood estava
216

conectado a algum artefato mágico desconhecido. Matei o rei de


Honeycomb. Nada disso me fez ficar mais perto de parar Moloch.

Parecia que um enorme relógio da desgraça pairava sobre minha


cabeça, contando cada segundo.

Eu me inclinei para trás. Não, não poderia pensar assim. Se eu


me desanimasse, ficaria desleixada e desesperada. Tinha que ter
paciência, não importa o quanto isso custasse.

Um grito agudo rolou através da abertura. Sim, um pássaro


Estinfálico. Derek e eu costumávamos vir aqui para catar as penas
uma ou duas vezes por ano. As penas de metal davam boas facas que
nunca precisavam ser afiadas. Nós embalávamos um almoço e
passávamos um dia, vasculhando o Desfiladeiro, atrás de penas caídas
e depois comíamos em uma das ruínas como esta.

Quando nos conhecemos, eu tinha treze anos. Ele tinha dezoito.


Naquela época, eu só tinha tido um namorado na minha curta vida,
uma doninha viscosa chamada Red que queria roubar minha magia.
Pensei que ele era incrível até que me vendeu para os demônios do
mar. Então Derek entrou em cena, como um sol escaldante, e a poça
triste de escória que era Red evaporou.
217

Se eu fechasse os olhos, poderia imaginar Derek sentado ao meu


lado, pernas longas esticadas na borda, rosto cheio de cicatrizes
voltado para o sol, os olhos fechados.

Um sentimento estranho tomou conta de mim. Os minúsculos


pêlos na parte de trás do meu pescoço se ergueram.

Algo estava me observando do outro lado da fenda. Examinei as


ruínas.

Nada.

Quem quer que fosse, estava bem escondido. Mas estava lá.

O peso do olhar do observador pressionou em mim. Como ser


observada por um grande predador pronto para atacar. Todos os
nervos do meu corpo ficaram em guarda. Eu já tinha sentido isso
antes, quando cheguei à cidade. Algo tinha me observado da
escuridão enquanto eu atravessava a ponte, algo perigoso e
assustador, e aqui estava novamente. Estava me rastreando? Por quê?

Levantei minha mão, sorri e acenei.

Está certo. Sei que está aí. Saia para brincar.

Nada. As ruínas continuaram paradas.


218

Ainda estava lá, me observando. Todos os meus instintos me


avisaram que era uma ameaça, o tipo de ameaça que eu não queria
enfrentar com uma perna machucada. A simples parte animal em mim
queria ficar muito quieta e torcer para que aquilo que me observava
fosse embora. A parte louca humana queria rir da cara do observador
até que o medo desaparecesse em um flash de adrenalina.

Suspirei exageradamente, levantei-me e fui embora, tentando não


mancar. Eu voltaria para o Desfiladeiro mais tarde.
Esperançosamente, a magia estaria em alta. Se meu observador
silencioso decidisse se aproximar e me olhar mais de perto, seria uma
surpresa divertida.

inundou o mundo em um piscar de olhos. A dor na minha


coxa pulsou quente, mas depois diminuiu para uma dor tolerável. Eu
me movia pelo asfalto destruído com os olhos semicerrados para o sol
poente. Ainda em casa eu tinha tomado uma das misturas de ervas da
minha tia Elara. A onda ativou a magia da mistura. Se eu conseguisse
não esticar muito a perna, estaria quase totalmente curada amanhã.
219

Depois do Desfiladeiro Honeycomb, fui ao Entroncamento Jesus


e conversei com os representantes de todas as três igrejas. Nenhum
deles admitiu ter entrado em contato com o pastor Haywood ou
indicado alguém a ele nos últimos seis meses. Outro beco sem saída.

Em seguida, fui até o escritório municipal de serviços públicos,


mostrei meu distintivo e algumas notas de cem dólares e pedi que
instalassem uma linha telefônica à minha casa. O dinheiro deu-lhes
um incentivo e o distintivo de agente da lei ofereceu a eles uma
desculpa conveniente para me colocar na frente da fila, então eles
enviaram um técnico comigo apesar de que o dia já estava acabando.
Dizer que o técnico não gostou da minha casa ou da localização seria
um eufemismo, e foi por isso que tive que ficar do lado de fora entre
ele e Unicorn Lane para oficialmente ‘protegê-lo daquele lugar
amaldiçoado’.

O técnico do telefone veio caminhando. Ele era baixo e largo, um


pouco gordo, mas forte. Tinha cabelos escuros encaracolados e pele
morena, e falava com um leve sotaque. Possivelmente marroquino,
mas não dava para ter certeza e eu não era suficientemente mal-
educada para perguntar.

— Bem, a linha está instalada, mas não saberemos se funciona até


que a magia vá embora novamente.
220

Essa era a história da minha vida. Quando precisei de magia para


lutar com os enormes Honeycombes, não havia nenhuma. Mas
quando eu queria um telefone, toda a magia que podia existir apareceu
de repente.

— Obrigada, —eu disse a ele. — Vou acompanhá-lo.

Ele olhou para Unicorn Lane. Cerca de três quarteirões abaixo,


uma pequena cachoeira havia surgido de um antigo arranha-céu. Um
líquido azulado, cintilando com redemoinhos na cor lavanda,
derramava-se sobre a ruína e lentamente deslizava para baixo em um
riacho de um metro de largura. Parecia nojento.

— Aceito, —disse o técnico. — Vou pegar minhas ferramentas.


Se a linha não funcionar amanhã, avise-nos.

O técnico voltou com sua caixa de ferramentas e descemos a


Rotatória Peachtree, em direção ao sul, em direção à civilização.
Minha perna começou a doer novamente. Quando eu voltasse para
casa, teria que entoar cânticos de regeneração.

A Rotatória Peachtree corria para a 15ª rua. Costumava ser um


cruzamento de três vias e agora era mais como uma pequena rotatória,
com a extremidade oeste da 15ª rua isolada por montes de entulhos
221

de condomínios destruídos. A única saída era pela outra extremidade,


o Sudeste.

Um pequeno shopping center apareceu na rotatória, apenas dois


comércios estavam abertos: uma barraca de pierogi dirigida por um
homem loiro sorridente e uma loja móvel de conveniências operado por
uma mulher mais velha de pele morena. A loja móvel vendia
suprimentos de primeiros socorros e necessidades: sal, produtos de
higiene, curativos e assim por diante. A barraca de pierogi vendia
deliciosos pierogis. Eu os provei esta manhã a caminho de St. Luke's.
A rotatória estava (agora) deserta, exceto por um mendigo solitário
sentado em um cobertor surrado perto dos escombros.

O técnico acenou para mim e se dirigiu para sua van, estacionada


ao lado da barraca de pierogi. O mendigo me olhou. Magro, velho,
com a pele castanha escura enrugada, ele abraçava os joelhos no
cobertor. Seu cabelo fino e oleoso caía em longas mechas sobre o
rosto. Seus sapatos, botas velhas e surradas, esperavam ao lado dele.
A sujeira manchava seus pés descalços. O homem permanecia quieto,
daquela maneira cuidadosa que as pessoas ficam quando sentem dor.

Pierogi é um tipo de pastel cozido originário da Polônia e oeste da Ucrânia, onde é chamado Pyrohy. Pierogi
são pasteis de massa primeiro cozidas e depois assadas ou fritas, normalmente na manteiga com cebolas, tradicionalmente recheados com
batata, chucrute, carne moída, queijo ou frutas
222

Ele parecia tão sozinho.

O vento me soprou, trazendo consigo uma pitada de urina


rançosa e o cheiro forte de um corpo humano que não tinha sido
lavado por muito tempo.

Eu fui até a loja móvel. A mulher mais velha estava se preparando


para fechar a loja e fingiu não me ver. Recusei-me a me mover.
Finalmente, ela olhou para mim. Peguei quarenta dólares e coloquei
no balcão. — Meias masculinas e aspirina.

Ela olhou para o mendigo atrás de mim, depois para mim,


suspirou, colocou dois pares de meias na prateleira dobrável e
acrescentou um pequeno frasco de aspirina, vinte comprimidos.

— Obrigada. —Fui até a barraca de pierogi, comprei o de recheio


de cogumelo—assim não teria risco de ter carne de rato dentro, e levei
para o mendigo com as compras que fiz na loja móvel.

Eu me aproximei, o homem se esquivou de mim, recuando.


Deixei as compras, a comida e vinte dólares na ponta do cobertor e
fui embora.

Quando cheguei em casa, a menos de um quilômetro de distância,


minha perna estava em modo de protesto total. Entrei na casa,
223

tranquei a porta atrás de mim e fui para o meu santuário. Alcancei a


porta oculta e parei.

Alguém estava lá dentro.

Não ouvi ninguém, não vi ninguém, mas sabia com absoluta


certeza que alguém tinha invadido a minha casa.

Passei pela porta, fechei a porta atrás de mim e deslizei a barra


pesada no lugar, prendendo o intruso dentro comigo.

Tudo quieto. Água borbulhava no leito do riacho. As plantas


espalhando suas folhas, ansiosas pela luz.

Estalei meus dedos.

Uma forma escura se lançou contra mim da esquerda, voando


pelo ar como se tivesse asas. Desviei, agarrando o intruso pelo braço,
e o virei no ar, usando todo o meu peso para derrubá-lo. Suas costas
bateram no chão. Ele rolou, com as pernas sobre os ombros, quicou
como se fosse feito de borracha e se agachou a três metros de distância,
com um grande sorriso no rosto.

Droga, Conlan. — Você precisa trabalhar no seu ataque.


224

Olhos cinza riram de mim. — E você precisa trabalhar em sua


audição. Fiquei um metro atrás de você por um minuto inteiro antes
de entrar em sua casa. Você nunca se virou.

Então, ele entrou antes que a magia o atingisse. Isso explicava


como ele passou por minhas proteções. — Lembra-se do que eu disse
sobre não estragar meu disfarce?

Ele encolheu os ombros. — E há alguém aqui para nos ver? Não


vejo ninguém. —Ele fingiu estar olhando através das plantas. — Você
está escondendo testemunhas em seus lindos arbustos?

O problema com Conlan era que ele tinha a confiança inabalável


de seu pai e a língua espertinha de sua mãe.

Ele também era neto de Roland. Já falava frases completas


quando tinha dezoito meses de idade e quebrava encantamentos
complexos como se fossem sementes de girassóis quando tinha cinco
anos. Matemática era brincadeira de criança, engenharia era uma
diversão divertida, química era um hobby e ele não levava nada a
sério.

Seus olhos brilharam. — Você tem comida?

E ele era um metamorfo leão de nove anos de idade. — Talvez.


225

Eu fui para minha geladeira. Tamyra Miller havia estocado


comida nela de acordo com minhas especificações. Vamos ver o que têm
aqui. O que eu poderia fazer que fosse rápido e gostoso?

— Presunto, frango, carne de veado?

— Sim!

— Normalmente, eu cobro um abraço por refeição, mas para você


será grátis.

Eu não era fã de forçar abraços em crianças. Se Conlan quisesse


me dar um abraço, agora ela já sabia que eu queria um. Ele fingiu
suspirar, se aproximou e me abraçou. Fez isso com muito cuidado,
usando uma fração de sua força, ciente de que estava abraçando um
humano. Eu finalmente vi meu irmão pessoalmente depois de oito
longos anos.

— Ei, —eu disse a ele.

Ele sorriu para mim e me soltou.

Peguei um pedaço de presunto salgado, cogumelos silvestres,


quatro fatias de bacon, um pouco de queijo cheddar e muçarela,
peguei uma tábua de cortar e minha faca e liguei o fogo no fogão.
Conlan acomodou-se em uma cadeira junto à mesa da cozinha.
226

— Você não está feliz em me ver?

— Claro que estou feliz em ver você. Mas agora seu cheiro está
em toda parte e Ascanio sabe onde eu moro.

Conlan franziu o rosto, mostrando-me as pontas de suas presas.

Coloquei a panela no fogo, joguei bacon nela e comecei a cortar


o presunto em pedaços pequenos

Conlan girou na cadeira, inclinou-se para o lado até ficar quase


na horizontal e tirou uma esfera de metal do pedestal mais próximo.
Era do tamanho de uma bola de basquete, uma bola de delicada renda
de metal e engrenagens. Eu coloquei seis delas ao redor do santuário.

Conlan a jogou sobre sua cabeça, enviando uma faísca de magia


através dela. A esfera se desdobrou acima de sua cabeça em uma
monstruosa aranha de metal com mandíbulas afiadas para fora, garras
de metal prontas para matar. Por uma fração de segundo ela pairou
acima dele, parecendo pronta para devorar sua cabeça, então a
pequena faísca de magia que a alimentava acabou e ela caiu, se
dobrando novamente em uma bola. Conlan a agarrou com a outra
mão. Saber que alguém tinha o controle necessário para se conseguir
fazer isso deixaria os sábios da Nova Shinar tontos de alegria. Conlan
girou a esfera entre os dedos e a jogou para cima novamente.
227

Esfera, aranha, esfera, aranha, esfera ...

Terminei com o presunto, virei o bacon e passei a fatiar os


cogumelos. — Qual é o problema com você e Ascanio?

— Eu não gosto dele.

Cortei o queijo em fatias finas. — Ele te fez alguma coisa?

Conlan encolheu os ombros. — Isso não é importante.

— Certo, vou morder a isca. Então, o que é importante?

Peguei o bacon, derramei a maior parte da gordura em uma tigela


e joguei os cogumelos e o presunto na frigideira.

— Eu quero ajudar.

— Ajudar com o que?

— Ajudar com o segredo que você e o vovô tanto conversam


quando eu não estou lá. O segredo que te faz ficar aqui nessa casa e te
impede de voltar para a nossa casa.

— Ah. Esse segredo.

Tirei seis ovos, os quebrei na frigideira e os movi para a frente e


para trás com minha espátula.
228

Conlan, como seu pai, não suportava ovos moles. Ele já tinha
reclamado disso antes para mim, quando falamos sobre as refeições
escolares. E como seu pai e a maioria dos metamorfos, sua tolerância
a comida apimentada era quase inexistente. Se eu estivesse
cozinhando só para mim, já teria jogando jalapeños na frigideira.

Salguei a mistura e me virei para pegar o queijo.

Minha tábua de cortar não estava lá. Conlan estava sentado à


mesa, segurando a tábua de cortar com a pilha ordenada de fatias de
queijo fora do meu alcance.

— É sério?

— Você está evitando me responder.

— Dê-me o queijo e conversaremos sobre isso.

Ele entregou o queijo. Joguei sobre os ovos, mexi muito bem e


tirei a panela do fogo. Ele me observou. Peguei um garfo na gaveta,
coloquei um prato grande, coloquei os ovos e o queijo derretido nele
e empurrei na direção dele.

A pimenta-jalapenho ou simplesmente jalapenho é uma pimenta doce e de uma variedade média-grande


de Capsicum annuum originária do México, valorizada pela sua calorosa ardência na degustação.
229

Ele provou. — Parece com o da mamãe.

Bem, claro que parece. — Quem você acha que me ensinou a


cozinhar?

— Você se lembra quando eu tinha sete anos e tive um problema


com uma turma de druidas na escola?

— E daí? —Os druidas tinham muita magia que afetava


diretamente os animais. Conlan tinha sete anos e o grupo de crianças
que tentou atormentá-lo tinha o dobro de sua idade. Ele se recusou a
contar a Kate ou Curran sobre isso, e não quis recorrer à violência
porque não queria ser expulso.

— Se lembra do que me disse? Você disse: ‘Você tem que me


contar essas coisas. Eu sou sua irmã.’ E no dia seguinte, quando todos
saíram das salas para o intervalo do almoço, Roman estava esperando
por mim no pátio da escola, vestido em seu manto preto e prata. Ele
estava com aquele cajado dele, com a cabeça de pássaro gritando com
todo mundo e, quando me aproximei, o pássaro começou a ronronar.
Ele me deu um grande abraço e anunciou em alto e bom som que
tinha me trazido um pierogi que a mãe dele tinha feito especialmente
para mim. Almoçamos e conversamos sobre a família e fizemos
230

planos de como iríamos reunir todo mundo para a Koliada e o Natal.


Nunca mais tive problemas com os druidas depois disso.

Roman era um Volhv negro, um sacerdote pagão eslavo. Ele


servia Chernobog, o deus da decadência, da guerra e da escuridão.
Todos os Neopagãos estudavam desde cedo sobre outros Neopagãos,
e Roman era amplamente conhecido. Nos registros de estudo ele era
listado com o título de aviso ‘Não o provoque’. Sua mãe, Evdokia, era
uma das bruxas da Oráculo das Bruxas. Tive aulas com ela quando
era jovem, e foi assim que Sienna e eu nos tornamos amigas. Ligar
para Roman e pedir a ele esse pequeno favor não foi problema. O
sacerdote do deus de todo o mal adorava ajudar as pessoas. Era sua
chance de brilhar, e ele aproveitava cada oportunidade ao máximo.
Kate fez algo parecido por mim quando eu era adolescente.

— E daí?

Ele levantou a cabeça. Mal restava a metade da comida no prato.


— Você tem que me contar essas coisas. Eu sou seu irmão.

Ah.

Koliada ou koleda é um antigo festival de inverno pré-cristão eslavo e báltico. Posteriormente, foi incorporado
ao Natal.
231

Mas ele tinha apenas nove anos. Os Ma’aviris eram perigosos


como o inferno.

Conlan se inclinou para frente, seu olhar fixo e direto. — Eu não


sou um bebê.

É como se ele fosse telepático às vezes.

— Você não é um bebê, mas frequentemente age como um. Não


gosta de estudar, não treina e não se esforça o mínimo para evitar que
o avô perca a paciência ...

Conlan ergueu a mão. Garras estouraram de sua carne. A mão se


esticou, os dedos humanos se alongaram em dedos monstruosos.
Pêlos pretos como o carvão cobriram a nova mão. Ele cortou seu
antebraço com uma garra. Um filete de sangue saiu do corte, o sangue
envolveu sua mão e se transformou em uma manopla .

Parece que alguém esteve praticando

— Deixe-me ver a amplitude do movimento.

A manopla, a peça da armadura protetora das mãos, tornou-se conhecida por diversos nomes como Guante, além
de possuir variações e evoluções como a Guante de Presa. As manoplas consistiam em luvas confeccionadas em metais ou peles.
232

Ele moveu os dedos, dobrando-os em direção à palma da mão,


dedo mínimo com polegar. Garras cobertas em uma armadura de
sangue cortaram o ar. Os pêlos da minha nuca se arrepiaram.

Fazer armas e armaduras de sangue era uma das duas habilidades


mais importantes para a linhagem Shinar.

Lidar com o Shar, que é o desejo irresistível de reivindicar terras


e defendê-las de todas as ameaças, era o outro.

A armadura de sangue tinha seus limites e as armas de sangue


quebravam após algumas horas de uso, sua magia se exauria, mas
enquanto duravam, tornavam seu usuário praticamente invulnerável.
Uma lâmina de sangue cortava aço sólido como se não fosse nada.

Era uma habilidade que estaria fora do meu alcance se não fosse
por Kate.

Anos atrás, fui mordida por um metamorfo e meu corpo se


rebelou contra mim. Eu teria ido a Loup, mas o médico-chefe do
Bando, Doutor Doolittle, me sedou, atrasando o inevitável para
permitir que Kate e Curran se conformassem com o meu destino. Eu
ia ser sacrificada. Em um último esforço para me salvar, Kate tirou o
sangue do meu corpo com magia e o lavou com o dela, expurgando o
Lyc-V de mim.
233

Seu sangue corria em minhas veias e me deu os poderes de sua


linhagem. Mesmo depois que minha transformação me alterou para
sempre, mantive o poder da magia do sangue de Shinar. Depois que
Erra e eu despertamos seu povo, Erra me nomeou sua herdeira oficial.
Alguns dos conselheiros levantaram dúvidas sobre se eu era ou não
adequada. Entrei na sessão do conselho, joguei um balde de sangue
de vampiro em meus pés, cortei meu braço e me vesti com uma
armadura de sangue. Ninguém jamais questionou meu direito de
governar novamente.

Conlan girou o pulso. A manopla se encaixava nele como uma


segunda pele. Sua construção era perfeita. Um ano atrás, ele só podia
revestir suas garras. Deve ter levado meses de trabalho intenso. Eu me
perguntava por que ele passava tanto tempo com meu avô. Cada vez
que eu aparecia, Conlan estava lá.

— Eu treinei, —disse meu irmão. — Quero te ajudar.

Ele estava olhando para mim com aquela determinação obstinada


que eu costumava ver no rosto de Kate. Conlan tinha se decidido.
Descobriria o que estava acontecendo mais cedo ou mais tarde.
Minhas escolhas haviam se reduzido a duas opções: contar a ele eu
mesma e controlar a narrativa, ou deixá-lo descobrir por conta própria e
dar adeus as chances de controlá-lo.
234

— Irei confiar em você com algo importante.

— Eu sei.

— Uma palavra descuidada e acabaremos com o tipo de desastre


que ninguém pode consertar.

— Compreendo.

— O que você sabe?

— Sei que se você for para casa, mamãe morrerá.

Ah. — Foi vovô?

Ele assentiu. — Ele me disse há oito meses. Eu não contei a


ninguém. Entendo a gravidade da situação. Deixe-me ajudá-la.

— É fundamental que seus pais não saibam.

— Compreendo.

— Você deve aprender tudo o que puder sobre Moloch.

— Quem é ele?

— O inimigo. Um deus antigo que renasceu como um avatar. A


Bruxa do Oráculo predisse um futuro em que ele matará sua mãe.
235

Temos tentado alterar esse futuro, mas até agora falhamos. Se sua mãe
descobrir sobre a profecia, ela morrerá.

Conlan ficou sentado muito quieto. O medo cintilou nos olhos


cinzentos dele. Foi assim que reagi na primeira vez que entendi o
significado da profecia.

— O olho que você tirou, pertencia a Moloch? —Ele perguntou.

— Sim.

— É por isso que está diferente?

— Sim.

Puxei um livro sem título da prateleira e coloquei na frente dele.


Ele o abriu e olhou para as páginas preenchidas com minha caligrafia
e ilustrações de sigilos.

— Isso é tudo que sei sobre Moloch agora. Este livro não pode
sair desta casa. Leia aqui, guarde na memória. Quando terminar, vá
visitar Roland e consiga dele o máximo de informação sobre Moloch
que puder. Moloch tentou invadir Shinar no passado. O vovô pode
lhe contar mais. Preciso que você se prepare para lidar com o inimigo.
Preciso que proteja sua mãe. Se detectar qualquer sinal de Moloch ou
de seus sacerdotes idiotas, deve me contar imediatamente. Faça tudo
o que puder para impedir que Kate e eles interajam.
236

O grito distante de uma águia ecoou em minha mente. Turgan.

Deixei a visão da águia se desdobrar em minha mente. A casa de


Nick entrou em foco, como uma visão tecida em uma rede de fios
brilhantes. Turgan virou a cabeça. Uma grande forma de lobo corria
na direção da visão de Turgan, correndo a toda velocidade pela rua
escura.

Que diabos?

O lobo parou na porta da frente de Nick. Era enorme, maior do


que qualquer lobo selvagem que eu tinha visto. Um metamorfo. Suas
formas animais eram maiores do que seus animais selvagens
correspondentes.

O lobo sentou-se sobre as patas traseiras e gentilmente arranhou


a porta. Um momento e a porta se abriu. O corpo do lobo se alongou
e, em um redemoinho de músculos e ossos, uma mulher nua se
levantou na porta de Nick, longos cabelos loiros caindo até a cintura.

Hummm ...

A mulher jogou os braços em volta de Nick. A águia teve um


vislumbre de seu rosto e eu quase caí da cadeira. O que?
237

Ele a ergueu nos braços, a carregou para dentro e fechou a porta


com um chute atrás dele.

Nikolas Feldman, o Cavaleiro-Protetor do Núcleo da Ordem de


Atlanta, o modelo da virtude cavalheiresca, estava tendo um tórrido
caso com Desandra Kral, a alfa do Clã Lobo.

Pulei da cadeira. Isso eu tinha que ver de perto.

— Terra para Julie? —Disse Conlan.

— Tenho que sair.

— Vou com você.

— Não dessa vez. Mas há algo que pode fazer por mim esta noite.
Leia o livro primeiro. Em seguida, vá até as ruínas de Boulevard, na
extremidade do Desfiladeiro Honeycomb. Uma dessas ruínas tem um
poste de madeira com uma linha telefônica saindo dele. Cortei esta
tarde. Se o consertaram, corte novamente. Não deixe ninguém ver
você.

Meu irmão sorriu. — Feito.

Eu disse a ele meu número de telefone. — Não escreva em


nenhum lugar. Me ligue amanhã quando a tecnologia chegar e me
diga como foi.
238

Eu estava quase na porta do santuário quando ele gritou: — Julie


...

— O que foi?

— Você culpa a mamãe pelo o que aconteceu tempos atrás?

Eu parei e me virei. Quando Kate lavou meu sangue com o dela,


criou um vínculo mágico entre nós. Esse vínculo deu a ela a
capacidade de suprimir minha vontade. Por muito tempo fiquei
magicamente amarrada a Kate. Eu estava ciente dela o tempo todo.
Não conseguia identificar sua localização exata, mas sabia em que
direção ir para encontrá-la a quilômetros de distância. Sentia quando
ela estava ferida e, se ela me desse uma ordem direta, eu estava
compelida a obedecer.

Kate só me deu esse tipo de ordem uma vez e pelos melhores


motivos. O choque de ter minha vontade própria esmagada me
assombrou por anos. Foi a violação íntima mais profunda que já
experimentei.

O vínculo não existia mais. A morte de Kate o havia cortado. Ela


morreu por meros segundos, mas suficiente para me libertar.

Ficar livre do vínculo de sangue foi uma agonia. O laço rompido


deixou para trás uma ferida aberta que queimou e corroeu minha
239

alma. Levei muito tempo para curar. Meu tio Hugh e eu tínhamos isso
em comum. Ele também havia sido vinculado ao vovô. Se não fosse
por ele, eu teria sofrido mais.

Preferiria morrer a experimentar isso de novo. E isso não era


apenas uma frase vazia. Se alguém tentasse me vincular novamente,
eu cortaria minha própria garganta.

Conlan esperava uma resposta.

— Eu não a culpo. Ela estava tentando salvar minha vida. Amo


muito Kate, Conlan. Ela, Curran, você e minha avó são as pessoas
que mais prezo. Vocês são a minha família. Neste vasto mundo, com
todos os seus conhecimentos, riquezas e prazeres, apenas as pessoas
que amamos são mais importantes. Leia o livro. Ligue-me amanhã.

Eu saí.

cheia brilhava no céu noturno como uma moeda de ouro branco,


entrando e saindo de nuvens ralas. Sentei-me nas costas de Tulipa,
240

debaixo de uma grande árvore na beira do que costumava ser o Parque


West End. Décadas atrás, as árvores dentro do parque se revoltaram,
alimentadas por magia. Elas cresceram a um ritmo chocante,
espalhando seus galhos, esticando suas raízes até o parque se tornar
uma floresta.

À minha frente, do outro lado da Avenida Lucile, um sólido


prédio de dois andares se erguia no meio de muita ruína. Construído
como uma fortaleza, com grossas paredes de pedra e janelas
protegidas por grades de aço e prata, o prédio estava isolado, o vizinho
mais próximo a quinhentos metros de distância. Nick gostava de sua
privacidade.

Um carvalho solitário espalhava galhos enormes perto da casa.


Tecnicamente, o carvalho era um problema na segurança, já que
alguém podia se esconder em seus galhos, como Turgan estava
fazendo agora, mas Nick claramente não se importava. Qualquer
coisa que pudesse escalar aquele carvalho provavelmente podia
escalar o prédio também, e a árvore sombreava a casa. Numa época
em que o ar-condicionado era um luxo inacreditável, árvores
frondosas que faziam sombras valiam seu peso em ouro.

Levei cerca de trinta minutos para chegar aqui pelas ruas desertas
e eu havia me desconectado de Turgan na maior parte do tempo.
241

Escutar a privacidade de Nick e Desandra estava quase no último


lugar na lista de coisas que eu queria fazer.

A brisa noturna soprou em meu rosto. Um bom alívio depois do


calor do dia. A cidade ao meu redor estava vazia. Qualquer pessoa
com uma migalha de bom senso se escondia dentro de casa à noite,
atrás de paredes grossas e portas robustas.

Por que Desandra? Eu não imaginaria aqueles dois juntos em um


milhão de anos. Nick era uma pedra em uma tempestade, calmo,
firme, estável, nunca perdia a paciência. Desandra era um
redemoinho louco, engraçada, imprevisível e muitas vezes
descontroladamente inapropriada. Ela dizia coisas que faziam Boudas
corar.

Ela também era mortal.

Anos atrás, Kate e Curran partiram para o Mediterrâneo com


alguns pesos-pesados do Bando, atrás de panaceia, um remédio de
ervas que reduz a ocorrência de lupismo. Eles voltaram com
Christopher, que agora era o marido de Barabas, e com Desandra e

O mar Mediterrâneo é um mar entre a Europa, África e Ásia, tendo abertura e comunicação
direta com o Atlântico através do estreito de Gibraltar e o Oriente Médio como limite oriental. A sua área é aproximadamente 2,5 milhões de
quilômetros quadrados, sendo o maior mar interior continental do mundo.
242

seus filhos gêmeos recém-nascidos. Ela matou pela primeira vez em


solo americano dois dias depois de se juntar ao Bando e dentro de um
ano abriu caminho para se tornar a Alfa do Clã Lobo.

Desandra estava usando Nick? Eu não conseguia imaginar para o


quê. Bem, eu poderia imaginar, mas não queria.

Se eu demorasse mais um pouco, eles podiam adormecer. Fechei


meus olhos e cuidadosamente tentei ouvir pelos ouvidos de Turgan.

— ... assassinato de Haywood, —disse Nick.

Ah que bom, bom, bom. Estão conversando. Ótimo.

— As pessoas boas não duram, mas os idiotas vivem para sempre, —


Desandra murmurou.

Afundei-me na teia brilhante dos olhos de Turgan e os vi pela


janela. Estavam deitados na cama, a cabeça de Desandra apoiada no
braço de Nick, os cabelos dourados caindo sobre o travesseiro em uma
cortina emaranhada.

— Onde estava Desimir na noite de quinta-feira passada? —Nick


perguntou.

— Onde ele geralmente está, em casa.

— Você tem certeza?


243

Desandra se virou, apoiando a cabeça no cotovelo dobrado para


poder olhar para ele. — Você acha que foi meu filho quem assassinou
Haywood?

Seu tom não era hostil, apenas uma suave repreensão.

— O assassino voou pela claraboia, rasgou o corpo em pedaços com suas


garras e depois saiu pela claraboia. Como um felino faria.

Desandra suspirou.

— Ele está passando pela puberdade, —disse Nick.

— Sim. Entre ele e Miladin, bato antes de abrir qualquer porta da casa. Cada
meia é uma potencial mina terrestre. Eu os faço lavarem suas próprias roupas.

Havia algo errado com Desimir? Desandra teve uma gravidez


estranha, seus dois filhos nasceram ao mesmo tempo, mas tinham pais
diferentes. Miladin era um lobo e Desimir era um lince. Eu fui babá
de ambos quando eles eram crianças uma dúzia de vezes. Eles eram
bebês metamorfos normais. A cor da trilha da magia deles era o
mesmo verde dos outros metamorfos. Por que Nick pensaria que
Desimir poderia voar? Isso ficava cada vez mais e mais estranho.

— Você o vê todo fim de semana, —Desandra disse. — Por que não


pergunta a ele?
244

— Porque não quero que ele pense que eu suspeito dele.

— Mas você suspeita.

— Não, eu não. Mas outras pessoas podem, e se isso acontecer, quero estar
seguro de todos os fatos. Se tenho que defendê-lo, preciso ser capaz de dizer
honestamente onde ele estava no momento do assassinato. Se me disser que ele
estava em casa, acreditarei em você. Só preciso que você tenha certeza de que
podemos provar isso.

Desandra suspirou novamente. — Foi comido? O corpo de Haywood?

— Eles pegaram o coração dele, mas não o comeram.

— Bem, aí está sua resposta. Nós dois sabemos o que meu filho é. Ele
também sabe o que é. Nós o criamos bem. Ele é um garoto inteligente. Não tem
interesse no poder ou em se transformar em um monstro. Ele passou a quinta-
feira em casa fazendo o que costuma fazer, que é ler histórias em quadrinhos
antigas e ouvir música. Há meia dúzia de pessoas além de mim e Miladin que
podem confirmar isso.

— Bom.

Desimir não teve nada ver com o assassinato. Não importa em


que ele se transformasse, sua magia primária era a de um metamorfo.
Lyc-V deixava um rastro de magia com um quilômetro de
comprimento e cobria os rastros de qualquer outra magia que uma
245

pessoa poderia ter. Anos atrás, antes de eu partir, Curran se alimentou


de bestas divinas para ganhar mais poder e salvar Kate da morte. Ele
ficou a um fio de cabelo de ser uma divindade de verdade, mas a cor
da trilha principal de sua magia ainda era verde. A cor da trilha da
criatura que matou o pastor Haywood era prata dourada .

— Sei que as mães não sabem tudo, mas não o vejo fazendo isso. Ele é um
garoto de 13 anos. Pode imaginá-lo quebrando uma claraboia, rasgando um
homem santo que ele nunca viu e devorando seu coração?

— Não, —disse Nick. — E se ele quisesse, há alvos mais fáceis. Ele poderia
caçar moradores de rua do Warren e ninguém saberia por anos.

Desandra traçou sua mandíbula com as pontas dos dedos. —


Então por que perguntou?

— Ferara está farejando esse caso.

Desandra caiu sobre um travesseiro, com os braços no ar. — Claro


que ele está.

— Você acha que ele sabe sobre Desimir?

Conhecido como Gilver color (Gold/ouro + Silver/prata = Gilver ou prata dourada)


246

— Se sabe, Andrea ou Rafael disseram a ele. Kate nunca faria isso. Nem
Doolittle ou os ursos.

Ela estava certa. Além de Curran, eu era a pessoa mais próxima


de Kate e não tinha ideia do que diabos estavam falando. Este era
claramente um assunto do Bando, e pelo menos uma dúzia de pessoas
sabiam, mas de alguma forma todos que voltaram daquela viagem
conseguiram manter este segredo. A curiosidade estava me matando.

— Jim sabe? —Perguntou Nick.

— Eu imagino que sim. —Um rosnado baixo reverberou na garganta


de Desandra. — Ele era o chefe da segurança na época. Curran teria contado a
ele.

— Então, isso pode estar vindo do comando de cima ou dos Boudas.

— Jim e eu nunca tivemos um problema. Temos nossos desacordos, mas ele


não é mesquinho. Se ele suspeitasse de algo, teria alertado aos Ratos.

O Clã Rato comandava a segurança do Bando agora.

— Você conhece Jim, —Desandra continuou. — Tudo o que ele faz é


de acordo com as regras, com comprovantes de papel, recibos e tudo. Não, isso é
coisa dos Boudas.
247

— Ferara poderia também estar agindo por conta própria. Ele é ambicioso,
—Nick considerou.

— Ambicioso é o eufemismo do ano.

— Se Desimir fosse o responsável e Ascanio encontrasse alguma prova, ele


tentaria fazer chantagem ou levaria direto a Jim e tentaria afastar você do comando
de seu clã?

Um brilho dourado rolou sobre as íris de Desandra. Sua mão se


flexionou no travesseiro como se tivesse garras. — Não sei exatamente
qual é o jogo dele, mas vou descobrir.

Um arrepio percorreu minha espinha. Não, Desandra não


mudou. Nem um pouco. Ascanio não era estúpido. Por que ele iria
querer ferrar com ela?

Nick se inclinou para o lado, puxou um pedaço de papel de algo


que eu não podia ver e o estendeu para Desandra. — Cheire isso.

Ela sorriu. — Oh, querido, adoro essas suas sugestões criativas.

Nick revirou os olhos.

Desandra arrancou o papel dos dedos dele e o cheirou. — Por que


quer que eu cheire isso?
248

— Uma mulher apareceu no meu escritório. Este é um formulário que ela


preencheu. Ela tem uma insígnia que determina que eu a ajude de todas as maneiras
possíveis.

— Humm, excêntrico. Como faço para conseguir um desses?

— Você precisa prestar um ótimo serviço à Ordem.

Desandra sorriu e cheirou o papel novamente. — Oh, eu fiz isso.


Muitas, e muitas vezes.

Nick sorriu.

Oh meus deuses.

— Você já sentiu esse cheiro antes?

Desandra balançou a cabeça. — Não. Eu me lembraria. Por quê?

Nick franziu o cenho. — Há algo familiar nela. Eu não posso colocar


meu dedo nele, mas ...

— Mantenha seu dedo e tudo o mais longe dela. —Os olhos de Desandra
brilharam novamente. Ela brincou com o papel. — Ela é bonita?

— Bonita é a palavra errada.

A voz de Desandra caiu em território perigoso. — Qual é a palavra


certa?
249

— Régia. —Nick fez uma careta e estendeu a mão. — Eu preciso do


papel de volta.

— Não. —Desandra segurou o papel fora de seu alcance e farejou-


o novamente. — Eu gostei desse cheiro.

Minha magia me dava afinidade com cavalos, aves de rapina e


lobos. Eles gostavam do meu perfume.

— Estou falando sério. —Nick tentou alcançar o papel.

— Não vou te dar. É meu. —Desandra acenou com o papel e parou


abruptamente, seus olhos olhando diretamente para mim como duas
luas brilhantes. — Querido, onde está sua besta?

— Ao lado da cama. Por quê?

— Há uma águia na sua árvore.

— E?

— Eu cresci nas montanhas dos Cárpatos . Tínhamos muitas águias. Elas


dormem à noite.

Os Cárpatos formam uma cordilheira de 1.500 quilômetros na Europa Central e no Leste Europeu.
Eles se estendem do Oeste até o Leste em forma de arco, desde a República Tcheca até a Romênia. As montanhas Tatra, que ficam entre a
Eslováquia e a Polônia, são um parque nacional e têm vários picos com mais de 2.400 metros de altitude. Mais da metade dos Cárpatos fica
na Romênia, onde há florestas de píceas que abrigam ursos-pardos, lobos e linces.
250

Fui pega. Enviei um empurrão mental para Turgan. Vá!

A águia decolou. Joguei um punhado de acônito no ar, virei


Tulipa e saí a galope. A égua voou pelas ruas encharcadas da noite
como um fantasma. O vento sacudia meu cabelo. Mesmo que
Desandra me perseguisse, teria dificuldade em me alcançar, e o
acônito deixaria seu nariz sem olfato por algumas horas.

À frente, a Avenida Lucile Avenue terminava na Abernathy


Boulevard. Viramos à direita e seguimos para noroeste.

Um uivo assustador flutuou no vento da noite. Os pêlos na parte


de trás do meu pescoço ficaram arrepiados, uma reação instintiva
codificada em meus genes quando os seres humanos eram alimento
de bestas e temíamos ser comidos.

Veio da esquerda. Se Desandra tivesse me perseguido e uivado,


teria vindo da direita ou atrás de nós. Havia lobos a protegendo? Ela
poderia ter trazido uma equipe com ela. Eu tinha caído em uma
armadilha?

Enviei minha magia em um pulso. Ela se espalhou, procurando,


colidiu com corpos, e eu os senti, lobos, correndo rapidamente pelas
casas em ruínas à minha direita. Um, dois ...
251

Um segundo grupo, à esquerda, deslizando pela floresta coberta


de vegetação que costumava ser o cemitério Westview. Mais três,
todos maiores do que um lobo selvagem tinha o direito de ser.

Merda.

Outro uivo se levantou, uma canção cruel de caça, uma promessa


de dentes afiados e morte rápida. Um segundo uivo respondeu. A
matilha estava se aproximando.

Tulipa relinchou, mais por indignação do que por medo, e


começou a galopar. Subimos pela rua deserta e passamos pelas cascas
de casas abandonadas. Os lobos cantaram novamente. Gelo rolou na
minha espinha. Não era uma perseguição qualquer. Eu estava sendo
caçada.

Uma nova criatura vinha da direita, movendo-se rapidamente na


borda da minha magia. Chicoteando meus sentidos como uma faca,
emanando poder. Não era Desandra. Era algo mais. Algo selvagem,
algo maior ... movendo-se muito rápido.

Tulipa relinchou em alarme.

A criatura rasgou o campo da minha magia como uma adaga.

Tínhamos que ser mais rápidas.


252

Fizemos a curva. À frente, algo bloqueava a estrada. A lua espiava


através das nuvens. Uma carreta virada, ladeado por um monte de
carros esmagado.

Lobos irromperam da floresta atrás de mim.

Floresta à esquerda, carreta na frente. Virar à direita, na direção


leste da Interestadual-20, era minha única opção. Eu empurrei Tulipa
para o viaduto MLK. O viaduto na minha frente havia desmoronado.
Uma colina de entulhos bloqueava a estrada.

Um beco sem saída. Eles diminuiriam a velocidade por cima


desses escombros.

Deixei as rédeas frouxas, para que Tulipa pudesse parar sozinha.


Ela fez um amplo arco pelos escombros, diminuindo a velocidade, e
eu a virei em direção à estrada e ao cemitério do outro lado, de costas
para o viaduto. Parei. Não havia mais uivos. Estava quieto agora. O
único som era Tulipa respirando com dificuldade.

Sombras congelavam da escuridão entre as árvores do outro lado.


Lentamente, pata sobre pata, os lobos apareceram ao ar livre. Três da
floresta, dois da esquerda, vindos de Abernathy. Dois lobos
253

euroasiático cinzentos , um lobo-do-ártico branco e os outros dois


cinzentos polvilhados na cor canela. Cada um tinha mais de noventa
quilos. Cinco pares de olhos brilhantes me encararam.

Tulipa mostrou os dentes.

As chances não estavam a meu favor. Com a magia em alta, eu


poderia pegá-los, mas então o Bando viria atrás de mim com toda a
força.

Uma enorme sombra saltou do telhado de um prédio de tijolos à


esquerda e aterrissou na frente da matilha. Magia gritou um aviso na
minha cabeça.

Uma criatura. Um enorme monstro cinza, maior que qualquer


metamorfo lobo que eu já vi. Ele era quase tão grande quanto Curran
e Curran era um maldito leão pré-histórico.

Dois olhos dourados focaram em mim, seu olhar me prendendo


no lugar. De repente, foi difícil respirar. Meu corpo trancou,
convencido de que eu era a presa. O Olhar Alfa.

O lobo-eurásiatico (nome científico: Canis lupus), também conhecido como lobo-comum ou simplesmente lobo-
europeu é uma subespécie do lobo-cinzento.

O Lobo-do-ártico, também chamado de lobo-polar e lobo-branco, é um mamífero canídeo e é possivelmente uma


subespécie do Lobo-cinzento
254

Como se atreve?

Olhei de volta. Manter o olhar era como tentar levantar um carro.

A lua rasgou as nuvens, derramando luz pálida no cruzamento.


Deslizou sobre o pêlo do lobo gigante, deixando-o incandescente. Ele
não era cinza. Era prateado. Prata sobrenatural.

Eu pisquei, convocando a minha visão sensitiva. Um leve verde-


menta ondulou sobre seu pêlo. Foda-se.

O lobo deu um passo à frente, banhado pelo luar.

Minhas mãos ficaram frias. Um gosto metálico amargo cobriu


minha língua. Pisquei novamente, desligando a minha visão sensitiva
e peguei meu arco, preso à sela de Tulipa.

Outro passo.

Outro.

Levantei meu arco. Tudo entrou em foco cristalino. Minha


respiração era profunda e regular. O mundo se reduziu a três coisas: o
lobo, meu arco e a distância entre nós.

Um terceiro passo.

Peguei uma flecha na aljava.


255

Seus lábios negros se esticaram, mostrando-me uma floresta de


presas.

Continue sorrindo. Você ficará realmente engraçado com uma flecha


saindo da boca.

Seu pêlo prateado se abriu. Em um instante, os ossos derreteram


como cera, remodelando-se, músculos esticados, estalando sobre a
nova estrutura, e a pele humana revestiu a nova forma. Um homem
alto, ombros largos, atados com músculos, com olhos dourados me
encarou. O luar brilhava em seu rosto, destacando a rede de cicatrizes
finas.

Derek.

Meu coração parecia que tinha parado. Sei que não parou, porque
eu teria morrido, mas parecia que tinha.

Seus olhos estavam gelados. Ele olhava para mim como se aqui
fosse seu território e eu tivesse o invadido.

Derek abriu a boca.

Eu tinha que correr. Agora, antes de ouvir a voz dele.

Enviei um grito mental para Tulipa. Vá!


256

O comando mágico colocou Tulipa em movimento. Ela recuou,


arranhando o chão. O contorno fraco de um chifre brilhou na testa
dela. Tulipa girou, avançou em direção aos escombros, pulou,
aterrissando no concreto quebrado como uma gazela e correu sobre o
viaduto caído. Por um momento, voamos pelo ar e depois galopamos
pela estrada a uma velocidade vertiginosa pela noite.

dentro do meu santuário.

Por que eu corri? Estive em uma batalha que durou três dias.
Mergulhei no Sumidouro Ninho da Águia, uma caverna tão perigosa
que tinha uma placa com um ceifador nela e um aviso: ‘Não há nada
nesta caverna que valha a pena morrer’, só porque eu tive que
falar com uma sereia. Visitava meu avô a cada duas semanas,
caramba! E no momento em que Derek abriu a boca, eu me virei e
corri.
257

Todas as lutas em que estive, todas as torturas que enfrentei, toda


a magia que aprendi, e o que me fez correr foi reencontrar o cara que
costumava ser o centro do meu universo até eu fazer dezoito anos.

Estúpida. Muito estúpida. Eu tinha treze anos de novo? O que


diabos aconteceu?

Ele não tinha me reconhecido. O olhar que ele me deu foi muito
frio.

Isso doeu.

Alguma parte frágil dentro de mim tinha esperança de que, no


momento em que Derek me visse, saberia magicamente quem eu era.
Mas isso não aconteceu.

Não foi ele quem me fez fugir. Fui eu. Eu me obriguei a fugir.

Pensei que tinha enterrado essa paixão. Eu não era mais uma
adolescente que esperava que Derek se apaixonasse por mim quando
percebesse que eu estava crescendo. Não consegui me despedir dele
antes de ir embora de Atlanta, fui covarde demais para arriscar. Se ele
tivesse me pedido para ficar, eu poderia não ter ficado, e se ele não
tivesse me pedido, isso teria me esmagado.

Nada do que eu estava sentido agora era culpa dele. Derek sabia
sobre os meus sentimentos em relação a ele, mas nunca tirou
258

vantagem disso. Nem mesmo me deu uma dica de que estava


esperando por mim. Em todo o tempo que estive fora, ele nunca
tentou me encontrar. Depois do primeiro telefonema que dei, após
alguns meses que fui embora, passei a ligar para casa todas as
semanas, sempre que podia. Kate e Curran sabiam onde eu estava. Se
Derek quisesse me ver, tudo o que precisava fazer era perguntar a eles.
Nos primeiros anos mantive a frágil esperança de que um dia ele
simplesmente apareceria sem avisar, mas nunca apareceu. E então
Kate me disse que ele tinha ido embora de Atlanta.

Eu esperei. Tinha certeza de que ele me procuraria na Califórnia .


Ele não me procurou.

Eu desistir. Doeu muito, então me conformei. Entrar em Atlanta


havia despertado memórias, e lembrei de Derek mais de uma vez nos
últimos dias, mas antes de chegar a essa cidade me obriguei a esquecê-
lo. Sah akin tonar erani es. Sua sombra não escureceu minha mente.

Oito anos se passaram. Tudo em mim havia mudado, mas eu


ainda estava apaixonada por Derek Gaunt.

A Califórnia, estado no oeste dos EUA, estende-se da fronteira mexicana ao longo da costa
do Pacífico por quase 1.500 km. Seu território inclui praias à beira de penhascos, floresta de sequoias, montanhas na Serra Nevada, campos
agrícolas no Central Valley e o deserto de Mojave. A cidade de Los Angeles é a sede da indústria do entretenimento de Hollywood. A cidade
de São Francisco é conhecida pela ponte Golden Gate, a Ilha de Alcatraz e os bondes.
259

Como isso era possível?

Sentei-me em um luxuoso divã azul. Na minha frente, uma


estátua de bronze brilhava suavemente no reflexo da luz. Uma
serpente alada enrolada em torno de um poste delgado, suas asas de
cisne estavam abertas, como se estivesse prestes a voar sobre as flores-
de-cera borganha em forma de estrela e das brancas gardênias que
caíam pela treliça. A serpente era ao mesmo tempo delicada e feroz.

Uma das artistas de Erra criou esta estátua e ofereceu-me como


tributo. É assim que ela me viu, bela e mortal, a princesa desta Nova
Era sempre pronta para derramar sangue em defesa do povo do Novo
reino.

Obrigada pelo lembrete, Gemeti.

Eu não era mais Julie. Esses sentimentos eram um eco


fantasmagórico de outra pessoa, e essa pessoa se foi.

Derek não conhecia a nova eu. Não havia conexão entre nós.

Hoya carnosa, popularmente conhecida como flor-de-cera é uma trepadeira originária da Ásia e da Austrália.
Floresce na primavera, com cachos de flores pequenas e carnosas, em forma de estrela, que se assemelham a flores de cera. Elas não têm
um cheiro muito forte durante o dia, quase nulo.

Gardênia é um gênero botânico pertencente à família Rubiaceae. O género foi classificado por Carl Linnaeus a partir do
nome dado pelo Dr. Alexander Garden, naturalista americano de origem escocesa.
260

Eu também não conhecia o novo Derek.

O Derek que eu conhecia nasceu em uma família religiosa nas


montanhas de Apalaches , onde as famílias eram pobres em dinheiro,
mas ricas em terras. Eles sinalizavam suas propriedades com placas
que diziam ‘Invasores serão baleados’ e cumpriam o aviso.

Quando Derek tinha catorze anos, seu pai foi contaminado com
o Lyc-V em um reavivamento de tenda . O vírus se espalhou rápido,
afogando-o numa mistura de hormônios desembestados. O Loupismo
não tinha cura. Transforma metamorfos em psicóticos, sádicos e
assassinos. O pai de Derek não foi exceção. Todo desejo reprimido,
todo desejo sombrio proibido pela religião e pelas leis borbulharam à
superfície e explodiram.

Todos os seus conhecidos e parentes não se importaram.


Ninguém ajudou. A mãe e as irmãs de Derek se tornaram reféns e
escravas de seu pai. Sua mãe pegou o vírus de seu pai e se matou,
deixando Derek, seu irmão e suas cinco irmãs sozinhos com um Loup.

Apalaches são uma cordilheira da América do Norte, contraparte oriental das


Montanhas Rochosas, que se estende por quase 3 200 quilômetros da Terra Nova e Labrador, no Canadá, ao estado de Alabama, no sudeste
dos Estados Unidos.
Os reavivamentos de tenda são uma reunião de adoradores cristãos em uma tenda erguida especificamente para reuniões de
avivamento, cruzadas de cura e reuniões de igreja. Os reavivamentos de tendas tiveram ministérios locais e nacionais.
261

O pesadelo durou quase dois anos. Todos foram infectados dentro


de meses. Eles tentaram lutar com o pai, mas os Loups são
assustadoramente fortes. Dois dos irmãos de Derek morreram de
fome, acorrentados pelo pai no porão. Três de suas irmãs morreram
devido aos ferimentos. Um deles tornou-se Loup e se voltou contra
seus irmãos e irmãs, deleitando-se com a crueldade louca do pai. No
dia em que Derek encontrou o corpo da irmã caçula pela metade, ele
não aguentou mais.

As autoridades locais finalmente notaram o que estava


acontecendo quando uma coluna de fumaça subiu do topo da
montanha e chamou o Bando. Quando Curran chegou com um grupo
de metamorfos, encontraram Derek sentado junto os restos
queimados de sua casa, com o sangue do pai nas mãos. Ele finalmente
parou o pesadelo da família, mas era tarde demais para todo mundo.

Derek não resistiu a aproximação do Bando. Não fez nenhum


esforço para explicar o que aconteceu. Não falou nada por muito
tempo. Ele rasgou seu pai e isso era tudo o que importava. Jim, o atual
Senhor das Feras, que na época era o Chefe de Segurança do Bando,
pensou que Derek iria a Loup e queria matá-lo. Curran o proibiu. Ele
levou Derek com ele para o Bando e lentamente o persuadiu de volta
à vida.
262

Esse era meu Derek, o que segurava a própria sanidade em um


aperto de aço. Tudo o que influenciava os metamorfos o afetava mais
forte que o normal. A lua o deixava meio louco. Quando ele pegava o
cheiro de algo, nada mais importava. E quando ele lutava ... Derek
tinha dificuldade em lutar. Ele vivia preocupado que, se deixasse o
controle por um fio, cairia no mesmo penhasco que seu pai.

Ele nunca se sentiu confortável com outros metamorfos, a


presença deles dificultava sua luta pelo controle. Mas ele era
fanaticamente leal a Curran e a Kate. Decidiu ficar no Bando por
causa deles, e quando Curran renunciou ao cargo de Senhor das Feras,
Derek o acompanhou. Ele não hesitou por um segundo.

Depois que Derek se separou do Bando, abraçou completamente


sua posição de Lobo Solitário de Atlanta. Ele trabalhava para os
negócios da família e sempre nos apoiava, mas parecia mais satisfeito
quando trabalhava por conta própria.

O velho Derek era um lobo solitário. O novo Derek tinha um


bando. Ele havia se posicionado de costas para os demais lobos, e eles
se posicionaram para protegê-lo. Eu não tinha dúvida de que, se Derek
rosnasse uma ordem, eles teriam disparado para a frente e tentado me
pegar. Aqueles lobos eram o bando dele. Não eram de Desandra e
nem do Bando. Eram dele.
263

O velho Derek era cinza. Grande, para os padrões metamorfos,


mas ainda dentro da faixa normal para um metamorfo lobo. O novo
Derek era prateado, todo prateado e brilhante, sem nenhum pelo preto
ou marrom, e ele era enorme. Eu nunca tinha visto um metamorfo
lobo tão grande antes.

O rastro da magia do velho Derek emanava um forte verde-


caçador, como os demais metamorfos do Bando. O novo Derek
deixava rastros de magia verde-menta.

Os olhos do velho Derek brilhavam âmbar. O homem que vi hoje


à noite tinha olhos que brilhavam dourado. E não era apenas o brilho.
Era o jeito que ele olhou para mim. Ele olhou para mim como se eu
tivesse invadido seu território e ele tivesse o direito de me punir. Ele
me deu o olhar alfa. Ninguém podia imitar um olhar alfa. Poderia ser
treinado, mas a maioria dos líderes naturais nascia com ele. Era um
dos meios mais eficazes de controle para um líder de bando. Meu pai
elevou o olhar alfa ao nível da arte e Conlan estava fazendo o possível
para alcançá-lo.

Em todos os nossos anos juntos, eu nunca tinha visto Derek dar a


alguém um olhar alfa. Ele tinha um olhar focado e um que eu
costumava chamar de ‘olhar mortal’, mas não era um olhar alfa.

O que diabos aconteceu?


264

Era Derek. As cicatrizes eram inconfundíveis. Mas será que elas


eram tudo o que restava do Derek que eu conhecia?

Ascanio sabia. Naquela hora que ele tentou tirar o biscoito de


mim, uma metamorfa, uma dos seus, correu e relatou que ela ‘o viu’ e
então acenou com a mão na frente do rosto. Ela estava indicando as
cicatrizes. Além de nossa família e os Medranos, Derek seria a única
pessoa para quem Ascanio largaria tudo e perseguiria a noite toda. A
rivalidade entre eles começou no dia em que Ascanio tentou colocar
as mãos em mim e Derek mostrou a ele o erro de suas escolhas. Essa
rivalidade nunca melhorou, só piorou com o tempo.

Derek havia retornado à cidade e agora ele e Ascanio estavam de


alguma forma envolvidos no assassinato do pastor Haywood. Afinal
por que Derek foi embora? Algo tinha acontecido, alguma mudança
sísmica deve ter acontecido para fazê-lo abandonar Kate e Curran e
desaparecer.

Talvez não fosse Derek. Talvez algo estivesse apenas usando o


corpo dele. O pensamento disso mexeu comigo.

Se alguma coisa tiver se atrevido a tomar o corpo dele, eu matarei


essa coisa.
265

A magia passou pela minha mente. Alguém tinha acabado de


cruzar minha Proteção externa. Pulei do divã, peguei minha lança e
marchei para a porta da frente.

Não poderia ser ele. Eu tinha usado acônito, e Tulipa e eu


nadamos pelo lago Adair por oitocentos metros, esquivando-me de
cobras d'água e de tartarugas que vivem nas árvores submersas que
sobraram de quando o lago era o Parque Adair. Levaria muito tempo
para o bando de Derek encontrar o meu cheiro, se é que eles o
encontrariam.

