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EPÍLOGO

Homens livres pobres e libertos e


o aprendizado da política no Império

Monica Duarte Dantas

[...] só o que queriamos era a Ley da Constituição firme.


[...] esse mesmo Povo de Cor é que é as Forças do Brasil.
(Ofício de Raimundo Gomes Vieira Jutahy ao Major Falcão,
1840)

[...] Raymundo Gomes, homem de cor assaz escura,


acompanhado de nove da sua raça; arrombaram a cadeia
da vila e soltaram os presos criminosos. [...] Era
Raymundo Gomes incapaz e tomar por si uma tal
resolução, posto que por seus hábitos muito próprio para
executá-la. Nascido no Piauhy e filho dessa raça cruzada
de índios e negros de que tratamos, criado no campo entre
o gado que pastorava, prestando a sua faca às vinganças
próprias e alheias, leigo nas letras humanas, apenas
conhecido por alguns assassinatos de que impunemente
vivia, manchado da perversidade dos costumes [...].
(Domingos José Gonçalves de Magalhães, “Memória histórica e
documentada da revolução da província do Maranhão”, 1848)

Desta maneira, descrevia Domingos José Gonçalves de Magalhães - prócer do


romantismo brasileiro e secretário pessoal de Luís Alves de Lima e Silva (mandado para pacificar
o Maranhão) – um dos grandes líderes da Balaiada, senão mesmo a figura de maior destaque na
rebelião que convulsionou a província durante mais de dois anos. Para Magalhães, tal era a figura
que se tornava evidente, para qualquer olhar mais atento, que Gomes não poderia ter agido de seu
próprio talante, sendo óbvio que o vaqueiro era tão somente um “instrumento estúpido de um
cego partido”, no caso o Partido Bemtevi, como eram chamados os liberais maranhenses.
O relato de Magalhães, culpando as brigas faccionais e a estupidez e rusticidade do povo
pelo movimento, foi tão bem acolhido no Império que – mesmo contrariando a política do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro de não tornar públicos relatos de eventos recentes,

Ofício de Raimundo Gomes Vieira Jutahy ao Major Falcão, 10/07/1840, Coleção Caxias, pacote 1, doc.
45, Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, apud Matthias Röhrig Assunção, “‘Sustentar a Constituição e a
Santa Religião Católica, amar a Pátria e o Imperador’. Liberalismo popular e o idéario da Balaiada no
Maranhão” (cap. 8 deste livro).
O ensaio de Magalhães foi originalmente publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (doravante RIHGB), no número do 3º trimestre de 1848. Domingos José Gonçalves de
Magalhães, “Memória histórica e documentada da revolução da província do Maranhão desde 1839 até
1840”, Revista Novos Estudos CEBRAP, n. 23, março de 1989, p. 18.

1
como por exemplo, o movimento de 1817 em Pernambuco – mereceu não só publicação na revista
do Instituto, como um parecer assaz elogioso em que se destacava sua “exposição metodica e
lucida, estylo elegante e correcto, vistas philosophicas e elevadas sobre o estado da civilisação
d’aquella parte do Império taes são as principais qualidade que caracterisam esta nova produção
em prosa do Sr. Dr. Magalhães a quem tanto ja deve a poesia e a litteratura nacional”.1
Gomes, contudo, foi autor de manifestos que demonstravam, ao contrário do alegado pelo
laureado poeta, objetivos próprios (dele e de seus seguidores) a justificar a luta contra o governo
da província.2 A defesa da “Ley da Constituição” implicava a luta pelas “garantias do cidadão”,
a abolição dos cargos de prefeito, subprefeito e comissário, “ficando somente em vigor
as leis gerais e provinciais” que não fossem contrárias à Constituição do Império.3
Raimundo Gomes atacou a cadeia de Manga para soltar seus homens que haviam
sido presos pelo prefeito da vila – com o fim de servirem como recrutas - quando tangiam
gado para seu patrão. Assim, não era à toa que pedisse a abolição dos prefeitos (e afins),
uma vez que sua atuação era identificada com a opressão dos homens pobres e livres,
especialmente por meio do recrutamento arbitrário ou do mau-trato que dispensavam aos
presos; atuação que, segundo Gomes, infringia a Constituição. A Carta do Império,
juntamente com o jovem Pedro II e, finalmente, a religião, eram os pilares que, para os
rebeldes, sustentavam a sociedade, unindo os brasileiros.

1
Sobre a política do IHGB de não publicar relatos que envolvessem pessoas ainda vivas ou eventos
controversos que pudessem acirrar os ânimos dos envolvidos no processo de construção do Estado-
Nacional, e a exceção ao texto de Magalhães, ver Lúcia Maria Paschoal Guimarães, “A percepção dos
fundadores do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”, Ismênia Martins et alli (org.), História e
Cidadania. XIX Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, Humanitas/ FFLCH-USP/ ANPUH,
1998, p. 473-478; “Ata 173, sessão em 22 de julho de 1847”, RIHGB, v. 7, 1847, p. 424-425.
2
Para todas as citações e referências ao movimento da Balaiada, ver o estudo de Matthias Röhrig Assunção,
op. cit., “‘Sustentar a Constituição e a Santa Religião Católica, amar a Pátria e o Imperador’. Liberalismo
popular e o idéario da Balaiada no Maranhão” (cap. 8 deste livro).
3
Segundo Miriam Dolhnikoff, um ano antes da aprovação do Ato Adicional, o então ministro do Império,
o senador Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, já sugeria a criação da figura do prefeito, “medida
necessária para a manutenção da ordem interna, um agente do Executivo, sob as ordens do presidente, com
funções de polícia”. Em decreto de 1835, o ministro da Justiça Antonio Paulino Limpo de Abreu
recomendava às províncias que criassem “Delegados dos Presidentes em todas as povoações”, dando como
exemplo os prefeitos e subprefeitos estabelecidos, naquele mesmo ano, pela Assembléia Provincial de São
Paulo. Contudo, pouco tempo depois, a lei seria revogada “devido à violenta reação das Câmaras
Municipais” paulistas, atitude semelhante à que tiveram alguns municípios do Maranhão com a
promulgação da Lei dos Prefeitos naquela província. Miriam Dolhnikoff, O pacto imperial: origens do
federalismo no Brasil, São Paulo, Globo, 2005, p. 120-123; Monica Duarte Dantas, “Partidos, liberalismo
e poder pessoal: a política no Império do Brasil. Um comentário ao artigo de Jeffrey Needell”, Almanack
Braziliense, n. 10, nov. 2009, p. 47 (www.almanack.usp.br); “Decreto de 9 de Dezembro de 1835. Dá
instrucções aos Presidentes das Provincias para a boa execuação da Lei de 14 de junho de 1831, que marca
as attribuições dos mesmos Presidentes, e de 12 de Agosto de 1834, que reformou alguns artigos da
Constituição do Império”, Coleção das Leis do Império do Brazil (doravante CLIB), parte segunda (Atos
do Executivo), Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1864, p. 138.

2
Ser brasileiro era então, como coloca Matthias Assunção, um sentimento e uma
garantia fundamentais. Para os rebeldes a oposição ao governo provincial representava a
luta pelo direito dos nascidos no país ou, mais ainda, os direitos dos não-brancos,
desrespeitados pelos “cabanos” (conservadores maranhenses) que se encontravam então
no poder. Como que amalgamando suas reivindicações, Gomes pleiteava que não
deveriam existir diferenças entre os cidadãos, fosse com base na cor ou na qualidade,
chegando mesmo a uma elegia da mestiçagem e a um questionamento das diferenças de
tratamento com base na cor, afinal, como escreveu então, a nação brasileira era “composta
de sangue da gentilidade baralhados com sangue da Costa da Africa e dos portugueses”.
Sem dúvida, as demandas dos balaios (auto-proclamados bem-te-vis ou, no caso
de Gomes, “Comandante em Chefe das Forças Bem-te-vis”) ecoavam muitas das
reclamações publicadas nas folhas dos liberais maranhenses (especialmente naquela
intitulada justamente O Bemtevi), contudo, isso não significava – como queria fazer crer
Magalhães – que os rebeldes (ou grande parte deles) estivessem apenas fazendo eco das
plataformas de uma parte da elite da província e, muito menos, que fossem simples
instrumento cego de suas vontades. Como demonstra Assunção, o “ideário dos rebeldes
bem-te-vis mostra a importância do liberalismo popular numa província brasileira. Esse
liberalismo se originou da apropriação do liberalismo das elites e a sua combinação com
elementos da cultura popular regional. Suas características democratizantes e igualitárias,
resultado das experiências políticas do período 1820-40, ameaçavam o conservadorismo
do Segundo Reinado”.
A Balaiada, porém, foi apenas um dos vários movimentos que convulsionaram o
oitocentos brasileiro. Alguns desses movimentos, devido ao seu impacto político,
mereceram maiores estudos por parte da historiografia, caso, por exemplo, das chamadas
“revoltas regenciais” (nas quais se enquadraria a própria Balaiada), ou dos movimentos
que abalaram Pernambuco e áreas de entorno em 1817 e 1824. A Praieira, episódio em
que os liberais “quebram os remos”4, também foi objeto de vários trabalhos. O mesmo já
não se pode dizer da Revolta Liberal (alavancada por parte das elites paulistas e mineiras)
e, menos ainda, de movimentos como a Pedra do Rodeador, a Guerra dos Cabanos, o

4
Sérgio Buarque de Holanda utiliza-se da expressão de Francisco de Paula Sousa e Melo, então presidente
do último gabinete do chamado “quinquênio liberal”, para se referir a 1848 como o ano de virada da política
nacional, que marcaria o “remate do processo tendente à unidade nacional”. Sérgio Buarque de Holanda,
“A herança colonial – sua desagregação”, in idem (org.), História Geral da Civilização Brasileira, São
Paulo, DIFEL, v. 3, p. 15.

3
Ronco da Abelha (ou Guerra dos Marimbondos), o Motim da Carne sem Osso Farinha
sem Caroço (e a Greve dos Ganhadores que o antecedeu), o Quebra-quilos, e o Motim do
Vintém.
Assim, ainda que alguns dos movimentos citados tenham merecido pesquisas mais
aprofundadas, o presente livro, seja em relação a movimentos mais ou menos conhecidos,
busca – acima de tudo – recuperar e aprofundar o entendimento da participação popular
nesses episódios (alguns deles com duração de anos). Finda a leitura dos vários capítulos
que o compõe, é indiscutível que tal participação variou imensamente de movimento para
movimento; em quatro deles a participação da população livre pobre e liberta deu-se por
meio de seu engajamento na rebelião para lutar sob as bandeiras e ordens da elite
responsável por sua deflagração (caso do movimento de 1817, da Confederação do
Equador, da Farroupilha e da Revolta Liberal); em outros seis, aquilo que começara sob
a liderança, em decorrência ou sob inspiração dos discursos de grupos políticos de elite
transformou-se, como no caso da Balaiada, em uma rebelião diríamos – na falta de outro
termo – popular, com a expressão de demandas específicas e a formação de lideranças
saídas de seu próprio seio (situação vivida também no movimento da Pedra do Rodeador
– a se considerar as ponderações feitas mais adiante –, a Guerra dos Cabanos, a
Cabanagem, a Sabinada, e a Praieira); e, finalmente, sedições ou motins em que a
população livre pobre e liberta foi desde o início ator principal dos acontecimentos (a
sedição contra os decretos do registro civil e do censo – conhecida como Ronco da Abelha
ou Guerra dos Marimbondos –, o Quebra-quilos, o Motim da Carne sem Osso Farinha
sem Caroço, e o Motim do Vintém).
Ainda que essa passagem, de movimentos capitaneados pela elite (em que a
população agia sob as ordens de tais lideranças) para sedições eminentemente populares,
não configure um percurso cronologicamente linear – a se pensar, por exemplo, no
momento de eclosão da Farroupilha e da Revolta Liberal, indicando a existência de
cronologias próprias às várias regiões que compunham o Império -, há sem dúvida uma
tendência visível que permite a compreensão da passagem das rebeliões para as sedições
(como foram juridicamente enquadrados os movimentos que ocorreram na segunda
metade do século XIX).
Com isso, não se pretende construir uma linha do tempo dos movimentos, de tal
forma que uma ocorrência se torne caudatária da anterior, mas questionar até que ponto
um aprendizado político da população não se fez concomitantemente à própria formação
do Estado brasileiro e, nesse sentido, levantar a hipótese de que as várias brigas intra-elite

4
(regionais ou provinciais) – que contaram sempre com a população livre pobre e liberta
nas frentes de batalha (senão mesmo na liderança do movimento após sua deflagração) –
permitiram a formação de uma idéia própria da população de direitos, de “garantias do
cidadão” (nos dizeres de Raimundo Gomes), e, portanto, de cidadania. Ainda que uma
vivência de cidadania que, por não se enquadrar nas expectativas das elites políticas, era
de difícil percepção (e compreensão), passando, por vezes, como demonstrações de apego
a um mundo antigo (em que sequer se poderia colocar a questão de direitos).
Marcus Carvalho, em artigo publicado anteriormente, já chamara a atenção para
um aspecto fundamental na formação do Estado nacional brasileiro, qual seja, do impacto
das disputas entre as facções que buscavam definir os rumos do país nascente nas
populações livres pobres, libertas e mesmo escravas, para quem “participar daqueles
momentos de atrito e tensão, empunhando armas, poderia ser uma experiência
transformadora”. Nesse sentido, o autor destaca que ao “empunhar armas em defesa de
seus senhores, patrões, chefes políticos, ou sob o comando de oficiais de primeira ou
segunda linha em guerras externas ou internas [fosse do lado do governo ou contra ele],
os homens advindos da chamada ‘populaça’, podiam aprender muitas coisas em virtude
da situação peculiar em que se encontravam”.5 Havia o próprio aprendizado do manejo
das armas, mas não só. Havia também a “politização conferida pelo serviço”, em
momentos em que “se falava de liberdade, de independência, de direitos do ‘povo’, de
constituição. Claro que esses termos eram reintepretados dentro do prisma pelo qual cada
camada em particular percebia o mundo.”6
O autor descreve, por exemplo, o caso do negro livre Agostinho José Pereira que,
por ocasião da eclosão do movimento de 1817, morava em Recife, no bairro onde ficava
o quartel do batalhão dos Henriques, formado por negros livres e libertos, e que teve
participação marcante nos quadros da rebelião. Anos depois, em 1824, Agostinho
engajou-se na Confederação do Equador. Depois de derrotado o movimento, serviu nas
tropas de primeira linha, sendo enviado para várias partes do país. Em 1839, chegou a
conhecer Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira, quando este estava preso no Rio de
Janeiro, onde Agostinho então servia. Em 1846, foi preso pela polícia, de volta ao Recife,
acusado de comandar uma seita contrária à Igreja Católica. Porém, mais do que isso,
depois de rodar o país, ele voltara à sua cidade natal, onde abriu uma escola para

5
Marcus J. M. de Carvalho, “Negros armados por brancos e suas independências”, in István Jancsó, (org.),
Independência: história e historiografia, São Paulo, Hucitec/ FAPESP, 2005, p. 882, 886.
6
Ibidem, p. 897.

