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https://doi.org/10.18593/r.v46i0.23821
Resumo: Este artigo emerge das intenções mais gerais de um projeto de pesquisa-intervenção
realizado em parceria com a rede pública municipal de Niterói no mesmo momento em que o
município experimenta responder as demandas legais da BNCC. A partir de rodas de conversas
com professores de um curso de extensão com a finalidade de contribuir com a construção
do referencial curricular da cidade, buscamos configurar uma reflexão teórica sobre política de
currículo, modos de existência e difração. Situados como herdeiros da tradição que criticou a
distinção entre implementação e formulação, desenvolvemos o argumento de que, ao invés de
um currículo passar por uma rede, uma rede invariavelmente passa pelo currículo. Isto é, uma
dinâmica topológica contínua ganha vida, envolvendo a variação espaço-temporal. Ancorados em
estudos feministas e queers da ciência e da tecnologia e por intersecções da filosofia de Gilles
Deleuze, indicamos que um diferimento constitutivo da política exibe uma difração do tempo e do
espaço e, no mesmo passo, constitui emaranhados ontológicos nos quais modos de existência
tornam-se possíveis, envolvendo subjetividade e alteridade. Defendemos, portanto, a urgência de
estranhar a teleologia do discurso educacional que, ao planificar o espaço e quantificar o tempo,
converte essa inalienável difração da política em expurgo da diferença. Longe da redenção, trata-
Doutor em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas
1
Gerais.
2
Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; doutorando em Geografia pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro.
se de reativar a importância vital da política curricular como participante ativa do devir do mundo
sem o qual não haverá democracia possível.
Palavras-chave: Política Curricular. Difração. Relacionalidade Ontológica. Rede. Espaço-tempo.
Abstract: This article emerges from the broader intentions of a research-intervention project
carried out in partnership with the municipal public network of Niterói at the same time that the
city tries to respond to BNCC legal demands. From rounds of conversations with teachers in an
extension course in order to contribute to the construction of the city’s curriculum framework,
we seek to configure a theoretical reflection on curriculum policy, modes of existence and
diffraction. Situated as heirs of the tradition that criticized the distinction between implementation
and formulation, we have developed the argument that instead of a curriculum going through
Seção temática: Uma alternativa às políticas centralizadas - formar
a network, a network invariably goes through the curriculum. That is, a continuous topological
dynamic comes alive, involving spatiotemporal variation. Anchored in feminist and queer studies
of science and technology and by intersections of Gilles Deleuze’s philosophy, we point out how
professores e e produzir currículo nas escolas
a constitutive differentiation of politics exhibits a diffraction of time and space and, at the same
step, constitutes ontological entanglements in which modes of existence render possible, involving
subjectivity and otherness. We therefore defend the urgency of problematizing the teleology of
educational discourse, which, by planning space and quantifying time, converts this inalienable
diffraction of politics into a purge of difference. Far from redemption, it is about reactivating the
vital importance of curriculum policy as an active participant in the becoming of the world without
which there will be no possible democracy.
Keywords: Curriculum Policy. Diffraction. Ontological Relationality. Network. Spacetime.
reactivar la importancia vital de la política curricular como participante activo en el futuro del mundo
sin el cual no habrá democracia posible.
Palabras clave: Política Curricular. Difracción. Relacionalidad Ontológica. Red. Espacio-tiempo.
Comecemos pelo que mais ou menos sabemos: a Base Nacional Comum Curricular
ganhou, em 2017, força de lei. De lá para cá, secretarias municipais de educação estão tendo
que responder à interpelação de “adequarem”, “implantar” ou “implementar” – para usar,
não sem algum desconforto de nossa parte, verbos presentes no texto da resolução do
Conselho Nacional de Educação (BRASIL, 2017)3 – os currículos àquilo previsto pelo documento
que lhes foi endereçado. Esse clima pairava no ar quando nossa pesquisa-intervenção4 em
três municípios de regiões diferentes do país – Niterói/RJ, Cachoeira/BA e Rondonópolis/
MT – começou. De certa maneira, o projeto mais amplo que subsidia este artigo partiu de
uma problematização das fantasias associativas entre qualidade da educação e projetos de
currículo nacional (MACEDO, 2016b).5
Nessa direção, seria preciso frisar que nossa entrada junto à Rede Municipal
de Educação de Niterói, campo de interlocução que focalizaremos neste texto, foi marcada
pelo anúncio constante de que a “reformulação curricular” em andamento – termo, desta
vez, usado por nossas parceiras de pesquisa – não era uma resposta direta à BNCC nem
sua tributária. Sua emergência florescia das demandas de professores/as, gestores/as
e da própria secretaria quanto à necessidade de rever o referencial curricular da rede
3
O site da BNCC apresenta uma seção específica intitulada Implementação com biblioteca de apoio, currículo de outros países
e espaço para compartilhamento de práticas. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/implementacao.
