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A dimensão religiosa dos usuários na prática do atendimento


à saúde: percepção dos profissionais da saúde
The religious dimension of users in the practice of health assistance:
perception of health professionals
La dimensión religiosa de los usuarios en la práctica del atendimiento a la salud:
percepción de los profesionales de la salud

Joseane de Souza Alves*


José Roque Junges**
Laura Cecília López***

Resumo: Pesquisa de abordagem qualitativa com o objetivo de conhecer a opinião dos profissionais da saúde sobre a influência da
espiritualidade/religiosidade dos usuários no processo saúde-doença. Foi usada a discussão focal com profissionais do Serviço de Saúde
Comunitária do Grupo Hospitalar Conceição do município de Porto alegre, RS, no período de setembro de 2009. A amostra tentou
abarcar a diversidade de áreas de atuação. O tema da discussão foi a relação entre saúde e espiritualidade dos usuários no trabalho dos
profissionais. Para a interpretação dos dados foi utilizada a análise de conteúdo a partir de duas categorias: influência da espiritualidade/
religiosidade sobre a saúde e respeito como imparcialidade. Os achados mostram que os profissionais possuem concepções ambíguas
sobre a influência da espiritualidade/religiosidade dos usuários na saúde. Respeitam esta dimensão, mas não a utilizam na terapêutica.
Palavras-chave: Espiritualidade. Humanização da assistência. Profissionais da saúde.
Abstract: Investigation of a qualitative nature aiming at knowing the opinion of health professionals on the influence of spirituality
of users in the process health-disease. We used the focal discussion with professionals of the Serviço de Saúde Comunitária do Grupo
Hospitalar Conceição [Service of Communitarian Health of Conceição Hospital Group of Porto Alegre, R.S., in the period of September
2009. The sample has tried to include the diversity of action areas. The subject of the discussion has been the relationship between health
and spirituality of users in the work of professionals. For data interpretation content analysis was used according to two categories:
the influence of spirituality on health and respect as impartiality. Results show that professionals have ambiguous conceptions about
the influence of the spirituality of users on their health. Professionals respect that dimension, but they do not use it in treatments;
Keywords: Spirituality. Humanization of assistance. Health professionals.
Resumen: Investigación de abordaje cualitativo con el objetivo de conocer la opinión de los profesionales de la salud sobre la influencia de
la espiritualidad/religiosidad de los usuarios en el proceso salud-enfermedad. Ha sido usada la discusión focal con profesionales del Serviço
de Saúde Comunitária del Grupo Hospitalar Conceição [Servicio de Salud Comunitaria del Grupo Hospitalar Conceição] del municipio de
Porto Alegre, R.S., en el período de septiembre de 2009. La muestra ha intentado abarcar la diversidad de áreas de actuación. El tema de
la discusión ha sido la relación entre salud y espiritualidad de los usuarios en el trabajo de los profesionales. Para la interpretación de los
datos se utilizó el análisis de contenido desde dos categorías: influencia de la espiritualidad/religiosidad sobre la salud y el respeto como
imparcialidad. Los hallazgos muestran que los profesionales poseen concepciones ambiguas acerca de la influencia de la espiritualidad/
religiosidad de los usuarios en la salud. Los profesionales respetan esa dimensión, pero no hacen uso de ella en la terapéutica.
Palabras-llave: Espiritualidad. Humanización de la asistencia. Profesionales de la salud.

* Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos- UNISINOS/RS. E-mail: joseane.ars@gmail.com
** Professor e pesquisador do PPG em Saúde Coletiva da UNISINOS. Doutor em Ética Teológica pela Pontificia Università Gregoriana de Roma, Itália.
E-mail: jrjunges@unisinos.br
*** Professora do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da UNISINOS. Doutora em Antropologia Social pela UFRGS. E-mail: lauracl@unisinos.br