5
alfabetizar negros. “Era chamado de ‘Divino Mestre’ por seus seguidores, que segundo
as autoridades eram mais de trezentos somente no Recife”; e para os quais pregaria sobre
a liberdade dos “morenos”. Em sua defesa, atuou ninguém menos do que o liberal Borges
da Fonseca, que em 1848 tomaria não só parte, como se constituiria como uma das
lideranças do movimento Praieiro junto à população urbana de Recife. Como coloca
Carvalho, “depois de viajar pelo país, de conhecer o líder da Sabinada, voltou como
alfabetizador de negros, falando de liberdade e do Haiti”.7
Nesse sentido – como destacam Carvalho e vários dos autores dos capítulos deste
livro – não parece secundário lembrar, por exemplo, que 1817, a rebelião da Pedra do
Rodeador, a Confederação do Equador, a Guerra dos Cabanos e a Praieira ocorreram em
regiões em grande parte superpostas. Do sul de Pernambuco e norte das Alagoas - a se
pensar apenas em uma das áreas afetadas por esse movimentos - partira a repressão à
1817 e à Confederação do Equador, sendo, tempos depois, foco da resistência imposta
durante três anos pelos cabanos. Local onde Pedro Ivo, fugindo das tropas imperiais,
enfrentou galhardamente o governo de Pedro II; de onde o general Coelho, enviado para
subjugar o restante dos rebeldes praieiros, escreveu a seus superiores, reclamando que um
dos comandados de Pedro Ivo, um antigo rebelde cabano, andava "com a cabeça cheia de
idéias novas encaixadas a força de martelo pelos senhores revolucionários".8
Superposição que também pode ser vista na Bahia, especialmente em sua capital,
considerando-se a Guerra de Independência e a Sabinada (além de uma série de motins e
quarteladas que convulsionaram a cidade, e seus entornos, no Primeiro Reinado e na
Regência). Um acúmulo ou herança de experiências que também deve ser considerada no
caso tanto da Cabanagem, no Pará, quanto na Balaiada. A província do Pará não só foi
definitivamente incorporada ao novo Império mediante o uso da força, como também não
ficou imune aos descontentamentos que levaram à Confederação do Equador; tais
embates, contudo, não resolveram as disputas internas que dividiam as elites provinciais,
disputas essas que se fizeram sentir no restante do Primeiro Reinado e da Regência,
levando inclusive a disputas armadas. Nesse sentido, tanto o movimento que eclodiu no
Pará, como aquele que convulsionou a província do Maranhão em fins da década de 1830,

7Ibidem, p. 900-904, 912.


8
Para todas as citações e referências à Praieira, ver o estudo de Marcus J. M. de Carvalho e Bruno Dornelas
Câmara, “A Rebelião Praieira” (cap. 10 deste livro).

6
devem ser entendidos, como colocou Assunção, como “resultado das experiências
políticas do período 1820-40”.
Tomando-se, assim, a proposição de Carvalho, os diversos embates entre as elites
– em suas ações visando a capitanear ou influenciar os rumos políticos de suas províncias
ou mesmo do Estado nascente – teria proporcionado, nas mais diferentes regiões do país,
vivências singulares àqueles que foram armados para lutar em nome de tais expectativas
ou bandeiras políticas. Ao aprenderem a combater, ao escutarem palavras de ordem que
ressaltavam a legitimidade política dos propósitos daqueles que os engajavam e
comandavam, aprenderam a lutar, eventualmente até a liderar e, paralelamente, a
reinterpretar a experiência da contestação como uma via possível. Assim, ainda que vários
movimentos ocorridos em regiões superpostas não possam ser colocados em uma linha
do tempo de causas e consequências, esse mesmo aprendizado não deve ser colocado de
lado na busca por um entendimento mais profundo das demandas da população livre
pobre e liberta, armada ou não, por direitos; embalados, ao longo do próprio processo de
construção do Estado, nos discursos sobre legitimidade e direitos que fluíam das bocas
tanto das forças legalistas como de parcelas das elites descontentes que, na primeira
metade do século, optaram pelas armas como via de afirmação.
Assim, ao se voltar o foco para a participação da população, e não simplesmente
para os motivos que teriam impulsionado as elites a capitanearem os movimentos ou a
publicizarem seus descontentamentos com a ordem vigente, pouco auxilia a
compartimentação das revoltas em marcos da história política strictu sensu. Dizer, por
exemplo, revoltas regenciais (para se referir aos movimentos que eclodiram entre a
Abdicação e a Maioridade) não só explica pouco, como tende a obscurecer a compreensão
de outras questões que perpassaram, ao longo da primeira metade do século XIX, os
vários momentos de contestação da ordem vigente. Mesmo quando se considera a
população mais pobre, premida a lutar sob ordens alheias ou a combater em nome de seus
interesses mais próximos, acumulava-se uma experiência de contestação que, quando não
envolvia em diferentes episódios uma mesma pessoa, em razão da superposição espacial
dos movimentos, (pode-se aventar) implicava a transmissão de tal vivência a conhecidos
ou mesmo a gerações seguintes.
Esse outro olhar permite então recuperar a experiência acumulada pela população
em sua participação nos diferentes movimentos e ultrapassar, assim, dificuldades
pregressas de entendimento, visíveis em várias interpretações historiográficas e
sociológicas, decorrentes ou bem de tentativas de enquadrar tal ou qual movimento em

7
uma suposta linha de evolução do Antigo Regime rumo à implementação de uma
sociedade plenamente burguesa, ou, mais ainda, como bem lembra Luís Balkar Pinheiro9,
de análises que tomavam estes movimentos como simples prenúncios de um processo
maior que teria como pressuposto, inexorável, a transformação revolucionária da
sociedade (e que, ao não alcançarem tal objetivo, só podiam ser vistos como
necessariamente incompletos ou inconsistentes). A inversão do foco, ao colocar a
participação popular, em cada um dos movimentos, em uma espécie de lupa
historiográfica, permite entender aparentes contradições – dentro e entre os movimentos
–, processo fundamental para que a experiência, expectativas e resoluções de homens
livres pobres e libertos possam ser compreendidas a partir de sua própria inserção social,
de suas realidades e problemas; sem que se confunda tais especificidades com lutas
aguerridas pela manutenção, pura e simplesmente, de um status quo ante ou, mais ainda,
como a defesa de vivências descoladas das transformações mais amplas pelas quais
passava o país. Como parte da sociedade no interior da qual o Estado estava sendo
construído, estes homens se mobilizaram e agiram tendo em vista valores e instrumentos
próprios à sua inserção social, mas também se apropriando de valores e instrumentos
novos que estavam sendo constituídos a partir da organização de um regime que se queria
monárquico, constitucional e representativo.
Assim, ainda que os radicais baianos, que vieram a liderar a Sabinada,
advogassem, entre outras coisas, “maior autonomia para a Bahia, no Império do Brasil”,
condenando a “dominação da aristocracia na sociedade” e exigindo não só “reformas
liberais no sistema legal vigente” como igualdade jurídica entre os homens livres, outro
grupo – que também teve um papel central na eclosão do movimento – pugnava pela
revogação de reformas que pareciam então adequar o país ao mais perfeito liberalismo
europeu (se é que isso um dia existiu). 10 Como mostra Kraay, oficiais do exército
ressentiam-se não só da falta de aumentos e promoções, bem como da redução dos
efetivos, realizada tão logo a regência assumiu o governo, mediante sua substituição pela
nova Guarda Nacional. Essa inovação regencial representou um duro golpe não só nos
efetivos de primeira linha, mas, especialmente, nas milícias que, doravante, deixavam de
existir. Com seu fim, vários dos oficiais foram incorporados à nova Guarda, mas sem que

9
Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro, “Cabanagem: percursos históricos e historiográficos” (cap. 5 deste
livro).
10
Para todas as citações e referências à Sabinada, ver o estudo de Hendrik Kraay, “‘Tão assustadora quanto
inesperada’: A Sabinada baiana, 1837-1838” (cap. 7 deste livro).

8
pudessem manter sua patente. Portanto, em meio a uma rebelião que condenava a
dominação da aristocracia e pugnava pela igualdade jurídica entre os homens, o grupo
dos antigos oficiais de milícia (de regimentos organizados com base na cor) lutava
justamente pela restauração da organização existente ainda no Primeiro Reinado (e que
lançava bases na própria história colonial). Aparente contradição que, recuperadas as
vivências hodiernas, mostra-se uma luta por direitos.
No que tange às contradições ou incompreensões dos motivos que impulsionaram
a população a pegar em armas, a mais flagrante refere-se à chamada Guerra dos
Cabanos.11 Único movimento que teria, de fato, unido livres pobres, libertos, indígenas e
mesmo escravos – questão que será retomada mais adiante –, a Cabanada que
convulsionou Pernambuco e Alagoas durante três anos tinha como leitmotiv a restauração
de Pedro I ao trono. Essa inclusive talvez seja a razão pela qual a Guerra dos Cabanos
tenha sido relegada tanto tempo a uma posição secundária, na historiografia mais
tradicional, em relação ao restante das chamadas “revoltas regenciais”.
Seu maior líder, Vicente Ferreira de Paula, condenava a Regência (governo dos
“jacubinos” que lhes faziam então a guerra) e proclamava defender a santa religião
católica, Pedro I e sua dinastia. Assinava-se, ao escrever para aliados e inimigos,
“Comandante Geral do Imperial Exército de Sua Majestade Imperial Dom Pedro I”, ou
“Comandante de Todas as Matas”.
Assim, a despeito de protagonizado pelos “rústicos brasileiros”, termo que
Vicente de Paula utilizava para se referir a seus seguidores, a luta se dava em nome da
restauração do antigo imperador. Bandeira que, como mostra Carvalho, não deve ser
entendida como cortina de fumaça a esconder outros objetivos menos conhecidos. “Seu
discurso em favor de Pedro I representa a interpretação da gente das matas sobre os atos
do governo provincial, ou seja, da Regência, que declarou guerra contra eles.” Defender
o primeiro imperador significava defender suas terras, seu modo de vida e, ao fim e ao
cabo, sua própria existência.
Segundo o autor, quando, em 1835, Vicente de Paula tentou conseguir anistia para
si e seus seguidores, permissão para que a gente da mata seguisse portando armas, além
de alforrias para os escravos fugidos que comandava, o líder do movimento estava
pleiteando direitos para as gentes “da mata”; uma demanda que indicava que os cabanos

11
Para todas as citações e referências à Cabanada ou Guerra dos Cabanos, ver o estudo de Marcus J. M. de
Carvalho, “Um exército de índios, quilombolas e senhores de engenho contra os ‘jacubinos’: a Cabanada,
1832-1835” (cap. 4 deste livro).

9
almejavam assimilação à sociedade, mas desde que “como homens livres, com terra para
cultivar, matas para uso comunal e habilitados a portar armas.”
Essa manifestação de entendimentos e expectativas próprias que, dentro de um
quadro mais amplo, parece, ao primeiro olhar, contraditória ou de difícil compreensão
também pode ser vista anos antes, na mesma província de Pernambuco. Pedro da Silva
Pedroso, um mulato capitão do Regimento de Armas, condenado anteriormente por sua
participação no movimento de 1817, foi, como mostra Denis Bernardes figura central na
destituição da Junta presidida por Gervásio Pires.12 Pedroso, nesse episódio, foi figura
central para a consecução de objetivos que integravam interesses tanto da Corte do Rio
de Janeiro como de setores das elites pernambucanas, basta dizer que a Junta anterior, foi
substituída por outra, conhecida como “junta dos Matutos”, cuja principal liderança era o
poderoso Morgado do Cabo, grande proprietário e senhor de engenho.
Pedroso, contudo, extrapolou, em suas ações, os interesses da própria elite que
ajudou a colocar no poder, “buscou uma autonomia de poder que ultrapassava suas
atribuições legais e, apoiado por um grande contingente de escravos, ex-escravos,
soldados de cor e da gente pobre do Recife e arredores, ocupou a vila e obrigou a Junta
dos Matutos a buscar refúgio no Cabo”. Mais ainda, chocou até mesmo lideranças liberais
como o próprio frei Caneca: “Podes negar que Pedroso andava em roda da mais vil
canalha desta praça? [...] No dia da festa da Estância, indo à tarde àquela Igreja uns
membros do atual governo, acharam o Pedroso em uma das palhoças, rodeado de pretos
e pardos, comendo e bebendo e ouvindo cantar, com uma negra sentada no seu colo; e
vendo aos provisórios, além de apertar com eles para que tomassem assentos, lhes disse
entre outras parvoíces: Sempre estimei muito esta cor, é a minha gente.”
Os “rústicos brasileiros” (nos dizeres de Vicente de Paula), portanto, ao
responderem às ordens ou reagirem a situações ensejadas por brigas intra-elite acabavam
manifestando então – sob bandeiras as mais diversas – um entendimento específico da
situação, fazendo surgir, por meio de ações e palavras, demandas mais concretas que
diziam então respeito à sua própria condição e vivência, apropriando-se tanto de discursos
como de oportunidades.

12
Para todas as citações e referências relativas à Confederação do Equador e sua conjuntura, ver o estudo
de Denis Antonio de Mendonça Bernardes, “A gente ínfima do povo e outras gentes na Confederação do
Equador” (cap. 3 deste livro).

10
Como mostra Balkar, no caso da Cabanagem, a ocupação da capital e o assassinato
das autoridades teriam aberto para a população, naquele momento, a possibilidade de
novas formas de fazer justiça, doravante uma justiça popular que permitia a expressão
dos problemas vividos por ela – deixando de responder, pura e simplesmente, às
expectativas do grupo de fazendeiros do rio Acará. 13 Tapuios e índios mataram seus
comandantes, assumindo suas fardas e patentes; escravos prenderam seus senhores no
tronco, desferindo-lhes chicotadas; e um grupo de rebeldes que se defrontou com uma
embarcação no meio do rio, recusou-se a seguir a liderança branca que defendeu um dos
embarcados, afirmando que se tratava de um brasileiro como eles, ao que o restante do
grupo respondeu “-Não, não, é um fazendeiro. Morra como os outros!”.
Este último episódio, tanto pela fala da liderança branca quanto pela resposta do
restante dos rebeldes, evoca um componente que aparece em quase todos os movimentos
da primeira metade do século XIX, mas que, como mostram os autores, deve ser
entendido a partir das experiências da população livre pobre e liberta que pegou em
armas.
Elementos de anti-lusitanismo estão obviamente presentes em 1817 e na
Confederação do Equador; mas também aparecem com força na Cabanagem, na
Sabinada, na Balaiada e na Praieira. Considerando-se, porém, que esses movimentos não
partilhavam, necessariamente, dos mesmos objetivos (aflorando em regiões que tinham
histórias bastante particulares), é fundamental passar além do sentimento anti-lusitano e
perceber o que estava, como mostram os autores, por trás dessas manifestações.
Na Balaiada, já em pleno “Regresso”, a demanda da expulsão dos portugueses
juntava-se ao pedido de respeito à Constituição e ao protesto contra as leis passadas pelos
“cabanos” na Assembléia Provincial. Assim, como mostra Assunção, “a oposição entre
portugueses e brasileiros se superpõe e se combina com a dicotomia entre brancos e não-
brancos”, o que dá uma dimensão muito mais incisiva à afirmação de Raymundo Gomes
sobre “as forças desse Brasil”, ou seja, o povo de cor. O desrespeito à igualdade de
direitos dos “cidadões” – portanto, dos livres e libertos -, trazia a ameaça da
reeescravização, ou como colocado em um manifesto balaio anônimo, o perigo de que
cabanos e portuguses queriam “fazer-nos seus escravos”.

13
Para todas as citações e referências à Cabanagem, ver o estudo de Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro,
“Cabanagem: percursos históricos e historiográficos” (cap. 5 deste livro).

