brasileiras
aex d Ld a
com carolina chagas
e fotos de cássio vasconcellos
9
No meu primeiro livro, de cinco anos atrás, deixei
clara minha admiração por Heitor Villa-Lobos. Esse
extraordinário compositor brasileiro era atrevido -
parece que mais do que eu - , orgulhoso - certamente
mais do que eu - , e levou o folclore brasileiro para u m
dos universos mais reacionários de seu tempo: a música
clássica. Suas "Bachianas brasileiras" tocam minha
alma e quase sempre marejam meus olhos.
Começo com este texto meu segundo livro. Xunca
imaginei que em tão pouco tempo poderia afirmar que
já existe a gastronomia pela qual eu clamava em 2002.
Esse legado não cabe somente a m i m . Venho de novo
gritar a grandeza de nosso país. Neste livro, afirmo e
reafirmo a necessidade de se ter u m conhecimento de
base, intimidade com o ingrediente trabalhado, orgulho
de nossa cultura, respeito à sabedoria ancestral dos
índios, caboclos e caipiras.
Quando falamos em conhecimento de base de
cozinha, podemos citar u m ^^outro" heitor-villa-lobos.
Esse não nasceu aqui, mas também tinha uma tremenda
capacidade de racionalizar seu ofício, sua arte, expandir
sua cultura além-mar e reivindicar para seu país
de origem, a França, a maternidade e a soberania
da gastronomia. Esse senhor chamava-se Auguste
Escoffier. Do encontro da atitude - e do resultado -
desses dois artesãos geniais forjei o título desta obra:
Escoffianas brasileiras.
Além de atrevido, também me considero
abusado. Durante quatro anos trabalhei sistema-
ticamente com o - hoje parceiro - ensaísta e sociólogo
10
Carlos Dória. Escoffianas brasileiras foi uma expressão
que ele usou na resenha que escreveu sobre o meu
primeiro livro.
D i v i d i este livro em três momentos, que retratam
minhas emoções no longo atalho que percorri para
chegar aqui. Lembro-me de entrar pela primeira vez
em uma cozinha profissional e não me sentir pertencente
àquele universo. Gomo debutante, f u i obrigado a fazer
serviços menores, me senti injustiçado e só os anos me
explicaram que sem u m a boa base (que eu t i n h a e
aprendi a reverenciar) nunca chegaria a altos resultados.
Nosso primeiro momento é, então, o aprendizado. Não
pretendo ser professoral, mas pontual. Entrego o que
m i n h a experiência certificou: confiar e investir nos
fundamentos da cozinha.
U m dia me vi cozinheiro, já sabia afiar minhas facas,
tinha meus dólmãs e até u m emprego. Deslumbrado com
o novo ofício, tornei-me obsessivo: l i tudo o que podia
sobre o assunto, quis saber sobre ingredientes, técnicas
e utensílios. Com ingenuidade e pureza, achei que tudo
podia, sonhei em ser dono, chef, cozinheiro. E acabei
percebendo que comecei errado. Primeiro - e sempre -
é preciso ser cozinheiro, em seguida, talvez chef e, quem
sabe, dono.
Na segunda parte da obra, dou espaço aos sonhos
com direito a desvarios líricos e a u m encontro quase
romântico com as delícias de cozinhar, do ofício de dar
prazer à mesa.
Mais recentemente descobri que a realização dos
sonhos não é tão agradável quanto imaginava. Que o
11
que desejamos pode virar realidade e trazer problemas
de adulto, de gente grande.
A última parte deste livro fala da realidade. Não
foi fácil ser assertivo em terrenos imprecisos. Não é
fácil ser preciso quando seu ingrediente vem da
natureza; não é fácil fazer afirmações quando a força
de seu negócio está na imponderabilidade humana.
Mas isso é a realidade. Retrato nas receitas também as
complicações da vida real. Nessa parte da obra. elas
necessitam de exercício e de equipamentos específicos.
E, por favor, se um dia você me encontrar na rua. não
me diga que as receitas são difíceis. Vou ter de responder
(com todo cuidado para não chamá-lo de preguiçoso)
que não são difíceis, mas trabalhosas, exigem cuidado,
zelo e atenção.
O conjunto do trabalho que apresento a seguir
ainda está verde, mas já existe. E pretende ser um fruto.
Como todo fruto, tem como pretensão gerar sementes.
A força desta obra está muito além das minhas mãos;
este li\To só fará sentido se falar à sua alma. leitor. Só
vou acreditar nesse trabalho no dia em que os produtos
nacionais estiverem nas mesmas condições em que se
encontram hoje os ingredientes forasteiros nos mercados
populares e de gourmets - e com o mesmo brilho e
destaque. E um sonho, mas é o que peço. Que o Senlior
- que é brasileiro - esteja conosco!
12
coração de xamã
Por Andoni Luis Aduriz
As paisagens intelectuais humanas discorrem em
duas águas: as da razão e as da emoção. Viver, entre
muitas coisas, consiste em mover-se pelo mundo deci-
dindo constantemente o que fazer e o que não fazer.
E é nesse processo que aprendemos e modelamos nossa
•orma de ser e de pensar. Racionalizamos para chegar
a um juízo que se ajuste à equanimidade de nosso sub-
consciente e, ao final, as emoções sempre se interpõem,
conseguindo que nosso juízo último derive a conclusões
afetadas por nossa perspectiva e por nossa forma de en-
tender o mundo - quando não, pelos nossos interesses.
Nossas respostas estão sempre subordinadas às raízes
com que nossa cultura nos soterra. Seja por ação, seja por
omissão. E as conclusões a que chegaremos, por muito
certeiras que nos pareçam em um determinado momento,
não serão verdades imutáveis, mas visões particulares, e,
com toda segurança, mudarão com o tempo.
15
Segundo dizem os especialistas, nosso subcons-
ciente é menos impulsivo do que se possa imaginar,
devido a um exercício de respostas rápidas, construídas
sobre a razão subjacente das impressões armazenadas
em nossa memória. Portanto, ainda que muitas vezes não
se materializem, os presságios são bastante assertivos
e nascem das experiências formadas e aprendidas com
a anterioridade.
A paixão de Alex Átala faz com que seja possível
que os alimentos sofram essa metamorfose, colocando-os
além de sua aparência, transformando sua textm^a e
sabor. Ele sonhou que era possível cozinhar com o que
ele representa, grita e conta, resgatando assim o saber
das pessoas à sua volta, recolhendo a alma de sua cultura
e tudo mais que ela encerra. Desde então ele se esmera
em semear uma mensagem sincera e simples na sua
forma e plena de raízes em seu conteúdo. O discm^so de
Alex reflete seu universo, e a cultura que ele representa
é expressa com espontaneidade em seus pratos.
Hoje, quer em Nova York, Madri, Paris ou Donostia,
Alex é o melhor embaixador que alguém poderia
sonhar. E aclamado, respeitado e admirado como poucos
cozinheiros. E não poderia ser de outra maneira. Com
o tempo, nosso ceticismo e nossa razão se desgastam,
deixando descobertos os nossos sentimentos. E os do
Alex são como um coração de xamã, que lateja e flui com
a natureza que ele representa, fazendo felizes todos nós.
16
prefácio
Por Jãvi Antoja de La Rosa
o Brasil tem a grande sorte de contar com uma
ilustre personalidade da gastronomia mundial. Alex Átala
está, talvez sem pretendê-lo, entrando para a História
(com H maiúsculo) da cozinha. E ela está sendo escrita
com seus pratos e, principalmente, com suas contribuições
como artista.
Em meu país, a Espanha, hoje são muitos os cozi-
nheiros que estão deixando digitais nessa História. Em
âmbito mundial, alguns lideram, outros os seguem,
uns poucos são mera imitação e muitos outros desistem
diante do desafio. E claro que quem está em evidência
é observado com atenção. A importância de se criar uma
lierarquia gastronómica não se limita a "pertencer""
ou "não pertencer" a ela, mas se estende a promover
a cultura gastronómica, a defender os ingredientes de
qualidade, a abrir novos caminhos na cozinha - com a
19
ajuda de cientistas, agricultores ou pecuaristas, por
exemplo. Há muito mais por trás dessas listas do que
sonham os comensais.
Alex Átala pertence a essa elite mundial. Ele está
levando o nome do Brasil para o mundo todo. Ao
executar com perfeição u m a cozinha nacional, Alex
Átala faz com que nós, que vivemos do outro lado do
oceano, prestemos atenção em seu trabalho e também
em sua terra - e melhor, nos deleitemos com ela. U m
felizardo. Assim vejo Alex Átala. Felizardo por contar
com ingredientes únicos e com técnica tão apurada.
E m visita recente ao Brasil, entendi mais do que
nunca a contribuição que Alex Átala dá a partir desse
espaço que reúne magia, alegria, prazer e múltiplas
sensações. O D.O.M. é hoje, sem medo de errar, destino
gastronómico que qualquer gourmet que se preza
deveria anotar em seu diário de viagem. Tive o prazer
de estar lá e privar do serviço primoroso e do ambiente
agradável. Tenho de acrescentar que tudo o que me era
(bem) apresentado em forma de prato, transformava-se
em fogos de artifício quando atravessava o limiar de
meus lábios. Mágico! Que forma de transformar em
luxo e elevar à máxima potência ingredientes insólitos
e, muitas vezes, restritos à cozinha de subsistência!
Tive a alegria de trabalhar com Alex Átala algumas
vezes. EmMadri, Turim, São Paulo. OApicius^ suplemento
de alta gastronomia que edito, conta com Alex Átala entre
seus habitues. Seus artigos são sérios, interessantes e
profissionais. Daqueles que fazem pensar. Inteligência,
razão e paixão estão "marcados'' a fogo no caráter de
20
Alex Átala. Os leitores das edições em espanhol, francês
e italiano do meu Apicius agradecem e ficam maravi-
lhados diante de u m talento como esse.
E u me vejo na obrigação moral de dizer que esta
nova obra que vocês têm em mãos é o reflexo fiel de uma
realidade. E essa realidade, hoje, é o futuro da cozinha
brasileira. Quantos jovens chefs brasileiros utilizarão
amanhã este livro como ferramenta de formação?
Muitíssimos. Não tenho a menor dúvida.
Reconheço ter personalidade visceral e apaixonada.
Sou apaixonado por coisas verdadeiras. E Alex Átala
é pura verdade. Verdadeira é sua cozinha (e a cozinha,
a sua paixão). Diante dessas evidências, rendo-me a
Alex Átala e agradeço, do outro lado do oceano Atlân-
tico, tudo o que ele está fazendo pela cozinha brasileira
e pelo enriquecimento da gastronomia mundial. Somos
muitos os que acompanhamos o seu trabalho aqui
na Espanha. E u m a paixão. E, como em todas, não
existe espaço para razão. E p u r a emoção. E emoção
ver de - e - amarela.
21
sumário
aprendizado | 28 sonho I 170 realidade | 344
primeiras palavras 30 agora você é um cozinheiro 172 caminho sem volta 346
onde tudo começa 34 marcha e sai 2 177 método e organização 350
caldos 36 gourmet ou profissional 181 gestão e administração 366
caldos: ciaros e escuros 39 cozinhando com limitações: construindo um time 377
consomes 50 bases nutricionais 187 liderando um time 381
188
molhos 51 catering o ingrediente no
gelatinas e colágeno 54 192
gastronomia seu melhor momento 384
agentes de ligação 56 cozinhar é divertido,
trabalhar nem tanto 193 o que é mais importante,
molhos frios 59
uma esponja, o ovo ou a trufa? 389
cortes 60
chique? 392
o fole gras 71 você é capaz de trabalhar 197
administrando crises 397
peixes e algas 73 o sonho de ser chef 201
uma noite sem dormir 401
crustáceos 79 o pesadelo de continuar chef 206
missão e filosofia 405
conchas e moluscos 82 cozinhar é (quase)
quanto custa o caro 412
hortifrúti 83 uma expressão artística 208
tripé: cozinha, salão e ambiente 416
vegetarianismo 86 clássico versus moderno 209
capital social 420
tubérculos 87 o polimento da técnica 215
se existissem dez bocuses, capitai efetivo 426
frutas 91
será que o original, o sr. bocuse, sem capital 427
legumes e leguminosas 95 teria valor? 218 vida longa e fidelidade 429
hortaliças 96 a mídia 219 delegando 433
ervas 97 cópia 223 não apresse o rio, .,436
pimentas 100 rumo e destino 229 ele corre sozinho
detalhes ..437
castanhas 101 criatividade 232 instinto .442
equipamento básico de cozinha 102 inovação 236 nadando 3 „ ,.446
fogão 103 subchef 240 assessoria de imprensa 450
tomo 106 chef 244 vinhos 2 451
vapor e banho-maria 111 restaurante 248 dar aulas 460
cozimento a frio 114 recebendo amigos 254 uma aula 464
conservas 115 vinhos 1 258 alex atala e seu
pães 118 erros que só você vê 261 d.cm, restaurante 470
massas 121 os erros que você nunca vê 264 temperando pelo fogo 486
massa seca 124 cerro 268 os fermentados 492
massa fresca 125 o acerto 271 porque brasil 496
boios e biscoitos 129 nadando 2 273 posfácio 510
caida 132 meu equipamento básico 276 agradecimentos 523
espessantes 133 leitura, a melhor ferramenta 278 bibliografia 526
geliflcantes 137 conhecendo o ingrediente 283
emulsificantes 138 novos ingredientes 284
sorvetes 140 novas técnicas 289
frutas 142 velhos ingredientes 294
organograma de cozinha 144 velhas técnicas 298
marcha e sai 1 147 sabores básicos 302
partidas 149 umami: o quinto gosto 307
nadando 1 153 sensação gustativa 314
organização de cozinha 155 memória gustativa 317
gestão 156 profundidade de sabor 322
preço X qualidade 158 o bom, o muito bom
autocrítica 159 e o excepcional 326
quem cozinha bem - o julgamento de um prato 329
um chef ou uma equipe? 163 trabalhar fora do brasil 334
escola X prática 165 promessas e expectativas 339
ingressando no mercado 166
23
Profissionais de cozinha vivei
Com o surgimento de escola
que cerca a atividade, saímos
profissionais reconhecidos
está perdendo seu sentido,
devido lugar. Chef é o líder (
chamada restaurante. Essa
suor, leitura, prática, conhecir
e horas de pilotagem de fo^
ninguém chef. Chefs têm de
nada - bons cozinheiros. Est
momentos, sempre se referiu
á, depois de muita lida, erros
de prática, sou hoje o líder dc
mas me orgulho mesmo é c
m lun momento de transição,
s especializadas e o glamour
5 da informalidade e viramos
. Acho que a palavra ^^chef
precisa ser colocada no seu
le uma engenhosa operação
iderança é conquistada com
nento de técnica, horas, horas
^ão. Um diploma não toma
ser - antes e depois de mais
e livro fala de chef em vários
do àquela pessoa que chegou
e acertos. Com quase 20 anos
3 uma cozinha. Sou um chef,
le ser um ótimo cozinheiro.
dez mandamentos
para executar
uma receita
Antes de começar a tazer qualquer coisa,
leia a receita Inteira. E, se possível, mais de uma vez,
Confira se os equipamentos que você tem
são compatíveis para a execução da receita e para
o número de convidados que você
pretende servir naquela data.