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Introdução práticas de atenção de forma que No que se refere à produção aca-


melhor se ajustem à realidade cul- dêmica, a polissemia se mantém e
A relação da espiritualidade/re- tural e subjetiva da população aten- o termo humanização é abordado
ligiosidade com a saúde tornou-se dida pelos profissionais de saúde¹. numa pluralidade de sentidos. O
um tema de interesse de estudiosos Considera-se que estudos sobre desafio consiste em deslocar a hu-
nos últimos tempos, acreditando- espiritualidade/religiosidade sejam manização do campo de uma mo-
-se em sua influência positiva so- especialmente relevantes num país ral que faz escolhas entre o bem
bre o bem-estar das pessoas. Esses que tem na religiosidade uma ca- e o mal, ao acentuar os processos
estudos partem de uma visão inte- racterística marcante e onde se ma- de produção de subjetividades.
gral da saúde, abordando o sujei- nifesta uma diversidade de crenças Assim, os vínculos entre sujeitos
to em suas diferentes dimensões religiosas e espirituais que podem não se efetuam fora do plano das
e superando o modelo biomédico influenciar a saúde da população5. práticas de cuidado e dos proces-
que acentua apenas o aspecto fí- O que se verifica é a fragmenta- sos de gestão. A Política Nacional
sico do processo saúde-doença e ção da cura e do cuidado e a busca, de Humanização tem por objetivo
opera com uma concepção meca- pelos usuários das ações de saúde, provocar inovações, superar limi-
nicista do corpo e de suas funções, de práticas não apenas profissio- tes e experimentar novas formas de
responsável por um atendimento nais, a fim de se sentirem cuidados organização dos serviços e novos
fragmentado. e/ou curados6. Muitas vezes, sob modos de produção e circulação do
Para os fins deste artigo, fare- a queixa do profissional da não saber e poder6.
mos uma distinção entre os termos adesão dos usuários à prescrição, O presente artigo pretende re-
religião e espiritualidade/religio- às orientações ou à terapêutica, fletir sobre como os profissionais de
sidade, tentando entender como encontra-se a denúncia da oferta saúde percebem a presença da espi-
esta última dimensão é trazida na fragmentada, particularizada e cor- ritualidade/religiosidade dos usuá-
relação entre profissionais de saúde rompida da clínica7. rios e a importância a ela outorgada
e usuários. Religião se refere à orga- O essencial do processo de cons- no atendimento humanizado.
nização institucional e doutrinária trução do SUS implica a mudança
de determinada forma de vivência de modelo de atenção à saúde, em Metodologia
religiosa¹. Espiritualidade é aquilo busca de efetividade, qualidade e
que dá sentido à vida². Espiritua- humanização das relações entre O universo de pesquisa foi com-
lidade tem a ver com experiência, prestadores de serviços e usuários, posto por profissionais que atuam
não com doutrina, nem com dog- como parte de um processo mais em quatro postos do Serviço de
mas, ritos e celebrações que são geral de mudanças nas concepções Saúde Comunitária do Grupo Hos-
caminhos que institucionalizam e acerca da saúde e no desenvolvi- pitalar Conceição. Este Serviço pos-
formalizam a espiritualidade/reli- mento das suas práticas8. sui 12 postos com 39 equipes que
giosidade³. A religiosidade se refere A Política de Humanização atuam em áreas determinadas em
às formas pelas quais os símbolos pretende realizar o princípio da vilas e em bairros da Zona Norte de
religiosos são vivenciados e conti- integralidade no atendimento ao Porto Alegre. A equipe que pres-
nuamente re-significados, através usuário, levando em consideração ta atendimento é multidisciplinar,
de processos interativos concretos as diferentes dimensões do processo incluindo, além dos médicos de
entre indivíduos e grupos4. saúde-doença e tendo presente que família e comunidade, dentistas,
O entendimento da transcen- produção de saúde é sempre pro- farmacêuticos, psicólogos, enfer-
dência se torna confuso e difícil de dução de subjetividade. Nesse sen- meiros, nutricionistas, assistentes
aceitação na cultura contemporâ- tido, a espiritualidade, por ser uma sociais e agentes de saúde.
nea devido à visão, muitas vezes das dimensões da subjetividade hu- O GHC é uma referência nacio-
difundida por tradições religiosas e mana, precisa encontrar o seu lu- nal para a humanização. Inclusive
filosóficas, de ser algo que está fo- gar no atendimento humanizado. contempla em sua estrutura hos-
ra da realidade concreta. A maior O conceito de humanização pitalar um espaço inter-religioso
compreensão do fenômeno da é polissêmico, trazendo diversos no qual, lideranças de diferentes
religiosidade pode ser importante enunciados, assim como é per- religiões acolhem e dialogam com
neste momento em que o sistema meado por imprecisões. Os modos seus fieis. Esse espaço foi aberto em
público de saúde brasileiro e mui- de abordar e compreender huma- 2008, a partir da demanda de lide-
tos grupos privados de assistência nização não são separados das pro- ranças de religiões afro-brasileiras,
à saúde buscam reorientar suas postas e práticas de humanização. que propunham um diálogo mais