11
Esse medo da reescravização e a defesa dos direitos da população (“composta de
sangue da gentilidade baralhados com sangue da Costa da Africa e dos portugueses”) ia,
portanto, muito além de um simples ódio ao português, abrindo a possibilidade, segundo
Assunção, “para a formação de uma consciência de classe ‘para si’ dos produtores livres
e pobres” e a denúncia das “crueldades da Pobreza”.
Durante a Sabinada – que diferentemente do movimento ocorrido no Maranhão,
em que se levantou majoritariamente a população do campo, teve como palco uma das
maiores cidades do Império – também se bateram “os tambores da lusofobia”, com a
acusação aos “portugueses de se enriquecerem à custa dos brasileiros e de conspirarem
contra a rebelião”. Contudo, à medida que o movimento avançava, as ações da população
livre pobre, liberta e mesmo escrava dava contornos distintos ao que inicialmente aparecia
apenas como o ódio ao português. Não é à toa, então, que para o vice-Consul da Inglaterra
a “aparência” estivesse “materialmente mudada desde o início da insurreição e [...] no
presente aparenta mais uma guerra de base racial [war of colour] do que por qualquer
outra razão”. Afirmação que possuía ecos também na liderança do movimento, uma vez
que um editorial do Novo Diário declarava que os inimigos “nos estão fazendo a guerra,
porque são brancos, e na Bahia não deve existir negros, e mulatos, principalmente para
subirem a postos, salvo quem for muito rico, e mudar as opiniões liberais”. Assim, a partir
dos “tambores da lusofobia” e das demandas de certos grupos da cidade, o movimento
abriu para a população a chance de contestar a discriminação que sofria, indicando, como
coloca Kraay, “uma incipiente conscientização de raça e de classe”.
Mesmo no caso da rebelião Praieira, em que o anti-lusitanismo, há muito presente
nos mata-marinheiros que convulsionavam a cidade do Recife, foi transformado em
bandeira política por meio da defesa da nacionalização do comércio a retalho, Carvalho
e Câmara destacam que a medida aparecia como remédio para “corrigir as falhas da
Independência, que pouco trouxera para o homem livre pobre, marginalizado em seu
próprio país”. Neste sentido, o movimento “catalisou inúmeras insatisfações da
população livre pobre, imprensada entre a escravidão e o desemprego”.
Mais de trinta anos antes, o sentimento antiportuguês já era uma realidade em
Pernambuco. Em 6 de março de 1817, a denúncia recebida pelo então governador
apontava para a realização de “reuniões suspeitas, nas quais não se permitia a participação
de súditos portugueses, aludia a ligações maçônicas dos conspiradores e insistia,
especialmente, na existência de um crescente e cada vez mais manifesto sentimento

12
antilusitano partilhado pelos súditos brasileiros da Coroa portuguesa”.14 Ainda que os
principais implicados, que acabaram por liderar a rebelião contra a Coroa, viessem da
parcela mais rica da população, é necessário, como indica Denis Bernardes, perceber que
a “massa popular”, que participou da rebelião na defesa dos interesses das lideranças,
também tinha expectivas próprias. Para além das demandas da elite ou do simples ódio
ao elemento português, “uma parte significativa da população” percebeu que o levante
poderia “dar-lhes alguma igualdade com a gente branca e abastada. Pelo menos uma
igualdade civil”. Não é à toa que o físico-mor tenha registrado em carta que “os cabras,
mulatos e criolos [sic], andavam tão atrevidos que diziam éramos todos iguais, e não
haviam de casar, senão [com] brancas, das melhores”. A população que lutou sob as
ordens do novo governo teria buscado, então, dar um “conteúdo de possível e efetiva
igualdade ao igualitarismo teórico da república”, visando a uma igualdade que não
procurava apenas ultrapassar as diferenças entre nascidos aquém e além mar, mas também
aquelas que diziam respeito a tratamentos distintos pautados pela origem “étnica e
social”.
Alguns anos depois, já no período do pós-Independência e de reação às políticas
do primeiro imperador, especialmente a dissolução da Assembléia Constituinte e a
outorga da Carta, o sentimento antiportuguês se materializou em “manifestações de
violência, seja individual seja coletiva”. Porém, também nessa ocasião o ódio ao antigo
colonizador deu vazão a ações de outras naturezas. Por ocasião do bloqueio ao porto do
Recife, e do ataque ao Posto do Registro do porto, com a morte dos que ali trabalhavam,
um major do batalhão dos homens pardos – Emiliano Felipe Benício Munducuru - reuniu
sua tropa para que se vingassem do ocorrido. “Sua idéia era a de fazer um ataque ao bairro
comercial do Recife, composto em maior parte de comerciantes portugueses.” Ainda que
o ataque acabasse frustrado pela interferência de outro major dos pretos, as ações que
antecederam a frustrada vingança demonstram que havia muito mais em jogo do que
apenas o sentimento antiportuguês. O major Munducuru, no dia previsto para o ataque,
fez uma proclamação para a tropa reunida, e em seguida distribuiu uma quadra impressa
com os seguintes dizeres: “Qual eu imito a Cristóvão/ Esse imortal haitiano/ Eia! imitai
a seu povo/ O meu povo soberano”. Como mostra Bernardes, ainda que seu alvo principal
fossem os “portugueses suspeitos de apoiarem o bloqueio do Recife”, sua “intenção era

14
Para todas as citações e referências ao movimento de 1817, ver o estudo de Denis Antonio de Mendonça
Bernardes, “1817” (cap. 1 deste livro).

13
de saque e morte sobre a população branca”. Episódio ilustrativo de que as tensões e
embates políticos em jogo acabaram por deixar emergir “uma radical luta social e étnica”;
a ponto de o próprio general Francisco de Lima e Silva, que comandou as tropas que
derrotaram os confederados, ao comparar o movimento de 1817 com aquele que acabava
de ser sufocado, destacar que “ainda mais, naquela época os povos eram obedientes, e
ainda não se lhes tinha pregado com Constituição, liberdade, soberania popular, e outras
doutrinas semelhantes, com que se iludem as pessoas incautas, previnindo-as contra as
legítimas Autoridades, por mais justo e liberal que seja o seu proceder”.15
Neste sentido, como coloca Balkar ao discutir a participação da população na
Cabanagem, é necessário destacar que os vários grupos que participaram da rebelião
possuíam “uma compreensão própria tanto do movimento quanto das suas ações,
manifestando noções legitimadoras e auto-conscientes, o que os levava a canalizar seus
protestos, entabulando ações de violência física contra alvos que nada tinham de
aleatórios”. A população teria, então, reinterpretado o nativismo das elites, passando a
identificar, por exemplo, portugueses e fazendeiros e, desta forma, a dirigir suas ações
para “oposições intra-muros, onde, de fato, as estruturas de poder e submissão eram,
muitas vezes, percebidas com maior ênfase”.
A denúncia dos balaios das “crueldades da Pobreza” – uma vez que os “povos”
estavam “desesperados por se verem constrangidos da sua mesma Nação sem poderem
trabalhar as suas Famílias ao desemparo seus Filhos morrendo seus Parentes suas Casas
os Inimigo tocam fogo as suas Roças arrancam os Legumes” – lembrava então a situação
de grande parte dos grupos rebelados nas várias províncias, inclusive daqueles que diziam
pugnar pela volta do imperador. Afinal, os cabanos de Pernambuco e Alagoas, desde o
momento em que o movimento de elite explodiu, passaram a ser expulsos de suas terras,
ameaçados de recrutamento, sofrendo uma guerra que incluía a destruição sistemática de
suas lavouras.
A partir desse olhar, que atenta então para a vivência das populações livres pobres
e libertas, é possível perceber a existência de semelhanças mais profundas do que deixam
perceber as análises centradas apenas nas diferentes “bandeiras” levantadas nas diversas
ocasiões; como a volta do primeiro imperador, ou a necessidade de defender a
Constituição e o imperador menino (que se encontraria sob coação das lideranças da

15 Denis Bernardes, op. cit..

14
Corte), ou ainda a maior autonomia da província (diante, no caso, do perigo da eleição do
segundo regente). Nesse sentido, ainda que sob diferentes bordões, é necessário assumir
que praticamente todos os movimentos propunham (ou esperavam) alterações na própria
sociedade em que estavam inseridos os rebeldes.
Exceção, neste ponto, é o movimento da Pedra do Rodeador. 16 Como mostra
Palacios, para a região de Bonitos, um “santuário de populações expulsas” (área de
fronteira, ainda não dominada pela lógica da plantation), haviam migrado, desde o
começo do século XIX, homens livres pobres acuados pelas campanhas de recrutamento
e repressão a desertores promovidas pelo governador da capitania. “No Rodeador se
formara então uma típica comunidade camponesa, dedicada aos plantios que
caracterizavam a agricultura desses segmentos, sobretudo roçados de mandioca e feijão,
socialmente organizada de acordo com projetos partilhados pela sociedade em geral e
classicamente isolada”.
A convulsão gerada pelo movimento de 1817 fez então crescer a comunidade,
com a migração de novos desertores e populações submetidas ao recrutamento, de caráter
repressivo, promovidos a partir de 1818. “Para os fugitivos, a comunidade do Rodeador
não tinha apenas a vantagem de estar situada numa serra de difícil acesso, mas nela
encontravam uma perfeita identidade de propósitos, pois aí se reuniam pessoas que
acreditavam ‘que as milicias e Tropas se acabarão logo que aparecesse El Rey Dom
Sebastião’”. Assim, fuga do aparato repressivo, expropriação de terras e promessas
futuras advindas do desencantamento do Grande Encoberto, levaram aqueles homens
livres pobres a (re)fundar uma comunidade na qual podiam plantar suas roças, manter
suas famílias, e esperar pela resolução dos males que ora afligiam a terra (ou quem sabe
a capitania); mas isso tudo, como fica claro, longe dos olhos e dos braços não só dos
grande proprietários, mas também e, fundamentalmente, do Estado. Nesse sentido,
segundo Guillermo Palacios, a “quebra do isolamento foi fatal”.
Neste aspecto, portanto, a conjuntura da Pedra do Rodeador diferencia-se
radicalmente da experiência das outras rebeliões ocorridas na primeira metade do século.
Mesmo que Vicente Ferreira de Paula tenha se internado nas matas e lá formado uma
comunidade, não o fez sem antes buscar assegurar sua assimilação e dos seus à sociedade;

16
Para todas as citações e referências ao movimento da Pedra do Rodeador, ver o estudo de Guillermo
Palacios, “Uma nova expedição ao Reino da Pedra Encantada do Rodeador: Pernambuco, 1820” (cap. 2
deste livro).

15
não sem antes lutar durante três anos para tentar garantir que o Estado lhes facultaria essa
condição.
A se considerar os percursos dos diferentes movimentos, é forçoso reconhecer que
em nenhum deles a maioria da população livre pobre e liberta – ao menos – buscou se
refugiar em áreas de fronteira, procurando reestabelecer formas de vida que estavam
sendo ameaçadas, fosse pelas disputas faccionais, fosse mesmo por conjunturas
econômicas (de maior ou menor duração). Ao contrário, ocuparam vilas e até mesmo
capitais de província, e lutaram em suas regiões de morada contra as tropas mandadas
para lhes reprimir. Em alguns casos, líderes saídos de suas fileiras chegaram mesmo a
escrever para as autoridades defendendo suas bandeiras, a legitimar suas demandas por
meio de representações redigidas por conselhos eleitos, a pedir alterações de leis que
tumultuavam seu cotidiano, ou mesmo a pleitear mudanças na forma de organização da
sociedade (e até do Estado).
Em 1851-52, o protesto contra os decretos imperiais, que estipulavam o registro
civil de nascimentos e óbitos e mandavam organizar o primeiro censo nacional, foi capaz
de convulsionar – com maior ou menor impacto – as províncias de Pernambuco, Paraíba,
Alagoas, Sergipe e Ceará; movimento que, a depender da região levantada, ficou
conhecido como Ronco da Abelha ou Guerra dos Marimbondos. Para garantir que a lei
não seria cumprida, a população rasgou editais, ocupou vilas (impedindo que fossem lidas
as novas determinações do governo), e até mesmo escreveu às autoridades,
“percorrendo”, segundo Maria Luiza Oliveira, “os caminhos oficiais da burocracia”.17
Na invasão das vilas, soltavam os presos e, porventura, apoderavam-se de
pertences das autoridades, mas, atente-se, soltavam apenas os presos não sentenciados e
os recrutas (“alvo daquela que era percebida como sendo a maior injustiça de todas, o
recrutamento obrigatório”); bem como só levavam consigo os livros do Juizado de Paz,
as caixas de cordas e as palmatórias (“assim não seriam nem registrados como escravos,
nem tratados como tal”). Como mostra Oliveira, buscavam apenas impedir a execução
dos decretos, tanto assim que às exortações do juiz municipal de uma das vilas
responderam “obedecêmo-lo, mas não a execução da lei do Cativeiro”. Para os sediciosos,

17
Para todas as citações e referências à sedição contra os decretos do registro civil e do censo (também
conhecida como Ronco da Abelha ou Guerra dos Marimbondos), ver o estudo de Maria Luiza Ferreira de
Oliveira, “Resistência popular contra o Decreto 798 ou a ‘lei do cativeiro’: Pernambuco, Paraíba, Alagoas,
Sergipe, Ceará, 1851-1852” (cap. 11 deste livro).

16
seu fim era “escravizar a pobreza”, motivando-lhes “gritos aterradores de morram os
guabirus e o seu governo que confeccionaram tão temerária lei".
Alguns anos depois, em outra província do Império, novamente a população se
antagonizaria com uma autoridade governamental, mas desta vez protestavam contra o
presidente da província da Bahia e em defesa de uma postura aprovada pela Câmara
Municipal de Salvador, que visava ao controle do preço da farinha de mandioca. A
despeito do início singular do protesto, rapidamente o movimento se transformou em uma
manifestação contra a carestia, em que se gritava que a população queria “carne sem osso
e farinha sem caroço”.18 Os manifestantes não só davam “vivas aos vereadores e ao povo,
e gritando foras ao presidente”, como protestavam que “seus direitos de cidadão estavam
sendo ofendidos”. As demandas da população encontravam eco em cartas redigidas por
um dos vereadores suspensos que não só atacava publicamente o presidente da província,
mas reivindicava mais respeito à “segurança e direitos individuais, garantidos pela
Constituição política do Império”.
Como destaca João Reis, “o povo rebelde contava com a proteção da câmara, mas
ele acreditava que também podia protegê-la”. Nesse sentido, é extremamente
significativo o fato de que os vereadores de 1858 haviam sido escolhidos por 27.750
votos, uma proporção impressionante da população da cidade se se considerar que, na
época, Salvador contava com algo entre 80 e 90 mil habitantes, somados homens e
mulheres, crianças e adultos, livres, libertos e escravos.
Ambos os movimentos remetem então para vivências particulares da população
brasileira na década de 1850. Uma vivência que partia da noção de direitos, o direito, no
primeiro caso, de ser reconhecido e tratado como livre, reconhecimento que não se
colocava contrariamente às autoridades, mas sim a uma lei emanada de um partido
específico. Não queriam a subversão da ordem social, mas apenas a garantia do que lhes
era devido; mais ainda recorriam, porventura, às próprias instituições do Estado para se
fazer ouvir. No caso do chamado Motim da Carne sem Osso Farinha sem Caroço, a
garantia dos direitos passava inclusive pela relação entre a população e seus
representantes legítimos, uma relação que deve ser entendida no bojo de um “processo
complexo de vivência da cidadania”, de construção política dos interesses daqueles que
podiam se sentir representados por meio das eleições.