Alguém bateu na minha porta. Eu abri.

Cavaleira Stella Davis deu um passo para trás. — Calma. Só vim


pedir emprestada uma xícara de açúcar.

A tensão saiu de mim. — Branco ou mascavo?

— Tanto faz, eu realmente não cozinho. —Stella olhou por cima


do meu ombro. — Esse lugar que você vive é um buraco de merda.
Admiro seu compromisso, mas só para você saber, não fazemos voto
de pobreza na Ordem. Você pode morar em algum lugar legal. Com
móveis que não foram roídos por ratos.

Ha. Há. Ha. — Já passa da meia-noite. Precisa de alguma coisa ou


simplesmente veio até aqui só para insultar minha casa?
266

Stella estreitou os olhos. — Você não está curiosa para saber como
eu te encontrei?

— Deixe-me adivinhar, alguém da cidade ligou para você sobre


um serviço telefônico em alguma nova residência?

Um pouco da empolgação saiu dela. — Sim. O curioso é que,


quando uma pessoa desconhecida usa um crachá da Ordem e uma
quantia grande em dinheiro, levanta-se a suspeita de que esse alguém
não seja realmente quem ele diz ser. Você fez um ótimo trabalho
tentando ser discreta. Deveria ensinar trabalho secreto na academia.
—Stella disse com sarcasmo.

— Isso seria antes ou depois da aula de vigilância, com ênfase em


como perder um suspeito em seu território? Isso realmente te irritou,
não foi?

— Sim. Sim, sim. Mas agora eu te encontrei.

— Parabéns. Você é a melhor de todas.

Stella sorriu. — Obrigada. —Ela levantou um pedaço de papel e


acenou para mim.

Ótimo. Eu fiz meu tom sereno e desinteressado. — O que é isso?


267

— Isso é um assassinato. Acho que está conectado com o seu


caso.

Eu baixei a Proteção. — Entre.

— É seguro? Os germes não vão me pegar?

— A pobreza não é contagiosa. Você vai ficar bem.

Stella entrou e me seguiu até a cozinha.

— Cerveja, café, chá?

— Desta cozinha? Não, obrigada. —Ela me passou o jornal.

Eu li. Um nome e um endereço. Alycia Walton. — Por que você


acha que ela está conectada?

— Ela é, bem, ela era, uma historiadora especializada no início


do cristianismo.

Se alguém tivesse relíquias cristãs e elas tivessem algum poder de


verdade, o próximo passo para vender seria estabelecer sua história e
providência. Stella sabia das relíquias.

— Como?

Stella sorriu. — Imagino que ela frequentou uma faculdade,


talvez por muitos anos.
268

— Como você soube da conexão com as relíquias cristãs?

— As supostas relíquias cristãs? As relíquias cristãs que o pastor


Haywood pode ter autenticado, essas relíquias cristãs?

Eu a estrangularia em um minuto. Sentei-me à mesa e sorri para


ela. — Minha paciência é um lago infinito. Sinta-se livre para se
afogar. —Havia momentos em que os provérbios antigos eram úteis.

— Você não é divertida. Estou aqui para ajudar. Como uma


colega ou parceira.

— Você deve ter feito uma merda muito grande e foi enviada para
Atlanta, porque é aqui que a Ordem despeja os encrenqueiros e os
causadores de problemas em potencial, aqueles que não seguem
ordens. O Núcleo da Ordem de Atlanta é o fim da linha, se Nick não
conseguir ... —Fiz uma pausa, procurando a palavra certa, — ...
reabilitá-la, ninguém mais poderá. Nas duas vezes em que fui à
Ordem, você estava lá, no meio do dia, em sua mesa, em vez de estar
trabalhando em um caso e fazendo a diferença. Nick está mantendo-
a sob controle. E isso está matando você, e aqui está um assassinato
de alto nível que nenhum dos outros Cavaleiros está trabalhando.
Você viu e pulou na oportunidade. Então, na verdade você não veio
me ajudar. Você veio se ajudar.
269

Stella olhou para mim por um longo momento. — É isso e porque


não confio em você. Além disso, estou entediada.

— Como você descobriu as relíquias?

— Nick me enviou aos metodistas para verificar o garoto.


Enquanto eu estava lá, um deles me entregou uma lista de caçadores
de relíquias para entregar a minha ‘colega’. Ele também mencionou
que havia dois historiadores no norte da Geórgia que se
especializaram em consultoria de relíquias e Alycia Walton era um
deles.

E ela juntou o resto. Inteligente. Stella estaria de alguma forma


trabalhando neste assassinato, o problema é que Nick havia me
entregado o caso, e ela provavelmente não tinha autorização para
investigar sozinha.

Ela precisava de mim. — Posso ter essa lista?

Stella me passou outro pedaço de papel dobrado. Abri e examinei


os seis nomes. Nenhum deles parecia familiar.

— Como está Dougie?

— Quem é Dougie?

— O garoto.
270

Stella fez uma careta. — Disseram que estão fazendo tudo o que
podem.

Sempre que eu ouvia isso, as coisas não acabavam bem.

— Você quer ir ver a cena do crime ou não? —Stella perguntou.


— Eu adoraria perder mais tempo, mas se não nos apressarmos, os
policiais levarão o corpo embora.

— Você está me dizendo que este é um assassinato recente?


Quando exatamente isso aconteceu?

— Foi relatado cerca de uma hora atrás.

— Você ia me dizer isso em algum momento?

— Acabei de fazer, mas se quiser, podemos continuar trocando


farpas em sua encantadora cozinha.

— Espere por mim lá fora, por favor. —Levantei da minha


cadeira e fui pegar minha égua.
271

depois, Stella e eu estávamos na frente do Pavilhão


Henry L. Bowden, no coração da Universidade de Emory. O prédio
de três andares pairava no escuro, fracamente iluminado por uma
fileira de postes da rua, e a luz azul fantasmagórica dava a ele um ar
de mau presságio. Quando chegamos, dois policiais, armados com
espingardas e espadas, guardavam a entrada. Mostramos nossos
distintivos e um deles entrou para avisar o detetive que estávamos lá.

Estávamos paradas há vinte minutos, esperando o PAD terminar


de processar a cena. Supostamente, seríamos autorizadas somente
quando o Departamento de Riscos Biológicos dissesse que era seguro.

O prédio era antigo, pré-Mudança, com o primeiro andar


revestido de argamassa de gesso claro e os dois superiores incrustados
com azulejos de pedra polida, mármore ou granito, que eu não
conseguia identificar no escuro. Todos os três andares exibiam fileiras
de janelas retangulares, com um metro de largura por um metro e
oitenta de altura, protegidas por finas grades de metal. Barras de aço
de um centímetro e meio de diâmetro, apenas duas barras transversais,
aço de aparência barata, sem nenhum traço de prata. Proteção dentro
do orçamento. Para piorar as coisas, as grades se abriam como
persianas, fazendo com que as bordas superior e inferior da grade não
272

estivessem ancoradas. Toda a bagunça estava presa por quatro


parafusos de cada lado, chumbados na parede.

Querem monstros em seu escritório? Pois é assim que se consegue monstros


em seu escritório.

Eu tinha certeza de que Alycia Walton não queria monstros.

— As grades não estão devidamente ancoradas, —disse Stella em


voz baixa.

— É uma Universidade.

— E?

— Eles têm um orçamento limitado.

Stella revirou os olhos. — A Academia da Ordem é uma


Universidade e eles têm grades apropriadas.

Ela não estava errada. — Vamos dar uma volta pelo prédio.

Viramos à esquerda e seguimos um caminho pavimentado pela


borda do prédio, contornando-o. A Biblioteca Woodruff estava à
nossa esquerda, ladeada por árvores e mergulhada em profundas
sombras da noite. Uma dúzia de lobos poderiam estar escondidos
nessas sombras, usar minha magia para emitir um pulso e verificar se
havia lobos lá, estava fora de questão. Eu não sabia quais eram os
273

truques especiais de Stella. Quanto menos ela soubesse sobre mim,


melhor.

A luz da lua caía do céu escuro, iluminando a lateral do Pavilhão


Bowden. Um buraco estava aberto na fileira superior das janelas,
segunda fileira a partir da esquerda, emanando um leve brilho azul. A
grade de aço que costumava protegê-la estava jogada na cerca que
margeava o caminho. O canto da grade estava virado para cima, com
os parafusos ainda presos à dobradiça. É isso que se ganha quando se
economiza em segurança.

Olhei de volta. Cortes profundos marcavam os dois lados da


janela.

— Isso são marcas de garras, —disse Stella. Ela levantou a mão,


avaliando-as. — Um cara grande.

— Teve dificuldade para entrar, —murmurei.

Nós olhamos para a janela. Não havia marcas de garras na


parede. Também não havia trilhas no gramado do outro lado do
caminho. Também não escalou a parede e subiu no prédio. Tinha que
ter voado. Manticoras se encaixavam em alguns critérios: alados,
fortes, carnívoros, tinham presas. Eles poderiam ser treinados para
atacar sob comando. Mas eram pequenos e caçavam em bandos ao
274

entardecer, caindo sobre a presa em fuga. Raramente atacavam


humanos. Seus alvos preferidos eram veados e rebanhos de gado
selvagem.

— Há uma coisa que eu não entendo, —disse Stella.

— O que?

— Por que escolheu morar naquela armadilha mortal?

É sério?

— Aqui estamos nós, em uma cena de crime, examinando marcas


de garras do criminoso, três andares acima e com pouca luz, e sua
mente está focada no mistério da minha casa. Sinceramente,
Cavaleira Davis, nenhum detalhe lhe escapa.

— Eu gosto de saber das coisas. Não faz sentido.

— Também gosto de saber das coisas, como por exemplo, o que


você fez para ser enviada para Atlanta?

Stella levantou o queixo. — Soquei um superior.

De alguma forma, isso não me surpreendeu. — Quão superior?

Stella ponderou a pergunta. — Em termos de hierarquia de


comando ou de moralidade?
275

— Ei! —O policial chamou da entrada. — Vocês podem subir.

Subimos a escada de mármore até o terceiro andar, onde um


corredor se estendia, interrompido por portas dos dois lados.
Lanternas a gás brilhantes, presas às paredes, banhavam o corredor
com uma luz mais nítida. Pelo menos eu podia ver onde estava
colocando meus pés.

Uma das portas à esquerda, quase no final do corredor, estava


aberta. Duas pessoas esperavam na entrada, uma mulher branca de
meia-idade, de uniforme do PAD, e um negro de trinta e poucos anos,
de terno e gravata. Dois outros, vestindo macacões brancos com o
emblema do Departamento de Riscos Biológicos do PAD estampado
em vermelho nas costas, agachados no chão e segurando um M-
scanner portátil.

O nome oficial dos Riscos Biológicos era Centro de Contenção


Mágica e Prevenção de Doenças, mas era um nome confuso,
enquanto ‘Riscos Biológicos’ era fácil e familiar. Sempre que alguém
relatava um incidente mágico com risco de vida, o Riscos Biológicos
corria para lá, protegia as evidências, processava a cena e esterilizava
o local. Eles eram os Detetives mágicos da cidade e a primeira linha
de defesa entre a cidade e o lixo mágico.
276

O detetive acenou para nós. Ele tinha um daqueles rostos


cansados que me diziam que estava acostumado a ser acordado no
meio da noite para examinar o fim sangrento da vida de alguém. Para
os sobreviventes, o assassinato de um ente querido era a pior coisa que
já lhes aconteceu. Para esse homem, era terça-feira de manhã cedo.
Mercenários e soldados veteranos às vezes pareciam assim após
décadas de luta, exceto que ele mal tinha trinta e poucos anos.

Ele nos deu uma olhada rápida. — Identificação.

Stella e eu mostramos nossos distintivos.

— Qual é o interesse da Ordem neste caso?

— Acreditamos que está ligado a uma investigação em


andamento, —eu disse.

— Qual?

Contá-lo sobre o pastor Haywood iria catapultar isso para um


território de alto perfil. Duas coisas podiam acontecer. Primeiro, eles
poderiam nos entregar esse assassinato, da mesma maneira como nos
entregaram o caso do pastor Haywood. Segundo, muito mais
provável, o PAD iria querer segurar esse assassinato e solicitar
quaisquer conclusões de nós, porque os dois casos estavam
relacionados. Isso permitiria que eles se beneficiassem da minha
277

investigação, mantendo um olho na Ordem. Haveria muita


burocracia, reuniões e, na pior das hipóteses, uma força-tarefa
conjunta, da qual eu precisava como precisava de um buraco na
cabeça.

— Não temos autorização em lhe dizer. Nossas descobertas não


são conclusivas no momento.

O olhar do detetive comunicava que ele não nasceu ontem, ele


sabia que eu estava me esquivando e não ficou nada convencido.

— Vou permitir que vocês entrem na minha cena do crime como


cortesia. Não cruzem a linha de giz. Não toquem em nada. Vocês têm
cinco minutos.

— Antes de entrarmos e a contagem regressiva começar, —disse


Stella, — quem encontrou o corpo?

— A equipe de limpeza, —respondeu o detetive. — Eles


trabalham a noite por causa do calor. O vigia estava retirando o lixo
por volta das dez e meia, notou a janela quebrada e veio conferir. Ele
bateu na porta, a professora Walton não respondeu, abriu o escritório
e aqui estamos.

— Alguma testemunha? —Stella perguntou.


278

— Não. A graduação foi em maio, dia onze e as férias de verão


só irão acabar dia primeiro de junho. O campus está deserto.

— Obrigada. —Entrei na sala. Stella veio logo atrás de mim.

O escritório era um retângulo e, se fosse desenhado em papel, a


porta ficaria no canto inferior direito, junto à parede forrada com
estantes cheias de livros e pastas. Ao lado delas, um homem de vinte
e poucos anos esperava com uma expressão entediada. De pele
bronzeada, com grandes olhos castanhos e cabelo preto curto, usava
o macacão branco do Riscos Biológicos. Um emblema com chamas
estilizadas marcava sua manga esquerda. Um Incendiário, um Mago
do Fogo, pronto para caso o corpo se levantasse, crescesse presas do
tamanho de facas de bife e expressava o desejo de comer rostos
humanos.

A janela quebrada estava na parede oposta à porta, a meio


caminho, com a moldura marcada por cortes profundos de garras e
manchada com manchas de sangue. Algo realmente cavou a madeira,
tentando se espremer para dentro e depois saiu do mesmo jeito que
entrou, manchando a parede com o sangue de sua vítima. Estilhaços
de vidro da janela cobriam o chão e o falso tapete marroquino. No
centro do tapete, o cadáver de Alycia Walton jazia em uma pilha
amassada, sujando as fibras bege do tapete em um bordô sangrento.
279

Sua cabeça, uma bagunça vermelha e molhada, repousava no


ombro direito. O assassino tinha mordido o pescoço pela esquerda,
quase arrancando-a com uma mordida e deixando a cabeça presa
apenas por uma faixa estreita de pele e carne. A blusa branca e os
fragmentos do sutiã pendiam do corpo, encharcados de sangue e
rasgados, e a cavidade do peito estava escancarada, os pedaços de
costelas quebradas, cobertas com sangue escuro. Mais sangue coloria
sua calça cáqui.

Alguém, provavelmente O Riscos Biológicos, desenhara um


círculo protetor de giz em torno do tapete e do corpo. Procedimento
padrão. O giz seguraria por tempo suficiente para o Mago de Fogo
incendiar o cadáver se ele se reanimasse.

Aproximei-me do círculo para ver melhor o corpo. Sem coração.


Apenas uma poça de sangue escuro acumulado lá dentro. O sangue
ainda estava líquido. Uma vez que o coração parava de bombear, o
sangue se estabelecia nos pontos mais baixos do corpo devido à
gravidade, deixando a pele em um tom feio de malva. O processo era
chamado de Livor Mortis e acontecia entre trinta minutos a quatro
horas após a morte, atingindo seu estágio mais pronunciado em doze
horas. O corpo de Alycia não mostrava sinais disso.
280

Ela foi morta há algumas horas, no máximo. A criatura


atravessou a janela e a atacou ali mesmo no tapete—todo o sangue
estava confinado nela. Provavelmente ele mordeu o pescoço primeiro,
derrubando-a, depois a montou e abriu o peito para alcançar o
coração.

Depois do corpo, quase no final da sala, uma grande mesa


esperava, com uma cadeira de escritório afastada, mas ainda em pé.
Duas cadeiras menores estavam viradas contra a mesa.

Eu pisquei e acionei a minha visão sensitiva, o escritório floresceu


em cores. Tentáculos de ouro claro margeavam a janela, espalhadas
em linhas finas pelo chão, depois explodiam sobre o corpo em uma
cascata familiar. Nenhuma outra trilha forte de magia. Apenas vários
traços azuis, antigos e desbotados, provavelmente deixados por
estudantes ou outros visitantes no escritório dias atrás.

Eu pisquei novamente, desligando a visão.

A mesma criatura que matou o pastor Haywood assassinou


Alycia Walton. Ambos provavelmente entraram em contato com o
mesmo artefato ‘Cristão’. Esse artefato tinha um guardião. Era uma
prática estabelecida nos antigos reinos. Eu já tinha visto isso uma vez
antes, e fui ensinada como fazer caso precisasse proteger algo
significativo. Alguém com poder suficiente, pode vincular uma
281

criatura mágica a um objeto que se queira proteger. Uma vez


vinculado, o objeto emitirá magia que apenas a criatura poderá sentir,
e qualquer pessoa que roubar o objeto ficará ‘manchado’. O guardião
irá rastrear essa ‘mancha’ até que consiga matar o ladrão e recuperar
o objeto ou morrer tentando.

A antiga mitologia estava cheia dessas histórias. Um dragão


guardava o Velocino de Ouro , um spriggan guardava o tesouro das
fadas, o Pixiu que ansiava por ouro e guardava-o nas casas de seus
mestres.

Tanto o pastor Haywood quanto a professora Walton tocaram no


artefato e o guardião os puniu por isso.

O velo de ouro ou tosão de ouro é na mitologia grega a lã de ouro do carneiro alado Crisómalo.

Um spriggan é uma criatura lendária da tradição das fadas da Cornualha. Spriggans são particularmente associados a
West Penwith em Cornwall.

Pixiu originalmente Bi Xie é uma criatura híbrida da Mitologia chinesa. É considerado um poderoso protetor
dos praticantes de Feng Shui. Recorda um leão alado e forte.
282

O guardião provavelmente não estava conseguindo encontrar o


artefato ou quem o roubou e o possuía agora. O ladrão, quem quer
que fosse, sabia sobre o guardião. Ou tinha muita sorte.

Agora, a confissão do Ma'avir fazia sentido. Ele disse que Moloch


queria o assassino do pastor Haywood. O artefato não era importante
para Moloch. A criatura divina que o guardava era. Por quê?

Se eu colocasse minhas mãos no artefato, a criatura viria atrás de


mim. Eu tinha que encontrar esta bugiganga mágica.

A venda de um artefato exigia no mínimo três pessoas, um


especialista para avaliar sua magia, um historiador para rastrear sua
procedência e um corretor para calcular seu valor e facilitar a venda.
O especialista em magia e a historiadora estavam mortos. Eu
precisava encontrar o corretor. Quando eu encontrar o corretor, o
guardião virá para encontrá-lo e os Ma’aviris o seguirá.

— O que ela estava fazendo aqui tarde da noite sozinha? —Stella


perguntou para si mesma.

— Aparentemente, trabalhando em um livro, —disse o Mago do


Fogo.

Passos ecoaram pelo corredor—alguém caminhava em nossa


direção, rapidamente.
283

Examinei a cena novamente. Quanto mais eu pudesse descobrir


sobre o guardião do artefato, melhor.

— Quantos anos tinha a professora Walton? —Eu perguntei.

— Quarenta, —disse o Mago do Fogo.

— Usava muleta ou tinha algum problema de mobilidade?

— Se ela tinha alguma muleta, nós não encontramos.

— O que está pensando? —Stella perguntou.

Cuidadosamente andei em volta do círculo até a mesa e fiquei


atrás dela. Eu podia ver a porta e a janela. A mesa havia sido
posicionada para apreciar a vista da floresta. — Cerca de três metros
e meio para a porta?

Stella assentiu. — Mais ou menos.

Apontei para a janela. — Uma criatura voadora gigante arranca


a grade da parede e tenta forçar seu caminho para dentro. É muito
grande, então arranca a moldura da janela, lutando para se encaixar.
Você é uma professora universitária de quarenta anos sentada atrás
desta mesa. O que faria?

— Correria para a porta, —disse o Mago do Fogo.


284

— Três metros e meio. —Os olhos de Stella se estreitaram. — Ela


deveria ter conseguido escapar.

— Ela pulou da cadeira, —acrescentou o Mago do Fogo. —


Empurrou a cadeira para trás. Mas não correu.

— Por que não? —Pensei em voz alta.

— Talvez a criatura tenha algum tipo de poder mágico hipnótico?


—Stella disse.

— Mas ela pulou da cadeira e deu a volta na mesa, —disse o


Mago. — Se houvesse algum tipo de poder hipnótico, ela teria ficado
sentada. Se fosse eu, contornaria a mesa e queimaria a bunda do
invasor sem danificar os móveis.

— Talvez a professora Walton tivesse algum tipo de magia de


ataque que não conhecemos, —eu disse.

— Ela não tinha, —disse uma nova voz.

Um homem baixinho e branco entrou no escritório. Ele parecia


ter quarenta e poucos anos. Seus cabelos escuros despenteados
pendiam da cabeça em todas as direções, como se tivesse saído da
cama e nem se importado em arrastar um pente ou mesmo a mão
através dele. Um par de óculos com aro de arame estava no nariz. Ele
usava shorts cáqui, botas de trabalho e uma camiseta azul com
285

imagem de um chapéu pontudo impresso em tinta branca. As palavras


abaixo do chapéu diziam ‘Mantenha a calma, eu sou um bruxo’.

O Mago do Fogo parou ficou subitamente atento, alerta e


profissional.

— Merda, —Stella murmurou.

Luther Dillon. Quando fui embora, ele era um Superior no Riscos


Biológicos. Sempre que mamãe tinha que relatar algo para eles, ela o
chamava primeiro. Eu o encontrei várias vezes, duas vezes quando
Kate pediu minha ajuda em uma cena de crime e em algumas ocasiões
em reuniões de família, como o casamento de Kate e Curran. Tudo o
que me lembrava dele era que ele chamava Kate de pagã e fingia que
ela o incomodava, enquanto a ajudava de todas as maneiras que
podia, e ele era brilhante. A possibilidade dele me reconhecer era
muito baixa.

Luther me deu um olhar superficial e focou em Stella. —


Cavaleira Davis.

— Diretor Assistente Dillon, —Stella apertou os dentes. — Eu


não sabia que você estaria aqui.

Ela estremeceu assim que disse isso. — Sou um Mago, Cavaleira


Davis. Estamos sempre exatamente onde devemos estar. Você, no
286

entanto, não está onde deveria estar. Fiquei me perguntando quem


estaria rondando minha cena do crime e fazendo perguntas
impertinentes. Imagine a minha surpresa quando acabou sendo você.

Opa.

Luther cruzou os braços. — Você se lembra da musiquinha que


eu te ensinei da última vez que interferiu em uma das minhas cenas
de crime?

Stella parecia que engoliu leite estragado. — Sim.

— Esplêndido. Vamos cantar juntos. Vou começar. ‘O Riscos


Biológicos é uma agência da aplicação da lei, sim, sim, sim’. Sua
vez.

Stella abriu os dentes. — ‘A Ordem não é uma agência de


aplicação da lei, não, não, não’.

— ‘Todas as cenas de crime na região metropolitana de


Atlanta são minhas, minhas, minhas.’

— ‘Todas as cenas de crime na região metropolitana de


Atlanta são suas, suas e suas’, —entoou Stella.

— ‘Quando você poderá entrar em uma das minhas cenas de


crime?’ —Luther continuou.
287

— ‘Quando eu for pessoalmente convidada, convidada,


convidada.’

Uau. O que ela fez para deixá-lo tão bravo? Eu nunca o tinha visto
assim.

— Cavaleira Davis, —Luther disse sem nenhum traço de humor,


— Você foi convidada para esta cena de crime?

— Não.

— Retire-se ou lamentará. —Luther apontou para a porta. Stella


foi direto para ela sem outra palavra e eu a segui.

Andamos pelo corredor com Luther cerca de seis metros atrás.

— O que você fez? —Eu sussurrei.

— Mais tarde, —Stella resmungou.

— Não, não, Cavaleira Davis, —Luther gritou. — Não seja


tímida.

Stella fechou os olhos por um segundo. — Estávamos trabalhando


juntos em um caso de assassinato. Várias pessoas morreram em pé
com raízes estranhas crescendo fora dos seus corpos. Um dessas
pessoas reanimou.
288

— E em flagrante violação dos procedimentos de segurança


estabelecidos nas últimas quatro décadas, Cavaleira Davis não cedeu
lugar aos especialistas Pirocinéticos. Em vez disso, ela teve um lapso
de julgamento.

Alcançamos a escada e descemos.

— Eu cortei o cadáver reanimado com uma espada, —disse Stella,


seu tom resignado. — E ele explodiu.

— E como a Cavaleira Davis estava bloqueando o nosso trabalho,


a explosão não pôde ser contida a tempo.

— O que você quer dizer com explodiu? —Eu perguntei.

Stella fez uma careta. — Quero dizer que seu interior, de repente
e com grande força, se tornou seu exterior. Todos ficaram banhados
de entranhas, ninguém morreu.

A voz de Luther não teve piedade. — Ninguém morreu porque


passamos cinco dias internados em uma UTI, recebendo atendimento
médico de última geração. Muitos de nós chegamos a pedir em voz
alta para morrer, e alguns até imploraram para serem mortos. E é por
isso que essa lacaia de Feldman em particular não é permitida em
nenhuma das minhas cenas de crime.

Está bem então.


289

— Stella, você ficou doente? —Eu perguntei.

— Eu não fico doente. Nunca.

— Exato, —Luther gritou. — Ela ficou coberta de sangue. Tinha


sangue até mesmo na boca e não teve um único sintoma. Sem dor
agonizante, sem vômito violentos, sem diarreia com sangue. Fresca
como uma margarida.

— Você realmente não tem que nos acompanhar até lá fora, —


disse Stella.

— Pelo contrário, faço questão.

Corremos para fora das escadas e as grandes portas duplas se


erguiam à nossa frente. Stella e eu as abrimos ao mesmo tempo, ela à
esquerda e eu à direita.

A três metros de distância, em um raio de luz do poste mais


próximo, estava Nick Feldman.

Ah Merda.

Nick parecia uma estátua da Ilha de Páscoa, cujos olhos estavam


pegando fogo com fúria gelada.

Stella se virou e tentou voltar para dentro. Luther bloqueou a


porta e balançou a cabeça.
290

A voz de Nick estava gelada. — Cavaleira Davis.

Stella se virou e o encarou. — Sim senhor.

— Me siga.

Ele se virou e marchou pelo caminho. Stella correu atrás dele.

Eu parei. Nick estava tendo uma noite terrível. Eu não tinha


certeza se Stella sobreviveria. Devo ir e tentar explicar? Eu poderia
mentir e dizer que arrastei Stella aqui. Mas então ele poderia ficar mais
irritado com ela por isso, por uma completa estranha ter a convencido
de alguma forma a desconsiderar suas ordens. Isso tornaria ainda pior.

Luther parou ao meu lado. — Bem, alguém está com problemas.

Eu não respondi. Não era uma pergunta e, às vezes, o silêncio era


a melhor estratégia.

— Senhorita Ryder, se puder me dar um momento.

Eu girei para ele. — Claro.

Luther olhou para uma mulher ruiva segurando um conjunto de


chaves, que estava parada na porta. — Você poderia abrir a biblioteca
para nós?

A mulher assentiu, sua expressão chocada.


291

Luther acenou para um dos policiais uniformizados e seguiu o


caminho em direção à biblioteca. Nós três o seguimos. A mulher
destrancou a biblioteca, Luther agradeceu e a mulher voltou correndo
para o Pavilhão Bowden.

Luther olhou para o policial. — Fique perto da porta. Ninguém


entra. Se uma emergência acontecer, seja quem for, espera do lado de
fora, você vem e me chama.

— Sim senhor.

Luther virou-se para mim. — Está bem então. Vamos encontrar


um lugar confortável e conversar.

Entramos mais fundo na biblioteca. A luz da lua se derramava


através de enormes janelas do chão ao teto e nossos passos soavam
muito altos no prédio vazio. O campus claramente não levava a
segurança muito a sério. Qualquer um poderia dirigir um bando de
manticoras por aquelas janelas.

Luther encontrou um grupo de sofás perto da janela e sentou-se


em um deles, indicando o outro com a mão. Eu me sentei.

Ele me estudou por um longo momento e sorriu. — Amei seu


novo rosto. Você disse aos Lennarts que está na cidade ou devo eu dar
as boas notícias?
292

Nada saiu. De todos os buracos que eu tinha que


entrar.

Luther riu. — Não tenha pressa.

— Como sabe?

— Como uma Sensitiva, você vê a natureza da magia e as trilhas


que os seres vivos deixam em seu ambiente. Eu percebo as
especificidades da magia de uma pessoa, mas apenas quando as
encontro cara a cara. Para mim, a magia de cada um tem uma
assinatura única.

Eu devo ter sido especial o suficiente para ficar gravada na


memória dele. Quando nos conhecemos, ele acusou a mamãe de
esconder dele que ela tinha uma Sensitiva morando com ela todo esse
tempo. Deveria ter me perguntado naquela época como ele sabia que
eu era sensitiva. Eu não deveria ter deixado isso passar. Meu erro.
293

— Eu nunca esqueço uma ‘assinatura mágica’. —Ele bateu em sua


têmpora. — Você evoluiu. Existem camadas e mais camadas de poder
envolvendo sua essência, mas essa essência permanece a mesma.
Lembro-me disso anos atrás, quando te conheci. Você ainda é você.

Ele não tinha ideia do que essas palavras significavam para mim.

— Eu disse algo errado? —Ele perguntou gentilmente.

— Vivi tantas versões de mim mesma, que nem sei mais quem eu
sou.

— Isso é a vida, —disse Luther. — Nós mudamos, nos alteramos,


evoluímos ou regredimos. Faz parte da condição humana. Você pode
ter alterado sua identidade, mas quando ouvi você analisar a cena do
crime, parecia a Kate. Ela tem um senso inato do que uma pessoa
pode naturalmente fazer em uma situação perigosa, e você também.
Continue assim.

Certo. A nova eu ainda era a antiga eu, e ‘a nova eu’ soava como Kate.
— Obrigada.

— De nada.

Precisaria observar meus padrões de fala em torno de pessoas que


me conheciam.
294

— Você se importaria de me deixar ver todo o seu poder por um


momento? A capa de disfarce está obscurecendo as coisas.

A capa tinha esse objetivo, obscurecer meu poder. É por isso que
eu a construí meticulosamente e pratiquei mantê-la até que se tornasse
uma segunda natureza. Se eu o deixasse ver minha magia, Luther
descobriria muito sobre mim. Se eu continuasse me escondendo,
destruiria qualquer esperança de que ele confiasse em mim. Eu
precisava de sua confiança. Tinha que convencê-lo a guardar meu
segredo.

Eu o encarei. — Há um motivo pelo qual não contei à minha


família que estou aqui. Vou explicar o porquê, mas você tem que
prometer não contar a eles.

— Quer dizer que eu saberia algo que os Lennarts não sabem? —


Luther sorriu. — Meus lábios estão selados, aguardando a explicação.

Eu deixei cair a capa.

Luther ficou completamente imóvel.

Ficamos sentados em silêncio, olhando um para o outro. Quando


Erra me ajudou a liberar o reservatório de magia dentro de mim, ela
me disse que eu brilhava como uma estrela. E então me fez prometer
que nunca mostraria ao meu avô.
295

Luther piscou, como se estivesse acordando, pigarreou e estendeu


a mão para mim. — Posso?

— Sim.

Ele gentilmente segurou meu queixo, se inclinou para frente e


examinou meu rosto. — Fascinante. O que aconteceu?

— Transmogrificação através da assimilação de magia. Eu peguei


a parte do corpo de outra pessoa e tive que incorporá-la.

— Incrivelmente arriscado, mas claramente valeu a pena. Foi um


olho?

— Sim.

— Fisicamente, seus olhos parecem idênticos, mas a


concentração de magia no olho esquerdo é muito maior. —Luther
acenou com a cabeça e recostou-se. — Lindo tom de verde. A dor deve
ter sido insuportável.

— E foi.

— Quanto tempo levou o processo?

— Cerca de dois meses e depois entrei em coma induzido


magicamente por mais nove.
296

— Estou surpreso que você tenha sobrevivido. —Luther se


inclinou para frente, seus olhos alertas. — O que deu em você para
fazer algo como isso?

— Medo. —Recoloquei a minha capa.

— É um excelente motivador. Me conte mais.

— Já ouviu falar sobre Moloch?

— Um deus cananeu, o tipo desagradável. Famoso por seu


domínio sobre o fogo e pelo apreço ao sacrifício infantil. Pelo que me
lembro, ele prefere que suas ofertas sejam queimadas vivas. Há um
pouco de obscurantismo na interpretação do nome.

— Não é um nome. É um título. Significa deus-rei. Foi usado por


governantes hereditários que descendiam de Saidoune ibn Canaan, que
fundaram a cidade de Sidon mais de sete mil anos atrás. Eles
governaram um povo que mais tarde ficaram conhecidos como
Fenícios , e seu reino se estendeu sobre o Israel moderno até o sul de
Jerusalém.

Os fenícios fazem parte de uma das mais importantes civilizações da Antiguidade – a civilização fenícia.
Viviam no Norte da Palestina, entre o Mar Mediterrâneo e o território que hoje corresponde ao Líbano, Síria e Israel. Os fenícios são
conhecidos como o povo do mar.
297

— Contemporâneos de Roland. —Luther fez uma careta.

— Não exatamente. O Reinado de Moloch terminou oficialmente


durante a época do avô de Roland. Moloch foi o último de sua
linhagem.

Na Era Antiga, as guerras podiam ser decididas por um único


duelo entre poderosos usuários de magia. Esperava-se que os
governantes de territórios entrassem em campo e defendessem sua
terra e seu povo. Eles não mediram esforços para aumentar seus
poderes. Para minha família adotiva, isso significava lidar com Shar,
um desejo irresistível de reivindicar e proteger terras. Moloch pagou
um preço diferente.

— A família de Moloch temia a morte, —eu disse a Luther, —


então eles se concentraram na regeneração. Queriam se tornar
imortais, e como a magia natural deles não foi suficiente, eles
buscaram o poder divino. Eles se permitiram ser adorados como
deuses.

Luther franziu a testa. — A divindade tem um grande preço.

Todas as coisas vivas geram magia, mas os humanos com as suas


capacidades mentais e emoções são particularmente hábeis em
direcioná-la. Os pensamentos humanos carregam poder,
298

especialmente quando combinados com a emoção, e poucas coisas


eram mais emocionais do que uma oração. Cada apelo a um deus
enviava a ele uma parte do poder humano, especialmente quando era
falado em voz alta. Juntos, os fiéis energizavam suas divindades como
se estivessem carregando uma bateria. Quanto maior a congregação,
maior o poder. Em teoria, era ilimitado. Mas Luther estava certo. A
divindade tem um grande preço.

— E é por isso que o reino de Moloch caiu, —eu disse. — Ele se


tornou um deus, obcecado em acumular poder por meio de sacrifícios
e orações. Perdeu o controle do mundo físico. As necessidades e
impulsos humanos normais não o incomodavam mais. Ele deixou seu
antigo reino ser conquistado e feito em pedaços. Contanto que os
invasores o adorassem, ele não se importava.

— Abandonar sua humanidade não deve ter sido muito difícil


para ele, —disse Luther. — Depois de decidir que queimar crianças
vivas era um método de adoração e sacrifício perfeitamente aceitável,
não deve ter sido muito difícil de deixar de ser humano. Tornou a
transição para a divindade muito mais fácil.

Concordei. Eu tinha visto o interior do templo de Moloch de


perto. Não havia palavras para descrever esse tipo de sofrimento. Eu
299

não sabia que os seres humanos podiam suportar tanta dor e


desespero.

— Depois que a civilização mágica entrou em colapso e a


tecnologia inundou o mundo em ondas, Moloch deveria ter
desaparecido como outros deuses antigos sem uma adoração
persistente. Mas ele recebeu um impulso do Velho Testamento. Ele é
mencionado cinco vezes em Levítico, uma vez em Segundo Reis e
uma vez em Jeremias, sem contar as alusões em Deuteronômio e
Ezequiel. Em algum momento durante a Idade Média, os cristãos
ficaram um pouco obcecados por ele e ele fez a transição para a
condição de demônio.

Luther suspirou. — Cristianismo, a mais composta de todas as


religiões. Por que deixar um deus rival, mesmo um pequeno, morrer,
quando se pode transformá-lo em um demônio e roubar de seus ritos
e feriados características que se pode usar para atrair seus adoradores?

— Exatamente. Após a primeira Mudança, a magia não


desapareceu completamente. Permaneceu nesse mundo muito frágil
para ser manipulada, mas ainda estava lá. Toda vez que o nome de
Moloch era mencionado, ele ganhava uma migalha de poder. Essa
migalha o manteve vivo, como uma injeção intravenosa em um
paciente em coma. Então a segunda Mudança inundou o mundo com
300

magia e liberou uma injeção de adrenalina na reserva de poder de


Moloch. Ele a guardou, esperando o momento certo e, quatro Flares
atrás, ele renasceu como humano.

Luther se recostou. — Um avatar?

— Sim.

— O tempo entre os Flares tem diminuído constantemente. Faz


cerca de seis anos e meio agora. Então ele tem ... —Luther olhou para
o teto. — ... por volta de trinta e três, trinta e quatro anos. Muito
tempo para construir uma base de poder.

— Ele tem uma fortaleza no Arizona. Moloch é praticamente


indestrutível. Eu o desmembrei, cortei fora sua cabeça e joguei seu
corpo em sua forja, e ele apareceu de volta em menos de dois anos. A
regeneração quase perfeita não é seu único truque. Ele é quase
indestrutível ao fogo. Moloch maneja o fogo como uma arma e é
altamente qualificado em metalurgia. Sobrepõe-se a Hefesto em
poderes e está tirando proveito de todos os neopagãos gregos perdidos
que aparecerem em seu caminho para servir a um deus com uma forja.

Hefesto é o deus do fogo, dos metais e da metalurgia na mitologia grega. Sua figura também estava associada ao
trabalho, pois foi um grande forjador e joalheiro. Na mitologia romana, ele é chamado de Vulcano.
301

Uma sombra passou pelos olhos de Luther. — Por que Arizona?

— Cinturão de mineralização metálica. Ele extrai cobre, ouro,


prata, chumbo e zinco. Isso lhe dá acesso a um pouco de ferro, mas
também de tungstênio , peridoto e azurita , que usa para criar armas
encantadas. Está construindo um exército. Além disso, Arizona está
quase deserto e é quente como o inferno.

— Ha-há-há, —disse Luther, seu tom seco. — Entendi. Inferno


como a cidade de Tofete . O Levante é um lugar bastante
movimentado agora. Ninguém pode balançar um cordeiro de
sacrifício lá sem atingir algum deus antigo.

O tungstênio ou tungsténio é um elemento químico de símbolo W e número atômico 74. Um metal de cor branco
cinza sob condições padrão, quando não combinado, o tungstênio é encontrado na natureza apenas combinado com outros elementos.

Peridoto, crisólita ou crisólito é uma variedade de forsterite, uma das formas da olivina, utilizada em
ourivesaria como gema. É geralmente verde-esmeralda ou verde-claro, podendo contudo, apresentar variantes de coloração amarelo-
esverdeado, verde-acastanhado ou castanho.

A Azurita é um mineral do grupo dos carbonatos com composição química Cu₃(CO₃)₂(OH)₂. Cristaliza no sistema
monoclínico, apresentando hábito prismático, sendo no entanto mais comum as ocorrências maciças, nodulares e estalactíticas.
Tofete (em hebraico: ‫ תופת‬ha-tōpheth; em grego: Ταφεθ; em latim: Topheth) significa Lugar de chama. Situava-se no Vale de Hinom
ao Sudoeste e ao Sul da antiga Jerusalém. Ali, segundo relatos bíblicos, faziam-se rituais de sacrifício humano dedicados aos deuses locais.
Levante é um termo geográfico impreciso que se refere, historicamente, a uma grande área do Oriente Médio ao sul dos Montes
Tauro, limitada a oeste pelo Mediterrâneo e a leste pelo Deserto da Arábia setentrional e pela Mesopotâmia. O Levante não inclui a Península
Arábica, o Cáucaso ou a Anatólia.
302

Ele não estava errado. Qualquer uma das regiões férteis onde as
civilizações antigas floresceram estavam se tornando territórios
fortemente disputados quando se tratava de divindades. Em contraste,
o território continental dos Estados Unidos era uma área vasta e
relativamente escassamente povoada, especialmente porque a
Mudança dizimara a população em geral. Muitas áreas se
transformaram em desertos. Um lugar perfeito para um avatar se
esconder e aumentar silenciosamente seu poder.

Luther coçou o queixo, pensando. — Então, Moloch tem reinado


livre no Arizona? Nada disso está me incomodando, mas até agora
todas as coisas ruins que você está descrevendo estão apontados para
lá. —Ele apontou vagamente para o oeste. — Eu imagino que está
prestes a me dizer algo relevante que tornará a coisa toda muito pior.

— As Bruxas do Oráculo tiveram uma visão.

— Oh, deuses. Elas sempre têm visões. São sempre vagas e sempre
ruins. Só uma vez eu gostaria de uma profecia proclamando que, sem
dúvida, tudo vai ficar bem.

Eu o esperei desabafar. Quando eu estava na escola, aprendi sobre


o princípio da incerteza de Heisenberg, que em essência afirmava que
a única maneira de determinar a posição e a velocidade de uma
partícula subatômica era atingi-la com outra partícula. Você saberia
303

onde a partícula-alvo estava no momento da colisão, mas o impacto


mudaria o curso e a velocidade dessa partícula-alvo, e seus novos
parâmetros seriam desconhecidos novamente.

As profecias funcionavam exatamente assim. O próprio ato de


saber o que poderia acontecer alterava o futuro de maneiras
complexas. É por isso que tudo o que Sienna revelava era
cuidadosamente calculado. Luther sabia de tudo isso. Ele estava
apenas atrasando o inevitável.

Luther suspirou dramaticamente e acenou para mim. — Diga-me.


Estou pronto.

— Quando a magia atingir seu auge, o Rei do Fogo deixará sua


fortaleza da miséria no Deserto Ocidental e viajará para o leste para
devorar a rainha que não governa e destruir a linhagem renascida.
Apenas aquele que compartilha o poder do Rei do Fogo pode se opor
a ele.

Luther piscou. — Moloch vai matar Kate durante um Flare.

— Sim. Eles se encontram. Kate morre. O mundo queima e se


torna escuridão.

— Isso é ... estranhamente específico para uma visão de Sienna.

— Foi uma visão muito real. Ela teve que ser sedada depois.
304

— O futuro não é definitivo, e Sienna vê a probabilidade mais


provável, —Luther pensou em voz alta. — Existem outras
probabilidades em que Kate sobreviva?

— Até agora todas as suas visões têm sido as mesmas. Se Kate


entrar em contato com Moloch de alguma forma, eles lutam, ela perde
e ele a mata. Se eu entrar em contato direto com Kate, a visão se torna
mais nítida e clara.

— Se você se encontrar pessoalmente com Kate tornará a morte


dela mais provável.

— Sim.

Luther ponderou sobre mim. Um longo momento se passou.

— Quantos anos tem esta profecia?

— Quatro anos.

— E você tem tentado lutar contra a profecia e falhou?

Eu concordei.

— A antiga natureza divina de Moloch é um fator significativo,


não é?

Eu balancei a cabeça novamente.


305

— Isso foi o que eu pensei. —O olhar de Luther ficou sombrio. —


Se Moloch fosse apenas um humano, a chance de um futuro diferente
seria maior, mas ele é um avatar, um deus louco de carne e osso. A
visão de Siena não é apenas a versão mais provável de um futuro, ela
é um comunicado da vontade e intenção ao longo do tempo de uma
divindade. Este futuro é incrivelmente resistente à mudança.

— Sim.

Luther olhou para o teto. Eu praticamente podia sentir as


engrenagens girando na mente dele.

— Moloch sabe da profecia?

— Sabe. Sienna tocou a mente dele.

— Isso foi arriscado. Por que Kate?

— Ele teme Shinar. A família de Kate repeliu as invasões de


Moloch no passado. Ele se preocupa com a unificação dos territórios
reivindicados por Kate e Erra. Para ele, cada uma delas tem seu
próprio reino e o alcance desses reinos aumentará ao ponto dele ficar
encurralado entre eles. Kate é um alvo mais fácil do que minha avó.

— Uma pergunta complementar: por que você?


306

— Eu não sei. De acordo com Sienna, eu sou o curinga. Talvez


seja porque fui educada por Shinar, mas o poder da minha linhagem
é fundamentalmente diferente da linhagem Shinar. Moloch não lutou
contra meus ancestrais. Ele não sabe o que eu posso fazer.

— Isso parece um argumento fraco para mim. —Luther franziu a


testa. Ele tamborilou com os dedos no braço da cadeira e pareceu
tomar uma decisão. — Então, você não pode ir para casa de sua
família.

— Não.

Ele se inclinou para trás e juntou os dedos das mãos. — Diga-me


como posso ajudá-la.

Expliquei sobre o artefato mágico, o guardião e os Ma’aviris. —


Este assassinato tem o mesmo modus operandi do Pastor Haywood.
Preciso de acesso e suporte.

— Isso eu posso fazer. Também manterei segredo sobre essa


conversa. Quem mais sabe que você é você?

— Minha avó e Conlan. Kate e Curran não me viram desde que


meu rosto mudou.

MO: Modus operandi é uma expressão em latim que significa "modo de operação". Utilizada para designar uma maneira de agir, operar
ou executar uma atividade seguindo geralmente os mesmos procedimentos.
307

— Bom, —disse ele. — Vamos tentar manter assim.

Alycia Walton. A porta


estava aberta e a luz das lanternas a gás no corredor desenhava um
longo retângulo no chão. O resto do escritório estava envolto em
escuridão, e eu afundei nela, envolvendo-me como se fosse um
cobertor.

Luther e eu fizemos um acordo: eu o manteria informado, e ele me


permitiria acesso não supervisionado às cenas de crime que eu
acreditava estarem conectadas. Então uma mulher do Riscos
Biológicos chegou e Luther teve que ir. O PAD e o Riscos Biológicos
terminaram de processar a cena e foram embora, levando o corpo com
eles. Fiquei lá, esperando.

Os sacerdotes de Moloch viriam. Os Ma’aviris eram


fanaticamente obstinados. Era só questão de tempo.
308

Eu precisava obter respostas desta vez. Quanto mais o tempo


passasse, maior era a probabilidade de Moloch matar Kate. Cada vez
que eu pensava nisso, minha garganta tentava se fechar em um punho.

A magia me puxou e mergulhei na visão de Turgan. A águia


estava empoleirada no topo do carvalho em frente à entrada do
Pavilhão Bowden. Três pessoas correram pelo gramado em direção ao
prédio, discretos e rápidos. Um correu para a entrada e os outros dois
dobraram a esquina.

Desconectei-me de Abra. Exatamente o que eu precisava agora.

Sons fracos vieram do outro lado da janela quebrada. Um leve


farfalhar da cerca viva, um arranhão contra a pedra. Três dois um …

Ascanio pulou pela janela aberta e caiu no tapete.

— O que? Nenhuma manobra de rolamento de combate ? —Eu


perguntei.

Ele girou para mim, seus olhos brilhando em rubi quando


captaram a luz do corredor. Por um momento Ascanio pareceu pronto
para atacar, depois se endireitou, sua expressão indiferente.

Uma manobra ensinada a algumas forças armadas, usada no combate corpo a corpo. Muito parecido com um
passeio de verão, usando seu ombro como ponto de impacto no solo e usando o impulso para a frente para fazer uma pessoa rolar para a
frente, caindo de pé.
309

— Você novamente. E continuamos nos encontrando assim.


Deve ser o destino.

Oh não, o retorno do Senhor Conquistador. — Qual é o seu interesse


no assassinato do pastor Haywood?

Ascanio pegou uma cadeira, colocou-a diante da mesa, a virou e


sentou-se, com os braços apoiados nas costas da cadeira.

— Meu interesse é particular. Posso ser persuadido a trocar


informações, mas você não tem autoridade para me questionar.

— E você não tem autoridade para estar aqui.

— Nem você.

Eu dei a ele um pequeno sorriso. — Na verdade, eu tenho.

Ascanio sorriu de volta. — Tudo bem, eu vou jogar. Quem lhe


deu essa autoridade?

— Luther Dillion, diretor assistente do Riscos Biológicos.

Ascanio apoiou o queixo nos braços. — Se isso é verdade, estou


invadindo sua cena de crime. Qual é o seu plano para me remover?

De alguma forma, ele conseguiu fazer essa frase parecer sugestiva.


— Você está sendo enfadonho.
310

— É uma falha pessoal. Disseram-me que também posso ser


revigorante nas circunstâncias certas.

Aposto que sim. — O Senhor das Feras sabe que você está aqui?

— Este é um assunto do Clã.

Ele tinha a autorização de Andrea e Rafael e estava confiante de


que eles o apoiariam se as coisas dessem errado. — Por que o Clã
Bouda se importa com esses assassinatos?

— Nós ainda não estamos negociando. Que tal isso? Eu vou te


contar a minha parte, se você me contar a sua.

Eu dei-lhe um suspiro teatral. — Você deve pensar que tem um


sorriso encantador.

— E não tenho?

— Sabe o que eu vejo quando você sorri? Dentes. Dentes que


podem crescer em grandes presas assustadoras. Nós dois sabemos que
é uma ameaça.

Ele se empurrou para mais longe, levantando a cadeira ainda


sentado nela. — Você se sente menos ameaçada agora?

— Na verdade, não. Continue se afastando. Passe pela porta, pelo


corredor, pelos degraus ...
311

Ele inclinou a cabeça para o lado. Ascanio era realmente


impressionante.

— Por que você não gosta de mim? —Ele perguntou.

— Você me ameaçou na ponte, apareceu sem ser convidado na


minha casa, fez ameaças veladas e agora está contaminando minha
cena do crime.

— A ponte foi um mal-entendido, eu fui à sua casa para me


desculpar e oferecer ajuda e, quanto à cena do crime, eu já estive aqui
antes de você. —Ele abriu os braços, a pura imagem da inocência. —
Eu não tenho culpa.

Eu ri. Não pude evitar, acabou saindo.

— Você parou de fazer cara feia por um segundo aí. Está tudo
bem?

— Mara ... —Eu me segurei. Estava prestes a dizer ‘maravilha’, e


quando ele ouvisse, o jogo terminaria. Era uma das palavras favoritas
da minha mãe. — Estou perfeitamente bem.

Uma sensação quente tomou conta de mim. Meus ouvidos


captaram uma lamentação fantasma, oferecida em uma voz ansiosa.
Minhas narinas captaram o cheiro de ervas queimadas e carne
312

humana. Deveria ter sido moralmente revoltante, e intelectualmente


foi, mas havia uma parte de mim que achava isso reconfortante. Uma
voz muito baixa e fraca sussurrou em minha mente: ‘É justo, isso
deveria ser oferecido a você, é seu por direito.’

O Ma'avir chegou.

O lamento ecoou em minha mente. Meu pulso acelerou. Na


primeira cena do crime eu não tinha conseguido sentir o Ma'avir, não
antes de me concentrar no grifo. Este irradiava magia. Ele pressionava
a minha mente, como uma parede quente, sugando o ar e dificultando
a respiração.

Esta seria uma luta totalmente diferente. Eu tinha que tirar


Ascanio daqui. Não podia deixar ele se machucar.

— Não estamos chegando a lugar nenhum, —disse ele. — Que


tal isso? Cada um de nós faz uma pergunta e o outro dá uma resposta
honesta?

— E então você vai embora.

— Combinado. Damas primeiro.


313

Recostei-me na cadeira. — Que vantagem você pessoalmente


e/ou o Clã Bouda ganhariam se vinculassem esses assassinatos a
Desandra Kral?

O sorriso encantador desapareceu. O homem que começou a se


levantar suavemente da cadeira era letal e perigoso. Ele andou pela
sala, colocou as duas mãos na mesa e se inclinou para frente. Ele
olhou para mim, seus olhos pegando fogo como dois rubis brilhantes
de sangue. Era um olhar que dizia que eu era sua presa.

Um calafrio percorreu minha espinha. Ascanio estava certo antes.


Quando ele ameaçasse alguém, esse alguém não teria dúvidas disso.
De repente, o escritório ficou pequeno demais e eu estava ciente de
que teria que passar por ele para chegar à porta.

— Você fez um acordo. —Eu mantive meu tom frio. — Responda


ou vá embora.

O brilho vermelho em seus olhos ficou mais intenso. Seu olhar era
difícil de encarar. Isso seria duas vezes em uma noite. Primeiro Derek,
agora ele. Desta vez, eu não estaria correndo.

Segundos passaram.
314

Ascanio abriu a boca. Sua dicção era perfeita, mas sua voz era
tricotada de um rosnado. — Tenha muito cuidado. Você está jogando
um jogo perigoso.

— Isso não é uma resposta.

— É um conselho gratuito. Você teve problemas com os humanos


brutamontes. Eu não vou ser tão fácil.

Isso foi o suficiente. Se demorasse mais, Ascanio seria arrastado


para a luta. Eu tinha que tirá-lo daqui.

— Não foi o que eu ouvi sobre você.

Ele se virou e saltou para fora da janela. O vazio repentino foi


surpreendente.

Levantei meu queixo. — Estamos sozinhos agora. Mostre-se, seu


verme. Eu não tenho a noite toda.

de escuridão que se formava no canto da sala se moveu.


315

Fluía do teto, do chão, para o centro, como se um grande pedaço


do mais fino tecido tivesse sido aberto sobre a parede oposta e o chão,
e agora alguém o pegara com um gancho e o puxava em minha
direção. Eu me forcei a ficar parada, minha mão na haste da minha
lança.

A escuridão se fundiu e se transformou em uma forma humana,


alta, magra, masculina e feita de fogo. Fumaça rodopiou ao redor dele
e se transformou em um volumoso manto preto e uma longa capa. A
pele humana da cor de alabastro o cobria, obscurecendo o fogo, mas
falhando em escondê-lo completamente. As chamas ainda estavam lá,
lambendo sua pele por dentro e fazendo-o cintilar com um suave
brilho pêssego aqui e ali.

Não era qualquer Ma'avir. Era um Sumo sacerdote. Merda. Pelo


menos tirei Ascanio daqui.

O Ma’avir cruzou as mãos na frente dele, palma da mão esquerda


para cima e a direita descansando em cima dela. Ele não tinha pêlos.
Sem barba, sem sobrancelhas, sem cílios. Apenas uma pele lisa
esticada sobre feições angulares. Seus olhos, um verde azulado claro,
me encaravam. Não havia surpresa neles, apenas reconhecimento. O
Ma’avir veio aqui especialmente para mim.
316

A quantidade de magia que ele precisava para manter uma forma


humana tinha que ser impressionante. Eu não tinha certeza se
venceria essa luta.

O sumo sacerdote me fez uma reverência superficial, pouco mais


que um aceno de cabeça. — Finalmente nos encontramos,
Dahanu.

— Que razão eu teria para encontrar um assassino de crianças?

Levítico 18:21 proibia os fiéis de sacrificar crianças. A frase


específica dizia: ‘E não deixará passar nenhuma das suas sementes pelo
fogo a Moloque.’ Os Ma'aviris eram chamados assim porque eles
praticavam o contrário. Eles eram aqueles que sacrificavam crianças
vivas ‘passando-as pelo fogo’, em adoração ao seu deus. Ninguém se
tornava um sumo sacerdote antes de matar centenas de crianças.

— Eu me escondi bem, mas você sabia que eu estava por


perto. Diga-me, Dahanu, a minha magia te chama? O fogo
sacrificial tem um cheiro doce? O poder dele tenta você?

— Não. O cheiro me deixa enjoada.

— É mesmo? —Ele inclinou a cabeça como um cachorro


confuso. — Achei que isso te chamava. É um desejo, uma
317

necessidade obsessiva que somente o sacrifício pode satisfazer.


Imagine prová-lo. Imagine a onda de poder inundando suas
veias pulsantes.

— Não são as veias que pulsam. São as artérias.

— Por que negar o êxtase a si mesma?

— Eu não sei, talvez a parte de crianças vivas em chamas


provavelmente tem algo a ver com isso.