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aprofundado entre concepções e O coordenador era quem convi- influência na saúde dos usuários.
práticas de saúde dos profissionais dava e escolhia os profissionais de Essa dimensão é normalmente
da instituição e das diferentes reli- seu posto para participar do grupo. trazida pelos usuários, no sentido
giões. Porém, vale a pena ressaltar Foi informado pela pesquisadora de resolver questões que não são
que durante a pesquisa, nos postos que seria necessário participarem só orgânicas, mas fazem parte das
de atenção primária onde foi feita os profissionais de saúde que aten- dificuldades do seu cotidiano.
a coleta de dados, esse espaço não diam diretamente os usuários. Os Os entrevistados entendem que
foi mencionado pelos profissionais. grupos focais foram conduzidos pe- ir para alguma igreja é uma forma
No estudo, tentou-se abarcar a la pesquisadora responsável pelo de os usuários buscarem algum tipo
diversidade de áreas de atuação. Par- projeto, que contou com uma as- de conforto ou entendimento para
ticiparam médicos (M), enfermeiros sistente encarregada das anotações o seu sofrimento. Foi destacado
(E), técnicos de enfermagem (TE), e da gravação dos grupos. As falas também que a espiritualidade/reli-
auxiliares de enfermagem (AE), foram gravadas e, posteriormente, giosidade pode ser um consolo nas
dentistas (D), técnico de higiene transcritas para a análise. horas difíceis, porque ter uma ex-
bucal (THB), psicólogos (P), agen- Na pré-análise do material, foi periência religiosa possibilita liber-
tes comunitários de saúde (ACS), feita uma leitura flutuante e reite- tar-se de algum sofrimento. Foram
farmacêuticos (F), residentes de psi- rada das falas e, posteriormente, referidas mudanças no estado de
cologia (RP), de nutrição (RN), de procedeu-se a codificação em cate- saúde dos usuários que começam
medicina (RM), de farmácia (RF), gorias, seguindo a análise temática9. a ter uma experiência religiosa,
de assistência social (RAS), de odon- A pesquisa foi conduzida den- sendo elas de ordem psicológica e
tologia (RO) e de medicina (RM). tro dos padrões éticos exigidos pe- física. Pacientes que vinham pro-
A pesquisa caracteriza-se como la Comissão Nacional de Ética em curando o posto, muitas vezes
exploratória com abordagem qua- Pesquisa/Conselho Nacional de por pequenas queixas passaram
litativa. A coleta de dados consis- Saúde/Ministério da Saúde (CO- a frequentá-lo menos, demons-
tiu-se em quatro encontros de NEP/CNS/MS) e foi aprovada pelo trando estarem mais autônomos
discussão focal, sendo um encontro Comitê de Ética em Pesquisa do e confiantes. Outros usuários de-
em cada um dos postos. Cabe des- Grupo Hospitalar Conceição, con- monstraram uma melhora e este
tacar que todos os postos do Servi- forme a Resolução 196/96 do CNS. fator possibilitou aos profissionais
ço de Saúde Comunitária do GHC diminuição da medicação que essas
foram convidados a participar da pessoas estavam tomando. Para os
Análise dos resultados sujeitos pesquisados, são mudanças
pesquisa, porém, somente quatro
aceitaram o convite. Após a análise do conteúdo das que a espiritualidade/religiosidade
O tempo para a técnica de gru- discussões, o material foi codifica- faz na vida dos usuários. A seguinte
po focal foi de uma hora, e seguiu do em duas categorias principais: fala exemplifica este aspecto:
um roteiro pré-definido de ques- Influência da espiritualidade/reli- ...como estas pessoas conseguem
tões. O roteiro dos grupos focais foi giosidade sobre a saúde e o Respei- sair deste quadro de mais vulnera-
norteado pelas seguintes questões: to pela religiosidade dos usuários bilidade e saírem fortes, apegadas a
tipo de atividade exercida por eles, entendida como atitude de impar- uma coisa que talvez seja nomeada
como é o atendimento naquele cialidade. A primeira contemplou lá no deus que leva pra algo que vai
posto, como é o trabalho com saúde como a espiritualidade/religiosi- melhorar, uma esperança. (E)
comunitária, perfil dos usuários, se dade dos usuários aparece no aten- Outra influência que a espi-
a espiritualidade/religiosidade apa- dimento, sendo percebidos efeitos ritualidade/religiosidade faz na
rece nos atendimentos, como lidam variados na saúde dessas pessoas. saúde dos usuários, conforme as
com estas questões, possibilidades A segunda referiu-se ao modo discussões nos grupos, refere-se à
ou não de integrar as questões de como os profissionais lidam com participação dos usuários no gru-
espiritualidade/religiosidade no a espiritualidade/religiosidade dos po de meditação, que acontece em
atendimento e se a fé é importante usuários. dois dos postos pesquisados, duas
no processo saúde-doença. vezes por semana. Participam de-
Os grupos focais foram realiza- Influência da espiritualidade/ le muitas pessoas, principalmente
dos em setembro de 2009. O dia e religiosidade sobre a saúde mulheres. Referem que este grupo
horário de cada encontro de dis- Para os profissionais que par- não tem vínculo religioso. Os pro-
cussão foram combinados com a ticiparam dos grupos focais, a es- fissionais destes postos consideram
coordenação do respectivo posto. piritualidade/religiosidade possui que o grupo promove saúde por