18
Para todas as citações e referências ao Motim da Carne sem Osso Farinha sem Caroço, ver o estudo de
João José Reis, “Quem manda em Salvador? Governo local e conflito social na greve de 1857 e no protesto
de 1858 na Bahia” (cap. 12 deste livro).

17
Não há porque acreditar que esse sentimento de pertença à sociedade (de
participação no Estado), na verdade, essa vivência da cidadania, tenha surgido por
milagre na década de 1850. Ao contrário, tal vivência construíu-se conjuntamente com a
própria construção do Estado-nacional (tão cheia de percalços, mas ainda assim
lentamente efetivada a partir da década de 1820). Com isso, não se pretende dizer que a
construção do Estado brasileiro pode ser identificada com um processo de
reconhecimento geral dos direitos da população que aqui habitava, fato que a
historiografia (e mesmo o senso comum) já deixou claro ser inexato (e, em certas
questões, até absurdo), mas problematizar a vivência da população em relação a essa
construção.
Para Ivan de Andrade Vellasco, por “mais limitadas que possam ter sido as
possibilidades de fazer valer o preceito da igualdade diante da lei”, o “exercício de
direitos”, por parte dos homens comuns, “não estiveram ausentes nem foram de todo
desprezíveis em nossa formação social”. Nesse sentido, em seu estudo sobre
criminalidade e justiça nas Minas Gerais oitocentistas, o autor destaca que é necessário
questionar a imagem do Judiciário – um dos poderes previstos na Constituição e, portanto,
um dos braços do próprio Estado – como uma instância descolada da população, ou seja,
como simplesmente “uma fachada legal para o domínio e controle estatal em consonância
com os interesses políticos e econômicos dos potentados locais”.19
Ao estudar os processos criminais, Vellasco percebeu que desde a criação da
figura do juiz de paz, em 1827, houve um crescimento no número de processos,
especialmente daqueles abertos em razão de queixas feitas pela população livre pobre e
liberta. Nesse sentido, sem relevar as reclamações (registradas nas fontes da época e já
discutidas na historiografia) acerca da atuação de parte (ou grande parte) dos juízes de
paz como régulos locais, é fundamental perceber que em muitas freguesias distantes esses
magistrados leigos e eleitos localmente constituíram-se, provavelmente, nas primeiras
autoridades governamentais a chegar nessas paragens. Assim, levar suas queixas ao juiz
de paz (ou, depois, às outras autoridades constituídas pelo Código de Processo e por sua
reforma) significava, portanto, não optar pela resolução privada de conflitos, implicando,
dessa forma, o reconhecimento da interferência do Estado como um valor eventualmente
positivo. Sem dúvida, como mostra o autor, muitas vezes, as expectativas da população

Ivan de Andrade Vellasco, As seduções da ordem: violência, criminalidade e administração da justiça –


19

Minas Gerais, século 19, Bauru/ São Paulo, EDUSC/ ANPOCS, 2004, p. 25, 21.

18
em relação ao Estado, “pareciam girar menos em torno da imposição de penas e
reparação, do que da possibilidade de tornar público um conflito, pelo seu registro na
arena jurídica, e sinalizar ao oponente uma disposição de enfrentá-lo legalmente e
legitimar sua oposição em relação ao outro”.20
Esse processo de reconhecimento e aderência, em certas situações ao menos, a um
dos braços do Estado nascente, só teria sido possível, consoante Vellasco, porque, ao
correr do século, o próprio Estado – visando à construção de sua legitimidade – teria sido
forçado a se constituir como “arena legítima cujos procedimentos pudessem ser tomados
como razoavelmente neutros e universais”, apoiando-se, para isso, em um discurso
normativo, impessoal e, é claro, universalizante.21
Com isso não se pretende dizer que o recurso da população ao Judiciário e,
portanto, ao Estado, fosse um processo tranquilo, ao contrário, implicava em grande parte
das vezes vencer “óbices de toda natureza”. Mas, ao optarem por fazê-lo, por enfrentarem
as dificuldades advindas, entre outras coisas, de uma nova ordem que lhes era “secreta
pela impenetrabilidade de suas regras e linguagens”, além obviamente das próprias
pressões sócio-econômicas a que estavam sujeitos, “demonstraram estar atentos a certos
aspectos e ações do poder, e interpretaram, à sua maneira, o que era a justiça e qual o
papel de seus funcionários”.22
A questão então da “sedução da ordem”, ou seja, do entendimento de que poderes
do Estado poderiam até ser entendidos pela população livre pobre e liberta como
instâncias de mediação que lhes permitiam uma forma de “participação na ordem”, pode
ser estendida para uma experiência mais ampla em relação ao próprio Estado em
construção. Assim, seria necessário ponderar que, talvez, a “mudança de atitudes e
disposições mentais”, a partir da Independência, “com relação às perspectivas da
administração pública por parte da elite letrada dominante”, também tenham “contagiado,
em alguma medida, os estratos populares situados abaixo na hierarquia social”.23
Obviamente há que se ponderar que a experiência e as expectativas em relação à
construção da nova ordem afetavam de forma radicalmente diversa os diferentes extratos

20
Vellasco destaca o volume impressionante de processos abertos a partir de queixas apresentadas pela
própria população, e não em razão da denúncia das autoridades, ressaltando a predominância de ações
decorrentes de crimes interpessoais, ou seja, “crimes que tipificam o acesso à justiça por parte daqueles que
apresentam queixas as mais variadas, relacionadas aos conflitos cotidianos”. Ibidem, p. 112, 169, 180.
21
Ibidem, p. 187. Talvez mais visível na área criminal, uma vez que os códigos, penal e processual, foram
justamente os primeiros a serem aprovados no Império.
22
Ibidem, p. 164-165.
23
Ibidem, p. 22.

19
sociais, sendo muito mais presentes para aqueles que possuíam condições, por exemplo,
de alcançar os novos postos criados pela burocracia imperial ou de serem eleitos para as
diferentes instâncias de representação política. Contudo, mais uma vez é preciso pensar
os dois lados dessa moeda. Se os Juizados de Paz permitiam, como coloca Carvalho, a
assimilação de novas elites ao corpo do Estado – afinal sua jurisdição era muito menor
que a dos capitães-mores e, eventualmente, das próprias câmaras (a depender do tamanho
dos municípios)24 –, por outro, como coloca Vellasco, a criação de uma autoridade para
cada freguesia do Império também trazia a possibilidade de adesão a uma ordem pública
de resolução de conflitos. Mais ainda, uma vez que tal autoridade era escolhida por
eleições, mesmo que se considere inevitavelmente as pressões dos potentados no processo
de escolha do futuro ocupante do cargo, o próprio pleito implicava a participação de todos
aqueles habilitados legalmente para isso.
Acerca dessa questão faz-se necessário recuperar dois aspectos da sociedade
imperial. Primeiramente, a questão da extensão da cidadania política conforme
estabelecida na Carta de 1824. As eleições no Império – para escolha de deputados e
senadores – era feita em duas etapas. Na primeira, votantes escolhiam eleitores, e estes,
por sua vez, sufragavam os representantes da nação. Poderiam ser votantes, ou seja,
poderiam participar das eleições primárias, todos os homens, livres e libertos, maiores de
25 anos (ou 21 anos se casados) com renda anual de 100$000 réis. Já para ser eleitor era
necessário ser homem livre, excluindo-se, nessa etapa, os libertos, e possuir renda
equivalente ao dobro daquela exigida aos votantes.
No caso dos Juizados de Paz e das Câmaras, contudo, a eleição, conforme
estabelecido por decreto de 1828, era direta, cabendo ao conjunto dos votantes sufragar
os vereadores das câmaras e os juízes de paz (titulares e suplentes). Contudo, ainda que
o voto fosse censitário, as exigências estabelecidas pela Constituição permitiam uma
ampla participação popular (ao menos dos homens livres e libertos – no caso das
assembléias primárias – com a idade mínima prevista). Como coloca Maria Odila Leite
da Silva Dias, mesmo depois de 1846, quando o valor mínimo foi atualizado pelo padrão
prata, subindo a renda exigida aos votantes para 200$000 réis, a “quantia [era] irrisória
para a época”, sem alterar, então, os índices de participação.25

24
Marcus J. M. de Carvalho, “Um exército de índios, quilombolas e senhores de engenho”, op. cit..
25
Maria Odila Leite da Silva Dias, “Sociabilidades sem história: votantes pobres no Império, 1824-1881”,
in Marcos Cezar Freitas (org.), Historiografia brasileira em perspectiva, São Paulo, Contexto, 1998, p. 68.

20
No que tange à cidadania política, outro fator que também deve ser levado em
conta é a frequência das eleições. Era necessário votar em juízes e vereadores, mas
também escolher os eleitores que iriam sufragar nos pleitos para a Câmara de Deputados
do Império, o Senado e, a partir de 1835, as Assembléias Provinciais26. Como indica Neila
Nunes, em estudo sobre Campos dos Goytacazes (província do Rio de Janeiro), de 1870
a 1889, à exceção de três anos, houve eleições em todos os outros, isso quando não havia
mais de um pleito por ano. Em 1872, por exemplo, votantes sufragaram diretamente os
nomes dos juízes de paz das freguesias e também vereadores para a Câmara, votantes se
reuniram para escolher eleitores, enquanto os eleitores participaram em pleitos distintos
para a escolha de deputados à Assembléia Provincial e para a Câmara dos Deputados,
além de duas outras ocasiões em que votaram em nomes para representante ao Senado
pela província do Rio de Janeiro27. Isso, sem contar, como aponta a própria autora, o
próprio processo de “qualificação de votantes”, o que implicava que antes de cada escolha
de eleitores – feitas todas as vezes que deveriam ser sufragados deputados provinciais e
gerais ou senadores –, todos os possíveis votantes da freguesia deveriam se apresentar
diante de uma mesa para provar que preenchiam os requisitos necessários para
participarem das assembléias primárias. 28 Assim, segundo Nunes, levando-se em

Para uma comparação entre a porcentagem de votantes/ eleitores no Brasil e em outros países no século
XIX – entre eles a Inglaterra –, ver José Murilo de Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, 4ª ed.,
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.
26
Antes da aprovação do Ato Adicional, cabia aos eleitores escolher os representantes dos Conselhos
Gerais de Província.
27
“O grande número de eleições explica-se por numerosos fatores. Havia casos em que em um mesmo
município ou distrito eleitoral se realizavam duas eleições por ano. Como o Senado era uma câmara
vitalícia, as votações só aconteciam quando um de seus membros morria. Surgida a vaga, logo eram
convocados os eleitores para a escolha de um novo senador, e, por conseguinte, a ocorrência de mais de um
pleito por ano não era incomum. [...] A Câmara Municipal, Assembléia Geral e Assembléia Provincial
poderiam passar por situação semelhante, porque, não havendo a figura do suplente, sempre que
desocupava um cargo de vereador, deputado provincial ou deputado geral, o que acontecia por motivos
diversos (transferência de cargo, morte, etc.), uma eleição especial era convocada para o preenchimento da
vaga correspondente”. Os mandatos dos juízes de paz, vereadores e deputados imperiais eram de quatro
anos, enquanto dos deputados às Assembléias Provinciais, de dois anos, mas os “pleitos extraordinários
para a Assembléia Geral [para a escolha dos deputados] eram frequentes, em função de atos de dissolução
da câmara previstos pela legislação e operacionalizados pelos mecanismo inerentes ao sistema parlamentar
em vigor”. Neila Ferraz Moreira Nunes, “A experiência eleitoral em Campos dos Goytacazes (1870-1889):
freqüência eleitoral e perfil da população votante”, DADOS – Revistas de Ciências Sociais, v. 46, n. 2,
2003, p. 314-316.
28
Esse sistema de qualificação de votantes valeu até 1875, quando uma nova lei eleitoral instituiu o título
de qualificação de votante. Sobre as leis eleitorais do Império e suas alterações ao longo do período, ver
Miriam Dolhnikoff, “Representação na monarquia brasileira”. Neste mesmo artigo, a autora pondera que –
nas eleições feitas em duas etapas, caso da escolha de representantes para as Assembléias Provinciais, a
Câmara dos Deputados e o Senado – mesmo que não se possa considerar como equivalentes as
participações de votantes e eleitores, uma vez que a participação nas assembléias primárias seria

21
consideração o processo de qualificação de votantes, é possível “concluir que os eventos
eleitorais foram uma constante na vida do cidadão brasileiro durante o Império”.29
Tais ponderações não devem, obviamente, nos levar a inverter completamente as
várias interpretações acerca da participação da população nos pleitos e, mais ainda,
esquecer das frequentes acusações acerca da falsificação dos resultados eleitorais, fruto
de pressões e fraudes. Contudo, vale lembrar, por exemplo, que no Motim da Carne sem
Osso Farinha sem Caroço, população e vereadores, como coloca Reis, consideravam que
tinham a obrigação de se defenderem mutuamente; e, mais ainda, não se pode esquecer
dos dados trazidos pelo historiador quanto à participação popular no processo de escolha
de seus representantes na Câmara, eleita em 1858. Mesmo que se considere a projeção
mais dilatada da população da cidade (em torno de 90 mil habitantes), a participação teria
ficado em torno de 30% do total, total este que incluía não só as mulheres, mas também
os escravos.
Estudos recentes mostram que, partindo-se de documentos de época que trazem
informações acerca dos rendimentos de variados setores da população, cocheiros,
copeiros e cozinheiros, jardineiros e lavradores, recebiam em torno de 200 a 400 mil réis
anuais, o que os habilitava não só a participar como votantes, mas até mesmo como
eleitores. 30 Neila Nunes atenta para o fato de que na freguesia menos urbanizada do
município de Campos (entenda-se uma área eminentemente rural) é extremamente
representativa a participação, como votantes, de trabalhadores “ligados à agricultura,
pecuária e atividades extrativas”, alcançando, se somados os lavradores (diferenciados
pela autora dos proprietários e fazendeiros), 75% do total dos participantes no pleito (com
destaque ainda, dentre o total, para uma parcela significativa de analfabetos).31
Nesse ponto, mesmo considerando a heterogeneidade da participação em vários
dos movimentos, vale retomar brevemente algumas observações dos autores do livro.
Luís Balkar Pinheiro, partindo das fontes carcerárias relativas à repressão da Cabanagem,
mostra ser necessário questionar a visão tradicional “que identificava os rebeldes como
turbas espontâneas constituídas prioritariamente por bandos de miseráveis e
‘desqualificados’”, uma vez que, “na maioria dos casos analisados, os grupos rebeldes

basicamente de legitimação, ainda assim é fundamental reconhecer que “o voto de primeiro grau era uma
forma de incluir setores mais amplos da população no jogo político”. Miriam Dolhnikoff, “Representação
na monarquia brasileira”, Almanack Braziliense, n. 9, maio de 2009, p. 44 (www.almanack.usp.br).
29 Neila Nunes, “A experiência eleitoral em Campos dos Goytacazes”, op. cit., p. 316.
30
Miriam Dolhnikoff, “Representação na monarquia brasileira”, op.cit., p. 44.
31 Neila Nunes, “A experiência eleitoral em Campos dos Goytacazes”, op. cit., p. 327-328, 330-331.