— A vida é dor e sofrimento. Uma jornada desagradável e


brutal de labuta e arrependimento.

A magia do Ma'avir me pressionou como uma pedra pesada.

— Thomas Hobbes ligou. Ele quer sua frase de volta.

— As crianças são inocentes e puras. Nós as poupamos de


uma vida inteira de miséria. Em um breve lampejo de dor, suas
almas se unem ao nosso Deus na gloriosa eternidade da vida
após a morte.

Thomas Hobbes foi um matemático, teórico político e filósofo inglês, autor de Leviatã e Do cidadão. Na
obra Leviatã, explanou os seus pontos de vista sobre a natureza humana e sobre a necessidade de um governo e de uma sociedade fortes.
318

— Que nobre! Seu deus se alimenta do sofrimento.

O Ma'avir me deu um sorriso condescendente. — Todos os


deuses se alimentam do sofrimento. Sem isso, não há orações
ou ofertas. A humanidade é egoísta. Eles dão apenas quando
precisam. Se este mundo fosse maravilhoso e perfeito e a vida
fosse justa, que necessidade haveria para os deuses?

Quanto mais eu o fizesse falar, maior a chance de descobrir por


que ele estava em Atlanta. O problema era que o sumo sacerdote era
muito experiente para deixar escapar algo, a menos que eu o
provocasse. Eu tinha que jogar uma isca para ele.

— O Deus cristão não exige sacrifício de sangue.

O Ma'avir riu baixinho. — Ah, exige sim. O deus cristão


sempre foi sedento por sangue, exigente, mas quando a sua
popularidade começou a diminuir, ele se camuflou atrás de uma
versão mais gentil e suave de si mesmo. Quantos morreram em
nome desse humilde deus? Quantos foram mortos pelo mártir?
Os filhos primogênitos eram seus favoritos.

Está certo. Continue falando. — E ainda assim seus seguidores


florescem.
319

O Ma'avir zombou. — Ingênuos que engolem


voluntariamente mentiras e cegos que fecham os olhos por
medo de verem a verdade. As religiões abraâmicas são o
maior golpe do mundo moderno.

Como insultar o judaísmo, o cristianismo e o islamismo em três


frases ao mesmo tempo. — Diga-me, quando eu te matar, você
passará para a eternidade gloriosa da vida após a morte e se deleitará
no amor de seu deus?

Ele sorriu. — Eventualmente, quando eu morrer, sim. Mas


não será hoje e não será por suas mãos.

Ele tinha muita certeza disso. Eu me inclinei para frente. — Uma


coisa me intriga. Talvez você possa me esclarecer, considerando seu
vasto conhecimento.

— Farei o meu melhor.

— As religiões abraâmicas, as quais você zomba, expulsaram seu


deus Moloch do mundo, porque ninguém mais aceitava sacrificar seus
filhos e sua descendência em nome de um glutão raivoso e ansioso

Religiões abraâmicas são as religiões monoteístas cuja origem comum é reconhecida em Abraão ou o reconhecimento de uma tradição
espiritual identificada com ele. Essa é uma das três divisões principais em religião comparada, junto com as religiões indianas e as religiões
da Ásia Oriental.
320

pela próxima dose vinda do altar sacrificial. E agora, já que ninguém


sabe quem ele é, Moloch está faminto por seguidores, mas ele teve que
renascer e tornou-se carne e osso.

O Ma'avir olhou para mim. Espere, vou chegar lá.

— Então, me responda uma coisa, Sumo Sacerdote. Se eu te


matar agora, e você passar pelo véu mortal, o que encontrará do outro
lado? Sua gloriosa eternidade está vazia. Seu deus não está lá. Ele está
no Arizona cavando no deserto. Sua alma flutuará em nada, perdida
e sozinha. Sabes o que é o inferno? O inferno é a ausência de deus.

Seu rosto dele se contraiu. Ha! Aceitei em cheio. Afundei o navio de


guerra dele.

O Ma'avir abriu a boca. — Diga o que quiser. Lute com tudo


o que tens. Pode se debater, espernear, gritar, nada vai adiantar.
Ele a quer e você irá até ele. Você o adorara e, quando chegar o
momento, implorará para levar a ele a cabeça de sua mãe em
uma bandeja de prata. Chorará lágrimas de gratidão quando ele
devorar os olhos dela.

— Isso foi bonito. Deveria escrever essa coisa. Se meu destino é


tão inevitável, o que você está fazendo aqui em Atlanta? Por que não
apenas me espera?
321

Ele se inclinou para frente, as chamas dentro dele queimando. —


Eu vou esculpir você em pedaços e levá-los ao meu deus. A gota
de poder que você roubou dele a manterá viva e, quando
acordar meio século a partir de agora em seu abraço ardente,
falaremos novamente.

O medo martelou uma picada fria no meu coração. Eu podia ver


essa imagem na minha cabeça, meu corpo em pedaços, agarrando-se
à vida, consciente, observando impotente todos que eu amava
morrerem um por um. Eu tinha que matá-lo. Se ele vencesse, em que
tipo de mundo eu acordaria?

O sumo sacerdote me mostrou os dentes, presas vermelho-sangue


feitas de fogo. — Posso ouvir seu coração palpitar. Assisti você
andar por essa cidade que costumava chamar de lar, usando
uma pretensa arrogância como armadura. Agora você entende.
Ele é um deus e você ainda é uma criança abandonada,
desejando aprovação e tremendo no escuro.

O medo se cristalizou em uma nova emoção e eu deixei que me


alimentasse. — O medo não é a única coisa que pode fazer um
coração palpitar.

— O que mais está em seu coração, criança órfã?


322

— Ódio.

Balbuciei Palavras de Poder, um comando originado de uma


linguagem tão antiga que moldava a própria magia. ‘Sert ranam
girreh!’ Feche os portões da cidade.

A magia pulsou de mim em um lampejo de dor ofuscante,


espirrando contra os limites da sala, e irrompeu em uma parede
invisível, separando-nos da realidade. Minha avó usou esse feitiço há
milênios quando os exércitos inimigos cercaram as cidades de Shinar.

O Ma'avir recuou.

Pulei sobre a mesa, Dakkan em minhas mãos, e esfaqueei o


sacerdote, mirando logo abaixo do esterno. A ponta da lança brilhava
em vermelho enquanto cortava o ar. Eu trouxe duas cantinas cheias
de sangue de vampiro, misturados com o meu sangue. Uma hora
atrás, quando me sentei atrás da mesa, esperando o sacerdote, revestir
Dakkan na mistura de sangue e o solidifiquei, transformando a ponta
de lança de metal em uma arma de sangue afiada.

O Ma'avir virou fumaça. A lança o perfurou e passou sem


resistência.

O redemoinho de fumaça subiu para a janela e bateu na parede


mágica invisível, ficando sólido por um microssegundo. A magia
323

rebateu na minha cabeça como um sino enorme sendo atingido por


um martelo.

Eu o esfaqueei e ele ficou etéreo novamente. Minha ponta de


lança rasgou a fumaça.

O sumo sacerdote correu em direção à porta e bateu na minha


parede mágica novamente. Eu o esfaqueei antes que o som do impacto
rolasse através de mim. Dakkan encontrou apenas o ar. Errei
novamente. Droga. Eu não conseguia perfurar a fumaça e ele não
podia quebrar a parede mágica a menos que se tornasse sólido. Bem.
Eu poderia continuar assim até ele ficar cansado ou eu ter sorte.

Nós dançamos do outro lado da sala, ele se jogando na parede


invisível e eu tentando acertá-lo com minha lança. O mundo se
resumiu em fumaça e ponta da minha lança.

Onde estava o fogo? Absorver o Olho de Moloch me concedeu


alguma imunidade, mas tinha limites, e um sumo sacerdote o
queimaria em uma única explosão. Por que este quarto não estava um
mar de fogo?

Usar a Linguagem de Poder consumiu um pedaço grande da


minha magia. Eu poderia acertá-lo com outra Palavra—tinha um
arsenal inteiro à minha disposição—mas não havia garantia de que
324

funcionaria. Ele estava segurando o seu poder e até eu conhecer toda


a extensão de sua magia, eu também estava segurando o meu. A lança
de sangue funcionaria muito bem.

Esfaqueei. Esfaqueei. Esfaqueei.

Minha lança cortou através de carne sólida. O fogo espirrou na


parede invisível de magia e o Ma'avir voltou a virar fumaça. Tinha
que pegá-lo. Eu só tinha que ser um fio de cabelo mais rápida.

A fumaça se transformou em fogo. Uma nebulosa brilhante de luz


e calor espalhou-se perto do teto e se contraiu, como uma estrela
colapsando em uma pequena centelha incandescente. Ele atravessou
a sala como uma bala, transformando-se em uma luz ofuscante e bateu
em minha parede.

Uma agulha quente e escaldante de dor perfurou meu crânio de


uma têmpora a outra e desapareceu. Ele ultrapassou a parede. Merda.

O fogo explodiu do lado de fora da janela, alcançando o Ma'avir.


Virei-me para a mesa, desativando a parede invisível enquanto me
movia, agarrei meu arco, virei e atirei. Demorou menos de meio
segundo. A flecha atravessou o Ma'avir e voou pelo ar da noite.

Sem danos.
325

O sumo sacerdote riu. — Me siga, filha de Shinar. Pegue-me.


Me expulse da sua cidade. Tente tirar minha vida antes que eu
me deleite com os olhos de seus entes queridos. Mostre-me o
que você pode fazer.

Soltei um assobio estridente, tirei minha lança da mesa e corri


escada abaixo. Ele me desafiou a persegui-lo, o que significava que
tinha uma armadilha preparada e me levaria a ela. Esse era o plano o
tempo todo, e eu o seguiria até a armadilha. Não tinha escolha. Ele
tinha visto Ascanio e provavelmente Luther. Se seu discurso não fosse
um blefe, poderia ter visto outros. Stella. Marten. Nick. Minha família.

Tinha que matá-lo, não importa o que fosse necessário.

Saí pela porta da frente. O Ma'avir pairava acima do gramado,


quinze metros no ar. Muito alto. Desmontei Dakan e deslizei as
metades na bainha nas minhas costas.

Tulipa veio correndo, corri para ela e pulei na sela. Acima de nós,
o Ma'avir surgiu no céu, um redemoinho de tinta negra que apagava
as estrelas à medida que passavam. Turgan alçou voo e eu a mandei
alto, fora do alcance do sacerdote. Persegui a sombra no céu em
direção ao oeste.
326

Tulipa correu pelas ruas desertas antes do amanhecer. O


sacerdote virou para o norte. Virei à esquerda em Clifton. Tulipa
começou a galopar. Os edifícios passaram correndo por nós. A fumaça
virou à direita, para o nordeste. Floresta apareceu à minha frente, a
entrada da trilha que atravessava a floresta estava iluminada por um
único poste de luz. Guiei Tulipa para ela.

A trilha dobrou à esquerda, depois à direita. Tulipa fez a curva


rápida demais. Galhos de árvores chicotearam meu rosto.

Eu não conseguia ver o sacerdote, mas minha magia me disse que


ele ainda estava lá, arrastando fumaça ardente e ecos de choro
humano.

As árvores à direita acabaram, como se tivessem sido arrancadas.


O asfalto substituiu a terra batida. Galopamos ao longo de um lago,
os cascos de Tulipa batiam muito alto no chão.

Um fragmento de escuridão apareceu na borda da minha visão e


desapareceu além das árvores à frente. Eu o mataria hoje à noite. Era
isso ou meu povo começaria a morrer.

Chegamos a uma ponte e a atravessamos. A trilha virou à direita,


as árvores se separando como mãos abertas. Uma enorme ruína
327

apareceu à frente, cinza clara à luz da lua que desaparecia no céu.


Uma placa apareceu. Centro Médico de Atlanta V.A.

A coisa que eu estava perseguindo pairou acima da placa e


mergulhou. Era isso.

Eu me concentrei na visão de Turgan. Estava confusa e escura,


mas vi a ruína lá de cima. O telhado havia sumido, mas as paredes
externas e algumas internas ainda estavam em pé, projetando-se no
céu a uma altura de quinze a vinte metros de altura, transformando o
prédio abandonado em um labirinto imprevisível. O interior do centro
médico tinha desmoronado e foi abandonado, provavelmente foi
saqueado ou virou fonte de extração de matéria prima.

Uma faísca acendeu no centro da ruína. O Ma'avir certificando-


se de que eu o visse.

Eu desmontei. Tulipa olhou para mim, de olhos arregalados, e eu


a abracei. — Se eu não voltar, volte para a sua mãe.

Ela me bateu com a cabeça. Peguei meu arco na sela e entrei no


prédio.

O ar cheirava a pó de concreto, um odor seco e calcário que


permanecia em edifícios mastigados por magia. Ervas daninhas
cresciam no chão desintegrado, alargando as rachaduras. Aqui e ali,
328

paredes se erguiam, distorcidas por restos de fiação e encanamento.


Deslizei por elas, silenciosas e rápida.

Uma leve brisa soprou em meu rosto, trazendo uma pitada de


fumaça. Muito perto agora.

Atravessei uma porta em arco. Uma grande sala quadrada estava


à minha frente, sob o céu aberto. O chão era uma lembrança do que
já foi, pedaços de azulejos aqui e ali pontuados por mato, mas as
paredes eram sólidas, sem interrupções. No outro extremo, o Ma'avir
esperava, posicionado contra o pano de fundo claro.

Longe demais para uma flecha. A esta distância ele conseguiria se


desviar.

Eu dei um passo. Outro.

O Ma'avir esperava.

Eu estava dentro de uma caixa da morte e ele queria que eu


entrasse o suficiente para ele fechar a porta da armadilha.

— Eu estou fazendo todo o trabalho sozinha, —eu disse a ele. —


Venha. Mostre-me o poder do escolhido de Moloch.

— Você está certa. Seguiu-me até aqui. Deixe-me mostrar a


hospitalidade que reservamos para a realeza de Shinar.
329

O Ma'avir abriu os braços. O mundo pegou fogo.

O fogo subiu como uma monstruosa tempestade de poeira e rolou


em minha direção. Eu fechei meus olhos. O fogo chamuscou minha
pele e continuou. Abri meus olhos. As paredes estavam em chamas.
Elas não deveriam estar, mas brilhavam, tão brilhantes que pareciam
brancas. O calor me assaltou, insuportável e denso. Não era nada
parecido com o fraco ataque que o outro sacerdote havia tentado. Era
como estar no coração do sol. Ou inferno.

No outro extremo da sala, o sacerdote era uma chama viva, um


simulacro de um inferno feito pelo homem.

O calor queimou minhas costas. Eu dei um passo à frente. A sala


estava encolhendo, ou melhor, o fogo estava se movendo. Ele estava
me conduzindo em sua direção.

— Ranar kair! —Venha a mim.

A agonia das Palavras de Poder que proferir afundou suas presas


em mim e me rasgou. Por um segundo aterrorizante, pensei que
tivesse me matado.

A torrente de poder disparou de mim para o sacerdote. O fogo


brilhou ... e nada.
330

Eu havia atraído cinquenta soldados inimigos para mim com esse


comando antes. O Sacerdote nem mesmo vacilou.

Não funcionou. Ele não tinha corpo. Ele era o fogo sagrado de
Moloch, e isso o colocava além do meu poder. Eu poderia alterar o
ambiente ao seu redor, poderia prendê-lo em um feitiço, mas um
ataque direto iria falhar.

O calor lambeu minhas costas novamente. As paredes de pedra


cederam, derretendo.

Mais um passo.

O chão queimado a seis metros à minha frente explodiu em


chamas. A fina camada de solo queimou, revelando um buraco
aberto. Lanças afiadas de um metro e meio de altura se eriçavam no
fundo. Não de aço, era tungstênio, e começava a brilhar com o calor.
Queimar-me consumiria minha carne. Levaria mais tempo para me
regenerar. Poderia até me matar. O sumo sacerdote não queria se
arriscar. Ele havia preparado uma armadilha de tigre para mim.

Eu tinha uma escolha: poderia queimar até a morte, ou poderia ser


empalada e cortada em pedaços. Quanta gentileza.

O calor me escaldou. Eu dei outro pequeno passo.


331

O poço tinha pelo menos dez metros de diâmetro. Mesmo se eu


fosse uma campeã olímpica, não o atravessaria em um pulo.

O ar parecia espesso como sopa. Estava ficando mais difícil


respirar.

Eu não poderia morrer aqui. Não morreria aqui. Eu tinha


chegado longe demais.

A parede de fogo atrás de mim se moveu mais quinze centímetros.

Tinha uma chance. Uma chance de chegar perto o suficiente. Se


eu falhasse, se não conseguisse ...

Mais alguns centímetros. Eu dei outro passo. Este seria o meu


último.

Arranquei as cantinas de sangue do meu cinto e abri as tampas.


Duas pequenas lâminas apareceram. Eu as enfiei nos meus ombros.
A magia tremulando no meu sangue libertou-se, pronta para agir.
Puxei a minha magia e ela disparou de mim em correntes gêmeas,
transformando-se em névoa carmesim. Joguei o conteúdo das
cantinas no ar, misturando-o com meu sangue que saia dos cortes
feitos pelas lâminas, e corri para o poço, com o arco na mão.
332

O fogo do Ma'avir explodiu e eu vi seu rosto dentro dele, os lábios


abertos em um sorriso largo. Ele pensou que me pegou, pensou que
eu tinha escolhido a morte mais fácil.

A névoa de sangue correu para mim, me cobrindo, embainhando


minha pele e meus cabelos. Eu tinha me vestido com uma armadura
de sangue assim centenas de vezes. Era tão fácil quanto respirar agora.
Eu só esperava que fosse forte o suficiente.

Pulei no poço. Por um instante, voei sem peso, enquanto meu


sangue e magia se combinavam em meu corpo. Então a gravidade
bateu e eu mergulhei como uma pedra, o Ma'avir desaparecendo de
vista. Uma risada baixa rolou pela sala.

A armadura de sangue se fechou, me cobrindo da cabeça aos pés.


Apenas meus olhos e narinas permaneceram descobertos. Eu
precisaria da visão e do ar pelos próximos segundos.

Meus pés tocaram as lanças, o calor me queimou, mas consegui


correr por cima delas, minhas botas de sangue abrandando as pontas
afiadas, moldei uma flecha do meu sangue enquanto corria. A borda
do poço apareceu na minha frente. Eu perdi um precioso meio
segundo para me agachar e pulei para cima. O rosto chocado do
sacerdote apareceu diante de mim, a apenas seis metros de distância.
333

Um cone de fogo rugiu em minha direção, incrivelmente quente.

Fechei os olhos, deixando a armadura de sangue fluir por todo o


meu rosto. Surda e cega, e atirei.

Pousei sem jeito. Meu tornozelo esquerdo dobrou, calor


queimando as solas dos meus pés através da armadura.

Não havia ar. Prendi a respiração e esperei. Parecia que eu estava


sendo cozida viva. Corri muito rápido. Meu corpo gritava por ar.

Cambaleei para frente. Os poucos momentos preciosos de


oxigênio que meu movimento me custou não faria diferença.

Vinte segundos.

Trinta.

Foda-se.

Tirei a armadura do meu rosto. Ela se desfez em pedaços pretos,


desmoronando no ar, sua magia se exaurindo.

O Ma'avir estava pendurado na parede na minha frente, não era


mais feito de fogo, sua pele pálida era agora carne. Minha flecha havia
perfurado seu coração, ou qualquer outra coisa no lugar que
costumava ser um coração.
334

Peguei ele. Eu o peguei. — Por que você está aqui? Por que quer
a criatura divina que matou o Pastor? Conte-me!

Seus olhos claros focaram em mim. — Entendo agora.


Entendo por que ele quer você.

— Por que ele quer a criatura?

— Aquele que comer o coração da criatura terá um breve


vislumbre do verdadeiro futuro. Uma vez vislumbrado, esse
futuro não mudará. —A voz do Sacerdote enfraqueceu. — Me
perdoe. Quando subir ao lado dele, vou servi-la na vida após a
morte.

Seus olhos reviraram em sua cabeça. Eu desabei no chão, refiz a


parte da armadura que cobria meu rosto, com o pouco de sangue que
ainda podia perder.

O sumo sacerdote explodiu.


335

e uniforme. O céu
havia se iluminado em um cinza luminescente antes do amanhecer e
o Centro da Cidade arruinada deslizava à minha esquerda, escura
contra o pano de fundo perolado. Minha armadura de sangue ficou
preta como carvão, sua magia se foi. A armadura se desmoronou nas
articulações com os movimentos de Tulipa, se desfazendo em pó
preto. O vento bateu e levou embora.

Tudo doía. Flutuava em um mar de dor, ancorada na realidade


por ele. A viagem terminaria eventualmente. Eu só tinha que esperar.

Tulipa virou para a nossa rua. A vista familiar surgiu. A pilha de


escombros com um pedaço de parede revestida de azulejos turquesas
brilhantes saindo dela. O imenso carvalho espalhando seus galhos
enormes onde Turgan gostava de se sentar. A beira do quintal. A porta
da frente.

Escorreguei nas costas de Tulipa em uma chuva de pó preto.


Acomodá-la exigiria um esforço sobre-humano, mas tinha que ser
336

feito. Coloquei-a no estábulo, verifiquei se havia água limpa e me


obriguei a caminhar até a porta da frente. Passei pelas duas Proteções
externas, tranquei a porta atrás de mim. O ar cheirava a ervas, um
aroma forte e pungente. Conlan havia encontrado o pacote de
purificação de ar de minha tia e o queimou no braseiro para encobrir
seu cheiro. Se algum metamorfo aparecesse, o cheiro das ervas
encobriria qualquer outro cheiro.

Meu irmão era incrível.

Arrastei-me para o meu santuário.

Girar a chave na fechadura doeu. A porta se abriu, revelando o


familiar piso e as colunas de arenito. A água murmurava no riacho,
fluindo lentamente.

Fechei a porta do santuário atrás de mim, ouvi a barra de metal


grossa da fechadura deslizar no lugar e finalmente a soltei. A
armadura de sangue rachou, perdendo a pouca integridade que
restava. Andei devagar pelo caminho e, enquanto me movia, os
últimos pedaços da minha armadura caíram de mim, espatifando no
chão em nuvens de poeira escura.

Eu me concentrei na rosa de metal na minha mesa. Quase lá.


Apenas mais alguns passos.
337

Quase.

Meus dedos se fecharam sobre o caule frio. Peguei a flor do vaso


com meus dedos feridos.

Consegui.

O saco de ervas era o próximo, um saco comum com dois quilos


de uma mistura de ervas de valor inestimável, escondida no canto da
terceira prateleira. Quando se quiser esconder algo precioso, coloque-
o bem à vista.

Levei a sacola e a rosa para o meu quarto. A água na banheira


estava calma. O riacho a mantinha cheia e as bobinas mágicas
enterradas embaixo dele faziam com que a água ficasse quente quando
a magia estava em alta.

Coloquei a rosa na borda da banheira e esvaziei o conteúdo do


saco na banheira. Ervas, flores e pós caíram na água, liberando
redemoinhos de cor azul e depois vermelho. Folhas e flores secas se
abriram lentamente. Azevinho-do-mar moído, mandrágora raspada,
selo-de-Salomão, pulsatilla, botão-de-ouro, sálvia, ginseng, lavanda,
valeriana, malva francesa ... Todas tratadas com magia,
cuidadosamente processadas e preparadas por minha tia-avó. Acabei
de jogar fora vinte e cinco mil dólares na banheira.
338

O reflexo do espelho na parede lateral não teve piedade. Toda a


minha frente estava vermelho vivo. A armadura tinha mantido o dano
contido, mas agora as bolhas se abriram por todo o meu rosto e
pescoço.

Tirei uma faca do cinto e cortei minha camiseta. Meu peito e o


estômago eram uma constelação de bolhas. O calor me cozinhou
como uma lagosta na casca.

Cortei meu sutiã. Ele se desfez. A dor me sacudiu e eu


choraminguei. Eu só tinha que aguentar o suficiente para tirar minhas
roupas.

As botas foram as piores. As solas dos meus pés eram feridas


abertas, com bordas carbonizadas, sem pele. Tirei a presilha do meu
cabelo, soltando o coque. Meu cabelo caiu ao meu redor. A armadura
o protegeu do fogo direto, mas mesmo que não tivesse, eu não ficaria
careca por muito tempo.

A água do banho havia espumado e ficado na cor de berinjela,


quase roxa opaca. Pétalas e folhas cobriram a superfície. Mergulhei
meu pé na água. Eu sabia que estava quente só o suficiente para deixar
as ervas mais ativas, mas parecia escaldante. Cerrei os dentes e me
forcei entrar, sentei-me no pequeno banco. O calor era insuportável.
Mergulhei, de novo e de novo, mergulhando meu rosto na mistura.
339

Lentamente, a dor ficou entorpecida, atenuada pelas ervas


analgésicas. Eu queria minha rosa, mas a deixei do outro lado da
banheira, fora de alcance, e chegar lá agora estava além de mim. Sem
querer havia jogado a minha camiseta cortada em cima da rosa, e
agora só conseguia ver a sugestão das pétalas de metal espreitando por
baixo do tecido encharcado de sangue. Bom o bastante.

Uma onda de agonia passou por mim, resultado da magia que


roubei de Moloch e da minha própria magia, ansiosa para reparar o
dano. Doía agora, mas eu sabia que doeria mais antes que meu corpo
estivesse completamente curado. Descansei minha cabeça na borda
lisa, a água logo abaixo dos meus lábios, inalei a névoa aromática
subindo do banho medicinal e deixei o açafrão, a erva-cidreira e a
valeriana me acalmarem.

estava sozinha.

A constatação ultrapassou a barreira da minha sonolência,


disparando um alarme interno. Alguém estava comigo no quarto.
340

Procurei pela magia e não encontrei nada. A tecnologia estava em


alta.

Ninguém deveria estar aqui. Eu havia trancado as duas portas


atrás de mim. Tinha certeza absoluta.

Água morna roçou meu pescoço. Eu ainda estava encostada no


pequeno banco da minha banheira.

Tentei abrir meus olhos. Enxerguei uma pequena fresta de luz,


bloqueada por algum tipo de cortina translúcida. Que diabos? Eu estava
cega?

Sentei-me mais reta. Algo se rasgou com um estalo seco e a


cortina caiu. Uma fina camada quase transparente da minha pele se
desprendeu do meu rosto e caiu na água. Ecaaaa.

Na minha frente, além do outro lado da banheira, Derek estava


sentado no chão.

Meu coração bateu forte no peito, enquanto meu cérebro lutava


com o que os meus olhos viam, tentando rapidamente dar sentido a
isso. Eu estava acordada e lúcida. Ele não era um sonho. Também
não era uma alucinação. Aparentemente, tudo parecia normal e, além
disso, se meu cérebro confuso por remédios me proporcionasse a visão
de uma versão de Derek, não seria um trajando uma roupa de ninja
341

moderno manchado com pontos pretos e cinzas. Eu nunca o tinha


visto usar algo assim em toda a minha vida.

Não, era ele. Em carne e osso. Sentado no chão do meu quarto e


olhando para mim com olhos ardentes, enquanto eu descamava pele
morta como uma cobra.

Encarei de volta. De alguma forma ele parecia mais duro, frio,


incisivo e vigilante do que eu me lembrava. A fina rede de cicatrizes
cruzava seu rosto. Anos atrás, algumas criaturas derramaram prata
derretida no rosto dele. Ele deveria ter morrido. Havia sobrevivido
contra todas as probabilidades, e as cicatrizes foram o preço que ele
pagou. Antes das cicatrizes, as pessoas costumavam descrevê-lo como
bonito. Agora elas usavam outras palavras. Perigoso. Assustador.
Letal.

Ele sentava-se relaxado, como se encontrar uma fortaleza


camuflada cheia de estranhos artefatos mágicos e armas no meio de
Atlanta fosse apenas uma das coisas que tinha feito hoje. Não parecia
se incomodar com isso. Não parecia incomodado por eu estar sentada
nua em uma água escura ou nos meus rituais de cura. Ele apenas
observava com seus olhos brilhantes como dois faróis acesos. O
dourado nos olhos de Curran era como o sol, quente e amarelo. O
brilho dos olhos de Derek era o dourado gelado do luar.
342

Obriguei-me a não prender a respiração e procurei algum


reconhecimento em seus olhos.

Não havia em mim agora nenhum vestígio da Julie que ele


conhecia. Assim que deslizei o Olho de Moloch para a órbita vazia
em minha cabeça, o olho imediatamente analisou meu corpo e
começou a consertar suas falhas. Ele rasgou meus músculos e
remodelou meus ossos. E não foi gentil. Foi implacável. Nada pôde
detê-lo.

Ao contrário dos metamorfos, que se beneficiam de um coquetel


de endorfinas biológicas e analgésicos quando mudam de forma, tive
que suportar minha transformação lentamente e com muita dor. Entre
as crises de agonia perguntei a minha avó sobre a necessidade dessas
mudanças, e ela me disse que muitas características que
considerávamos bonitas eram simplesmente sinais de saúde e
adaptações benéficas. A linhagem de Moloch tinha se concentrado na
sobrevivência por gerações, e o Olho estava tentando melhorar
minhas chances de não morrer.

Tudo começou deixando meu rosto perfeitamente simétrico,


aumentando meus olhos, alongando meu nariz, dando-me um
pescoço mais longo e dedos elegantes. Não gostou da textura do meu
cabelo, então o deixou mais espesso, ondulado e deu a ele um tom
343

dourado mais escuro. Meus olhos ficaram com um verde claro


correspondente, igual aos de Moloch. Sempre fui frustrada por ser
baixa, o Olho me fez crescer oito centímetros de altura, pulmões
maiores e coração maior. Dores do crescimento era um eufemismo.

A pressão se mostrou insuportável. Minha mente se desfez. Com


cada nova melhoria torturante, eu escorreguei para mais perto da
loucura.

Quando a dor se tornou excessiva, Erra forjou um reino


imaginário para mim, tecido de suas memórias. Foi a única maneira
de me manter sã. Ela e uma dúzia de seus conselheiros entraram em
coma induzido magicamente comigo, então eu não estaria sozinha.
Minha avó me amava muito. Ela arriscou sua própria segurança por
minha causa. Entrou no sonho, permitindo que seu corpo indefeso
ficasse vulnerável e fácil de matar ao lado do meu.

Minha tia e meu tio nos protegeram por nove meses. Para mim,
no sonho, quatro anos se passaram.

Minha avó dedicou esse tempo a me educar. Eu vivi como uma


princesa de Shinar, da maneira que Shinar costumava ser. Tive aulas
de magia, combate, política e história. Aprendi a falar a língua antiga

As dores de crescimento são dores que normalmente se manifestam nas pernas (coxas, panturrilhas ou atrás dos joelhos) de crianças
durante a noite. A dor pode surgir em todo o período de crescimento, até os 18 anos de idade, mas é mais comum nas crianças em idade
escolar, principalmente na faixa entre 5 e 10 anos.
344

e, quando acordei, o inglês era uma só uma lembrança e agora eu


falava com um leve sotaque. Estudei, me aperfeiçoei, aprendi as
antigas habilidades mágicas de que precisava para sobreviver. Eu
tinha me dedicado a me tornar digna do sacrifício da minha avó. Ela
acreditou em mim.

O Olho percebeu minha determinação e mais uma vez decidiu me


ajudar contra a minha vontade. Mesmo enquanto meu corpo
assimilava sua magia, ele mudou minha aparência mais uma vez. Eu
queria ser como Erra e como Kate. Queria pertencer à família delas.
Queria ser forte como elas.

O Olho encontrou o sangue de Kate em mim e o usou. Isso me


transformou na princesa de Shinar que eu havia imaginado. Quando
acordei, parecia a filha de Kate.

Ninguém iria nos confundir. Nossos rostos eram muito diferentes.


Mas se alguém colocar minha avó, Kate e eu juntos, verá as três
gerações de Shinar. Verá o mesmo formato de olhos, as mesmas
sobrancelhas e o mesmo queixo. Eu tinha a pele mais clara, era mais
loira, meus olhos eram verdes, que combinavam com os de Moloch,
e feições mais nítidas, mas a progressão da linhagem era evidente para
qualquer um.
345

Quando vi meu rosto pela primeira vez, pensei que tinha


enlouquecido e gritei. Quando meu avô viu a nova eu, ele olhou para
mim em silêncio por vários minutos enquanto sua magia me analisava
até que finalmente disse: — Bem, você é realmente filha de sua mãe.

Fui examinada pelos melhores especialistas que minha avó pôde


encontrar. Eles concluíram que as mudanças eram permanentes. Se
eu tivesse filhos, eles seriam parecidos com a minha nova eu. O Olho
não poderia mais me transformar de volta. Tornou-se parte de mim e
perdeu esse poder.

Julie havia sido apagada para sempre. Derek nunca me


reconheceria. Nunca saberia por que meu coração estava tentando
pular do meu peito.

Meu coração. Certo. Eu precisava encontrar calma. Se ele se


concentrasse, poderia ouvir meu batimento cardíaco.

Estávamos nos olhando em silêncio por cinco minutos. Um de


nós precisava dizer algo.

— É você, —eu disse. Que começo brilhante.

— Sou eu, —disse ele.

— Você encontrou minha casa. —Eu mantive minha voz casual


e calma. Sem ruídos altos. Sem movimentos rápidos.
346

Ele assentiu. Parecia confortável, envolto em uma espécie de


arrogância casual, uma que se ganha depois de matar muita merda
assustadora. Sua presença encheu a sala. Ele era impossível de
ignorar.

— Tentei falar com você antes, mas você foi embora com pressa.
—Sua voz ainda soava a mesma, um pouco rouco, um tom mais
grave, resultado dos danos permanentes nas cordas vocais que nem
mesmo Lyc-V conseguiu curar completamente. Isso o fazia soar como
um lobo em pele humana.

— Sou uma mulher ocupada.

— É por isso que decidi visitá-la.

— Muito prudente de sua parte.

— Eu gosto de planejar com antecedência.

Seus ombros eram mais largos do que eu me lembrava. Seu corpo


maior, mais duro. Suas roupas não eram justas, mas eu podia ver a
definição no braço que ele descansava em seu joelho e o contorno
rígido dos músculos em suas coxas. Com a magia em baixa, meu
arsenal de defensa era menor, enquanto ele ainda tinha o benefício da
velocidade, força e regeneração superiores. O velho Derek nunca
atacaria uma mulher humana sem provocação. Este novo Derek era
347

uma mercadoria desconhecida. Se ele decidisse lutar comigo, minhas


chances seriam uma merda.

Mas os metamorfos ainda eram humanos, e sua regeneração não


era instantânea. Eu sabia onde atacar e como cortar para incapacitar
um metamorfo. A verdadeira questão era: eu poderia cortar a garganta
de Derek se ele me obrigasse?

Eu tinha que evitar essa luta a todo custo.

— Bem, você me rastreou e entrou em minha casa. Como posso


te ajudar? —Eu perguntei.

— Você precisa de um médico?

Minha mente tentou entender o que ele disse, mas falhou. — O


que?

— Na noite passada, alguém incendiou o antigo Centro Médico


de Atlanta. Ainda está queimando. Metal derretido. Paredes de
concreto rachadas por choque térmico. Seu cheiro está espalhado por
toda a rua que leva a ele, e seu quintal cheira a carne humana
carbonizada. Então, vou perguntar de novo, você precisa de um
médico? Eu conheço um bom.

— Não.
348

Olhamos um para o outro.

— Pare de perder tempo e me diga o que quer, —eu disse.

— Eu gostaria que você me contasse sobre o assassinato do pastor


Haywood.

— Por que quer saber?

— Tenho um interesse pessoal no assunto.

— E esse interesse pessoal fez você invadir minha casa e me


intimidar enquanto estou nua na minha banheira? Você acha que o
pastor Haywood aprovaria?

Ele me atingiu com seu olhar de alfa. — Invadi sua casa porque
você guarda informações cruciais e pensei que poderia estar muito
ferida e morrendo. Se eu fosse você, faria um esforço em responder às
minhas perguntas.

Seu olhar pressionou sobre mim como um peso físico. Eu queria


explodir para fora da banheira, feri-lo, ou pular e correr para salvar
minha vida.

Então é assim? Certo, amigo. Vamos jogar.

Eu o encarei com desdém, da mesma maneira que costumava


olhar para aqueles que ameaçavam o Novo Reino, um olhar que fazia
349

eles irem embora com o rabo entre as pernas. Eu sou Shinar renascida,
metamorfo. Não me submeto.

O silêncio encheu o quarto, frio e opressor. Por que eu continuava


instigando-o? Se ele fosse outra pessoa, eu já teria manobrado a
conversa para onde queria. Em vez disso, transformei nossa conversa
em um impasse.

Ele não tinha me procurado. Não tinha me ligado. Não tinha


escrito para mim. Deuses, eu estava com tanta raiva dele. E não tinha
percebido o quanto até este momento. A raiva queimou meu bom
senso até as cinzas.

A emoção ferveu nos olhos de Derek. Eu não conseguia


identificar. Frustração, raiva? Um pouco dos dois? Não, não era bem
isso. Fosse o que fosse, estava claramente deixando-o louco. Ele olhou
para mim como se eu fosse tudo o que havia de errado em sua vida.

Um som fraco veio da outra sala. Um homem entrou e parou na


entrada em arco do quarto. Tinha vinte e poucos anos, bronzeado,
com uma juba de cabelos castanho-avermelhados, presos atrás de um
rosto sardento. Ele usava uma roupa cinza semelhante à de Derek, e
quando se movia, caminhava com a graça fluida de um metamorfo.
Não era um lobo. Algo mais. Algo de tamanho menor.
350

Derek continuou olhando para mim. — Sim?

— As hienas encontraram Jerome. Ele está levando-os em uma


alegre perseguição.

Um leve sotaque eslavo.

O metamorfo hesitou. — Talvez eu possa ajudá-lo a conversar


com ela ...

— Não, —Derek e eu dissemos ao mesmo tempo.

— Ceeerto. Então estou indo.

O metamorfo recuou.

— Não vou embora até obter algumas respostas, —disse Derek.

— Então você vai morrer de velhice na minha casa.

— Pensei que você estava gravemente queimada, mas talvez eu


esteja errado. Em vez de queimada, talvez tenha batido a cabeça e não
consegue ver essa situação claramente

— Então me esclareça. O que não estou conseguindo ver?

Ele respirou fundo e soltou o ar lentamente. — Estou com fome.


Vou me levantar e encontrar algo para comer, então você pode sair
com privacidade. Use esta oportunidade para pensar sobre ...
351

Eu me levantei. Os últimos resquícios de minha pele descartada


caíram na banheira.

Derek olhou para mim, pego no meio das palavras.

Tirei meu cabelo do rosto, jogando água e pétalas soltas de volta


na banheira, saí e passei por ele em direção ao meu armário para me
vestir.

do quarto, Derek estava sentado no meu santuário à mesa


da cozinha, espalhando uma fina camada de mostarda e mel em uma
fatia de pão com uma faca de aparência perversa. Outra fatia com um
pedaço de presunto defumado de três centímetros de espessura
esperava em seu prato. Ele colocou a fatia de pão em cima do
presunto.

O filho da puta fez um sanduíche para si mesmo. Talvez eu tivesse


sorte, e ele se engasgasse com isso.

— Você não tem chá gelado, —disse ele.


352

Eu iria estrangulá-lo. — E isso é apenas uma das coisas que não


tenho.

Derek cortou o sanduíche ao meio. — Ah?

— Eu também não tenho paciência com pessoas roubando minha


comida.

Derek pegou metade do sanduíche, o mordeu e mastigou.

A comida tinha um significado especial para os metamorfos.


Quando um metamorfo se oferecia para alimentar alguém, ele estava
comunicando a vontade de proteger e cuidar desse alguém. Um
metamorfo que não podia proteger sua refeição era fraco. Derek
invadiu minha casa e agora estava comendo meu presunto, esfregando
na minha cara.

Apenas espere. Você vai se arrepender.

Sentei-me em frente a ele. — Está bom?

Ele lambeu os lábios. — Delicioso.

Negociei acordos de paz com pessoas que odiava. Eu não daria a


ele a satisfação de tirar o resto do sanduíche de sua mão. Não importa
o quão satisfatório isso fosse.
353

Puxei um bloco de papel em minha direção, escrevi ‘vinte dólares’


nele e o passei para ele.

— O que é isso?

— A conta do sanduíche.

— Um sanduíche de presunto por vinte dólares?

— Você escolheu comer aqui. Deveria ter perguntado sobre os


preços com antecedência. —Apontei para a porta. — A porta é por
ali. Este restaurante está fechado. Leve o resto da sua refeição para
viagem.

Ele terminou a primeira metade do sanduíche e recostou-se com


uma espécie de graça lânguida, um lobo em repouso. — Vamos ser
adultos sobre isso.

— Isso seria uma mudança revigorante.

— Alguns anos atrás, eu estava em uma situação ruim na minha


vida. Procurei o pastor Haywood para obter orientação. Ele me
ajudou. —Quando isso aconteceu? Que situação ruim foi essa? Abri minha
boca para perguntar e a fechei com força. Ele era um estranho e eu
tinha que tratá-lo como tal.
354

— Prometi ao pastor que o ajudaria se ele precisasse, que eu


retribuiria o favor. O pastor me ligou uma noite antes de morrer. Ele
me disse que estava preocupado e pediu minha ajuda. Parecia
assustado. Saí uma hora depois daquele telefonema, mas infelizmente
estava do outro lado do país. Não cheguei a tempo.

Merda.

— Estou aqui para descobrir quem o matou. —O brilho da lua


cintilou em seus olhos e morreu. — Estamos do mesmo lado.

— Eu duvido disso.

— Diga-me por que está investigando este assassinato e o que


encontrou, e eu direi por que o pastor Haywood estava com medo
naquela noite.

Cada migalha de informação poderia significar a diferença entre


a vida e a morte de Kate. Haveria algum mal em compartilhar com
ele? Procurei o lado negativo e não vi nenhum. Afinal, eu não
precisava contar tudo a ele.

— Combinado. Você fala primeiro.

— Não.

Eu estreitei meus olhos para ele. — Você não confia em mim?


355

— Não. Você é uma mentirosa. —Ele pegou o resto do sanduíche


e deu uma boa mordida nele.

— Por que sou uma mentirosa?

— Finge ser uma Cavaleiro da Ordem.

Tirei o distintivo do bolso e o coloquei sobre a mesa. — Sinta-se


à vontade para esclarecer isso com Nick Feldman.

— Seu distintivo é verdadeiro. Seu título de Cavaleira, não. Eu


tenho duas palavras para você. Jaiden Higgs.

— Isso significa alguma coisa?

— Sete anos atrás, o Cavaleiro-Defensor Jaiden Higgs sofreu um


surto psicótico. Ele pensou que estava possuído, e que os demônios
estavam falando com ele. Ele tomou três pessoas como reféns e se
barricou em uma escola primária na Avenida Jefferson. Jaiden havia
sido enviado para Atlanta depois de ter alguns problemas, e Nick
Feldman o colocou sob sua proteção.

Eu poderia adivinhar para onde essa história estava indo, e o final


não seria feliz.

— Nick fez tudo o que pôde para convencer Jaiden a liberar os


reféns, e quando isso não funcionou, ele ligou para o pastor Haywood.
356

O pastor foi para aquela escola primária e saiu dezesseis horas depois
com Jaiden e os reféns ilesos.

— Jaiden estava possuído?

— Ninguém sabe. Ele se enforcou um mês depois na enfermaria


psiquiátrica.

Sim, só mais uma fábula de raios de sol e arco-íris da pós-Mudança em


Atlanta.

Derek apontou o resto de seu sanduíche para mim. — Nick


Feldman devia um grande favor ao pastor Haywood. Ele o tinha na
mais alta consideração. Agora mesmo, Feldman deveria estar
destruindo esta cidade procurando por seu assassino. Mesmo que
recebesse uma ordem direta do próprio Preceptor, ele não desistiria.
Em vez disso, ele passou o caso para você, uma Cavaleira que
ninguém conhece e que está na cidade há cinco minutos.

Dois poderiam jogar este jogo. — Você parece saber muito sobre
mim. Aqui está o que sei sobre você. Você é um alfa. Tem seu próprio
bando. Não é um membro do Bando de Atlanta, nem é afiliado a eles
de alguma forma. Se o Senhor das Feras descobrir que um metamorfo
estrangeiro está correndo em seu território, todo o Bando irá caçá-lo.
Você parece ter algum tipo de rixa com Ascânio Ferara, e você e seu
357

povo estão sendo caçados pelos Boudas. Por que Ferara ainda não
entregou você ao Senhor das Feras? Vocês dois têm algum tipo de
história?

Derek ergueu as sobrancelhas meio milímetro.

— Talvez devêssemos nos ater aos fatos do assassinato, —eu


sugeri.

— Sim. Isso seria melhor.

— Conte-me sobre o artefato, —eu disse.

Se Derek ficou surpreso, ele não demonstrou. — É uma caixa de


algum material estranho, com sessenta centímetros de comprimento,
trinta centímetros de largura e cerca de trinta centímetros de
profundidade. Tem uma cruz gravada na tampa.

— Que tipo de cruz? Uma cruz cristã?

Derek balançou a cabeça. — O pastor achava que não. Ele disse


que emanava magia e que quando tentou identificar foi como colocar
a mão em um hidrante jorrando água. A magia parecia antiga. Ele
disse pré-helenístico . Isso o perturbou.

O período helenístico refere-se ao período da história da Grécia e de parte do Oriente Médio compreendido entre a morte de
Alexandre o Grande em 323 a.C. e a anexação da península grega e ilhas por Roma em 146 a.C.
358

— De que maneira?

Derek franziu o cenho. — Ele disse que era como olhar para um
diamante radiante. Tinha complexidade e facetas em um nível que ele
nunca havia encontrado antes. Parecia um objeto de antigas eras. Isso
nunca é bom.

— Ele disse quem o contratou para autenticar isso?

— Não. Sua vez agora.

— Alguém contratou o pastor Haywood para autenticar um


artefato mágico. Na noite seguinte, o pastor foi assassinado. O
assassino rompeu a claraboia, arrancou o coração dele e saiu pelo
mesmo lugar. Noite passada a professora Walton, uma especialista em
história cristã primitiva, também foi assassinada. O assassino entrou
pela janela do terceiro andar, arrancou o coração dela e saiu pela
mesma janela.

Derek se concentrou em mim com uma intensidade obstinada.


Foi um pouco enervante. — É uma criatura.

— Acredito que sim. É muito provável que o artefato esteja


vinculado a um guardião. Esse guardião pode rastrear qualquer um
que toque no artefato e continuará matando até que seja capaz de
recuperar seu tesouro.
359

— O que você está pensando? —Ele perguntou.

Meu coração se apertou em uma bola dolorida. Éramos assim.


Costumávamos fazer isso quando estávamos investigando casos
espinhosos juntos: sentávamos em algum lugar com comida e
discutíamos as teorias até decidirmos o que fazer a seguir. Queridos
deuses, isso doeu. Como doeu.

Eu fiz minha boca se mover. — Algo com asas e garras. Qualquer


criatura com poder mágico suficiente pode ser vinculada a um objeto.
Pode ser um grifo . Um manticora. Um zilant ...

— Não é um grifo. Eles têm um cheiro distinto.

Está certo. Eu estava sentada em frente a um dos melhores


rastreadores de toda o Bando. — Que cheiro você sentiu?

Ele balançou sua cabeça. — Nada parecido com que eu já tenha


encontrado.

Grifo é uma criatura lendária de origens asiáticas milenares. Sua descrição mais corrente o mostra como um
híbrido metade águia e metade leão, mas foi uma imagem comum em uma ampla gama de civilizações do Oriente e Ocidente, onde sua
representação e atributos variaram significativamente.

O Zilant é uma criatura lendária aparentada ao dragão e à serpe. Faz parte do Tartaristão.
360

Derek possuía a habilidade de se lembrar de milhares de aromas.


Isso ficava cada vez pior.

— Qual é o problema com o fogo? —Ele perguntou.

— Isso é um assunto pessoal. Não é da sua conta.

— Eu decido o que é da minha conta.

Comecei a rir. Derek se pareceu com Conlan quando ele dizia isso
também.

— Disse algo engraçado?

Acenei minha mão para ele. — Não.

O outro metamorfo reapareceu, pairando na porta. Eu me virei e


olhei para ele.

O outro metamorfo levantou a mão e me deu um pequeno aceno.


— Oi. Eu sou Zahar.

— Um arminho? —Deduzi.

Zahar balançou a cabeça.

O arminho (Mustela erminea) é um carnívoro mustelídeo de pequeno porte pertencente ao grupo das doninhas.
A espécie ocupa todas as florestas temperadas, árticas e sub-árticas da Europa, Ásia e América do Norte. Há 38 subespécies de arminho,
classificadas de acordo com a distribuição geográfica.
361

— O que foi? —Perguntou Derek.

— Ele trouxe uma segunda equipe. Fêmeas.

As fêmeas Boudas eram maiores e mais fortes do que os machos.

— Parece que nossa conversa encantadora terminou, —eu disse.


— Você é claramente necessário em outro lugar. Não haverá outro
encontro como esse.

Derek enfiou a mão em um bolso escondido, tirou uma nota de


vinte dólares e a colocou sobre a mesa.

Os olhos de Zahar se arregalaram.

— A conta do sanduíche, —eu disse a Zahar. — Uma última


pergunta. Por que Ferara está perseguindo você?

Derek se levantou suavemente e deu a volta na mesa. — Ele tem


uma conta que deseja acertar.

— Que tipo de conta? Por quê?

Derek deu um passo em minha direção, inclinou-se para frente e


sorriu para mim. Foi um sorriso afiado de lobo, e o impacto desse
sorriso ressoou por mim. Por um segundo, esqueci que podia me
mover.
362

— Isso é um assunto pessoal. Não diz respeito a você, —ele


murmurou perto do meu ouvido, se virou e foi embora.

Bastardo.

Tive que crescer vários quilos de


pele, por mais assustador que parecesse, e meu estômago estava
gritando por calorias. Se eu não me alimentasse um pouco, meu corpo
cederia.

Comi o resto do presunto com o pão que fiz ontem à noite. O


relógio me disse que dormi até o meio-dia, quase seis horas. Custou-
me uma boa parte do tempo, mas não havia como evitar. Meu corpo
doía agora, a dor familiar pós-cura que parecia um pouco como ondas
fracas de espasmos musculares, espalhadas pelo corpo todo. Elas
parariam assim que eu me movesse.
363

A mistura de ervas era uma medida de emergência. Era cara e


demorava muito para ser produzida. Eu só tinha um saco comigo.

‘Aquele que comer o coração da criatura terá um breve vislumbre do


verdadeiro futuro’. Não me surpreende. Moloch havia despachado um
Sumo Sacerdote para cuidar disso. Agora que seu cão de ataque estava
morto, Moloch enviaria outro, mais forte ainda do que o antecessor,
se é que já não estava em Atlanta. Se eu fosse Moloch, enviaria mais
de um. Eu não poderia me deixar ser pega de novo. Eu não tinha outro
saco de ervas à mão.

O exame em minhas portas não rendeu nenhuma pista de como


Derek havia entrado. Nenhuma das fechaduras mostrava qualquer
sinal de violação. Se ele tivesse tentado romper minhas Proteções, o
impacto teria me acordado. Ele deve ter feito isso durante a
tecnologia, mas como conseguiu, era um mistério. Isso não era nada
agradável. De agora em diante, teria que colocar a barra de segurança
na porta toda vez que a trancasse por dentro.

Enquanto a comida era digerida, precisava fazer algumas


ligações. O telefone estava funcionando, o que era um pequeno
milagre, ou como meu avô explicaria, que isso era o resultado direto
de toda a minha magia ter sido drenada abaixo de qualquer limite
razoável pelo processo de regeneração. Eu estava tão cansada e com
364

sono que precisava de palitos de dente para manter os olhos abertos.


Pena que eu não era um gato de desenho animado.

Liguei para o Hospital Metodista primeiro.

— Meu nome é Aurelia Ryder. Estou ligando para saber sobre


Dougie.

— Por favor, espere.

Esperei. Por favor, esteja vivo. Por favor, esteja vivo ...

Uma voz feminina diferente entrou na linha. — Eu sou Carol


Wood. Sou a enfermeira da UTI. A equipe de médicos-magos trabalhou
nele durante a onda de magia. Ele está aguentando firme.

Aguentando firme não significava ‘fazendo progresso’ ou


‘melhorando’. Uma preocupação nauseante e escorregadia passou por
mim.

— Posso visitá-lo?

— Sim, mas ele está fortemente sedado.

— Obrigada.
365

O telefonema para Ordem foi o próximo. Stella atendeu no


segundo toque. — Núcleo da Ordem da Ajuda Misericordiosa de
Atlanta.

— Vejo que você sobreviveu.

— Isso ainda está em dúvida.

— Alguma novidade para mim dos Riscos Biológicos?


Papelada, um arquivo?

— Envelope grande?

— Sim, é isso. Eu irei buscá-lo.

— Estarei aqui.

Aposto que sim. — Até daqui a pouco.

Se um artefato mágico com essa quantidade de poder fosse


colocado no mercado, as pessoas saberiam sobre ele. Liguei para
Nader Youssef. Ele atuava como agente de compras da Nova Shinar
quando queríamos comprar algo relacionado à magia. Expliquei o que
queria e ele me disse para esperar.
366

Em seguida, peguei a lista dos associados conhecidos de Jasper e


a comparei com a lista de caçadores de relíquias que o pessoal da Bispa
me passou por Stella. Sem ligações aparentes.

Alguém mandou Jasper caçar Marten e eu. Alguém


endinheirado.

Liguei para o PAD, usei meu distintivo e o nome de Luther e


consegui as informações de contato das quatro pessoas da lista de
Jasper. Quatro ligações depois descobri que, dos associados
conectados a Jasper, dois estavam mortos, um estava preso e o quarto
havia se mudado do estado, abandonando sua esposa e três filhos.
Recebi um discurso retórico de cinco minutos de sua esposa
detalhando as deficiências das partes relevantes de sua anatomia e de
seu caráter moral.

Um beco sem saída.

O telefone tocou. Eu atendi.

— Eles consertaram a linha e colocaram armadilhas ao redor, —disse


Conlan baixinho. — Eu cortei novamente ontem à noite e joguei as
armadilhas no Desfiladeiro.

Ele desligou. Conlan Lennart, Mestre das Operações Secretas. Eu


ri um pouco e fiz um sanduíche de carne de veado.
367

Depois que terminei de comer o sanduíche, peguei um pedaço de


papel, escrevi o título ‘Potenciais Contratadores’ e sublinhei.

Primeiro, o atual proprietário do artefato. Talvez ele tenha ficado


alarmados quando o pastor Haywood foi assassinado e contratou
Jasper para limpar qualquer ponta solta que pudesse levar a
investigação de volta a ele.

Segundo, o dono original do artefato. Se o artefato foi roubado, o


antigo dono poderia estar procurando pistas de quem o havia levado.

Terceiro, alguém que queria a caixa para si.

Até agora, todos os meus suspeitos apontaram para caçadores ou


colecionadores de relíquias. Qualquer um que trabalhasse para
qualquer uma das igrejas estava fora de questão. Eles tinham sua
própria maneira de lidar com as coisas e mantinham esse tipo de coisa
restrita a própria igreja. Se eles quisessem o artefato, não teriam
contratado Jasper.

O telefone estava na minha frente. Já fazia quase um mês desde a


última vez que falei com Kate. Eu realmente queria ligar para casa.

Não.
368

A companhia telefônica me garantiu que a discagem reversa não


era mais uma opção de serviço, mas o risco era muito grande.

Eu tinha que voltar para Honeycomb. Jasper tinha levado duas


pessoas com ele em seu pequeno passeio. Ele teria contado a eles sobre
o trabalho. Alguém no Desfiladeiro sabia algo sobre isso.

Vestir-me foi um esforço. Eu o movi por pura força de vontade e


fui para os estábulos. Nuvens grossa e pesadas de chuva enchiam o
céu. O ar estava parado e úmido, cozinhando em um calor opressor.
Em breve haveria uma tempestade.

Tulipa estava em sua baia, mas sua boca estava ensanguentada de


novo. Claramente ela tinha saído esta manhã.

— Está vendo isso? Isso aqui é um alimento perfeitamente bom.


Aveia de qualidade premium. Feno delicioso. Teria matado você ficar
quieta?

Tulipa bufou para mim. Limpei-a, selei-a e partimos.

Discagem reversa é a possibilidade de ligar de volta para o número que acabou de atender usando algum serviço da telefonia ao invés
do número especifico do telefone.
369

Meu amigo, o sem-teto, estava de volta ao seu posto na rotatória,


parecendo faminto e miserável. Passei por ele, comprei duas kolaches
enormes em uma barraca novamente e trouxe uma para ele. Ele me
olhou como se eu fosse a cobra de Sophia, mas pegou o bolo quente.

— Vai chover, —eu disse a ele. — Você pode querer se abrigar.