Escolha Ingredientes de altíssima qualidade.
Se você pretende alcançar resultados altos,
exercite a receita algumas vezes antes de torná-la pública.
A louça e a apresentação de um prato são muito importantes,
mas o fundamental é o sabor,
Compreenda bem a receita e execute os passos possíveis
com antecedência. Ou seja, não deixe para
picar os legumes quando começar a fritar a carne.
Tenha método e seja organizado.
m m
Quando estiver preparando a receita,
esteja inteiramente na cozinha, não divida sua atenção
com televisão, música, telefone.
Multo cuidado com a substituição de ingredientes,
ainda que sejam simples ervas. Antes de chegar à sua mão,
aquela receita foi pensada e testada à exaustão.
Sucedâneos podem gerar frustração.
Quem cozinha é o fogo/temperatura, não a sua mão.
Contenha a ansiedade e nunca mexa demais um Ingrediente
ou uma panela se a receita não pedir.
Trabalhe sempre com fogo moderado,
podendo aumentar ou diminuir a temperatura durante
qualquer momento do cozimento se a receita assim pedir.
oriíTiGiras pa avras,
I i
No começo de minha carreira, na Europa, trabalhei
com u m chef muito velhinho que ficava atrás da gente
com uma colher. Toda vez que via alguém da equipe
fazendo algo errado, esquentava a colher no fogo e a
encostava em alguma parte do nosso corpo. E u tinha
mania de trabalhar apoiado na bancada. Ele vivia me
chamando a atenção, mas eu não aprendia, voltava ao
erro. U m dia, quando percebeu que eu era u m caso quase
perdido, não titubeou: esquentou a colher e a pressionou
com vontade no meu pescoço. Não me contive, virei para
trás, xinguei o velho chef de todos os nomes. Fui demitido
sumariamente - e com muita razão - , mas nunca, nunca
mais, trabalhei encostado na bancada.
Confesso que essa não é uma das passagens de
que mais me orgulho na cozinha, mas acho que mostra
bem como funcionava a velha-guarda dos chefs.
Ainda na Europa, em outras ocasiões, vez ou outra,
só de ver meu trabalho u m chef me corrigia. Dizia que
eu t i n h a colocado pouca farinha, errado o momento
de entrada do ovo, a quantidade de azeite. E u ficava
indignado. Pensava: como ele pode saber, se não viu o que
fiz desde o começo, se nem provou da minha mistura?
Com o tempo, sobretudo com a prática, comecei a
conhecer os processos e percebi que sim, é possíve
saber pela cor, pelo ponto de uma receita, onde está o
erro. Para dominar uma receita, temos de fazê-la
tantas vezes que acabamos por conhecer cada passo
que ela deve ter - e também os que ela não pode ter.
O erro (e no começo erra-se muito) nos ensina as cores,
as texturas, os brilhos e o ponto a que uma receita não
31
deve chegar. E para isso é preciso repetir, repetir,
repetir. Combinações fáceis podem ser muito difíceis
se tivermos de fazê-las sempre e do mesmo jeito. O
maravilhoso da cozinha é que, assim como o sexo, ela
é libidinosa, perversa, não tem limites. Para dominá-la
e enxergar todas as suas possibilidades, é preciso ver
de outra maneira, de viés. Combinações podem ser
feitas por aproximação ou por oposição, mas tudo
é possível.
Para cozinhar por caminhos já trilhados, é preciso
aprimorar técnicas e ganhar expertise. Para fazer
cozinha autoral, há a convivência diária com o risco
e com a frustração. Não basta fazer bem u m prato.
E preciso que os outros se convençam de que você o
faz bem. Seja para executar menus clássicos, seja para
compor suas próprias receitas, seja para trabalhar numa
cozinha de hotel, de hospital, n u m catering, reger u m
3ufê, receber amigos ou qualquer outro caminlio que o
universo da cozinha oferece, é preciso conhecer muito
bem as bases.
São de bases bem executadas que surgem os
pratos perfeitos (sejam eles u m feijão com arroz, u m
leitão a pururuca, uma branda de de bacalhau ou
qualquer prato do cardápio do D.O.M. ou de outro
restaurante de chef autoral). U m caldo bem preparado,
uma peça de carne bem cortada, a escolha exata da
batata, o ponto certo de cozimento de u m alho para se
iniciar uma receita, quanto uma massa deve descansar
para se preparar u m bom pão, tudo isso (e u m pouco mais)
tem de ser observado e entendido para se ter sucesso.
32
Também aposto muito na leitura. Os livros de chefs,
de gastronomia, de ficção com uma pitada de cozinha,
de física, biologia, química, ciências e de aventura são
ótimas ferramentas para aprimorar (e buscar) práticas,
dicas e pequenos macetes. As fichas técnicas que acom-
3anham as embalagens dos produtos idem.
A cozinha é um caminho de muito trabalho, de
repetição, de muita tensão e adrenalina. Economizar
energia para ter forças na hora certa é imprescindível.
Nos textos e receitas a seguir, você encontrará dicas de
preparo e da lida diária na cozinha que colhi durante
esses quase 20 anos comandando fogões, fornos, panelas
e facas. São dicas de fundo de cozinha, de base. Acredito
que, bem compreendido e executado, esse universo será
boa credencial para se entrar em qualquer cozinha
(seja para trabalhar, seja para se divertir). Se você
repetir, aprender e compreender o que separei a seguir,
entrará com passos firmes e seguros em qualquer co-
zinha. Mas isso é só o começo, a base, o fundamento.
O resto é com você.
33
onde tudo começa
Sempre f u i u m aficionado por livros.
Principalmente os de gastronomia escri-
tos por pessoas que conhecem o ramo.
Os livros de chefs. E sempre me
pareceu divertido e estranho (e eu
mesmo já fiz isso) escrever u m
livro e colocar lá no final as
receitas básicas. Nunca achei
que fazia muito sentido. Era
uma inversão de valores.
Terminar o texto onde ele
deveria começar.
Neste livro resolvi m u -
dar u m pouco a proposta.
Começo a obra com as
receitas básicas. Porque
acredito que sem uma boa
base não se pode chegar a u m
resultado final satisfatório. E
incrível como a boa compreensão
e a prática dos fundamentos de
cozinha podem nos levar tão longe.
Só chegamos a altos patamares de
preparo e criação de receitas quando
temos uma base sólida.
Para ilustrar esse raciocínio, coloco a seguir
uma brouillade de ovos, receita que preparo para os
meus filhos, principalmente para o Pedro, o mais velho,
34
desde quando ele era pequenininho. Essa receita nada mais
é do que uma mistura de ovos, com requeijão e manteiga.
Esse trio, cozido na temperatura correta, rende um
f #áA% mi liga 11 zinho com um ponto parecido com
^ o do creme inglês. A receita parte de um
clássico francês. E com ela quero mostrar
que, com a perfeita execução, um
simples ovo mexido com requeijão
pode virar um prato incrível e
delicioso que marcou a minha
vida, a vida dos meus filhos e,
espero, marcará a de muita
gente daqui para a frente.
broul ade
de ovos e
eauei ão
Ingredientes
Preparo
• Esta receita deve sér feita com muita calma. A proteína do ovo começa a coagular
em temperaturas entre 40 e 60 graus. A coagulação completa acontece acima de 63 graus.
Por isso, a receita deve ser executada com, no mínimo, 6 ovos (para se controlar com maior
facilidade a temperatura) e em banho-maria, sem que haja fervura. Dessa forma, a temperatura
oferecida à mistura nunca ultrapassará os 60 graus e a brouillade chegará à consistência desejada. ]
35
c a •CS
Como em qualquer processo de aprendizado,
também na cozinha é fundamental o conhecimento -
e o bom entendimento - das bases, dos fundamentos,
3ara se chegar a resultados de alto nível. Não importa
como o cozinheiro vai aplicar as bases. O uso dado
a esse conhecimento é outra história. Mas ele precisa
ter intimidade com a fase preparatória dos pratos, se
quiser ser um bom profissional de cozinha.
A primeira sabedoria de base de um cozinheiro
são os caldos. Antes de começarmos a falar dos principais
caldos, é preciso esclarecer a função de um caldo.
Para isso, pense em uma salada. A melhor maneira
de comê-la é temperada com sal, azeite e vinagre ou
limão. Vamos dizer que você tem baixa tolerância a
ácidos. Para você, será possível comer essa salada com
sal e azeite, ainda que falte uma nota de acidez que
ajudaria na salivação. A mesma salada ficaria impossível
de comer sem azeite. Os sabores vão estar desencon-
trados. O azeite é um grande amalgamador de sabores
na boca, um elemento que cria união. O caldo tem essa
mesma função desempenhada pelo azeite. Ele é o elo
entre o ambiente de sabor e, por exemplo, uma proteína.
Se você fizer um risoto de cogumelos sem um bom caldo,
os sabores ficarão dispersos. Apesar de ser uma receita
feita dentro de uma só panela, se não adicionar um bom
caldo, durante a mastigação o sabor do arroz e o do
cogumelo ficarão desencontrados na sua boca.
36
A função dos caldos é então fazer com que o
conjunto paladar-olfato trabalhe de forma mais
homogénea, com quantidades equilibradas de cada
ingrediente. Daí a importância de dar a devida atenção
a eles. E primordial frisar também que os caldos, num
segundo momento, conforme a redução a que serão
submetidos, darão origem aos molhos.
Existem inúmeras aplicações para o caldo. Na cozi-
nha japonesa, ele aparece de uma maneira, na cozinha
italiana, de outra, numa cozinha clássica francesa,
ainda de outra, e por aí vai.
Na hora de analisar os caldos, é imprescindível
observar a concentração de sabor ou achatamento de
sabor, como prefiro chamar.
Também aqui podemos partir de um exemplo bem
conhecido, o molho de tomate, para entender melhor o
que isso significa.
Todos os molhos de tomate têm mais ou menos
os mesmos ingredientes: tomate, alho, óleo e, no final,
um toque de ervas, preferencialmente manjericão. Se
apresentarmos essa receita crua, vamos ter um resultado
que trará uma nota de frescor e sabor combinados,
bem distintos na boca; é fácil sentir as notas de cada
um dos ingredientes. Se cozinharmos essa mistura
por 20 minutos, já provocaremos a fusão do sabor, e
o conjunto do molho começa a tomar formato. Se cozi-
nharmos essa mesma mistura por 8 horas, perderemos
frescor e acidez, e fica muito mais difícil definir o
sabor de cada um dos ingredientes. Neste último caso,
observamos um achatamento de sabon a fusão de
3?
sabores, a formação de u m extrato de sabor. Nesses
três exemplos de preparação de u m molho de tomate,
podemos constatar que há diferentes profundidades
de sabor.
E importante entender esse passo da cozinha -
italiana, no caso - para perceber quanto a concentração
do sabor influi diretamente na receita final. Vale desta-
car que os três exemplos de molho que citamos têm
múltiplas aplicações na cozinha italiana tradicional.
Agora, vamos submergir u m pouquinho no mundo
dos caldos. Chamamos de mirepoix uma das guarnições
aromáticas que mais usamos na cozinha. E composta
de u m a proporção igual de quatro legumes: salsão,
cenoura, cebola e alho-poró. N u m a cozinha mais
Dróxima da raiz da cozinha clássica, o mirepoix se
compunha de 50 por cento de cebola, 25 por cento
de salsão e 25 por cento de cenoura. Com o tempo,
substituiu-se metade da porção de cebola por 25
por cento de alho-poró. Conforme vamos achatando
esses sabores, o resultado obtido com a entrada do
alho-poró é mais elegante, faz com que o conjunto
paladar-olfato trabalhe melhor; daí sua entrada defi-
n i t i v a na mistura.
Ao falar de caldos, a gente tem de se lembrar da
diferença entre u m caldo e u m brodo^ ou u m bouillon^
que são os termos em italiano e em francês usados
para caldos menos concentrados, menos cozidos, em
que os sabores dos ingredientes distintos estão bastante
presentes. Para ser chamado de "caldo" efetivamente,
dependendo do tipo de ingredientes, é preciso u m
38
cozimento de cerca de uma ou duas horas, para que
o desenvolvimento do sabor de todos os ingredientes
forme u m conjunto. O fumet de peixe é um bom
exemplo. Esse método clássico de fazer u m caldo de
peixe precisa da comunhão dos sabores dos legumes
e da carcaça de peixe para se chegar ao verdadeiro
sabor desejado.
Preparo
4l
caldo de peixe
(ou fumet de peixe)
Ingredientes
6 kg de carcaça de peixe, 3 talos de salsão,
3 talos de alho-poró, 4 cebolas médias, 1 cabeça de alho,
4 cravos, 2 folhas de louro, 5 g de pimenta-do-reino em grãos,
750 ml de vinho branco seco, água
Preparo
Junte todos os ingredientes numa panela de boca alta e acrescente
o vinho e a água em quantidade suficiente para cobrir a carcaça.
Cozinhe por 3 horas em fogo baixo.
Coe em um chinois fino com um pano.
42
caldo de legumes
Ingredientes
1/2 talo de um alho-poró nnédio, 1/2 talo de salsão, 1/2 cebola média,
1 cenoura, 1 abobrinha, 1 cravo, 1/4 de garrafa de vinho branco,
1 bouquet garni (1/2 ramo de tomilho, 1/2 folha de louro e 1/2 ramo de alecrim),
5 6 de água
Preparo
4:5
essência de
umes tostados
Ingredientes
1 cabeça de alho
2 pimentões vermelhos
2 pimentões amarelos
2 pimentões verdes
3 tomates
3 cebolas
1 ramo de tomilho
1 ramo de alecrim
8 grãos de pimenta-do-reino preta
óleo de canola
300 ml de água
Preparo
Finalização
' 10 g de gelatina
f- 2 folhas de salsa lisa
2 folhas de manjericão
6 folhas de alecrim
1 cm de tomilho
sal
Preparo
45
caldo de carne
Ingredientes
Preparo
Coloque os ossos em uma assadeira e torre-os no forno durante 40 minutos a 200 graus.
Pique todos os legumes em formato de meia-lua. Coloque o óleo numa panela alta em fogo alto,
refogue primeiramente a cebola até começar a dourar. Acrescente o restante dos legumes,
as ervas, as pimentas, metade das sementes de coentro, o alho e refogue bem.