22
foram formados por pessoas que tinham moradia fixa e respondiam por algum ofício
(ocupação)”; eram lavradores, soldados e marinheiros, carpinteiros, alfaiates, sapateiros
e pescadores.
A se considerar, como apontado por Nunes, a significativa participação, nas
assembléias primárias, da população livre pobre e liberta em freguesias eminentemente
rurais – constatação que tem eco, já na década de 1840, nas informações apresentadas no
processo de qualificação de votantes realizado em um município baiano dedicado
primordialmente à pecuária e à produção de subsistência, onde uma série de homens
designados como vaqueiros estavam aptos a escolher os eleitores32 –, há que se aventar a
hipótese de que parte dos “peões”, ou “cavalarianos”, que lutaram sob o comando dos
chefes farroupilhas também alcançasse o requisito necessário estabelecido pelo
Constituição.33
No caso da Sabinada, as próprias atas da Câmara – que proclamavam as bandeiras
do movimento rebelde – teriam sido assinadas não só por oficiais do exército e das
extintas milícias, como também por empregados públicos e artesãos. A presença dos
artesãos também pode ser verificada nas indefectíveis listas de prisioneiros, em que
grande parte era formada de carpinteiros e artesãos de outras especialidades. As próprias
folhas que condenaram o movimento reforçavam a presença desse grupo social entre os
rebelados, recomendando que “todos esses pedreiros, calafates e carpinas” presos fossem
forçados a “limpar os entulhos resultantes da batalha”. A liderança e participação dos
oficiais das extintas milícias também deve ser levada em consideração. Como mostra
Kraay, tratava-se de uma população de cor que foi assimilada à Guarda Nacional, mas
que se ressentiu da perda da condição de oficiais, pois, ainda que admitidos à nova
Guarda, não conseguiram ser eleitos para os postos em questão. O que não pode ser
esquecido é que para a Guarda Nacional, no caso das capitais do Rio de Janeiro, Bahia,
Pernambuco e Maranhão, só eram admitidos os cidadãos que preenchessem os requisitos
necessários para serem eleitores e, no restante do país, aqueles habilitados a serem
votantes. Em suma, não só grande parte da população descontente estava apta a votar nas
eleições primárias, como alcançava até mesmo as exigências constitucionais para ser
escolhido eleitor.

32
Monica Duarte Dantas, Fronteiras movediças: a comarca de Itapicuru e a formação do arraial de Canudos,
São Paulo, Hucitec/ FAPESP, 2007, p. 61-64.
33
Para todas as citações e referências à Farroupilha, ver o estudo de César Augusto Barcellos Guazzelli,
“Libertos, gaúchos, peões livres e a Guerra dos Farrapos” (cap. 6 deste livro).

23
Mesmo que a Revolta Liberal – que explodiu nas províncias de São Paulo e Minas
Gerais, em 1842 – seja radicalmente distinta da rebelião ocorrida em Salvador em 1837,
e que, como coloca Erik Hörner, seja absurdo tentar recuperá-la como um movimento
que encampasse os interesses de homens livres pobres, ainda assim destaca que sem um
contingente “popular” os debates travados nas Assembléias Provinciais nunca teriam
chegado ao campo de batalha.34 E, para isso, a participação dos guardas nacionais foi
fundamental; mesmo que tenham lutado sob as ordens, e bandeiras, de parte das elites
paulistas e mineiras, o autor relembra que se os cidadãos em geral “possuíam meios
minimamente eficientes de burlar o recrutamento”, não seria impossível também se
“furtarem do risco existente na adesão a um movimento rebelde”.
Hörner também destaca que o valor de 100$000 réis, necessário para participar
tanto das eleições primárias quanto da Guarda, era baixo o suficiente para permitir à
instituição a incorporação de um grande número de pequenos produtores, lavradores e
trabalhadores urbanos. Se os guardas nacionais das províncias de Minas Gerais e São
Paulo lutavam sob a justificativa da “preservação da liberdade e em defesa da Magna
Carta”, contra as leis de 1841; o governo, porém, entendia que a incorporação de
contingentes às forças rebeldes se devia ao “abuso da boa fé e da credulidade da
população” convencida que as referidas leis acabariam com “as liberdades públicas”. Ou
seja, mesmo em sua crítica, a declaração do governo deixava entrever que, do ponto de
vista dos combatentes, saídos de extratos médios ou baixos da sociedade, talvez houvesse
mais do que simplesmente a obediência cega. Segundo o ministro da Justiça, “a muitos
homens (do interior da Província, de cor e ignorantes) se dizia que iam ser reduzidos ao
cativeiro. Àqueles que tinham filhos, fazia-se crer que iam ser recrutados em virtude da
Lei da Reforma. Pregava-se ainda mesmo a mulheres, a homens simples aferrados à
Religião que aquela Lei a ia acabar”.
No caso da Praieira a participação da população urbana, com ocupação, é ainda
mais evidente, uma vez que a eles é que a bandeira da nacionalização do comércio a
retalho apelava com mais fulgor. Dizer isso, porém, parece ser ainda pouco a se
considerar o impacto e importância desses grupos na condução da política pernambucana,
ao menos na cidade do Recife, pois, como mostram Câmara e Carvalho, a “capital era o
maior colégio eleitoral da província. Ali votavam artesãos, caixeiros, militares,

34
Para todas as citações e referências à Revolta Liberal, ver o estudo de Erik Hörner, “Cidadania e
insatisfação armada: a ‘Revolução Liberal’ de 1842 em São Paulo e Minas Gerais” (cap. 9 deste livro).

24
funcionários públicos e toda a sorte de gente que dispusesse de alguma renda
comprovada, sendo assim qualificada como votante e/ou eleitor”; eram, como os
denominavam as folhas do Partido Conservador, os “proletariados da praia”.
Poderia-se, a priori, discutir o quanto essa experiência da cidadania, no que tange
às eleições, não seria um fato circunscrito às capitais de província. Esse, contudo, não
parece ser o caso do interior da província do Maranhão. Os rebeldes bemtevis, como
mostra Assunção, não só reconheciam os órgãos governamentais como instâncias de
negociação e representação, como também consideravam a eleição uma das formas de
legitimação dessas demandas. Na vila de São Bernardo, por exemplo, o “conselho geral”,
responsável pela redação da representação a ser enviada ao presidente de província, foi
“formado na tradição das ‘câmaras gerais’ da Independência”, reunindo três oficiais
rebeldes, mas também oficiais subalternos, povo armado, e mais cidadãos. “Com a firma
dos ‘cidadões’ (pessoas que satisfaziam os critérios censitários da Constituição) os
rebeldes de fato logravam uma legitimação democrática, infelizmente ignorada pelas
autoridades da província”.
Em sua representação, como em outras redigidas pelos rebeldes bemtevis,
afirmava-se não só a lealdade ao Império e à Constituição, como se demandava o fim das
leis dos prefeitos e de outras leis que se opunham à Carta Magna do Estado. Ou seja, viver
a cidadania era considerar a validade dos órgãos representativos, mas paralelamente negar
a legitimidade de certas leis (identificando-as, porventura, com interesses particulares que
não representavam a vontade geral, ou, no caso, as “forças desse Brasil”).
Nesse sentido, considerar, como assim propunham parte das autoridades, as
manifestações da população contra os decretos que estabeleciam o registro civil e o censo
como um “quadro horroroso” fruto da simples incompreensão do “povo ignorante” (da
“infame plebe”), significa perder uma das dimensões da manifestação popular (agora num
sentido mais amplo) em relação ao Estado que se buscava construir. Assim, identificar –
pura e simplesmente - a resistência da população a certas normas ou inovações propostas
pelas diferentes instâncias do governo (leia-se, por exemplo, a criação de novos cargos
com atribuição de competências que antes ou bem não existiam ou não lhes eram
adjudicadas) como permanências de um velho mundo ou como simples incompreensão
das inovações impostas por uma modernidade inexorável, acaba por relegar a segundo
plano uma dimensão possível de tal atitude, ou seja, uma dimensão segundo a qual
participar do Estado significava também poder negociar os rumos de sua construção ou

25
implementação; ou, como coloca Maria Luiza Oliveira, de “uma necessidade e uma
vivência da cidadania ‘formal’”.
Evidentemente, os homens do XIX, mais especificamente aqueles que ditavam as
políticas nacionais, tendiam a ressaltar e identificar as situações de contestação que
encontravam, especialmente quando partiam de uma população livre pobre e liberta,
como manifestações de “uma gente bruta [...] homens domados por nenhum freio” – nos
aclamados dizeres de Gonçalves de Magalhães –, que não consideravam ter que contar
no dia a dia do jogo político. Resistências, contudo – e não apenas as armadas – não
partiam apenas dessa camada da população, ao contrário.
O caso mais emblemático talvez seja o da Lei de Terras de 1850. Se, no bojo das
reformas feitas nas décadas de 1840 e 1850, a regularização fundiária, ou seja, a
demarcação das propriedades e a consequente separação entre as terras privadas e aquelas
do Estado, aparecia como um passo natural na modernização do país – ao facilitar a
imigração espontânea, dizia o ministro do Império, a lei seria um “poderosíssimo
elemento de força, civilisação e riqueza”35 –, foi justamente entre a parcela mais rica da
população que a lei encontrou maior resistência.
Para a historiadora Márcia Motta, “muitos dos senhores de terras não estavam
acostumados a seguir uma determinação legal acerca da medição e demarcação de suas
terras” e, nesse sentido, agiram “como sempre o haviam feito, ou seja, descumprindo
qualquer norma que pudesse limitar seus poderes”. 36 Por outro lado, parte dos livres
pobres e libertos tendeu a ver os procedimentos estabelecidos pela lei (e seu regulamento)
como possibilidade de regularizar seu acesso à terra37.
Situação semelhante à descrita pela autora para a Paraíba do Sul (província do Rio
de Janeiro), no que tange à resistência da parcela mais rica em registrar suas terras,
também foi encontrada para um município baiano, dedicado primordialmente ao cultivo
da cana-de-açúcar. Enquanto grandes proprietários e senhores de engenho escolheram
não registrar suas terras (ou registrá-las da forma mais genérica possível, entenda-se,

35
Relatório apresentado á Assemblea Geral Legilsativa [...] pelo Ministro e Secretario d’Estado dos
Negócios do Império, Visconde de Montel Alegre, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1851, p. 26.
36 Márcia Maria Menendes Motta, Nas fronteiras do poder: conflito e direito à terra no Brasil do século

XIX, Rio de Janeiro, Vício de Leitura/ Arquivo Público do estado do Rio de Janeiro, 1998, p. 166, grifos
da autora. Aqueles que aceitaram agir conforme o determinado pela nova lei, o fizeram, em geral, “em
decorrência de conflitos ocorridos perto de suas fazendas”. Ibidem, p. 168-169.
37 Ibidem, p. 175.

26
fornecendo ao vigário o mínimo de informações possível), a maior parte da população
livre pobre e liberta parece ter aderido à nova norma do Estado, reconhecendo na lei a
possibilidade de efetivação de direitos.38
Resistir à implementação de leis, portanto, não era apanágio apenas da parcela
mais pobre da população. Setores da elite política e econômica do Império também o
fizeram, em vários momentos por vias diríamos pacíficas, simplesmente ignorando o que
os representantes da nação haviam aprovado; caso da Lei de Terras, mas caso também,
há que se dizer, da Lei de 1831 que abolia o tráfico africano. Mas não só, afinal, apenas
para lembrar um único caso, a Revolta Liberal buscava legitimação para um movimento
armado no questionamento da validade política, ou mesma constitucional, das “leis
opressoras” de 1841.
Em 1874, mais uma vez novas leis foram foco de descontentamento. Dessa vez,
misturavam-se nos protestos, que espoucaram nas províncias de Paraíba, Pernambuco,
Rio Grande do Norte e Alagoas – alcançando, segundo Luciano Mendonça de Lima, mais
de 78 vilas do Império e milhares de pessoas –, o descontentamento com a implementação
do sistema métrico-decimal, a cobrança do novo “imposto do chão” e, tangencialmente,
a nova lei do recrutamento.39
Nas várias incursões e ocupações de vilas, ocorridas no transcurso dos meses que
durou a sedição, a população protestava que não pagaria o referido imposto porque “o
chão era do povo e que por elle não deveria pagar impostos”, no que um dos envolvidos
declarou que “queria o papel dos tributos” para destruí-los. Destruir então os papéis dos
tributos, as listas de devedores ou os pesos e medidas era uma das formas de ação da
população para evitar a implementação de normas que lhes eram contrárias. Tanto assim
que, mais de uma vez, invadiram câmaras municipais e arquivos de “repartições
publicas”, assenhoreando-se dos papéis, para depois queimá-los em praça pública.
Contudo, mesmo depois de ações desse talante, retornavam normalmente às suas
atividades cotidianas, ou seja, voltavam a “comprar e vender pelas medidas e pezos do
systhema antigo”. Ainda que do ponto de vista das autoridades se tratasse de uma situação
da “mais completa anarquia”, insensada “pelo espírito de insubordinação do povo às
autoridades constituídas e desrespeito à lei”, pelo lado da população era uma resistência

38Monica Duarte Dantas, Fronteiras movediças, op. cit., cap. 3.


39
Para todas as citações e referências ao Quebra-quilos, ver o estudo de Luciano Mendonça de Lima,
“Quebra-quilos: uma revolta popular na periferia do Império” (cap. 13 deste livro).

27
a medidas específicas – e não às autoridades em geral – de modo a impedir a
implementação de leis que não lhes pareciam legítimas, que, como diriam alguns,
afetavam seus direitos.
Há no Quebra-quilos, contudo, um elemento que mais uma vez aparece e que
merece, no bojo da discussão, um olhar mais atento, olhar que deve mirar para protestos
ou ações que parecem, à primeira vista deslocados, mas que devem ser lidos
conjuntamente, uma vez que apresentam lados complementares da realidade brasileira do
Império (e que também surgiram em movimentos anteriores).
Ainda que o foco dos protestos do Quebra-quilos visasse à suspensão do sistema
métrico-decimal e do imposto do chão, o desconforto com a nova lei do recrutamento,
como mostra Lima, também fazia parte do quadro geral de descontentamento da
população. Quanto a essa nova medida – independentemente do que, na visão dos
representantes da nação, ela de fato almejava –, para a população daquelas províncias, a
lei visava a “transformar os filhos do povo em escravos”. Acusações desse teor, como
colocado anteriormente, também se fizeram presentes na Balaiada e no Ronco da Abelha
(ou Guerra dos Marimbondos) e até mesmo, a se crer nas autoridades governamentais, na
Revolta Liberal.
Por mais absurdas que tais alegações pudessem soar aos ouvidos das autoridades
– “a publicação do Decreto e Regulamento mui grande sensação tem causado ao povo
ignorante desta Freguesia o qual diz que esta Lei tem por fim escravizar a pobreza”, ou a
“grosseira idéia de captiveiro” –, elas devem ser consideradas, como mostra Maria Luiza
Oliveira, como ecos de um medo real da população. Medo que, a despeito de
circunstâncias particulares a cada movimento, remetiam a uma situação mais geral vivida
pelo país, em maior ou menor intensidade, até 1888, ou seja, a existência da escravidão.
Paralelamente ao medo, expresso pelos sediciosos do Quebra-quilos, em relação
ao perigo da escravização ou reescravização, Lima também destaca, para além dos
protestos contra as referidas leis, a entrada de novos personagens em cena, no caso,
grupos de escravos que exigiam “liberdade para si e seus companheiros de cativeiro, fosse
na lei, fosse na ‘marra’”.
Nesse ponto, ainda que não seja essa a pretensão do livro, ou seja, de tratar de
insurreições escravas strictu sensu, é necessário, até para que se tenha um quadro mais
acabado das revoltas da população livre pobre e liberta (ou também de sua participação
em movimentos liderados ou insuflados por elementos de elite), retomar algumas