Ele me ignorou.

O Hospital Metodista foi minha primeira parada. Sentei-me ao


lado da cama de Dougie, segurei sua mão mole e observei o líquido
pingar lentamente de sua bolsa de soro.

Ele era um bom garoto. Valente. Gentil. Tentou proteger alguém


que era menor e mais fraco do que ele, mesmo sabendo que se
machucaria. Tentou me proteger, embora não me conhecesse, e não
me devesse nada. Ele tinha tão pouco na vida.

Eu queria que ele sobrevivesse. Mas tudo o que eu podia fazer era
sentar-me ao lado da cama e olhar com uma fúria impotente. Lembrei-
me de estar sentada assim atrás das grades das jaulas de Moloch
dentro de sua fortaleza e observar as pessoas ao meu redor
apodrecerem lentamente. Espancadas, exaustas, imundas, elas

kolache é uma sobremesa originária da Europa Central.


370

desistiam de viver. Não tinham nomes. Haviam abandonado suas


memórias. Não viviam, só existiam em agonia esperando morrer.

Era quase impossível tirar a esperança dos seres humanos. A


esperança era uma parte irreprimível do nosso espírito. Ela nos
mantinha em movimento, mas quando me sentei no meio daquele
mar de corpos humanos, eu sabia com certeza absoluta que a
esperança deles estava morta. Eu os vi sofrer e chorei para impedir
que a fúria cega e impotente me quebrasse.

Não importa o quão poderoso é. A vida sempre encontra


maneiras de esfaquear e torcer a faca na ferida. Ninguém está imune.

caminho mais longo para o Desfiladeiro Honeycomb.


Demorou dez minutos extras, mas me permitiu passar pela Padaria
Galina. A lojinha ainda estava lá depois de todos esses anos. Comprei
uma torta de morango e a comia enquanto Tulipa me carregava pelas
ruas, e pensei na caixa do artefato, na criatura divina, a estranha cor
371

de amarelo que alguém pintou no carro, forçando sua passagem pela


rua na minha frente ... Qualquer coisa para evitar pensar em Derek.

Eu tinha muitas falhas, e a necessidade avassaladora de estar no


controle de mim mesma era uma dela. Eu não me importava em
controlar outras pessoas. Não era exigente com os outros e não tinha
problemas em delegar quando outra pessoa era mais adequada para a
tarefa, mas precisava manter um controle de ferro sobre mim o tempo
todo. Provavelmente havia uma série de questões psicológicas
arraigadas por trás desse desejo, talvez precisaria de dezenas de
psiquiatras para resolver, mas todas se resumiam a uma coisa: manter
minhas emoções separadas de minhas ações para esconder minhas
fraquezas.

Mesmo quando a raiva crescia em mim em uma onda quente e


furiosa, eu conseguia me controlar e cumprir meu objetivo. Nunca
perdi o controle na frente de outras pessoas, a menos que fossem da
família. Quando gritava, era intencional. Quando chorava, o fazia
para causar impacto.

Derek me fez perder o controle. Continuei repassando nossa


conversa em minha cabeça. Foi a maneira como ele olhou para mim.
A forma como ele se sentou, a forma como sorriu, a forma como
falou. Tudo o que ele fez me lembrou do que deixei para trás. De
372

alguma forma, Derek contornou minha armadura e obteve uma


resposta honesta e instintiva de mim. E eu odiava muito isso.

Ele foi uma das razões pelas quais aprendi a me controlar. Não o
principal, nem de perto o mais importante, mas ainda um deles.
Mesmo adolescente, eu sabia claramente que se me jogasse sobre ele
e dissesse a ele o quanto o amava, o quão feliz eu era em vê-lo todos
os dias, isso tornaria as coisas irreparavelmente estranhas. Eu não
queria que Derek me evitasse.

Agora era eu que daria qualquer coisa para evitá-lo.

Não havia motivo para interagirmos novamente. Mais cedo ou


mais tarde, Ascanio colocaria as mãos em Derek e em seu heterogêneo
bando de metamorfos durões. Derek teria outras coisas com que se
preocupar e me deixaria em paz.

Chegamos ao prédio da linha telefônica. Terminei minha torta


com uma mordida, pulei das costas de Tulipa e subi as escadas em
ruínas. A linha telefônica estava de volta ao poste. Eles o consertaram
novamente. Eu adorava quando um plano dava certo.

Tirei meu manto e escalei o poste. Eu estava dois terços acima,


quando uma voz rouca familiar perguntou: — O que você está
fazendo?
373

Eu tinha reflexos excelentes, e foi por isso que não caí do poste de
bunda no chão.

Filho da puta. Merda, merda, merda.

Derek encostou-se a uma parede em ruínas. Ele usava calça de


trabalho cáqui, manchada de pó de cimento e ferrugem, uma camisa
verde de manga comprida com um capuz que caia sobre os ombros e
vinha com uma máscara que cobria o nariz e a boca. As equipes de
recuperação usavam camisas como essa para manter a poeira longe de
seus pulmões e o sol longe de seus rostos. Ele parecia ter acabado de
sair de uma das equipes de resgate da Avenida Ted Turner. Eu não
conseguia nem ver seu rosto, muito menos suas cicatrizes.

Por que você estava aqui? Por que, por que, por que, por que ...

— O que está fazendo aqui? —Eu perguntei.

— Você não terminou de compartilhar suas informações. Tenho


a impressão de que você é o tipo de pessoa que se incomoda em deixar
coisas inacabadas, então te poupei do trabalho de me localizar.

Mantenha-se civilizada. — Que magnânimo da sua parte.

— Eu posso ser. Posso ser um bom amigo ou um terrível inimigo.

— Então, está dizendo que não é muito bom em ser um inimigo?


374

Ele encolheu os ombros. — Bem, poderia pedir referências aos


meus oponentes, mas nenhum deles está mais disponível.

Certo. Retomei minha escalada, mantendo meu rosto calmo. —


Nós tínhamos um acordo. Trocamos informações. Você recebeu a
sua. Vá embora.

— Você escondeu coisas de mim. Coisas importantes.

— Como o quê?

— Como o garoto no hospital St. Luke's e a garota que os Gilliams


estão protegendo.

E como diabos ele descobriu isso? — Isso não é da sua conta.

Seus olhos brilharam. — Isso é muito da minha conta.

Ele não rosnou, seu tom era calmo, mas sua voz tinha um tom de
ameaça que não era totalmente humana. Você podia sentir o lobo
nele, observando, esperando, ganhando tempo, separado do mundo
apenas por uma fina camada de pele humana.

Minhas mãos deslizaram. Os malditos lubrificaram a parte


superior do poste com óleo lubrificante. Idiotas.
375

Ele me observou tentando subir. — Cada vez que nos


encontramos, Senhorita Ryder, você tenta ficar longe de mim. Existe
algo sobre mim que te deixa desconfortável?

Tudo nele me deixava desconfortável.

Eu deslizei novamente. Droga.

Derek saltou cinco metros no ar e cortou a linha telefônica em um


borrão.

Eu deslizei para fora do poste e aterrissei, virando-me de costas


para a madeira. E ele estava bem ali, centímetros de distância. Seu
capuz estava abaixado e seus olhos estavam em chamas.

— Qual é o problema com o poste?

— Gosto de escalar postes nas horas vagas.

— Ontem, alguém matou um Caçador de Ferro a dois


quilômetros e meio da Igreja de São Lucas e depois ligou para os
Riscos Biológicos.

Qualquer um que matasse uma criatura mágica esquisita nos


limites da cidade de Atlanta, tinha que avisar os Riscos Biológicos.
Eles coletavam o cadáver e o colocavam em quarentena caso o corpo
decidisse criar doze pernas e uma boca forrada de dentes e saísse em
376

busca de lanches humanos. Eu tinha ligado para os Riscos Biológicos


da recepção do hospital.

— Honeycomb é o único lugar perto de Atlanta que produz cães


Caçadores de Ferro. —A voz de Derek era perigosamente íntima. Se
ele realmente odiasse alguém, falaria com ele nesse tom antes de matá-
lo. — Agora você está aqui, cortando um cabo que leva a Honeycomb.
Isso é uma linha telefônica?

Eu não respondi.

— Estou esperando, —ele avisou.

— Esperando o que?

— Uma resposta.

— Realmente precisa que eu responda alguma coisa? Você está


indo bem por conta própria.

A atitude calma de Derek se quebrou e a frustração se espalhou.


— Droga, você testa minha paciência.

O alarme disparou meus sentidos em hiperatividade. — Você me


deu uma descrição vaga de uma caixa. Não me disse o que a caixa faz,
do que é feita ou quem a tem. Considerando o quão pouco me
377

ofereceu, o que eu disse é mais do que justo. Não me siga. Consegue


fazer isso?

Seus olhos se acenderam. — Não dessa vez!

Uma vibração pulsou em minhas costas através do poste. Outra.


Um pequeno tremor percorreu meus pés.

Algo sacudiu o prédio.

Derek fechou a boca com força.

Fiquei imóvel, ouvindo.

Um estrondo profundo anunciou a queda de pedras para a direita,


onde o Desfiladeiro Honeycomb caia em um abismo.

Ele tirou o capuz.

Peguei Dakkan para fora da minha bainha e a encaixei.

Um fedor forte e pungente nos envolveu em uma nuvem viscosa.


Cheirava a pele molhada, pântano e peixe podre, temperado com uma
borrifada de gambá.

Eu ofeguei.

Ao meu lado Derek travou os dentes, fazendo os músculos de sua


mandíbula contraírem. Cheiros e sons fortes atingem os metamorfos
378

com muito mais força, e esse fedor estava além de nauseante. Era o
tipo de fedor que gruda em você, cobrindo o interior de sua boca.

O prédio tremeu ligeiramente. Um som agudo de arranhar veio


da parede que ficava de frente para o desfiladeiro, um rangido de
garras em concreto enfraquecido. O som agudo mudou para a
esquerda e nós giramos com ele.

Cranque.

Cranque. O som lembrava um enorme lagarto rastejando ao redor


do prédio, subindo pelas paredes em uma espiral preguiçosa.

Cranque. Pequenos pedaços de concreto estremeceram no chão.


Demos uma de cento e oitenta graus, seguindo o som. Estávamos
agora de frente para a rua.

Cranque.

Silêncio.

Nós esperamos.

Acima, nuvens irregulares rastejavam pelo céu. Um pássaro


Estinfálico gritou, planando nas correntes de ar. Uma vespa pousou
no concreto ao meu lado e rastejou sobre as pernas segmentadas.

Derek ergueu os olhos.


379

Uma cabeça parecida com a de uma rã, com um metro e meio de


largura e desgrenhada com longos pelos verdes escuros, nos olhava de
cima da parede com grandes olhos vermelhos. Dois chifres
amarelados, manchados de sangue seco, curvados dos lados de sua
cabeça, apontando para cima. Duas presas de dente-de-sabre , quase
do mesmo tamanho dos chifres, projetavam-se da enorme mandíbula
cravejada de dentes cônicos. Os dentes se encaixavam com uma
precisão não natural, como uma armadilha para ursos. Se essa coisa
nos pegasse com a boca, nos cortaria em dois.

Graças ao universo eu trazia comigo suco de limão. Na próxima


vez que fosse me encontrar com Sienna, levaria para ela o melhor
marzipã de todos os tempos.

O Hodag farejou o ar com um focinho achatado e preto do


tamanho de uma bola de basquete. Uma gota de muco escorregou de

Um dente-de-sabre é qualquer membro de vários grupos extintos de mamíferos predadores que são
caracterizados por dentes caninos longos e curvos em forma de sabre que se projetam da boca quando fechados.

Marzipã, marzipan ou maçapão é um doce de origem árabe, preparado a partir de uma pasta feita de amêndoas
moídas, açúcar e claras de ovos, que pode ser moldada. Também podem ser adicionadas essências.

O Hodag é um animal folclórico do estado americano de Wisconsin. Sua história está centrada principalmente em
torno da cidade de Rhinelander, no norte do estado. O hodag é o símbolo da cidade e do mascote do colégio em Rhinelander.
380

sua narina esquerda. Eeeeca. Eu tinha visto um desses antes, anos


atrás. Eles eram nativos de Wisconsin . Honeycomb era o último
lugar que eu esperava encontrar um. E tão grande também. Havia
apenas uma maneira de um Hodag crescer tanto.

Derek mudou seu peso.

— Não o morda, —murmurei. — É venenoso, até mesmo para


você.

O Hodag se inclinou para frente. A parede tremeu enquanto


cavava por fora. Ele arqueou as costas, mostrando uma crista de
chifres projetando-se de sua espinha. Seu corpo grosso cavalgava
baixo sobre quatro patas poderosas, cada uma armada com garras
absurdamente longas. Uma longa cauda de dinossauro balançou para
a direita, dando-lhe força para um salto.

O mundo desacelerou, ficando nítido e claro.

O Hodag saltou da parede, apontando diretamente para nós.

O Wisconsin é um estado no centro-oeste dos EUA com costas banhadas por 2


dos Grandes Lagos (Michigan e Superior) e um interior de florestas e fazendas. Milwaukee, a maior cidade, é conhecida pelo Milwaukee
Public Museum, com vários vilarejos internacionais recriados, e pelo Harley-Davidson Museum, que exibe motocicletas clássicas. Vários
fabricantes de cerveja têm Milwaukee como sede, e muitos deles organizam visitas às cervejarias.
381

Derek saltou para o lado. Eu pulei para trás, apunhalando com


Dakkan, e a criatura virou, golpeando a lança com suas garras.
Bastardo rápido. Eu girei Dakkan e o enfiei no focinho da criatura. A
coisa berrou como um enorme crocodilo furioso e me atacou.

À minha esquerda, Derek tirou a camisa.

Eu desviei para a esquerda. O Hodag girou, chicoteando sua


cauda gorda. Os espinhos rasgaram o ar a quinze centímetros do meu
estômago.

Derek tirou as botas. Só pode estar de brincadeira comigo.

Corri para a esquerda e saltei sobre o buraco no chão. O concreto


cedeu sob meus pés e quase caí no buraco. Atrás de mim, o Hodag
caiu no buraco, se abaixou, tomou impulso e pulou do buraco, vindo
atrás de mim como uma lagartixa mutante gigante perseguindo um
grilo. Eu saltei para frente e para trás, esquivando-me de seus golpes.

Derek tirou a calça jeans, a dobrou ao meio e a colocou com


cuidado em cima das botas.

Eu iria estrangulá-lo. Iria bater naquele rosto bonito e presunçoso


com um tijolo. Você acha que tem cicatrizes, amigo? Apenas espere.
382

O Hodag recuou, tentando me prender com seu corpo. Eu rolei,


pulei e apunhalei Dakkan entre os dedos gordos da criatura. O Hodag
uivou.

Derek me deu um sinal de positivo.

— Morto! —Pulei para trás, evitando os ataques do Hodag.

— O que foi?

— Você é um homem morto!

Ele estendeu a mão. — Pode deixar comigo agora .

— Vá se danar.

Eu corri ao redor do buraco, Hodag em meus calcanhares, e me


joguei para a esquerda, em direção a Derek. A fera enfurecida passou
rapidamente por nós.

Derek acenou com a mão para mim. — Quando você quiser.

O Hodag parou abruptamente e virou, impossivelmente ágil.


Olhos vermelhos fixos em mim. Um estrondo profundo gorgolejou
em sua garganta. Ah não, por favor, não.

O termo original é ‘Tag me in’. Em tradução livre ‘Me marque’ ou ‘me identifique’ ou até mesmo ‘deixa comigo’. Tag me in é uma gíria
usada muito em competição de revezamento para sinalizar ao seu parceiro de equipe que você quer que ele toque em você para que possa
jogar no lugar dele.
383

A criatura inalou, sugando o muco.

Eu corri para o lado.

O Hodag cuspiu. Uma gota de muco do tamanho de uma bola de


basquete voou pelo ar. Derek saltou direto para cima. O cuspe
venenoso passou por ele e espirrou na calçada de concreto. Derek
pousou próximo à poça e olhou para suas roupas dobradas no chão.
Uma grande gota de cuspe de Hodag rolou de sua calça jeans dobrada
e pingou no chão.

Eu levantei meus polegares, dando a Derek um sinal de positivo.

Um brilho incandescente de metamorfo lobo cintilou em seus


olhos. Derek abriu a boca e rosnou. Começou como um som humano
e, conforme o som foi saído de sua boca, seu corpo explodiu. Ossos
cresceram em um piscar de olhos, construindo uma nova moldura
superdimensionada.

Os músculos subiram em espiral pelo novo esqueleto e a densa


pelagem prateada o cobriu, espalhando-se pelo corpo monstruoso.
Garras do tamanho dos meus dedos explodiram de suas novas mãos.
Longas mandíbulas lupinas projetavam-se de sua cabeça, cheias de
presas, e as notas finais daquele rosnado misterioso anunciaram um
predador entrando no campo de batalha.
384

O Hodag abriu sua enorme boca e rugiu.

Os lábios negros de Derek se ergueram e ele rosnou, franzindo o


focinho, como um lobo na floresta defendendo sua presa.

O Hodag atacou. O tempo se estendeu, impossivelmente lento, e


eu vi tudo em detalhes excruciantes: o Hodag avançando, a boca
escancarada, os olhos esbugalhados, as garras prontas para rasgar e
desmembrar, e Derek parado, sem mover um único músculo.

Eu me movi na direção deles sem perceber. Estava a pouco mais


de um metro e meio quando o Hodag alcançou Derek. Suavemente,
quase casualmente, Derek se desviou do ataque da criatura e estendeu
a mão esquerda. As terríveis garras rasgaram o pêlo emaranhado da
fera como se fosse papel de seda. Sangue e vísceras estranhas se
derramaram pela ferida irregular.

Derek dividiu a criatura da frente do ombro até a virilha.

O Hodag continuou correndo, incapaz de parar, deslizando pelo


impulso, e se chocou contra a parede. Pedaços de concreto voaram. A
parede tremeu, balançando como um dente solto, e desabou, levando
o Hodag com ela.

Derek passou correndo por mim e saltou atrás da criatura.


385

sobre a borda e olhei para baixo e vi o corpo estilhaçado do


Hodag esparramado nos escombros três andares abaixo, onde uma
casa em ruínas estava lentamente deslizando para dentro do
Desfiladeiro. Vi também a terrível mistura de humano e lobo que era
Derek, agachado nos ombros do Hodag, cortando metodicamente o
pescoço da criatura.

Ele matou o Hodag com um golpe de suas garras. Mesmo que a


coisa não tivesse caído, estaria morto. O Hodag tinha dentes maiores
e garras mais longas e pesava provavelmente dez vezes mais que
Derek, mas nada disso importou. Dos dois, Derek foi o monstro mais
terrível.

Havia algo tão bonito nessa combinação de precisão, velocidade


e força. Quando vi aquele golpe, disparou agulhas elétricas em minha
pele. Por um breve momento, fiquei apavorada e pega pela admiração.
386

Derek agarrou a cabeça do Hodag e a arrancou com um golpe.


Era do tamanho de uma cabine de caminhão e ele o segurava com
uma das mãos.

O que diabos aconteceu com você, Derek?

Ele olhou para cima. Nossos olhares se encontraram.

— O que você está fazendo? —Eu gritei.

Ele abriu a boca. A maioria dos metamorfos tinha dificuldade


para manter sua forma de guerreiro, e mais ainda para falar nessa
forma. Suas mandíbulas não se encaixavam bem ou suas línguas eram
muito longas. Pelo o que eu me lembrava Derek conseguia falar, mas
suas palavras soavam ásperas. Combinado com suas cordas vocais
permanentemente danificadas, ele soava como cascalho sendo
esmagado, mas nunca teve problemas em manter uma conversa.

— Deixando as coisas claras.

Quase fiquei chocada. A voz que saiu era profunda e poderosa, e


sua dicção era perfeita.

— Para quem?

— Para quem estiver assistindo.


387

Ele começou a correr, saltou e escalou a parede, arrastando a


cabeça com ele. Em seguida, passou pela borda e pousou ao meu lado.
Caminhou até o poste, pulou, o agarrou com a mão livre, puxou-se
para cima e empalou a cabeça do Hodag em cima dele. O sangue do
toco da criatura gotejava, caindo no pêlo de Derek.

Acima de nós, um trovão soou. Olhei para cima. O céu agitou-se


com nuvens escuras espessas.

Derek saltou para o chão. Ele era o maior metamorfo lobo que eu
já tinha visto. Eu tinha um metro e sessenta e cinco de altura e ele era
pelo menos sessenta centímetros mais alto. Era quase tão alto como
Curran em forma de guerreiro, mas era mais magro, com membros
mais longos, poderoso, mas não tão volumoso. Curran seria mais
forte, mas Derek seria mais rápido.

Ele caminhou em minha direção, sacudindo o sangue de Hodag


de suas mãos com garras. Oh, que legal.

— Cheira pior morto do que vivo.

— Algum sangue entrou na sua boca?

Ele estava parado perto demais e eu tive que olhar para cima.

— Por quê?
388

— O sangue é altamente venenoso. Até para os metamorfos. Eu


tenho o antídoto. —Peguei um pequeno frasco do bolso do meu cinto.

Ele levou a mão ensanguentada ao focinho, cheirou o sangue, fez


uma careta e deu uma longa lambida.

— Você está louco? —Coloquei o frasco em sua mão. — Beba


isso!

— Está tudo bem, —disse ele. — Sinto um pouco de formigamento.

Que raiva.

— Tem gosto de merda também. Como um cruzamento de porco com um


jacaré.

— Beba o antídoto.

Ele mexeu as orelhas. — Ou o que?

— Ou usarei a Ordem para registrar uma reclamação formal com


o Bando.

Ele arrancou a rolha do frasco com as pontas das garras e engoliu


o conteúdo. — Suco de limão?

— O suco de limão é o único antídoto conhecido para veneno de


Hodag.
389

— Percebe que isso não faz sentido?

— Nada sobre o Hodag faz sentido.

— Por quê?

— Porque eles são mitos americanos modernos. Na década de


1890, Eugene Shepard, um agrimensor de Rhinelander, uma cidade
em Wisconsin, afirmou ter capturado um hodag. Ele descreveu uma
batalha feroz com uma fera terrível com cabeça de sapo, rosto de
elefante, costas de dinossauro e cauda de crocodilo. A criatura tinha
chifres na cabeça e ao longo da espinha, presas de dentes-de-sabre e
garras incrivelmente longas. Shepard alegou que os Hodags rondavam
os pântanos do alto Wisconsin, alimentando-se de tartarugas de lama,
cobras d'água e bois, mas sua comida favorita eram buldogues
brancos. Eles só podiam ser mortos apenas com dinamite, clorofórmio
ou limões.

Derek estendeu a mão e colocou os dedos na minha testa. Eu me


afastei.

— Você não esta com febre, —disse ele. — Colocou algum sangue na
boca?

— Por que ainda me dou o trabalho de falar com você?

Eu me virei e ele se moveu para bloquear meu caminho.


390

— Como o Hodag da história de Eugene Shepard se transformou naquilo?


—Ele apontou para a cabeça.

— Shepard pagou um taxidermista para mumificar o ‘Hodag’ e


desfilou em feiras do condado pelas próximas décadas. Os cientistas
do Instituto Smithsonian o questionaram e ele teve que admitir que a
coisa toda era uma farsa, mas ele não parou de exibi-la e as pessoas
não pararam de pagar para ver.

— Aha. Mas afinal, o que ele estava exibindo exatamente?

— Eu não faço ideia. Vi uma foto dele, e parecia um grande


bulldog com chifres colados na cabeça.

Fui até a beira do prédio e olhei para o cadáver do Hodag.

— Então, era uma lenda local divertida. E daí?

Taxidermia ou taxiodermia (termo grego que significa "dar forma à pele") é o feito de montar ou
reproduzir animais para exibição ou estudo. É a técnica de preservação da forma da pele, planos e tamanho dos animais. É usada para a
criação de coleção científica ou para fins de exposição, bem como uma importante ferramenta de conservação, trazendo também uma
alternativa de lazer e cultura para a sociedade. Tem como principal objetivo o resgate de espécimes descartados, reconstituindo suas
características físicas e, às vezes, simulando seu habitat, o mais fielmente possível para que possam ser usados como ferramentas para
educação ambiental ou como material didático. Popularmente o termo empalhar já foi usado como sinônimo de "taxidermizar" entretanto
atualmente não se usam mais os manequins de palha e barro para substituir o corpo dos animais. Atualmente são utilizados manequins de
poliuretano que possuem toda a anatomia do animal, alem de próteses de olhos, cauda, nariz, orelhas, mandíbulas e língua.

A Smithsonian Institution ("Instituição Smithsoniana") é uma instituição educacional e de


pesquisa associada a um complexo de museus, fundada e administrada pelo governo dos Estados Unidos.
391

Por que ele fica me perguntando sobre o Hodag idiota? — Então,


o comércio da exploração madeireira acabou e a cidade mudou para
a exploração do turismo sobre Hodag. Cem anos depois, a cidade já
tinha um Festival Regional Hodag, um Parque Hodag, um Clube de
BMX Hodag, Honda Hodag ... A mascote do colégio era um Hodag.
Eles até construíram uma estátua gigante da criatura em frente à
prefeitura. Os turistas costumavam tirar fotos com ele.

— Deixe-me adivinhar, a Mudança aconteceu e a criatura ganhou vida.

— Algo parecido. Os moradores locais adultos não acreditavam


no Hodag, mas as crianças acreditavam e alguns turistas também. Em
algum momento, toda aquela fé acumulada ganhou massa crítica, e
um bando de Hodags saiu correndo da floresta e foi atrás da multidão
na Feira Regional de Hodag. Rhinelander é uma cidade murada
agora. Más notícias, os Hodags botam vinte e cinco ovos por vez. Boas
notícias, seu couro e peles têm um bom preço. Então, a floresta está
de volta, mas está cheia de Hodags.

— Alguém vendeu para os Honeycombers um ovo de Hodag do mercado


negro, —disse ele.

— Provavelmente.

— Por que os Honeycombers enviariam um Hodag atrás de você?


392

— Porque é a terceira vez que corto sua linha telefônica. Eu


preciso descobrir quem contratou Jasper ...

Eu parei de falar e virei para ele.

Ele sorriu, me mostrando uma floresta de presas que daria a


qualquer pessoa sã pesadelos para a vida toda.

— Legal, —eu disse a ele.

— Quem é Jasper?

— Ninguém.

Tirei um pano do bolso e limpei a lâmina de Dakkan. O fedor do


sangue do Hodag fez meus olhos lacrimejarem.

— Vamos trabalhar juntos.

— Nem pensar.

Ele se moveu para ficar na minha frente novamente. — Você e eu


conseguimos manter uma conversa adulta civilizada pelos últimos cinco minutos.

Eu pisquei para ele. — Não consigo entender aonde quer chegar.

— Você estava relaxada e, surpreendentemente, não exigiu que eu fosse


embora e não tentou fugir de mim. Claramente, pode se controlar na minha
presença.
393

— Confie em mim, estou fazendo um excelente trabalho me


controlando agora. Quando perder o controle, você saberá.

— Vamos unir forças. Quanto mais rápido encontrarmos o assassino do


pastor Haywood, mais cedo poderei deixar esta cidade, e você ficará feliz da vida
livre de mim, como deseja.

Ele planejava ir embora novamente. — Para onde irá? —Por que


perguntei isso?

O metamorfo lobo encolheu os ombros. — Meu lugar.

— E onde é o seu lugar?

— Não aqui.

Foi como uma punhalada no coração. Atlanta costumava ser sua


casa. Kate, Curran e Conlan ainda estavam aqui. Eu estava ... certo.
Eu não estava aqui.

Reconheci a expressão em seus olhos. Derek estava determinado


em caçar seu alvo. Seria impossível evitá-lo. Eu havia exaurido todas
as minhas reservas emocionais tentando empurrá-lo para longe de
mim. Ele era poderoso. Seria um trunfo. Nós nos ajudaríamos e então
ele iria embora.
394

— Jasper era o auto-proclamado rei do Honeycomb, —eu disse a


ele. — Uma menina, uma garota de rua, testemunhou o pastor
Haywood entrando em um carro com um pançudo que o levou para
identificar o artefato. Alguém contratou Jasper para encontrar a
menina, então ele pegou dois de seus lacaios e rastejou para fora da
cidade. Eu encontrei a menina primeiro. Quando Jasper não
conseguiu encontrá-la, ele pegou um dos outros meninos de rua. O
garoto se recusou a dizer qualquer coisa sobre a menina ou sobre mim,
então Jasper e seus dois lacaios o espancaram até quase a morte.

A raiva de Derek aumentou.

— Jasper tinha um caçador de ferro e me rastreou até a Catedral


de St. Luke. Quando me deparei com os três, eles estavam arrastando
o menino em uma corrente pela rua. A criança era um grande
hematoma preto e azul. Ele não suportaria mais. Eles quebraram a
perna dele. Quebraram seu braço. Quebraram suas costelas ...

Minha voz estava prestes a tremer. Não. Isso não vai acontecer. Lutei
para manter alguma aparência de controle.

Derek deu um passo à frente.

Uma bala se cravou no concreto a centímetros do meu pé. Eu me


joguei para a esquerda e me abaixei atrás de uma parede.
395

Derek xingou e saltou sobre a borda.

duas pessoas que Derek deixou cair no concreto. Ele subiu


as escadas, carregando os dois pela parte de trás das calças e os jogou
na minha frente. Eles pareciam um pouco amarrotados, mas suas
entranhas ainda estavam dentro de seus corpos, o que era uma grande
vantagem.

A mais jovem tinha cabelo castanho curto e pele bronzeada e era


provavelmente uma jovem adolescente vestida com roupas
masculinas enormes. O mais velho, mais ou menos da minha idade,
tinha a pele mais clara, cabelo escuro, barba escura e o tipo de
expressão em seus olhos que me dizia que ele esperava uma surra e
tinha aceitado isso.

— Vocês enviaram um hodag atrás de nós.

O homem abriu os braços. — Você cortou o cabo três vezes.


Honestamente, senhora, o que você tem contra nós? Você corta as
linhas telefônicas de outras pessoas ou são apenas as nossas?
396

— Apenas a de vocês.

Ele se recostou. — O que nós fizemos para você? Eu não te


conheço. —Ele se virou para a garota. — Conhece ela?

A menina balançou a cabeça.

Ele se voltou para mim. — Está vendo? Nós não te conhecemos.


Precisamos dessa linha para sobreviver. Precisamos de comida, de
roupas, de munição e ferramentas de jardinagem de quintal.

— Jardinagem, hein?

— Sim. Cultivamos coisas, tomates, pepinos. Somos pessoas


pacíficas. Cuidamos da nossa vida.

Apontei para o cadáver do Hodag. — Para criar um hodag até


esse tamanho, você tem que alimentá-lo com carne humana.

A garota parecia assustada.

A surpresa brilhou nos olhos do homem, mas ele se recuperou


rapidamente. — Tudo bem, ele comeu alguns cadáveres. Eles teriam
apodrecido de qualquer maneira. É uma coisa do círculo da vida,
senhora.

Hum-rum. Círculo da vida. — Qual o seu nome?


397

— Não diga a ela, Cephus, —a garota sussurrou e tapou a boca


com a mão.

Cephus apenas olhou para ela por um segundo.

— Eu quero saber sobre Jasper, —eu disse.

— Não conhecemos Jasper, —disse Cephus.

Derek apareceu acima dele. — Responda a ela ou colocarei sua cabeça


na minha boca.

Cephus engoliu em seco. — Oh, Jasper? Aquele Jasper. Sim, tudo


bem. Nós conhecemos Jasper. O que tem ele?

— Ontem ele saiu para fazer um trabalho e levou dois de vocês


com ele. Preciso saber quem o contratou.

Cephus abriu os braços para o céu. — Quem vai saber? Jasper não
é do tipo que compartilha informações. Ele não é exatamente querido
aqui. Teve uma infância difícil. O homem tem dificuldade em
processar seus sentimentos, então, quando os sentem, fica com raiva.
E quando ele fica com raiva, ele ataca.

— A última vez que eu o ataquei, Jasper perdeu a cabeça. Ele


agora está em uma bandeja de metal no necrotério da Ordem.
398

A garota se agarrou a Cephus. Ele engoliu em seco e reorganizou


sua expressão, parecendo magoado. — Não há necessidade de
ameaças. Somos todos amigos aqui. A linha telefônica é para uso de
todos. A gente coloca o dinheiro em um pote cada vez que precisamos
fazer uma chamada telefônica. Às vezes, o dinheiro vai para comprar
remédios. Às vezes, Jasper pegava. As habilidades de liderança dele
são fracas. Eu não sei quem contratou Jasper. Conheço algumas
pessoas com quem ele trabalhou.

— Dê-me os nomes.

Ele olhou para o céu. — Christi Constanza, Dallas Karen, Bambi


Nolastname, Mark Rudolph, Felix Goswin ...

— Certo, —eu disse a ele. — Vocês podem ir.

Cephus me olhou, olhou para Derek por cima do ombro, olhou


para mim novamente, agarrou a mão da garota e saiu correndo. Nós
os ouvimos descendo as escadas até o fim.

— Eles estão realmente arrasados pelo o que aconteceu com Jasper, —disse
Derek. — Eu posso sentir a dor deles daqui.

— Você os ouviu. O homem tinha problemas para processar seus


sentimentos. Provavelmente mantinha a maioria das pessoas à
distância. Nunca formou laços fortes com seus conhecidos. Seu
399

núcleo interno não estava vibrando em sintonia com a batida do


coração celestial.

Uma rajada de vento puxou meu cabelo. O mundo ficou escuro.


A tempestade estava quase em cima de nós.

— Como está o menino? —O enorme metamorfo lobo ao meu lado


perguntou.

— Eu não sei. Eles me disseram que ele está aguentando firme.


Eu o vi esta manhã. Parecia que estava morrendo. —Eu realmente
tinha que calar a boca.

— A oferta de um bom médico-mago ainda está de pé.

— Obrigada. Se a cura for possível, os metodistas irão curá-lo.


Isso me incomodou muito. Há pelo menos trinta minutos entre a
Avenida White e a St. Luke's. Eles arrastaram um menino em uma
corrente, e ninguém fez nada para detê-los. Por quê? A cidade ficou
cega?

— A cidade sempre foi cega, —ele disse, sua voz dura. — As pessoas
não gostam de se envolver. Contanto que não os atinja, eles fingem que nada está
acontecendo.
400

As pessoas sabiam sobre sua família e não ajudaram. As pessoas


me viam na rua todos os dias quando eu era criança e também não
ajudaram.

Ficamos um ao lado do outro. O vento balançou seus pêlos.

— O que irá acontecer quando encontrarmos o assassino do


pastor Haywood? —Eu perguntei.

— Vou arrancar o coração dele.

Não foi uma frase de efeito. Ele quis dizer isso.

— Isso não trará o pastor de volta, —continuou Derek. —


Provavelmente não vai me fazer sentir melhor. Mas isso deve ser feito.

— Isso será desagradável e complicado, —eu disse a ele.

— Meu jeito favorito de fazer as coisas.

— Há um avatar de um deus envolvido.

— Eu conheci alguns deuses.

— Não como este. Se eu disser para você se afastar da luta, você


o fará?

— Tudo bem.
401

Muito fácil. Deixar de lado qualquer coisa não estava em sua


natureza. — Prometa-me.

— Eu prometo.

— Vou cobrar de você. —Estendi minha mão. — Aurelia Ryder.

Dedos com garras engoliram minha mão. — Darren Argent.

Parecia familiar. ‘Argent’ significava prata. Muitos metamorfos


adotavam novos nomes ao se juntarem a um novo bando, e eu
conhecia vários que escolheram ‘Argent’ como sobrenome. Prata
matava Lyc-V, o vírus responsável por sua existência, e eles
consideraram o nome irônico. Não é um nome que eu esperaria que
ele escolhesse para si mesmo.

Pensando bem, ‘Aurelia’ significava ouro, e eu escolhi sem


considerar seu significado. Eu queria um nome que me lembrasse de
Julie, então um dia eu simplesmente olhei para uma lista de nomes
romanos e escolhi um que soasse bonito. Talvez eu estivesse dando
muita importância a isso.

Nós balançamos as mãos e nos soltamos.

— Então, qual dos quatro nomes que Cephus mencionou levantou alguma
suspeita? —Ele perguntou.
402

— Mark Rudolph. Ele está na lista de caçadores de relíquias que


a Bispo Chao me deu.

— Deveríamos fazer uma visita a ele.

— Sim nós deveríamos. Vou descendo a rua, —eu disse a ele.

— Não quer ficar e me ver mudar? —Havia um toque de humor em


sua voz desumana.

— Não.

— E se algo me atacar enquanto eu estiver me vestindo?

Olhei para a cabeça do Hodag e depois de volta para ele. — Jogue


a cabeça neles e grite por ajuda. Eu te vejo lá embaixo.

Saí mancando do prédio e assobiei para Tulipa.

Alguém transformou os músculos das minhas pernas em algodão


molhado. Eu tinha gastado muita energia me desviando dos ataques
do Hodag, e agora meu corpo recém-regenerado estava me fazendo
pagar por isso. Minha coxa doía pra caralho.

Uma rajada de vento me atingiu, puxando meu cabelo. O trovão


abalou o mundo, as nuvens se abriram e a chuva me encharcou,
quente e pesada. Levantei os braços, fechei os olhos e deixei passar
403

por cima de mim, desejando que todos os meus problemas fossem


embora com a água.

Eu poderia ter ficado sob a chuva para sempre.

O som dos cascos de Tulipa se aproximou e parou.

De acordo com seu endereço, Mark Rudolph havia se dado bem


na vida. Ele morava no Monte Paran, em Northside, um bairro nobre
com mansões de dez mil metros quadrados e preços na casa dos
milhões. Se as coisas estavam iguais desde que saí, aquele bairro
estava mais bem protegido do que a Casa Branca. Eles contratavam
oficiais do PAD fora de serviço para patrulhá-lo e tinham sua própria
força de segurança privada cuidando da muralha e das torres. Tentar
chegar ao extremo norte de Buckhead a partir daqui, neste dilúvio, era
quase impossível.

Iria para casa agora e tentaria amanhã.

Pelo menos eu tinha uma pista. Minha primeira pista real.

Abri meus olhos. Um Derek totalmente humano estava bem na


minha frente. Seus olhos brilhavam e ele olhava para mim como se eu
fosse a coisa que ele mais queria no mundo inteiro.

Afastei-me dele e montei. — A chuva está muito forte. Estou indo


para casa.
404

— Amanhã então.

— Amanhã. —Dei a ele meu número de telefone. — Ligue-me se


acontecer algo sério.

Enquanto eu cavalgava, ele ainda estava parado na chuva, me


observando. Então pisquei e ele se foi.

Fiz uma pausa com minhas chaves na mão. Eu tinha colocado


Tulipa, entrei e lá estava ela. Se não fosse por sua expressão, eu não a
teria reconhecido. A camada de sujeira cobrindo seu rosto e cabelo
havia sumido, revelando uma linda garota de sete anos com olhos
grandes e traços delicados. Cachos suaves de cabelos castanhos cobre
caíam na altura dos ombros ao redor de seu adorável rosto bronzeado.
405

Mas seus olhos eram exatamente os mesmos, um tom de avelã


dourado claro cheios de malícia.

Como todo mundo continuava me encontrando? Passei todo esse


tempo e gastei todo esse dinheiro construindo um esconderijo secreto
e literalmente todo mundo que encontrei nos últimos dois dias agora
sabia onde ele ficava.

Marten sorriu para mim. — Eu encontrei você.

— Estou vendo. Onde está Sophia?

Marten deu uma risadinha.

— Você não a levou para a areia movediça e a deixou presa em


algum lugar, não é?

Ela balançou a cabeça. — Ela tinha dever de casa. Eu executei


uma manobra evasiva.

Certo. Como no mundo ela escapou de um metamorfo? Eles


podiam ouvir o zumbido de uma mosca a duzentos metros de
distância. — Como você sabia onde eu moro?

— Sou esperta.

Ela não iria responder. Assim que a magia voltasse, eu a


examinaria.
406

Fechei a porta. Estava chovendo muito, e Sophia a essa altura


provavelmente estaria enlouquecendo.

Tirei minhas botas e levei meu corpo ensopado para a cozinha.


Espero que Barabas ainda tenha o mesmo número.

Sophia atendeu ao primeiro toque. — Residência Gilliam. Como


posso ajudá-lo?

— Você perdeu uma criança pequena?

— Senhorita Ryder, sinto muito. Eu a deixei jogando videogame por


vinte minutos e ela se foi. Tentei rastreá-la, mas a chuva está muito forte.

— Então ela fugiu um pouco antes da chuva começar?

— Sim.

Do ‘Condomínio fechado’ de Kate e Curran até a minha casa,


levaria pelo menos trinta minutos para uma criança humana normal
chegar. O cabelo de Marten estava seco.

— Eu irei buscá-la imediatamente, —Sophia prometeu.

— Não se preocupe com isso. Está um diluvio, você pode pegá-


la quando a chuva parar.

— Obrigada.
407

Dei instruções a ela e desliguei.

Marten entrou furtivamente na cozinha e subiu em uma cadeira.


— Eu vi um menino aqui.

Não me diga. — Como ele era?

— Ele era bonito. Tinha cabelos escuros e grandes olhos


cinzentos.

Conlan.

— Ele estava dentro de casa ou fora dela?

— Do lado de fora.

Ah bom. A chuva já teria lavado seu rastro de cheiro agora. —


Você falou com o menino bonito?

Marten concordou. — Sim.

— O que ele disse?

— Ele disse para te dizer que a vovó ligou para a casa.

O que isso significa? — Ele disse mais alguma coisa?

— Só isso.
408

Tinha que haver mais nisso. Erra ligava para falar com Kate com
a mesma frequência que eu, geralmente através do fogo, porque os
telefones raramente funcionavam para ela. Conlan deve ter decidido
que Marten não era totalmente confiável. Eu sabia que deveria, de
alguma forma, colocar algum significado mais profundo no ‘Vovó
ligou’.

Marten puxou os joelhos até o peito na cadeira. — Posso ficar


com você até a chuva parar?

— Claro. Está com fome?

Ela assentiu.

Meu telefone tocou. Provavelmente Barabas ou Christopher.

— Segure esse pensamento. —Eu atendi.

— Você não fala com sua tia-avó há seis dias, —disse meu tio.

Como Hugh conseguiu meu número? Ele nem morava no mesmo


estado. — Todo mundo sabe onde eu moro?

— Todo mundo que se preocupa com sua segurança. Você sabe como
sei que já se passaram seis dias? Me pergunte.

Opa. — Como você sabe?


409

— Estou tão feliz que perguntou. Sua avó mencionou isso para mim
cinco vezes nas últimas quarenta e oito horas. Ela me ligou duas vezes
usando o método do fogo e três vezes pelo telefone. Espere um segundo.
BAIXA ESSA VACA!

Afastei o telefone do ouvido.

— Me desculpe por isso.

— Como ela ligou para você? Os telefones não funcionam com


ela.

— Aparentemente, alguém disca o número para ela e ela fica do outro


lado da sala e grita em direção a ele. Sua avó não tem problemas para se
fazer ouvir. GAROTO! SIM, ESTOU FALANDO COM VOCÊ. O
QUE FOI QUE EU DISSE?

Eu balancei minha cabeça tentando fazer o zumbido parar. Os


dois podiam rugir alto o suficiente para ser ouvidos por todo o campo
de batalha. Eu os ouvi fazer isso.

— Você parece muito ocupado, tio.

— Ligue para sua avó. Ela está preocupada com você e vai
continuar me ligando até saber notícias suas. Caso contrário, serei
forçado a ir pessoalmente a Atlanta para verificar se todos os seus
410

braços e pernas ainda estão conectados e se não perdeu a


capacidade de falar. E nós dois sabemos o quanto gosto de visitar
Atlanta.

Oh deuses. — Isso não será necessário. Ligarei para ela assim que
a magia acabar.

— Você está bem? Precisa de alguma coisa?

— Estou bem.

— Se precisar de alguma coisa, me diga. Se precisar de reforços, me


diga. Eu vou descer e quebrar algumas cabeças para você.

Uau. — Obrigada.

— Tenho que desligar. OU O QUE? EU VOU MOSTRAR O


QUE. VOCÊ ESTÁ PRESTES A DESCOBRIR E VAI DIZER A SUA
MÃE QUE PROCUROU POR ISSO.

Eu desliguei.

— Era seu pai? —Marten perguntou.

— Não, era meu tio. Cur ... Meu pai não grita. Ele ruge
principalmente.
411

— Meu pai é legal.

Achei que ela fosse órfã.

Ela sorriu. — Ele me traz guloseimas e presentes. Mas não pode


estar comigo agora.

Que tipo de pai deixa a filha morar na rua? Eu tive uma sensação
muito ruim. — O que ele faz quando te vê?

— Ele me conta histórias e faz truques de mágica.

— Ele alguma vez te tocou em algum lugar?

Marten franziu o rosto para mim. — Ele me dá abraços. Meu pai


não é um Verme.

Verme era uma gíria de rua para molestador de crianças. Para


uma criança de sete anos, Marten era realmente inteligente.

— O que aconteceu com sua mãe?

— Eu a matei, —disse o Marten. — Quando nasci.

— Quer um abraço? —Estendi meus braços. — Tudo bem se não


quiser.

— Eu quero um abraço. —Ela escorregou da cadeira e me


abraçou.
412

Afaguei seu cabelo. — Você não a matou. Às vezes, coisas assim


simplesmente acontecem.

Ela se aconchegou mais perto.

— Deixe-me fazer outro telefonema e prepararemos o jantar.

Marten lançou um olhar desconfiado para minha cozinha. —


Olhei na sua geladeira e não há nada lá.

— Eu tenho uma geladeira secreta.

Seus olhos brilharam.

Peguei o telefone. Faltava meia hora para as cinco. Aposto que


Stella ainda estava no escritório e eu estava certa.

— Pensei que você estava vindo para cá. O que aconteceu?

— Um Hodag.

— Em Atlanta? Tá de brincadeira?

— Não. E dos grandes também.

— Você precisa que eu leve alguns limões?

— Não, eu estou bem. Você poderia verificar um nome para


mim?
413

Ela suspirou. — O que eu sou, sua secretária?

— Vou te dever uma.

— Bem, bem. Qual o nome?

— Darren Argent.

— Parece estranho o suficiente. Pelo menos não é John Smith. Quem


é ele?

— Alguém que encontrei.

— Certo. Vou dar uma olhada.

Eu disse obrigada e desliguei.

Marten saltou para cima e para baixo. — Geladeira secreta?

— Geladeira secreta.

parou por volta das nove, e quinze para as dez alguém bateu
na minha porta e tocou a campainha.
414

Marten ergueu os olhos de seu lugar no divã. Ela tinha comido


sozinha um bife inteiro e duas porções de batatas assadas. Eu ainda
não conseguia descobrir para onde tudo isso foi. Depois, se acomodou
nas almofadas de pelúcia. Dei a ela um livro com fotos de dinossauros,
que não pareceu atrair seu interesse. Em seguida, foi a vez de um livro
sobre gatos, depois cachorros e, por fim, decidimos pela Enciclopédia
do Mundo Antigo. Tinha toneladas de fotos e ela mergulhou direto
nelas.

— Eu não quero ir. Quero ficar no jardim de sua casa secreta.

— Não é seguro para você aqui agora.

Marten caiu de costas e colocou o livro em seu rosto.

— Ainda posso vê-la, —eu disse a ela.

— Gosto mais de você, —disse ela.

— Eu também gosto de você. Quando as coisas se acalmarem,


você pode vir e ficar comigo.

Ela ergueu o livro e me lançou um olhar vesgo. — Promete?

— Prometo.

A campainha tocou novamente.


415

— Vamos, —eu disse a ela.

Ela suspirou e se arrastou para fora do sofá, lenta o suficiente para


fazer um bicho-preguiça parecer um velocista. Eu a acompanhei. Com
grande hesitação, Marten serpenteou pelo caminho em direção à
porta. Uma das minhas esferas de metal traçado esperava em um
pedestal estreito à direita do caminho. Ela esticou a mão para pegar
enquanto passava.

— Não pegue isso, —eu a avisei.

— Por quê?

— É perigosa.

Marten suspirou.

— Você sabe que este é um lugar secreto, —eu disse a ela no


caminho para a porta da frente. — Não conte a ninguém sobre isso.

Ela me olhou de lado. — Eu não sou burra.

Abri a porta para Sophia, ela estava vestida em shorts rosa de


ciclismo e uma blusa rosa combinando. O cabelo claro estava úmido,
os óculos embaçados. Não vi um veículo, então provavelmente correu
aqui a pé. Havia momentos em que ser um metamorfo vinha a calhar.

— Mais uma vez, sinto terrivelmente.


416

— Mais uma vez, não se preocupe com isso. Como vocês duas
vão voltar?

— Meu outro pai está vindo nos buscar. Podemos esperar aqui?
Ele não deve demorar.

— Claro.

Sophia entrou, recatadamente sentou-se em uma cadeira da


cozinha e observou minha cozinha. Claramente, certos cálculos
estavam ocorrendo em sua cabeça. Eu havia pagado com ouro pelos
serviços dela, o que não combinava com minha casa miserável.

Esperei. Ela apenas ficou lá com um pequeno sorriso no rosto,


sem oferecer nenhuma informação e esperando que eu dissesse algo.
Igualzinha a Barabas.

Coloquei o chá para ferver e preparei três xícaras de chá. — Estou


curiosa sobre uma coisa. O que você tem contra Ascanio Ferara? Você
teve uma forte reação quando eu disse o nome dele.

Sophia enrubesceu. Constrangimento ou paixão?

— Eu não percebi. Obrigada por me alertar sobre isso. Farei um


esforço melhor para esconder meu desgosto no futuro.
417

Ela era a garota mais séria que eu já conheci. — Mas por que o
desgosto?

— Ascanio Ferara é um demônio, —anunciou Sophia. — Um dia


ele vai ter o que merece, e eu espero estar lá.

Uma sombra desceu sobre meu gramado. Tive um vislumbre de


asas enormes, pouco antes delas desaparecerem, e um homem alto
caminhou até a minha porta da frente. Marten se sentou e sorriu.

Uma batida cuidadosa soou. Eu abri a porta. Christopher Steed


estava do lado de fora. Ele usava um terno cinza claro que cabia nele
como uma luva. Alto, pele muito clara, com cabelo loiro platinado,
tinha um daqueles rostos refinados que pareciam elegantes não
importando sua expressão. Seus olhos afiados se fixaram em mim.

Você não me conhece. Nunca nos vimos.

Ele me encarou por cinco longos segundos. — Nós perdemos sua


criança. Nos desculpe.

— Marten é engenhosa.

— Suspeito que ela seja muito mais do que isso.

Eu também. — Por favor entre.


418

Adicionei outra xícara à mesa. Christopher sentou-se ao lado de


Marten. Ela deu a ele um sorriso angelical.

— Estávamos conversando sobre o desgosto de Sophia pelo


Senhor Ferara.

— Ah. —Christopher se permitiu um pequeno sorriso. —


Certamente, continuem.

— É o seguinte, —disse Sophia, enquanto eu servia o chá nas


xícaras. — Tenho uma turma de amigos.

Coloquei um pote de mel na frente de Christopher e coloquei uma


pequena garrafa de creme ao lado dele.

— Somos um grupo muito habilidoso.

Christopher escondeu um sorriso e adicionou mel ao chá de


Marten. Ela olhou para ele como se ele fosse a pessoa mais
maravilhosa do mundo.

— A maioria dos meus amigos mora no mesmo bairro que nós,


mas uma delas, Bea, mora no Bando, em uma Casa de Clã.

Bebê B, filha de Raphael e Andrea.

— Os pais dela são o que você pode chamar de superprotetores.


419

Andrea e Raphael? Superprotetores? Raphael deu ao Bebê B uma


adaga em seu segundo aniversário e depois riu quando ela tentou
esfaqueá-lo com a faca.

— Quando Bea não retorna para a Casa do Clã na hora certa ou


quando se esquece de dizer aonde vai, eles enviam Ascanio para
buscá-la. E como geralmente estamos juntos, ele se encarrega de nos
buscar também.

— Pelo que todos os pais são profundamente gratos, —disse


Christopher.

— Isso não vem ao caso, papai. A questão é que ele não é minha
babá, nem de Conlan, nem de Mahon e Ricardo. Ele não está em uma
posição de autoridade sobre mim. Ascanio simplesmente decidiu ser
insuportável.

— O chá está delicioso, —disse Christopher.

— Estou feliz que gostou, —eu disse a ele.

Sophia deu um gole. Marten pegou o pote de mel e se ocupou em


colocar mel em sua xícara. Nesse ritmo, ela acabaria com um chá de
xarope de mel.

— Você vai ter que beber um pouco do chá para abrir espaço para
o mel, —eu disse a ela.
420

— Por exemplo, —disse Sophia. — Uma vez fomos brincar no


esgoto. —Marten parou com a colher no ar. — Existem Vermes
Impalas nos esgotos.

— Estava tudo muito tranquilo. Era perfeitamente seguro até que


Ascanio nos encontrou e gritou conosco e, claro, um Verme Impala
apareceu. Ele não teria precisado lutar por meia hora, e não teria
quase se afogado. Ele mesmo criou essa situação e então escolheu ser
dramático a respeito.

Eu a encarei. — Quantos anos você tinha na época?

— Nove.

Conlan teria seis anos. Mahon e Ricardo teriam cinco anos. Oh


meus deuses.

— Então, houve outra vez em que queríamos ir a Savannah para


o festival dos piratas. Teríamos voltado pela manhã. E todos nós
sabíamos nadar. O barco estava afundando muito lentamente, então
não havia motivo para pânico.

Savannah é uma cidade costeira da Geórgia, separada da Carolina do Sul pelo rio Savannah.
É conhecida pelos parques bem tratados, as carruagens de cavalos e a arquitetura do período pré-guerra. O distrito histórico está repleto de
praças calcetadas e parques, como o Parque Forsyth, rodeado por carvalhos cobertos de musgo espanhol. No centro deste distrito pitoresco
encontra-se a Catedral neogótica de S. João Baptista, que é um ponto de referência.
421

— Eu sinto que você pulou uma parte. Como vocês foram parar
em um barco? —Eu perguntei.

— Pegamos uma Linha Ley para Savannah, mas não a que vai
direto para a cidade.

As Linhas Ley eram correntes mágicas persistentes. Elas duravam


mesmo durante a tecnologia, embora perdessem muito de sua
velocidade. A Linha Ley era como uma linha de trem com um trem
contínuo em alta velocidade.

Para viajar em uma Linha Ley, era necessário ter algum tipo de
plataforma, uma jangada de metal, plástico ou madeira. Eu já usei
portas velhas para andar na Linha Ley e uma vez uma grande caixa
de isopor. Qualquer coisa funcionava desde que o separasse da
corrente. A magia das linhas Ley cortava qualquer coisa viva, e entrar
em uma delas o deixaria sem as pernas. É por isso que o governo
colocou cartazes com imagens gráficas de corpos cortados em pedaços
nos pontos da linha Ley.

Os pontos eram outra característica divertida da linha Ley. A


corrente não era contínua. Tinha quebras chamadas de pontos Ley e,
quando você alcançava um, a corrente terminava abruptamente e o
jogava para fora. Você não tinha escolha sobre isso.
422

— Eu conheço esse ponto Ley, —eu disse. — Ele te despeja em


um pântano salgado.

Motivo pelo qual a maioria das pessoas despachava mercadorias


de Atlanta para Savannah de carro ou de carroça. A linha Ley que
levava de Savannah a Atlanta era ótima, mas esse era o mundo pós-
Mudança para você.

— Não sabíamos disso, —disse Sophia.

— Então, ele jogou você no meio do pântano. Estava escuro?

— Havia alguma luz.

— Era a luz da lua?

— Possivelmente.

Christopher sorriu por cima da sua xícara de chá.

— Estávamos bem até a maré começar a subir.

Eu a encarei.

Ela encolheu os ombros. — Não havia placas nos dizendo para


onde ir e as trilhas de cheiros eram confusas. Encontramos um barco.
Estava vazando apenas um pouco, então estávamos completamente
423

bem. Foi divertido. Íamos remar até a costa. Exceto que Ascanio
apareceu e nos fez voltar.

— Então apareceu um Minotauro, —Christopher disse


calmamente.

Sophia suspirou.

— Não entendo como essas crianças fogem o tempo todo, —eu


disse. — Ninguém fica de olho neles?

— Filhos metamorfos vêm com desafios únicos, —disse


Christopher. — Um certo grau de independência é altamente
encorajado.

Isso fazia sentido até certo ponto. Uma criança metamorfa


comum era mais forte e mais rápida que a maioria dos adultos
humanos, e sua regeneração os mantinha relativamente intactos. Mas
eles ainda eram crianças.