Junte os ossos, metade do vinho tinto e do vinho madeira. Acrescente água até cobrir os ossos.
Cozinhe em fogo baixo por aproximadamente 40 horas (complete com água após 20 horas).
Não esqueça de desligar o fogo durante a noite. Coe o caldo no chinois e em outra
panela leve-o novamente ao fogo. Acrescente o restante do vinho tinto e do vinho madeira,
e o restante das sementes de coentro (levemente torradas, a fim de liberar mais sabor).
Cozinhe por mais 8 horas em fogo baixo. Coe novamente e resfrie.
Para finalizar, depois de resfriado retire a gordura da superfície.
46
Isso t a m b é m pode ser feito em u m a frigideira e no
fogão. O caldo restante dessa operação vira u m molho,
o jus. Esse caldo r alinho resulta de uma técnica larga-
mente difundida e executada por muitos de modo
empírico. A q u i no Brasil, aliás, se faz pouco uso desse
caldo. Outra aplicação do caldo resultante da tosta das
carnes, das aparas ou dos ossos é a montagem do jus
rôti^ que é u m caldo com maior concentração de carne,
mas t a m b é m bastante líquido.
Existe ainda a p r e p a r a ç ã o de fundos mais traba-
lhados para a execução de outros tipos de caldo, como
a demi-glace. Esse caldo partirá de mnfond brun que
exige passos mais laboriosos e a adição de ervas aromáti-
cas, vinho e água. Com a concentração da demi-glace
e a adição de alguns legumes - principalmente cenoura,
que acentua as notas doces e balanceia as notas
amargas - , vamos, então, ter ag/ace, que é o concentrado
extremo de carne.
H á variações claras e escuras desses molhos. E o
ingrediente que vai dar o tom. No caso dos molhos claros,
além do uso da parte clara dos legumes, é necessário
embrar de tirar todo traço de sangue das carcaças.
E muito importante você conhecer cada u m desses
pontos para saber, quando for fazer u m molho ou u m
risoto, qual é a quantidade correta e qual desses
passos de concentração é o ideal para você a l c a n ç a r
seu objetivo.
Tendemos a associar caldos claros a caldos de
vegetais ou de aves, no entanto, é b o m lembrar que
caldos de vitela também podem ser bastante claros. Para
47
I
J
Grande passo da cozinha clássica, a demi-glace é um dos molhos matrizes que mais uso no D.O.M.
Uma característica da minha cozinha é fazer uma boa demi-glace. Há dois pontos importantes a se observar
nesse preparo: a tosta dos ossos. Temos de tirá-los ligeiramente antes do ponto ideal. É muito comum
queimar um pouquinho além do ponto no pré-preparo. Aí, durante a redução, há concentração de sabores
e os amargos ficam muito potencializados, O segundo ponto é usar o máximo possível de juntas
(essa opção é muito pessoal). As juntas são ricas em colágeno e quando abusamos delas podemos
dispensar agentes de ligação (como um roux ou a tapioca) para a etapa fina!. Outras vantagens de
preservar a gelatina d^^^^^^ são o brilho e a translucidez que ela confere à mistyrafinal.
acompanhar um risoto, por exemplo, um caldo claro
de vitela tende a ter muito mais elegância no resultado
final. Por isso, é o mais indicado, o que tem melhor
função e impressiona mais na boca.
Os caldos claros costumam ser preparados em
menos tempo que os caldos escuros, até porque o
primeiro passo dos caldos escuros é tostar a carcaça.
consomes
Normalmente fazemos consomes de carne e de
frango. Eles partem de caldos-base submetidos à técnica
da clarificação. Esse método é simples: aquece-se o
caldo em fogo brando, batem-se as claras quase em neve
e somam-se essas claras ao caldo. Por causa da ação da
temperatura, teremos uma reação proteica que fará com
que todas as suspensões do caldo se prendam na super-
fície da mistura. Devemos então tirar toda a espuma de
claras da panela com uma escumadeira. E ainda passar
um papel filtrante na mesma superfície para tirar o
restante da proteína retida nas claras e obter um caldo
líquido e translúcido, também chamado de consome.
Existem consomes clássicos feitos a partir de base
animal. Para esse preparo, é fundamental a presença de
proteína, ou seja, na hora de fazer um consome de carne,
de peixe ou de camarão, é necessário que durante o
cozimento do caldo agregue-se a carne em questão.
Um exemplo: para preparar um bom consome de
camarão, podemos usar as cascas que cotidianamente
50
colocamos no preparo do caldo, acrescentando também
um ou dois quilos do camarão mais barato, porém
de qualidade, que encontrarmos. Com isso, a reação
de proteína existirá durante o cozimento e o método de
clarificação será aplicável à receita.
Há uma segunda escola de consomes que utilizamos
sistematicamente nas receitas deste livro, que são quase
como uma infusão de legumes. Vemos isso na essência
de legumes tostados e no consome de palmito. Nesses
casos, não existe o processo de clarificação.
mo nos
Os molhos partem dos caldos. A escola de molhos
do D.O.M. é toda em cima dos caldos. Com técnicas
de aromatização e correção de pontos de acidez,
chegamos às concentrações desejadas.
Para fazer um molho no D.O.M., partimos somente
dos molhos-matrizes, principalmente da concentração
de caldos, visando valorizar o sabor original de cada
um dos ingredientes. Diferentemente do caso do filé ao
molho mostarda, que tenta casar a mostarda e o filé,
nossa ideia é criar uma alavanca de sabor para o
ingrediente principal do prato.
51
consome ae siri ae rocna
Para o consome
Ingredientes
4 siris de roclia frescos (com mais ou menos 300 g cada),
120 g de cebola, 3 dentes de alho, 100 g de cenoura, 50 g de alho-poró,
50 g de talos de salsão, 1 folha de louro, 3 raízes de coentro,
3 raízes de salsinha, 1 pimenta-de-cheiro amarela, 2 pimentas-malaguetas pequenas,
1 pimenta-de-cheiro verde, 10 g de gengibre, 5 grãos de pimenta-do-reino preta,
15 g de suco de limão, azeite de dendê, q.b. de sal
Preparo
Lave bem os siris. Dissolva 50 g de sai em uma panela
com 5láe água fervente. Amarre com um barbante as pernas
do siri para que fiquem encolhidas perto do corpo (isso vai
evitar que elas quebrem durante o cozimento). Coloque os siris
na água quente e deixe cozinhar em fogo médio por 8 minutos.
Retire os siris da água (mas reserve essa água) e resfrie-os em
um banho-maria de água e gelo. Quando estiverem totalmente frios,
tire da água e reserve até a hora de servir. Descasque a cebola,
a cenoura e os dentes de alho. Lave bem o alho-poró, o salsão,
as raízes de coentro e a salsinha. Corte todos os legumes
em pedaços de 2 cm. Tire a espuma da superfície da água
de cozimento dos siris e junte os legumes cortados, a folha de louro,
os grãos de pimenta, as raízes de salsinha e de coentro,
a pimenta-de-cheiro inteira e o gengibre cortado em fatias finas.
Deixe reduzir em fogo baixo até sobrar 1,5 Ide água
(sempre retirando a espuma da superfície). Coe o líquido duas
vezes: primeiro com um chinois fino e, depois, com um pano
específico para clarificação de caldos. Volte essa mistura para
uma panela e esquente novamente. Acerte o sal e tempere
com o suco de limão fresco. Com uma faca afiada, corte o
siri ao meio e coloque em um prato fundo. Esquente novamente
o consome e cubra com ele o siri. Coloque alguns pingos de
azeite de dendê e lascas finas de pimenta-malagueta e de
pimenta-de-cheiro verde. Finalize com alguns cristais de gengibre.
55
agentes de igação
Nós temos algumas maneiras de ligar u m molho,
ou seja, de espessá-lo. As mais clássicas são as ligações
de farinha, como beurre manié (que ganha esse nome
porque antigamente era feita com as mãos, main em
francês), que é só manteiga e farinha sem temperatura;
depois, roux^ que também leva manteiga e farinha,
mas submetidas ao fogo; o roux blond é u m roux
cozido por 15 minutos e mais claro; existe ainda o
roux brun, que é mais escuro. O que é importante
entender, em cada u m desses resultados, é que, quanto
mais crua a farinha estiver, maior seu poder de
ligação (mais espessante ela será); porém, quanto mais
espessa estiver, maior interferência terá no resultado
(sabor) final do molho.
Outra maneira de ligar o molho é a p a r t i r de
amidos, seja de m i l h o , de arroz, seja u m a tapioca.
Os amidos tendem a ter notas muito fortes de sabores
e a interferir demais no sabor. Então, muito cuidado
na hora de fazer ligações a p a r t i r de amido, mesmo
que seja com a minha tão amada tapioca. As ligações
de amido conferem uma textura bastante particular;
quem está acostumado a trabalhar com ele reconhece,
a quilómetros de distância, onde foi acrescentado.
As emulsões de ovo são outra maneira de ligar o
molho. Bom exemplo da aplicação dessa escola é a
família da hollandaise^ da maionese, de béarnaise e
todas as versões de molhos cozidos ou ligados a partir
56
de ovos. O único cuidado na aplicação dessa técnica é
com a temperatura. Muitos cozinheiros novatos tendem
a ter ojeriza de preparar uma béarnaise. Eles ainda
não sabem controlar o fogo. Se a temperatura for mal
controlada, o ovo cozinha e talha a béarnaise^ daí o
medo dos inexperientes. Uma vez compreendida a
quantidade certa de calor a ser fornecida à panela, e a
necessidade de se estabilizar aquela temperatura (ela
não pode se alterar), dá-se o pulo-do-gato do molho
béarnaise e da hollandaise. Eles deixam de ser um
mistério e tornam-se uma conquista.
E em nome da estabilidade do cozimento que
em receitas de zabaione, um clássico da cozinha
italiana, nunca se recomenda o uso de dois ou três
ovos. As receitas geralmente partem de seis a doze
gemas. Nunca perca de vista que cozinhar é uma
equação de Tempo x Temperatura, ou seja, quanto
menor a quantidade de ingredientes que você estiver
cozinhando (ou maior a chama do seu fogão), mais
rapidamente sobe a temperatura da panela. Então,
grandes quantidades tendem a ter uma curva de
subida de temperatura menos íngreme, por isso são
mais fáceis de controlar.
A uma altitude de 900 a 1.000 metros, como temos
em São Paulo, a água entra em ebulição a 96 graus.
Se colocarmos 5 litros de água em uma panela con-
vencional e usarmos fogão industrial padrão, essa água
vai ferver em 13 minutos. Se colocarmos 20 litros de
água, no entanto, a água não vai ferver num tempo
quatro vezes superior ao necessário para ferver os
5 litros de água. Ela vai demorar u m pouco menos,
como mostramos no gráfico a seguir. Esse gráfico será
de grande utilidade na preparação de risotos para cinco,
vinte ou cinqiienta pessoas. U m risoto se cozinha em
panelas médias por 16 a 18 minutos e rende até quatro
porções. Operando risotos para uma quantidade maior
de pessoas (trinta, quarenta), os tempos de cozimento
podem apresentar grande variação, e isso vai depender
muito da temperatura do caldo que for sendo adicionado
durante o preparo. E é mais fácil controlar a subida da
temperatura trabalhando com grandes quantidades.
Gráfico de fervura
litros
40
35
30
20
15
10
ÍMnMiCtUHCKS
5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 55 60 ^ 65
minutos
58
mo nos.trios
Bons exemplos de molhos frios são os vinagretes,
pestos, maionese. E uma linda escola de molhos, grande
facilitadora para os chefs no dia-a-dia ou para o cozi-
nheiro que estiver recebendo. Você faz o molho com
antecedência, estabiliza e deixa lá. Vai usá-lo a frio no
último minuto. Como, quase na maioria das vezes, ele
tem um componente de azeite ou de uma gordura de
ordem vegetal, e é capaz de assimilar a temperatura do
Drato ou do ingrediente muito rápido, dificilmente você
vai pegar um prato feito com molho frio e perceber
que ele está frio.
Há alguns cuidados com o manejo de molhos frios
que devem ser observados. No caso do pesto, por
exemplo, ele não deve ser colocado diretamente em uma
frigideira. O ideal seria usar um pouquinho da água
do cozimento do macarrão no molho e depois aplicá-lo
sobre a massa. A água quente vai dissolver o pesto e
ajudá-lo a se homogeneizar melhor com a pasta; vai
também evitar que aquela temperatura suba acima
de 100 graus, situação em que o manjericão começaria
a expressar sua intolerância às altas temperaturas,
resultando em notas amargas. Mas está aí outra grande
vantagem dos molhos frios: se bem usados, eles conse-
guem preservar muitas notas de ervas finas na hora
de aplicar.
Alguns molhos podem ser feitos a quente e depois
passados a frio. Existem aplicações disso (como, por
59
exemplo, as hollandaises^ béarnaise^ reduções de vinho,
concentrações de rutas e cJ oroíilas). Mas, para o
entendimento geral, molhos frios começam a preparação
a frio e são servidos frios também.
Voltando um pouquinho à parte de caldos e à de
vinagretes, temos também as nages.^ que são os molhos
íquidos usados para crustáceos e peixes da cozinha
francesa e que, na verdade, são caldos ácidos para
acompanhar esses alimentos.
Aqui também vale lembrar as famosas reduções
que nunca entravam no universo dos molhos frios
(como uma redução de vinho madeira e de vinho do
Porto). Durante muito tempo esses preparados foram
considerados subprodutos de cozinha. Hoje em dia,
são aplicados diretamente como molhos. Sempre usei
muito esse caminho.
cortes
Vamos falar primeiro dos cortes de carne. Todos os
quadrúpedes de carne vermelha têm uma musculatura
e uma compleição física que compreendem patas, rabo,
cabeça, pescoço. Logo, a musculatura da carne desses
animais é bastante parecida e, em conseqíiência, os
cortes de carne que eles permitem, também. Por isso,
dá para dizer que um coelho tem picanha, por exemplo,
só que essa picanha é muito pequenininha. A escola de
cortes vai mudando conforme a dimensão da carcaça
porque, assim como não vale a pena separar a picanha
60
V.
61
esses cozimentos foram desenvolvidos pelo homem
antes do domínio da eletricidade, ou antes da dispo-
nibilidade da eletricidade para as regiões rurais,
especialmente. E possível confitar tudo. Alguns pedaços
se adaptam melhor a esse tipo de cozimento, como as
coxas de pato.
As aves de caça são u m capítulo muito emocionante
para todo cozinheiro. Perdiz, faisão, codorna e outras
menos disponíveis, mas muito difundidas na Europa.