28
situações e ponderações dos autores acerca do envolvimento de escravos nos movimentos
descritos.
Na Sabinada, escravos teriam percebido seu engajamento na revolta como uma
chance de escapar ao cativeiro e ingressar na liberdade. Essa adesão, contudo, não foi
aceita sem restrições, uma vez que “muitos soldados se recusaram a servir ao lado de
escravos e pediram transferência para outras unidades”. O presidente do governo rebelde
criou então um novo batalhão, o “Libertos da Pátria”, em que qualquer escravo nascido
no Brasil poderia se alistar, mas não deixou de garantir o reconhecimento de que esses
novos soldados eram, até então, propriedade de outrem, uma vez que estabeleceu que os
proprietários “seriam compensados pelo pagamento da metade do salário do soldado
alforriado até um valor estabelecido pelo Tesouro”. A criação do novo batalhão acabou
por atrair cada vez mais escravos, inclusive de fora da cidade. Como coloca Kraay, isso
fez com que, a despeito de proclamações anteriores, o presidente acabasse por reconhecer
o inevitável, decretando “a liberdade de todos os escravos brasileiros natos”. Mas,
observe-se bem, apenas daqueles nascidos no Brasil, o que significava que a instituição
da escravidão continuava a vigir, mesmo que apenas para os nascidos na África (que
como se sabe eram, na época, muitos). Nesse sentido, como coloca o autor, ainda que a
rebelião expressasse os descontentamentos dos “homens de cor livres das classes
inferiores”, dando vazão a uma “inscipiente conscientização de raça e de classe: sua
oposição ao alistamento de escravos revela seu medo de uma quebra das hierarquias
sociais”.
No movimento Farroupilha, ainda que a rebelião se relacionasse mais diretamente
“com as ações das autoridades centrais na província contra os comandantes da fronteira,
envolvidos nas tropelias com os orientais”, ou seja, remetesse fundamentalmente a
descontentamentos de uma parcela da elite da província com a atuação ou os limites
impostos pela Regência – como o protecionismo para os seus produtos (em nada
lembrando outros movimentos em que a população livre pobre e liberta acabou
encontrando espaços, ou mesmo tomando a liderança, na manifestação de suas próprias
expectativas), a participação dos escravos, como mostra Guazzelli, foi fundamental.
Escravos foram incorporados à infantaria – “arma que os livres desprezavam” –
mas também à cavalaria ligeira, uma vez que ser soldado, como mostra o autor, “oferecia
mais segurança do que eventuais fugas para a formação de quilombos, sempre alvos de
expedições punitivas”. Mesmo que se estimulasse a adesão de escravos pertencentes a
proprietários contrários ao governo farroupilha, líderes do movimento também exortaram

29
seus partidários a cederem “escravos para as forças”. Essa cessão, contudo, não
significava uma simples alforria incondicional dos cativos, uma vez que a república
previa que os “proprietários seriam compensados de suas perdas assim que as condições
financeiras o permitissem”. Ainda assim, isso não significava, como mostra o autor, que
a “república tivesse pioneiramente abolido a escravidão”, ao contrário, jornais
farroupilhas, por exemplo, continuaram publicando “anúncios de fugas de escravos”.
Mais ainda, frente à possibilidade da perda imediata da mão-de-obra – a despeito da
promessa futura de indenização –, “patriotas”, figuras de liderança do movimento,
optaram por transferir seus cativos para o Estado Oriental. Na própria Assembléia
Constituinte da nova república, uma proposta de abolição terminou derrotada pela
oposição. Opção que parece confirmada pelo resultado da batalha de 1844, quando
“foram exterminados muitos dos negros que compunham as hostes farroupilhas”, pondo
por água baixo as expectivas dos escravos que “mais concretamente cobravam o serviço
militar em troca da liberdade”.
Grupos de escravos com armas na mão também foram uma constante na Balaiada.
Caso mais expressivo é justamente aquele do liberto Cosme Bento das Chagas que liderou
“o mais famoso quilombo que participou da revolta”. Ele se auto-intitulava “imperador”,
mas do reino da “liberdade”; chegando a propor “a abolição generalizada com
indenização, similar ao que foi implementado no Caribe inglês poucos anos antes”.
Cosme buscou se aliar aos rebeldes balaios, proclamando-se assim “protetor das
liberdades bem-te-vis”, pois, sabia que só “assim teria alguma chance no campo de
batalha”. Outro líder, o preto Lamego que, segundo o presidente da província, se
intitulava “major do Balaio” também, pregava a liberdade dos escravos, assegurando que
“pelo menos os de sua nação seriam livres”. A aliança entre os rebeldes livres e os
quilombolas, contudo, é uma questão, como mostra Assunção, que ainda não foi
completamente esclarecida. A despeito dos balaios permanecerem “omissos quanto à
inclusão dos escravos na liberdade que defendem, por outro, a correspondência legalista
atesta que Gomes não somente recrutava entre os escravos das fazendas, mas ativamente
os encorajava a se rebelar”. Mais ainda, se Gonçalves de Magalhães escreveu que Cosme
manteve o líder balaio preso e tentou inclusive matá-lo, outros documentos mostram que
teria havido algum tipo de colaboração entre os dois. De qualquer maneira, como coloca
o autor, ao ser enviado para reprimir a rebelião, Luís Alves de Lima e Silva percebeu – e
se aproveitou – das “fissuras mais profundas no tecido social maranhense”, ao estabelecer

30
que a anistia só valia para livres e somente quando se prontificassem a ir atrás e prender
os escravos rebelados e fugidos.
Nesse sentido, ainda que uma aliança ocasional tenha ocorrido, seja por acordos
com Bento Cosme das Chagas, ou mesmo pela aceitação de escravos (dos inimigos
cabanos) nas tropas rebeldes, fato é que nunca houve uma crítica direta à instituição da
escravidão, ao contrário, alguns rebeldes (menos radicais ou mais abastados) chegaram
mesmo a escrever às autoridades constituídas garantindo que respeitavam a propriedade
alheia; “os escravos dos Cabanos que nós sabiamos deles os mandava os ajuntar e os
entregavamos as suas senhoras e aqueles que não tinhão senhoras e que andavam
obsolutos [?] os ajuntavamos e metiamos feitor e os mandava trabalharem nas lavouras
de seus senhores e a guerra só era com os homens”.
Assim, como bem mostra Carvalho, “pertencer a um corpo de tropa qualquer,
comandando por alguém com patente legalmente conferida, significava estar assimilado
ao Estado, mesmo que temporariamente”, ou seja, engajar-se era uma das possibilidades,
abertas em tempos de rebelião, de acesso à liberdade, de acesso à cidadania.40 Isso não
quer dizer, como deixam claros os capítulos deste livro, que por meio da adesão aos
exércitos rebeldes, ou mesmo, por meio de ações que momentaneamente questionavam a
inserção social dos escravos – como no caso daqueles que, durante a Cabanagem,
castigaram seus senhores –, os vários movimentos colocassem necessariamente a ordem
social em questão. A não ser pela Guerra dos Cabanos – curiosamente um movimento
que defendia a volta de d. Pedro I -, não houve, claramente ao menos, por parte da
população livre pobre e liberta uma defesa aberta do fim da instituição da escravidão.
Mesmo no caso dos cabanos, há que se questionar o quanto a posição de Vicente Ferreira
de Paula – na demanda da alforria para os chamados papa-méis que o seguiam –, poderia
ser generalizada aos outros líderes do movimento. Até na Sabinada, a abolição
proclamada pelo governo rebelde destinava-se tão somente aos escravos nascidos no
Brasil, devendo permanecer os africanos na mesma condição, o que significava, ainda
que, para uma parte, manter a instituição da escravidão intocada. Posição que, de alguma
maneira, lembra a do “major” Lamego, para quem a liberdade deveria ser
necessariamente garantida àqueles da “sua nação”.

40Marcus J. M. de Carvalho, “Os negros armados pelos brancos e suas independências no nordeste”, op.
cit., p. 891.

31
Essa clivagem, contudo, não deve ser considerada, como mostram os autores, uma
inconsistência dos movimentos, cujos partícipes seriam, então, incapazes de perceberem,
ou lutarem por seus reais interesses, entre os quais a união de todos – livres, libertos e
escravos – em nome de uma suposta causa comum. Neste ponto vale lembrar as
ponderações de João José Reis, em seu Rebelião escrava no Brasil, acerca da Revolta dos
Malês. Conforme documentos anexados ao processo e depoimentos de testemunhas, a
“revolta previa uma Bahia para os africanos”, com a tomada e a morte “de toda a gente
da terra de branco”. Para alguns, os insurretos iriam matar todos os “brancos, cabras e
crioulos [...] ficando os mulatos para seus lacaios e escravos”. O movimento não visava,
assim, a dar cabo da instituição da escravidão, mas à conquista da liberdade por parte
daqueles que iriam se insurgir, no caso, os africanos de algumas etnias específicas.
Por um lado, como coloca Reis, a escravidão não era estranha à África Ocidental
e nem ao islamismo (guardadas, é claro, as especificidades em relação à escravidão
existente no Brasil), por outro, havia também a oposição clara entre os escravos africanos
e aqueles nascidos no Brasil. Destaca que é possível que a fala acerca da escravização
dos mulatos derivasse de projetos ou opiniões pessoais, mas ressalta que “os rebeldes
pretendiam romper com a dominação branca e que viam mulatos e crioulos como
cúmplices dos brancos, não vítimas como eles”. Nesse sentido aponta para uma clivagem
que provavelmente extrapolava a própria Bahia, alcançando também outras localidades
em que o tráfico era muito presente. Escravos e libertos nascidos no Brasil acabavam
tendo uma posição diferenciada daqueles recém chegados da África. Eram eles que
“forneciam o grosso dos homens empregados no controle e repressão aos africanos”,
fosse como soldados municipais, capitães-do-mato, tropas regulares de primeira linha ou
mesmo guardas nacionais; por sinal, eram eles, em geral, que reprimiam as “crises
provocadas pelo elemento estrangeiro, fosse africano ou português”.41
A oposição, por um lado, entre escravos e libertos nascidos no Brasil ou na África,
e, por outro, a identificação dos estrangeiros, fossem portugueses fossem africanos,
aparece, como mostra Reis, na Greve dos Ganhadores ocorrida em Salvador, em 1857.42
A Câmara Municipal que, no ano seguinte, defenderia os interesses dos cidadãos, em prol

41 João José Reis, Rebelião escrava no Brasil. A história do levante dos Malês em 1835, edição revista e
ampliada, São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 265-266, 268, 322.
42
Para todas as citações e referências à Greve dos Ganhadores de 1857, ver o estudo de João José Reis,
“Quem manda em Salvador? Governo local e conflito social na greve de 1857 e no protesto de 1858 na
Bahia” (cap. 12 deste livro).

32
do controle do preço da farinha, manifestara-se, no caso da greve, contrariamente aos
ganhadores, na maioria africanos escravos ou libertos. Em documento redigido pelos
vereadores por ocasião dos distúrbios de 1858, demarcava-se “bem o campo de disputa
entre ‘brasileiros natos’, que estavam perdendo, e estrangeiros (portugueses e africanos),
que venciam”. Vale lembrar, como faz o autor, que a câmara representava os interesses
daqueles quase 28 mil cidadãos habilitados a participar na eleição dos vereadores; grupo
do qual não faziam parte escravos e até mesmo libertos nascidos na África43, excluídos,
portanto “deste pacto representativo, desse esquema de delegação de poder”.
Tais ponderações permitem recolocar a questão da população livre e escrava em
parâmetros próprios ao século XIX, e não caudatários de idealizações contemporâneas
(ou quase contemporâneas) acerca do que deveria ser um movimento “popular” no Brasil
do oitocentos. Isso não implica dizer que a relação entre senhores e escravos (pensando-
se, no primeiro caso, nos grandes proprietários), fosse igual àquela travada
cotidianamente entre cativos, libertos e livres pobres. No dia a dia era comum que o
“convívio solidário” e a “troca social e cultural” ultrapassassem diferenças de condição
jurídica, origem ou cor44.
Mas isso também não permite esquecer que, ao menos até meados do século, a
propriedade escrava não era apanágio de poucos, ao contrário. Como coloca Hebe Mattos,
“a pulverização e acessibilidade da propriedade cativa atingiam limites quase sempre
surpreendentes”; livres pobres e libertos tinham escravos e até mesmo escravos eram,
porventura, proprietários de outros escravos 45. A instituição, portanto, perpassava os
vários grupos sociais e, mais do que isso, ser ou não escravo (ou seja, ser livre ou liberto)

43
Vale destacar que na Constituição de 1824, no título 2º “Dos Cidadãos Brasileiros”, mencionava-se que
eram cidadãos os “que no Brazil tiverem nascido, quer sejam ingenuos, ou libertos”, e “todos os nascidos
em Portugal, e suas Possessões, que sendo já residentes no Brazil na época, em que se proclamou a
Independencia nas Provincias, onde habitavam, adheriram á esta expressa, ou tacitamente pela continuidade
de sua residência”, o que deixava em suspenso a possiblidade de atribuição da condição de cidadão aos
africanos que, trazidos ao país depois de 1822, conseguissem sua alforria. A historiadora Márcia Berbel
aponta que nesta questão a Constituição teria alterado ligeiramente o Projeto de 1823, restringindo apenas
aos libertos nascidos no Brasil o acesso à cidadania. Márcia Regina Berbel, “A Constituição espanhola no
mundo luso-americano (1820-1823)”, Revista de Indias, Madri, vol. 68, n. 242, jan/abril, 2008, p. 247;
“Constituição Política do Império do Brazil. Carta de lei – de 25 de março de 1824”, Colecção das Leis do
Império do Brazil de 1824 (doravante CLIB), Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1886, p. 8.
44 João José Reis, Rebelião escrava no Brasil, op. cit., p. 322. Sobre a convivência da população nas feiras,

festas, mutirões e mesmo em atividades mais prosaicas do cotidiano ver Monica Duarte Dantas, Fronteiras
movediças, op. cit.; Maria Odila Leite da Silva Dias, Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX, São
Paulo, Brasiliense, 1984; Hebe Maria Mattos, Das cores do silêncio. Os significados da liberdade
escravista – Brasil, sec. XIX, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998.
45 Hebe Maria Mattos, Das cores do silêncio, op. cit., p. 31-32.