4
Sobre o uso da noção de intervenção, ver Miller e Macedo (2018).
5
O projeto contou com financiamento do CNPq por meio do edital de Pesquisa e Inovação em Ciências Humanas, Sociais e
Aplicadas. Além disso, a tese de doutorado de Ricardo Scofano Medeiros é financiada com bolsa da CAPES.
6
Embora este texto tenha sido escrito em parceria entre orientando e orientador, ambos operam com diferentes tradições
teóricas para pensar a relação entre política de currículo, subjetividade e diferença. Nós optamos, assim, por não subsumir
as diferentes ferramentas que usamos umas às outras, mas escolhemos manter intercessores conceituais de correntes
distintas, ecoando uns nos outros.
7
Em virtude de as turmas terem sido majoritariamente compostas por mulheres, nós optamos por escrever professoras.
Não estamos desconsiderando as implicações éticas da difração, como várias autoras destacam – ver, a título de exemplo,
8
De La Becassa (2017) –, incluindo a própria Barad (2008). Contudo, nós nos assentamos sobre a ideia de não restringir a
difração a este terreno e, deste modo, esperamos não fundir ética e política. Entretanto, a insistência na relacionalidade
ontológica coloca efeitos mútuos entre ambos os terrenos.
2019) e apenas nelas sobreviver. Desse modo, nós esperamos ainda manter abertas as
fronteiras não somente entre o que supostamente conta como currículo na hora de se
fazer política, mas também o que conta como política na hora de se fazer currículo.9 Algo
que exige uma atenção ao imponderável, como convida Macedo (2017b), e que preferimos
chamar de atenção ao inominável, àquilo que nem nós, nem as professoras com as quais nos
relacionamos tinham nome para descrever – e nem se pretendia ter –, mas que nem por isso
desobriga de, ou, talvez em virtude disso, adensa um intenso e cuidadoso trabalho político.
A pergunta título que abre esta seção é oriunda do relato de uma professora,
quando, na ocasião, o tema da roda de conversa era Integração Curricular. A professora
contava que havia ficado curiosa quanto ao pedido de um de seus alunos: fotografar a
disposição dos brinquedos na sala de aula. Em princípio, é tentador tomar a pergunta feita
pela criança como se remetendo à brincadeira, aos brinquedos disponíveis em uma sala de
aula, ou mesmo à presença do celular quase como se aquela interpelação demandasse que
tudo isso fosse, por assim dizer, parte do currículo da Educação Infantil. Em alguma medida,
contudo, tomaríamos imediatamente um resíduo de certa gramática política – que poderia ser
caracterizada pela retórica centrada naquilo que entra e sai dos currículos (RANNIERY, 2017b)
– como uma referência primeira. Nossa imaginação encenaria, então, um operador crítico com
função ontológica que parece atuar justamente como um aparelho de captura, para evocar
Deleuze e Guattari (2012), o que equivaleria a um esmagamento radical de um “campo perpétuo
de interação” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 15).
Uma formulação inicial nesse sentido pode ser encontrada em Ranniery e Macedo (2018).