Alguns tipos de pato, como a sarcelle ou o colvert, que
é o pato de pescoço verde, têm carne fascinante. Entre
os europeus, ainda hoje existe a espera pela temporada
de caça e, conseqiientemente, pelas carnes de caça.
Essa época é tão valorizada quanto a estação de cogu-
melos ou a de trufas. Muitas vezes você v a i a alguns
restaurantes e encontra no cardápio uma advertência
para a possibilidade de se encontrarem bagos de chumbo
nesse ou naquele pedaço de carne. Isso é considerado
sinal de nobreza, u m luxo, porque autentica que o
sabor selvagem do animal está intacto (ele não teria
sido caçado e levado u m tiro se assim não fosse). O
mesmo animal, criado em cativeiro e alimentado com
ração, não desenvolve aquele tipo raro de sabor. Ele
pode ter, no máximo, u m sabor intermediário entre u m
pato selvagem e u m pato domesticado.
Esse tipo de carne é sempre alvo de grande atenção.
Todos os grandes chefs abrem u m capítulo especial
Dara as carnes de caça e para preparações de caça.
Algumas dessas carnes têm sabor levemente mais
amargo, realmente selvagem. Isso requer do cozinheiro
62
uma expertise.) inteligência, muita perspicácia e precisão
no preparo desses ingredientes e no entendimento
dessas características. E por isso que elas estão nos
mais altos patamares dos fetiches dos chefs no mundo
inteiro. Na cozinha asiática, na cozinha clássica europeia
e em todas as suas variantes, as caças sempre foram
u m momento de m u i t a atenção - e excitação - do
Drofissional de cozinha.
As carnes selvagens também podem ser obtidas
criando-se animais selvagens em ambientes que imitam
o seu habitat natural. No Brasil temos alguns exemplos
desse manejo. E a forma que temos de consumir carnes
selvagens, já que aqui a caça é ilegal. Pacas, capivaras,
queixadas (grandes porcos-do-mato) e catetos (pequenos
porcos-do-mato) já são produzidos em escala comercial.
Sei também que há projetos de produção de tartarugas
e de alguns peixes para o consumo, mas ainda não
alcançaram escala comercial. Infelizmente, no Brasil
há uma imensa dificuldade em se desenvolverem tais
projetos. Não entendo por que isso acontece, pois essa
também é uma forma inteligente de preservar os animais
e a natureza. Pouca gente sabe, mas há espécies muito
consumidas de peixes e crustáceos que estão ameaçadas
de extinção - caso do camarão-de-sete-barbas. Como
a fiscalização não é eficaz, a maior parte do camarão
desse tipo que se pesca e se vende por aí é ilega .
Voltando ao território dos animais de mato, a
pomba é elemento onipresente em todos os restaurantes
estrelados. Não a nossa pomba doméstica, mas a pomba
selvagem. Atualmente, em cidades como Paris, Londres
63
e Milão, é possível encontrar pombas selvagens adap-
tadas ao ambiente urbano. Na maioria das vezes, elas
vieram de criações que existem para abastecer restau-
rantes. Muitas vezes, quando u m restaurante está
servindo carne de caça, também está ajudando a
preservar aquela espécie e muitas outras. Em países
desenvolvidos, as temporadas de caça são feitas sobre
censos populacionais, quando se constata que uma
espécie extremamente populosa está prejudicando o
equilíbrio de todo um ecossistema.
Infelizmente, esse raciocínio não é aplicado pelos
agricultores de grande escala. A monocultura é grande
vilã da natureza. Desestabiliza totalmente um meio
ambiente. E não há nenhum controle inteligente de
preservação dos ecossistemas depois da chegada dessas
culturas tão nocivas.
1
í
I
64
0-+ o . ',•
0 5 frald
()() costela
0 7 filé mtar
cortes inqleses de bo
cortes franceses de bo
o toie aras
Não como chef, mas como ser humano, seria
hipocrisia da minha parte negar que essa iguaria é fruto
de um processo que causa sofrimento ao animal. O pato
sofre, sim, para a produção do foie, assim como sofre o
frango abatido com apenas 45 dias de vida, como sofre
(ainda mais) uma vitela precocemente desmamada e,
muitas vezes, morta aos pés da mãe (no caso da vitela de
leite). No caso da vitela, os requintes de crueldade são
ainda maiores. Um macho é descarte de produção, aba-
tido ao nascer. Em outras ocasiões, a mais usual, com
menos de 15 dias de vida, a vitela é separada da mãe e
passa a viver sem contato com a luz solar (para evitar a
fixação de ferro em seu organismo), alimentada com soro
de leite e nada mais. Há ainda os vitelones ou bezerros
com mais de seis meses, já com uma carne mais rosada,
menos vermelha que a de um boi (mas mais escura
que a da vitela). Os vitelones muitas vezes são vitelas
que ficaram anêmicas, tiveram de receber injeção de
ferro e foram criadas à base de ração num confinamento,
para serem abatidas a seguir.
Para produzir seus alimentos, o ser humano é
muitas vezes impiedoso, seja com frangos, seja com
vitelas, com porcos, com patos ou gansos, para a
produção de foie gras. Mesmo quando se trata da
agricultura comercial, o plantio em larga escala com-
promete não só um animal como todo o ecossistema
que o rodeia (inclusive as águas de lagos ou rios - e os
71
animais que ali vivem que serão infestadas depois
de grandes chuvas pelos produtos usados no controle
de pragas das grandes lavouras). Dito isso, vamos
lembrar que o foie é um ícone da cozinha, um ingre-
diente de poder quase hipnótico sobre mim, mas que
atualmente ganhou uma popularidade assombrosa.
Seu uso está exacerbado, o que está quase banalizando
esse ingrediente, como se deu com o salmão tempos
atrás. Deve-se usar foie gras com elegância para manter
seu lugar no pedestal da cozinha.
Uma dúvida muito comum entre os admiradores
de foie gras é quanto à sua origem: ele é feito com
fígado de ganso ou de pato? O foie vem do Egito antigo.
Nos períodos de escassez de comida, os gansos, que
eram usados como animais sinaleiros (serviam para
guardar as propriedades), também passavam fome e
acabavam se alimentando exclusivamente de uma
espécie de figo do deserto. Esse figo tinha uma toxina
que fazia com que o fígado do ganso inchasse. Com fome,
algumas vezes o homem abatia os gansos, e, com o
tempo, acabou percebendo que nas épocas de vacas
magras o fígado do ganso era maior, mais amarelado e
mais saboroso. Dos primórdios do Egito saltamos para
a Europa. Nesse continente, essa informação entrou pela
Itália, mas acabou por íixar-se como tradição na França
e na Hungria (não há registros do uso de foie na cultura
italiana). Sendo assim, o foie de ganso foi o primeiro
a existir e hoje em dia ainda é muito usado para
preparações a frio, como terrines e patês, porque tem
um sabor de carne mais presente, mais forte.
72
V.
peixes e a gas
Os peixes pertencem à parte mais incrível da
cozinha. Não só pelas sutilezas de sabor (por sua fácil
digestão, por serem muito mais saudáveis do que a carne
vermelha, por terem uma gordura de melhor qualidade),
mas pela diversidade de espécies existentes em rios e,
sobretudo, no mar. Do ponto de vista da gastronomia,
sinto dizer, o mar nos fornece, sem a menor margem
para dúvida, os melhores produtos. Quando pensamos
nas milhares de espécies de peixes, pensamos também
em frutos do mar, crustáceos, bivalves ou conchas,
moluscos. Aqui vou acrescentar dois itens que tradicio-
nalmente não comemos no Brasil, mas que são grandes
fontes de sabor (e vivem no mesmo ambiente dos
peixes): os ouriços e as algas. Na cultura japonesa e na
espanhola, é muito comum preparar pepinos-do-mar.
Os pepinos-do-mar lembram lesmas, mas são grandes
ícones de sabor.
Como sempre, o primeiro passo para lidar com
esse imenso universo é aprender a entender a riqueza de
cada um dos sabores existentes e todo o seu potencial.
73
V,
74
gourmets; sei que há muito cozinheiro profissional e
até chef de cozinha que faz confusões atrozes com
peixes de água salgada e de água doce.
Por isso, repito: conhecer bem um ingrediente é
fundamental para a sua boa aplicação. Há grandes
diferenças entre os vários tipos de peixe branco. Robalos
têm uma quantidade menor de gelatina do que
inguados, filés de espessuras diferentes, tamanhos
diferentes. Na família dos robalos, temos no Brasil o
robalo-flecha e o robalo peva, que têm sabores diferentes
e vivem em regiões diferentes do mar. Oflechavive
durante a maior parte do tempo em área costeira,
migrando muitas vezes para as regiões de estuário; já
o peva passa quase o tempo todo na região de estuário,
dentro de rios. Por isso, a alimentação de um é totalmente
diferente da do outro - conseqiientemente, sua carne
também. Por incrível que pareça, os dois têm cabeças
bem parecidas, mas o formato do corpo é diverso.
Então, é bastante importante saber qual é a característica
ísica de cada um deles.
Com o linguado acontece a mesma coisa. Temos
de saber o que é um linguado manteiga e o que é um
linguadinho do Sul. A partir daí há todas as diferenças
para a utilização final da carne. O mesmo vale para
garoupas, badejos, chernes e meros. Apesar de todos
serem da mesma família, têm notas de sabor com-
pletamente diferentes entre si.
O universo de peixes é imenso, assim como são
muito profundas as diferenças entre eles. Um cozinheiro
não pode perder de vista que gastronomia não é
Ingredientes
Preparo
ingredientes
Preparo
76
simplesmente cozinhar. E levar o ingrediente ao seu
melhor momento. Para isso, é fundamental conhecer
profundamente o ingrediente usado.
crustáceos
O capítulo sobre caranguejos, lagostas e todo o
restante do universo dos exoesqueletos (animais com
esqueletos externos) está para o universo dos peixes
assim como as caças estão para o universo das carnes.
Os crustáceos são grande fonte de sabor, produtos
apaixonantes. Infelizmente, no Brasil, temos o costume
de cozinhar demais essas carnes, mas elas devem ser
servidas malpassadas. Sempre é bom lembrar que um
ingrediente fresco e bem acondicionado não oferece risco
nenhum à saúde humana.
E engraçado ver que o brasileiro vai a restaurantes
japoneses e come camarão levemente cozido (bran-
queado) sem a menor desconfiança. Também freqiienta
bufes em que os peixes estão expostos em cima do
balcão, sem a refrigeração correta, e come sem o menor
problema. Aí, quando recebe um peixe malpassado,
torce o nariz. Deveríamos rever esse hábito. O ponto
ideal de apresentação de um peixe, muitas vezes, é o
malpassado mesmo.
Crustáceos fascinam os chefs porque têm coral.
Essa substância não é a mesma que se usa na fabricação
de bijuterias. O nome vem da sua cor (também algo
79
sta de neixes
Peixes de pedra
(muito bons para sopas e caldos gelatinosos)
Garoupa
Badejo
Pargo
Dentão
Cioba
Vermelho
Vermelho-henrique
Unguado
Caranha
Budião
Trilha (ou red mullet ou rouget barbet)
Peixes brancos
(muito bons para caldos-base)
Robalo
Namorado
Pescada-oambucu
Pescada-amarela
Peixes azuis
(não recomendados para caldos)
Anchova
Atum
Bonito
Sardinha
Sarda
Cavala
Cavalinha
Sororooa-sarda
Xarel
Carapau
Pitangola
Olhete
Tainha
Olho-de-boi
80
manteiga de cora
Ingredientes
30 ml de azeite
3 dentes de allio picados finamente
500 g de cabeças de camarão
400 g de manteiga pomada .
300 ml de água
Preparo
conchas e mo uscos
Mais uma vez a tradição brasileira usa mal esses
ingredientes. A lula não tem de ser '^borrachenta'', muito
menos um polvo, uma vieira, um marisco. Se cozidos
no ponto correto, eles nunca terão essa consistência.
82
Gastronomia é levar o ingrediente ao seu melhor mo-
mento. Por isso, mais uma vez insisto: o ponto correto
para o consumo de conchas e moluscos é malpassado.
O polvo é uma exceção. Ele também pode ser submeti-
do a cozimentos mais profundos, por 40 minutos, numa
panela de pressão, para melhor romper suas fibras,
como manda a tradição italiana.
Crustáceos e moluscos também dão caldos excep-
cionais. Há ainda múltiplas utilizações para conchas e
moluscos. Além das carnes, oferecem subprodutos como
o coral de vieira (no caso das vieiras), os tentáculos, o
fígado ou a tinta (no caso das lulas e dos polvos). Aliás,
para muitos chefs, esses subprodutos são mais fasci-
nantes do que o próprio bicho.
83
importante. Uma cenoura velha, com fissuras, tende a
ser amarga. Uma fresca, muito mais doce. O emprego
dessas duas cenouras resultará em caldos completamente
diferentes. Por isso, é muito bom conhecer os diversos
tipos e as muitas nuances de cada u m dos tipos de ingre-
diente que vamos usar numa receita. Assim, na hora
de colocá-la em prática, o cozinheiro saberá exatamente
que tipo de cenoura usar para conseguir essa ou aquela
nota desejada.
Só há uma maneira de conhecer bem as cenouras,
Datatas e todos os outros ingredientes do mundo dos
hortifrúti: tendo contato com eles. Conversando com o
seu feirante, querendo saber as diferenças daquele i n -
grediente, perguntando como ele prepara, para que usa.
E m seguida, em sua cozinha, teste o ingrediente. Veja se
consegue os mesmos resultados ou não. Não existe outra
maneira de conhecer esses ingredientes. E é fundamental
conhecê-los. Por que uma cebola roxa? Por que uma
cebola branca? Quando colocar u m dente de alho? A
que ponto tostar u m dente de alho, uma cenoura velha,
uma cenoura nova, uma batata bintje, uma batata ágata,
uma batata amorosa? As respostas de todas essas dúvi-
das significam grandes diferenças no resultado. Daí a
importância de conhecer bem o universo dos hortifrúti.
As pessoas não costumam se dar conta da i m -
portância desse universo. Mas os legumes, os frutos,
as verduras, as flores são onipresentes na cozinha.
Das entradas às sobremesas.
No Brasil, essa importância é ainda mais gritante.
Eoi o Eerran Adriá que u m dia me convidou a olhar
84
o mapa-múndi e apontar que parte dele ainda é
gastronomicamente intocada. A resposta é simples:
a Amazónia. A indústria farmacêutica e de cosméticos
conhece melhor essa região do que os profissionais de
cozinha. Do ponto de vista dos vegetais, temos ali um
sem-fim de possibilidades a descobrir. Não por acaso,
atualmente a Amazónia é parada obrigatória no roteiro
de todo grande chef de cozinha. No caso brasileiro, o
Cerrado e a tão judiada Mata Atlântica também são
fontes inesgotáveis de ingredientes maravilhosos para
o reino da cozinha.