— Infelizmente, —continuou Christopher, — quando esses seis


se reúnem, eles parecem desenvolver uma confiança inabalável em
suas próprias habilidades para lidar com as coisas, independentemente
da realidade da situação.

Sophia olhou para ele. — Cinco, Pai. JJ é muito novo. Nem


sempre o convidamos.
424

JJ? — Fale-me sobre o Minotauro.

— Não era um Minotauro de verdade, o que foi uma grande


decepção, —Sophia se ofereceu.

— Não, era pior, —disse o pai. — Muitos Minotauro são calmos


até serem provocados. Este era um Loup de metamorfo búfalo. Ele
tinha fugido para o North Forrest depois de massacrar sua família
inteira. O líder do clã estava ausente no momento, e foi tomada a
decisão de esperar até que Eduardo voltasse para evitar perdas
desnecessárias de vidas.

Curran teria entrado lá sozinho e matado. Eu abri minha boca


para perguntar por que ele não o fez e me contive. Opa. Quase ... —
Por que o Senhor das Feras não cuidou disso?

— O Senhor das Feras anterior teria. No entanto, Shrapshire não


é tão prático. O Bando desenvolveu procedimentos e protocolos para
lidar com uma variedade de situações, como esta, e ele não se envolve
até que todas as outras vias tenham sido esgotadas.

Interessante. Esse sempre foi o problema com o Bando e Curran.


Ele tinha construído o Bando, ou melhor, o Bando se construiu ao seu
redor, e ele era a resposta para todos os problemas dele. Isso o esgotou.
Havia dias em que tudo o que Curran fazia era correr para apagar os
425

incêndios do Bando. Parecia que Jim havia instalado uma estrutura


que estava faltando. E esse tipo de incidente pode ficar feio rápido. Se
os lobos ou os gatos matassem um metamorfo búfalo, mesmo que
fosse um Loup, isso poderia abrir uma grande lata de vermes.

— Um dos meus amigos queria caçar o Minotauro, —disse


Sophia.

Engasguei-me com meu chá. Eu sabia exatamente qual amigo era.

— Quando foi isso?

— Um ano atrás.

Droga, Conlan. — Sophia, quantos anos você tinha? Você deveria


saber os riscos.

— Era perfeitamente seguro.

Claramente, esse era seu grito de guerra. Tudo estava pegando


fogo e tubarões e dragões os rodeavam, mas era ‘perfeitamente
seguro’. — Como?

— Nós nos escondemos nas amoreiras pretas, aquelas que têm


espinhos vermelhos. Ele ficou circulando em volta dos arbustos
espinhosos, mas não conseguiu chegar até nós, porque era muito
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grande. Ele teria se entediado e ido embora, mas Ascanio apareceu.


Novamente.

Eu coloquei minhas mãos sobre meu rosto.

— Como já salientei antes, —disse Christopher, — isso não foi


uma caça a um Minotauro, foi mais parecido com presos em um
esconderijo, sem rota de fuga, enquanto os pais procuravam
freneticamente por toda a cidade por vocês, desde que muitos de vocês
deixaram um bilhete que dizia: ‘Fomos em uma caça ao monstro.’

— Ferara matou o Loup? —Eu perguntei.

— Sim, —disse Christopher. — Eventualmente. Ascanio teve um


fêmur quebrado na perna esquerda, duas costelas quebradas, um
pulmão colapsado, mas ele matou o Loup. Meu palpite é que ele
pensou que as crianças morreriam se falhasse.

— Nós o ajudamos! Quando já estava terminando a luta. Bem,


Conlan foi quem mais ajudou. —Sophia cerrou os dentes. — Você
sabe o que ele fez depois? Ele nos amaldiçoou. Um homem adulto. E
então, quando eu disse que poderíamos fugir dele por causa de sua
perna quebrada e por isso ele deveria ser mais legal, ele nos prendeu
com algemas de Loup.

— Ele o quê?
427

— Ascanio faz parte da Unidade de Emergência do Bando. Ele


sempre tem algemas de Loup em seu SUV, —disse Christopher. —
Ascanio algemou as crianças umas às outras e as conduzia para fora
da floresta assim.

Sophia enrubesceu. — Todo mundo viu. Todo mundo. Eu nunca


vou perdoá-lo. Ele vai ter o que merece.

Oh meus deuses. Ascanio teve que arrastá-los para fora com uma
perna quebrada. E as costelas. Cada respiração deve ter queimado
muito.

— E agora você sabe por que minha filha não é fã do homem que
constantemente salva ela e seus amigos de si mesmos.

Sophia abriu a boca.

Christopher olhou para ela. — É hora de você voltar para casa.


Tenha cuidado, as estradas estão lamacentas.

— Sim, papai. —Sophia se levantou. — Obrigada pelo chá. E por


me dar outra chance com Marten. Prometo que não haverá mais
fugas.

— De nada.

Ela se foi.
428

— Senhorita Ryder, posso oferecer uma palavra de conselho?

— Claro.

— A situação do Bando é delicada. Jim Shrapshire, o atual


Senhor das Feras, quer se aposentar. Liderar o Bando é uma posição
exaustiva e de alta pressão, ele recebe poucos agradecimentos, mas
assume toda a culpa. Jim está perdendo a infância de seus filhos e isso
o está desgastando. Ele irá, no entanto, continuar até que um sucessor
digno se apresente. Esse sucessor deve ter o apoio da maioria dos clãs.
Ascânio Ferara está de olho no trono do Senhor das Feras e acha que
vai caber nele. Ele pode estar certo, mas tem um longo caminho a
percorrer. Ascanio tem o cérebro, dinheiro e motivação, mas carece
de experiência e da fisicalidade absoluta necessária para o papel.

— Ele matou um Loup búfalo.

— Ele é um excelente lutador. A questão é: Ascanio pode inspirar


as pessoas a segui-lo? Pode entrar em um campo de batalha e liderar o
ataque? Isso ainda está para ser provado. Seja o que for que você e ele
estejam envolvidos, e não estou insinuando nada com essa
observação, tenha em mente que, se você se colocar no caminho da
ambição dele, ele a derrubará.

— Obrigada.
429

Christopher se virou para Marten. — Pronta?

Ela olhou para ele, seu rosto sereno. — Nós vamos voar?

— Vamos. A única pergunta é: a que altura você gostaria de ir?

— Esperem. —Corri para os fundos da casa e voltei com um


moletom grosso e o coloquei por cima de Marten. O moletom a
engoliu. — Vai estar frio lá em cima.

Marten me abraçou e estendeu os braços para Christopher. Ele a


pegou e a carregou para fora da porta da frente. Por um momento,
eles ficaram parados à luz da lua. Então, duas enormes asas vermelho-
sangue explodiram das costas de Christopher, bateram uma vez e ele
disparou para o céu, levando Marten com ele. O Teófago que devorou
Deimos , o deus grego do terror, estava voando com a garotinha de
quem eu gostava e eu estava totalmente bem com isso.

Um par de olhos de rubi refletiu a luz nas sombras do outro lado


da rua. Um Bouda. Ascanio deve ter deixado alguém para vigiar
minha casa e esse alguém acabou de se entregar. Desleixado. Ou
queriam que eu soubesse que estava sendo vigiada.

Deimos (em grego: Δεῖμος, "pânico"), na mitologia grega, é o deus do terror. Na Teogonia, de Hesíodo, ele é um dos três filhos de Ares
e de Afrodite (Cytherea), sendo irmão de Fobos, o medo, e Harmonia, que se casou com Cadmo.
430

Meu telefone tocou. Parecia que minha noite ainda não havia
acabado.

Eu entrei e atendi.

— Encontrei Darren Argent. —Todo o humor havia sumido da


voz de Stella.

— Tenho a sensação de que não vou gostar disso.

— Você sabe quem são os Ice Fury?

— O maior bando de metamorfos dos Estados Unidos. A base


deles está no Alaska, metade deles vivem em suas formas
selvagens e não gostam de estranhos.

— Darren Argent é o Beta dos Ice Fury.

O frio tomou conta de mim. Lembrei-me de onde ouvi o nome.

Não tinha como. Não poderia ser Derek.

— Há mais avisos em seu arquivo do que eu já vi. Esse cara é a morte


em cima de pernas

— Existe alguma descrição física? —Talvez ele apenas tenha


usado o nome.
431

— Homem, branco, trinta e poucos anos, cabelo escuro. Ele é meio


difícil de ser confundido. Tem cicatrizes por todo o rosto.

Tudo explodiu, foi para o inferno e voltou.

— Você me disse que o encontrou. —A urgência vibrou na voz de


Stella. — Diga-me que ele não está em Atlanta agora. Porque se estiver,
o Cavaleiro-Protetor tem que saber. Não posso saber disso e não contar a
ele.

Claro. Um membro proeminente do maior bando de metamorfos


entrou no território do Bando de Atlanta e não se anunciou. Nick
esperaria uma guerra de metamorfos.

— Vá em frente e diga a ele.

— Eu já fiz.

— Então por que diabos você me perguntou?

— Eu queria saber o que você diria.

— Stella!

— Feldman não está feliz. Ele quer vê-la agora.

— Diga a ele que estarei aí na primeira hora da manhã.


432

— Não, ele quer que você venha agora.

Agora não estaria acontecendo. Eu tinha que descobrir como lidar


com essa situação e estava tão exausta que mal conseguia ficar em pé.
— Estarei aí pela manhã. Diga a ele que não é uma guerra de
metamorfos.

Stella exalou no telefone. — Aurelia ...

— De manhã. Tenho que desligar.

Eu desliguei.

Alguns anos atrás, uma família de metamorfos ratos juntou-se a


Nova Shinar, marido, esposa e seus dois filhos. Eles eram
originalmente da Califórnia, mas tiveram um desentendimento com o
resto de sua família e foram para o Alaska para se juntar aos Ice Fury.
As coisas não deram certo e, quando o pai do marido morreu, eles
fizeram as malas e voltaram para o sul para cuidar da mãe do marido.

Na época, Erra queria o máximo de informação possível sobre os


Ice Fury, e a família passou vários dias nos contando sobre seu antigo
bando. Algumas coisas já sabíamos, muitas não.

Os Ice Fury consistiam principalmente de lobos e ursos. Pelo


menos um terço do bando vivia na sua forma selvagem, o que significa
433

que eles passavam mais tempo em suas formas animais do que


humanos. O Bando de Atlanta foi forçado a interagir com a sociedade
humana. Os Ice Fury sempre se certificaram de não precisar dessa
interação.

Cerca de dez anos atrás, Mihail Kamenov, um enorme Kodiak


da Sibéria, assumiu o posto de Alfa dos Ice Fury. Ele preferia um estilo
de liderança sem intervenção. Pelo que os ratos disseram, passava a
maior parte do tempo na floresta, saindo apenas quando havia um
problema que precisava ser esmagado com sua pata gigante. Os Ice
Fury foram comandados por uma série de Betas. O atual Beta, e
aquele que estava durando mais tempo, era Darren Argent.

Os metamorfos ratos não conseguiram nos dizer o que havia de


tão especial sobre Darren, mas quando o descreveram, seus olhos
ficaram vidrados. Darren tinha algum tipo de atração, algum tipo de
magnetismo sobre ele que outros metamorfos, especialmente lobos,
reconheciam instantaneamente. Metamorfos se reuniam
naturalmente em volta dele. De acordo com o pai da família, Darren

O urso-de-kodiak também conhecido como urso pardo de kodiak ou urso pardo do Alaska é uma
subespécie de urso-pardo que habita as ilhas do arquipélago de Kodiak no sudeste do Alasca e ilhas adjacentes
434

poderia tirar o posto de Alfa de Mihail a qualquer momento que


desejasse, e os Ice Fury o apoiariam.

Na época, imaginei que Darren fosse um Primeiro. A lenda diz


que durante os tempos pré-históricos alguns humanos fizeram
barganhas com divindades animais, e foi assim que surgiram os
Primeiros metamorfos. Descendentes dessas linhagens eram muito
raros, mesmo durante a época da Antiga Shinar. Eu só conhecia um—
Curran.

Os Primeiros eram capazes de coisas notáveis. Outros


metamorfos os sentiam de alguma forma e os seguiam através do fogo.

Derek não era um Primeiro. Alguém já o teria reconhecido. Não


era algo que se pudesse esconder. Seu pai tinha se tornado um Loup,
e os Primeiros tinham a maior resistência ao Loupismo. Segundo
Erra, eram praticamente à prova de Loupismo. E se sua mãe fosse
uma Primeira, ela teria esmagado o pai de Derek como um inseto na
primeira vez que ele ergueu a mão para ela. O que quer que fosse esse
magnetismo, o velho Derek não tinha.

Tornar-se um beta de qualquer coisa era uma virada de cento e


oitenta graus para ele. Derek sempre mostrou zero interesse em subir
a escada da liderança dos metamorfos, ele evitou ativamente isso.
Desandra ofereceu a ele a posição de beta repetidamente e ele recusou
435

todas as vezes. Então, Derek deixou Atlanta sem motivo aparente, foi
para o Alasca e se tornou um líder de fato dos Ice Fury. Por quê?

Eu poderia imaginar a reação de Curran a isso. ‘Por que você teve


que atravessar o país para ser um beta lá? O que há de errado
com o Bando que construí? Não é do seu agrado? O que havia de
tão ruim aqui que você teve que se mudar para um buraco do
inferno congelado e correr pela floresta com um monte de gente
maluca que não quer mais ser gente?’

Arrastei minha mão em meu rosto. Eu não gostaria de estar lá


para essa conversa.

Quando Curran deixou de ser o Senhor das Feras, um grupo de


pessoas de seu círculo íntimo se uniu a ele. Como Curran, esse grupo
gozava de imunidade. Eles tinham o direito de estar no território do
Bando sem estarem sujeitos à autoridade de Jim.

Derek era uma dessas pessoas. Mas agora ele também era o beta
de um bando rival.

Se ele realmente era o beta do Ice Fury, sua presença em Atlanta


era uma catástrofe. Metamorfos, especialmente metamorfos de alto
escalão, não apenas entravam livremente no território de outros
bandos. Havia protocolos em vigor e Derek não tinha seguido
436

nenhum deles, ou Ascanio não estaria tendo o trabalho de persegui-lo


por toda a cidade.

Interpretariam isso como algo ruim. Achariam que Derek havia


se esgueirado para a cidade para avaliar o Bando de Atlanta para um
possível ataque. Embora os Ice Fury estivessem longe, os bandos de
metamorfos rivais eram conhecidos por organizar ataques.
Superficialmente, a ideia era absurda por causa das distâncias
envolvidas, mas os metamorfos eram muito paranóicos.

O próprio ato dele entrar em Atlanta poderia ser considerado uma


declaração de guerra. E ainda assim, o Bando provavelmente não
poderia fazer muito por ele pessoalmente por causa de sua imunidade.
Este era um pesadelo diplomático.

Encarei a parede, tentando ordenar esta confusão emaranhada na


minha cabeça. Agora seria o momento perfeito para algum mago
sábio ou mensageiro de algum deus aparecer e explicar tudo para
mim.

Derek estava em Atlanta ilegalmente e Ascanio o perseguia por


toda a cidade. Provavelmente, Ascanio não tinha relatado a ninguém
porque, de acordo com Derek, ele tinha uma misteriosa conta a
acertar.
437

Ascanio tinha um motivo, e pela minha vida, eu não conseguia


descobrir o que era. Ele achava que poderia se beneficiar de algum
jeito mantendo a informação só para ele? Ou ele queria subjugar
Derek e arrastá-lo para dentro da Fortaleza, puxando-o para fora
como um coelho da cartola? Olha quem eu encontrei!

Ele provavelmente não tinha ideia de que Derek era Darren


Argent.

O tiro sairia pela culatra. Oh queridos deuses, seria um tiro pela


culatra. Se ele de alguma forma tivesse sucesso, Ascanio estaria
arrastando um Beta estrangeiro para o Senhor das Feras. Se ele
falhasse e se machucasse, um Beta estrangeiro teria ferido um Beta do
Clã Bouda.

Os dois eram idiotas. O que eles estavam fazendo? Eles não se


viam há anos. Eram dois homens adultos. Tinha que haver mais nessa
história do que uma rixa de adolescentes. Eu senti como se estivesse
olhando para um monte de peças de um quebra-cabeça com todas as
peças de canto faltando.

E agora Nick sabia. Nick, que estava apaixonado por Desandra e


que era o padrasto de seus dois filhos. Em uma guerra de metamorfos,
Desandra estaria na linha de frente e a menos que a Ordem desse a
Nick sua bênção, ele não seria capaz de lutar ao lado dela. Ele iria
438

reagir. Eu não tinha ideia de como, mas seria ruim. Muito, muito
ruim.

Eu tinha que conter Nick. Ganhei um pouco de tempo, mas não


conseguiria me esquivar dele para sempre.

Se Curran ainda fosse o Senhor das Feras, Derek teria cerca de


seis horas de liberdade e então receberia um convite formal. Algo na
linha de, ‘Estamos muito satisfeitos que o Beta dos Ice Fury nos
agraciou com sua presença e aguardamos ansiosamente sua
chegada à Fortaleza. Estamos morrendo de vontade de conhecê-
lo pessoalmente’. Teria sido entregue pelo Clã dos metamorfos Ratos
e, os conhecendo, o convite simplesmente apareceria magicamente no
travesseiro de Derek enquanto ele tomava banho.

Onde estavam os Ratos? O Clã Rato cuidava da segurança do


Bando. Eu não tinha visto um único metamorfo Rato na cidade. Eles
eram muito bons, por isso eu posso não ter os notado, mas ainda
assim, ficariam de olho em Ascanio.

O que diabos estava acontecendo com o Bando de Atlanta?

Mas que merda. Eu não tinha tempo para nada disso. Precisava
chegar até Mark Rudolph e arrancar a informação dele antes que mais
439

pessoas fossem assassinadas ou que os Ma’aviris fizessem o próximo


movimento.

Minha cabeça doía. Eu precisava descansar desesperadamente.


Ou eu ia para a cama agora ou meu corpo me desligaria e adormeceria
aqui mesmo, no chão.

Talvez eu tivesse uma ideia brilhante pela manhã.

Tranquei minhas portas, ambas, e me arrastei para a cama.


440

e uma das fortes também. Os


botões de lótus na piscina floresceram em segundos, e agora suas
pétalas brilhavam suavemente acima da água.

Fiz um novo bule de chá e acendi o fogo no caldeirão. As chamas


lambiam a madeira seca, queimando-a, e eu joguei um punhado de
ervas no fogo. As ervas brilharam em um flash, tornando as chamas
vermelho-sangue. A magia se espalhou do caldeirão. Eu a agarrei e
estendi a mente para minha avó.

A voz dela veio primeiro.

As chamas transformaram-se na imagem da minha avó. Alta e de


ombros largos, pessoalmente ela se elevava sobre mim. Como Kate,
Erra era deslumbrante. Rosto poderoso, belas feições, pele bronzeada
e uma abundante cabeleira negra caindo sobre os ombros. Eu a tinha
visto em uma armadura e em vestidos formais, com joias de ouro
441

traçando sua testa e pescoço. Vê-la em uma camiseta e calça de


moletom nunca deixava de me fazer rir.

— Não Senhora.

—Erra balançou a cabeça em negação.

Quando terminei de contar tudo a ela, eu já estava na minha


segunda xícara de chá.

E eu não sei disso.

— Vai depender de como ele esteja quando eu o encontrar esta


manhã. Devo contê-lo a todo custo, ou ele pode mobilizar o Núcleo e
iniciar uma caça a Derek. Ou pior, pode envolver o Bando nisso.

— Farei o meu melhor.


442

Erra franziu o cenho.

— Eu não tenho ideia do que seja. Nunca vi essa trilha de magia.


Nunca ouvi falar de alguém comendo o coração de alguma criatura
para ver o futuro. Existem lendas de pessoas que comem o coração de
pássaros místicos e ganham poderes mágicos, mas nada que se
encaixa nessa história.

Minha avó batia as unhas em alguma coisa, pensando.

— Sim. Parecia que ela começou a fugir, mas parou.

— Por quê?

Erra esvaziou sua xícara.

Como não pensei nisso antes? — Isso faz todo o sentido.


443

A lista de criaturas que podiam falar era curta. A regra geral era
se a criatura tinha uma cabeça humana, tinha o poder da fala, desde
que atingisse um alto nível de magia ou a idade certa. Lamassu era
uma delas. Manticoras também, embora as manticoras que encontrei
fossem bestiais e nunca falassem. Esfinges . Nagas . Harpias .

—Erra suspirou.

— Por quê?

Lamassu, Lamu ou Lama é uma divindade tutelar da antiga Mesopotâmia, considerada com frequência como sendo do
sexo feminino.

Esfinges são criaturas mitológicas com corpo de leão, cabeça de gente e (às vezes) asas de pássaro. São comuns
tanto na cultura egípcia quanto na grega.

Naga é uma semi-divindade da mitologia hindu.

As harpias são criaturas da mitologia grega, frequentemente representadas como aves de rapina com rosto de
mulher e seios.
444

Erra hesitou.

— Vovó?

Engasguei com meu chá. — O que o Alto Sakkan está fazendo


aqui?

Agora as tentativas frenéticas de Erra em falar comigo faziam


sentido. Namtur era uma bomba-relógio. Ela nem mesmo confiava
em Hugh o suficiente para contar a ele sobre isso. Provavelmente
porque Hugh largaria tudo, viria aqui e arrastaria Namtur para fora
de Atlanta antes que ele causasse um grande incidente.

— Ele deixou a Nação capturá-lo? Como ainda estão vivos?

— É disso que tenho medo. —Quando Namtur tinha algum tipo


de plano, as ruas ficavam vermelhas de sangue. Literalmente. —
Achei que tivéssemos combinado que eu cuidaria de Atlanta sozinha.
445

Erra levantou as mãos.

Ghastek, o líder da Nação, agora ION, em Atlanta, era um


problema. Ele era calculista e implacável. Um Navegador armado
com um único vampiro poderia exterminar uma equipe da SWAT
em segundos. Ghastek poderia facilmente pilotar mais de dois
vampiros de uma só vez e tinha Navegadores suficientes sob seu
comando para massacrar todos na cidade em 24 horas. Eu não podia
permitir que ele fosse um inimigo. Não agora.

— O que Ghastek queria?

Eu abri minha boca. Não saiu nada.

— Será que ele sabe quem é Namtur?

SWAT sigla para Special Weapons and Tactics, traduzido para o português: Armas e Táticas Especiais é uma unidade de polícia
altamente especializada nos departamentos de grandes cidades com maiores populações dos Estados Unidos.
446

Erra fez uma careta.

— Ghastek é muitas coisas, mas não é um idiota. Se ele tivesse ao


menos uma vaga idéia de quem é Namtur, ele não o teria detido.

—Erra negou com a


cabeça.

Se Namtur começasse a matar o pessoal do ION, Kate se


envolveria. Kate e Ghastek tinham um relacionamento complicado.
Quando o vovô atacou a cidade para subjugar Kate, Ghastek escolheu
ficar ao lado de Kate. Por um curto período, ele se tornou o Legatus
de Kate, líder dos Navegadores sob o comando dela. Quando Kate
desistiu de sua reivindicação da cidade, ele foi contra. Lembro-me
muito bem de ter ouvido essa conversa.

Ghastek realmente se exaltou. Por alguma razão, ele precisava


desesperadamente que ela permanecesse no poder, mas Kate não
tinha interesse em governar nada ou ninguém. Eles brigaram por
447

causa disso, mas Kate o considerava um amigo. Se Namtur causasse


problemas, ela viria em defesa de Ghastek.

Essa era a última coisa que eu precisava. — Vou buscá-lo.

— Vovó, Namtur é seu irmão de sangue. Ele não pode se dar o


privilégio de perambular sozinho pela cidade com Ma'aviris farejando
por todo o lugar e com Ghastek tramando só-os-deuses-sabe-o-que. Eu
preciso me manter escondida da minha família e a presença dele aqui
vai dificultar isso. Vou buscá-lo agora. Ele gosta de mim. Ele virá
comigo.

— Vou encontrar algo para ele fazer. Eu te amo. Tenho que ir


agora.

— Pode deixar.
448

os lugares em Atlanta, o Casino do ION era o meu favorito.


Cavernoso e sem janelas, o andar principal parecia uma caverna
luxuosa decorada em ricos tons de roxo e dourado e assim que se entra
pela porta principal, o visitante é recebido por fileiras e mais fileiras
de caça-níqueis. As máquinas caça-níqueis, equipadas para funcionar
durante magia ou tecnologia, brilhavam com luzes neon e tocavam
música estridente, mantendo os clientes acordados. As pessoas na
frente deles olhavam para as telas com olhos vazios, enquanto garçons
deslizavam entre eles, oferecendo álcool e bebidas com cafeína. Havia
algo infantil nas luzes brilhantes, cores supersaturadas e guloseimas
entregues sob demanda. Cada pessoa capturada nesse caos, perdida
nas melodias e telas giratórias, tonava-se mais um na multidão de
jogadores anônimos.

Virei à esquerda, onde duas Navegadoras aprendizes vestidas com


blusas roxas idênticas e saias lápis pretas aguardavam atrás de um
balcão de mármore. O caminho desde sentir a mente de um morto-
vivo até se tornar um Navegador experiente e ganhar o cobiçado título
449

de Mestre dos Mortos era longo e levava anos. Aqueles que aceitavam
passar pelo processo, tornava-se primeiro Navegador aprendiz. Mas a
maioria não chegava a Mestre dos Mortos.

Mostrei meu distintivo da Ordem. — Por favor, informe ao


Senhor Stefanoff que estou aqui para pegar o Senhor Sakkan.

Namtur usava seu título como seu sobrenome quando se dirigia


as pessoas que não eram de Shinar.

— Por favor, aguarde, —a Navegadora aprendiz mais baixa me


disse.

Eu me acomodei na área de estar, um local calmo e sombrio,


escondido em uma alcova e mobiliado com sofás roxos estofados.
Abaixo do chão, embaixo das máquinas caça-níqueis, dos jogadores e
do tapete vistoso, mentes de vampiros brilhavam como pontos
furiosos de magia suja.

Argh.

Os pontos brilhavam em minha mente, com espaçamento


uniforme, cada morto-vivo confinado em sua própria jaula nos
estábulos sob o edifício, vinte vampiros por coluna. Um, dois, três ...
dez ... Pelo menos seiscentos vampiros. Provavelmente mais, os
pontos estavam começando a se misturar à distância. Kate saberia
450

exatamente quantos. Ela também podia pilotar todos de uma vez. Eu


usava sangue de vampiro, o moldava e trabalhava com ele, mas pilotar
estava além das minhas capacidades, e eu estava agradecia por isso.
Nunca conseguiria compartilhar minha mente com uma dessas coisas.

Um Navegador aprendiz, um jovem no final da adolescência,


parou perto de mim. — O Diretor a receberá agora.

Eu o segui mais fundo nas entranhas do Casino.

Diretor. Isso era algo novo. Acho que combinava bem com o novo
nome, Instituto Oriental de Necromancia. Por que Oriental? Existia um
Instituto Ocidental?

Nas próximas horas, eu precisava pegar Namtur, de alguma


forma convencer Nick a não se envolver, dar algo a Namtur para
mantê-lo ocupado e longe de problemas, e então ir encontrar Mark
Rudolph. Havia muitos incêndios para apagar, e se eu não fizesse isso
rápido o suficiente, os sacerdotes de Moloch incendiariam com o tipo
de fogo com o qual eu não poderia lidar.

Chegamos à parede de trás e atravessamos um corredor, passando


por uma cortina de veludo, entrando em uma sala ampla que
terminava em uma escadaria espetacular. Ghastek descia os degraus,
uma figura alta e magra, quase esquelética, em um terno preto e
451

camisa na cor carvão. Pelo que me lembro ele era calvo, mas agora a
calvície estava ainda mais, acentuando sua testa alta. Suas feições
eram estreitas e Ghastek olhava para o mundo com olhos escuros
penetrantes.

Antigamente Ghastek costumava usar camisas de gola pólo ou


camisas básicas de malha, às vezes um suéter. Suas roupas eram
simples, mas de marcas caras. Ele se vestia como um CEO ocupado
que tinha muito o que fazer para se preocupar em se vestir bem. Por
que o terno agora? Não poderia ser para mim. Eu era só uma anônima
Cavaleira da Ordem.

Seu olhar se fixou em mim. — Senhorita Ryder, eu presumo.

— Cavaleira Ryder .

Ele sorriu.

— Eu disse algo engraçado?

— De modo nenhum. Você é muito jovem para entender a


referência e demoraria muito para explicar. Qual é a sua relação com
Namtur?

Uma paradinha aqui para explicar sobre essa referência que Ghastek se refere. Em inglês Cavaleira Ryder é ‘Knight Ryder’.
Knight Ryder (Brasil: A Super Máquina) foi uma série de televisão dos anos 80. Lendo os comentários no blog dos autores, vi que as leitoras
americanas, principalmente as mais velhas acharam engraçado que os Ilonas usaram essa referência.
452

Direto e ao ponto. Sem gentilezas. Meu disfarce estava intacto. —


Eu não tenho uma. Disseram-me para acompanhá-lo ao Núcleo.

Ghastek me analisou. Fiz um esforço razoável para parecer o


mais normal possível e me e cobri o máximo que pude com o meu
manto esfarrapado. Pessoas usando mantos era comum na cidade, e
ele podia ver meu rosto muito bem.

— Você não é um dos Cavaleiros regulares de Feldman.

— Fui recentemente designada para o Núcleo. Se entrar em


contato com a Ordem, eles confirmarão minhas credenciais.

Ghastek olhou para mim por mais um longo momento e disse


baixinho: — Traga-o.

Em algum lugar nas profundezas do Casino, um vampiro acabara


de falar com a voz de Ghastek.

Nós esperamos. Ghastek olhou para mim. A maioria das pessoas


tentaria pelo menos fingir que olhava para outro lugar por educação.
Ghastek me encarava abertamente.

Dois Navegadores aprendizes apareceram no topo da escada. Um


homem idoso, baixinho, caminhava entre eles. Ele usava uma túnica
marrom escura que era dois tamanhos maior que o dele e o cobria
como um lençol em um varal. A idade levou seu cabelo e sua pele
453

castanha coberta de rugas, mas seus olhos, da cor do mel, estavam


alertas e brilhantes.

Ele me viu. Seus olhos brilharam, ele se endireitou e aumentou a


velocidade de seus passos, as sandálias aparecendo sob a bainha da
túnica. Os Navegadores aprendizes lutaram para acompanhar.
Ghastek se virou para olhar para ele, tirando os olhos de mim por um
segundo, aproveitando o rápido desviou da atenção de Ghastek sobre
mim, coloquei dois dedos nos lábios e toquei o canto externo do meu
olho direito em um único movimento rápido.

Um pequeno sorriso surgiu nos lábios de Namtur e desapareceu.


Foi ele quem me ensinou a linguagem dos ladrões.

Ghastek se voltou para mim. Deu-lhe uma expressão vazia, quase


entediada. Apenas uma Cavaleira se preparando para escoltar um idoso.
Nada de interessante aqui.

Namtur parou a cerca de meio metro de distância e lançou um


olhar fulminante para Ghastek. — O que é agora? Você está me
oferecendo esta criança bonita? O que um velho como eu pode fazer
com ela?
454

Ghastek parecia ofendido. — Uma Cavaleira veio para escoltá-lo


até a Ordem. Não sabia que Eahrratim e a Ordem tinham laços tão
estreitos.

Usar o nome completo da minha avó não valeria pontos para ele.

Namtur ergueu o queixo para o alto. — As coisas que você não


sabe ou percebe são um oceano, e sua mente é um pequeno barco
sobre as ondas.

Insultos antigos eram os melhores.

— Encantador, —Ghastek disse secamente.

Eu precisava apressar isso. — Preciso assinar alguma coisa?

Um grupo de pessoas dobrou a esquina, vindo da minha esquerda,


liderado por uma mulher com um vestido verde claro que fazia
maravilhas por sua figura já espetacular. Seu longo cabelo ruivo caia
em seus ombros. Rowena, uma das Mestres dos Mortos, a segunda
necromante mais poderosa de Atlanta. Ela devia estar na casa dos
cinquenta anos e ainda era linda. Sempre suspeitei que ela e Ghastek
fossem um casal, mas ninguém jamais poderia provar isso.

Os três homens atrás dela usavam roupas idênticas: calças escuras,


túnicas escuras e pesadas capas cerimoniais, artisticamente colocadas
455

sobre seus ombros. Um deles, o mais velho, com cabelos brancos e


pele bronzeada, usava uma capa da cor de jade, e os dois homens mais
jovens que o seguiam tinham capas da cor turquesa. O Povo do Sol.

Lá se vai a conversa tranquila ...

Entre os Cultos Astecas, o Povo do Sol era o mais forte. Mesmo


antes da Mudança, 12 milhões de mexicanos falavam a língua asteca.
Depois que a magia inundou o mundo, a mitologia e a religião asteca
voltaram com força total. Algumas coisas eram boas e outras eram
horríveis.

O Povo do Sol adorava Huitzilopochtli , o deus da guerra, do sol


e do sacrifício, e controlava pontos aleatórios em todo o sudoeste.
Qualquer pessoa pode aderir ao culto. Eles não discriminam por
nacionalidade, gênero, orientação sexual ou habilidades mágicas,
contanto que se ore e adore a seu deus e a nenhum outro.

Até agora, o Povo do Sol tinha ficado longe do sacrifício humano


em massa, provavelmente porque eles eram poderosos o suficiente
sem o uso desse artificio. Nós havíamos entrado em conflito com eles

Huitzilopochtli era uma divindade totalmente asteca sem nenhuma conexão com outra civilização mesoamericana
diferentemente de outros deuses do panteão asteca. E era o principal deus cultuado na capital do império Tenochtitlán.
456

durante o tempo que passamos em Los Angeles e isso foi um dos


fatores que motivaram nossa mudança para San Diego .

O grupo de Rowena caminhou direto para nós.

Isso foi planejado. Ghastek queria que nos encontrássemos. A


armadilha não poderia ser para mim, então era para Namtur.

Rowena se moveu ligeiramente para o lado e vi o rosto do homem


mais velho. Tizoc. Um dos Tecuhtli, o Cacique, velho, poderoso e
perigoso como o inferno. Seu nome verdadeiro era Luke O’Sullivan.
A maior parte de sua família ainda morava em Boston e ele
ocasionalmente fazia viagens para lá no Dia de Ação de Graças. Os
dois caras atrás dele eram provavelmente guerreiros Jaguar, lutadores
de elite que serviam como guarda-costas pessoais do Tecuhtli.

Los Angeles é uma grande cidade do sul da Califórnia e também o centro da indústria
de cinema e televisão do país. Perto do famoso letreiro de Hollywood, é possível conhecer os bastidores das produções nos estúdios
Paramount Pictures, Universal e Warner Brothers. Na Hollywood Boulevard, o TCL Chinese Theatre exibe impressões de mãos e pés de
celebridades na Calçada da Fama, uma homenagem a milhares de astros, e se pode comprar mapas das casas dos artistas.

San Diego é uma cidade na costa da Califórnia, às margens do Oceano Pacífico,


conhecida por suas praias, seus parques e pelo clima quente. O imenso Parque Balboa abriga o famoso Zoológico de San Diego, além de diversos
estúdios de artistas, galerias de arte, museus e jardins. Um porto profundo é a base de uma grande frota naval ativa, com o USS Midway, um
porta-aviões transformado em museu e aberto ao público.
457

Eu me virei, assim meu capuz bloquearia meu rosto. Tizoc e


Namtur já haviam tentado negociar acordos antes, e foi ódio à
primeira vista. Isso poderia ficar pior?

Os dois velhos se viram. Por um instante, ninguém se moveu.

Tizoc se recompôs primeiro. — Namtur, sua cobra geriátrica do


deserto. Por isso sentir algo nojento quando cheguei aqui, e aí está
você.

Namtur o ignorou. — Vamos embora agora.

Pontos de magia de morto-vivo se aproximaram, seis vampiros


pararam logo acima de nós, prontos para cair pelo teto, e mais
estavam vindo. Ghastek esperava um confronto. Ele havia organizado
isso e agora estava se preparando para conter a luta.

— Fugindo? —Tizoc zombou.

Namtur não deu nenhuma indicação de que tinha ouvido a


provocação. O insulto final—ele decidiu que Tizoc era tão
insignificante que merecia ser ignorado.

— Cavaleira, não tenho tempo a perder.

— Precisamos ir agora, —eu disse a Ghastek.


458

Tizoc estalou os dedos e os dois guardas moveram-se para


bloquear a nossa passagem.

— Quem é a garota de recados? Isso é o melhor que sua rainha


cadela poderia mandar para resgatá-lo, uma criança maltrapilha? —
Tizoc estendeu a mão para mim.

Namtur se moveu tão rápido que seu movimento foi um borrão.


Sua mão bateu nos dedos de Tizoc. — Como se atreve?

Uma névoa turquesa saiu de Tizoc, como duas asas brilhantes.


Seus olhos brilharam em verde.

Eu tinha que parar isso, ou pessoas morreriam.

Coloquei minha mão no ombro de Namtur e me movi para que


Tizoc pudesse ver meu rosto. Ele estremeceu como se tivesse sido
atingido por um fio elétrico. Atrás dele, seus guarda-costas
desembainharam suas espadas em uníssono.

—eu disse baixinho na língua antiga.

Namtur deu um tapinha solene na minha mão e se virou para a


saída. Os guardas se afastaram, dando-nos muito espaço.
459

Caminhamos entre eles e continuamos andando, pelo Casino, pelas


portas, pela praça.

Dois vampiros cobertos com protetor solar verde-limão nos


seguiram discretamente. Eu me virei e olhei diretamente para eles,
queria que o navegador tivesse certeza de que eles tinham sido vistos.

— Tio-avô, —eu murmurei. — Por que estragou meu disfarce? O


combinando era parecer que você não me conhecia.

Ele pigarreou. — Aquele cão sarnento. As mãos dele são indignas


de tocá-la. Se ele tivesse manchado você com aqueles dedos sujos de
sangue, eu os teria cortado.

Sujos de sangue? Panela, chaleira . — Obrigada por se importar,


tio-avô. O que estava fazendo no Casino?

— Ouvi dizer que aquele magrelo está tentando fazer uma


aliança. Eu queria saber a quem ele está oferecendo suas lamentáveis
mercadorias.

Ele soou como se Ghastek fosse um mascate de rua.

— E agora nós sabemos quem, —Namtur disse.

É uma abreviação do termo ‘The pot calling the kettle black’ (O pote chamando a chaleira de preto) é uma expressão idiomática
proverbial que pode ser de origem espanhola, cujas versões em inglês começaram a aparecer na primeira metade do século XVII.
460

— Ele mencionou por que queria uma aliança?

— Não, mas fez muitas perguntas sobre o Reino.

Interessante.

Chegamos ao estacionamento lateral onde deixei Tulipa e Leide,


a égua que aluguei esta manhã. Os vampiros pararam na calçada.

Namtur se virou e acenou para eles. — Xô! Vão para casa, suas
criaturas abomináveis!

Os vampiros permaneceram onde estavam. — Vamos


acompanhá-lo até o Núcleo.

— Isso não será necessário, —eu disse a eles. — Senhor. Sakkan


está sob custódia da Ordem. Considerarei qualquer outra interferência
do Instituto como um sinal de agressão. Este é um aviso oficial da
Ordem.

Os vampiros congelaram enquanto os dois Navegadores que os


pilotavam esperavam por ordens. Um momento se passou. Os mortos-
vivos se viraram e correram de volta para o Casino em seu caminhar
estranho e desarticulado.

Namtur saltou e pousou na sela de Leide. A égua alugada se


assustou. — Vamos para casa agora?
461

— Não, tio-avô. Estamos indo para a Ordem da Ajuda


Misericordiosa.

Namtur acenou com a cabeça. — Certo. E por que faríamos isso?

— Duas razões. Primeira, seu antigo anfitrião nos seguirá. Estou


disfarçada de Cavaleira, então vou precisar levá-lo onde os Cavaleiros
ficam.

— E a segunda?

— Tenho que convencer um homem paranóico propenso a


matanças e julgamentos precipitados de que alguém não é uma
ameaça.

— Ele está certo em ser paranóico. Esta é uma cidade de tolos,


incompetentes e loucos. Não me sinto tão jovem há séculos.

— E se as coisas não forem do seu agrado, você provavelmente


matará muitos deles.

— Você e suas promessas atraentes. Já se passaram oito meses


desde que molhei minhas lâminas. Vou matar algo antes que minhas
férias terminem.

Não se eu pudesse evitar.


462

ponderou o rosto de Namtur. — Não vejo semelhança


nenhuma.

— ‘Tio-avô’ é um título honroso. —Explicar que ele era um irmão


forjado por pacto de sangue da minha avó quase imortal só
complicaria as coisas.

Namtur deu a Stella seu melhor sorriso. Seus olhos se enrugaram


em pequenas fendas e ele parecia tão doce quanto poderia ser.

— Eu não darei trabalho nenhum.

Stella se levantou. — Por favor, sente-se. Você gostaria de um


pouco de chá?

Namtur sorriu ainda mais e demorou-se para se arrastar até o


assento e se sentar cautelosamente nele.

O termo original ‘brothers in blood’, que em português seria irmãos de sangue, teria a impressão contrário do que significa essa
expressão em inglês. Em português irmãos de sangue, são irmãos de mesmos pais. Em inglês, Brothers in blood, são pessoas que fizeram
um pacto de sangue tonando-se irmãos de irmandade. Então Namtur não é irmão consanguíneo de Erra e sim um irmão(irmandade) que
tiveram seu vínculo forjado por um pacto de sangue.
463

— Oh não, não. Você está muito ocupada e não quero incomodar.

Eu realmente queria aplaudir a sua excelente atuação, mas isso


iria estragar as coisas.

— Não é problema. Eu já ia fazer uma xícara para mim de


qualquer maneira.

Ela alcançou sua mesa e tirou uma pequena bandeira branca de


tecido, amarrada em um pauzinho e uma pequena jarra. Ela apontou
a bandeira para mim.

Eu peguei — O que é isso?

— Essa é a sua bandeira de guerra. Ele está em seu escritório com


a bunda colada na cadeira desde esta manhã. Ele cancelou todas as
reuniões que ia ter. Ninguém pode entrar. Está esperando por você.
Agite sua bandeira

Eu agitei a bandeira. — Por quê?

Stella pegou o pequeno jarro. — Vou borrifar leite sobre a


bandeira como os mongóis faziam antes da batalha. Isso é tudo que
posso fazer para te ajudar.

— Que coisa boa, —disse Namtur. — Você é uma amiga muito


atenciosa.
464

Segurei a bandeira de guerra e Stella borrifou um pouco de leite


sobre ela. Então me virei e marchei para o escritório de Nick Feldman.

Bati na porta.

— Entre.

Entrei e fechei a porta atrás de mim.

Nick Feldman parecia uma nuvem de tempestade humana.

Fui até a mesa dele e sentei na cadeira.

Ele pegou um pequeno tubo de vidro de sua mesa. Pó branco


flutuou dentro dele. Nick o partiu ao meio e jogou o pó no chão.
Linhas laranja se acenderam nas tábuas do piso, formando um feitiço
complexo, e desapareceram. Nick selou a sala.

Havia diversas variedades de Selos como esse. Alguns bloqueiam


o som, outros bloqueiam a visão, um terceiro tipo faz as duas coisas.
Este era uma armadilha. Ele nos selou dentro da sala, bloqueando
toda visão, som e magia, e eu teria que quebrá-lo para sair.

Nick Feldman planejava me matar.

Eu não queria machucá-lo. Ele sempre foi gentil comigo. Depois


que Nick começava, ele não parava. Eu teria que incapacitá-lo.
465

Ele olhou para a bandeira de guerra de Stella. Eu coloquei em sua


mesa e recostei-me.

— Senhorita Ryder, você sabe o que acontece quando um


metamorfo estrangeiro entra no território do Bando?

Nick não estava apenas frio. Tinha se transformado em um


pingente de gelo.

— Todos devem se apresentar ao Senhor das Feras em vinte e


quatro horas.

Nick me fixou com seu olhar. Seus olhos estavam cheios de


chumbo. — Você sabe o que acontece se o visitante deixar de cumprir
as regras?

— O Bando o caça e o captura?

— Sim. Eles nem sempre são gentis sobre isso.

Eu esperei. Ele estava indo a algum lugar com isso.

— Um metamorfo em média é pelo menos três vezes mais forte


que o humano e duas vezes mais rápido. Coloque na mistura as garras,
as presas, a cura acelerada, o instinto de caça, e o que se tem é um
predador perfeito, armado com a inteligência de um humano e a força
de um monstro.
466

Nada disso parecia exigir uma resposta de minha parte. Se fosse


outra pessoa, eu perguntaria se deveria fazer anotações ou se isso faria
parte de uma prova final. Mas o principal objetivo aqui era mantê-lo
calmo.

— Metamorfos são isolados, desconfiam de estranhos e são


profundamente paranóicos.

Panela, chaleira.

— A humanidade deles geralmente está por um fio, —continuou


Nick. — É preciso muito pouco esforço para esse fio quebrar. Quando
eles encontram um metamorfo estrangeiro em seu território e
encontram resistência, presumem que aquele metamorfo não tem
boas intenções. Eles irão tentar apreender este invasor. Podem ficar
acirrados e até mesmo matá-lo. Quando isso acontece, o bando a que
esse visitante pertence retalia. Este é o ponto onde o pensamento
racional e a lógica voam pela janela e temos uma guerra de
metamorfos.

Nick estava se preparando para me dizer algo. Uma explosão


estava chegando, eu podia sentir.

Nick cruzou os braços. — O que temos aqui, agora, é um


metamorfo estrangeiro, que não por acaso é o beta do maior bando de
467

metamorfos da América do Norte. Sua mera presença no território do


Bando de Atlanta é um insulto. Se descobrirem que ele está aqui e
escapar, o Bando perdera a civilidade e retaliará. Se o prenderem e ele
for ferido, o Ice Fury retaliará. De qualquer forma, esta é uma
declaração de guerra. Estamos assistindo ao início de um massacre. E
esse massacre não será travado no Alaska, será aqui, nesta cidade.

Nick apontou para a janela.

— Nas ruas. Bem ali.

Eu sentei muito quieta. Essa conversa estava sendo como cruzar


um lago congelado. Um passo errado e eu mergulharia em água
gelada.

— Centenas de metamorfos morrerão. Milhares de civis inocentes


serão assassinados. Estas não são algumas estatísticas hipotéticas.
Este país já viu guerras de metamorfos antes. Sabemos em detalhes
horríveis que tipo de vítimas resultam disso. E eram bando pequenos.
Pode imaginar a escala da matança quando os dois maiores bandos se
rasgarem?

Abri minha boca para responder.

— Acredito que você pode, —ele disse.

O gelo sob meus pés apenas rachou.


468

— Acredito que está contando com isso. Para as pessoas a quem


você serve, os humanos não têm mais valor do que os mosquitos.

Ele pegou uma pasta no canto de sua mesa e colocou na minha


frente. A pasta caiu aberta. Fotos espalharam-se sobre a mesa. Uma
fotografia de Erra a cavalo, meu tio à sua esquerda e eu à sua direita.

Outra imagem, eu em um vestido real de Shinar, recebendo um


grupo de empresários, metade deles me olhando furiosamente, a outra
metade tentando se curvar desajeitadamente, no terraço ensolarado de
Dosari, o palácio de Erra na Califórnia. O vestido verde claro
abraçava meu corpo. Meu cabelo, preso por uma tiara de ouro, caia
em uma cascata de ondas douradas. Braceletes de ouro, me
identificando como a Herdeira, brilhavam em meus pulsos. Uma
terceira imagem, uma pintura, tão real que era quase uma fotografia—
eu em uma armadura de sangue montada em um cavalo, respingado
de sangue e gritando.

Ótimo. Fantástico. Desconfiei que ele tinha me dado o caso do


pastor com muita facilidade. Eu sabia que ele iria me investigar, mas
esperava que todos os bloqueios de informação que eu havia criado
nos últimos meses o atrasassem o suficiente até que eu conseguisse
matar os Ma'aviris.

Maldito seja esse rosto.


469

— Eu tenho uma teoria. —A voz de Nick cortou como uma faca.


— Gostaria de ouvir, Dananu?

— Tenho escolha?

— Não. Há mais de sete mil quilômetros separando o Bando de


Atlanta dos Ice Fury. Então, eu me perguntei, o que o beta dos Ice
Fury, o cara que comanda as coisas no dia a dia, estaria fazendo em
Atlanta? Eles consideram o lobo como um líder, mesmo que
oficialmente não seja o líder. O Lobo Prateado, o cara que conseguiu
organizar mais de cinco mil separatistas e desajustados, metade dos
quais vivem na forma selvagem, em uma sociedade organizada e
produtiva, tudo o que eles sempre rejeitaram, e agora os Ice Fury o
amam por isso. Por que ele está aqui? Por que agora?

Oh queridos deuses. Aqui vamos nós.

— Ele deve saber que invadir o Bando é um pesadelo logístico.


Não é viável sustentar um conflito prolongado. O Bando tem a
Fortaleza e é uma maldita fortaleza. Eles saberiam que os Ice Fury
estariam chegando, porque Argent moveria milhares de metamorfos
por todo o Canadá e o Meio-Oeste até aqui. Ele deve querer algo. O
Bando tem direitos exclusivos sobre a panaceia, o que ajuda a prevenir
o Loupismo. Possuem um cofre cheio de artefatos mágicos. Talvez
470

Argent queira um artefato desses. Ou ele quer esmagar o Bando e


assumir o controle. Talvez seu povo esteja cansado do Norte e do frio.

— Posso falar?

— Não. Eu não acabei. —A raiva brilhou nos olhos de Nick. —


Argent não é estúpido. Ele não seria um beta se fosse estúpido. Sabe
de tudo isso, mesmo assim está mexendo nesse caldeirão. Para se
arriscar dessa forma, ele deve estar muito certo de que pode conseguir
o que quer. Isso significa que ele tem um apoiador poderoso. Vocês.

E agora tínhamos paranoia em desfile com carros alegóricos e bandas


marciais.

Nick se inclinou para frente. Seus olhos se fixaram em mim.

— Você vai apoiar o jogo dele. É um bom plano. Ele tem força e
você tem magia. Um golpe duplo. Houve um tempo em que Atlanta
teria se reunido para impedi-los, mas agora isso não será possível.
Você e Argent devem ter planejado que, a essa altura, o Bando já
tivesse notado a presença de vocês. Vocês precisam de uma desculpa
para começar esta guerra. O problema é que, por alguma razão
bizarra, o Bando ainda não reagiu da maneira que vocês esperavam,
então você vazou o nome de Argent para Stella. Você sabe de minha
conexão com o Bando. Fazendo-me saber sobre Argent, você
471

esperava que eu soasse o alarme ao Bando para salvar a mulher que


amo e nossos filhos.

Ah titio estúpido ...

— Diga-me, o que ganha com isso? O que Erra quer? É sobre a


Kate? Acha que se destruir o Bando, Curran intervirá, e você e Argent
podem matá-lo? E então Kate, sozinha e de luto, pegará seu filho órfão
e voltará para sua tia como uma boa filha pródiga? Honestamente
acha que seu povo poderia esconder seu envolvimento nisso? Ou você
simplesmente não se importa? Isso é uma vingança em nome de
Roland?

Abri minha boca novamente.

— Eu não vou permitir. Esse esquema termina aqui, comigo. Não


haverá guerra.

— Argent não quer uma guerra. —Sim! Finalmente consegui


dizer uma palavra.

Nick se concentrou em mim. Ele parecia ligeiramente perturbado,


e sua voz gelada só piorava. — Me esclareça. O que o Argent quer?

— Ele quer descobrir quem matou o pastor Haywood.


472

Nick riu. — Você está aqui pelo mesmo motivo. Quão


conveniente.

Protuberâncias estranhas deslizaram sob a pele de Nick, como


bolas de golfe rolando ao longo dos músculos. A arma secreta que
meu avô havia colocado nele.

Os olhos de Nick me disseram que eu estava prestes a morrer.


Exceto que não iria ser da maneira que ele pensava.

Eu não poderia matar Nick para salvar Kate. Isso ia contra tudo
que eu defendia. Tudo o que Kate representava. Ela não iria querer
isso. Se Kate soubesse que eu o matei por causa dela ...

Sinto muito, Kate.

— É Derek.

Nick piscou.

— Darren Argent é Derek Gaunt. Ele está aqui porque o pastor


Haywood pediu sua ajuda, mas chegou tarde demais. Derek não fará
nada para colocar em perigo o Bando que Curran construiu. Ascanio
persegue Derek pela cidade há três dias, deve ter reconhecido o cheiro
dele, mas provavelmente ele não sabe que Derek é Argent.

As palavras ficaram entre nós como tijolos pesados.


473

Nick olhou para mim, sem palavras.

— Você não tem que matar ninguém. Não haverá guerra. Não há
planos de conquistas. Desandra está segura. As crianças estão seguras.
Está tudo bem. Eu não vou deixar ninguém machucar Kate.

O silêncio se estendeu.

— Julie?

— Sim?

Nick Feldman abriu a boca. — O que diabos você fez a si mesma?

o Ki-Suco daquele povo. Você os deixou mudá-la e


distorcê-la, por quê? O que havia de errado com você antes?

Suspirei. Nick não tinha aceitado bem a coisa toda de Princesa de


Shinar.

Kool-Aid é a versão americana do Ki-suco, essa gíria é usada para dizer que a pessoa esta na merda ou louca de uma maneira
não ofensiva.
474

— Eu já te disse, não tive escolha. O olho me mudou. Não tinha


percebido que as mudanças estavam acontecendo até eu acordar de
um coma com um novo rosto. Tudo que eu queria era ser como Kate
e como Erra. Queria me encontrar e ser forte.

— Essa família inteira é um veneno.

Isso novamente. — Não há nada de venenoso em Kate. Kate passou


a maior parte de sua vida adulta protegendo esta cidade e as pessoas
que nela moram. Se houver algum tipo de problema, ela o enfrenta,
sem fazer perguntas. Kate se importa com as pessoas. Sempre se
importou.

— Proteger não é suficiente.

Aha. — Você trabalhou para Roland. Aceitou ser modificado por


ele. Seus tentáculos são resultado disso. Quem é você para julgá-la?

O rosto dele ficou branco. — Eu estava disfarçado.

— E Kate é filha de Roland. Ele a amava e lhe ofereceu tudo,


poder, riqueza, a família que ela desejava desesperadamente, e ela
rejeitou tudo porque era a coisa certa a fazer. Kate é o tipo de pessoa
que permite que o homem que ela considera seu irmão a chame de
abominação na cara dela.
475

— Não faço isso há anos.

— Você não ganha pontos comigo por não ser um idiota, tio.

— Tudo bem, —Nick rosnou. — Eu não tenho um grande


problema com o seu rosto. Você queria se parecer com Kate, e posso
entender isso. Posso até entender por que colocou o olho. O que não
entendo é porque permitiu que Erra te doutrinasse para ser o fantoche
dela.

— Ela não me doutrinou. Eu escolhi a Nova Shinar sozinha.


Tenho meus motivos.

— A Antiga Shinar era uma tirania, e você está ajudando a


ressuscitá-la.

Eu me inclinei para frente. Já tive essa discussão antes. — Você


está julgando uma civilização antiga da qual nada sabe, aplicando a
estrutura política moderna a ela. Shinar nunca foi uma monarquia
absoluta. O poder da linhagem real era limitado. Tinha três poderes
de governo: executivo, legislativo e judiciário. Essa ideia é muito mais
antiga do que os Estados Unidos podem supor. Para vir até Atlanta,
tive que convencer o conselho da Nova Shinar de que, em última
análise, era do interesse deles que Kate sobrevivesse.
476

Eles não precisaram de muito convencimento. Kate era a


sobrinha amada de Erra e uma princesa de Shinar, quer ela se visse
como tal ou não. Além disso, todos sabiam que se tentassem me
impedir de proteger a mulher que me criou como sua própria filha, eu
abdicaria na hora da minha posição.

— Tive de me apresentar a vinte pessoas e argumentar com eles o


melhor e o pior cenário. Eles deliberaram e votaram. Eles tinham o
poder de me impedir.

Nick jogou as mãos para o alto. — Não entendo você. Você


cresceu em uma democracia.

— Não, eu cresci em uma república federal. Em uma verdadeira


democracia, o voto da maioria é absoluto e tem o poder de anular os
interesses da minoria. Em uma república, os direitos individuais de
um cidadão são absolutos e o voto da maioria não pode infringi-los.

Ele me olhou fixamente.

— Em termos de direitos individuais, a Antiga Shinar não era tão


diferente do sistema atual. Teve seus problemas, mas garantiu a
liberdade dos cidadãos. Ela oferecia um caminho de avanço baseado
no mérito. Qualquer pessoa poderia se candidatar após o período
exigido de serviço militar ou civil. O homem no escritório de Stella
477

nasceu um plebeu. Ele mendigou nas ruas até os dez anos de idade.
Antes da queda da Antiga Shinar, ele havia se tornado um Alto
Sakkan, o mais alto nível de ministro que alguém poderia atingir.