9
qualitativa na natureza da situação” (MASSUMI, 2017, p. 17), movida, nesse caso, pela brincadeira,
nem que seja para preservá-la em uma fotografia, mantém em circulação a possibilidade de
“ter sua natureza transformada em outra inteiramente diferente da sua” (MALABOU, 2014, p. 31).
professores e e produzir currículo nas escolas
Por outro lado, coexiste com a possibilidade sempre iminente do desmanche, a manobra, ainda
que instável, que busca drenar, como um antibiótico, a “animação, a vivacidade – uma mais-
valia de vida, irredutivelmente qualitativa, nivelada de forma ativa com o viver.” (MASSUMI, 2017,
p. 25). Dito de outro modo, da pergunta à curiosidade relatada, é como se fôssemos lançados
a uma política de currículo tomada desde uma zona de indiscernibilidade “de coexistência e
de concorrência, [entre] as máquinas de guerra de metamorfose e os aparelhos identitários
do Estado, os bandos e os reinos, as megamáquinas e os impérios” (DELEUZE; GUATTARI, 2012,
p. 25), e não a uma zona de indiferenciação. Como insiste Massumi (2017, p. 19), é uma zona
de multiplicação do múltiplo, “onde as diferenças se unem ativamente” naquilo que escapa
à conformação da política curricular pelo Estado, ou mesmo se ergue contra, ainda que
agenciadas em relação e no mesmo campo topológico estatal.
Com essa evocação da brincadeira, queremos dar relevo a algo dessa conexão que
é agenciado por diferenças mínimas, menores, quase inaudíveis, – a professora se surpreende
com a pergunta da criança, não vendo, por alguns instantes, aquilo que a criança via – que não
permitem antecipar nada sobre seus efeitos, o que não quer dizer que anulem a contingência
da política, mas salienta que está sempre a se fazer rondar “uma questão de intensificação”
(MASSUMI, 2017, p. 22). Neste mesmo movimento, estamos tentando dar alguma textura a algo
dessa zona que dá passagem “ao limite, aos turbilhões e projeções” (DELEUZE; GUATTARI, 2012,
p. 27), que é, sim, percebido pelas professoras, posto que “perceber não é observar de fora
um mundo estendido diante de si [...]; é entrar num ponto de vista, assim como simpatizamos.
Percepção é participação.” (LAPOUJADE, 2017, p. 47). Todavia, essa percepção aparece como
uma marca de um rumor sensível que permanece no ar, meio sem nome, meio sem rosto, só
articulável, do ponto de vista da enunciação, em pequenos balbucios, para seguir com Rolnik
(2018). É que, ali, no interior de um “conjunto de práticas e instituições por meio das quais uma
produção da política curricular e realiza que “[n]inguém pode ser sem ser afetado” (MALABOU,
2014, p. 25). Ancoramo-nos, assim, nas palavras da professora Fernanda:10
Caso nossa intuição esteja correta, o que uma pontuação dessas abre é que o
Seção temática: Uma alternativa às políticas centralizadas - formar
pela sensibilidade ao inominável, se configura menos em duvidar “da existência de uma coisa
do que do seu direito de existir.” (LAPOUJADE, 2017, p. 84). Entretanto, como defender o direito à
existência, sem que, com isso, tenhamos de defender um sujeito? Ou, para perguntar de outro
modo, o que vem depois do sujeito?11 Em um texto bastante conhecido, Foucault (2009) realiza
um questionamento que nos auxilia. Grosso modo, ao argumentar que o autor é uma função
da linguagem, não um sujeito individual,12 Foucault (2009, p. 294) pergunta o que a “regra do
desaparecimento do escritor ou do autor permite descobrir?” e responde que “ela permite
descobrir o jogo da função autor.”
Em um uma deriva argumentativa, perguntamo-nos: o que a necessidade da
afirmação do direito de existir leva a descobrir sobre o jogo da existência? É provável que
nossa resposta seja outra pirueta: a afirmação do direito de existir permite trazer a tessitura
política da existência e a tessitura existencial da política. É como se reativasse aquilo que
Ettinger (2009, p. 9) chama de “campo psíquico transjetivo” ou como se liberasse “uma força
de transformação transindividual” (MASSUMI, 2017, p. 17) já sendo partes da produção da
política curricular. São esses laços transversais que tornam um modo de existência possível
e por meio dos quais se encontram e não param de se atravessar, produzindo uma rica
figuração do emaranhamento ontológico com os nós situados e singulares através dos
quais uma política de currículo é difrativamente produzida. Há, contudo, um problema, apenas
aparentemente indissolúvel, em toda essa movimentação: como reconhecer aquilo que não
10
Todos os nomes utilizados são fictícios.
Entrevista de Jacques Derrida a Jean Luc-Nancy, na qual este último introduz essa pergunta. Ver, Derrida (1991).