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constituir uma autoajuda, servin- nenhuma, aquilo ali vai ser o im- desconsideram o diagnóstico e o
do como espaço de reflexão e de pulso dela...(AE) tratamento de uma patologia por
integralidade, ajudando assim na É destacado nas discussões dos motivos religiosos, deixando de
prevenção. Relatam que houve grupos que a espiritualidade/reli- lado algum cuidado ou tratamen-
uma mudança positiva no estado giosidade pode tornar-se um apoio to. Em certos casos, a religião pode
das pessoas que começaram a par- social para as comunidades mais impedir que os usuários procurem
ticipar deste grupo. carentes. A comunidade consegue o serviço de saúde devido a sua
Para os profissionais, o fato de se unir, pois a igreja é um espaço crença. Foi relatado que os usuá-
os usuários irem até uma igreja ou onde as pessoas conseguem es- rios podem considerar que Deus
conversar com pessoas da mesma tabelecer relações de vínculo, de substitui um tipo de atendimento
religião, desloca o foco da doença, ajuda mútua. Para a população ou que já estão protegidos. Para os
permitindo pensar em outras coisas socialmente fragilizada, pertencer entrevistados, esses são aspectos
e melhorar assim o estado geral. Na a um grupo religioso pode um fa- que mostram que a espiritualidade/
maioria das vezes, a religiosidade/ tor importante de sobrevivência e religiosidade pode prejudicar a pes-
espiritualidade faz bem para as pes- de solução de problemas para os soa. A próxima fala aponta para o
soas tanto mentalmente, porque quais a sociedade não responde. exemplo de um usuário que deixou
consegue encontrar um sentido Para muitos usuários que vivem de procurar o serviço de saúde por
para sua situação, quanto social- sozinhos e sem outra inserção so- causa de sua experiência religiosa:
mente, porque as insere numa rede cial, a relação com essas instituições ...disse ela: eu rezei e vou pra mi-
de relações criadas por seu grupo religiosas ajuda na resposta às suas nha igreja e vou me curar. Ela não
religioso. A fala a seguir relata esta necessidades em saúde, porque te- queria nem confirmar o diagnós-
melhora: ria a quem recorrer. Um relato des- tico e nem mesmo buscar o trata-
...então se ele usou a religião pra ser se apoio social aparece na seguinte mento. (D)
um pilar, pra ele se firmar, acho que fala:
isso repercute muito bem, os efeitos ...muitas vezes o espaço da igreja é Respeito como imparcialidade
colaterais do tratamento muitas ve- um espaço onde as pessoas conse- Nos grupos de discussão focal,
zes são menores em pacientes que guem estabelecer relações de vín- quando os profissionais foram
tem uma religiosidade e espiritua- culo, de ajuda mútua e isso para a questionados sobre como lidam
lidade forte. (RM) comunidade é extremamente sau- com a espiritualidade/religiosi-
As falas dos entrevistados rela- dável. (RAS) dade trazida pelos usuários no
tam que a espiritualidade/religiosi- Porém, para os profissionais atendimento, expressaram atitu-
dade ajuda a fortalecer a liberdade pesquisados, a fé por si própria não des de respeito e de imparcialida-
e a autonomia do sujeito. Mas is- ajuda e a religião pode, às vezes, ser de. Apontaram que não podem
so vai depender da relação que o perigosa, pela dominação e fanatis- desconsiderar as experiências tra-
usuário vai estabelecer com a sua mo que ela pode causar na pessoa, zidas pelos usuários e que precisam
fé, se ela cria dependência ou es- evocando, desse modo, o aspecto estar abertos às crenças valorizadas
timula a subjetivação. Se a expe- dogmático e institucionalizado da por eles. Por isso procuram lidar de
riência religiosa encoraja a assumir experiência religiosa. Podem sur- forma respeitosa e imparcial quan-
hábitos saudáveis, ela vai ser um gir também sentimentos de culpa to à maneira como os usuários en-
fator positivo. Para os sujeitos da e condenação devido à doença. A frentam a doença. A seguinte fala
pesquisa, a fé influencia o processo fala a seguir aponta para isso: exemplifica esta imparcialidade por
saúde-doença, pois a cura vem de ...a questão religiosa de vez en- eles referida:
mecanismos internos do ser huma- quando ela apresenta um lado ...a gente acolhe e tal, mas sempre
no. Na fala a seguir, aparece esta negativo, de prejudicar a pessoa, respeitando a espiritualidade, a
questão: depende do momento que a pessoa crença, a religião, enfim de cada
...não existe medicação, não existe está vivendo. (E) um. Então a gente não se utiliza
profissional da saúde que ajude a Embora tenham ressaltado as- disso e ficamos totalmente impar-
curar uma pessoa, dentro da ciên- pectos benéficos da religiosidade ciais, mesmo que não seja a mesma
cia, a cura para aquela patologia, na vida das pessoas, os entrevista- que a nossa... (AE)
se ela não quiser, então se ela tiver dos mencionaram também que a Os entrevistados apontam tam-
uma fé religiosa, uma espirituali- espiritualidade/religiosidade pode bém para a atitude de escuta, dei-
dade que tenha a ver com religião “atrapalhar”, quando os usuários xando os usuários a vontade para