33
era uma distinção fundamental, estabelecendo um claro corte entre aqueles que eram ou
não sujeitos de direitos e, portanto, eram ou não cidadãos.
De tal modo essas vivências estavam imbricadas, que até mesmo jurisconsultos
do Império, frente a processos de revogação de alforria, atentassem para o fato de que o
retorno à escravidão colocava um problema que ultrapassava a perda da liberdade, uma
vez que, nas palavras de Keila Grinberg, “no Brasil, a conquista da liberdade significava
também adquirir direitos de cidadania. Assim, uma alforria revogada implicava não
apenas uma escravização, mas a perda de todos os direitos por parte de um cidadão”.46
Portanto, não é à toa, que em vários dos movimentos aparecesse o medo da
(re)escravização, contra a qual se deveria lutar a qualquer custo. Como mostra Maria
Luiza de Oliveira, esse não era um medo infundado. Se o perigo da reescravização já
aparecia, por exemplo, na Balaiada – fosse em razão dos recrutamentos, fosse em
decorrência das pressões feitas por autoridades recém criadas e nomeadas –, a partir de
1850, com a lei (definitiva) de abolição do tráfico africano, o perigo da reescravização,
com o traslado do Norte (ou Nordeste, nos termos de hoje) para o Sul, tornou-se ainda
mais real para todos aqueles que, por sua cor ou pela origem de seus antepassados,
pudessem ser “confundidos” com escravos. 47 Perigo que, na década de 1870, passava
também pela vivência de novas leis que buscavam, segundo Mendonça de Lima, tornar a
população livre pobre e liberta mais dócil aos desmandos dos proprietários de terras (leis
novas, mas que, em muitos pontos, pareciam reeditar práticas tentadas em momentos

46
Keila Grinberg, “Reescravização, direitos e justiças no Brasil”, in Silvia Hunold Lara e Joseli Maria
Nunes Mendonça (org.), Direitos e justiças no Brasil, Campinas, Ed. da Unicamp, 2006, p. 118.
47 Ainda pouco estudada, a prática da (re)escravização aparece, contudo, já documentada em regiões

bastante distintas, indicando que, possivelmente, tenha sido mais comum do que se imagina. Judy Bieber-
Freitas demonstra que, na província de Minas Gerais, após a proibição do tráfico africano em 1850, libertos
e livres de cor foram reescravizados e vendidos para os cafeicultores do vale do Paraíba. Keila Grinberg
aponta para a prática, especialmente depois de aprovada a Lei Eusébio de Queirós, do sequestro e roubo de
“pessoas de cor” no Uruguai para serem vendidas como escravas no Rio Grande do Sul. Rafael Peter de
Lima aponta que não só sequestravam-se cidadãos uruguaios, mas também escravos brasileiros que haviam
“adquirido a condição de libertos por terem pisado ou mesmo vivido algum tempo em solo oriental”; uma
vez cruzada a fronteira eram vendidos como escravos no Rio Grande do Sul e até mesmo na capital do
Império, sendo “bem provável a hipótese de que vários desses uruguaios acabaram sendo levados para
trabalhar como cativos nas zonas mais prósperas da economia caffeira”. Judy Bieber-Freitas, “Slavery and
social life: attempts to reduce free people to slavery in the sertão mineiro, 1850-1871”, Journal of Latin
American Studies, v. 26, n. 3, out. 1994; Keila Grinberg, “Escravidão e relações diplomáticas Brasil e
Uruguai, século 19”, 4º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, p. 8, disponível no site
http://historiaunirio.com.br/numem/pesquisadores/keilagrinberg/?c=biblio&id=10; Rafael Peter de Lima,
“A nefanda pirataria de carne humana”: escravizações ilegais e relações políticas na fronteira do Brasil
meridional (1851-1868), dissertação de mestrado, Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, 2010, p. 30, 125-126.

34
anteriores, em várias das regiões em que explodiram as rebeliões da primeira metade do
Otocentos).
Protestar contra esses perigos ou, melhor dizendo, na defesa de seus direitos de
cidadão, foi então uma constante no século XIX. Manifestação que poderia aparecer sob
a roupagem de uma defesa do primeiro imperador – quando defendê-lo significava
defender seu direito à terra e, no limite, à vida -, ou, com mais frequência, sob bandeiras
liberais que desde o começo do oitocentos vinham sendo desfraldadas pelas mais diversas
parcelas da elite brasileira.48
Há que se atentar, sem dúvida, para o papel, como colocado anteriormente, da
interpretação que a população fazia dos discursos dos descontentes com os rumos da
situação – fosse contra as novas leis dos cabanos maranhenses, ou contra a assunção do
Gabinete Saquarema em Pernambuco -, discursos esses alardeados na imprensa da época.
Em muitos sentidos, como mostra Matthias Assunção, as reivindicações de
Raymundo Gomes ecoavam as demandas dos liberais divulgadas em O Bem Te Vi,
descontentes com o presidente da província e com poder dos conservadores maranhenses
responsabilizados, entre outras coisas, pelos novos cargos criados na província. Mesmo
admitindo a pequena tiragem do jornal, Assunção destaca que publicações desse tipo
devem ter tido “influência no interior, pois é muito provável que fossem lidos em voz alta
para audiências maiores e analfabetas”. Nesse sentido, teria contribuído “para divulgar os
pontos programáticos centrais do liberalismo, como a defesa da Constituição e da
monarquia”; alimentando dissidências, cultivando antigos ressentimentos contra os
“portugueses” absolutistas, mas fazendo também “uma leitura progressista do
cristianismo, próxima à visão do catolicismo popular”. Em suma, fornecendo um discurso
que reintepretado por Gomes e outros balaios justificava a defesa da religião católica, de
Pedro II, da Constituição e, portanto, de direitos.

48
Desnecessário retomar a razão pela qual revoltas escravas não foram incluídas neste livro, mas vale talvez
ressaltar que, dado o foco intepretativo dos vários estudos e do livro como um todo, considerando-se como
central a questão da cidadania, do aprendizado da política e da experiência decorrente da vivência (direta
ou indireta) de movimentos de contestação, a não inclusão de levantes ou protestos feitos essencialmente
por estrangeiros foi deliberada. Assim, não são aqui tratados movimentos como a Revolta dos Mercenários
que abalou a cidade do Rio de Janeiro em 1828 (da qual tomaram parte irlandeses e soldados de procedência
germânica); a chamada Revolta de Ibicaba, colônia em que habitavam imigrantes suiços e germânicos,
ocorrida da região de Limeira (província de São Paulo) em 1856-57; e a Revolta dos Mucker, de 1874, em
São Leopoldo (província do Rio Grande do Sul). Sobre esses movimentos ver, por exemplo, Gilmar Paiva
dos Santos Pozo, Imigrantes irlandeses no Rio de Janeiro: cotidiano e revolta no Primeiro Reinado,
dissertação de mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/ USP, 2010; Janaina Amado,
A revolta dos Mucker, São Leopoldo, Unisinos, 2002; Thomas Davatz, Memórias de um colono no Brasil
(1858), tradução, prefácio e notas Sérgio Buarque de Holanda, Belo Horizonte/ São Paulo, Itatiaia, EDUSP,
1980; Emília Viotti da Costa, Da senzala à colônia, São Paulo, Ciências Humanas, 1982.

35
Na mesma época, os radicais baianos também usavam a imprensa para divulgar
seus protestos e demandas, por meio do Novo Diário da Bahia, folha da qual era editor o
próprio Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira, que veio a dar nome ao movimento.
Em Pernambuco, a imprensa também teria tido função semelhante, tanto em 1824, quanto
em 1848. Como coloca Bernardes, ainda que não se possa aquilatar a tiragem dos jornais
em Pernambuco, entre 1821 e 1824, “não é possível passar ao largo da existência de uma
imprensa assumidamente política, cuja influência não pode ser minimizada”, destacando
a criação de nove jornais em Recife, entre 1821 e 1822, e outros 13, em 1823-1824 –
entre eles o próprio Typhis Pernambucano, de frei Caneca. No caso da Praieira, além da
própria folha editada pelo Partido Nacional Pernambucano, o Diário Novo – cuja
localização, na rua da Praia, acabou por dar o apelido pelo qual ficou conhecido não só o
partido, como o próprio movimento de 1848 –, não se pode esquecer das várias outras
publicações que circulavam há anos na província, e, especialmente, as folhas mais
radicais editadas por Borges da Fonseca.
Ainda que se pudesse alegar a maior influência da imprensa nas áreas urbanas,
devido à facilidade de circulação, não se pode esquecer que o caso maranhense parece
autorizar a interpretação de que os jornais ultrapassavam e muito o âmbito da população
alfabetizada, indicando uma circulação de idéias e informações que propiciavam (e
estimulavam) a reinterpretação pela população dos vários discursos e mesmo de
acontecimentos que, a priori, poderiam lhes parecer distantes. Nesse sentido, vale lembrar
que a população que se levantou contra os decretos não só dizia que eles tinham “por fim
captivar os seus filhos, visto que os Inglezes não deixão mais entrar Africanos”, mas,
mais ainda, alegavam que “o sul quer escravizar os filhos do norte”. Ou seja, não só
sabiam que o tráfico africano fora abolido, e que para isso a pressão inglesa tivera alguma
influência, como tinham também ciência da fome de braços no sul do país, fome essa que,
de fato, resultou na migração forçada de milhares de escravos do Norte para as fazendas
de café. Isso tudo sem que se esqueça da já mencionada sobreposição geográfica dos
movimentos. A sedição contra os decretos do registro civil e o movimento do Quebra-
quilos, como se pode perceber, ocorreram em áreas quando não idênticas, bastante
próximas. Áreas estas que já haviam sido palco ou bem de embates diretos, ou de ecos
dessas batalhas, em 1817, 1824, na Guerra dos Cabanos e na Praieira. O mesmo deve ser
levantado no caso do Motim da Carne sem Osso Farinha sem Caroço, ocorrida na mesma
cidade que fora palco de uma das mais renhidas lutas pela independência do país, e anos
depois da Sabinada.

36
Essa questão também deve ser considerada no caso da capital do Império, afinal
a cidade do Rio de Janeiro, desde os idos dos anos 1820, fora palco de quarteladas,
protestos e manifestações, tão mais impactantes na medida em que ali se localizava o
centro político do Império. Neste sentido, o Motim do Vintém, mesmo que ocorrido na
última década da monarquia, não deve ser descolado do quadro geral, e histórico, da vida
da cidade.49
Segundo Sandra Lauderdale Graham, as manifestações contrárias ao novo
imposto “ocorreram contra um pano-de-fundo de transformações urbanas que tinham
alterado política, econômica e demograficamente a cidade”. Na capital do Império via-se
então a multiplicação dos cortiços, onde se amontoavam “brasileiros pobres, imigrantes
italianos e portugueses, negros libertos e escravos de ganho”; uma situação que para os
mais privilegiados era entendida como de ameaça para a saúde pública “e, por extensão,
à ordem pública”. Assim, o motim eclodiu justamente em um período de “crescente
preocupação com a ordem pública”.
A primeira passeata contra o imposto, ocorrida dias antes da data em que deveria
começar sua cobrança, foi uma manifestação pacífica, a despeito da participação de mais
de cinco mil pessoas. Dirigiram-se a São Cristovão para entregar uma petição ao
Imperador requerendo a revogação do imposto “iníquo e vexatório”. Porém, impedidos
de entregar o documento por um contingente policial que lhes bloqueava o acesso – e
tendo o próprio monarca se recusado a recebê-los – dipersaram-se. Segundo Graham,
teriam tomado parte dessa primeira demonstração “pessoas alfabetizadas, decentemente
trajadas e de rendimentos modestos, mas regulares, como burocratas e vendedores
assalariados”, ou seja, dos usuários principais dos bondes da cidade. Em 1º de janeiro,
contudo, data aprazada para o início da cobrança, o que se iniciara de maneira pacífica,
transformou-se em um movimento violento, envolvendo quatro mil pessoas, e que atingiu
vários pontos da cidade. Dessa vez a repressão deixou não só feridos, mas também alguns
mortos. Para as autoridades os acontecimentos do dia 1º já envolviam um grupo distinto
daquele que tomara parte na passeata até São Cristovão, sendo provocados por
trabalhadores pobres, da “classe baixa da nossa população” ou “pessoas de pouca
importância”; indicando, segundo Graham, que suas ações não poderiam ter por motivo

49
Para todas as citações e referências ao Motim do Vintém, ver o estudo de Sandra Lauderdale Graham,
“O Motim do Vintén e a cultura política no Rio de Janeiro, 1880” (cap. 14 deste livro).

37
simplesmente o referido imposto, remetendo assim para a conjuntura mais ampla de
descontentamento e condições precárias de vida.
Quanto à missiva do imperador sobre o ocorrido, em que escreveu que “durante
quase quarenta anos, não foi preciso empregar a força como tal contra o povo”, é
necessário cautela; não se sabe se ele se referia apenas à cidade do Rio de Janeiro, ou ao
Império como um todo, pois nesse caso seria necessário ponderar o que Pedro II achava
ser uso de forças, ou mais ainda, o que concebia como um protesto. Afinal protestos
contra leis haviam ocorrido – sem sequer considerar a Revolta Liberal – em 1851, em
1857-58 e em 1874-75 (e isso se considerarmos apenas os movimentos discutidos no
presente livro).
Nesse sentido, talvez o susto se devesse mais ao local do motim, do que
propriamente à existência de protestos e ao uso da força para contê-los; uma vez que,
como mostra Lima, a repressão ao Quebra-quilos, por exemplo, foi bastante feroz.
Contudo, independentemente da força utilizada contra os manifestantes, há que destacar
algumas semelhanças entre os movimentos da segunda metade do século. A despeito de
outros fins e expectativas que possam ter aflorado no correr dos protestos,
fundamentalmente todos tinham como foco leis ou normas específicas. Mas, além disso,
a se considerar a questão da “vitória” do movimento – se por esse termo se entender que
os objetivos primeiros dos manifestantes foram alcançados –, todos eles tiveram um
resultado semelhante; uma vez que com o Ronco da Abelha (ou Guerra dos
Marimbondos) os decretos que estipulavam o registro civil e o censo foram suspensos,
no caso da greve dos ganhadores os termos da postura da câmara foram alterados e a taxa
abolida, o Motim da Carne Sem Osso conseguiu que os vereadores que defendiam (e eram
defendidos pelo) povo fossem reinstituídos, após o Quebra-quilos o imposto do chão foi
suspenso e continuou-se a comprar e vender pelos pesos e medidas antigos, e finalmente,
a taxa de um vintém por passagem de bonde – que dava nome ao motim – também deixou
de ser aplicada.
Anos depois, porém, mais uma vez a população protestaria contra uma nova lei,
na verdade, contra a reimposição do velho imposto do chão, mas, nesta ocasião, já na
República, o resultado dos protestos seria diferente. No dia 10 de abril de 1893, um grupo
invadiu o barracão onde se realizava a feira da vila do Soure, na Bahia, para destruir os
papéis que notificavam a nova medida fiscal. Segundo o promotor, mais de quarenta

38
homens e mulheres, armados de cacetes, facas e facões, “dando vivas e morras e sob o
troar de foguetes, fizeram as taboletas em migalhas”.50
Consoante a denúncia e os depoimentos do intendente municipal e do presidente
do conselho municipal da vila, um negociante do município (José Honorato de Souza
Neto) teria instigado a população para, no dia da feira, destruir as referidas tabuletas -
quando, pela primeira vez, deveriam ser implementadas as novas cobranças. Os
responsáveis pela destruição, antes de se dirigirem à feira, teriam se reunido na porta do
negociante. A interpretação dada por ele ao conteúdo das tabuletas teria sido, em grande
parte, responsável pelo ocorrido; dizendo à população, entre outras coisas, que o marido
para viver com a mulher teria que pagar impostos, bem como a prostituta para exercer
seu ofício (mais uma vez reeditando medos que já haviam aflorado quase duas décadas
antes).
Outra figura também teria contribuído para a agitação. O italiano Braz Vita, recém
chegado da vila do Tucano, teria dito que sabia que lá as leis haviam sido rasgadas pelo
povo “e que aqui deviam fazer a mesma cousa”. A resistência ao pagamento dos impostos
não se restringiu, contudo, ao dia 10 de abril, continuando nas semanas seguintes, nos
dias em que novamente se realizava a feira municipal, ou seja, 17 e 24 de abril.
No dia 17, autoridades compareceram à vila para garantir a ordem, entre elas o
presidente do conselho municipal, o intendente, o juiz de direito, o promotor e o
comissário de polícia. Corriam “boatos alarmantes de que os desordeiros viriam aggredir
as Auctoridades”. Às duas da tarde o barracão da feira conservava-se vazio e pela vila
caminhavam grupos armados. As autoridades resolveram então se retirar do local, quando
foram “estrondozamente pateados por parte dos desordeiros”. No próximo dia de feira,
ou seja, no dia 24, os desordeiros armados ainda permaneciam na vila, o que, mais uma
vez, obstou a cobrança do novo imposto.
O juiz de direito julgou procedente a denúncia, por crime de sedição51, “como
agitadores e directores do movimento sediciozo”, contra o negociante e mais outras treze