Por isso, digo que o reino vegetal não deve ser
desprezado. Só para citar um exemplo, nos últimos
anos trabalhei sistematicamente o cambuci. Essa fruta,
certamente, está entre as mais emblemáticas de meu
trabalho na cozinha. Quando ouviam o nome da fruta,
muitas pessoas o associavam à Amazónia. Pouca gente
lembrou que há na cidade de São Paulo um bairro
chamado Cambuci. Aliás, há lá um Largo do Cambuci,
onde até hoje um pé de cambuci dá a tal fruta. A verdade
é que bem debaixo do nosso nariz há um universo de
plantas, frutos, legumes, flores que devem ser traba-
lhados e bem conhecidos pelos chefs. Eles estão longe
de ter menor valor gastronómico do que carnes, peixes,
crustáceos e outros ingredientes que costumam ser
mais reverenciados nas cozinhas.
85
veaeta a smo
Tenho especial fascínio por essa parte da cozinha. O
3oder do movimento hippie, nos anos 1970, influenciado
por culturas ancestrais como a indiana, impregnou
a cozinha vegetariana. Por causa da influência dos
liippies, ela é vista até hoje, no mundo ocidental, como
uma coisa de gueto, de bicho-grilo. Mais um equívoco
do mundo gastronómico.
Um dos momentos apoteóticos da cozinha, o ma-
carrão com molho de tomate, é um prato 100 por cento
vegetariano. Há muitas possibilidades de se fazer uma
refeição rica, gostosa e criativa sem o uso de proteína
animal. Berinjelas, cogumelos, alcachofras, aspargos,
entre muitos outros, têm sabores fortes. As alcachofras
e os aspargos, aliás, são vistos com reserva pelos amantes
do vinho: de tão fortes de sabor, podem cobrir notas
da bebida.
Arrisco até dizer que eu poderia abrir um restau-
rante no qual a falta de carne não faria a menor
diferença. Pensando em algas, tomates, tubérculos,
verduras, enfim, em uma série de ingredientes de
cozinha que não incluem carne, é possível montar uma
refeição incrível.
E ainda importante frisar que todas as cozinhas
incluem pratos vegetarianos e que a carne não faz falta
nenhuma em uma refeição. Se pararmos para pensar,
poderíamos reduzir bastante a quantidade de carne que
ingerimos. Ela não tem essa importância crucial na nossa
86
alimentação. Não mesmo! É possível viver muito bem
com a cozinha vegetariana, e é possível chegar a notas de
sabor contundentes só pensando em castanhas, queijos
e todos os outros ingredientes desse universo.
A cozinha vegetariana deve ser reinterpretada.
Há muito espaço para isso na gastronomia atual.
cuDercu os
E importante lembrar que foram os peruanos e
mexicanos que introduziram as batatas na cozinha
ocidental. Foi no nosso continente que se iniciou o
consumo dos tubérculos, que daqui se disseminou para
o restante do mundo. Tubérculos são fontes de amido
e apresentam grande diversidade de sabor. Pense na
mandioquinha, na batata, na mandioca, no cará, na
batata-doce, no inhame ou até na cenoura. Esse departa-
mento dos ingredientes é muito rico. No Brasil, somos
bastante agraciados no que tange às muitas possibi-
lidades dessa família do reino vegetal. Aqui dá um pou-
co de tudo que dá no restante do mundo, quando se fala
em tubérculo (e isso é muito raro nos outros pontos do
globo). Por isso, vale a pena mergulhar bem nesse mundo
e aprender a tirar o melhor partido dele. Entender do
que são constituídos, que parte deles é amido, quais as
diversas possibilidades de cozimento que oferecem.
Quando falamos em amido, é importante lembrar
que ele é ótimo espessante e gelificante. Isso é fácil de
perceber quando fazemos um pirão a partir de caldo de
87
[UDercu os
Puré de cará
Ingredientes
Sagu 1 kg de cará Puré de batata
sal
Ingredientes 200 ml de leite Ingredientes
500 g de sagu 80 g de manteiga sem sal água
1 tde água 400 ml de creme de leite fresco sal
1 kg de batata
Preparo Preparo 45 g de manteiga
Cozinhe o sagu em 1 litro de água Cozinhe o cará, com a casca, 200 ml de creme de leite fresco
fervente até que fique macio. em água com sal suficiente para 100 mi de leite
(O sagu não deve cozinhar por cobri-lo. Quando estiver macio,
completo, ou seja, até ficar em cerca de 2 horas de Preparo
totalmente transparente. cozimento, escorra-o e Numa panela alta, com água
Seu interior deve se manter descasque-o. Corte o cará em e sal, cozinhe as batatas
branco.) Retire do fogo, lâminas finas (esse procedimento até ficarem macias.
coe e dê um choque térmico garante um puré liso). Num Descasque-as. Esprema-as
colocando-o na água gelada. processador de alimentos, bata no passador de legumes.
Coe novamente e reserve-o em bem o cará fatiado e o leite. Numa outra panela,
um recipiente na geladeira. Numa panela, aqueça a aqueça a manteiga,
manteiga e o creme de leite e o creme de leite e o leite.
acrescente o cará batido. Acrescente a batata
Cozinhe em fogo baixo por amassada e cozinhe em fogo
aproximadamente 20 minutos, baixo por aproximadamente
mexendo de vez em quando. 20 minutos, sem deixar ferver.
Para finalizar, acerte o sal. O puré O puré deve ser totalmente liso,
deve ser totalmente liso, ou seja, ou seja, sem grumos
sem grumos ou fibras. Se ou fibras. Se necessário,
necessário, processe-o novamente. processe-o novamente.
88
Tendo a cozinhar todos os tubérculos com casca, para preservar o amido e evitar
ao máximo a osmose entre o amido do produto em questão e o meio de cozimento,
que quase sempre é a água. Precisamos entender bem alguns tubérculos
antes de começar a trabalhar com eles. Cada "um tem sua força e característica.
O puré de mandioca (um dos poucos que cozinho sem casca), por exemplo,
tende a ser extremamente viscoso e tem amido bastante forte.
A batata já tem um puré mais leve e permite um tipo de trabalho diferente.
Mas muito cuidado quando for fazer um puré, para não ativar demasiadamente o amido.
O gel de mandioquinha é a aplicação de um raciocínio similar
ao da produção da tapioca. Tenho especial carinho pela mandioquinha
e acho que a aplicação do gel é infinita. O único cuidado nessa receita é o uso da água,
porque ela tende a desnaturar o amido de maneira bastante forte.
1*
peixe e alguma farinha. Aquela textura viscosa, colante,
com a transparência do gel, vem do amido. Uma das
receitas que vamos dar neste livro é o gel de mandio-
quinha, obtido por meio de um processo mecânico e
que tem diversas utilidades por conta dessas caracterís-
ticas tão especiais do amido.
Os tubérculos não são simples. Para bem usá-los,
é preciso uma boa compreensão dos ingredientes e de
suas preparações. Se você vai fazer um puré, uma
"ritura ou um assado, é importante saber que tipo
de batata, de mandioca, de cará é ideal para cada
uma dessas preparações.
Em se tratando de Brasil, não dá para dedicar
alguns parágrafos de um texto sobre tubérculos sem
"alar mais da mandioca, nossa maior vedete, onipre-
sente na alimentação do país. De norte a sul usamos a
mandioca - e seus subprodutos - em nossas refeições.
Há muitas possibilidades de preparo da mandioca:
frita, palha, cozida, assada, gratinada. Quando pen-
samos em seus subprodutos, essa gama fica ainda
maior. Há farinhas de todos os tipos extraídas da
mandioca: finas como talco, muito usadas no sul do
país e na Paraíba; as mais comuns, vendidas em
qualquer quitanda ou supermercado e usadas para
engrossar feijão; as variantes amazônicas extraídas da
mandioca-brava, da macaxeira. Há mil e uma tex-
turas obtidas a partir delas, como o tutu (de feijão), os
beijus. E pensar que nem citamos ainda o amido da
mandioca ou a tapioca! (Sempre que falo nisso, me
lembro admirado que em francês, japonês, inglês e
90
chinês a palavra que define esse tipo de amido de
mandioca seja pronunciada da mesma forma: tapioca.)
A E m b r a p a (Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária) já catalogou mais de duzentos tipos de
mandioca. Urge estender esse estudo para a gastrono-
mia. Não podemos esquecer que essas duas centenas
de tipos também apresentam suas cores, texturas, gostos,
cheiros, enfim, comportamentos diferentes conforme
a altitude em que foram plantadas e a distância que
ficam da água. Isso significa que uma única espécie de
mandioca pode apresentar, numa mesma lavoura, notas
diferentes de sabor, se ela estiver mais perto ou mais
longe de u m rio ou de uma colina.
tas
Frutas costumam suscitar a parte doce da cozinha:
a confeitaria. Não podemos nos esquecer, entretanto,
de que tomates são frutas, assim como outros produtos
que imaginamos serem legumes. A lista é grande,
segundo o professor Roberto Ermírio Moretti, titular
da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp.
Como legumes não têm semente, tecnicamente são
Tutas: o pimentão, a abobrinha, a abóbora, o pepino,
o chuchu, a vagem, a berinjela, o jiló, o quiabo. Neste
livro, vamos tratá-los como legumes, porque assim são
comumente conhecidos.
As frutas merecem atenção. De novo não podemos
esquecer que vivemos em u m país privilegiado, de clima
91
tropical e com imensa diversidade de frutas disponíveis
durante todo o ano.
Com exceção da banana, as frutas mais encontradas
nas nossas feiras, supermercados e mesas foram trazidas
para cá da Europa (morangos e laranjas, entre outras).
Mas temos todo um universo de frutas por descobrir e
melhor utilizar. A lima-da-pérsia que aqui colhemos,
por exemplo, é muito especial. Ela tem baixa acidez,
incrível potência aromática (às vezes até superior ao
sabor), com uma particularidade: depois de espremida,
ganha notas amargas por conta da oxidação. O brasi-
eiro costuma estranhar o sabor amargo, mas ele pode
ser bem trabalhado. O uso do amargor da grapefruit
está aí para comprovar que isso é bastante possível.
A Amazónia tem também muitas frutas por desco-
brir. Tampouco podemos fechar os olhos para outras
regiões do país. Há um bioma quase tão complexo
quanto a Amazónia e pouquíssimo explorado: o Cerrado.
Por ter uma paisagem mais monótona, essa região
costuma ser menos considerada, mas ali há tantas
possibilidades quanto na Amazónia. E digo mais: as
frutas do Cerrado merecem especial atenção.
Só para citar alguns exemplos, o pequi, a mangaba,
a jurubeba, o murici, a guariroba são frutas ainda
totalmente a serem exploradas. Vale a pena ressaltar
que a jurubeba é amarga, e o pequi tem um sabor acre,
incrível, com possibilidades de combinações tanto doces
quanto salgadas.
Fizemos testes muito divertidos com pequi no
D.O.M. Misturamos pequi e mel, pequi e pimenta,
92
ambrósia e
sorbet de cambuci
Para a ambrósia
800 g de açúcar, 450 ml de água, 12 ovos, 1 l de leite,
suco de 1 limão, 1 fava de baunilha, 1 cravo, 1 pau de canela
Preparo
Faça uma calda grossa com o açúcar e a água. Passe os ovos por uma peneira,
misture com o leite, o suco de limão, a fava, o cravo e o pau de canela. Acrescente à calda.
Deixe cozinhar em fogo baixo por 2 horas, misturando de vez em quando delicadamente.
Preparo
=aça uma calda em ponto de fio juntando o açúcar e a água. Retire do fogo. Em seguida, incorpore
a polpa de cambuci, deixe esfriar e acrescente as claras e o suco de limão. Bata em uma pacojet
ou sorveteira até conseguir uma consistência cremosa.
[Ambrósia me lembra meu pai; ele é fanático por essa receita e acabou me contagiando.
Essa é mais uma das heranças da Península Ibérica para o Brasil. A combinação c o m
o cambuci me parece divertida. Uma das características dessa fruta da nossa
Mata Atlântica é a boa acidez, com claras notas de madeira fresca.
O casamento de madeira fresca c o m as notas mais lácteas
e levemente tostadas da ambrósia é, na minha
opinião, perfeito. ]
93
pequi e abacaxi, e as possibilidades não foram exauridas.
Conhecemos uma aplicação muito cartesiana desse fruto
no arroz, no frango. Já incluí no cardápio uma mistura
da fruta com o puré de batatas. Ficou incrível, mas a
exploração do pequi ainda tem um longo caminho a ser
percorrido. Ainda nem comecei a fazer combinações
doces (é sempre bom lembrar que há o licor de pequi).
A jurubeba é outra que está na minha lista de
próximos desafios. Ela é salgada e amarga, o que não
costuma agradar muito ao paladar brasileiro. Mas
a alcachofra também tem essas características e é
adorada (aqui também). Apesar de termos olhos para
a jurubeba em misturas salgadas, ela pode ser empre-
gada no mundo doce: não esqueçamos o popular licor
de jurubeba.
Na cozinha, uma das grandes funções das frutas é
fazer a simbiose entre o mundo doce e o mundo salgado.
Há vários exemplos que indicam essa ponte que os
frutos fazem entre esses dois mundos, como abacaxis
flambados, purés de maçã. E, apesar de se fazer rápida
ligação entre os sabores agridoces e a cozinha contem-
porânea, essa proposta está presente (e em grande escala)
na cozinha clássica. Pato com laranja (na cozinha fran-
cesa), pato à Califórnia (na americana), mostarda de
cremona (na italiana), são alguns exemplos do uso das
Tutas no mundo dos salgados. Abacates e tomates, aliás,
estão bem mais ligados ao mundo dos salgados do que
ao dos doces nas muitas cozinhas do globo.
Aqui, vale a máxima j á antes mencionada: co-
nheça bem uma fruta, tente saber de onde ela vem.
94
quais os seus usos em seu país de origem e, a partir
daí, tire o melhor de cada um dos itens desse universo
de ingredientes.
equmes e equminosas
Por sua importância, os legumes mereceriam
destaque de vedetes na cozinha. Infelizmente, na ali-
mentação do brasileiro não ganham esse realce. Le-
gumes tendem a ser subestimados aqui, a receber
tratamento pouco interessante da nossa cozinha. Convém
dirigir nosso olhar para outras culturas, para ver como
elas destacam os legumes e as leguminosas.
E comum, por exemplo, as pessoas alegarem
ojeriza por pimentões por eles serem de difícil digestão.