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falar de suas crenças, com o cuida- rapia que o profissional considera riência religiosa pode ser uma for-
do de não expor as crenças do pró- importante. A fala a seguir é um ma de fortalecê-los e de reforçar se
prio profissional, ficando portanto exemplo: esta experiência é percebida como
imparciais. Relatam que não devem ...mas têm limites, têm coisas que algo que os faz se sentirem melhor.
“discutir sobre religião”, mas aten- tu não pode permitir que seja feito Os entrevistados referiram que
der e escutar profissionalmente as como médica, não posso permitir também é importante colocar no
demandas dos usuários, ou seja, que um diabético não faça uma prontuário estas questões religio-
que preferem “não ficar falando so- dieta sem açúcar, uso de medicação sas que trazem, para que faça parte
bre religião” no momento que estão que ele precisa, só que a gente tem do itinerário terapêutico dos pro-
atendendo o paciente. Escutar os que negociar... (M) fissionais. Outros, ao responderem
usuários que falam de sua crença, Outro ponto destacado nas se é possível integrar as questões de
para os sujeitos da pesquisa, signi- dis­c ussões focais, que mostra a espiritualidade no atendimento, fa-
fica valorizar o seu saber e o modo importância que os profissionais laram que é preciso seguir com o
dele levar a vida. A base desse res- pesquisados dão a sua terapêutica modelo biomédico de atendimen-
peito, segundo os profissionais, é é que, aceitar as crenças dos usuá- to. A seguinte fala exemplifica isso:
que a espiritualidade/religiosidade rios, torna-se uma forma de “cati- Acho que não, usar o que está den-
é inerente ao ser humano, fazendo tro do normal, né, do atendimento.
vá-los” para assim atingir o objetivo
parte de sua cultura. (AE)
de um atendimento humanizado.
Observa-se que o modo de lidar
A fala a seguir demonstra esta ati-
com a espiritualidade/religiosidade
dos pacientes, demonstrado nas fa-
tude: Discussão
...tem casos que ele tem um retorno
las dos profissionais entrevistados, Os profissionais pesquisados
bem bom assim, tu consegue através
é de manter uma postura profis- expressam concepções ambíguas
daquilo ali acessar o paciente, con-
sional de imparcialidade, que para quanto à influência da espiritua-
seguir trazer ele pro teu lado e fazer
eles significa não se envolver com a lidade/religiosidade sobre a saúde
uma boa prática de saúde... (RO/F)
experiência religiosa de quem eles dos usuários, talvez por uma falta
atendem. Para eles, dar importân- A fé e a ciência, para os entre- de preparo e de experiência destes
cia a crença dos usuários implica vistados, aparecem como caminhos profissionais em lidar com esta di-
em se desviar do seu objetivo pro- diferentes, em alguns casos opos- mensão ou também por eles não
fissional de atender sua patologia. tos e em outros complementares entenderem a dimensão religiosa
A fala a seguir demonstra isso: para a saúde, exigindo, nessa úl- em toda a sua extensão. Se distin-
...a gente fica imparcial e não dá tima concepção, uma conjugação guirmos religião de religiosidade,
muita ênfase, procura desviar e das duas formas de lidar com a a primeira refere à organização
voltar pro foco da questão, porque doença. Porém, esta complemen- institucional de ritos e doutrinas,
ela ta aqui, porque isso aqui não tariedade aparece novamente alu- e a espiritualidade/religiosidade
é uma casa de religião... Tem que dindo a “trazer ele pro teu lado”, identifica-se com as experiências
mostrar que são fatos isolados que como mencionado anteriormen- de sentido que o sujeito vivencia.
acontecem... (AE) te. Quando é perguntado se pode São conceitos muito próximos,
A imparcialidade aparece tam- haver integração entre ciência e fé, mas diferentes, que ajudariam a
bém vinculada às decisões sobre um dos profissionais entrevistados entender de outro modo o que foi
o que fazer nos casos em que os expressa o seguinte: referido pelos profissionais, como a
usuários se negam a seguir certo Em alguns momentos tu pode inte- adoção de determinados comporta-
tratamento, fundado em sua vi- grar, até pra pessoa, pro teu resul- mentos que dificultam a aceitação
vência religiosa, e os profissionais tado profissional ser positivo... (E) dos tratamentos ou diagnósticos
comentam que não podem forçar Alguns dos profissionais pes- propostos (como foi aludido nas
a aceitação da terapia. É sugeri- quisados afirmaram que utiliza- entrevistas em relação a compor-
do, então, não interferir na sua riam a espiritualidade/religiosidade tamentos de fanatismo, referindo à
espiritualidade/religiosidade, pois no atendimento, pois para eles é esfera do institucional e dogmático
esta faz parte de sua vida, ajudan- importante não dispensar a crença nas religiões).
do em seu processo de cura. Toda- dos usuários e incentivar que eles Se referirmos à religiosidade
via, é destacada a importância da continuem com sua espiritualidade como dimensão da experiência
negociação com os usuários para para potencializar a cura. Também subjetiva, como modo particular de
eles não deixarem de seguir a te- falaram de identificar se esta expe- entender a saúde e o sofrimento,