Nick ergueu a mão. — Ainda é uma monarquia.

— O Reino Unido também.

— Olhe para essa foto. Você está usando ouro. As pessoas estão
curvando-se aos seus pés. Isso te faz feliz? É assim que se vê?
478

Suspirei. — Antes da Mudança mágica, as grandes potências


mundiais tinham armas nucleares. Todos entendiam que, enquanto
essas bombas existissem, outra guerra mundial estaria fora de questão
ou a vida no planeta acabaria. Milhares de anos atrás, antes da
Mudança da tecnologia, quando a magia reinava suprema, ninguém
se tornava rei ou general, a menos que possuísse grande poder mágico.
Como a Herdeira de Shinar, sou a espada e o escudo do meu povo. Se
surgir uma ameaça, serei a primeira e às vezes a única a enfrentá-la.
Sou a bomba atômica. É meu dever me colocar entre o Reino e seus
inimigos. Quando uso ouro em um evento oficial, é porque preciso
sinalizar para todos que Shinar é próspera e forte o suficiente para
manter sua riqueza. Quando os membros do conselho vestem mantos
verdes e brancos idênticos, é porque suas vestes sinalizam que todos
são iguais. As aparências são importantes.

— Roland era um tirano.

— E o Conselho da Nova Shinar aprovou uma resolução oficial


privando-o de sua cidadania Shinar. Se ele sair de sua prisão mágica,
a Nova Shinar o prenderá novamente.

Nick riu.

— Esta república federal que você tanto ama está se desfazendo,


—eu disse a ele. — Funcionou antes da Mudança. Agora não. Ontem,
479

nesta república, um homem quebrou os ossos de uma criança e a


arrastou em uma corrente à vista de todos pelas ruas e ninguém fez
nada a respeito.

O rosto de Nick ficou sombrio. — Isso é um soco abaixo da


cintura. Qualquer um dos Cavaleiros deste Núcleo teria intervindo.
Qualquer oficial do PAD teria intervindo.

— Mas eles não fizeram. A aplicação da lei é muito pequena e


limitada. Jasper não fez questão nenhuma em ser discreto enquanto
arrastava a criança. Ele tinha certeza de que seu ato ficaria impune. O
sistema falhou. Falhou há duas décadas, quando me tornei uma
menina de rua. Eu sei exatamente como essas ruas são feias. Não foi
a república que me salvou. Foi Kate.

Ele fez uma careta. — Justo.

— Esse sistema entrará em colapso eventualmente, mais cedo ou


mais tarde. Los Angeles é praticamente uma cidade-estado. Atlanta
também. Não quero viver em uma época em que os mais fortes
chegam ao topo e dividem o país em pequenos feudos. Quero
construir uma nova nação onde as pessoas estejam seguras.

— Reivindicando terras e impondo seu governo aos outros.


480

Nick era como um cachorro agarrado a um osso. — O território


da Nova Shinar atualmente inclui San Diego. Sabe como?

— Tenho certeza de que você vai me dizer.

— San Diego realizou um referendo dentro de suas fronteiras e


seus cidadãos votaram para se juntar a nós. Não impomos à cidade
como se governa. Respeitamos seu governo municipal eleito
legalmente.

— Não, vocês apenas esperam que eles se curvem e se submetam.


—Ele bateu na fotografia com os empresários. — Bem assim.

— Esses são os representantes da Câmara de Comércio de La


Mesa . Ninguém pediu que eles se curvassem. Eles vieram nos
encontrar porque tinham um culto à morte que roubava crianças para
sacrifícios humanos e já haviam procurado as agências de aplicação
da lei e eles os disseram que os desparecimentos eram algo comum e
esperado. —Eu vasculhei o arquivo. — Eu me lembro quando isso
aconteceu. Aposto que tem outra foto ... Aqui está.

Puxei a foto e coloquei na frente dele. Nela, eu, ainda vestida com
o mesmo traje, estava ajudando uma das representantes, uma mulher

La Mesa é uma cidade localizada no estado americano da Califórnia, no Condado de San Diego. Foi
incorporada em 16 de fevereiro de 1912.
481

mais velha, a subir os degraus enquanto os outros empresários


pairavam por perto, sem saber o que fazer.

— A Nova Shinar não é uma tirania, tio. Não importa o quanto


queira que seja. Mas já que estamos no assunto, eu te pergunto: você
foi eleito para o cargo atual que exerce? Que tal Desandra? Ela foi eleita
para ser a alfa do Clã Lobo?

— Isso é diferente e você sabe disso.

— Não, é exatamente o mesmo raciocínio. Desandra poderia ter


deixado Atlanta e ido para Kentucky , onde bandos de metamorfos
são proibidos, e criado seus filhos silenciosamente. Em vez disso, ela
esculpiu seu caminho até o topo com suas garras.

Ele balançou sua cabeça. — Você não vai conseguir me


convencer.

Suspirei. — Deixe-me perguntar uma coisa, você acha que


Atlanta está mais segura agora do que há dez anos, quando Kate a
defendeu? —Ele não respondeu. — Eu não sou cega. Não estou

O Kentucky é um estado da região sudeste dos EUA, delimitado pelo rio Ohio ao norte e
pelos Apalaches ao leste, que tem como capital a cidade de Frankfort. A maior cidade do estado, Louisville, recebe o Kentucky Derby, a
renomada corrida de cavalos realizada em Churchill Downs no primeiro sábado de maio. A corrida é precedida por um festival de 2 semanas
e celebrada no Kentucky Derby Museum durante todo o ano.
482

vendendo opressão. Estou fazendo o meu melhor para garantir que os


ideais de liberdade e direitos individuais não desapareçam. Mas não
vim aqui para convencer ou recrutar você. Estou aqui porque Kate
está em perigo. Moloch queima bebês vivos para alimentar seu poder.
Podemos concordar que é ruim? Você vai me ajudar a detê-lo?

Ele balançou sua cabeça.

— Isso é um não?

— Estou balançando a cabeça para mim mesmo. Porque sou um


idiota. Quem mais sabe?

— Luther.

— Você contou a Luther, mas não me contou?

Eu fiz uma careta.

— Não precisei contar a ele. Ele descobriu sozinho.

Nick ponderou sobre mim. — Vou te ajudar com Kate. E será a


única coisa em que irei ajudá-la. Estou te observando. Cada passo.
Cada respiro.

— Combinado.
483

Eu contei tudo a ele. Contei tudo que descobrir sobre os


assassinatos, sobre Derek, Ascanio, os Ma'aviris e relíquias.

Ele absorveu tudo. — Ferara está cada vez pior.

— Ouvi dizer que ele está mirando no trono do Senhor das Feras,
mas é difícil para mim vê-lo nesse posto.

Nick suspirou novamente. — É complicado. Jim está cansado.


Você sabe que ele tem filhos?

— Um menino e uma menina.

— Ele perdeu momentos importantes com JJ e não quer perder a


infância de Diana. Ele também reestruturou o Bando e conseguiu
empurrar muito do fardo das funções do dia a dia para os Clãs.
Ninguém discute que isso tinha que ser feito, mas o processo deu aos
Clãs bastante autonomia. Desandra é muito analítica com tudo e ela
acha que será necessário alguém tão excepcional como Jim para
manter os clãs juntos depois que ele se aposentar.

Se Jim escolhesse a pessoa errada, o Bando racharia. Um Bando


dividido seria ruim para todos.

— Os alfas respeitam Jim, —Nick continuou. — Ele conquistou


a confiança deles. Ascanio, nem tanto.
484

— Por quê?

— Parte do motivo foi a maneira que ele escolheu para progredir


no Bando. Existem dois caminhos para o topo hierárquico do Bando:
alianças estratégicas e poder físico. Pode-se dizer que são as faces da
mesma moeda.

A política do Bando era um atoleiro de problemas. Os conflitos


individuais entre clãs podiam se tornar terrivelmente complicados.

— Raphael transformou os Boudas em uma potência financeira.


Ele e Andrea reconhecem que Ascanio é ambicioso. Mas não estão
prontos para renunciar as posições de Alfa e abrir caminho para
Ascanio, e não querem lutar contra ele. Juntos, eles podem vencer,
mas há uma boa chance de que Ascanio mate pelo menos um dos dois.

— Então, eles redirecionaram a ambição de Ascanio para longe


de si mesmos?

— Exatamente. Eles estão o aconselhando e conspirando em seu


nome. Ascanio está tentando construir uma coalizão por meio do
dinheiro. No momento, o Clã Ágil e o Clã Chacal estão no bolso dos
Boudas porque têm empreendimento financeiros conjuntos. Clã
Heavy e Clã Felino se opõem a Ascanio. Ele tentou se firmar e foi
rejeitado.
485

Isso fazia sentido. O Clã Heavy ainda era liderado por Mahon,
que criou Curran como seu próprio filho. Na mente de Mahon, apenas
Curran era adequado para ser o Senhor das Feras. O Clã Felino
pertencia a Jim. Os gatos eram independentes e conhecidos por sua
feroz teimosia, mas Jim tinha sido o alfa deles antes de se tornar o
Senhor das Feras e eles seguiriam qualquer um que Jim apoiasse.

— E os Ratos?

Nick franziu a testa. — A posição deles é indefinida. Os Ratos


ganharam algum dinheiro com Ascanio e devem ter chegado a algum
tipo de entendimento, mas os Ratos sempre cuidam um dos outros.
Você não pode contar com o apoio deles a menos que obtenha um sim
definitivo de Thomas e Robert Lonesco, e até agora Ascanio não
recebeu um.

Então é por isso que Ascanio estava correndo pela cidade sem
supervisão. Os Ratos decidiram ‘esperar para ver’. Eles o observavam
de longe, o deixavam tramar, mas não o ajudavam. O fato deles não
interferirem significava que achavam que Ascanio tinha chance de
sucesso. Ninguém saberia dizer de que lado os Ratos estariam até o
último minuto decisivo.

— Devo dar o braço a torcer, Ascanio foi mais longe do que


qualquer um esperava, —disse Nick. — Ele é bom em observar as
486

pessoas e usar as fraquezas delas a seu favor. Ele não perde a paciência
como um Bouda típico e usa a cabeça. Exceto quando se trata do seu
namorado.

— Derek Gaunt não é meu namorado.

— Ele sabe quem você é?

— Não, e eu pretendo manter assim. O que aconteceu entre ele e


Ascanio?

— Isso foi pouco antes de Derek ir embora, cerca de seis anos


atrás. Ascanio precisava se estabelecer no Clã Bouda, para que
pudesse reivindicar a posição de beta. Ele tentou armar um esquema
na cidade. Não era exatamente ilegal, mas era quase. —Nick levantou
a mão e a moveu de um lado para o outro. — Eu não sei todos os
detalhes, mas Derek se envolveu nisso e disse a Ascanio para parar.

Isso se encaixava no padrão. Desde que eu os conhecia, Ascanio


tinha tentado provar que era incrível, e Derek tinha mostrado a ele o
erro de seus caminhos. Quando éramos crianças, Ascanio era mais
jovem e tinha menos treinamento. O próprio clã de Ascanio o deu a
Kate na esperança de que Kate pudesse o manter vivo, enquanto
Derek tinha Curran, que o tratava como um irmão mais novo, algo
que Ascanio invejava. Eles nunca foram amigos.
487

— As coisas não correram bem? —Imaginei.

— Derek deu uma surra em Ascanio na frente da equipe Bouda


dele. A equipe decidiu intervir e Derek os venceu até a submissão.
Houve testemunhas. As pessoas viram os Boudas e Ascanio se
encolhendo.

E agora tudo fazia sentido. Ascanio teve seu traseiro espancando


em público. Derek envergonhou Ascanio e então saiu antes que ele
pudesse ter uma revanche. Não importava o que Ascanio fizesse, sua
equipe sempre se perguntaria se Derek era o melhor metamorfo.

Ele tinha que lutar com Derek para manter sua autoridade.

— Então Ascanio tem o Clã Bouda, o Clã Chacal e o Clã Ágil, —


pensei em voz alta. — O Clã Felino e o Clã Heavy estão em oposição.
O Clã Rato está sentado em cima do muro. Ascanio precisa do apoio
do Clã Lobo. Os lobos têm o clã mais numeroso. Todos eles são
lutadores fortes e trabalham bem juntos. Se Ascanio tiver os lobos do
lado dele, ele pode inclinar a balança a seu favor.

— Isso mesmo, —disse Nick.

— O que Desandra pensa sobre Ascanio?

— Ele a irrita. —Nick sorriu. — Desandra é uma alfa antes de


tudo. Para ela baixar a cabeça para alguém, esse alguém tem que ser
488

mais forte, mais inteligente e mais habilidoso. Alguém que a faria se


sentir segura. Ascanio não é confiável. Aos olhos dela, o próprio fato
dele estar recorrendo ao dinheiro em vez de fazer alianças ou apenas
desafiar Jim o torna inadequado.

— É por isso que ele está atrás do assassino do pastor Haywood.


Amarrar os filhos de Desandra a esse assassinato daria vantagem a
ele.

Os músculos da mandíbula de Nick se tencionaram. — Isso é o


que ele pensa.

Eu realmente queria perguntar o que havia de errado com Desimir


para que Nick suspeitasse que ele estava voando por aí e matando
pessoas, mas Nick não me diria nem em um milhão de anos.

— Não foi Desimir, —eu disse a ele. — Tenho certeza absoluta.


As trilhas de magia não mentem. Seu enteado não está envolvido
nisso.

Parte da tensão saiu dos ombros de Nick. Apesar de tudo, ele


ainda estava preocupado.

Nós olhamos um para o outro.

— Você quase me matou.


489

— Eu não sabia quem você era.

— Você inventou essa enorme teoria maluca e quase começou


uma guerra. Achei que tinha mudado, tio. Você parecia tão são até
esta manhã, mas está pior agora do que quando parti há oito anos.

Um sorriso lento e torto apareceu em seus lábios. — A insanidade


funciona para mim.

Eventualmente, a Ordem e o Bando entrariam em conflito. Era


inevitável. Eu não sabia o que ele faria quando isso acontecesse, e
tinha a sensação de que ele também não.

— Qual é o seu próximo passo? —Perguntou Nick.

— Vou deixar meu tio-avô na minha casa e depois irei atrás de


Mark Rudolph.

— Use o distintivo, —ele me disse.

— Estou planejando isso.

— Eu quero atualizações. Todos os dias.

— Farei o meu melhor.

— Não morra.

— Sim, tio.
490

Ele acenou com a mão. A magia brilhando nas tábuas do assoalho


morreu. Eu estava livre para ir.

Estava quase na porta quando ele perguntou: — O velho no


escritório de Stella, você disse que ele era o ministro de alto escalão.

— Sim.

— Ministro de quê?

— Segurança Interna.

— Ele é um contraespião ?

— Ele é o assassino real. O melhor do Antigo Reino.

Nick olhou para mim.

— Como eu disse, Shinar tinha seus problemas. —Eu sorri e


escapei.

Quando entrei pela porta do escritório de Stella, ela estava ao


telefone. Tinha uma expressão neutra no rosto. Namtur a observava
em silêncio.

Stella me viu. — Ela acabou de chegar.

A contraespionagem ou contrainteligência é uma tarefa que procura identificar e neutralizar ações de espionagem que vão de
encontro aos interesses do país, de empresas ou mesmo do cidadão, e avaliar as ameaças cibernéticas aos interesses nacionais.
491

Stella estendeu o telefone para mim. Eu peguei. Milagrosamente,


a conexão se manteve.

— Cavaleira Ryder? —Bispa Chao disse ao telefone.

— Sim?

— Dougie teve um derrame. Eu sinto muito.

O frio tomou conta de mim. O mundo deslizou para o lado. A


lembrança de Dougie no chão, seu pequeno corpo machucado
manchado de sangue. ‘Não deixe que eles me machuquem mais ...’ As
palavras sussurradas do menino se misturaram com as palavras de
Kate anos atrás: ‘Quero morrer em casa ...’

— Achei que ele estava melhorando, —perguntei no


automático.

— Nós também. Os médicos estão trabalhando nele agora. Informarei


se houver alguma mudança.

— Obrigada por tudo que tem feito, —eu disse.

— Vamos orar por ele, —disse ela.

Passei o telefone para Stella. Ela o desligou com cuidado e olhou


para mim.
492

— Você deveria se sentar, —Stella disse.

— Tenho coisas para fazer. —Minha voz soou leve, quase


despreocupada.

— O que quer que esteja pensando, não é bom, —disse ela. —


Acho que você deveria se sentar, respirar e reavaliar.

Não precisava reavaliar nada. Eu tinha absolutamente certeza


sobre o que precisava fazer. — Obrigada por seu conselho, Cavaleira
Davis. Nós estamos indo agora.

Saí do escritório com Namtur ao meu lado. O rapaz do estábulo


trazia Tulipa e Leide em nossa direção.

— Quem é? —Namtur perguntou.

— Uma criança de rua.

— Sempre haverá crianças de rua, —disse ele gentilmente. — Eles


sempre vão se machucar. Alguns morrerão muito cedo. Você e eu
sabemos disso melhor do que ninguém.

— Este é diferente.

— Por que diferente?

— Porque eu o salvei. Ele tem que sobreviver.


493

Peguei as rédeas das mãos do funcionário da Ordem e saltei para


a sela de Tulipa. Ela percebeu meu humor. Suas orelhas caíram para
trás.

Namtur montou e descemos a rua.

— Você cheira a assassinato, —disse o velho assassino. — Está


nos seus olhos.

— Vou levá-lo para minha casa agora, tio-avô. Tenho algo que
devo fazer esta manhã. Por favor, espere por mim em minha casa.

Ele curvou-se ligeiramente para mim. — Sim, Sharratum.

mordeu o palito na boca. Era


um homem de meia-idade, mas ainda forte e em forma, ele não
parecia um segurança particular típico. Guardas particulares caros se
esforçam para parecer bem-sucedidos. Este homem parecia ter
494

acabado de sair de um bar violento—cabelo comprido e sujo, preso


em um rabo de cavalo, jeans velhos, camisa preta manchada de suor
e uma barba desleixada que teve um caso de uma noite com uma
navalha uma semana atrás e não gostou.

Mark Rudolph não morava apenas no Monte Paran, ele morava


no Enclave, uma área a oeste, onde casas individuais ficavam em lotes
de quarenta mil metros quadrados, cada uma com sua própria cerca e
portão. Meu distintivo me permitiu entrar em Northside, mas agora
eu estava parada no portão privado de Rudolph tentando lidar com o
seu monte de músculos contratado.

O senhor Rabo-de-cavalo tinha enviado um guarda mais jovem


‘até a casa’ para descobrir se eles deveriam me deixar entrar. Isso foi
há quinze minutos. Provavelmente Rudolph estava fazendo uma
verificação de antecedentes.

Rabo-de-cavalo estava olhando para Tulipa um pouco demais.


Ela o encarava. A expressão dele me dizia que ele planejava ficar com
a minha égua caso eu não saísse viva da casa de Rudolph. Já o olhar
de Tulipa me dizia que ela achou a cara dele desagradável e se ele se
aproximasse o suficiente, ela o morderia de qualquer maneira.

Um homem baixo de cabelos escuros veio trotando pela calçada.


Com um tom amarelado na pele e bolsas pesadas sob os olhos
495

castanhos fundos, ele tinha a aparência afoita de um homem recém-


saído de uma bebedeira. — Deixe-a entrar.

Rabo-de-cavalo voltou para dentro da guarita. O metal retiniu, e


o pesado portão de ferro forjado deslizou cerca de um metro, largo o
suficiente para eu passar.

— Deixe o cavalo aqui, —Rabo-de-cavalo disse.

Eu desmontei. Ele estendeu a mão para as rédeas. Eu estalei meus


dedos. Tulipa disparou pela estrada.

Rabo-de-cavalo me deu uma olhada feia. — Você não deveria ter


feito isso. Não é um lugar seguro para cavalos aqui.

— Não vá atrás dela se quiser continuar respirando.

Rabo-de-cavalo acenou com os dedos para mim. — Ooo.


Assustador.

— O funeral é seu.

Subi a calçada em direção à casa.

Pensando bem, casa era a palavra errada. Era uma mansão, uma
daquelas pseudo-coloniais que se encontram espalhados em bairros
ricos de todo o sul. Dois andares de altura, tijolo vermelho, argamassa
496

branca, uma fileira de colunas na frente e duas fileiras de janelas


retangulares, protegidas por grades.

O homem de cabelos escuros e eu subimos a calçada circular,


depois as escadas brancas e chegamos à porta da frente.

Ele abriu a porta para mim e riu quando entrei. Lá dentro, no


meio de uma sala redonda, uma escada dupla se curvava para cima.
Um homem alto e loiro na casa dos trinta esperava por mim no início
das escadas. Ele tinha a constituição de um urso, com uma barba curta
e espessa, cabelos compridos, mas raspados nas laterais e na parte de
trás da cabeça. Ele havia trançado o cabelo em uma trança fina e
pendurada no ombro, presa com uma corda de couro. Uma cicatriz
irregular esculpia o lado esquerdo de seu rosto, chegando até a linha
do cabelo. Algo o havia arranhado. Um grande predador ou, mais
provavelmente, um metamorfo. Um gládio moderno pendurado em
uma bainha em seu cinto. Grande, forte, intimidante. Uma boa
escolha para um guarda-costas. Rudolph não contratava seus guardas.
Todos que eu tinha visto até agora eram provavelmente caçadores de
relíquias. Este não era exceção.

Ele me lançou um olhar lento e pesado e apontou para o suporte


de armas contra a parede. Peguei Dakkan e a coloquei na prateleira.
Minha faca a seguiu.
497

Estendi meus braços. Ele me apalpou. A mão era pesada, mas ele
foi rápido e meticuloso. Eu não fui a primeira pessoa que ele revistou.

— Por aqui.

Eu o segui para a esquerda, através de uma sala de estar, depois


um escritório. Entrar no escritório foi como passar por um portal para
o escritório de algum senhor britânico do século 19. Pesadas estantes
ornamentadas de madeira de nogueira escura alinhavam-se nas
paredes. A luz das janelas, envoltas por grossas cortinas verdes e
douradas, refletia no chão de tacos de madeira escura e brilhante e
desenhava retângulos luminosos na pele de um urso esticada como
um tapete sobre o chão. Uma enorme lareira de pedra erguia-se à
esquerda. Acima dela, uma cabeça de manticora encarava o mundo
com olhos de vidro, suas presas à mostra.

Uma mesa barroca de grandes dimensões ficava bem em frente à


porta. Atrás dele, um homem mais velho estava sentado em uma
cadeira. Em seus sessenta anos, ele deve ter sido musculoso quando
era mais jovem, mas agora sua pele estava flácida, dando-lhe uma
papada proeminente. Seu comprido cabelo cinza estava puxado para
trás em um rabo de cavalo, parecido com o do guarda no portão. O
penteado devia estar na moda entre os caçadores de relíquias e
combinava com sua camisa pólo branca e azul. Sua pele tinha a
498

tonalidade avermelhada de alguém naturalmente pálido, que passou


a vida toda queimando no sol. Suas feições grossas e a mandíbula
pesada combinavam-se em um rosto brutal, não estúpido, mas
mesquinho e mal-humorado.

Mark Rudolph. O homem que contratava bandidos violentos que


torturavam crianças.

Ele apontou para uma cadeira elaboradamente entalhada na


frente de sua mesa. — Sente-se. —Eu sentei.

O guarda-costas fechou as portas duplas e ficou na frente delas,


de frente para nós, de braços cruzados.

— O que você quer? —Rudolph perguntou.

— Alguém contratou o pastor Haywood para autenticar artefatos


cristãos. Agora o pastor está morto e você está procurando pelo cara
que o contratou. Por quê?

Rudolph se recostou, pegou uma garrafa no canto da escrivaninha


e derramou um pouco de licor âmbar em seu copo. O cheiro de álcool
pairou sobre a mesa.

Ele não me ofereceu. Uau, onde estava a famosa hospitalidade


sulista?
499

— Há dezoito anos, um idiota chamado Waylon Billiot me


convidou para fazer um trabalho com ele. Normalmente eu não
trabalho com aqueles Cajuns filhos da puta da Louisiana , mas ele
estava em Atlanta há anos e a perspectiva era boa, um templo
enterrado em Mykonos . É uma ilha grega.

Eu balancei a cabeça concordando. Que atencioso da parte dele para


me informar.

— Billiot me mostrou sua pesquisa sobre esse templo, ele


conhecia alguém de confiança que realmente tinha visto os marcos
com seus próprios olhos, então tudo que Billiot precisava era de
dinheiro extra e uma equipe. Arranjamos um navio e cruzamos o
Atlântico. É uma bela viagem, no Mediterrâneo. Com toda aquela
merda estranha que está se formando sob as ondas, você nunca sabe

Os cajun são os descendentes dos acadianos expulsos do Canadá e que se fixaram na Luisiana, um estado do sul dos Estados Unidos
da América. Esta população tem uma cultura própria, em especial uma variedade de música popular e de culinária que já ultrapassaram as
fronteiras daquele país.

A Luisiana é um estado do sudeste dos EUA, no Golfo do México. Sua história como um
caldeirão de culturas francesa, africana, americana e franco-canadense se reflete nas culturas crioula e cajun. A maior cidade, Nova Orleans,
é conhecida pelo Bairro Francês, da era colonial, pelo animado festival Mardi Gras, pela música jazz, pela Catedral de St. Louis, de estilo
renascentista, e pelas exposições do tempo da guerra no gigantesco National WWII Museum.

Mykonos é uma ilha do arquipélago Cíclades no Mar Ageu. Ela é popularmente conhecida
pela sua atmosfera festiva no verão. Praias como Paradise e Super Paradise têm bares tocando música no mais alto volume. Grandes
danceterias atraem DJs mundialmente conhecidos, e normalmente ficam abertas até bem tarde. Entre os pontos turísticos mais
emblemáticos está uma fila de moinhos do século 16, que fica em uma montanha acima da cidade de Mykonos.
500

se vai conseguir. Mas a perigosa aventura fazia parte do encanto da


viagem.

Rudolph tornou a encher o copo e deu outro gole. Parecia que


aquela cor avermelhada na pele não era só do sol. Ele falava
demoradamente. Arrastando as palavras. Que beleza. Eu não estava
com pressa.

— Chegamos à ilha. Levamos um mês para encontrar a caverna


certa e outras duas semanas para os mergulhadores a esvaziarem. Eles
tiraram um monte de merda estranha daquela caverna. Tínhamos
caixas de lixo. Mas, o achado mais valioso, o que realmente valeu a
pena, foi está caixa, mais ou menos desse tamanho, com uma cruz na
tampa. Nós a encontramos no último dia. —Rudolph manteve as
mãos afastadas vinte centímetros. — Totalmente branca. Não era de
plástico, nem de cerâmica, nem de metal. Lembrava um pouco
madeira, mas também não era. Eles a encontraram debaixo d'água e,
assim que a colocaram no convés, a maldita coisa secou. Derramamos
um pouco de água nela e água simplesmente rolou pela superfície do
material. Tentamos tirar uma amostra do material, mas não
conseguimos nem arranhar, nem mesmo usando uma broca. Quer
saber do que a caixa era feita?
501

— Não. —Só porque ele estava tentando ganhar tempo, não


significava que eu tinha que dar a ele.

— Nós nunca descobrimos. Mas durante a magia, a maldita coisa


irradiou poder. Nicolson, o nosso mago na época, tentou tocá-la, mas
aquela coisa o deixou totalmente louco. Nunca tinha visto nada
parecido.

Ele parou de falar. Eu não disse nada.

— O mercado de relíquias cristãs está aquecido. As pessoas


perceberam que a fé tem poder real e estão comprando artefatos a torto
e a direita. Há colecionadores, há investidores planejando colocar as
mãos nessas relíquias e revendê-las mais tarde, e há as denominações
religiosas, tentando comprar uma prova de seu deus.

— Não é um crente, não é?

— Não posso ir para o inferno se não acreditar nele. Além disso,


gosto de coisas que posso tocar, coisas que posso possuir. —Ele
ergueu o copo, deixando o sol brincar no cristal lapidado. — Este copo
é real, o uísque nele é real. Fé não comprou este copo, ou o uísque, ou
esta casa.
502

— Falou como um verdadeiro hedonista . Essa é uma palavra


grega.

A raiva brilhou em seus olhos de pálpebras pesadas. Rudolph não


gostava de ser ridicularizado. Nenhuma surpresa nisso.

— Nós dois sabíamos que a caixa branca era o dinheiro da


aposentadoria. Resolvemos voltar para casa. Paramos nos Açores .
Paramos novamente nas Bermudas , passei alguns dias
comemorando. Zarpamos do Porto. E a uma milha da merda do
Porto de Savannah o navio afundou. Sem tempestade. Sem ataque de
criaturas. Algo abriu um buraco no casco. Fui pegar a caixa. Não
estava lá.

Uma sombra cruzou o rosto dele. Suas sobrancelhas se juntaram,


seu lábio superior se ergueu em uma careta, suas mãos se fecharam

O hedonismo é uma teoria ou doutrina filosófico-moral que afirma que o prazer é o bem supremo da vida humana. Surgiu na Grécia, e
seu mais célebre representante foi Aristipo de Cirene.

Os Açores, um território autônomo de Portugal, são um arquipélago no meio do Oceano


Atlântico. As ilhas se caracterizam pelas paisagens impressionantes, pelas vilas de pescadores, pelos campos verdes e pelas sebes de
hortênsias azuis. São Miguel, a maior delas, tem caldeiras vulcânicas que viraram rios e a Fábrica de Chá Gorreana. Pico abriga a Montanha
do Pico, com 2.351 metros de altitude, e vinhedos protegidos por rochas.

Grande Bermuda, por vezes apenas Bermudas é a principal ilha do arquipélago conhecida como
Bermudas, localizada no Atlântico Norte Ocidental. No centro da ilha encontra-se a cidade de Hamilton, capital das Bermudas, o que a torna
a mais importante de todo o grupo.
Uma milha náutica equivale a um quilômetro e oitocentos metros. Deixamos a unidade em milhas náuticas porque é a unidade usada
nas viagens náuticas.
503

em punhos e, um instante depois, tudo se foi e ele voltou a beber


uísque.

O sumiço da caixa ainda o consumia depois de anos.

— A carga afundou com o barco. Passamos um mês vasculhando


o fundo do mar. Encontramos e puxamos de volta toda a carga, exceto
a caixa.

— Então você foi enganado pelo Cajun. Teve pelo menos algum
lucro?

Ele me olhou como se eu fosse uma idiota. — Claro. E Billiot me


deu dois terços de seus ganhos para compensar meu barco. Mas não
se tratava de dinheiro. Era uma questão de respeito. Ninguém fode
assim comigo. Ninguém.

— Ninguém exceto Waylon Billiot.

Seus olhos se estreitaram. — Você tem uma língua que não cabe
em sua boca.

Você não tem ideia. — Ele nunca admitiu ter roubado o artefato,
não foi?

— Não. Ele foi muito inteligente sobre isso. Nunca ouvi um pio
sobre a caixa ou ele tentando vendê-la. Billiot morreu cerca de quatro
504

anos atrás. Abri uma boa garrafa quando soube. Por seis anos, seu
filho de nariz escorrido manteve-se discreto. Mas veja bem, o filho é
como o pai. Billiot tinha faro para magia, e Júnior também. Ele estava
cavando na América do Sul . Mas algo aconteceu na última viagem.
O que se diz por aí é que ele está quase falido, por isso está procurando
um comprador para a caixa. Ele foi atrás do pastor para autenticar o
artefato, e depois procurou um historiador para estabelecer onde e
quando a caixa apareceu ao longo da história.

— Como você sabe?

— Fontes de Billiot nos disseram na época que havia uma


maldição ligada ao templo. Se alguém se atrever a mexer na caixa, um
monstro virá e comerá o coração do infeliz. Agora temos um pastor
morto e ... —ele bateu no jornal em sua mesa, — ... uma professora
morta que era conhecida por rastrear artefatos cristãos pelo preço
certo. E temos você no meu escritório.

Rudolph sorriu, mostrando os dentes amarelados. Era como olhar


para a boca de um tubarão. Ele estava me contando tudo isso porque

A América do Sul é um continente que compreende a porção meridional da


América. Também é considerada um subcontinente do continente americano. A sua extensão é de 17 819 100 km², abrangendo 12% da
superfície terrestre e 6% da população mundial.
505

planejava não me deixar ir embora. Ao menos não enquanto eu ainda


respirasse.

As portas atrás de nós se abriram. Dois homens entraram, o Cara-


de-ressaca que desceu para me levar até a casa e um homem negro alto
na casa dos vinte anos com o nariz deformado e as orelhas mutiladas
de lutador de rua. Entre eles, arrastavam um corpo inerte. Atrás deles,
um terceiro homem entrou, pele muito clara, cabelos ruivos,
carregando um facão. O aspirante a Viking se moveu para a minha
direita e se posicionou lá.

Hora do show.

Eles jogaram o corpo no chão. Uma menina, quinze, talvez


dezesseis anos, pele bronzeada, cabelo escuro, shorts jeans e um top.
Respirava em suspiros roucos, como se não pudesse puxar ar
suficiente para seus pulmões.

O lutador a agarrou pelos cabelos e inclinou a cabeça para trás.


Ela teve um espasmo. Uma tosse estrangulada saiu dela e um fio cinza
escuro deslizou de sua boca. Uma metamorfa com o pulmão cheio de
pó de prata. Eles devem ter jogado prata em pó nela e ela respirou. A
prata matava Lyc-V, tornando o sangue cinza.
506

A moça tinha que ser uma das Boudas de Raphael. Ela me seguiu
e agora estava meio morta. Sem atenção médica de um Médico mago
do Bando, ela não duraria muito. Eu planejava matar Rudolph bem
devagar, mas minha vingança não importava mais.

Rudolph tinha uma expressão feia no rosto. Seu idiota de merda.


Você quer matar outra criança? Uma não foi o suficiente para você?

— Eu fui ao funeral de Billiot, —disse Rudolph. — Não te contei


essa parte.

No momento em que me levantasse da cadeira, eles cortariam a


garganta da garota. Puxei minha magia para mim. Isso exigiria um
direcionamento específico e eu precisava me concentrar.

— Sua viúva e seu filho estavam ao lado do caixão dele, ambos


vestidos muito bem. Cheguei bem perto, olhei diretamente nos olhos
de Junior e disse: ‘Seu pai me deve uma caixa. Mas não se preocupe. Eu
sempre pego o que é meu.’

Minha magia se espalhou, cobrindo os três caçadores de relíquias


atrás de mim e a metamorfa ofegante no chão. Eu a excluir, me
concentrando nos três humanos em pé, forçando suas trilhas de magia
a brilhar mais forte em minha mente.
507

— Homem corajoso, —eu disse. — Ameaçar uma viúva e um


órfão em um funeral.

A raiva explodiu nos olhos de Rudolph novamente, e desta vez


permaneceu lá. — Estou neste negócio há mais tempo do que você.
Junior desapareceu. Três semanas atrás, ele estava correndo pela
cidade procurando levantar dinheiro, então de repente sumiu da face
da Terra. Meus rapazes podem encontrar uma virgem em um bordel,
mas não conseguem encontrar Júnior ou sua família. Isso me diz que
ele está prestes a colocar essa caixa no mercado.

A metamorfa ofegou atrás de mim.

— Em uma ou duas semanas, essa caixa estará bem naquela


prateleira. Onde pertence. —Rudolph apontou para a prateleira atrás
dele. — Eventualmente, Junior vai rastejar para fora de qualquer
buraco sob o qual está se escondendo e eu o enviarei em uma curta
viagem para dizer oi para seu papai. Talvez eu mantenha um pedaço
dele na mesma prateleira.

— Você é um verdadeiro cavalheiro.

— Você ainda não entendeu? Nada nem ninguém se interpõe


entre mim e o que é meu ...
508

A silhuetas dos três caçadores de relíquias congelaram claramente


definidas, enquanto a silhueta da garota desbotou para uma sombra
transparente. Alvos capturados.

— ... nem Billiot, nem seu filho idiota, nem uma vadia loira com
um distintivo.

— Solte a metamorfa e saia correndo daqui, e você viverá, —eu


disse. — Se ficar, você morrerá.

— Vadia idiota. —Rudolph acenou com a cabeça para seus


capangas. — Mate a metamorfa primeiro.

O ruivo ergueu o facão.

— Arrat dar non karsaran. —As Palavras de Poder explodiram de


mim como uma bala de canhão mágica. Eu estava com tanta raiva, a
dor foi uma mera picada. Aqueles atrás de mim, congelem.

Um estalo úmido nauseante anunciou o rompimento de vários


ossos. Três pessoas uivaram em agonia.

O Viking desembainhou seu gládio e se lançou contra mim. Eu


me levantei, inclinei-me para fora do caminho, agarrei seu pulso e
torci com força. Seus dedos se abriram. Peguei a espada curta e cortei
a garganta dele com ela. Ele tropeçou para trás, com as mãos no
pescoço, sangue escorrendo entre os dedos.
509

No limite da minha visão vi Rudolph apontar uma besta para


mim.

— Artum. —Escudo.

A flecha cortou o ar com um som estridente e congelou a um


metro de mim, vibrando levemente enquanto tentava se enterrar na
parede invisível de magia. A dor pelo uso da Palavra de Poder atingiu
o feixe de nervos em meu estômago e desapareceu.

Rudolph se apressou para recarregar a besta.

Eu arranquei a flecha do ar com minha mão esquerda e pulei em


sua mesa.

Rudolph balançou a besta como uma clava.

Eu o chutei no rosto. Sua cabeça estalou para trás. A besta caiu


no chão. A cadeira evitou que Rudolph caísse e ele se endireitou. O
sangue jorrava de seu nariz quebrado.

Eu escalei a mesa, coloquei o gládio em cima dela e brinquei com


a flecha da besta.

— Reggie! Hunter! —Rudolph gritou.

— Reggie e Hunter estão indispostos, —eu disse a ele.


510

— Sua vadia ...

Eu bati um soco rápido no nariz quebrado dele. Ele caiu para trás
novamente, ofegando.

Os uivos de dor atrás de mim eram muito altos e meu tempo era
curto.

Levantei minha voz. — Calem a boca, e posso esquecer que vocês


estão aí.

Os gemidos morreram.

Mantive meu olhar em Rudolph. — Como você está, Bouda?

— Vou ... sobreviver. —Ela parecia que sua garganta estava cheia
de areia e vidro quebrado. Eu precisava encerrar isso.

Rudolph conseguiu se sentar novamente. — Que porra você quer?

— Quem Billiot contrataria como corretor?

— Como diabos eu saberia?

— Quer um pouco mais de dor? —Eu perguntei.

— Foda-se.
511

Cravei a flecha no olho dele. Com cuidado é possível esfaquear


um humano no olho sem ferir o cérebro. E eu fui muito cuidadosa.

Rudolph gritou e tapou o olho com a mão.

— Você está a um ‘foda-se’ de ficar cego. Billiot não era estúpido.


Ele devia ter um plano. Ele contrataria um corretor que você não
poderia tocar. Quem seria?

— Certo, —ele engasgou. — Há uma mulher. Eu não sei o nome


dela. Ela é muito exigente. Não vende de tudo, apenas merda cara.

— Como faço para encontrá-la?

— Rua 15, bem na beira da Unicorn Lane. Tem uma loja de


Pierogi lá.

Sim, e o Pierogi de cogumelo era maravilhoso. Mundo pequeno.

— Você deixa seu número com o dono da barraca. Se a corretora


estiver interessada, ela ligará para você.

Ele estava deslizando sua cadeira para a esquerda, muito


lentamente. A única coisa ao alcance era a estante cheia de seus
troféus.

— E só isso?
512

— E só isso. A dona da barraca não sabe de nada. Ela apenas


mantém o número em uma caixinha ao lado e, eventualmente, a
caixinha desaparece.

Acionei minha visão sensitiva e olhei para a estante de livros.


Sucata inerte, mais sucata. Na quarta prateleira, uma pequena Pedra-
de-serpente , mais ou menos do tamanho do meu punho com um
buraco de cinco centímetros em seu centro, emitia uma densa trilha
amarela. Magia animal. Entendi.

Rudolph continuou falando e deslizando. — Eu tentei encontrar


a corretora antes, quando ela colocou dificuldades para negociar um
dos meus produtos. Eu a segui e ela simplesmente desapareceu. Um
segundo estava lá, no outro desapareceu. Ninguém consegue
encontrá-la. Fiquei de olho no dono da loja, mas não descobrir nada.

Rudolph estava quase perto o suficiente.

— Ela não gostou de ter sido perseguida. Desde então se recusa a


negociar qualquer uma das minhas merdas.

Uma pedra de serpente é um tipo de rocha, geralmente vítrea, com um furo natural. Tais pedras foram
descobertas por arqueólogos, tanto a grã-Bretanha quanto no Egito. Comumente são encontrados no Norte da Alemanha, na costa do Norte
e do Mar Báltico.
513

Rudolph se lançou para a Pedra-de-serpente. Larguei a flecha da


besta, agarrei o gládio e o lancei em seu lado direito, assim que ele se
virou, estendendo a mão para a pedra. A lâmina deslizou entre a
terceira e a quarta costela e atingiu o fígado.

Rudolph desabou em sua cadeira. Sangue escuro encharcou seu


lado. Ele soltou um longo suspiro rouco.

— Acabou, esse é seu fim, —eu disse a ele calmamente. — Uma


gentileza que você não merece. Eu vim aqui para matá-lo e planejei
fazer isso bem devagar, mas você trouxe a metamorfa, eu preciso
ajudá-la, então agora tem que ser rápido.

— Por que está fazendo isso? Por que eu?

— Você contratou Jasper.

— E daí?

— Ele estava procurando pela criança que testemunhou o pastor


Haywood saindo com o pessoal de Billiot e não conseguiu encontrá-
la. Em vez disso, encontrou um menino chamado Dougie. Ele o
espancou. Amarrou o garoto em uma corrente. E o arrastou pela
cidade. Hoje Dougie teve um derrame. Os Médicos Magos estão
trabalhando nele agora.

— Que garoto é esse? Ele é seu irmão? É por isso ...?


514

— Só um menino de rua. Eu não o conhecia bem.

— Por um menino de rua? Tudo isso por um menino de rua?

Eu deslizei para fora da mesa e inclinei-me para frente, para que


meus olhos estivessem fixos nos dele. — Ele é uma criança
abandonada, sem família. Faminto e sozinho. Tinha tão pouco, e você
tirou esse pouco dele. Agora eu tirei tudo de você.

— Eu valho mais ...

Eu me virei, tirei a Pedra-de-serpente da prateleira e coloquei no


bolso.

— Você me ouviu? —Sua voz falhou, fraca, deslizando para um


sussurro. — Eu valho mais ...

Caminhei até a metamorfa. Ela estava deitada no chão de bruços.


Eu a virei. Uma mancha cinza subia por seu pescoço. Ela tinha
minutos de vida. Porra.

— Por que não me disse? —Eu perguntei.

— Não importava, —ela respirou. — Eu já estava condenada.

Droga.
515

Eu a joguei nas minhas costas e corri para a porta da frente,


agarrando Dakkan no caminho. Ela tremia como uma folha. Lyc-V
gerava muito calor. Seu corpo deveria estar queimando, mas estava
frio e úmido.

O vírus estava perdendo a batalha.

— Onde fica a Casa segura do clã mais próxima? Ainda é na


Avenida Durham?

— Muito longe. —Ela agarrou meu braço com a mão. Não havia
força em seus dedos. — Apenas me tire daqui. Não quero morrer nesta
merda.

Cheguei à porta da frente e quase colidi com Derek. Ele viu a


metamorfa em meus ombros.

— Ponha ela no chão.

Havia uma autoridade inconfundível em sua voz. Larguei minha


lança e joguei a garota no chão.

Derek se ajoelhou ao lado dela e olhou em seus olhos. — Olhe


para mim.

Ela fez. Seus tremores pararam. De repente, ela estava


completamente focada nele.
516

Derek puxou uma faca. — Vou inundar seus pulmões com


sangue. Vai misturar com o pó lá dentro. Você precisará empurrar a
prata para fora.

Todos os metamorfos do Bando passavam por um treinamento de


extração de prata. Os músculos deles se tencionavam e era necessário
um grande esforço de vontade para forçar a prata sair de seus corpos.
Mas esse treinamento foi projetado para balas e pontas de flecha de
prata, não para pó de prata.

— Vai doer, —Derek disse. — Vai ser difícil respirar. Ouça minha
voz. Olhe para mim. Não tenha medo.

— Não terei, —ela disse.

— Boa garota. —Ele rasgou a camisa dela ao meio e a esfaqueou


entre suas costelas, uma, duas, uma terceira vez. Oh deuses. A garota
estremeceu, mas seu olhar nunca deixou o rosto Derek. Cinco, seis.

— Você vai matá-la.

Ele me ignorou. — Empurre, —ele ordenou.

A garota se contraiu. Sangue negro escorria das feridas em seu


peito. As convulsões a agarraram.

— Segure-a, —ele me disse.


517

Eu prendi os ombros dela no chão.

— Empurre. —Sua voz ficou profunda, dirigente, como se tecida


de pura magia. Havia algo primal nisso, não primitivo, mas antigo.
Ele a laçou e a ancorou à vida. Derek ordenou que ela vivesse e ela
obedeceu.

— Empurre.

A garota sufocou. Sangue escuro jorrou dela.

— Bom, —ele disse a ela. — Empurre com força.

Mais sangue, espesso como alcatrão.

Os pés da garota tamborilavam no chão. Ela estremeceu e ficou


imóvel.

Nós a havíamos perdido. Nós a perdemos e ela morreu aqui


mesmo em meus braços. Parecia que eu tinha desabado de um
penhasco e estava caindo sem parar e não conseguia chegar o fundo.

Derek agarrou os lados da garota. Senti a magia se mover e


acionei a minha visão sensitiva. As mãos de Derek brilhavam com um
verde-menta.
518

— Você precisa respirar por ela, —ele me disse. — Inicie um


RCP .

Coloquei minhas mãos no peito ensanguentado da moça e


empurrei. Mais sangue jorrou, encharcando meus dedos. Contei até
trinta e respirei duas vezes lentamente em sua boca.

Ela não se mexeu. Nada. O verde-menta envolvia todo o corpo


dela agora.

Um, dois, três, quatro ... Trinta.

Mais duas respirações.

A garota estremeceu. O sangue jorrou de suas feridas no peito,


preto, depois cinza, depois vermelho. Ela respirou fundo e tossiu,
espalhando sangue cinza no meu rosto. A consciência voltou a seus
olhos. Ela viu Derek e sorriu. Sua voz era um sussurro suave. — Eu
consegui?

— Sim. —Derek a soltou.

— Ah, que bom. Estou tão feliz.

Seus olhos se fecharam. Merda.

A reanimação cardiopulmonar ou reanimação cardiorrespiratória é um conjunto de manobras destinadas a garantir a oxigenação dos
órgãos quando a circulação do sangue de uma pessoa para.
519

Eu a sacudi. Derek segurou meu pulso.

— Está tudo bem agora. Deixe-a dormir.

Ele a salvou. Ela ia morrer aqui mesmo, em minhas mãos, e ele a


salvou.

Sentei de bunda no chão e olhei para as minhas mãos, manchadas


com sangue escuro. Cheirava a ferrugem. À minha frente, Derek
limpou a faca nos farrapos da camisa da garota. Ele parecia abatido,
como se tivesse empacotado uma noite inteira difícil nos últimos cinco
minutos.

Metamorfos não faziam mágica. Eles eram mágicos. As poucas


exceções que conheci tinham habilidades mágicas por causa de sua
origem, como Dali Shrapshire, a companheiro do Senhor das Feras,
que era um tigre branco místico.

Apontei para a garota. — O que aconteceu aqui?

— Um caso agudo de envenenamento por pó de prata.

— Eu sei disso …

Ele encolheu os ombros, o rosto impassível. — Parabéns,


Senhorita Ryder. Ela estava morrendo, e você salvou a sua vida com
o seu maravilhoso RCP.
520

O que?

Derek se endireitou.

Pelo canto do olho, vi uma sombra se mover no corredor, uma


besta nas mãos. Eu tirei Dakkan do chão e a atirei. A lança disparou
e acertou a sombra no peito. A flecha da besta se desviou, afundando
na parede um metro à direita de Derek. Uma mulher. Sua besta caiu
no chão.

— Olhe para você. Dois de uma vez só. Salvando vidas a torto e
a direita. —Derek se virou e entrou na casa.

— Aonde você vai?

— Lavar minhas mãos. Elas estão coçando.

Trinta segundos depois, ele estava de volta, e dez segundos depois


eu estava no banheiro, ensaboando meus dedos com sabonete de
lavanda. Meu cérebro finalmente processou o que eu tinha visto e
decidiu que nada fazia sentido. Enxuguei minhas mãos em uma
toalha e voltei para o corredor.

Derek estava com a garota nos braços e esperava por mim na


porta. Saímos de casa. Ele caminhou pela calçada, carregando-a como
se ela pesasse menos que um travesseiro de penas. Os músculos de sua
mandíbula estavam travados. Derek estava puto.
521

— Você não esperou por mim, —disse ele, sua voz casual. — Nós
tínhamos um acordo.

— Dougie teve um derrame. Ele pode não sobreviver.

— Eu sinto muito.

Ele soou como se realmente sentisse. Descemos em silêncio.

Derek tinha magia. Era verde-menta.

— Vai ficar tudo bem com a moça aqui, —disse Derek.

Não, graças a mim.

Chegamos ao final da garagem. O portão estava aberto e o senhor


Rabo-de-cavalo estava esparramado no chão. Um buraco do tamanho
de um casco aberto em seu crânio e moscas negras rastejavam em seu
cabelo ensanguentado. Ao lado dele, Tulipa esperava com uma
expressão dócil, a pura a imagem da inocência equina.

Derek ergueu as sobrancelhas.

Tulipa nos viu e avançou.

— Nós dois sabemos que não foi RCP, —eu disse.

Ele me ignorou e colocou a garota na sela de Tulipa.


522

— Você arrancou algo útil de Rudolph? —Ele perguntou.

— Sim. Ele ...

A casa de Rudolph explodiu. Uma bola de fogo cresceu e rugiu


para cima, florescendo como uma nuvem de cogumelo.

O calor nos esmagou com um punho escaldante. Uma chuva de


destroços em chamas disparou no ar e choveu ao nosso redor.

Derek rosnou.

Eu puxei Dakkan para fora.

Zahar saltou da árvore para a direita e caiu em cima de Derek,


protegendo-o.

Um pedaço do telhado caiu na minha frente, enviando faíscas


pela calçada. Uma coluna de fogo disparou dele e se transformou em
um familiar fantasma maltrapilho. O Ma'avir abriu suas mãos, com
garras de fogo nas pontas.

O som de tambores cerimoniais ecoou em minha mente, mais


fraco e mais distante do que antes, quando o Sumo sacerdote veio até
mim no escritório da professora Walton. Agora, até o cheiro atraente
da fumaça do sacrifício era uma mera sugestão. Este era um
mensageiro, um sacerdote inferior.
523

— Nós sabemos onde você esteve. —Sua voz era como o


assobio de lenha molhada no fogo. — Nós sabemos para onde está
indo. Nada do que você faz é segredo para nós. Poderíamos ter
queimado você dentro daquela habitação, mas a poupamos
para lembrá-la de que ‘ele’ está esperando. Cesse suas
lamentáveis tentativas de prevenir o inevitável. Aceite seu
destino. Vá até ele agora e tudo será perdoado ...

Apunhalei Dakkan no peito dele. Ossos quebraram em um estalo


seco, como galhos sendo quebrados. O Ma'avir gritou e se debateu, o
fogo rugindo ao seu redor. Empurrei a lança mais fundo, cortando-o.

— Morra, verme.

Ele grunhiu, tentando fazer uma oração de súplica. Eu o levantei


em um arco sobre a minha cabeça, empalado na minha lança, e o
joguei no chão. Suas vestes rasgaram, chamas saindo em espiral,
revelando a casca queimada e ressecada que era seu corpo. Puxei
Dakkan para fora, recuei e cravei a ponta da lança no crânio do
sacerdote. Osso esmagou. Martelei seu rosto feio repetidamente,
transformando seu crânio em pó com a coronha da lança.

— Morra e diga ao seu deus que te enviei para a vida após a morte!
524

As chamas uivaram como uma criatura viva. O Ma’avir


estremeceu e explodiu.

A fuligem se espalhou pelo ar. Respirei fundo e olhei para cima.


Derek se levantou do chão. Ao lado dele, Zahar, ainda deitado, me
encarou com olhos grandes como pires.

À distância, do outro lado da estrada, Tulipa arrancou um pouco


da grama do chão e mastigou, despreocupada, enquanto a garota
Bouda jazia mole sobre a sela.

Os olhos de Derek ficaram dourados. — Há algo que você precisa


me dizer?

— Precisamos ir a barraca de Pierogi. Imediatamente.

Ele me olhou fixamente.

— Precisamos chegar lá antes que eles cheguem!

— Zahar, —disse Derek. — Leve a garota para a casa segura do


Bando. Há uma na Avenida Durham. Deixe-a lá. Se tentarem detê-lo,
use meu antigo nome. Chame todos. Onde fica essa barraca de
Pierogi?

— Na esquina da 15 com Peachtree, perto da minha casa.

— Leve-os para lá.


525

— Sim, Alfa. —Zahar saiu correndo, pegou a garota nos braços e


disparou rua acima.

Derek se virou para mim. — Suba em sua égua. Você vai me


explicar isso no caminho. Tudo isso.

Saltei das costas de Tulipa e corri para lá. Pedaços da cabine


ardiam, enviando fumaça gordurosa para o ar. Tentei espiar dentro da
estrutura destruída. Atrás de mim, Derek inalou.

Eu havia contado a ele o mínimo sobre Moloch. Mencionar Kate


me denunciaria, então expliquei que uma pessoa próxima a mim era
o alvo de Moloch, e que o deus e eu ‘tínhamos uma conta a acertar’.
Eu também disse a ele que Moloch queria o coração da criatura divina
para que ele pudesse ter uma visão certeira do futuro.
526

Eu não tinha certeza se Derek acreditou, mas por enquanto teria


que servir.

— Não sinto o cheiro de nenhum cadáver queimado, —disse


Derek. — Será que levaram o proprietário como refém?

— Não é o estilo deles. Eles devem ter percebido a ausência do


dono e queimado a barraca para ter certeza de que eu não o encontre
também.

Pensando bem, era um local estranho para a barraca. Muito perto


de Unicorn Lane. A área era pobre, o movimento de pedestres muito
fraco. Nunca tinha visto outros clientes lá. Parece que eu estava
mantendo o negócio sozinha.

Derek parou e inalou. Ele estava olhando para o cobertor


esfarrapado onde meu amigo, o mendigo, passava seus dias.

Derek balançou a cabeça e inalou novamente.

— O que foi?

— De jeito nenhum, porra.

— O que foi?

Por um segundo, sua expressão neutra caiu. — Sinto o cheiro de


um homem morto.
527

— Eu não vejo um cadáver ...

— Eu vi o cadáver. Oito anos atrás. Carreguei o maldito caixão


em seu funeral.

As peças soltas na minha mente se encaixaram: Uma corretora que


desaparece no ar e que ninguém consegue encontrar. Uma barraca de
Pierogi na orla da Unicorn Lane que não vende nada, mas coleta os
números de telefone para a corretora. O mendigo que observa.

Acionei minha visão sensitiva. As trilhas de magia floresceram na


minha frente. O cobertor imundo, onde o mendigo se sentava, se
transformou em uma mistura deslumbrante de azul claro e prata
salpicada de ouro.

Filho da puta.

— Você pode rastreá-lo?

Derek começou a avançar. — Ah, sim. E quando eu colocar


minhas mãos nele, ele vai desejar ter continuado morto.

Nós corremos pela Rotatória Peachtree, Tulipa alegremente


acompanhando o nosso ritmo.

— Será que outros metamorfos o conhecia?


528

— Todo mundo o conhecia, —Derek rosnou.

— Ascânio Ferara deve ter passado perto do cobertor dele quando


veio me ver.

— O cobertor está encharcado de mijo. Quando se chega perto,


tudo que se pode sentir é o cheiro de amônia e naftalina. A maioria
das pessoas vai sentir o cheiro e dar a ele todo o espaço de que precisa.

Contornamos um prédio desabado e saímos na minha rua. Minha


casa estava cem metros à frente.

— Ele foi para Unicorn Lane, —Derek rosnou.

Acionei novamente a minha visão. A trilha da magia do mendigo


era um mero fio, dissipando-se a cada segundo. Mais à frente da trilha,
Unicorn Lane era uma sopa psicodélica multicolorida de magia,
colidindo, misturando, fervendo.