Não sabem o que estão perdendo. Se bem trabalhados,
com certeza os pimentões são produtos de incrível
sabor e de ótima digestibilidade. As cozinhas italiana e
espanhola são bons exemplos de como eles podem ser
bem usados. O mesmo se pode dizer em relação às
Derinjelas (vide cozinha italiana ou mesmo árabe) ou
até ao nosso injustiçado chuchu, freqiientemente
descartado por sua suposta falta de gosto. No caso do
chuchu, eu afirmo: ele não é sem gosto, e sim mal
aproveitado. Existem receitas incríveis à base de
chuchu; basta compreender o ingrediente e elevá-lo a
seu melhor momento na receita. A propósito: um dos
sucessos de Carmen Miranda, "Disseram que voltei ame-
ricanizada ' (Luís Peixoto e Vicente Paiva), menciona
95
um dos mais tradicionais pratos de nossa culinária,
o ^'camarão ensopadinho com chuchu". No preparo
desse prato, aliás, minha dica é cozinhar o chuchu
no caldo do camarão. Essa prática, além de económica,
demonstrará muita inteligência do cozinheiro por
Dermitir a impregnação de um sabor no outro.
O importante ao falar das leguminosas, ou seja, as
favas (feijão, soja, ervilha, lentilha, amendoim), é que
elas são, sim, onipresentes em todas as culturas. Arrisco
dizer que são os ingredientes mais usados em todo
o planeta. Se analisarmos todas as etnias do mundo
e fizermos um levantamento da classe de alimentos
que consomem, provavelmente as leguminosas e os
tubérculos estarão entre os campeões. A razão é simples:
eles são realmente palataveis. Têm sabor muito marcante,
alto teor de gordura, são ricos em proteína e constituem
ótimas bases para grandes receitas.
Faço aqui uma ressalva à soja. Muita gente liga
soja à alimentação saudável e se esquece de que imen-
sas plantações de soja estão entre as grandes vilãs da
devastação do planeta. Por isso, se for usar soja, esteja
atento à sua procedência.
Orta iças
Esse é outro grande componente da alimentação
humana e que também deve ser visto com muito
cuidado e carinho. Não só as saladas, mas todo o
universo que compõe uma horta. A possibilidade de
96
aplicação desses ingredientes em uma cozinha é infinita.
Fritas, empanadas, cozidas, refogadas, ao vapor, cruas,
temperadas, as possibifidades não findam, a riqueza
de sabores é tremenda. Requerem apenas, mais uma
vez, o devido conhecimento na elaboração.
A utilização de um brócolis ou agrião, de uma
escarola ou uma couve-flor pode parecer banal. Mas,
acredite, não é. As hortaliças são produtos que têm
uma elegância, uma finesse mesmo ímpar. Grandes
resultados na cozinha muitas vezes dependem desses
ingredientes. Costumam dar o grand finale^ como a
cereja do bolo.
Por isso, aqui fica um conselho: nunca veja as
lortaliças como ingredientes ordinários, inferiores.
Há nelas uma verdadeira sabedoria de cozinha, e o
cozinheiro que souber identificá-la ganhará muito em
delicadeza e sofisticação em suas receitas.
ervas
A correta aromatização de uma receita pode levá-la
a patamares muito, muito elevados. Por isso, as ervas
talvez sejam os mais emblemáticos ingredientes do
dia-a-dia de um chef.
Entender as ervas e o conceito de aromatização
das receitas é fundamental para um cozinheiro. Nessa
hora é importante destacar algumas coisas. Há dois
tipos muito conhecidos de ervas: as fortes e as finas
(também conhecidas como da Provence). Classificamos
97
como ervas fortes todas as que suportam cozimento (ou
contato com altas temperaturas). As ervasfinas,por sua
vez, não suportam cozimentos (nem cozimentos a frio),
por isso elas devem ser somadas no final da receita.
O manjericão é um exemplo clássico de erva fina. Ele só
deve ser acrescentado ao molho de tomates no final
do preparo. Ele não entra no começo do cozimento do
molho. Nunca! Com o dill é a mesma coisa. Ele só será
somado a um preparo no momento final.
Podemos encontrar no supermercado ervas frescas
e ervas secas. A principal diferença entre as duas é
que as frescas são mais aromáticas e as secas, mais
contundentes ao paladar. Tenho clara preferência pelas
ervas frescas, com exceção do louro e do orégano.
Além das ervas finas e fortes, temos no reino das
ervas frescas as que plantamos, as espontâneas e as
daninhas. Cada vez mais se faz uso do conjunto de
ervas que temos em uma horta. J á é considerado
corriqueiro e banal o uso dos trevinhos [óxalis) pelos
profissionais de cozinha. Muitas ervas que nascem
espontaneamente nas hortas têm tido grande aproveita-
mento na cozinha.
Aqui, podemos falar das ervas brasileiras. As que
mais uso são: jambu, chicória-do-pará (uma espécie
de coentro extremamente potente), alfavaca-do-pará
(da família dos manjericões), ora-pro-nóbis, cariri ou
cariru (erva que não tem grande sabor, mas tem boa
textura e oleosidade como a língua-de-vaca e o ora-pro-
nóbis), vinagreira, língua-de-vaca. Temos aqui também
uma grande incidência de beldroega, que também nasce
98
sia ae ervas
Ervas fortes
Salsa
Tomilho
Salvia
Louro
Aleorim
Orégano
Salsa frisada
Estragão
Manjerona
Azedas
Ervas finas
Coentro
Verbena
Cebolinha
Hortelã
Manjerloão
Endro
Cerefólio
DItl
Ervas brasileiras
Alfavaca
Beldroega
Cariri (ou cariru)
ChicórIa-do-pará
Jambu
Língua-de-vaca
Cra-pro~nóbls
Vinagreira
99
em outros países e t e m u m ótimo sabor, u m a boa
melosidade e pode ser usada como espessante. Falando
em espessante, não podemos deixar de fora a nossa
babosa ou aloe-vera. E importante saber que, no caso
da babosa, a planta tem de ter entre 4 e 12 anos para
ser usada (antes disso, ela não tem capacidade de ge 1 -
ficação) e a parte aproveitada é a interna das folhas.
Descartamos as partes verdes e usamos apenas a parte
de dentro das folhas, que parece naturalmente uma
gelatina e tem alta capacidade de gelificação. A babosa
tem de ser muito bem trabalhada porque produz forte
amargor, especialmente nas plantas mais velhas.
Os matizes de sabor das ervas - finas ou fortes - são
incrivelmente variados. Há ervas com sabor marcante,
outras com aroma, outras, ainda, como o nosso jambu,
oferecem sensações gustativas, dão a sensação de
eletricidade. Alguns também descrevem a sensação do
jambu como anestésica e outros, ainda, como picante.
Ao contrário do que muita gente pensa, ervas como o
j a m b u , da mesma família dos Spilanthes^ também
são usadas em outras culturas. Por exemplo, em
Madagáscar, nas Ilhas Maurício. Vale destacar ainda
que a erva mais famosa dessa família é o agrião.
Dimentas
Se o assunto é sensação gustativa, não dá para
deixar de fora as pimentas. A picância é uma sensa-
ção gustativa, não propriamente u m sabor. Voltando
100
ao nosso assunto principal, as pimentas também
merecem especial atenção do cozinheiro. Saber usar
essa sensação gustativa, esse recurso que o ingrediente
dá, também é uma expertise que o cozinheiro tem de
compreender e saber usar. Dosar a quantidade, seja de
uma pimenta-do-reino, de uma pimenta-de-cheiro, de
uma pimenta-malagueta, ou ainda de uma pimenta
mais forte, um jalapeno^ por exemplo, é algo que tem
de ser experimentado e calibrado. Existe emprego para
cada uma delas na gastronomia. Para sua boa utiliza-
ção elas apenas exigem muito conhecimento e destreza
do cozinheiro.
castanhas
As castanhas são incríveis fontes de gordura. Tan-
to a de caju, quanto a castanha-do-pará, quanto a do
baru, ou o pinhão, só para cantar as nossas, cada uma,
à sua maneira, traz essa nota gorda que é fundamenta
para o desenvolvimento de uma boa receita. Por causa
dessa característica, as castanhas têm larga aplicação
na cozinha doce e na salgada. As pastas de castanha são
disseminadas e determinantes para a boa pâtisserie.
Pessoalmente, recomendo dar bastante atenção
ao óleo de castanha-do-pará. Ele traz notas de sabores
especiais, principalmente quando usado a frio, na fina-
lização ou composição de saladas, ou combinado com
outros óleos, de sabores mais neutros, como o de canola
ou o de milho.
101
Mais adiante, vamos voltar às castanhas, quando
falarmos dos fermentados que podem ser produzidos a
partir delas e resultam em pães e até em queijos vegetais.
equipamento Dasico
de cozinha
Uma sensibilidade que o exercício contínuo de
chef proporciona é a de facilmente reconhecer a chegada
de um aprendiz na cozinha. U m dos indícios são os
kits ultraprofissionais que muitos garotos carregam,
quando chegam ao primeiro dia de trabalho. Os profissio-
nais mais experimentados costumam ter um kit básico
minimalista, já os novatos lembram um pouco os carros
alegóricos, com suas valises de equipamento do tamanho
de mala de viagem.
Há uma infinidade de equipamentos para cozinheiros
disponíveis no mercado. Termómetros de alta precisão,
3inças de vários tamanhos e formas, pequenas balanças,
facas de todo tamanho e formato destinadas aos mais
diversos e improváveis usos (acredite, há faca especial
3ara tirar o miolo de um dente de alho - e funciona mesmo
muito bem), mas a Hda diária na cozinha acaba mostrando
que esses equipamentos não são tão necessários quanto
podem parecer. São lindos, têm seu valor, mas acabam
virando peso morto na hora do trabalho pesado.
Todo cozinheiro precisa ter um equipamento básico,
isso é indiscutível. Assim como o seu uniforme, ele deve
102
ter seu kit de facas, que se resume a três peças indis-
pensáveis: uma faca de íiletar (de lâmina flexível), uma
faca-chefe - que também se convencionou chamar de
faca multiuso - e a faca de ofício, que são aquelas
pequenas facas que a gente usa para muitas coisas,
como cortar e descascar legumes. E essas facas têm de
estar afiadas. Sem essas três peças não dá para um
cozinheiro entrar na cozinha. Com a rotina, a gente acaba
acrescentando algumas peças a esse kit básico. Com o
entendimento do restante do universo, os batedores, as
tábuas de cortes, as colheres, a colher de pau, a colher de
molho vão ganhando importância e sendo acrescentados
a essa lista básica. Mas isso vem com a prática e com a
necessidade diária de cada cozinheiro.
"oaao
O uso exato do fogo alto e do fogo baixo também
é muito importante na lida diária do cozinheiro. A água
:'erve a 100 graus ao nível do mar. Seja em fogo alto ou
baixo. O que muda de um modo para o outro é a força
da ebulição. Quanto maior o calor oferecido ao fundo
da panela, mais evidente a ebulição será. Mas o fogo
baixo muitas vezes é importante para o bom preparo do
ingrediente. Deve ser respeitado sempre que necessário
ou indicado numa receita.
Conheça bem seu fogão. Saber usar uma boca
grande, uma boca pequena, uma boca de alto rendi-
mento ou fogo alto ou baixo é fundamental. Mantenha-o
103
ao, carne-seca
e abóbora
Ingredientes
Preparo
Dessalgue a carne-seca e reserve. Cozinhe o feijão em uma panela de pressão por 40 minutos
junto com a carne-seca. Retire a carne, corte em cubos de 1 cm e reserve.
Corte a cebola em meia-lua. Pique as folhas de coentro e reserve. Em uma frigideira com um fio de óleo,
refogue a cebola e adicione os cubos da carne-seca. Refogue por 2 minutos.
Junte o feijão cozido e misture bem. Adicione a manteiga de garrafa e o coentro e reserve.
Descasque a abóbora e faça cubos de 1 cm. Cozinhe em água com sal por 5 minutos,
cuidando para que a abóbora esteja ai dente.
Essa tríade nordestina, presente em todo o Brasil, talvez seja uma das receitas
mais equilibradas da cozinha tradicional brasileira. Reúne uma boa proteína,
um bom legume e uma leguminosa. A combinação de sabores,
mais a manteiga de garrafa, é perfeita. Sou fã de manteiga de garrafa e acho que
ela merece especial atenção dos amantes da cozinha brasileira.
104
sempre bem regulado. Use o botão de regulagem da
temperatura conforme indicado na receita. Esses
botões não estão a l i por acaso. Podem ser grandes
aliados do cozinheiro.
Se você precisa fazer uma redução rápida, é muito
melhor colocar duas panelas em fogo baixo, do que uma
panela em fogo alto. Você ganha na velocidade de ela-
boração do sabor e também no consumo de gás, ou seja,
é mais inteligente reduzir alguma coisa em duas panelas
em fogo baixo do que em uma panela em fogo alto.
Também quando temos de controlar a temperatura
(e isso é algo altamente gastronómico), muitas vezes é
melhor usar duas panelas em fogo baixo do que uma
só. E mais fácil manter a temperatura em grandes
panelas, com quantidade maior de líquido, do que em
frigideiras. Mas, se você for grelhar uma carne, tostá-la
ou fazer u m biíinho, é melhor que seja no fogo alto.
Assim, ele ficará rosado por dentro.
O uso exato das bocas também é importante. Por
exemplo, para fazer chá n u m fogão caseiro, é melhor
usar as bocas menores. Nesse caso, o ideal é que a água
não ferva. Para fazer chá ou café, a água não precisa
chegar a 100 graus. As altas temperaturas desfavorecem
as ervas e os grãos torrados. Algumas delicadezas,
alguns matizes de sabor desaparecem com a exposição
a uma temperatura muito elevada. Depois de fervida,
a água perde em qualidade, fica mais pesada. Por isso,
para fazer chá ou café, o ideal é usar u m a boca que
ajude a controlar melhor o processo de aquecimento.
Quando a água começar a soltar aquelas bolhinhas, u m
105
pouquinho antes de ferver, é chegada a hora de desHgar
o fogo para o preparo da bebida. Fazer café ou chá com
água excessivamente fervida resukará naquela sensação
desagradável de peso no estômago. Conhecendo bem os
Drocessos de preparo e os limites de seu equipamento,
você fará uma comida mais gostosa, mais rica de sabor
e mais fácil de ser digerida.
orno
Dentro do forno, diferentemente do que acontece
no fogão, o ambiente de cozimento é fechado. O calor
circula por toda a parte do alimento e esse cozimento é
considerado menos agressivo. Ali dentro, o ingrediente
está recebendo calor por todo o ambiente. E uma câmara
de cozimento, tem 100 graus, 200 graus, 300 graus
Dor todo o espaço. Em uma chapa, o ingrediente já caiu
tostando, mas só de um lado. No forno é o contrário:
mesmo que a temperatura seja muito alta, a transfe-
rência de calor do ambiente para o ingrediente é muito
mais delicada.