11
12
Fazemos referência, aqui, à ideia de que “o sujeito costuma ser interpretado por aí como se fosse intercambiável com a
‘pessoa’ ou o ‘indivíduo’. A genealogia do sujeito como categoria crítica, no entanto, sugere que o sujeito, em vez de ser
identificado estritamente com o indivíduo, deveria ser descrito como categoria linguística, um lugar-tenente, uma estrutura em
formação.” (BUTLER, 2017a, p. 19).
conseguimos nem nomear, mas que, paradoxalmente, existe bem na frente dos nossos olhos
e, por vezes, aparece por meio de uma enunciação frágil e tentativa?
O ponto, para seguirmos com Butler (2010, p. 168), é que o “reconhecimento é
uma relação intersubjetiva, e, para um indivíduo reconhecer o outro, ele tem que recorrer a
campos existentes de inteligibilidade.” O reconhecimento – que, aqui, não é a recognição no
sentido conferido por Deleuze (2018) –, complementa a autora, também pode ser “o lugar onde
os campos existentes de inteligibilidade são transformados.” (BUTLER, 2010, p. 168). Os mesmos
campos que permitem o reconhecimento são aqueles que, contudo, podem excluir o direito de
existir, mas que, apesar disso ou em virtude disso – já que se deve recorrer a eles –, podem
ser transformados. A leitura que realizamos, portanto, consiste em aceitar que o direito de
existir, e não a existência, depende do reconhecimento. Neste caso, relações ambivalentes
ao afirmar que, em sua ordinariedade, não passa de “uma dança enlameada de múltiplos
parceiros [que] não preexistem à sua intra-ação constitutiva em cada camada dobrada de
tempo e espaço” (HARAWAY, 2008, p. 32). Ou, ao seguir o argumento de Kirby (2011, p. 89), a
produção de uma politica curricular é invariavelmente difrativa porque a vida em geral (des)
continuamente negocia “manter [...] tudo dentro.”
Dessa maneira, nós utilizamos a pergunta-título desta seção para entrarmos
nessa zona borrada de negociação a fim de abrir o imaginário político em direção a uma
relacionalidade ontológica ao nível da subjetividade, posto que não há produção de política que
não encadeie mutuamente modos de existência e materialidade. De tal maneira, se defendemos
que a difração da política curricular não é apenas uma multiplicidade sem fim, ou regulada de
indivíduos singulares que reinterpretam textos políticos, é para bloquear o retorno rápido a
Seção temática: Uma alternativa às políticas centralizadas - formar
uma subjetividade encarnada como uma entidade fixa antes do relacionamento acontecer e
não permitir capturar todo o emaranhamento de relações ontológicas por um só sujeito ou
por um grupo de sujeitos.
professores e e produzir currículo nas escolas
Tudo isso nos sintoniza ainda mais com a visão de política de currículo emaranhada
por redes, tal como Macedo e Ranniery (2018) exploraram, e como continuaremos a desdobrar
na seção a seguir. Todavia, já se poderia afirmar, de partida, – e poderá não ser uma
novidade – que nunca haverá um resultado final de uma política curricular, qualquer que
seja. Em vez disso, seus tópicos somente ganham materialidade nas “teias emaranhadas
que tecemos” (BARAD, 2007, p. 384). A prática difrativa dá a sentir uma queerização (RANNIERY,
2016), por assim dizer, de qualquer um e em todos os níveis da produção enredada de uma
política curricular. Torce, enfim, a própria noção de diferenciação, fazendo da política situada
nas e desde as escolas não um predicado de uma alguma noção fixa ou derivativa.13 Antes,
dá relevo ao “emaranhamento espaçotempomaterializante” (BARAD, 2012, p. 42), no qual a
diferença, para todos os efeitos, e sob o risco de soarmos repetitivos, “deriva de dentro, não
fora” (BARAD, 2012, p. 42).