Derek parou. Eu também parei.

À nossa frente, Ascanio saiu de trás da minha casa e deu-nos um


aceno amigável.

Ah, foda-se.

— Espere aqui, —disse Derek. — Eu cuido disso.


529

— É mesmo? —Perguntou Ascanio. — Tem certeza?

Ascanio caminhou em nossa direção, vagarosamente, um pé na


frente do outro. Quase se podia ver a hiena em seu movimento. Atrás
dele, os metamorfos saíram de seus esconderijos, de trás da minha
casa, do prédio abandonado do outro lado da rua à nossa direita, das
ruínas caídas à nossa esquerda. Nove Boudas no total, com Ascanio.

Merda.

— Senhor Gaunt e eu somos velhos amigos, —Ascanio ronronou.

— Você não tem amigos, Ascanio, —disse Derek. — Você tem


pessoas que são úteis para você e pessoas que não são.

— Aí. Você feriu meus sentimentos. —Uma luz rubi cobriu as


íris de Ascanio. — E eu estava tão ansioso por nosso reencontro.

Derek ergueu a mão e estalou os dedos. Cinco metamorfos se


materializaram dos edifícios à direita, três homens e duas mulheres.
Lobos, todos eles, exceto Zahar, que se empoleirou na pilha de
escombros bem atrás de nós. Nossos olhos se encontraram e ele piscou
para mim. Com Derek, seria seis contra nove de Ascanio.

— Você está em desvantagem, —disse Derek.

Ascanio riu. — Você não mudou.


530

Os dois grupos se espalharam atrás de seus líderes, cada


metamorfo avaliando seus oponentes e escolhendo alvos. Isso já não
seria mais os dois resolvendo uma rixa. Se eles lutassem, seria um
banho de sangue.

— Parem, vocês dois, —eu disse. — Isso não levará a nada. O que
esperam ganhar?

— Não se trata de vencer, —disse Ascanio. Seu rosto assumiu


uma expressão selvagem. Uma luz perturbada brilhou em seus olhos,
a loucura de Bouda se espalhando. — Você deveria ter ficado longe.

Derek parecia impassível, como se estivesse assistindo a uma


palestra chata e mal pudesse esperar que acabasse.

Sem vida inteligente em nenhum dos lados. Tentei novamente. —


Se lutarem o Bando entrará em guerra.

— Cherry, —disse Ascanio. — Afaste a Cavaleira e a mantenha


segura.

Uma Bouda maior à direita deu um passo em minha direção.

Certo. — Cherry, sou uma Cavaleira da Ordem. Coloque suas


mãos em mim e carregará pedras por semanas.
531

Cherry parou, insegura. O Bando era um grande adepto na


redenção por meio de trabalho duro.

Eu me virei para Ascanio. — Se você der uma ordem ilegal, eles


ainda serão punidos. Sua autoridade não os protegerá. É esse tipo de
beta que você é?

— Isso não é da sua conta, —disparou Ascanio. — Fique fora dos


negócios do Bando, humana.

A porta da frente da minha casa se abriu e Namtur saiu em toda


a sua glória de túnica e sandálias.

— O que está acontecendo aqui?

Atrás dele, Marten escapuliu para a varanda e me deu um


pequeno aceno.

Eu bati minha mão no rosto. Por que, destino? Por quê? O que eu fiz?

Os metamorfos congelaram, momentaneamente perplexos com o


aparecimento de um velho indignado no meio deles. Ascanio piscou.
Derek ergueu as sobrancelhas.

Namtur apontou para os dois Boudas parados muito pertos da


minha casa. — Vocês aí! Saiam de perto desta propriedade.

Um dos Boudas gargalhou.


532

— Tio-avô, —eu rosnei.

Ele apontou o dedo para mim. — Você! Se afaste. Isso é indigno!


Está abaixo de você brigar na rua.

Ascanio negou com a cabeça. — Alguém, pegue o vovô e o


coloque de volta em casa antes que ele se machuque.

Os olhos de Namtur se arregalaram.

— Uh oh, —disse Marten.

— Verme insolente, —sibilou o Assassino Real. — Vou esfolá-lo,


animal débil, e usar sua pele sarnenta para fazer sapatos.

Derek olhou para mim. — Você tem parentes interessantes.

Ascanio girou para Namtur. — Sarnento?

De todas as coisas que Namtur poderia ter dito para ofender ...

— Sim, comedor de carniça. Retire-se. É o que sua espécie faz de


melhor.

Ascanio suspirou e acenou com a mão. A Bouda à sua esquerda


se moveu em direção a Namtur.

Namtur sorriu. Não havia emoção nesse sorriso.


533

— Sem mortes! —Eu gritei. — Não ...

Namtur dobrou a perna direita e a ergueu, apoiando o tornozelo


na perna esquerda, os dedos dos pés flexionados. Seu braço esquerdo
subiu até o peito, dobrado no cotovelo. Seu cotovelo direito estava
apoiado no pulso esquerdo, o antebraço apontando para cima, a
palma da mão paralela ao solo, os dedos apontando para a Bouda.
Posição da Serpente.

Bem, poderia ter sido pior.

A Bouda cobriu os últimos dois metros e estendeu a mão para ele.

A magia saiu de Namtur em uma nuvem roxa, no centro da


nuvem uma serpente fantasma se espiralava. A nuvem carregando a
serpente se espalhou pela rua, como uma onda de choque, e
desapareceu. Um momento depois, correntes roxas translúcidas
prendiam cada metamorfo, segurando-os no lugar. O anel superior da
corrente prendia suas bocas, amordaçando-os.

Os metamorfos se esforçaram. Músculos protuberantes


tencionando, tentando romper a corrente. Os rostos ficaram

Posição da Serpente ou Estilo Serpente. É um estilo da arte do Kung fu


534

vermelhos. Ninguém se soltou. Os olhos de Ascanio queimavam com


fogo assassino. Se olhar matasse, Namtur teria dois buracos
fumegantes em sua cabeça.

— Ooh, —disse Marten. — Você pode aproveitar e roubar as


coisas deles.

Namtur sorriu para a criança. — Eu disse a você, não há ladrão


neste mundo igual a mim.

Minha vida era um circo. Um circo cheio de ladrões e metamorfos


estúpidos e crianças pequenas executando manobras evasivas.

— Quanto tempo vai durar? —Perguntou Marten.

Namtur encolheu os ombros. — Em minha época, o Povo Fur


era valente e poderoso. Grandes homens e feras terríveis, uma
maravilha de se ver e um desafio de se lutar. —Ele acenou com a
mão. — Esses ... blé.

Derek flexionou os ombros. As correntes se estilhaçaram e


derreteram no ar.

Uau. Ele nem se esforçou.

Os Fur são o maior grupo étnico da região de Darfur, no oeste do Sudão. Eles também são às vezes chamados pelos nomes Fora,
Fordunga, Furawi, Konjara ou Kungara. São um povo agrícola ativo e também podem pastorear gado. Algumas famílias Fur que acumularam
um rebanho de gado substancial desenvolveram um estilo de vida mais nômade, como o de seus vizinhos pastores, os árabes Baqqara.
535

Os olhos de Namtur se estreitaram. — Exceto aquele. Vá para


dentro, criança. —Ele puxou uma faca longa e curva de suas vestes.

Certo, já basta. As palavras na antiga língua vieram naturalmente,


como se eu tivesse nascido sabendo.

Ascanio estalou suas correntes com um grunhido gutural. Namtur


revirou os olhos, correu até a varanda, pegou Marten nos braços e
desapareceu dentro de casa. A porta se fechou com um baque.

As correntes desapareceram. Metamorfos tropeçaram e caíram,


repentinamente livres.

O rosto de Ascanio era de pura raiva. As coisas simplesmente não


estavam indo do jeito que ele queria. Ele começou a avançar. Eu me
coloquei entre ele e Derek.

— Não.

— Afaste-se. —A ameaça em sua voz disparou alarmes em mim.

— Ou o que?
536

— Ou eu vou movê-la daí. —Ascanio olhou ao Derek por cima


do ombro. — Escondido atrás de um humano?

Derek sorriu. — Idiota.

Um arrepio percorreu Ascanio. Ele estava a um fio de mudar de


forma.

— Bem, isso foi muito instrutivo, —disse uma voz familiar. —


Mas a festa acabou.

Eu virei minha cabeça. Robert Lonesco agachava-se no topo da


pilha de destroços que bloqueava a rua lateral. Esbelto, cabelos
escuros, olhos cor de chocolate e pele bronzeada, Robert era bonito.
Até ele mudar para sua forma de guerreiro, e então parecer seu pior
pesadelo.

Zahar ficou boquiaberto. Aparentemente, como todo mundo, ele


não tinha ouvido ou cheirado Robert, e tê-lo se materializado a seis
metros de distância provavelmente era extremamente perturbador. É
por isso que Robert era o alfa dos Ratos e o Chefe de Segurança do
Bando.

Marten e Namtur colocaram a cabeça para fora da porta.

Ascanio continuou caminhando em nossa direção. Atrás dele, os


Boudas começaram a avançar.
537

Robert balançou a cabeça.

Três dúzias de metamorfos se ergueram dos telhados próximos.

— Quando eu disse que a festa acabou, crianças, falei sério.

Ascanio parou. Seu povo também parou. Os lobos se


aproximaram de Derek.

— Tínhamos um acordo, —disse Ascanio a Robert.

— Nosso acordo dependia de você ser discreto. —Robert acenou


com a mão para indicar a cena. — Isso não é ser discreto. O venerável
cavalheiro estava correto. Isso é indigno.

— Estou cuidando disso. Meu pessoal vai limpar tudo, —disse


Ascanio.

— Não haverá necessidade. Acabou.

— Não.

— Beta Ferara. —A voz de Robert ficou gelada. — Você sabe


onde Abigail Lewis está?

Ascanio me olhou como se procurasse alguém. — Não. Não no


momento.
538

— Eu sei. Ela está sendo transportada da casa segura em Durham


para a Fortaleza. A garota inalou meio quilo de pó de prata. Ela
deveria estar morta.

O rosto de Ascanio empalideceu.

— Em vez disso, Abigail está em condição estável. Os médicos


foram capazes de acordá-la com uma injeção de adrenalina e ela ficou
consciente, por tempo suficiente, para dizer a todos na casa segura que
uma linda Cavaleira humana e um metamorfo lobo mágico, com
cicatrizes no rosto, salvaram sua vida. O homem que a levou até a
casa segura disse a eles que Derek Gaunt mandou-lhes dizer ‘olá’.
Doolittle está esperando por você na enfermaria da Fortaleza. Ele diz
que é um milagre e mal pode esperar para examinar Abigail.

Toda a luta saiu de Ascanio. Eles o convocaram para ir a


Fortaleza. O segredo estava exposto, e agora Robert faria as coisas de
acordo com as regras.

Robert encarou Derek. — Você tem algumas escolhas a fazer.


Está aqui como Gaunt ou como Argent? Pense bem antes de
responder.

Uma jogada brilhante. Robert tinha acabado de resolver o dilema


da identidade de Derek empurrando o fardo sobre os ombros de
539

Derek. A maioria do pessoal de Derek estava aqui com ele. Se ele


escolhesse se apresentar como Gaunt, Robert o deixaria ir embora. Se
ele escolhesse Argent, receberia um convite formal para a Fortaleza
que não poderia recusar. Já o pessoal de Derek teria que se apresentar
a Fortaleza de qualquer maneira. Ele tinha a imunidade que ganhou
quando seguiu Curran para fora do Bando. Seu pessoal não. Mas
Derek não os abandonaria.

Derek abriu a boca. — Saudações ao alfa do Clã Rato. Obrigado


por sua hospitalidade.

— Saudações ao beta do Ice Fury, —Robert respondeu.

Ascanio parecia que alguém o havia esbofeteado com um peixe.

— O Senhor das Feras está ansioso para encontrá-lo, —disse


Robert.

— Por que fazê-lo esperar mais? —Disse Derek.

Robert sorriu. — Excelente resposta. Você sempre foi bom em


usar a cabeça para pensar. —Ele olhou para Ascanio. — O Senhor
das Feras quer ver você também. Quando soubemos sobre o que
aconteceu com Abigail, o Senhor das Feras estava em uma reunião
com os seus alfas e a alfa do Clã Lobo.
540

Ah não. Nick contou a Desandra. Os dois sabiam sobre o incidente


no passado de Ascanio e Derek, deduziram que um confronto seria
inevitável, e então Desandra deve ter se posicionado na Fortaleza
esperando que Ascanio se ferrasse.

O rosto de Robert se suavizou. — Se eu fosse você, usaria o tempo


que vai levar até chegar lá para pensar nas respostas a algumas
perguntas importantes. Por exemplo, por que designou uma jovem
Bouda para seguir uma Cavaleira da Ordem sem autorização? Por que
se enfiou na investigação do assassinato do pastor Haywood? Por que
você falhou em relatar a presença de metamorfos estrangeiros no
território do Bando? E o mais importante, por que decidiu lutar com
o beta do maior bando de metamorfos do continente? Tenha em mente
que a ignorância não será uma defesa eficaz.

A expressão de Ascanio ficou em branco. A posição hierárquica


de Derek havia mudado a situação, e agora Ascanio recalculava
rapidamente suas chances. A julgar pela expressão em seu rosto, seu
cérebro devia estar movendo as possibilidades tão rápido, que eu meio
que esperei que fumaça saísse dos ouvidos dele.

Robert se virou para mim. — Nossas desculpas à Ordem por


qualquer inconveniente.

— Não há necessidade. Como você disse, acabou.


541

Robert assentiu e olhou para Ascanio e Derek. — Cavalheiros,


vamos?

— Espere por mim, —Derek murmurou sob sua respiração.

— Eu vou, —prometi. Eu não tive escolha.

Ele caminhou para se juntar a Robert. Ascanio fez o mesmo. Os


dois grupos formaram duas colunas atrás de seus líderes. Os ratos se
espalharam ao redor deles e eles foram embora. Em alguns segundos,
a rua ficou vazia.

Suspirei e entrei em casa.

aninhada no divã, abraçando um travesseiro. Eu a cobri


com um cobertor suave e, de onde eu estava na mesa, ela parecia um
pequeno caroço.

Servi mais vinho para Namtur. Ele deu um gole em uma xícara
pequena. O velho adorava vinho e, se tivesse chance, bebia como se
542

fosse água, mas hoje estava se controlando. O assassino estava


esperando uma luta.

Bebi meu chá. Vinho e eu não combinávamos. Beber me deixava


deprimida e me dava pesadelos.

Três horas se passaram desde o impasse dos metamorfos. Três


horas para os Ma'aviris fazerem o que quiserem.

Eu queria andar como um tigre enjaulado. Em vez disso, me


esforcei a ficar calma.

Sophia apareceu na minha porta minutos depois que os


metamorfos saíram. Ela se desculpou profusamente. Eu disse a ela que
cuidaria de Marten e não havia mais necessidade dela proteger a
menina. Não era estritamente verdade. A morte de Rudolph eliminou
a maior parte dos riscos para Marten, mas os Ma'aviris ainda
poderiam vir atrás dela para me pegar. No entanto, pensei em uma
solução mais permanente para a segurança de Marten.

Apesar de minhas melhores garantias de que eu não pediria


reembolso, Sophia parecia desanimada. Segundo ela, se algum dia eu
precisasse de alguma coisa em Atlanta, haveria uma metamorfa
magusto adolescente de prontidão. Pedi que ela ligasse para o hospital
metodista por mim porque não consegui um tom de discagem. Dougie
543

tinha sobrevivido. Ele ainda estava na UTI. Provavelmente viveria,


mas eles não podiam nos dizer quanto de sua mobilidade ou função
cerebral iria recuperar. Agradeci a Sophia e ela foi embora.

Depois arrumei minha bolsa com as armas e deixei tudo pronto


para sair no momento em que Derek aparecesse. Depois cozinhei uma
grande refeição, que Namtur e Marten devoraram. Então Namtur
contou a ela histórias de suas façanhas até que finalmente ela
adormeceu. Servi vinho e fiz chá.

Nenhuma palavra de Derek. Fiquei esperando.

Cada minuto que atrasávamos me consumia. Eu me senti como


uma mulher tentando correr com os pés amarrados.

— Criança esperta, —murmurou Namtur, olhando para Marten.


— Ela come quando há comida. Ela dorme quando está segura.

— Ela é uma sobrevivente. Eu paguei metamorfos poderosos e


habilidosos para ficar de olho nela, mas ela escapou deles.

Namtur sorriu, então sua expressão ficou séria. — Aquele


metamorfo que quebrou minhas correntes, qual é a sua conexão com
ele?

— Estamos trabalhando juntos.


544

Ele balançou sua cabeça. — Ah, a arrogância da juventude. Você


tenta desviar da pergunta e acha mesmo que eu não notaria. Fale-me
sobre este homem com cicatrizes.

— Ele é alguém que eu conhecia.

— Ah. —Namtur sorriu sem mostrar os dentes. — Uma pessoa da


sua infância.

— Tipo isso. O que achou dele?

— Eu conheci muitos guerreiros entre o Povo Fur. Uma das


estratégias deles é a intimidação. Eles rosnam e exibem sua força e
velocidade. Dessa forma, procuram evitar combates desnecessários.
Da mesma maneira que os animais fazem: aumentam de tamanho,
tornam-se mais assustadores, eriçam os pelos e mostram os dentes. —
Namtur deu um gole em seu vinho. — Este homem é diferente. Ele
poderia ter quebrado minhas correntes a qualquer momento, mas
esperou para ver o que eu faria. Ele pensa. Tem paciência. E isso o
torna perigoso. Se eu tivesse que matá-lo, a surpresa seria o melhor.

Nisso poderíamos concordar. Lutar contra Derek corpo-a-corpo


seria um desafio monumental.

O velho acenou com a cabeça. — Vocês eram amigos na sua vida


anterior?
545

— Sim.

— Vocês ainda são amigos?

— Não sei, —respondi honestamente. — Muitas coisas


mudaram.

— Isso é inevitável.

Namtur ficou em silêncio. Seus olhos nublados com antigas


memórias. Terminei minha xícara e ele ainda não falou.

— Por que você está aqui, tio-avô? —Perguntei gentilmente.

Ele olhou para longe. — Esta cidade é o lugar que ela escolheu
para morrer.

Quando Roland acordou na nova era, ele estava cheio de


esperança e possibilidades. Quando Erra acordou, ela despertou cheia
de desespero e dor. Algo que ela mais amava no mundo foi arrancado
dela. Então não via sentido em viver.

A essa altura, Roland suspeitava que sua filha estava em Atlanta,


e decidiu enviar Erra à cidade para capturar Kate. A avó reconheceu
Kate instantaneamente. As duas eram tão parecidas que ninguém
podia negar a semelhança.
546

Elas lutaram, e Erra deixou Kate matá-la. Ah, ela fez Kate se
esforçar muito para isso. Foi uma das lutas mais difíceis da vida de
Kate. Mas no final a avó se soltou e se deixou cair no esquecimento.
Exceto que em nossa família, nada era tão simples.

— Eu queria conhecer este lugar pessoalmente. E pensar que foi


aqui onde ela se afogou em desespero além de toda esperança ...

Namtur deixou cair e enxugou a umidade de seus olhos. — Eu a


conheço desde que ela tinha quinze anos. Erra era tão forte, tão cheia
de vida, uma joia cintilante impregnada de luz. Como conseguimos
deixá-la se tornar uma sombra apática de si mesma? Como podemos
ter falhado com ela tão completamente? Seu próprio irmã o...

Ele cerrou o punho, sua voz embargada.

— Seu próprio irmão. —A raiva borbulhou em sua voz. — Ele


deveria ter esperado pacientemente em seu lugar de descanso. Deveria
ter construído uma residência, deveria ter treinado servos para ela, e
quando ela acordasse, deveria ter gentilmente a conduzido por este
novo mundo. Em vez disso, enviou os servos dele para buscá-la como
se ela fosse uma mercadoria.

Por causa dele, Erra pensou que aquele precioso dom havia sido
perdido. Ele a deixou pensar isso. E depois ...
547

O rosto de Namtur ficou selvagem. Se Namtur colocasse as mãos


em Roland, meu avô morreria. Seus grandes poderes cósmicos não
importariam.

Estendi a mão e toquei sua mão com meus dedos para trazê-lo de
volta à realidade. — O que ele fez foi imperdoável. Eu entendo isso
melhor do que ninguém. Ouvi as explicações dele. Elas soaram vazias
porque eu vi o que ele fez com Hugh.

De todas as pessoas além de Kate e Erra, eu era a mais próxima


de meu tio. Ele me entendia de uma maneira que ninguém mais
poderia. Nós dois tínhamos encarado o inferno do vazio deixado para
trás quando o vínculo de sangue se quebrou. Nós dois superamos isso.
Ambos prometemos nunca mais sermos amarrados.

— Não foi só Nimrod. —O rosto de Namtur ficou sombrio. —


Todos nós a usamos. O Reino inteiro a abandonou quando ela se
tornou a Portadora da Peste. Ela se sacrificou por nós da pior maneira
possível. Todos nós permitimos. Eu permiti.

Eu ri.

Ele olhou para mim, assustado.


548

— Como você é desavergonhado. Minha avó é a Rainha de


Shinar. Ninguém tem que permitir que ela faça nada. Ela fez o que fez
porque julgou necessário.

— Houve momentos em que eu poderia tê-la puxado de volta. Em


vez disso, eu a incentivei. —Namtur balançou a cabeça. — Não vou
cometer o mesmo erro novamente. Eu envelheci, mas não morrerei
até ter certeza de que ela não sucumbirá à escuridão. Ela merece toda
a felicidade.

A morte de Erra deve tê-lo abalado profundamente. A emoção


crua em sua voz e o arrependimento evidente em seus olhos me
fizeram querer me afastar. Eu estava testemunhando sua dor. Parecia
intensamente privado e eu estava me intrometendo.

Eu tinha que tirá-lo disso. — Então, minha avó sabe que você a
ama?

Ele piscou, surpreso. — É claro que eu a amo. Todos nós a


amamos.

— Não estou falando sobre o amor de um amigo ou de um súdito


leal.
549

Namtur olhou para mim por um segundo, pegou um jornal da


mesa, o enrolou em um tubo e bateu na minha cabeça com ele. —
Criança má!

Vap!

— Indigna!

Vap!

— Como essas idéias entram em sua mente? Desde quando boca


tem que falar cada pensamento errante que passa pela sua cabeça?

Eu ri e desvie do próximo golpe de jornal. — Você está se


explicando demais, tio-avô.

— Sua avó é minha irmã jurada de sangue!

— Mas não irmã consanguínea.

Namtur acenou com o jornal. — Nem mais uma palavra!

Eu levantei minhas mãos. — Vou parar se você me fizer um favor.

— Como se atreve? Depois das asneiras que soltou? —Ele jogou


o jornal na mesa. — O que é?

— Quando voltar para o Novo Reino, quero que leve a criança


com você?
550

Namtur girou em sua cadeira e olhou para Marten.

— Ela não tem futuro aqui, —eu disse. — Vai morrer nas ruas se
a deixarmos aqui.

— Você pode parar de fingir que está dormindo, —Namtur gritou.

Marten abriu um olho.

— A princesa está me pedindo para levá-la comigo.

Marten abriu os dois olhos. — Ela é uma princesa de verdade?


Como nos contos de fadas?

— Sim, —Namtur disse com grande seriedade. — Se você aceitar,


vou levá-la comigo para o Reino dela. É uma terra de comida e
maravilhas. Eu vou te dar comida.

Bom.

— Vou te dar roupas e te ensinar a ler livros antigos.

Também é bom.

— Vou fazer de você minha aprendiz.

Bom … Espere, o quê?

— Umm ... Não foi isso que eu pedi, —eu disse.


551

Namtur me ignorou. — Você entende o que isso significa?

Marten se sentou. — Não haverá ladrão neste mundo igual a


mim?

— Tio-avô, vamos falar sobre seu ...

Os olhos de Namtur brilharam. — Sim. E muito mais. Não vai


ser fácil. Você vai chorar, vai falhar com frequência e vai querer
desistir. Seu corpo terá que suportar grandes adversidades para se
fortalecer, e sua mente fará o mesmo.

— Eu não vou falhar, —disse Marten. — E não vou chorar.

Namtur se levantou. — Venha aqui, criança.

Marten pulou do sofá e se aproximou.

— Você tem um nome? —Ele perguntou.

— Isso é uma ideia terrível, —eu disse.

— Deira. Ninguém me chama assim, no entanto.

— É um bom nome, —disse Namtur. — Ajoelhe-se.

Marten se ajoelhou. Namtur estendeu a mão e colocou a mão na


cabeça dela.
552

— Deira de Atlanta, você me aceita como seu mestre? —


Perguntou o Assassino Real.

— Pense bem, —avisei.

— Sim, —disse Deira. — Eu aceito.

A magia os cobriu, surgindo da mão de Namtur. Na minha


mente, eles brilhavam em azul intenso, Namtur mais escuro, mais
próximo do índigo, e Deira, um tom azul claro. Os dois azuis
colidiram, se misturaram e recuaram, vinculando o velho e a menina.

Bem, não foi do jeito que eu queria.

— Você pode se levantar agora.

— Obrigada mestre.

Deira se levantou.

— Por que fez isso?

Namtur me olhou. — Estou velho e cansado.

Certo, certo.

— Quem vai cuidar de você quando eu morrer?

— Ela é uma garotinha.


553

— Ela escolheu Marten como apelido em homenagem a um


pequeno assassino cruel. Ela não escolheu o apelido de um manso
coelho.

A magia pulsou através de mim. Alguém estava na minha porta.


Dissolvi a Proteção externa. Um momento depois, Derek entrou na
câmara interna. Finalmente.

Peguei Dakkan, minha bolsa, meu arco e aljava.

— Vou levantar o escudo Enki, —eu disse a Namtur. — Se


Ma’aviris aparecerem, usem o túnel. Tudo aqui pode ser substituído,
menos você e Deira.

— Se conseguirem passar, derrubarei este lugar em suas cabeças.


Será seu túmulo. Se isso acontecer, a criança e eu vamos esperar por
você onde sua avó deu a vida. Deixe o seu Reino orgulhoso.

— Eu vou, tio-avô.

— Vou mantê-la segura, velho, —disse Derek.

Namtur encarou Derek fixamente. Seu olhar frio e sombrio que


prometia morte. — Hum. Mantenha-se você seguro, Pastor dos Lobos.
E se o perigo for muito grande, esconda-se atrás dela. Dananu Edes-
Shinar não precisa de sua proteção insignificante.
554

Os olhos de Derek brilharam em ouro. Ele parecia querer dizer


algo. A última coisa que eu precisava agora era um confronto entre os
dois.

— Vamos. —Caminhei até a porta.

Derek me seguiu. Saímos para o corredor, cruzamos a casa e


saímos pela porta da frente.

Seis metamorfos esperavam na minha varanda, quatro homens e


duas mulheres. Zahar eu já conhecia. O resto eu tinha visto na rua
quando Derek e Ascanio quase tiveram seu confronto idiota, mas fora
isso, nenhum deles parecia familiar.

Eu me virei e me concentrei. A magia se libertou de mim,


pulsando através da parede da minha casa e faiscando nos tuppus ,
as tábuas de argila ancestrais com escritas cuneiformes que eu fixara
ao redor da câmara interna.

O escudo Enki surgiu com um estrondo audível e, por um


segundo, a cúpula translúcida ergueu-se sobre a casa, mas ficou

No Antigo Oriente Próximo, tabuletas de argila (Akkadian ṭuppu) eram usadas como meio de escrita,
especialmente para a escrita cuneiforme , durante a Idade do Bronze e até a Idade do Ferro
555

invisível quase instantaneamente, tornando-se uma barreira


impenetrável.

— Sistema de alarme legal, —disse Zahar. — Onde posso


comprar um?

Viramos na Avenida 17, indo direto para Unicorn Lane.

— O que aconteceu no encontro com o Senhor das Feras? —Eu


perguntei.

— O de sempre, —Derek disse.

Derek Gaunt, o tagarela dos tagarelas. — Poderia ser mais


específico?

— Temos três dias para concluir nossos negócios na cidade, —


disse Zahar. — Se excedermos nossas boas-vindas, haverá
consequências desagradáveis para todos.

Se sobrevivêssemos, Derek partiria em três dias.

— Não é muito tempo, —alguém disse atrás de mim.

— É o suficiente, —disse Derek.


556

Estávamos a trinta metros na Unicorn Lane quando Derek sentiu


o cheiro do mendigo e o poste mais próximo brotou dentes e garras e
tentou comer seu rosto.

e três metros de altura.


Ele oscilava, suas bordas eram irregulares e brilhavam suavemente,
escondido bem no fundo de uma garagem em ruínas. Dentro do portal
se estendia uma vasta planície, coberta de grama verde, e no meio
dela, a alguns quilômetros de distância, uma casa se erguia em uma
colina baixa.

Ao meu redor, os metamorfos formaram um círculo, todos ainda


em suas formas humanas. Levamos meia hora para chegar a este local,
e eles pagaram com sangue. Suas feridas na carne se fecharam, mas
um dos homens estava com o braço quebrado, e uma das mulheres,
uma ruiva alta, havia sido atingida no abdômen pela pinça gigante de
557

um inseto. Ela estava respirando em suspiros curtos e superficiais. Eu


tinha certeza de que seus intestinos estavam dilacerados.

— O que é isso? —A outra mulher perguntou. — É uma ilusão?


Não cheira a ilusão.

Cheirava a estepe, grama, vento e água corrente vindo de algum


riacho escondido.

— É a casa do homem que procuramos, —disse Derek. — É o


esconderijo dele. Ele sempre foi um covarde.

— Eu não entendo, —disse um metamorfo baixo. — Se


passarmos por isso, onde vamos parar? Esse portal vai nos levar para
algum lugar longe, mas ainda neste planeta, não é?

Eles olharam para mim. Aparentemente, fui designada a


especialista em ‘nos-diga-o-que-diabos-é-isso’.

— Não sei, —eu disse. — Pode ser. Também pode ser um mundo
paralelo natural, de magia profunda ou um Reino artificial, algo que
um ser poderoso fez para si mesmo.

— Ele não é tão poderoso, —disse Derek. — Provavelmente


encontrou este lugar e se escondeu aí.
558

— Ou, —eu disse a ele, — ele pode ter feito um acordo com quem
criou esse lugar e, no momento em que passarmos pelo portal, eles
vão despejar uma chuva de meteoros em nossas cabeças.

— Vamos entrar? —Zahar perguntou.

— Entrarei primeiro, —eu disse a eles. — Posso me proteger


melhor da magia. Direi se é seguro.

Eles iriam me seguir. Como a casa dentro do portal não estava


pegando fogo, conclui que os Ma'aviris não haviam encontrado ainda
este buraco escondido, mas Derek sabia que eles viriam. Se
encontramos, eles também encontrariam, e deixar os metamorfos na
entrada para enfrentar os sacerdotes de Moloch sozinhos seria
estúpido.

— Fila única, —Derek disse. — Assim que passarmos pelo portal,


talvez tenhamos que correr. Nia, como está o estômago?

— Poderia estar melhor, —a metamorfa ferida disse.

— Krish, —disse Derek para o homem ao lado dela, — se ela


diminuir a velocidade, pegue-a e carregue-a.

Krish acenou com a cabeça.


559

Os metamorfos formaram uma fila atrás de Derek, e eu lembrei


de uma cena de uma matilha de lobos caminhando um atrás do outro
pela floresta.

Acionei minha visão sensitiva. Uma Proteção cercava o portal,


uma coluna estreita de magia tensa. Nenhuma surpresa nisso.

Avancei para o portal. A pressão me apertou, perfurando meus


olhos com agulhas dolorosas.

A Proteção me esmagou, tentando quebrar minhas defesas. Eu


me concentrei, empurrando para fora. Usar uma Palavra de Poder iria
quebrá-la como um martelo acertando uma noz, mas eu não tinha
ideia de como a magia por trás do portal reagiria e minha magia mal
teve quatro horas para se recuperar.

— Você precisa de ajuda? —Perguntou Derek.

— Não.

A Proteção me mastigou. Finas faixas de luz verde se formaram


no ar vazio—a Proteção tentando me expulsar. Eu segurei meu
escudo mágico. As Proteções defensivas tinham sabores diferentes.
Algumas eram como paredes, que você tinha que quebrar com pura
força. Outras, como esta, foram projetadas para causar dor e
pressionar o intruso até que ele recuasse. Este tipo de barreira tinha
560

que ser consumida. A maioria das pessoas pensava que ninguém


poderia suportar a dor e a pressão causada por esse tipo de barreira. A
maioria das pessoas estava errada.

— O que estamos esperando? —Alguém perguntou atrás de mim.

— Quietos, —Derek ordenou.

A Proteção apertou, a pressão me oprimindo. Ela continuaria me


apertando até me quebrar ou esgotar sua magia. A dor seria
temporária. Passaria como a água de um rio em movimento.

As faixas verdes brilharam em branco. A barreira desmoronou ao


meu redor com um baque forte, sua magia consumida. A dor
desapareceu.

— Acabei de quebrar a Proteção dele. Se ele não sabia que


estávamos aqui antes, agora sabe.

Derek acenou com a cabeça.

Pulei pelo portal e caí na grama. As folhas suaves alcançavam um


pouco acima dos meus joelhos. O sol se derramava de um céu
incrivelmente alto. O ar carregava cheiros de ervas e grama. Uma
abelha passou voando por mim.
561

Esperei para ver se o chão sob meus pés se abriria e me engoliria


inteira. Nada se moveu. Dez segundos. Quinze. Tempo suficiente.

Corri em direção à casa. Atrás de mim, Derek saltou pela


abertura. Em algumas respirações, seus lobos me alcançaram, se
espalhando na minha frente. Nia me alcançou, seu rosto corado.

— Precisa que eu diminua a velocidade?

— Eu preciso que você acelere, —ela disse. — Nesse ritmo, estarei


velha quando chegarmos lá.

Acelerei o ritmo. Corremos pela planície sem obstáculos.

Estávamos a cento e cinquenta metros da casa quando minha


visão sensitiva captou outra barreira, uma cúpula translúcida de verde,
revestindo a estrutura e a colina em que ela se assentava. Densas
correntes de magia giravam em sua superfície como cores em uma
bolha de sabão. Esta não seria tão fácil de quebrar. Lidar com essa
barreira tão perto da casa também me tornaria um excelente alvo.

Sem parar de correr, puxei Dakkan para fora e cortei meu


antebraço esquerdo. Algumas gotas de sangue cobriram a ponta da
lança. Os Shinar não eram a única família que usavam sangue como
catalisador, então eu não estaria me entregando.
562

À minha frente, Derek parou. A Proteção deveria ser invisível


para ele, então ele deve ter sentido a magia dela. Os dois metamorfos
à sua esquerda e direita não pararam e correram de cabeça para a
Proteção. Luz verde pulsou com o impacto dos metamorfos. Passei
correndo por Derek sem alterar meu ritmo e apunhalei Dakkan para
dentro da Proteção. Meu sangue cortou a magia como uma faca na
manteiga quente. A barreira foi destruída. Eu continuei correndo.

Cem metros até a casa.

A grama na minha frente ondulou.

Derek correu. Um segundo ele estava atrás de mim, no próximo


ele me pegou no colo e avançou.

— O que ...

Derek saltou. Abaixo de nós, uma serpente verde-esmeralda do


tamanho de uma mangueira de incêndio, se ergueu na grama.

— Percebi um padrão aqui, —disse a ele.

— Hum-rum. Ele gosta de verde.

Atrás de nós, lobos uivavam. Derek correu tão rápido que parecia
que estávamos voando. Eu queria sair de seus braços. Sair.

— Devemos ajudar?
563

— Não. Eles estão se divertindo.

A definição de diversão deles precisava melhorar.

Ele saltou para a esquerda, para a direita, disparou colina acima


em uma corrida vertiginosa e me colocou no chão na frente das
enormes portas duplas. Um corredor de pedra ergueu-se à nossa
frente, suas paredes cinzentas grossas e altas.

Derek bateu com o punho na madeira.

Abaixo, os lobos de Derek, todos em formas de guerreiro,


atacaram as serpentes. Enquanto eu observava, um enorme
metamorfo de pêlos avermelhados puxou o corpo da serpente verde,
a levantou no ar e a partiu em dois.

— Eu sei que você está aí, —Derek berrou, — Abra essas malditas
portas ou vou quebrá-las.

As portas se abriram com um leve rangido. Um homem deu um


passo à frente. Ele era perfeitamente comum, altura média,
compleição média, nem pálido nem bronzeado, com feições
indefinidas e cabeça calva. Apenas seus olhos eram notáveis, cheios
de inteligência e leve desprezo, como se fosse o único gênio em um
mundo cheio de idiotas e tivesse aceitado seu destino de viver entre
eles.
564

— Bem, —disse Saiman. — Suponho que teria que acontecer


mais cedo ou mais tarde.

em um sofá ergonômico de grandes dimensões que se


curvava em torno de uma mesa de centro de vidro. O vidro era grosso
e cortado em uma curva sinuosa. A base da mesa era um S de aço
preto colocado de lado. Saiman se sentou em um sofá branco idêntico
do outro lado da mesa de centro. Derek parou atrás de mim com os
braços cruzados. Sua equipe havia tomado posições em todo o
cavernoso salão de pedra, alguns perto das portas da frente, outros nos
dois corredores que conduziam mais fundo na mansão, e alguns em
frente as enormes janelas que iam do chão até o teto alto. Acima de
nós, um lustre circular de metal branco liso prestava homenagem às
origens medievais de Saiman.

A mansão era um verdadeiro castelo, com paredes de pedra, uma


enorme lareira e enormes vigas de madeira envelhecida. Os móveis
eram o epítome do luxo ultramoderno pré-Mudança. Saiman e suas
contradições.
565

Saiman me estudou. — Estrutura óssea fascinante ...

Seu rosto ondulou, os ossos mudando e se reformando, esticando


sua pele como se fosse uma máscara de borracha. Quando os
metamorfos mudavam de forma, era quase instantâneo. Em Saiman
o processo era mais demorado, remodelando e ajustando. A coisa toda
era nauseante. Eu o tinha visto fazer isso antes, então já esperava o
que ia acontecer, mas ainda tive vontade de vomitar.

— Eu vi você morrer, —Derek disse. — Fui ao seu funeral. Eu vi


seu caixão ser colocado no chão e ser enterrado. Por que você não está
morto?

— Você não precisa parecer tão decepcionado. —O rosto dela


ainda estava se formando e sua voz parecia distorcida.

— Kate chorou por você, —Derek continuou.

— Não posso ser responsável pelo apego emocional dela.

Idiota. Não mudou nem um pouco.

Derek se inclinou para frente, a ameaça rolando dele em uma


onda pesada. — Você a deixou pensar que estava morto. Ela o salvou.
566

— E por isso, sou eternamente grato. No entanto, eu retribuí esse


favor. Liquidei minhas dívidas antes da minha morte cuidadosamente
arranjada. Não devo nada a ninguém.

— Deveria ter colocado isso em sua lápide, —Derek disse.

— Não, prefiro minha estela como ela é.

As feições do Saiman finalmente pararam de se mover. Uma


cópia de mim estava sentada no outro sofá, vestindo meu rosto e as
roupas de Saiman. Ele pegou um espelho da mesinha de centro,
verificou seu reflexo e franziu a testa. Não ficou uma boa combinação.

— Por que fingiu sua morte? —Perguntou Derek.

— Porque existe uma grande diferença entre ser renomado e


notório. Antes de Roland aparecer, eu era respeitado por minha
experiência. Eu era um empresário.

Um empresário que cobrava taxas exorbitantes por sua


experiência em magia e acumulou uma fortuna em dinheiro e itens
mágicos. Nada disso o ajudou no final.

— Depois que Roland se interessou pelo meu sangue, me tornei


uma vítima, alguém que precisou ser resgatado e digno de pena.
Minha credibilidade despencou. Não tive nenhum desejo de
permanecer sendo um homem que não conseguia se proteger, no
567

entanto, ainda tinha muitos contatos e experiência para recomeçar.


Minha morte foi uma solução perfeita.

Saiman era um egoísta da mais alta ordem, alguém que detestava


o altruísmo em todas as suas formas. Ele afirmava que a amizade era
uma fraqueza e o amor uma ilusão, uma visão que o permitia justificar
a maneira totalmente egoísta como vivia sua vida.

Ter consciência de que só sobreviveu nas mãos do meu avô


porque Kate teve pena dele, foi simplesmente demais para ele lidar.
Em vez de ajustar ou alterar sua filosofia de vida, Saiman fingiu sua
morte, fugiu e se escondeu aqui, neste mundo de realidade paralela.

— Preciso que me entregue a caixa agora, —eu disse.

A falsa eu inclinou a cabeça, tentando espelhar meus


movimentos. Ele gostava de chocar e desequilibrar os adversários. A
maioria das pessoas ficaria desconfortável quando confrontada com
uma réplica exata de si mesmas, mas havia coisas sobre mim que ele
nunca poderia duplicar. Não importa o quanto tentasse, ele sempre
seria uma imitação fraca.

— E a quem tenho o prazer de me dirigir? —Ele perguntou.

— Alguém que quebrou todas as suas Proteções.


568

— Touché. —Saiman sorriu com meus lábios. — Beleza e poder.


Uma combinação atraente. Você tem preferência quanto aos seus
parceiros? Um tipo?

Ugh.

Derek se inclinou para frente, prestes a pular do sofá, e eu


coloquei minha mão sobre seu antebraço. Tinha que cortar Saiman
pela raiz, ou isto sairia rapidamente do controle. Minha expressão
mudou, vestindo a máscara dura de Dananu.

Saiman recuou e perdeu o equilíbrio. Não era apenas uma simples


mudança, era a transformação de uma pessoa normal na Princesa de
Shinar. Estava nos meus olhos, nas linhas do meu corpo, na
autoridade escrita no meu rosto. Minha voz ficou fria, cheia de
magia. — Você se esquece da sua própria origem, jǫtunn .

Ele tentou segurar o meu olhar e se contorceu. É isso aí. Eu conheço


sua verdadeira forma. Eu a vi.

Segurei meu olhar. O silêncio encheu a sala.

Na mitologia nórdica, os Jotun são uma raça mitológica com força sobre-humana e se manifestam sempre em
oposição aos deuses, embora frequentemente eles se misturassem ou até mesmo tomassem por matrimônio alguns deles, tanto os Æsir e
os Vanir.
569

— Você mencionou uma caixa? —Saiman ergueu as


sobrancelhas.

— O tempo é curto, jǫtunn.

— Eu tenho um nome, —disse ele incisivamente. — E sou um


empresário. Se, hipoteticamente, um cliente valioso me confiasse um
item que ele queria vender ...

Joguei uma pequena sacola na mesa de centro. Fez um som


metálico ao pousar. Saiman o agarrou, abriu os cordões e sacudiu
suavemente o conteúdo sobre a mesa.

Cinco rubis vermelho-sangue do tamanho da minha unha caíram


no vidro, cada um com uma estrela pálida de seis raios brilhando na
superfície.

— Pedras naturais extraídas na Birmânia .

As gemas estelares lidam muito melhor com encantamentos do


que as gemas normais. Sua reserva mágica era significativamente
maior e os encantamentos duravam mais.

Myanmar (antiga Birmânia) é uma nação do sudeste asiático com mais de 100 grupos
étnicos, que faz fronteira com Índia, Bangladesh, China, Laos e Tailândia. Rangum, a maior cidade do país, conta com mercados
movimentados, vários parques e lagos e o imponente pagode dourado Shwedagon, que contém relíquias budistas e data do século VI.
570

Saiman cravou os olhos nos duzentos e cinquenta mil dólares em


sua mesa. O dinheiro era a maneira mais rápida de acabar com as
besteiras dele, e o tempo era curto.

— Preciso que me entregue a caixa agora, —eu repeti.

Ele pegou um rubi, olhou para a luz, o colocou sobre a mesa, se


levantou e saiu da sala.

Derek se inclinou para mim. — Você pagou a ele?

— É mais rápido assim.

— Ou eu posso colocar a cabeça dele na minha boca.

— Isso não parece higiênico. Você não sentiria o gosto dos


cabelos dele? Isso é uma coisa que costuma fazer quando fica
entediado no Alaska?

Saiman voltou com um pacote embrulhado em veludo púrpura.


Ele o colocou na mesa com um floreio.

Puxei o veludo. Uma pequena caixa repousava dentro das dobras


do tecido, em forma de baú de tesouro clássico. Era branco
opalescente, com uma cruz em relevo na tampa. A superfície da caixa
parecia suave, quase como marfim, mas o brilho que cintilava em suas
paredes era distintamente metálico.
571

Meu coração pulou uma batida. Eu já tinha visto essa mistura de


marfim e metal. Passei minha mão sobre a tampa. A magia beliscou
meus dedos. Não era humano. Metal alimentado com osso de animal
crescido magicamente.

Derek olhou para a caixa, seu rosto ilegível. A espada de Kate era
muito semelhante a este material. Era feita com os ossos de sua avó.
Dizer a Derek que isso não foi esculpido de um dos parentes de Kate
estragaria meu disfarce.

Não foi feito com os ossos da minha família, mas eu reconheceria


o trabalho em qualquer lugar. Eu precisava ter essa caixa.

Peguei minha bolsa, tirei uma barra de ouro e a coloquei sobre a


mesa, aumentando a aposta para trezentos mil. Carregava mais rubis
comigo, mas não havia razão para dá-los a Saiman. Adicionar a barra
de ouro indicava que eu havia avaliado a caixa, decidido seu valor e
estava disposta a pagar um preço justo. Billiot estava em dificuldades
financeiras. Saiman aceitaria o negócio.

Saiman estudou a mesa. — O triplo.

— Não vale a pena.

— Então, lamentavelmente recusarei.


572

— Esta caixa tem um guardião. O guardião matou o pastor


Haywood e a professora Walton. Teria matado o próprio Billiot, se
ele não tivesse encontrado uma maneira de se esconder.

Saiman se encolheu os ombros. — Minhas Proteções de defesa


estão se regenerando enquanto falamos.

Olhei para Derek. — A oferta de colocar a cabeça dele na sua boca


ainda está em pé?

— Sempre. —A voz de Derek me disse que ele realmente iria


gostar.

Saiman pôs os olhos em branco.

Eu me inclinei para frente. — Disseram-me que você era um


homem inteligente. Eu vejo que os rumores estavam errados. Vou
explicar lentamente. Tente seguir. Você tem a caixa mágica. É
guardado por uma besta divina. A besta é antiga e incansável. Ele
existe com um único propósito: punir os ladrões de seu tesouro e
devolvê-lo ao seu devido lugar. Ele vai encontrar este lugar, vai destruir
suas lamentáveis proteções como papel de seda e, em seguida,
arrancar seu coração do seu peito.

Saiman se endireitou.
573

Apontei para Derek. — Ele não gosta de você. Há seis


metamorfos ao lado dele e agora eles estão em sua casa. Ele quer
matar o guardião da caixa. Se ele tirar a caixa de você, o guardião virá
até ele.

Saiman olhou para Derek.

— Moloch renasceu no Arizona. Ele também quer esta caixa e


enviou seus Ma'aviris para a cidade que estão agora mesmo
vasculhando Atlanta procurando por você.

Saiman se assustou. Ele tinha ouvido falar dos Ma'aviris, e o que


Saiman escutou o impressionou.

— Não tenho tempo para desenhar um gráfico para você, então


imagine todas essas linhas que se cruzam e perceba onde elas
convergem. Venda a caixa para mim e resolva todos os seus
problemas.

O verniz de arrogância se foi. — Quanto tempo eu tenho?

— Acho que a resposta a essa pergunta é nenhum, —disse Zahar,


olhando pela janela.

Eu me levantei e fui até a janela. Uma nuvem de tempestade fervia


pelo portal, uma massa negra furiosa iluminada por trás em luz
vermelha. A nuvem se agitou, e dentro de suas profundezas surgiu um
574

fogo branco e brilhante. A Tempestade de Fogo Ma’avir. Meu coração


pulou.

Não era só um sacerdote. Era muito pior. Eu havia subestimado


Moloch e agora todos comigo pagariam por isso.

Precisava detê-los a qualquer custo. Se eu os deixasse passar, eles


incinerariam a casa e todos dentro dela. Ninguém, nem mesmo Derek,
sobreviveria esse incêndio.

— Fiquem dentro de casa, —eu disse. — Todos vocês.

Eu me dirigi para a porta, vasculhando minha bolsa apenas no


caso. Não me siga, não me siga ...

Derek murmurou algumas palavras aos metamorfos e me seguiu.

Eu me virei, caminhando para trás, de frente para ele, mas ainda


me movendo em direção à porta. — Lembra daquela promessa que
você fez? Sobre ficar de fora quando um antigo poder aparecer?

— Lembro. —Ele não mostrou sinais que iria parar.

Eu não poderia deixá-lo entrar nessa luta. O fogo estaria muito


quente. Se Derek não conseguisse desviar de uma única bola de fogo,
ele iria queimar como uma vela. Eu não permitiria que ele se tornasse
um monte de cinzas. — Fique aqui.
575

Derek fingiu pensar no assunto. — Acho que não.

— Então, o beta do Ice Fury é um mentiroso?

— Sim.

Alcancei a porta. Havia três entre nós. Eu tinha que fazer isso
rápido. — Você é desonesto.

Ele sorriu. Era o tipo de sorriso que prometia sangue. — Sim, e


muitas outras coisas.

— Essa luta não é sua.

— Eu decido quais lutas são minhas.

Seu olhar se fixou na minha bolsa. Ele nunca ficaria de fora disso.

Puxei minha magia para mim.

— Não faça isso, —ele rosnou, estendendo a mão para mim.

— Aarh! —Congelar.

A explosão de magia rasgou a casa, congelando os metamorfos


no meio do movimento. Saiman se deteve a meio caminho do sofá.
Na minha frente, Derek parou, na ponta do pé esquerdo, estendendo
a mão para mim como um patinador prestes a saltar.
576

A Palavra de Poder me daria cinco segundos. Mais do que


suficiente.

Saí e tirei uma maçã de vidro da bolsa.

A pele do rosto de Derek ondulou. Oh droga.

Joguei a maçã no chão do pátio. Ela se estilhaçou, derramando


meu sangue, preparado com magia.

Um músculo nos ombros de Derek flexionou. Seu corpo tremia,


tenso.

Jorrei uma corrente de poder no sangue. Ele se transformou em


uma linha fina como um cabelo, brilhando em vermelho, e circundou
a casa. Uma parede vermelha se ergueu. Derek se chocou contra ela a
toda velocidade e ricocheteou. A barreira balançou como um gongo
gigante.

Seu corpo humano se rasgou, e a terrível besta prateada se


apareceu. Seus olhos estavam em chamas. — Abra!

— Não é a sua luta. —Eu me virei.

A tempestade de fogo se espalhou pelo céu. Estaria sobre nós em


meio minuto.

A barreira de sangue estrondou atrás de mim.


577

Olhei por cima do ombro. Derek batia na parede de magia. Ele


não iria quebrá-la. Seria preciso uma quantidade insana de poder para
perfurar uma barreira de sangue.

Tirei uma esfera dourada da minha bolsa e a lancei no ar. Dos seis
em meu santuário, eu peguei esta porque meu avô a tinha feito
especialmente para uma luta como essa. A complexa filigrana de
metal se desdobrou como uma flor, deslizando e assumindo uma nova
forma. Um lobo oco de metal do tamanho de um pônei pousou na
minha frente, sua pele uma intrincada renda de metal, unida por
feitiços antigos. Como todas as armas de Roland, lindas e mortais.

O lobo estalou suas presas e seus olhos brilharam com um brilho


vermelho. Deixei cair minha bolsa e tirei meu manto. O cantil em meu
cinto estava cheio de sangue de vampiro. Apenas o suficiente para um
único conjunto de armadura.

Fazer a armadura me drenaria. Assim que a colocasse, ela me


protegeria do calor até que sua magia se exaurisse. Minha imunidade
ao fogo me daria alguma proteção, então teria que aguentar até que o
calor ficasse muito forte. Tinha que poupar a armadura até quando
não desse mais.

Peguei um punhado de flechas da minha aljava e as apunhalei na


minha coxa. A dor me ancorou.
578

O mundo ficou claro como cristal. Meu sangue cobriu as pontas


das flechas. Enfiei-as de volta na aljava e me virei para olhar para
Derek uma última vez.

Ele parecia demoníaco, todo garras e pêlos, um monstro com


músculos protuberantes rasgando a parede de magia. Nada humano
permaneceu nele.

Coloquei minha mão contra a barreira de Proteção de sangue.


Adeus.

As garras de Derek rasgaram o outro lado da Proteção, sem deixar


mascas. A barreira aguentou.

Eu me virei e pulei nas costas do lobo de metal. A magia o


alimentaria por vinte minutos. Teria que ser o suficiente.

O lobo avançou em uma corrida vertiginosa. O vento rasgava meu


rosto. A nuvem à minha frente se condensou e cintilou em chamas. A
densa cortina de fumaça agitou-se mais rápido. Dezenas de bolas de
fogo, vermelhas e brilhantes, se acenderam dentro da tempestade e se
espalharam. As bolas de fogo choveram na planície, explodindo à
esquerda e à direita, lançando chamas e poeira no ar.

O lobo ziguezagueava como um coelho louco. Vamos, mostrem-se.


579

Uma bola de fogo atingiu muito perto do meu lado esquerdo. O


calor me banhou. Nós rasgamos através dele, correndo mais fundo,
para o centro da tempestade.

Eu finalmente vi o padrão dentro da nuvem, três redemoinhos


agitados, três sacerdotes, cada um gerando fumaça e fogo em uma
espiral escura. Um triângulo equilátero, com um Ma’avir em cada
canto. Sozinhos, eles já seriam um problema. Juntos, presos em uma
formação de batalha, eram imparáveis.

Guiei o lobo em uma curva e me inclinei para trás até que minhas
costas tocaram no torso de metal do lobo. A espiral esquerda girou
diretamente acima de mim. Eu encaixei uma flecha e disparei. A
flecha guinchou no ar e desapareceu na nuvem. Uma bola de fogo
respondeu. O lobo recuou, girando como um gato no ar, e precisei de
toda a minha habilidade para me manter nas costas ele.

Errei. Merda.

O fogo atingiu o chão ao meu redor, explosões tão altas que pensei
que ficaria surda. Inclinei-me para frente, abraçando o pescoço do
lobo, e saí correndo, queimada pelas chamas, coberta de poeira,
seguindo em frente por instinto e esperança.

Continue correndo, continue correndo. Se parar, morro.


580

Esquivamos de outra bola de fogo e, de repente, havia uma


abertura à esquerda, todas as três espirais claramente visíveis na
lateral. Inclinei-me para a direita e disparei, enviando uma rajada de
magia com ela, da mesma forma que meus ancestrais fizeram milhares
de anos atrás, quando arqueiros Koorghans, montados em seus
cavalos, governavam a estepe.

A flecha rangeu, sua ponta vermelha brilhando, uma brasa contra


a tempestade negra. Ela perfurou o centro do redemoinho. Um grito
fantasmagórico soou. A espiral entrou em colapso, revelando um
círculo irregular de céu claro e o Ma'avir em seu centro, minha flecha
em seu peito.

O sacerdote arqueou as costas. O fogo saiu da ferida. A haste da


flecha se acendeu e se transformou em cinzas em um instante, mas a
ponta da flecha ainda estava dentro dele, comendo seu corpo,
minando seu poder.

A fuligem me cegou. Atirei novamente por puro instinto. A


segunda flecha atingiu o lado do Ma’avir. Eu o vi ser atingido com o
canto do olho, enquanto o lobo e eu corríamos para fora da nuvem de
cinzas. Atrás de nós, bolas de fogo tamborilavam no chão, como se
um gigante estivesse me perseguindo e batendo no chão com os pés.
581

A tempestade de fogo rasgou ao meio, o Ma'avir ferido


convulsionando.

Uma torrente de chamas cortou seu lado esquerdo. Uma segunda


torrente o atingiu pela direita. Os outros sacerdotes o haviam
ancorado.

A nuvem em chamas se dissipou. A planície estava coberta de


cinzas ao nosso redor. Os três sacerdotes estavam pendurados no alto,
conectados por cordas de fogo.

Atirei uma flecha no sacerdote da esquerda. A flecha sibilou no ar


e queimou a um metro e meio do Ma'avir. Merda.

Os sacerdotes de Moloch se contorceram em poses estranhas


idênticas. Três colunas de fogo explodiram de seus pés, espatifando-
se no chão com um baque ensurdecedor.

Eu conduzi o lobo em um amplo círculo e atirei novamente, no


outro sacerdote. Mais uma vez, a flecha se transformou em cinzas.

As colunas de fogo se solidificaram em colunas de metal


ornamentadas, vermelhas e brilhando com o calor. Cada coluna, com
cerca de um metro de diâmetro, tinha doze metros de altura. Dois
sacerdotes na frente, um atrás, ainda dispostos em um triângulo.