Compreender isso é fundamental para conseguir
utilizar (e combinar) técnicas. Por exemplo, ao fazer um
pernil de cordeiro, ou um pernil de porco, às vezes vale
a pena selar a carne no fogão para depois finalizar o
cozimento em forno. Sabendo como funciona a trans-
ferência de calor em cada um dos equipamentos, é mais
fácil compreender o porquê dessa recomendação e tirar
melhor proveito da conjugação de técnicas.
106
A evolução dos primeiros fornos elétricos ou a gás,
onde havia m á distribuição de calor, são os fornos
ventilados ou de convecção. A segunda evolução são os
fornos combinados, onde, num mesmo ambiente de
cozimento, é possível trabalhar com vapor, com ar
quente e todas as variáveis dessas combinações. Em
paralelo surgiram os fornos de microondas, que, não
por temperatura, mas por aceleração molecular, geram
outro tipo de cozimento. Já há no mercado fornos que
combinam as três tecnologias, mas os resultados ainda
são limitados.
Há diversos outros tipos de forno e, de um modo
geral, não existe um mais adequado do que o outro.
Há, claro, uns mais práticos do que outros. Num forno
a lenha (muito usado em pizzarias), as temperaturas
são mais elevadas e você não tem o controle exato,
preciso, da temperatura. Em contrapartida, você ganha
notas de sabor que a fumaça desprendida da lenha
propicia e que os outros fornos não dão. Fornos a gás
ou elétricos tendem a ter uma fonte de calor mais cons-
tante e controlada.
Os fornos caseiros não costumam, no entanto, ser
fontes precisas de calor. Eles são muito traiçoeiros.
Tendem a assar um pouquinho mais num lado. Geral-
mente assam mais no fundo do que na frente. Isso
porque a vedação da parte da frente do forno não é tão
boa e permite maior perda de calor. Girar a assadeira
durante o cozimento pode ser um bom conselho. Mas
ele é válido apenas para os assados, nunca para bolos.
107
1,1 kg de batatas, 40 g de queijo parmesão,
220 g de farinlia de trigo, 20 g de manteiga,
1 ovo, 2 gemas, q.b. de sai, q.b. de pimenta-do-reino
Preparo
Preparo
Finalização
Preparo
Eu me divirto muito sempre que faço nhoque. Acho lúdico ver os pontinhos levantarem na panela,
cada um no seu tempo, não respeitando, necessariamente, a ordem em que entraram na água quente.
Um dos bons truques do nhoque é não somar muita farinha às batatas para que a receita não sofra
grande intervenção no sabor. Para conseguir um bom resultado somando pouca farinha,
trabalhe bastante a massa. Isso fará com que o amido da batata e da farinha se ative
e o nhoque não grude no céu da boca na hora de comer. Além de ser um clássico
da cozinha italiana, a mistura com a rabada diz muito da minha infância. Minha mãe sempre
fez uma rabada muito boa e eu sempre gostei da carne gelatinosa dessa parte do boi.
110
vaoor e banho-mana
A primeira coisa que a gente tem de lembrar é
que existe banho-maria quente e banho-maria frio,
e um bom cozinheiro tem de saber usar os dois. Um
3anho-maria frio é feito com água e gelo. E indicado
3ara trabalhar peixes, crustáceos, moluscos. Também
pode ser útil, às vezes, para ervas ou legumes. Uma
cenoura crua fica mais crocante e mais bem conservada
se estiver mais fria do que a temperatura ambiente.
E por isso que em grandes churrascarias e outros
restaurantes com bufe vemos aqueles balcões refri-
gerados. Não é só para conservar os ingredientes, mas
também para guardar características de sabor e textura
de vários deles.
O banho-maria tradicional é um grande aliado de
um cozinheiro. Ali você sabe que a temperatura da água
deve chegar a no máximo 90 graus (a água de base
nunca deve ferver, e o fogo baixinho, por isso, é mais
indicado), portanto, tem um ambiente de cozimento
melhor. Ou seja, para manter coisas aquecidas ou
cozinhar preparos mais delicados, o banho-maria é
mais indicado do que a chama do fogão. Nas emulsões
de ovo e nas preparações que precisam ser mais lentas,
num banho-maria é bem mais fácil chegar ao ponto
ideal. Para os cozimentos em baixa temperatura, ele é
sempre o mais recomendado (e não o vapor), porque a
densidade da água propõe a melhor troca de calor entre
um ingrediente e o meio de cozimento.
111
. a use um animal com peso superior a 8 quilos,
luior que isso, a carne não fica macia. O segredo do leitão
2 n temperatura baixa no forno e no último momento elevar
b a leiíiperatura, bem próximo dos 300 graus. A banana em po dá um
me. um aroma espigcial à receita. E é muito fácil de ser preparada.
o vapor é outro grande aliado da cozinha. Sua che-
gada representou um ponto alto, de euforia mesmo, na
alta gastronomia. Mais uma sabedoria que os chineses
nos trouxeram. Gosto muito do uso do vapor no preparo
de legumes (não tanto nas carnes). Uma grande técnica
que tem ótimo lugar em uma cozinha gastronómica.
Desde que usada na hora certa, da forma certa.
cozimento a rrio
Já disse aqui que cozinhar é uma combinação de
tempo e temperatura. Temperatura, no entanto, não
quer dizer apenas expor algo ao fogo. Há também
técnicas que queimam'' ou tiram o alimento de seu
estado inicial (cru) sem a interferência do fogo. O sal e
os ácidos (limão, vinagres) também mudam o estado
do ingrediente. Submetidos a eles, as carnes e os peixes,
3or exemplo, deixam de ser crus. Salgas, vinagretes,
marinadas, escabeches também são formas de cozinhar
o alimento a frio.
Por isso, é errado dizer que a carne-seca e o baca-
lhau estão crus. Não, eles foram transformados através
do sal.
Existem também os cozimentos a frio. Literalmente.
O preparo da bresaola, por exemplo, não conta com a
interferência do sal nem do sol, muito menos do fogo.
E o frio, a baixa temperatura, que seca a carne.
Os esquimós também têm técnicas de conservação
e ressecamento da carne através do frio. No Peru e
114
na Bolívia, há uma tradicional receita de batata seca
no frio. Por outro lado, esse emprego também está
na cozinha industrialmente moderna (e aplicado com
extremo requinte).
conservas
Há pelo menos três famílias de conserva que em
italiano dizemos ser sotto olio^ sotto aceto^ sotto sale.
Ou seja, conservas em meios gordurosos, em meios
ácidos e em meios salgados. E nessa hora não estamos
falando do cozimento, mas da forma de conservar aquele
alimento já preparado.
Nesse universo entram os confíts., as caldas doces.
Doces cristalizados também são formas de se conservar
por mais tempo um ingrediente.
A função da conserva é alongar, dar mais vida ao
alimento e é muito usada em países de inverno rigoroso
para garantir alimento para todo dia. Claro, isso antes
da chegada da geladeira. Se pararmos para pensar,
vamos perceber que o hábito de comer frutas secas no
Natal nada tem a ver conosco, e sim com os europeus,
que não contam com frutas frescas nessa época do ano.
As latas também são formas de conservar o
alimento por mais tempo. Por que o atum acabou nas
latas? Usava-se pescar muito atum em determinada
época do ano. Para poder usá-lo o ano inteiro, partia-se
para as latas com alguma gordura. O atum em lata
é também um confit^ uma confiture., uma conserva.
115
u as cozidas a trio
Ingredientes
Preparo
Aprendi esse cozimento a frio de lulas com o Giuseppe Gerundino, um amigo e chef, da cidade
de Taranto, na Itália. As águas ao sul do Mediterrâneo que banham essa região são muito frias.
E é parte da tradição dos pescadores de lá usar as lulas e sépias pequenas para fazer essa receita
consumida nos barcos e portos. Gostuma-se colocá-las em um saco plástico e às vezes somar cubos
de gelo, na proporção correta do sal e agitar durante um bom tempo. O processo físico da agitação mais
o componente químico do sal provocam um cozimento a frio da lula. Esse processo, além de render um
ótimo sabor, confere à lula uma textura crocante e macia. No D.O.M. desenvolvemos uma variação dessa
técnica. Numa máquina de sorvete, colocamos uma concentração de água e sal, igual à do mar, ou seja,
33 g de sal para cada litro, e tínhamos êxito sempre que usávamos grandes quantidades de lula.
Quando não dispomos de lula na medida certa, usamos, com ótimos resultados, bolinhas de plástico
para completar a quantidade necessária para o bom funcionamento da máquina.
117
A história da sardinha em lata é quase a mesma.
Conservas podem, sim, ter valor gastronómico. Há,
sim, a melhor forma de apresentar esses ingredientes.
Para isso, o cozinheiro precisa ter intimidade com
esses processos, com as armadilhas e maravilhas que
eles podem dar a um prato. Ele não pode perder de
vista que a conserva é uma técnica de cozinha que ele
também tem de dominar para fazer bem o seu ofício.
Tanto as conservas quanto os cozimentos a frio
são técnicas ancestrais que estão sendo revisitadas e
atualizadas e merecem atenção bastante profunda do
cozinheiro. E preciso conhecer o processo antigo para
entender os processos modernos, suas mais variadas
funções e os grandes saltos que eles permitem a u m
grande número de receitas.
paes
Chegamos à parte que para m i m é a mágica da
cozinha: os pães. Eazer pão é transformar coisas que não
têm - nem devem ter - sabor em algo riquíssimo de
textura e com uma variedade imensa de sabores.
Além disso, a panificação lida com um dos pro-
cessos de cozinha que mais me interessam e que é o
segundo fenómeno natural dominado pelo homem: o
apodrecimento. Temos a forte sensação de que não
comemos nada podre, mas isso é uma meia-verdade.
Iogurtes, queijos, vinhos, cervejas,/aí^a/2(ié^, vinagres,
todos são exemplos de alimentos que entraram em
118
processo controlado de apodrecimento. Os fermen-
tos, responsáveis pelo crescimento dos pãezinhos e
de todas as massas, também fazem parte da família
dos "podres". E impossível pensar em pão sem esse
procedimento mágico.
Uma das partes mais gratificantes da cozinha é o
fazer o pão. O resultado, que parece mágico mesmo, é
quase imediato. Há um senso comum na cozinha, quase
um jargão, que diz: até pão ruim, quando sai do forno,
é bom. Em se tratando de pães, até as piores experiências
tendem a ser gostosas.
Além disso, o pão é um alimento de base. Sobre
ele, convém saber que faz parte de um dos universos
mais precisos da cozinha. Aqui, os erros não podem
ser corrigidos. Se errou, a única saída que lhe resta é
recomeçar a receita.
Para chegar a bons resultados, o exercício é
fundamental. Se você nunca jogou baralho, dificilmente
vai ganhar uma partida. Na panificação e confeitaria é
a mesma coisa: o exercício é o que leva aos mais altos
patamares. O sucesso de uma receita vai chegar com
perseverança, com a repetição, com muita observação
de cada um dos passos. A verdade é que o fenómeno de
fermentação não é complicado, é delicado; e a ansiedade
constitui geralmente nosso primeiro inimigo. Respeitar
o tempo de fermentação, o tempo de descanso de cada
massa, o tempo e temperatura do forno, tudo isso é
fundamental. Mas requer muito exercício.
Dominada a ansiedade, podemos passar para o
segundo ponto: o que fazer para conseguir uma casca
119
melhor, ou u m recheio mais leve, ou notas de acidez
mais claras na confeitaria, na panificação? Dicas que
valem a pena:
120
V.
massas
Numa casa italiana, o dia em que a mamma
cozinha é u m evento. Mas, quando a nonna cozinha,
a família se mobiliza e pára, e não só por causa da
nonna^ mas pelo prazer de comer a comida da nonna.
Existe mais do que a força da matriarca nesse com-
portamento da famiglia. A cozinha italiana tem como
3ase a cozinha caseira, do d i a - a - d i a , simples. A
mamma cozinha muito bem, e a nonna cozinha como
ninguém, porque depois de muitos anos repetindo a
mesma receita, elas conhecem à perfeição os pratos
121
pães
Fermento de maçã Pão integral
Ingredientes Ingredientes
123
que fazem. A prática lhes garante o conhecimento
empírico, a expertise.
Digo isso para frisar que, para conseguir bons
resultados, como a comoção familiar que a cozinha
italiana atinge, é preciso repetição exaustiva da mesma
receita. O que v a i diferenciar u m chef de u m a nonna
é que a grande "vó'' tem o conhecimento empírico,
ao passo que o cozinheiro tem o conhecimento técnico
do processo. Para o sucesso de ambos, porém, será
necessária a prática.
massa seca
Quando for usar massa seca, ou seja, feita sem
ovos, vale a pena comprar produtos industrializados.
Fazer massa sem ovo é complicado e requer material
especial, por isso é mesmo melhor comprá-la pronta.
As melhores marcas nem sempre são as mais populares.
Descubra, lendo na embalagem, se a massa que v a i
comprar é "trafilata al bronzo". Elas são bem raras no
mercado. O bronze não aquece tanto quanto outros
metais, então a pasta trabalhada com bronze tem uma
textura u m pouquinho mais aveludada, o que ajuda
na impregnação do sabor, do molho. Isso ocorre
porque a pasta não cozinha, ou seja, não sofre ação de
temperatura no seu preparo. Por isso, é u m pouco mais
''fresca" que as outras. Apesar dessa textura mais
eficiente para fins gastronómicos, o preparo desse tipo
de massa é mais artesanal, e, por isso, seu tempo de
124
espaguete ao
alho e óleo
Ingredientes
água
sal
500 g de espaguete
5 dentes de alho
100 ml de azeite
Preparo
Em uma panela
com água fervente e sal,
cozinhe o espaguete
por aproximadamente
8 minutos ou
até ficar ai dente.
Em uma frigideira,
refogue o alho picado
com o azeite
até levantar o aroma,
junte o espaguete,
acerte o sal e sirva.
127
do que se almeja de cada pasta. E possível, sim, obter
pasta fresca com grano tenero^ essa farinha branca que
temos no Brasil. Mesmo na Itália, é muito usada.
Existe uma série de combinações possíveis nas recei-
tas de massa. Pode-se variar a proporção de ovos ou a
acidez (somando vinho ou limão). As possibilidades são
bem grandes. Mas vale a pena se ater a uma regra geral.