A despeito da nossa aproximação, crescem, portanto, as complexidades em torno
da noção de rede, posto que as duas cenas que usamos nessa seção ganham contornos
do que M’charek (2014, p. 30) chama de um objeto dobrado, os “modos intricados através dos
quais se reúnem espaços e tempos heterogêneos.” Assim, não é forçoso de nossa parte
afirmar que não queremos, ao vincular tão intimamente política de currículo e ontologia por
meio da difração, diminuir, de forma alguma, a necessidade de crítica aos constrangimentos
normativos que a promulgação da BNCC pode engendrar. Entretanto, nossa insistência por
um compromisso com a diferença deve-se em conceber a política curricular como o próprio
No caso da BNCC, não é a sua implementação que se negocia nas escolas, mas a BNCC é, ao mesmo tempo, aquilo que se
13
emaranhamento do devir no mundo e recusar a ideia, por vezes tentadora, de que a produção
de mundos teria se esgotado por meio da lei.14
Em Força de Lei, Derrida (2010) localiza o paradoxo da iterabilidade no coração da lei que, não podendo se fundar nem se
14
conservar de modo puro, que não seja por meio de uma violência, “exibe e arquiva o próprio movimento de usa implosão,
deixando no lugar o que se denomina um texto, o fantasma de um texto que, arruinado ele mesmo, ao mesmo tempo
fundação e conservação, não chega nem a uma nem a outra, e fica ali, até certo ponto legível e ilegível, como a ruína
exemplar que nos adverte singularmente acerca do destino de todo texto e toda assinatura na sua relação com o direito,
isto é, necessária e infelizmente com certa polícia.” (DERRIDA, 2010, p. 10, grifo nosso).
entre as veias de qualquer rede. Para ficarmos apenas em uma das questões levantadas,
não seria sem propósito reiterarmos a curiosidade em sabermos o sentido do fluxo de
determinada política. Germina na escola e chega até às Secretarias de Educação? Começa na
professores e e produzir currículo nas escolas
sala de aula e chega à sala da direção? Irradia dos conselhos de classe para todo o restante
da escola? É oriunda dos anseios familiares em relação ao desempenho dos alunos e alunas?
Emana da compra de pacotes educacionais prontos em parcerias que borram as fronteiras
entre o público e o privado? Ou aquilo que acontece nas escolas é pautado pelas avaliações
externas que mais funcionam como políticas de indução curricular?
A resposta de Ball (2014, p. 32) nos parece interessante, uma vez que as redes
políticas não só “desfocam as fronteiras entre Estado e sociedade, mas elas também expõem
o processo de elaboração de políticas a jogos de poder particularistas”. Nessas vias, o
emaranhamento espaço-temporal é fundamental para recolocar a relação entre rede e
política de currículo, desta vez, a fim de trabalhar com a “diferença para fazer diferença”
(HARAWAY, 1997, p. 273). Um caminho poderia ser de o de imaginar, analogamente, uma rede de
pesca: “um conjunto integrado e estruturado de fios, que formam uma trama ou malha; no
encontro entre dois fios, eles se entrelaçam, formando um nó, o que dá estabilidade à rede
(sem os nós, nem sequer haveria rede).” (SOUZA, 2016, p. 166). Contudo, logo que olhamos para
uma rede podemos ver também um conjunto de interconexões e de “práticas contestáveis
[na qual] os parceiros nunca estão dados de uma vez por todas.” (HARAWAY, 2008, p. 314).
A imagem da rede de pesca pode bem ser explicativa, mas conforma muito rápido nossa
imaginação à unidimensionalidade. Por outra via, estamos insistindo que não há distinção
temporal e espacial entre a mediação de professores e escolas – o que Ball, Maguire e
Braun (2016) chamariam de atuação – e uma política curricular específica. O que significa que
a produção da política curricular não pode ser considerada ontologicamente distinta de um
experimento de desentendimentos.
Dessa perspectiva, uma rede municipal de educação consistiria, certamente, em
um conjunto de prédios, escolas e demais sedes administrativas que tornaria possível a
Ingold (2012), pode oferecer algum contributo para, ao invés de representar determinada
realidade, pensarmos a rede afinada ao incalibrável processo de criação da vida inerente
à política curricular, em sua dimensão impossível de métrica e quantificação, como Lemos e
Macedo (2019) apontaram. Essa mirada tem por princípio continuar a bagunçar o intento de
determinar um lócus específico de onde emanaria a política, isto é: quais são as direções de
seus fluxos, de onde elas vêm e para onde elas vão. Assim, admitiríamos, co-extensivamente,
que uma rede passa pelo currículo não somente porque não possui contornos limitados, mas
também porque a relacionalidade ontológica abre para formas experimentais de criar vidas e
mundos interconectados.