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ela pode ser considerada um recur- mento humanizado, se pensarmos os modos em que as pessoas se re-
so da produção de saúde. este como o intercruzamento das lacionam com a vida.
Os membros das camadas po- dimensões biológicas com as de
pulares produzem conhecimentos natureza existencial ou dos saberes Conclusão
a partir de sua religiosidade e a difi- humanísticos7.
culdade dos profissionais é compre- Historicamente, o campo da Os dados demonstram que o
ender a lógica desse conhecimento saúde tem sido marcado por inter- elemento da religiosidade/espiri-
que é diverso do conhecimento venções balizadas por um exercício tualidade, trazido pelos usuários
científico10. do poder-saber técnico, com efeito no atendimento, é respeitado pelos
Na nossa sociedade, só há im- de produção de um outro objeto de profissionais pesquisados, porque
portância no que pode ser baseado intervenção, e não sujeito de rela- tentam partir de uma visão integral
em fatos e em provas empirica- ção. Um outro desprovido de singu- e ampliada de saúde. Mas a única
mente constatáveis. Os pacientes laridade, desejo, saber e história 12. forma de respeito que expressam
trazem preocupações para serem Propõe-se, na atualidade, uma é a imparcialidade, mostrando um
examinadas por profissionais da lógica da intersubjetividade, na respeito sem envolvimento.
saúde, que muitas vezes terão de qual a relação profissional-usuário Ficou evidenciado, no estudo,
recorrer a mecanismos internos empreendida deve ser a relação en- que os profissionais demonstram
destes pacientes. A disposição men- tre indivíduos que se dizem respei- uma preocupação com todas as
tal positiva que a espiritualidade to, como parceiros e como aliados dimensões dos usuários, demons-
traz, pode ser excepcionalmente na construção de si próprios e de trando uma visão humanizada e
terapêutica11. um modo de produção singular da ampla da saúde. Mas não basta ter
Muitas vezes há a possibilidade saúde13. a visão, pois aparece explícito nas
de utilizar essa experiência religiosa Este paradigma difere da lógi- falas um distanciamento entre o
no atendimento, contribuindo para ca de organização do modelo de que eles referem como humaniza-
o processo da cura e da recupera- atenção à saúde pautado na bio- ção e como lidam com a religiosi-
ção. Mas para isso, precisa-se uma medicina, que dificulta a escuta, dade, na prática.
compreensão maior do que a di- o acolhimento e a compreensão No estudo apareceu que a espi-
mensão da religiosidade significa do sentido social do sofrimento ritualidade/religiosidade pode ser
na experiência subjetiva dos usuá- e adoecimento, e afasta-se, des- entendida de forma ambígua pelos
rios e uma correspondente huma- se modo, do componente huma- profissionais que participaram dos
nização dos cuidados em saúde. nista14. grupos focais. Percebe-se, portanto,
Parece que a única atitude a Em contrapartida, a ênfase nos uma incompreensão da espiritua-