50
Arquivo Público do Estado da Bahia (doravante Apeb), Seção Judiciária, “Inquérito policial”, maço
1351, auto 4, 1893. Sempre que referidos o inquérito ou o processo abertos por ocasião da sedição do Soure,
trata-se de informações retiradas do documento ora citado (salvo indicação em contrário). O relato aqui
apresentado da sedição de 1893 é uma versão abreviada do subcapítulo “Rumo a Canudos”, do meu livro
Fronteiras Movediças: a comarca de Itapicuru e a formação do arraial de Canudos. Monica Duarte
Dantas, Fronteiras Movediças, op. cit.
51 O Código Penal dos Estados Unidos do Brazil, de outubro de 1890, previa, como “crimes contra a

segurança interna da república”, a conspiração, a “sedição e ajuntamento illicito”, a resistência, a “tirada

39
figuras, entre elas um certo José Felix. Ainda que o número de arrolados pareça alto
(quatorze ao todo), representava menos da metade dos originalmente denunciados pelo
promotor (33). Braz Vita, ou Biagio Vita, não foi o único que, depois de realizado o
inquérito, deixou de figurar na lista do juiz de direito, um certo Antonio Vicente Mendes
Maciel (“vulgo Antonio Conselheiro” – como consta no inquérito) também teve a mesma
sorte.
Para o juiz, conforme os “depoimentos das testemunhas é fora de duvida que os
denunciados excluidos da pronuncia e muitos outros que não poderão ser conhecidos,
menos Bras Victa e Antonio Vicente, forão machinas e instrumentos dos incluidos, que
concertarão, resolverão e dirigirão o movimento, no qual, alem da parte intellectual,
tiverão alguns tambem parte phisica, despedaçando as taboletas e obstando a arrecadação
das taxas”. Escreveu ainda o magistrado que, “pelos depoimentos das testemunhas não
tiverão participação no crime Bras Victa e Antonio Vicente Mendes Maciel, sendo que
este não estava presente na feira de 10 de Abril e na de 17 impediu que fossem atacados
na casa em que estavão arranchados o Juis de Direito, Promotor e Comissario de policia,
que ali forão para restaurar a ordem”. Eram, pois, improcedentes as denúncias contra
ambos.
Conforme o depoimento de uma das testemunhas do crime de sedição, Antonio
Conselheiro teria dito à população que ela “não obrava mal” ao resistir à cobrança dos
novos impostos, opinião compartilhada, provavelmente, por outros que não participaram
do movimento. Manoel Alves Leal, o presidente do conselho municipal da vila, declarou,
por exemplo, que, voltando da feira do dia 17, encontrara um certo Manoel Teixeira
Santiago “que não esteve no barulho, mas, que tinha applaudido muito o acto e que estava

ou fugida de presos do poder da Justiça e arrombamento das cadeias”, e “desacato e desobediancia ás


autoridades”; constituía “crime de sedição a reunião de mais de 20 pessoas, que, embora, nem todas se
apresentem armadas, se ajuntarem, para, com arruido, violencia ou ameaças: 1º, obstar a posse de algum
funccionario publico nomeado competentemente e munido de titulo legal, ou prival-o do exercicio de suas
funcções; 2º, exercer algum acto de odio, ou vingança, contra algum funccionario publico, ou contra os
memebros das camaras do Congresso, das assembléas legislativas dos Estados ou das intendencias ou
camras municpaes; 3º, impedir a execução de alguma lei, decreto, regulamento, setença do poder judiciario,
ou ordem de autoridade legitima; 4º, embaraçar a percepção de alguma taxa, contribuição, ou tributo
legitimamente imposto; 5º, constranger, ou perturbar, qualquer corporação politica ou administrativa no
exercício de suas funcções”; se o fim sedicioso fosse alcançado a pena prevista aos cabeças era de um a
quatro anos de “prisão cellular”. O Código republicano, portanto, mantinha como crime de sedição certas
condutas já previstas no Código Criminal de 1830, mas adicionava outras que, no Império, caracterizavam
ajuntamento ilícito, como era o caso dos atos que visavam a impedir a “percepção de alguma taxa, direito,
contribuição, ou tributo legitimamente imposto”. “Decreto n. 847 – de 11 de outubro de 1890. Codigo Penal
dos Estados Unidos do Brazil”, Decretos do Governo Provisorio da República dos Estados Unidos do
Brazil, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1890, décimo fascículo, p. 2681; “Código criminal do Império
do Brasil”, CLIB, 1830, parte primeira, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1876, p. 186.

40
prompto para qualquer occasião que fosse necessario arrebentar as taboletas, caso fossem
ainda affixadas, visto como estas leis so foram feitas para opprimir ao povo e que não
seriam executadas”.
Contudo, para o promotor, Antonio Vicente estaria implicado na sedição por ter
feito quórum nos protestos contra os impostos. Ele não estava na vila quando ocorreu a
quebradeira, mas, como escreveu o promotor, “chegando dias depois encampou o facto,
acrescentando que o povo estava no exercicio de seos direitos em não pagar impostos.
Bastou que estas palavras fossem proferidas para animar mais os desordeiros que n’elle
depositão plena e illimitada confiança, sendo que alguns considerão-no um semi-Deus.
Ha muitos annos que este individuo, verdadeiro maniaco, tem fanatizado o povo
ingnorante, cauzando grandes e grandes prejuizos n’esta Comarca.”
O promotor reconhecia, contudo, que Antonio Conselheiro fora responsável por
evitar que a multidão, no dia 17, atacasse as autoridades. A situação, porém, era grave,
até pela repercussão dos fatos. Por inspiração dos eventos do Soure, teriam ocorrido cenas
semelhantes no arraial do Bom Jesus e na vila do Amparo “sendo outros seos
protagonistas e authores”. O promotor solicitava, então, que todos aqueles que tivessem
alguma ligação com as pessoas envolvidas fossem também responsabilizados pelo crime.
De acordo com as testemunhas, cujos depoimentos informaram a decisão do juiz,
Antonio Conselheiro não tivera qualquer participação nos acontecimentos que abalaram
a ordem na vila, a despeito de sua proximidade com alguns dos “desordeiros”.
O Conselheiro, ao chegar à vila, depois do dia 10, se hospedou em casa de um
certo José Felix, ativo participante na destruição das tabuletas e figura central nos
protestos das semanas seguintes. No dia 17, antes da expulsão das autoridades, o povo,
em muito maior número, teria se reunido parte no barracão da feira, parte em casa do
mesmo José Felix (onde, consoante o promotor, foram encontrados vários “cacetes”).
O Conselheiro não chegara à vila sozinho, mas acompanhado de seu séquito, o
que teria concorrido para um maior ajuntamento de pessoas nos dias 17 e 24. Ainda assim,
quando alguns dos responsáveis pelas destruições do dia 10 buscaram, na semana
seguinte, incitar o grupo a agredir as autoridades, foram as palavras do Conselheiro que
permitiram que o promotor, o juiz, o presidente do conselho, o intendente e o comissário
de polícia deixassem a vila pacificamente.
José Calasans, em seu livro Quase biografias de jagunços, dividiu os
conselheiristas, ou melhor, os habitantes do Belo Monte (nome dado pelo Conselheiro ao
arraial de Canudos) em quatro grupos: dos “beatos”, dos “combatentes”, dos “negociantes

41
e proprietários” e, finalmente, das “outras figuras do Belo Monte”52. Entre os beatos,
havia um certo José Felix, alcunhado o “taramela”. Para Euclides da Cunha, era ele o
“guarda das igrejas, chaveiro e mordomo do Conselheiro”, tendo sob suas ordens as
beatas de vestidos azuis cingidos de cordas de linho, encarregadas de sua roupa e exíguas
refeições, bem como de acenderem diariamente as fogueiras para as rezas53. A alcunha
de taramela teria surgido de sua função de abrir e fechar portas ou, segundo Calasans, de
sua qualidade de contador de histórias (uma vez que taramela ou tramela significava
falador). Por ocasião das desordens ocorridas em abril de 1893, o anfitrião do Conselheiro
na vila do Soure chamava-se justamente José Felix, vila de onde era natural o “Taramela”
de Canudos.
Segundo informações existentes no inquérito policial, quando da chegada no
Soure da tropa requisitada pelas autoridades, José Felix e o restante dos acusados do crime
de sedição, juntamente com o Conselheiro e seus seguidores, evadiram-se da vila 54 .
Apenas o negociante José Honorato de Souza Neto veio a retornar, posteriormente, ao
local do crime. Para conseguir esse feito, em meio ao andamento do processo por sedição,
requereu preventivamente um habeas corpus, concedido, em 6 de novembro de 1893,
pelo tribunal superior sediado em Salvador. Segundo os desembargadores, o habeas
corpus fora concedido devido à nulidade do processo “resultante da incompetencia do
juiz de direito formador de culpa que tinha impedimento legal, que o inibia de funcionar
em semelhante processo, sendo um dos offendidos por ocasião da sedição, cuja punição
se trata”. 55
Ainda que o negociante José Honorato tenha, em seu proveito, insuflado a
população a reagir às novas imposições da municipalidade, chegando a deturpar o que
estava escrito nas tabuletas (como foi alegado no inquérito), isso não quer dizer que José
Felix e os outros implicados não possuíssem razões próprias para protestar contra o novo
imposto.

52
José Calasans Brandão da Silva, Quase biografias de jagunços (o séquito de Antonio Conselheiro),
Salvador, Centro de Estudos Baianos, 1986 (publicação n. 122), p. 22-24.
53
Euclides da Cunha, Os sertões, edição crítica por Walnice Nogueira Galvão, São Paulo, Brasiliense/
Secretaria do Estado da Cultura, 1985, p. 246.
54
A não ser por Braz Vita que permaneceu no Soure
55
Há que ressalvar que essas são as informações possíveis de serem retiradas do documento, uma vez que
foram encontradas somente as folhas 54 e 55. Acerca do crime de sedição há também no arquivo um “Libelo
crime”, novamente com apenas 5 folhas de um total de mais de 52. Apeb, Seção Judiciária, “Libelo crime”,
maço 1212, auto 9, 1893; “Certidão”, maço 5726, auto 5, 1894.

42
A quebra das tabuletas do Soure teria ocorrido, segundo Consuelo Novais
Sampaio, em um momento em que a população novamente lutava com os problemas
ocasionados pela seca. A falta de chuvas teria começado em 1893, estendendo-se até
1895. Ainda que a estiagem tenha realmente castigado a região naqueles dois anos, a nova
cobrança de impostos se somava a uma série de outros problemas vividos pela população
nas últimas décadas, como a seca de 1889-1890 e, especialmente, a concentração
territorial e as dificuldades advindas das questões ligadas à mão-de-obra. A despeito da
nulidade do processo, é provável que, naquele ano de 1893, tenham se juntado ao
Conselheiro e seus seguidores não só José Felix, como outros dos acusados pelo promotor
(muito deles acompanhados de seus parentes e familiares). O estabelecimento de novos
impostos, o levante ocorrido na feira e a chegada da tropa teriam levado, portanto, ao
êxodo de ex-escravos (os “13 de maio” como os chamavam os fazendeiros da região),
agregados, sitiantes e mesmo moradores da vila do Soure. Há que se perguntar, então, se
levantes semelhantes – ocorridos na vila do Tucano, no arraial do Bom Jesus e nas vilas
de Amparo e Monte Santo (para mencionar apenas aqueles de que se tem notícia) – não
teriam sido responsáveis, em grande parte, pelo aumento do chamado séquito do
Conselheiro.
Depois de sair do Soure, em fins de abril de 1893, o Conselheiro e seus velhos
seguidores, acompanhados da população expulsa pela tropa enviada para garantir a
“tranqüilidade” da vila, encaminharam-se para Uauá, na comarca de Monte Santo. É isso,
ao menos, que indica o relatório apresentado pelo intendente de Monte Santo, transcrito
por Marco Antonio Villa56. “Na povoação do Uauá em princípio de maio levantou-se um
grupo contra o agente Joaquim José Rodrigues concitando o povo para não pagar
direitos”. O exemplo teria extravasado os limites da povoação, chegando ao Cumbe, onde
“levou muitos meses sem cobrar-se desde fins de maio, quando por ali passou Antonio
Conselheiro, até outubro e depois foi um serviço feito com desânimo sem garantia e o
povo fugia constantemente ao pagamento de direitos” 57 . Para Euclides da Cunha, o
ocorrido no Cumbe suscitou a reação das autoridades58, que, no mês anterior, já haviam

56 Marco Antônio Villa, Canudos, o povo da terra, São Paulo, Ática, 2000, p. 68-70.
57 Manuscrito de sete páginas dirigido ao Conselho Municipal de Monte Santo no ano de 1894, em poder
de Jonas Cordeiro de Andrade, neto do intendente, morador em São Vicente (estado de São Paulo), apud,
ibidem, p. 63.
58 Euclides da Cunha, Os sertões, op. cit., p. 229-230.

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tentado deter na vila do Soure os descontentes com a nova ordem republicana (à qual
atribuíam os rigores do fisco).
Em junho de 1893 o Conselheiro, seus seguidores e, provavelmente, um número
sempre crescente de sediciosos, expulsos das várias localidades em que se levantaram
contra o novo imposto, estabeleceram-se no arraial de Canudos, prontamente rebatizado
de Belo Monte. Ali, como havia feito no começo do século a população livre pobre e
liberta que migrou para a serra do Rodeador, começaram a formar uma nova-velha
comunidade, com suas casas, igreja, cadeia própria (a conter os presos que infringiam as
normas locais), terra para plantio de roças e áreas comuns de criação de gado
restabelecendo um cotidiano que já não era possível em regiões em que o Estado se fazia
mais presente.
Em 1893, o protesto contra a cobrança do imposto do chão começara, então, de
forma bastante semelhante a todos os outros protestos ocorridos na segunda metade do
século XIX. A população pobre do município se negara a pagar um imposto que
“opprimia o povo” e que, considerando-se as manifestações por ocasião do Quebra-
quilos, era profundamente injusto, pois atentava contra os direitos dos cidadãos, afinal “o
chão era do povo”. Para tentarem alcançar seu objetivo, armaram-se e até ameaçaram as
autoridades, mas nada leva a crer que seu intento fosse outro que não garantir seus
direitos, o que implicava, obviamente, garantir sua condição de subsistência, ali mesmo
no local onde moravam. A resposta das autoridades, porém, foi diferente, forçando-os a
buscar um outro local de morada, juntando-se, dada a conjuntura, aos seguidores do
Conselheiro. Nada mais exemplar para mostrar a distância entre o ocorrido a partir de
1893, e os movimentos anteriores, do que a feroz guerra que lhes fez a República nos
anos seguintes. Se das rebeliões, a população havia passado a fazer sedições com
objetivos definidos, na década de 1890, o que começara também como uma defesa de
direitos, terminaria como um dos episódios mais sangrentos da história do Brasil.

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