O que diabos estavam fazendo agora?


582

O lobo contornou as colunas, mantendo-se longe o suficiente para


tolerar o calor. As flechas não estavam resolvendo. Eu teria que chegar
perto. Subir uma dessas colunas seria uma merda. Nada que eu tivesse
poderia cortá-las. Mesmo as armas de sangue tinham seus limites.

Os sacerdotes bateram palmas. O fogo disparou deles, colidindo


no centro do triângulo. Um trovão ensurdecedor sacudiu as planícies,
o som de uma quantidade colossal de magia liberada de uma vez.

Uma nuvem de fogo branco flamejou e choveu, fluindo em uma


forma bovina. Um touro gigante de três cabeças atingiu o chão. A
estepe estremeceu.

A besta ergueu a cabeça. Três metros e meio de comprimento,


dois metros e meio de altura e dois metros e meio de largura, com
chifres do tamanho de espadas, era carne que emanava fogo. Escamas
de metal protegiam suas costelas, tórax e costas, e o calor que
emanava delas as esquentava até um vermelho opaco. O Touro de
Tophet . Nas visões de Sienna, ela o viu invadir Atlanta, deixando a
cidade em chamas.

Tophet é de origem bíblica e se refere a uma região ao sul da antiga cidade de Jerusalém, no vale de Ben-
Hinom, onde os israelitas tinham o costume de sacrificar os seus filhos. Refere ao Touro de Bronze, no qual o tirano siciliano Phalaris,
queimava seus inimigos.
583

Não hoje.

Derramei o sangue do cantil em mim e cortei minha coxa. Meu


sangue faiscou com magia. O sangue de morto-vivo do cantil reagiu,
disparando em uma infinidade de riachos e arqueando sobre minhas
costas, tecendo-se sobre meu corpo, formando uma couraça flexível
sobre meu peito, bandanas e braçadeiras sobre meus braços, cuisses
e grevas sobre minhas pernas, e um capacete na minha cabeça.

O touro bateu no chão com um casco do tamanho de uma travessa


turca . As chamas rodavam ao longo de sua pele. Seus seis olhos me
avistaram. Ele soprou fogo pelas narinas e atacou.

Empurrei o lobo em um galope. Ele voou sobre as nuvens de


cinzas que se erguiam do solo por causa do impacto das patas do
touro. A batida dos cascos do touro sacudia a estepe. Lutar contra ele
seria suicídio. Eu tinha que atingir os sacerdotes. Eram eles que
alimentavam a criatura com poder.

cuisses são armaduras para as coxas.

grevas protegem canelas e topo do joelho


Um prato de mais ou menos 50 cm de diâmetro.
584

As flechas estavam descartadas. Tentar escalar as colunas


queimaria a armadura e meus dedos.

Jogar Dakkan seria inútil. Eles estavam muito altos.

Olhei por cima do ombro. A maldita coisa estava me alcançando.


Como diabos algo com tanta massa poderia correr tão rápido?

Era muita massa movendo-se em grande velocidade.

Girei o lobo em uma curva fechada, inclinando-me tanto para fora


da sela que meu corpo ficou paralelo ao chão.

Ele derrapou, girou e corremos de volta para as colunas.

O touro passou por nós, incapaz de fazer a curva a tempo. Um


berro de raiva saiu da besta.

Persiga-me, sua vaca estúpida.

O touro deu a volta como uma barcaça virando e se concentrou


em mim, ganhando velocidade. Mais rápido. Coloque um pouco mais de
força nesses seus músculos de boi.

O touro berrou novamente, vindo rápido. O vento soprou em seu


fogo, e chamas fluíram dele como uma juba infernal. Ele estava me
alcançando.
585

Vinte metros.

Quinze. O touro baixou a cabeça, seis chifres prontos para me


ferir.

Mirei direto para as colunas.

Nove. O calor queimou minhas costas através da armadura.

O lobo disparou entre a coluna direita e a de trás, seus lados


amolecendo com o calor. O ar em meus pulmões queimava.

O touro atingiu o pilar traseiro. A coluna de metal oscilou,


inclinando-se, o sacerdote em cima dela lutando para manter sua
posição.

Eu girei o lobo em uma curva.

Três dos chifres do touro perfuraram a coluna, furando


profundamente o metal em brasa. O touro cambaleou para a direita,
mas os chifres permaneceram presos, prendendo duas de suas cabeças.

Larguei meu arco e preparei Dakkan.

Em vez de recuar e puxar os chifres, a besta avançou. A coluna


aguentou. Ele balançou a cabeça esquerda para a frente e para trás,
tentando soltar os chifres do metal. A coluna estremeceu, balançando.
586

Eu corri para dentro. O calor bateu em mim como uma parede


sufocante. Mergulhei Dakkan na cabeça presa do touro, direto em sua
orelha. Ele zurrou de fúria e dor. Eu o esfaqueei várias vezes, na
orelha, no olho, no nariz, uma e outra vez.

O touro rugiu, jogando todo o seu peso para o lado, tentando se


livrar da minha lança. Algo estalou. Os chifres rasgaram a lateral do
pilar. A coluna de metal cedeu, tombou e caiu no chão como uma
árvore derrubada.

O sacerdote em cima não teve tempo de reagir. Ele se debateu,


suas vestes se abriram como asas e caiu. Ele bateu no chão, aos meu
pés. Eu mergulhei Dakkan em seu crânio.

O Ma'avir teve uma convulsão, suas vestes balançando. Saltei


sobre o lobo e começamos a galopar.

Vai! Vai! Vai.

Com um berro profundo, o touro deu início à perseguição. Seus


cascos se chocaram contra o sacerdote convulsionando. O Ma’avir
explodiu.

A onda de choque bateu em nós, o calor agonizante, apesar dos


cinquenta metros entre nós. O lobo tropeçou, suas pernas estavam
587

derretidas e muito moles para aguentar nosso peso. Eu pulei e rolei


pelas cinzas. A dor apunhalou minha coxa esquerda.

Um grito horrível me ensurdeceu, como um humano uivando em


agonia dentro de um sino de cobre. Eu coloquei minhas mãos sobre
meus ouvidos.

O grito ecoou e morreu. O chão tremendo anunciou o touro vindo


em minha direção.

Pus-me de pé.

A besta avançou em minha direção. Apenas duas cabeças agora,


uma delas com meio chifre. Quinze metros, cinco ...

Espere, espere ...

Agora.

Eu pulei para o lado. O touro passou por mim, muito rápido para
esfaquear.

O lobo avançou mancando, suas pernas eram uma confusão de


metal dobrado.

O touro diminuiu a velocidade, girando. Esfaquear aqueles


pescoços grossos seria como tentar serrar um poste telefônico com um
588

canivete. As pernas eram uma opção melhor. Não conseguiria correr


sem os joelhos.

De repente o mundo ficou escuro. A dor explodiu em minha


cabeça, peito e estômago, como se todo o meu corpo estivesse se
rebelando contra mim. O mundo girou e caiu na minha cabeça.

Tentei controlar a agonia, desesperada para manter a consciência.

O retorno de magia da Proteção de sangue destruída. Alguém


quebrou meu feitiço.

Flutuei no mar de dor. Reverta o fluxo mágico, puxe-o para dentro,


expire, envolva-o ... A realidade explodiu ao meu redor em uma
cacofonia de luz e som. A dez metros de mim, o touro balançou a
cabeça, tentando desalojar o lobo de metal empalado em seus chifres
e derretendo em seu rosto. A construção de metal se sacrificou por
mim.

Acima de mim, uma fusão terrível de lobo e humano pulou em


uma coluna, cavando suas garras no metal, lutando para subir.

Derek, seu idiota estúpido! É muito alto, muito quente ...

Ele saltou para o topo da coluna. O Ma'avir vomitou uma torrente


de fogo. Derek se abaixou, desviando a torrente, se agarrando com
589

uma mão na coluna. A pele de seu braço pegou fogo. Ele balançou as
pernas, derrubando o sacerdote e saltou atrás dele, atingindo o
Ma'avir enquanto ele caía. Os dois bateram no chão em uma nuvem
de cinzas.

— Corra! —Eu gritei. — Corra!

Uma forma lupina saiu correndo da nuvem: Derek, correndo a


toda velocidade.

O sacerdote ferido no chão explodia. A onda de choque levantou


Derek, todos os pêlos de seu corpo pegando fogo ao mesmo tempo, e
o jogou como uma boneca de pano.

O grito de metal estourou novamente. Eu coloquei minhas mãos


sobre meus ouvidos. À direita, outra cabeça derreteu dos ombros do
touro. Ele estava reduzido a dois chifres agora.

Derek cambaleou ereto, ziguezagueando, atordoado.


Queimaduras fumegava por todo o corpo. Sua pele se fervia, brotando
pêlos, enquanto o Lyc-V tentava curar seu hospedeiro.

O touro o avistou.

— Ei! Aqui! Olhe para mim!


590

O touro não me viu. Eu estava de lado e Derek, ainda atordoado,


estava diretamente no campo de visão da besta.

Não.

Corri para o touro, desmanchei a armadura sobre minha coxa


cortada e cobri as minhas mãos com o meu sangue.

O touro girou em minha direção.

Você não pode tê-lo.

O Touro de Tophet atacou, mas eu estava perto demais. Ele não


teve tempo para ganhar velocidade. Virei para o lado, enfiei Dakkan
entre as escamas de metal por cima de seu ombro e enfiei minhas mãos
no sangue do touro.

— Hesaad. —Meu.

A magia saiu de mim. A dor me abalou profundamente. Parecia


que meus ossos se racharam e a medula foi sugada para o vazio. O
preço para assumir o controle do touro foi muito alto ...

O touro zurrou. No topo de sua coluna, o Ma'avir restante gritou


em agonia. Nossa magia colidiu, lutando pelo controle da besta. A
pressão me apertou, o poder dentro do touro era um casulo denso.
591

Derek viveria. Não importa o que isso me custasse, ele iria


embora.

O sangue encharcou meus lábios. Meus olhos e nariz sangraram


e eu alimentei cada gota na criatura. O Touro de Tophet foi criado a
partir do poder divino de Moloch. Eu estava tentando arrancar uma
besta do seu deus criador.

— Amehe, amehe, amehe ... —Obedeça, obedeça, obedeça.

Meu corpo inteiro ficou dormente. Lágrimas encharcaram meus


olhos, tornando-se difícil de ver. Não conseguia sentir minhas mãos.
Eu estava cambaleando à beira de um abismo, prestes a mergulhar
para a morte.

— Amehe.

O casulo de magia dentro do touro explodiu. Minha magia o


inundou. A consciência primitiva e malévola da criatura conectou-se
com a minha, aceitando o controle da minha vontade. Eu senti a força
esmagadora do corpo do touro, seu peso, seu poder. Puxei minhas
mãos e empurrei a mente do touro para a última coluna do Ma'avir.

A criatura correu e se chocou contra a coluna de metal. A coluna


estremeceu. O touro saltou para trás e atacou novamente, como um
592

aríete. O sacerdote acima rasgou suas vestes e caiu de joelhos, envolto


em chamas.

O ar tremeluziu e se abriu, e através da abertura um gigante


estendeu uma mão perfeita. Ele tinha vinte quatro metros de altura,
seu rosto era uma beleza comovente. Uma juba de cabelos loiros caia
sobre os ombros largos cobertos por uma armadura antiga que
brilhava como um espelho dourado. Olhar em seus olhos esmeralda
era se perder.

Moloch veio me ver.

Ele tinha que estar queimando sua magia em um ritmo louco para
se manifestar aqui e na forma de um gigante. Moloch não aguentaria
se sustentar nessa forma por muito tempo. Eu tinha que durar mais
que ele.

Os dedos de Moloch se fecharam em torno do sacerdote,


levantando-o no ar. Ele abriu sua boca perfeita.

Direcionei o touro para ele. O touro atacou o avatar, milhares de


quilos de fúria e chamas.

Moloch estendeu a outra mão e segurou o touro. A besta derreteu


na palma da mão dele. A perda de magia me deixou de joelhos.
593

— Vá se foder. —Mover minha língua foi um esforço colossal. Eu


tinha perdido tanta magia ...

— Eu vou matá-lo e apagar o seu nome. Ninguém se lembrará de


sua existência e você se tornará o nada.

Ele sorriu, a magia irradiando dele, quente e brilhante. Isso me


puxou como um ímã. Isso me fez querer chorar.

Moloch se inclinou para frente, estendendo a mão para mim.

Eu não pude fazer nada. Estava exausta.

Um metamorfo lobo prateado se colocou entre nós. O poder


ferveu dele, faminto e antigo, tão potente que me tirou o fôlego.

Moloch olhou para ele. Seus olhos se arregalaram.

Derek ergueu a cabeça e uivou. Parecia uma oração de batalha


feroz.
594

O deus comedor de crianças deu um passo para trás. O rasgo na


realidade desabou, os ecos finais de sua voz dançando com o vento.

Caí de costas com os braços abertos e olhei para o céu azul. O ar


tinha um gosto tão doce. Tudo doía.

Derek uivou novamente, cantando uma canção de triunfo e


sangue.

À distância, lobos uivavam, respondendo a ele.

silenciosa ruína ao meu redor tinha


sido em sua vida passada. Um hotel, uma sala de concertos, uma
escola? A estrutura tinha dois andares de altura, era perfeitamente
redonda e em seu topo, a quinze metros acima de nós, havia uma
cúpula dividida em janelas retangulares, seus vidros há muito não
595

existiam. O grande espaço redondo estava vazio. Poeira cobria o piso


de mármore polido. Ao longo das paredes, colunas sustentavam uma
varanda estreita. Em algum lugar dentro da ruína, provavelmente
haveria escadas que levariam até lá, mas nem Derek nem eu
procuramos por elas.

Ele se deitou ao meu lado no chão. Não tinha se incomodado em


mudar de forma para aliviar a pressão sobre o Lyc-V, e agora Derek
era surpreendentemente grande, um verdadeiro monstro revestido de
pêlos prateados.

A caixa estava entre nós em um batente empoeirado. A luz da lua


brilhava através das janelas acima, e iluminava o marfim encantado.

Eu mexi as brasas no caldeirão de metal na minha frente com uma


vara comprida e joguei outro punhado de ervas secas dentro dele.

Depois da luta, acabei adormecendo naquele campo de batalha,


bem no meio das cinzas. Derek me moveu para a grama. Quando
acordei, horas depois, ele foi a primeira coisa que vi, ainda em sua
forma de lobo, sentado ao meu lado, a silhueta contra o sol poente.
Fuligem e sangue manchavam seu pêlo prateado. Seu braço direito
estava coberto por queimaduras aqui e ali, algumas ainda em carne
viva e escorrendo líquido, onde o calor o havia cozinhado. Como uma
596

idiota perguntei a ele se seu braço doía. Claro que doía. Ele mentiu e
disse não.

A caixa esperava ao lado dele.

Insisti em confirmar que Saiman ainda estava vivo. Uma vez que
o vi com meus próprios olhos, todos nós saímos do portal e agora
estávamos aqui, em uma ruína na beira de Unicorn Lane, esperando
o momento que Derek saldaria a dívida que tinha com o gentil Pastor.
Os lobos se espalharam e se esconderam, formando um perímetro ao
redor da ruína.

Derek disse a eles para não interferirem a menos que Unicorn


Lane cuspisse algo particularmente desagradável em nossa direção.

Estávamos sentados aqui por horas e não tínhamos dito uma


única palavra um ao outro.

Derek partiria em três dias. Dois agora. Já passava da meia-noite.

Eu não queria que ele fosse.

Era absurdo e estúpido, mas quando lembrava que ele iria


embora, doía. Ele estava vivo. Isso tinha que ser o suficiente. Ele tinha
sua vida, eu tinha a minha, e depois dessa noite seguiríamos caminhos
separados. Era o melhor.
597

Havia tantas coisas que eu queria perguntar. Nenhuma delas


importava.

Derek se sentou. Suas orelhas se contraíram.

Uma forma estranha se espremeu por uma das janelas vazias e se


empoleirou na varanda, olhando para nós com olhos
perturbadoramente humanos.

A coisa era do tamanho de uma leoa e parecia com uma também,


mas em vez de pêlos cor de areia, sua pelagem era coberta por finos
pêlos castanhos escuros, como os pêlos de um cavalo árabe. Duas asas
enormes projetavam-se de suas costas, suas penas eram marrons
salpicadas de branco e dourado. Suas pernas felinas não terminavam
em patas, mas em mãos monstruosas com dedos gigantes de gato,
armadas com garras de foice. Seu pescoço grosso sustentava uma
cabeça de pesadelo, seu rosto era uma estranha mistura, com um
focinho de leão, um nariz achatado de felino, lábio superior partido,
uma grande mandíbula revelando presas, e maçãs do rosto e testa
perturbadoramente humanas. Se os leões tivessem evoluído para
humanos, eles poderiam se parecer com essa criatura.

Uma tiara de ouro coroava sua testa. Grossas braçadeiras de ouro


cravejadas de pedras vermelhas prendiam seus pulsos. O colar de ouro
598

em seu pescoço estava respingado de sangue seco. Uma esfinge. Era a


primeira vez que eu via uma.

A esfinge olhou para nós com olhos turquesa brilhantes.


Apavorante.

Ela abriu a boca. — Está queimando as ervas funerárias para


você ou para o lobo?

Sua voz sussurrante levantou os pêlos da minha nuca.

— Eu as queimo para você, —eu disse a ela. — Trouxe uma


moeda comigo para que você possa levá-la ao barqueiro. Conheço o
Thanatos local. Ele é um homem gentil. Irá guiá-la bem.

— Como você é atenciosa, humana. —Suas garras


arranharam a pedra. — O lobo não tocou no tesouro. Ele pode ir
embora.

— Você matou meu amigo, —Derek disse. — Um homem santo.

— Ele tocou o tesouro. Tinha que morrer.

Thanatos é filho, sem pai, de Nix, a noite, filha do Caos, ou, segundo outras versões, filho de Nix e Érebo, a noite eterna
do Hades. Thanatos é a personificação da morte, que nascido em 21 de agosto, tinha essa data como o dia preferido para arrebatar as vidas,
enquanto Hípnos é a personificação do sono.
599

— Esse homem ajudou muitas pessoas, —disse Derek. — Curou


os enfermos, alimentou os famintos e protegeu os fracos. Ele não
roubou a caixa, mas você o matou.

Seus olhos brilharam. — O coração dele tinha o mesmo gosto


de qualquer outro.

— Você sabia que a caixa não estava com ele. Não foi ele quem a
roubou. Poderia ter escolhido poupá-lo, —Derek disse.

Ela parecia estar pensando sobre isso. — Sim.

— Poderia ter dado a ele uma morte rápida.

Ela flexionou os dedos e suas garras arranharam a pedra


novamente. — Eu gosto quando as presas lutam de volta. Você
não tocou no tesouro. Você não é minha presa. Vá embora.

Lentamente, deliberadamente, Derek colocou a mão em garra na


caixa. — Que tal agora?

A esfinge saltou da varanda. Derek saltou do chão, encontrando-


a no ar. O lobo e a leoa colidiram em um turbilhão de corpos e pêlos.
Eles rolaram, rosnando, grunhindo, mordendo e arranhando.

Mexi minhas ervas. Essa luta era dele. Foi por ela que ele voltou
para a cidade. Eu tinha que deixá-lo resolver isso sozinho.
600

A esfinge arranhou o lado de Derek, rasgando pele e músculos.


Ele agarrou uma das asas da esfinge e mordeu onde a asa se unia ao
corpo. Ela gritou, e eles rolaram novamente, batendo contra as
colunas. A poeira subiu no ar. Eu tossi.

O sangue salpicou o mármore. Derek agarrou a pata traseira da


esfinge e a lançou contra a coluna mais próxima. As costas dela se
espatifaram na pedra com um estalo.

Lá fora, um dos lobos rosnou. Felizmente, não foi nada. Se eles


rosnassem de novo, eu teria que ir dar uma olhada.

A esfinge se soltou e saltou em Derek, afundando suas garras nos


ombros de Derek e chutando, tentando estripá-lo com as patas
traseiras. Ele a agarrou pela garganta, a puxou para longe dele como
se ela fosse uma gata selvagem e mordeu seu pescoço.

O sangue correu sobre eles, jorrando entre os dentes. Ele a


mastigou, cortando a carne com uma dedicação viciosa. Ela o
arranhou com suas garras, mas ele continuou mordendo.

A esfinge cedeu. Seus ataques perderam força. Ela ficou mole. A


luz em seus olhos diminuiu. Derek a soltou. A esfinge caiu no chão
em uma pilha amassada. Ele colocou a mão no peito da esfinge e
arrancou seu coração.
601

A esfinge estremeceu uma última vez e ficou imóvel.

Derek deixou cair o coração. Ele ergueu o rosto ensanguentado


para a lua e uivou. Não foi uma canção triunfante, foi triste. Daquelas
melodias que agarravam e apertavam o coração de quem as escutasse,
dizendo que a vida não era para sempre. As últimas notas do uivo
morreram, derretendo-se na noite.

Derek se virou. Sua forma de guerreiro condensou em si mesma,


dobrando em uma forma humana. Seus olhos estavam cheios de luz
dourada.

Uh oh.

Ele veio em minha direção, nu, ensanguentado, com os olhos em


chamas.

Eu me levantei.

Ele continuou vindo.

— Planeta Terra para lobo, missão concluída.

Ele investiu contra mim. Não tive tempo de me esquivar. Derek


pressionou minhas costas em uma coluna. Seu rosto estava a
centímetros do meu. Uma emoção elétrica passou por mim, medo e
excitação em um só.
602

Ele estava olhando para meu rosto, meus olhos, meus lábios ...

— Entendo que matá-la foi muito emocionante ...

Ele se aproximou, descansando sua testa na minha. Seus olhos


demonstravam que não havia pensamento racional nele agora.
Apenas fome e necessidade. Alguém me ajude, alguém me ajude.

— Pare.

Ele respirou fundo, provando meu cheiro.

— Pare! Derek!

Ah Merda.

Ele recuou alguns centímetros. Um lento sorriso esticou seus


lábios, mas não havia humor nisso. Parecia duro e amargo. — Bem,
vejam só isso. A ilustre Julie Olsen lembrou-se do meu nome.

O frio me encharcou. — Você sabia.

— Sim.

Deve ter sido a armadura de sangue. — Desde quando?

— Desde o começo. Quando você entrou cavalgando na cidade.


603

— Como soube? Meu rosto está diferente, meu cheiro está


diferente.

Ele se inclinou mais perto, seus lábios quase tocando minha


orelha. — Não precisei ver seu rosto ou sentir seu cheiro. Pude dizer
que era você só pela maneira como você montava seu cavalo.

Meu cérebro parou de repente.

Ele se endireitou, me dando mais espaço e eu vi seus olhos. Eles


transbordavam de fogo frio. Derek estava puto além de qualquer
razão.

O que? Ele estava puto? Ele tinha coragem.

— Você sabia e não me disse. Foi divertido?

Derek ponderou sobre mim. — Não tenho certeza. Deixe-me


pensar sobre isso.

— Sinto alguma hostilidade.

Ele fingiu refletir sobre isso. — É mesmo? Agora, eu me pergunto,


o que poderia ter causado essa hostilidade?

— Por que você não me diz? Basta colocar tudo para fora.
604

Ele mostrou os dentes. Sua voz era um grunhido. — Você foi


embora. Sem adeus. Sem explicação. Você me deixou para trás como
uma faca velha que não queria mais.

— Você poderia ter me encontrado a qualquer hora que quisesse.


Liguei para casa. Eu disse a eles exatamente onde estava. Se você
quisesse realmente falar comigo, tudo o que precisava fazer era pegar
o telefone.

— E dizer o quê? Por favor volte? Você fez sua escolha, eu fiz a
minha. Esperei você voltar. Você não voltou. Deixou claro que não
queria nada comigo. O que queria? Que eu esperasse por você aqui
para sempre como um bom menino?

— E eu deveria ter esperado por você? Estive apaixonada por você


por cinco anos e você nunca se deu ao trabalho de me esclarecer as
coisas entre nós.

— Você era uma criança!

— E se eu não tivesse ido embora, teria permanecido uma criança


para sempre na sua cabeça. Eu cresci. Achei que, se eu fosse embora,
você acabaria me encontrando. As coisas seriam diferentes.

— As coisas estavam bem! Éramos uma boa dupla.


605

— Eu não queria que fossemos uma dupla! Eu queria que


fossemos um casal!

Ele me olhou fixamente.

— Meus deuses, como pode ser tão estúpido? Se eu tivesse ficado


aqui, ainda seríamos ‘uma boa dupla’.

— O que tínhamos era o suficiente para mim. Eu gostava de tê-la


por perto. Gostava de saber onde você estava e o que estava fazendo.

— A vida nem sempre é sobre o que você gosta. Se eu não tivesse


ido embora, ainda estaríamos exatamente onde estávamos antes, eu
esperando e ansiando e você nunca se decidindo. Nada teria mudado.

— Você não me deu uma chance, —ele rosnou. — Foi embora.

— Eu fui embora porque tinha um buraco na minha alma devido


a ruptura do vínculo de sangue. Eu não pedi para vir comigo, porque
pela primeira vez na sua vida, eu queria que você me mostrasse que
me amava. Eu queria que você lutasse por mim. Queria que você
fizesse aquela coisa ridícula de acasalamento de metamorfo lobo,
onde você me traria comida, flertaria comigo e rosnaria para qualquer
outro homem que tentasse se aproximar de mim. Eu tinha essas
fantasias ridículas de você dramaticamente aparecendo do nada.
Quando você foi embora de Atlanta, pensei que viesse me procurar.
606

Esperei na porra da janela como uma idiota todas as manhãs por três
semanas.

— Fui embora de Atlanta porque precisava descobrir o que eu era.


Não teve nada a ver com você.

— Nada que você faça mais tem a ver comigo. Eu nem sei por
que estamos tendo essa conversa.

— Estamos tendo porque quero algumas respostas, caralho.

— Cansei de esperar por você, Derek. Você se saiu muito bem,


Beta do Ice Fury. Você se tornou o homem que sempre achei que se
tornaria quando assumisse quem realmente você é. Esse homem
nunca iria querer Julie Olsen, mas aqui estamos nós, você olhando
para mim como se precisasse de mim para continuar respirando. Por
quê? Eu finalmente sou bonita o suficiente para você?

Ele se afastou de mim. Seu olhar era impossível de segurar. —


Certo. Entendi. Tenha cuidado com o que deseja, princesa.

Ele se virou e caminhou até a esfinge.

— Isso mesmo, —gritei. — Continue me ignorando.

Ele pegou o coração da esfinge do chão, se virou para mim e o


mordeu. O sangue escorreu por seu queixo. Por um momento, Derek
607

congelou, envolto no luar, olhando para algo a um milhão de


quilômetros de distância, seus olhos brilhavam. Um sorriso de lobo
feroz curvou seus lábios. Ele se virou e saiu.

Eu caí contra a coluna.

Muito. Muita magia, muito perigo, muito Derek. Muito.

Não importava. Ele matou a criatura que veio aqui para matar.
Voltaria para o Alaska agora. Tinha acabado. Eu deveria estar feliz
por ele. Eu deveria estar me sentido aliviada. Tinha tirado essas coisas
do meu peito. Esclarecido tudo. Eu poderia finalmente deixá-lo ir para
sempre e ficar livre. Tudo correu conforme o planejado.

Então, por que diabos doíam tanto?

junto à lápide de Saiman e observei o céu clarear


lentamente sobre a Unicorn Lane. Eu estava muito cansada. Meu
corpo, minha mente, meu coração, tudo estava machucado. Sentia-
me magoada e vazia.
608

Sienna saiu das sombras, sua capa girando em torno dela. Ela
carregava uma garrafa de plástico cheia de um líquido claro. O líquido
cintilou ligeiramente, não exatamente brilhando, mas preenchido com
a sua própria luz sutil.

— Muito místico, —eu disse a ela.

— Eu tento.

Ela me examinou. Seus olhos estavam distantes. A magia


cintilava ao longo de sua pele. Para a minha visão sensitiva, Sienna
brilhava em um azul intenso, os finos tentáculos de sua magia se
estendendo em espirais, como se agitadas por um vento fantasma. Sua
voz fluiu, impregnada de magia.

— Você está muito cansada, —disse a Bruxa Oráculo.

— Estou. Fiz o suficiente? Mudei o futuro?

Ela balançou a cabeça. — Não.

O medo me encharcou como um balde de água gelada. Eu falhei.


Assinei a sentença de morte de Kate. Eu ...

— Mas você tornou o futuro mais incerto.

As palavras demoraram um pouco para penetrar. — Droga,


Sienna.
609

— Quero te mostrar algo. Vi pela primeira vez logo depois da


meia-noite.

Ela se agachou e derramou o conteúdo da garrafa no chão. O


líquido se acumulou em um buraco do asfalto destruído e ela o tocou
com um dedo longo e fino. O vapor fluiu da superfície da água,
subindo em uma cortina cintilante. Uma mulher de cabelos escuros
apareceu dentro dele, seus traços familiares, muito parecidos com os
meus. Kate. Ela sorriu, pegou uma pequena criança loira e a colocou
em seu quadril. A criança olhou para mim através da cortina do
tempo, seus grandes olhos castanhos brilhando em seu rosto
minúsculo.

Arrepios estouraram na minha pele.

— Esta é sua irmã, —disse Sienna suavemente. — Esse futuro


existe agora porque ontem você interrompeu Moloch.

O vapor desapareceu, enquanto a água se dissipou no nada.

— Você ganhou tempo para a sua família, —Sienna me disse.

— Quanto?

— Quem pode dizer? —Sienna encolheu os ombros.

— Posso vê-los agora?


610

— Não. Você não pode vê-los e não pode ir embora de Atlanta.


—A Oráculo olhou para mim com olhos assombrados.

— O que foi? —Eu perguntei.

— Se um dia eu errar com você, Julie, vai me perdoar?

— Sim. Todos nós temos problemas de vez em quando. Você é


minha amiga.

Ela sorriu. Sienna parecia prestes a chorar.

— Há algo de errado?

Ela balançou a cabeça. — Promessa é dívida. Espero que pense


sempre assim.

Sua magia girou em torno dela e desapareceu, puxada para


dentro. Uma jovem mulher comum estava na minha frente.

Minha amiga estava de volta.

— Devíamos beber chá e comer chocolate amanhã, —disse


Sienna. — Vou levá-la à nova padaria na Avenida Smith. Por minha
conta.

— Vou aceitar essa oferta generosa.

Siena sorriu.
611

mantinha. Normalmente, eu
teria esperado até o início de uma nova onda, mas isso era muito
importante.

Peguei a caixa, embrulhada em veludo roxo, com a mão esquerda


e uma sacola com a direita, respirei fundo e alcancei a conexão oculta,
deixando-a me levar a um lugar ao mesmo tempo próximo e
impossivelmente longe.

O cheiro de árvores floridas tomou conta de mim. Eu estava na


varanda de um grande palácio. Abaixo de mim, um jardim de tirar o
fôlego prosperava, árvores e flores florescendo entre lagos rasos e
riachos suaves, fluindo através de canteiros artificiais. Delicados
pavilhões ornamentais de pedra rosa e branca pontilhavam a
vegetação.

Os Jardins Aquáticos. Uma das maravilhas do Antigo Reino.

— Quanto tempo, —disse uma voz rouca e familiar atrás de mim.


612

Eu virei. Meu avô caminhou até a varanda, vestido com uma


túnica branca e calças brancas largas. Seus pés estavam descalços.
Seus cabelos escuros, estrategicamente salpicados de cinza, caíam
sobre os ombros. Ele tinha o rosto de um sábio, lindo além dos limites
humanos, mas erudito e seguro de si.

— Estive ocupada. Mas trouxe-lhe presentes.

— É o meu lobo nessa sacola?

— O que sobrou dele. —Deixei a sacola cair no chão. O tecido se


desfez, revelando os restos derretidos do lobo. — Acabei o destruindo.
Sinto muito.

— Você está viva na minha frente, então o lobo cumpriu seu


dever. Ele foi útil para você?

— Ele me salvou. Consegue consertar isso?

— É apenas uma máquina, —disse Roland. — Você lamentou por


ele?

— Lamentei.

O avô sorriu. — Seja cuidadosa. Vou reconstruí-lo, mas quanto


mais apegada você se tornar a ele, mais independência ele obterá. Essa
613

é a natureza das construções mágicas. Pode chegar um momento em


que ele se tornará uma entidade com vontade independente.

— Vou manter isso em mente.

Ofereci a ele o pacote de veludo.

— O que é isso?

— Um artefato que Moloch queria desesperadamente. Acho que


pode ser um dos seus.

Roland moveu sua mão. Uma mesa brotou do chão da varanda.


O pacote caiu sobre ela e o veludo se abriu.

Ele riu. Duas garrafas de cerveja apareceram na mesa, gelo se


formando nas laterais. Duas cadeiras combinando, materializaram
perto do corrimão da varanda.

Roland pegou uma cerveja. — Conte-me tudo.

Tínhamos terminado as cervejas quando terminei de lhe contar.

— Você fez um bom trabalho, —disse ele.

— Obrigada. —Elogios do avô, raros e preciosos.

— Gostaria de saber o que tem dentro da caixa?


614

— Por favor.

— Vamos precisar do céu noturno para isso.

Roland acenou com a mão. O pôr-do-sol acelerou no céu e


desapareceu no horizonte. Azul índigo inundou o céu, constelações
familiares brilharam em suas profundezas como diamantes. Dentro de
sua prisão, vovô era deus.

Roland tocou na caixa. A tampa se abriu lentamente. Um suave


brilho azul emanou de dentro e se espalhou, formando teias brilhantes
de constelações acima e litorais abaixo. Tão bonito.

— Quando eu tinha quatorze anos, meu tutor me desafiou a fazer


um mapa móvel. O mapa precisava ser capaz de sempre saber a
localização de seu usuário e se ajustar às estações e marés. Tinha que
ser bonito e fácil de usar.

— Você fez uma versão antiga do GPS?

Roland sorriu. — Sim, mas o meu é muito mais estiloso. Ele ficou
esquecido entre outras bugigangas que criei, até que anos depois, os
mercadores do Mar Médio chegaram. Eles trouxeram cerâmicas
delicadas, estátuas de mármore, ouro e cobre, azeite, perfume e vinho.
Queríamos estabelecer uma rota comercial constante, mas nos
disseram que o mar era perigoso e cheio de monstros. Os navios eram
615

facilmente desviados do seu curso. Então, eu dei a eles este mapa, e


nós negociamos por dois séculos até que os navios deixaram de
aparecer.

Isso era Roland. Um projeto escolar descartado que acabou


guiando frotas pelo Mediterrâneo. Para ele foi só uma de suas
construções, um brinquedo esquecido que apareceu no sótão. Para os
antigos gregos ou seus ancestrais, o mapa deve ter sido um item de
valor incalculável, suficiente para vinculá-lo a uma esfinge.

— Vou deixá-lo aqui com você, —eu disse a ele.

— Como quiser. Provavelmente posso fazer uma versão melhor


disso. Sim, algo menor. Mais portátil. —Ele acenou com a mão e duas
novas garrafas de cerveja apareceram na mesa. — Fica um pouco
mais?

— Claro.

Tirei os sapatos e recostei-me na cadeira. A cerveja em minha


mão estava gelada e refrescante, e o céu noturno acima de nós era só
vastidão.

— De agora em diante tudo ficará mais difícil, —disse Roland. —


Temo que irá sofrer.

— A vida é sofrimento. Por que deveria ser diferente para mim?


616

— Porque você é minha neta e muito preciosa para mim. Eu a


pouparia se pudesse.

— Aaaa. Você diz as coisas mais doces, vovô.

Ele riu. Nós brindamos nossas cervejas e observamos o brilho das


estrelas.
617

RYDER EXTRA
A carta

Um mês após a Batalha de Atlanta

Ordem da Ajuda Misericordiosa

O Forte

Wolf Trap 22182, VA

14 de setembro de 2045

TRANSCRIÇÃO DA REUNIÃO PARA O REGISTRO

POR Grão-Mestre, Damian Angevin, 3º Cavaleiro-Preceptor da Ordem da


Ajuda Misericordiosa.

INDIVÍDUOS PRESENTES:

Grão-Mestre Damian Angevin, Cavaleiro-Inquisidor Bruce Dolivo,


Cavaleiro-Secretário Timothy Hanson (gravação).

Assunto:

Batalha de Atlanta / Tentativa de Invasão por Roland também conhecido


como Nimrod de Shinar.
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BD [Relator]: Para entender o conflito que ocorreu em Atlanta,


resultando na Batalha de Atlanta em agosto de 2045, é útil
considerar duas teorias.

Primeira, as forças da magia e da tecnologia coexistem em


equilíbrio. Ambas precisam estar presentes para qualquer vida
continuar existindo. A completa ausência de qualquer uma das
duas resulta em um evento de extinção em massa, como vimos
durante o incidente dos Guardiões do Farol em Palmetto GA.
Usar tecnologia ou magia por meio de dispositivos e feitiços
aumenta sua respectiva potência no mundo às custas da força
oposta. Portanto, quanto mais feitiços a população usar, mais
forte será a magia e mais fraca será a tecnologia e vice-versa. O
uso de um mais do que outro, repetidamente, causará um
desequilíbrio muito grande, então a natureza acabará fazendo
uma autocorreção. Isso é conhecido como Teoria do Equilíbrio.

DA : Estou bem ciente disso. Pelo que sei, não sou um idiota.

BD [Relator]: A Mudança, o retorno da magia à nossa civilização


tecnológica é um exemplo dessa correção. A correção não é
instantânea, mas gradual, e é por isso que agora estamos
experimentando ondas mágicas com períodos de tecnologia

BD: Bruce Dolivo


DA: Damian Angevin
619

entre eles. É também por isso que a magia destrói objetos com
alta concentração tecnológica, como prédios altos, aeronaves
e computadores.

DA: Bruce, meu tempo é valioso. Vá para a porra do que interessa.

BD [Relator]: A segunda, a mudança não é a primeira correção que


nosso mundo experimentou. As evidências sugerem que várias
civilizações avançadas existiram na pré-história, baseadas na
prática da magia, e que obtiveram um nível de conhecimento
e inovação pelo menos igual ou superior ao nosso. Eles
experimentaram sua própria Mudança, que trouxe ondas de
tecnologia e, por fim, resultou no fim da magia. Essa teoria é
conhecida como Teoria da Segunda Mudança.

DA: Você está fazendo isso de propósito.

BD: Sim, você me pediu para fazer isso, eu larguei tudo e agora vai
se sentar e ouvir meu maldito relatório.

DA: Você sempre amou o som da sua própria voz.

BD: E você não consegue se quer prestar atenção em um relatório,


mesmo com trinta anos de serviço. Ainda tenho que fazer a
porra do dever de casa para você, Damian.
620

DA: Isso é mentira e você sabe disso. Eu fiz minha própria lição de
casa. É seu trabalho investigar. É meu trabalho decidir o que
fazer com suas descobertas.

BD: Ah não, perdi minha concentração devido às interrupções


constantes. Acho que vou ter que começar do início.

DA: Eu já sei de tudo isso. Qualquer criança sabe disso. Tim, alguma
dessas teorias é novidade para você? Ou você dormiu durante
as aulas na Academia?

TH : Não, Grão-Mestre. Sim, Grão-Mestre.

DA: Tim, me diga quem é Roland.

TH: Ele é um mago excepcionalmente poderoso nascido nos


tempos pré-históricos, quando as civilizações mágicas
floresceram. Há rumores de que ele é a base para a figura
bíblica de Nimrod, o homem que construiu a Torre de Babel.
Quando a primeira Mudança destruiu a civilização mágica,
Nimrod entrou em hibernação. A Mudança atual o acordou e
ele assumiu o nome de Roland. Ele possui poderes divinos, usa
magia de sangue e pode ter criado os vampiros. Ele busca o

TH: Timothy Hanson


621

domínio do mundo e é classificado como extraordinariamente


hostil.

BD: Como você tem um jovem que usa palavras como


‘floresceram’? Dê-me ele, ele é muito inteligente para você.

DA: Tenha seu próprio jovem inteligente. Este é meu. Apenas me


dê a versão resumida, Bruce.

BD: Tudo bem. Pense na magia como água e na tecnologia como


uma represa que a segura. Um pouco de água sempre flui, mas
mal é um fio. Pois bem, tivemos a Revolução Industrial, algumas
guerras mundiais, a corrida espacial e a tecnologia da
informação. Quanto mais avançarmos na história, maior foi a
pressão sobre a barragem, até que finalmente a maldita coisa
começou a rachar. Achamos que realmente começou em
algum momento dos anos 70, quando toda aquela merda
psíquica apareceu.

Então, a magia continuou vazando pelas rachaduras, as


rachaduras se alargam e, eventualmente, Roland acordou,
provavelmente em algum momento dos anos 90. Ele rastejou
para fora de qualquer caverna em que estava dormindo, saiu
para o mundo e esperou a represa estourar. A represa
estourou e tivemos nosso apocalipse.
622

Ninguém sabe exatamente o que aconteceu com Roland no


passado, mas foi uma merda pesada, porque o homem ficou
desequilibrado. Gênio louco, mago megalomaníaco, poderes
cósmicos loucos, uma grande bagunça. Ele acordou obcecado
em reconstruir seu antigo Reino, Shinar. Ele se estabeleceu em
Ohio , criou a Nação e começou a construir o alicerce de seu
Reino.

Logo após a Mudança, Roland conheceu uma mulher, Kalina,


e se apaixonou por ela. Ela ficou grávida e, a princípio, ele ficou
feliz, mas depois decidiu matar a criança no útero.

DA: Por quê?

BD: Roland teve filhos no passado e teve problemas com eles. Os


filhos eram poderosos e todos foram mortos ou se voltaram
contra ele e então foram mortos. Ninguém sabe quantos de
seus próprios filhos ele assassinou.

DA: Claramente, o pai do ano.

Ohio é um estado no centro-oeste dos EUA que se estende do rio Ohio e dos
Apalaches, no sul, até o lago Erie, no norte. Às margens do lago, fica a cidade de Cleveland, que abriga o Museu de Arte de Cleveland e sua
renomada coleção de pinturas europeias e, principalmente, de arte asiática. Cleveland conta também com o Rock and Roll Hall of Fame and
Museum. Perto da cidade, fica o vasto Parque Nacional do Vale de Cuyahoga.
623

BD: Kalina não deixou que ele matasse a criança. Ela de alguma
forma seduziu o Senhor da Guerra de Roland e fugiu com ele.
Magia pode estar envolvida nesse feito. Roland os perseguiu.
Em algum momento ela deu à luz a uma menina. Roland os
alcançou, então Kalina deu o bebê ao Senhor da Guerra e ficou
para trás, para confrontar o marido e ganhar tempo. Ela fez um
trabalho muito bom, por tudo que sabemos. Deu a sua filha
vinte e cinco anos antes de Roland saber da existência dela.

DA: O que aconteceu com Kalina?

BD: Ela esfaqueou Roland no olho, e ele a matou.

DA: Isso parece um filme da Lifetime .

BD: Você sabe de onde vem esse ditado?

DA: Sim, e você?

BD: Timothy, pergunta extra. De onde vem o ditado ‘parece um


filme da Lifetime?’

TH: Lifetime era um canal a cabo básico que oferecia programação


voltada para mulheres e as tinha nos papéis principais. O

Lifetime é um canal de televisão por assinatura americano que faz parte da Lifetime Entertainment
Services, uma subsidiária da A&E Networks, que é propriedade conjunta da Hearst Communications e da The Walt Disney Company. O canal
apresenta uma programação voltada para mulheres ou com mulheres em papéis principais.
624

conteúdo original da Lifetime incluía filmes para TV, que muitas


vezes retratavam mulheres superando adversidades
resultantes de ações masculinas.

BD: Troco Lisa por Timothy.

DA: De jeito nenhum. O que aconteceu com a menina e o Senhor


da Guerra?

BD: O Senhor da Guerra decidiu transformar a garota em uma


assassina, e o fez. Esta mulher pode matar qualquer coisa. Há
relatos de suas lutas nos ringues da Fronteira do Sul quando
ela tinha ainda oito anos. Por fim, o Senhor da Guerra morreu
e, dos quinze aos dezoito anos, ela acabou sob a tutela de um
dos nossos, o Cavaleiro-Místico Greg Feldman.

DA: Nós a tivemos na Ordem?

BD: Sim.

DA: Feldman sabia?

BD: É o que parece. Ele tentou matriculá-la na Academia duas vezes


e ela fugiu nas duas vezes. Você mesmo pode verificar os
registros de inscrição. Seu nome é Kate Daniels.

DA: Bem, merda.


625

BD: Eventualmente ela acabou em Atlanta e conheceu Curran


Lennart.

DA: O primeiro Senhor da Feras do Bando?

BD: Sim. Aparentemente, eles tiveram uma atração instantânea um


pelo outro. Fica ainda melhor. Nessa mesma época, Ted
Moynohan era o encarregado do Núcleo de Atlanta.

DA: Aquele idiota de novo. Só sabe fazer besteira. Ainda não


entendo como ele se tornou o Cavaleiro-Protetor. Se aquele
homem não estivesse encarregado de nada, exceto seu
próprio pau, mais cedo ou mais tarde ele suspeitaria que isso
representava um perigo para a humanidade.

BD: Ele foi uma das 50 pessoas que Stone nomeou Cavaleiro. Stone
gostava dele por sua confiabilidade e o promoveu a Cavaleiro-
Sargento, e depois que ele morreu, Heath assumiu e Heath
valorizava o tempo de serviço sobre a habilidade. Estamos
falando do mesmo homem que encomendou um retrato em
tamanho real de Stone e o emoldurou em ouro ...

DA: E se Stone estivesse vivo, ele teria acertado Heath com isso.

BD: E eu pagaria um bom dinheiro para ver isso. Greg Feldman, o


Cavaleiro-Místico que servia como guardião de Kate, foi
assassinado. Moynohan não investigou.
626

DA: Por que diabos não?

BD: Feldman teve problemas com ele. Daniels apareceu e


Moynohan contrata Daniels como uma agente da Ordem para
resolver o assassinato.

DA: Que porra é essa?

BD: Seu palpite é tão bom quanto o meu. Essa coisa é muito mais
complicada, mas você pediu resumo. Ela trabalhou para nós
um pouco. Enquanto isso, seu pai acordou sua irmã. O nome
dela é Erra e ela é o equivalente humano de uma bomba
nuclear. Nos tempos antigos, Erra era a Senhora da Guerra de
Roland. Ela tem uma lista de títulos de uma milha de
comprimento, coisas como Portadora da Peste e Devoradora
de Cidades, e ela acordou ainda menos sã do que seu irmão.
Por algum motivo, Roland a mandou para Atlanta, e Erra
encontrou sua sobrinha. Merda bateu no ventilador. Uma
praga quase aniquilou a cidade, uma luta de merda aconteceu,
mas eventualmente Daniels a matou. No processo, fica claro
que ela e Lennart são um casal e Moynohan decide que os
metamorfos não são pessoas e devem ser eliminados. Então
nossa garota desiste da Ordem e assume o posto de Senhora
das Feras.

DA: ...
627

BD: Você está bem?

DA: Basta pensar nisso. Se ao menos tivéssemos conseguido


convencê-la a ser uma de nós. Poderíamos ter tido nossa
própria bomba nuclear.

BD [suspiro]: Sim. Isso é o que acontece quando se promove


pessoas pouco inteligentes. De qualquer forma, alguns anos se
passaram e Roland e Daniels continuaram entrando em
conflito um com o outro remotamente. Enquanto isso, Heath
está nos levando para um pesadelo político. A reputação da
Ordem despenca. Moynohan, que agora está totalmente
lunático, se convence de que a única maneira da Ordem
sobreviver é travando uma guerra santa contra um inimigo
maligno.

DA: E como se sabe disso?

BD: Ele escreveu um memorando para Heath sobre isso.

DA: … Continue.

BD: Moynohan procurou por algum inimigo para lutar e se


estabeleceu em Roland. Roland decidiu que era a hora de
conhecer sua filha pessoalmente, então ele enviou seu Senhor
da Guerra para buscá-la.
628

DA: Hugh d'Ambray, outro grande pé no saco.

BD: Ele era um pé no saco até que Roland o jogou fora.

DA: Esse homem é um açougueiro. Agora, ele está escondido em


segurança em Kentucky, brincando de casinha com sua nova
esposa, mas no momento em que ele puser os pés fora, estarei
em cima dele como arroz branco.

BD: Certo. Continuando. Moynohan deixou que d’Ambray


massacrasse todo o Núcleo de Atlanta e queimou o disfarce de
um agente nosso infiltrado na equipe de d’Ambray. Esse
agente é ...

DA: Vai ou não vai nos dizer quem é?

BD: Foi uma pausa dramática, Damian. O agente é o Cavaleiro-


Cruzado Nikolas Feldman, filho de Greg Feldman. Não
esperava por isso, não é?

DA: Como continuamos fazendo isso com essa mulher? Como é


que cada vez que sua trajetória se cruzou com a Ordem,
tivemos um grande desastre em nossas mãos e ela acaba nos
vendo da pior maneira possível?

BD: Sorte? Coincidência? Destino? De qualquer forma, Heath se


recusou a ir à guerra com Roland e por algum motivo decidiu
629

promover Feldman a Cavaleiro-Protetor e colocá-lo no


comando do Núcleo de Atlanta. Mariana de Leon pediu que
Heath deixasse o cargo e seu nome foi citado como o possível
substituto. Você sabe o que aconteceu depois. Enquanto
estávamos ocupados resolvendo tudo isso e lutando em nossa
guerra civil, Roland e Daniels entraram em conflito aberto. Esta
família tem um dom inato de reivindicar terras.

DA: Defina a reivindicar terras.

BD: Eles ficam presos à terra e a todas as criaturas vivas dentro dela.
Se um poder mágico significativo entrar em seu domínio, eles
saberão e poderão rastreá-lo. É algo que foi criado
deliberadamente para torná-los melhores governantes.
Aparentemente, há um grande preço associado a tudo isso,
mas não vamos entrar em detalhes. Versão curta: Roland
tentou reivindicar Atlanta e Daniels o bloqueou e reivindicou a
cidade em seu lugar. Eles fizeram um acordo. Lennart precisou
desistir do Bando, em troca o querido papai se comportaria
pelos próximos cem anos. Basicamente, Lennart e Daniels
ganharam algum tempo.

DA: O acordo não durou.

BD: Não. Ele ficou cutucando Daniels com um pedaço de pau. Ela
e Lennart se casaram e ela deu à luz um menino, o que só
630

piorou a intromissão de seu pai. Enquanto ele a assediava, um


dragão ancestral decidiu que seria uma ótima ideia invadir o
mundo. Ele abriu uma dimensão secreta onde conseguia se
esconder e abrigar seu exército de escravos e começou a
capturar pessoas e fervê-las vivas. A cidade inteira se uniu para
lutar contra ele e de alguma forma Daniels convenceu Roland
a ajudá-la. Eles mataram o dragão, e no momento em que o
dragão morreu, Roland se vira contra a sua filha. Quando tudo
terminou, Roland havia perdido a batalha com Daniels e foi
expulso de nosso mundo.

DA: Para onde?

BD: Ninguém sabe. Feldman escreveu um relatório no qual afirma


que Roland está aprisionado em um Reino fora de nossa
existência, impossível de escapar. Eu o pressionei por uma
explicação, mas ele não deu ainda. Feldman não tem a opinião
mais elevada sobre nós. Como Moynohan, ele vinha
escrevendo memorandos há anos, explicando que Roland iria
invadir e Daniels era um perigo para a democracia.

DA: Eu os li. Seus pontos eram válidos, mas tínhamos coisas mais
urgentes em nosso prato. O que aconteceu com Daniels?

BD: Ela retirou a reivindicação da terra e voltou a viver nos


subúrbios com seu marido ex-Senhor das Feras.
631

DA: Simples assim?

BD: Simples assim. Aqui vai o melhor. Você se lembra da tia que ela
matou? Erra, o Portador ada Peste? Aquela com todos os
títulos?

DA: Sim.

BD: Ela ressuscitou no campo de batalha.

DA: Bruce, a morte é para sempre. Em todas as décadas desde a


Mudança, ninguém jamais voltou à vida.

BD: Bem, ela voltou. Rumores diziam que Erra não estava
totalmente morta, e ela e Daniels têm algum tipo de acordo.
Logo após a poeira baixar, Erra foi embora. E aqui está outro
petisco para você. Anos atrás, Daniels resgatou uma criança de
rua, uma menina chamada Julia Olsen. Lennart e Daniels a
adotaram formalmente. Julia, eles a chamam de Julie, é uma
sensitiva e tem alguns poderes desconhecidos. Dizem que ela
e Erra foram embora juntas. Seus paradeiros são oficialmente
desconhecidos.

DA: Então, nós temos uma antiga princesa guerreira correndo pelo
país, possivelmente portando pragas e, boas notícias, ela
encontrou uma aprendiz com poderes desconhecidos.
632

Fantástico. Como temos certeza de que Roland não é mais uma


ameaça?

BD: Cem por cento de certeza. Daniels não está preocupada e ela
seria o alvo principal de Roland. Quanto a Erra, nós a
encontraremos.

DA: O que te dá tanta certeza?

BD: Essa é Erra. [mostrando a fotografia]

DA: … Qual é a altura dessa mulher?

BD: Um e noventa.

DA: Quando você disse que ela tinha milhares de anos, eu não
esperava ... isso.

BD: Não. Eu conheço essa sua expressão.

DA: Que expressão?

BD: Damian.

DA: Sim? Há algo que você quer me dizer informalmente?

BD: Não, quero tudo registrado. É trabalho de Timothy registrar


cada palavra falada aqui, e eu quero ter certeza de que ele
colocará isso por escrito. Você entendeu, Cavaleiro-Secretário
Hanson?
633

TH: Sim, Cavaleiro-Inquisidor.

BD: Esta mulher é uma arma de destruição em massa. Ela pode


fazer coisas que nem podemos imaginar. Ela pode fazer armas
e armaduras indestrutíveis com seu próprio sangue. Ela tem
séculos de educação e experiência. A Mudança aconteceu há
menos de cinquenta anos. Nossos magos mais avançados são
bebês em comparação com ela. Deixe-a em paz.

DA: Hum-rum.

BD: Estou falando sério, Damian. Esta mulher é encrenca. Não se


envolva. Estou falando muito sério.

DA: Entendi. Obrigado pelo relatório, Cavaleiro-Inquisidor. A


Ordem agradece seus esforços.

BD: Eu te avisei. Além disso, é em Julia Olsen que precisamos nos


concentrar. Roland se interessou por ela. Ela foi vista em seu
palácio do Cisne e seus subordinados se referiram a ela como
talmir, que significa discípula. Daniels a ensinou a usar armas
brancas, Roland ensinou magia e agora, Erra a levou consigo
e só Deus sabe o que ela está ensinando. Três pessoas daquela
família decidiram derramar seu conhecimento nesta criança.
Por quê? Além disso, essa garota teve um lugar na primeira fila
para a bagunça que é a política de Atlanta há anos. Ela tem
634

laços estreitos com o Bando e os Covens de Bruxas. Além disso,


é bem-vinda ao castelo de Hugh d'Ambray em Kentucky. Ela
me preocupa.

DA: Ela tem o quê, dezoito?

BD: Quase. Não temos uma data de nascimento exata.

DA: Jovem. Impressionável. E provavelmente tem uma carga de


merda de poder. Encontre-a para mim, Bruce. Não podemos
ter Erra e perdemos a nossa chance com Daniels, d'Ambray
nunca foi uma opção, mas ainda podemos ter Julie Olsen
como uma das nossas. Não podemos nos dar ao luxo de
ignorá-la. A família governante de Shinar não é a única que
acordou. Precisamos do conhecimento dela, ou vamos ser
superados rapidamente.

BD: Vou encontrá-la. A questão é: como você vai convencê-la a se


juntar a nós?

DA: Ela é uma garota de 18 anos impressionável. Entre os


Cavaleiros e a equipe de apoio, temos oitenta mil pessoas que
escolheram nosso lado. Apenas encontre-a, e assumirei a partir
daí. Faça disso uma prioridade, Bruce.

BD: Compreendido, Grão-Mestre.


635

O cavaleiro-inquisidor Bruce Dolivo saiu da sala.

DA [segurando a foto de Erra]: O que você acha da mulher, Tim?

TH: Ela é muito perigosa, Grão-Mestre.

DA: Tenho certeza que ela é. Como foi que Bruce a chamou?
Encrenca.

TH: Sim, Grão-Mestre.

DA: Quando se chega à minha idade, Tim, percebe-se que jogar


pelo seguro nem sempre é a melhor estratégia. Afinal, o que é
a vida sem encrencas? Não escreva isso. Não queremos que o
Cavaleiro-Inquisidor Dolivo perca seu sono de beleza.

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