que chegam os entrevistados é a sujeitos e no seu modo de se rela- lidade/religiosidade em toda a sua
imparcialidade como forma de res- cionar com a vida (por exemplo, extensão, talvez por falta de prepa-
peito. Em outras palavras, trata-se valorizando suas experiências re- ro ou de uma sensibilidade maior
de um respeito sem envolvimento. ligiosas), pode trazer contribuições por parte dos profissionais para li-
Concordam que é possível integrar para ampliar a compreensão social dar com a dimensão religiosa dos
a fé dos usuários com a clínica, mas da demanda dos usuários e ofertar usuários.
em nenhum momento citam a es- práticas de integralidade em saúde Os dados da pesquisa de-
piritualidade/religiosidade como mais adequadas a essas demandas monstram que é preciso superar
um recurso a ser usado em sua e necessidades. O diálogo entre su- o modelo biomédico para que o
proposta terapêutica. Isso acaba jeitos que se dizem respeito pode atendimento não seja fragmen-
refletindo em um atendimento in- proporcionar elementos nas com- tado e o sujeito seja atendido em
completo, pois não contempla to- preensões mútuas quando se trata, sua totalidade. Embora exista uma
das as dimensões de subjetividade por exemplo, da não-aceitação de abertura à dimensão espiritual dos
dos usuários. um tratamento biomédico por mo- usuários, nota-se a dificuldade dos
Cativar os usuários para a pro- tivos religiosos. entrevistados em valorizar este ele-
posta clínica do profissional ou Portanto, atender os usuários mento como parte de sua terapia.
pensar em apenas integrar ciência de saúde como um ser integral, Demonstram que valorizam uma
e fé, para que o trabalho profis- incluindo, no atendimento, a es- autonomia parcial, pois têm difi-
sional tenha resultados positivos, piritualidade/religiosidade como culdade em compreender a recusa
como alguns profissionais falaram, recurso para a produção de saúde, dos usuários em seguir o tratamen-
não parece promover um atendi- significa valorizar a sua história e to proposto pelo profissional.

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A dimensão religiosa dos usuários na prática do atendimento à saúde: percepção dos profissionais da saúde

Ficou evidenciado que aten- dimensão da experiência subjetiva a experiência religiosa trazida pelos
der de forma humanizada envolve e como agência terapêutica. En- usuários, por meio de um diálogo
considerar todas as dimensões do volve também uma mudança de intersubjetivo entre indivíduos que
usuário, sendo valorizada a espi- paradigma, pois não existe atendi- se dizem respeito na produção de
ritualidade/religiosidade como mento humanizado sem considerar saúde.

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Recebido em 10 de junho de 2010


Aprovado em 11 de agosto de 2010

436 O Mundo da Saúde, São Paulo: 2010;34(4):430-436.

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