Tal ponderação alimenta nossa preferência quanto à ideia de malha. Pois, muito
além de ser “uma técnica analítica para olhar a estrutura das comunidades de política e suas
Seção temática: Uma alternativa às políticas centralizadas - formar
relações sociais” (BALL, 2014, p. 30), uma malha é composta por um emaranhado de “trajetórias
que não param de se estender constitu[indo] a textura do mundo” (INGOLD, 2012, p. 39), na qual
questões sobre diferenças são sempre conjugadas com atenções para afetar e enredar. Com
professores e e produzir currículo nas escolas
a malha, a política curricular não é um simples retrato de “uma superfície isotrópica sobre a
qual todas as coisas estão embrulhadas nelas mesmas, fixadas em seus respectivos lugares,
separadas dos movimentos que as trouxeram ali, pegas em uma rede finita, fechada.” (INGOLD,
2015, p. 212). Imaginar, deste modo, uma rede aberta é condição para manter a sensibilidade ao
inominável da alteridade ecoando, onde “natureza, cultura, corpos, textos – tudo se desdobra
num campo de força de diferenciação sem limite.” (ALAIMO, 2017, p. 927).
Ao aceitar a abertura dessas redes nas quais os processos educativos se dão, a
diferença se encarna como o dínamo capaz de rearranjar formas pré-estabelecidas (PARAÍSO,
2010). Isto posto, o imprevisível, no lugar de ganhar inteligibilidade como fator indesejado,
congrega, como os relatos das professoras parecem apontar, vida e política de modo
indissociável. Para tanto, deixamos de lado a vida enquanto um atributo ou direito que pudesse
ser possuído por alguém, e, junto a Ingold (2012, p. 27), a entendemos “enquanto capacidade
geradora do campo englobante de relações dentro do qual as formas surgem e são mantidas
no lugar.” (INGOLD, 2012, p. 27). Logo, se pensarmos que a produção da subjetividade “habita o
paradoxo entre duas experiências simultâneas, como sujeito e fora-do-sujeito” (ROLNIK, 2018,
p. 60), poderemos, por conseguinte, liberar o imaginário de tomar a produção da política como
centrada no indivíduo. A política de currículo ganha tons de figurar mais como um campo de
relações entre modos de existência, sempre difratado por desentendimentos, acompanhado,
por suposto, de sua dimensão espaço-temporal. Ou, nas palavras de Rancière (1996, p. 54), a
“política não é feita de relações de poder, é feita de relações de mundos.”
Nesses encontros inesperados, oriundos do cruzamento de distintas trajetórias,
não há respostas para nomear o que conta como política ou ação política em um currículo.
A incapacidade de “dar uma ‘boa’ definição dos procedimentos que permitem alcançar a ‘boa’
definição de um ‘bom’ mundo comum” (STENGERS, 2018, p. 446), ou de uma boa política de
currículo que deveria ser comum a todos, é a base do dissenso que temos testemunhado nas
rodas de conversa junto às professoras da rede municipal de Niterói. Pululam, ali, perguntas
como: é possível elaborar um currículo para a rede inteira? Com escolas tão diferentes
entre si, é justo um currículo comum? Esses questionamentos, além de serem indicativos da
heterogeneidade espaço-temporal de trajetórias difratadas, apontam também para o fato de
que fazer currículo e fazer política estão sob a insígnia do
Argumento explorado por Elizabeth Macedo em diferentes lugares e a partir de diferentes enfoques. Ver, a título de exemplo,
15
Chegada à seção final, gostaríamos que nossa argumentação fosse lida ao ritmo
das perguntas de Kirby (2012), como quem buscou, nessas páginas, realizar uma compreensão
mais generosa da relação entre diferença e política de currículo em uma paisagem marcada
Seção temática: Uma alternativa às políticas centralizadas - formar
de currículo situada desde e na escola? Essa é uma pergunta urgente diante do estado
que nos encontramos no terreno das políticas curriculares. Porém, seja qual for a resposta,
nós propusemos enriquecer essa interrogação com uma leitura difrativa da política, unindo
as dobras éticas dos modos de existência com a dimensão ontológica das redes e dos
desentendimentos que não cessam de as atravessarem, nas quais “o outro repercute no
eu como alteridade irredutível e o eu, sob a ação desse impacto, diz o outro.” (CARDOZO,
2018, p. 395). Com efeito, existem inúmeros caminhos para a questão da produção da política
curricular se nós pudermos abraçar os emaranhamentos ontológicos relacionais antes
de nos apressarmos em analisar o funcionamento do que quer seja em uma gramática
gerenciável. O que acontece se a produção da política curricular não passar de uma
profusão de conversações ontológicas cruzadas? E se for esse mesmo o campo de força
de articulações difratadas que “implementação da BNCC” insiste em reduzir?
Tatear por entre tantas perguntas nos levou a trazer duas ponderações. Ao
invés de lutar pela coexistência das histórias das professoras e lhes exigir representação e
lugar na política, a afirmação da relacionalidade ontológica, de “ter o outro na pele” (BARAD,
2007, p. 392), transforma a imagem da cena política. Longe de aprender a criar campos de
consenso, a produção de uma política curricular envolve a aprendizagem de uma sensibilidade
a um terreno difrativamente compartilhado e coabitado. Nós trouxemos o desentendimento
aos emaranhados ontológicos para insistir na existência de conflitos sem solução e, em
virtude disso, que essas fricções produzem modos de conectar, “um modo de ter e dar
lugar em relação, como uma forma de vida.” (CARDOZO, 2018, p. 318). Este é um trabalho
político de articulação, como Hall (1996) afirmou certa vez, sem garantias. Ao discutir sobre a
coabitação, Butler (2017b) indica não priorizar o dentro ou o fora, o eu ou o outro e vincula os
emaranhados ontológicos de histórias diferentes e ressoantes ao dinamismo espaço-temporal
da habitação da política. Sendo assim, nossa preocupação com a difratar a política curricular
aponta para a coabitação da diferença em movimento. Isso porque, “mais profundos do que
as qualidades e extensões atuais, do que as espécies e as partes atuais, há os dinamismos
espaço-temporais. Eles é que são os atualizadores, diferenciadores.” (DELEUZE, 2018, p. 283).
O plano das múltiplas relações ontológicas emaranhadas ressoa no espaço-
tempo da política porque o que chamamos de aberturas alternativas não é sinônimo de
que algo diferente poderá acontecer. Por possibilidades alternativas, nós insistimos que
uma “história diferente é sempre possível, a qualquer momento, aqui e agora” (SCHRADER,
2012, p. 125). O trabalho da difração acontece o tempo todo. As possibilidades estão sempre
retornando a cada intra-ação, posto que “nós somos do universo – não existe nem dentro,
nem fora” (BARAD, 2007, p. 396, grifo do autor). Esse acontecimento é incomensurável e o
fato de não ser possível nomeá-lo propriamente não é somente em virtude de ocorrer em
Criar condições para reconhecer a produção curricular das escolas e professores é uma tradição no pensamento curricular
16
brasileiro articulada, em grande parte, pelas pesquisas nos/dos/com os cotidianos escolares, lideradas por Nilda Alves e
Inês Barbosa Oliveira; pesquisas com as quais, certamente, temos nossas dívidas e heranças.
questão” (BARAD, 2017, p. 395). O que importa é como esse inominável da difração vai tramando
coabitação por se recusar às “marcas distintivas taxonômicas, que assentam a diferença
ao modo do apartheid” (HARAWAY, 1999, p. 126). Algo que exige ecoar um imperativo político
diferente, expresso no projeto mais recente de Haraway (2016), em como “permanecer com
a encrenca”. Sob seu eco, giramos nossa escuta para cenas que afirmam nunca haver um
ponto de partida inocente para qualquer busca política, que “nós” estamos sempre enredados
e que, através de marcas sensíveis, esse “nós” já está em curso na realização daquilo
lançado por Lopes (2018, p. 111), a saber: “talvez seja possível ser de outro modo”. Por fim,
o que queremos enfatizar é que isso poderia ganhar uma dimensão vital na produção da
política curricular antes que tudo vire ruína.
Seção temática: Uma alternativa às políticas centralizadas - formar
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