Respeite os tempos de descanso da massa. Caso
contrário, ela tende a ficar demasiadamente elástica, re-
traindo a cada movimento, o que torna difícil seu manu-
seio, impossibilitando formatos precisos, podendo até
comprometer sua textura. O ideal é que uma massa des-
canse pelo menos 30 minutos ou o quanto a receita i n -
dicar. Com isso, a rede de glúten da massa vai ficar mais
estável (ela vai parar de encolher) e será mais fácil fazer
formatos mais precisos como u m ravióli ou talharine.
Na hora de produzir as massas longas, os fettuccini,
os talharines, é preciso trabalhar mais a massa. Isso
quer dizer que, na hora de abrir a massa, vale a pena
dobrá-la e p a s s á - l a no cilindro até o momento em que
ela começar a estalar e estourar. Isso v a i acontecer
3or causa de bolhas de ar que ficam presas dentro da
massa. Esse é o ponto ideal para uma massa longa. As
massas recheadas precisam de mais elasticidade, por
isso somamos ovo à receita, e sua rede de glúten tem de
ser trabalhada de forma diferente. Elas terão de des-
cansar mais e ser menos trabalhadas.
Os recheios também são pontos a ser considerados.
Devem ser delicados e, mais do que tudo, não devem
''minar á g u a " nem transpirar. H á uma razão para isso.
128
Geralmente, a massa fresca é preparada com alguma
antecedência (fazemos à tarde para cozinhar à noite,
ou até com u m dia de antecedência) r"Para que ela se
conserve perfeita por tantas horas, é importante que os
recheios sejam estáveis. Há truqueziohos para estabilizar
os molhos: u m pouquinho de farinha, pequenas porções
de pão ralado, cozinhar bem o recheio podem ser
boas maneiras de obter o sucesso.
Sobre os molhos, a regra vale tanto para massa
fresca quanto para massa seca. As pastas curtas se
adaptam melhor aos molhos mais ""pedaçudos" (prima-
vera, cozze de marisco); as massas longas são perfeitas
para os mais líquidos ou com menos ingredientes, como
o ao sugo ou o à carbonara.
bo os e biscoitos
Chegamos a u m novo mundo: o capítulo da confei-
taria. Seja para o nosso pão-de-ló ou para uma génoise
(massa originária da região de Génova, na Itália, e muito
similar ao nosso pão-de-ló), o importante, também aqui,
é respeitar a massa e, sobretudo, os tempos da massa.
Nessa hora o fermento químico é necessário.
Repetem-se todos os procedimentos do pão, só que desta
vez com os fermentos químicos. A q u i também não há
espaço para erros. A confeitaria é o universo da precisão,
onde os gramas devem ser respeitados, e a balança (bem
calibrada) é instrumento de grande valia. Os erros só
serão corrigidos com o recomeço da receita. Convém, sim,
129
!
Para o bolinho
Ingredientes.
6 ovos, 450 g de açúcar, 250 g de castanha-do-pará, 3 colheres de sopa de farinha de rosca,
10 g de curry de boa qualidade, 10 g de açúcar demerara e de curry para a finalização
Preparo
Bata o açúcar e as gemas até ficarem esbranquiçadas. Rale a castanha e reserve.
Bata as claras e reserve. Incorpore a castanha à mistura das gemas, em seguida,
adicione as claras em neve e, por último, a farinha de rosca. Em uma forma de silicone,
asse em forno a 170 graus por 13 minutos. Deixe esfriar e tire da forma.
Com uma peneira, polvilhe curry sobre o bolo.
131
montar bem as claras, bater bem gemas ou ovos. Isso
ajuda bastante no resultado final. As massas são bastante
sensíveis a oscilações de temperatura, então muito cuidado
com os quentes e os frios. E não se esqueça do sábio
conselho da vovó: nunca abra o forno antes do tempo.
A proporção de gordura, principalmente no preparo
de biscoitos, pode efetivamente alterar a receita (para
mais fofa ou mais crocante).
Há sempre a possibilidade de usar u m pouco de
criatividade, uma vez que você compreenda uma receita.
Na clássica macarron^ se quiser somar castanha-
do-pará, é possível, desde que você d i m i n u a a gor-
dura, porque as castanhas são mais gordas do que
as amêndoas. Antes de se arriscar no caminho da
criatividade, faça sempre u m exercício experimental e
Dese o equilíbrio e a proporcionalidade da receita,
respeitando as características do ingrediente que você
resolver adicionar.
ca das
Vamos começar falando de caldas e de coulis^ que
são caldas próximas de purés líquidos.
As caldas são feitas a p a r t i r de xarope. Há u m a
regra na cozinha que diz que para u m a boa calda
deve-se ter u m a proporção de 50 por cento de água,
50 por cento de açúcar, mais o ingrediente que se
quer trabalhar. Essa proporção costuma funcionar,
mas pode variar conforme a acidez ou o dulçor do
132
ingrediente que você vai utilizar. Novamente, vale pensar
na receita, fazer o seu balanço antes de colocar a panela
no fogo. Dito isso, saiba que é possível fazer calda de
praticamente tudo.
Os coulis são purés de frutas, que podem ser ou
não cozidos. A vantagem do cozimento é a estabilização
do ingrediente e, logo, uma vida u m pouco mais longa
ao molho. Tanto nos purés, nos coulis^ quanto nas caldas,
você pode usar espessantes.
A seguir, uma lista de bons espessantes, gelificantes
e emulsificantes. Vale dizer que esses produtos, quando
bem entendidos, podem t a m b é m ser usados no universo
dos salgados.
esoessantes
Amido de milho - amido alimentício obtido durante
processo de industrialização do milho por via úmida.
Gomo gelificante, usualmente dá corpo e textura aos
alimentos. Pode ser usado como veículo.
133
Montagem
Coalhada
- >
Preparo da
goiabada
Tire a casca das goiabas
aro do e descarte. Pique bem a
doce de abacaxi carne e a polpa da fruta.
Preparo Coloque em uma
Tire a casca do abacaxi com
Com uma faca, tire a casca da abóbora panela com 100 ml
uma faca. Corte~o em rodelas
e corte-a em cubos de 3 centímetros. do xarope. Leve ao
de 1 centímetro de espessura,
Desmanche a cal em 1 litro de água fria e fogo baixo e deixe
tire o miolo com um cortador
despeje sobre a abóbora. Deixe descansar cozinhar mexendo
redondo e corte cada rodela em
por 2 horas. Escorra e elimine a água. 8 pedaços. Coloque em uma sempre por 1 hora.
Lave os pedaços de abóbora em água panela, cubra com o xarope, A goiabada estará pronta
corrente por 2 ou 3 vezes. Coloque os tampe e cozinhe em fogo baixo quando estiver doce e
cubos em uma panela, cubra com o xarope, por 40 minutos. Deixe resfriar firme. Deixe resfriar
tampe e cozinhe em fogo baixo até que no xarope, coloque o doce e feche em um vidro com
fique macia por dentro e continue firme com ele dentro de um vidro com tampa. Use o mesmo
por fora. Deixe esfriar no xarope, tampa. Use o mesmo processo processo de esterilização
coloque o doce junto com ele dentro de um de esterilização do doce de figo. do doce de figo.
vidro com tampa. Use o mesmo processo
de esterilização do doce de figo. ,
Amido pré-gelatinizado - amido de milho com modifi-
cação em sua estrutura. Não é preciso cozinhar para
formar gel. Ideal para misturas em pó que têm de
ganhar corpo e espessar sem a ação da temperatura.
136
campestris. E utilizada como espessante, estabilizante
e emulsificante na indústria de alimentos.
QG iticantes
Metilcelulose ou methylcellulose - gelificante extraído
da celulose dos vegetais. Ao contrário de outras substân-
cias desse tipo, gelifica quando se aplica calor. Quando
esfriada, age como espessante e permite a produção de
gelados '*'*quentes'' (que derretem quando esfriados),
de "almôndegas'' de vegetais, de mousses sem natas
e sem ovos.
137
propriedades, destacam-se seu alto poder gelificante,
baixa concentração e baixa viscosidade em solução,
elevada força de gel, transparência, gel termo-sensíve
e temperaturas de fusão e gelificação bem definidas.
emu siticantes
Lecitina de soja - obtida a paitii' da soja. é composta de
fosfolipídeos, principalmente. E muito usada como
emulsificante, estabilizante, antioxidante. Também é
redutora de viscosidade em chocolates.
138
Atendo-nos aos caramelos, é importante frisar
que eles são feitos basicamente de u m açúcar mais
temperatura ( u m ácido mais u m a pitada de sal). Os
caramelos claros são feitos de água, açúcar e então
temperatura. No caso dos escuros, o açúcar entra
primeiramente em contato com a temperatura, e a
água vem depois. Pode-se acrescentar gordura lác-
tea ao caramelo (creme de leite, manteiga).
Só para dar u m a ideia da complexidade dessa
receita com tão poucos ingredientes e que parece tão
simples, é b o m saber que há cinco formas básicas de
se trabalhar os açúcares: os filés (filados), os coulés
(colados), os boulés (bolados), os ^OMj^e^(soprados)
e os tires (esticados). Conforme o tipo de técnica
utilizada, a entrada do ácido na receita se dará de
u m a forma que v a i intervir totalmente na elastici-
dade do caramelo.
O sal também é importante na receita. Ajuda a
potencializar o doce. O contraste entre salgado e doce
ajuda a colocar o doce em evidência, quando bem
dosado, e é u m recurso bastante interessante.
Uma curiosidade: até o século X V I , não havia
distinção de cozinha doce e cozinha salgada. A formação
era u m a só. A p a r t i r desse século, se dá a divisão das
duas cozinhas. No nosso café-da-manhã, temos u m
resquício forte dessa época: comemos pão com manteiga
e café com leite, entre outras variações desse tipo.
139
sorvetes
Sorvetes! E uma das partes da cozinha que mais
me encantam.
Há algumas maneiras de se fazer sorvete. M u i t o
3oas. Não tenho nada contra. U m a delas é usando ba-
ses industrializadas, como estabilizante, emulsificante,
etc. Acredito que nós, cozinheiros, somos artesãos e
devemos fazer com que nosso trabalho tenha cunho de
artesanato. Por isso, defendo a preparação de sorvetes
artesanais, que se diferenciem dos sorvetes de boa
qualidade que encontramos no mercado. Sou bastante
favorável a novas técnicas ou novos ingredientes para
a cozinha com u m a única ressalva: acho que eles
passam a ter valor a partir do momento em que nos
evam a resultados que métodos tradicionais não nos
evariam. Por isso, no caso dos sorvetes, só somo uma
nova técnica ou ingrediente ao meu dia-a-dia se me
convencer que ele me levará a u m lugar que minhas
ferramentas de artesão não conseguem me levar.
Há pequenas diferenças entre sorvetes, sorbets
e granizados.
Sorvete {glace em francês) é composto de leite e
de algum tipo de gordura, que t e m u m a untuosidade
natural e vai ajudar muito na textura natural da receita.
Para fazer sorbets, partimos da água e não somamos
gordura. Há uma atenção especial na textura final dos
sorbets: não devem apresentar cristais de gelo. Isso é ga-
rantido pela densidade do líquido que vai ^^sorvetificar".
140
e creme
Ferva o creme de leite, o leite e as favas de baunilha. Bata as gemas com o açúcar até clarear
Jogue em um bowl o creme fervido com as gemas batidas. Leve novamente ao
fogo baixo (para nao talhar), sempre mexendo, até atingir consistência napê (cremoso).
Resfrie e leve para uma máquina de sorvete. Bata até atingir consistência de sorvete.
que deve ser superior a 19 graus Baumé. Uma boa
forma de evitar a cristalização de sorbets é a adição de
álcool à mistura. Cerca de 10 ou 15 ml por litro de
3ebida alcoólica clara, como vodca, cachaça, é suficiente
para evitar a cristalização e dar uma textura mais homo-
génea. A adição de glucose, frutose ou estabilizantes
também costuma resolver esse problema.
Já os granizados são, sim, cristais de gelo sem
gordura. Além da agradável textura, tendem a ter menos
persistência de sabor, e são bastante versáteis e fáceis
de fazer.
Sorvetes não pedem requintes de preparação e
são fáceis de fazer em casa. E muito divertido fazer
sorvete. E é possível, sim, fazer sorvetes salgados e
doces. Aqui, o mais importante é a alegria. Sorvete
acrescenta entretenimento à rotina da cozinha; é um
momento leve, como a receita.
As receitas que daremos são pensadas em fun-
ção da formação de um cozinheiro. Mas aqui eu digo
sem medo que dá para brincar com elas em cozinhas
caseiras com ótimos resultados também.
tas
A meu ver, há dois itens da natureza que são sinóni-
mos de perfeição: o mar e as frutas. Para mim, as frutas
são a expressão máxima da natureza. Parecem presentes.
E o único ingrediente que a natureza nos entrega pronto.
Sai do pé direto para a boca. A primeira coisa que queria
142
dividir com vocês é o prazer de se colher uma fruta no
36. Dê a si mesmo essa alegria. Divida essa experiência
com seus filhos. Farte-se debaixo de um pé de fruta.
Faça guerra com caroços e polpas, se lambuze, brinque
com a generosidade e fartura da natureza.
Então lembre-se de que você é um cozinheiro e que
as frutas têm espaço nos doces, nos salgados, nos cafés,
nos sucos. As possibilidades são infinitas. Elas podem
aparecer nas entradas, nos assados, nos churrascos.
Nunca economize em frutas, nem na quantidade nem
no preço. Mas seja exigente, pague qualquer preço por
uma boa manga. Mesmo que ela seja a manga mais
cara do mundo. Mas, em contrapartida, exija que ela
tenha o sabor da melhor manga do mundo.
Por hábito, ou por cultura, não faz parte da nossa
listória tostar frutas, mas até mesmo limão pode ser
tostado (e chá de limão tostado é um grande remédio
para gripe). Paladares menos treinados - e muitas
vezes infantis - rejeitam amargos. O paladar pode ser
treinado, e alguma experiência com amargos significa
a abertura de uma porta para um universo de sabor
riquíssimo. E essa porta está onde a gente menos espera
(até nas frutas).
Das minhas antigas receitas, a que sempre vou
guardar com carinho especial é a de manga grelhada
com pimenta-do-reino e molho de maracujá. Fiz isso
nos idos de 1995, no Filomena. Metade dos clientes,
dos amigos ou dos jornalistas aplaudiu de pé. A outra
metade me chamou de louco. O que vale é ver que os
anos passaram e a velha receita continua atual. Nos
143
últimos anos, vi frutas tostadas em pratos de espanhóis
clássicos a japoneses ultramodernos. Não acredito em
autoria na cozinha. As possibilidades são tão grandes
nesse universo permissivo e libidinoso e há tanta gente
trabalhando há tanto tempo que não dá para reivindicar
nada para si. Mas é bom às vezes perceber que você
3egou uma onda que pouco tempo depois virou sensação
entre os colegas. Essa é uma das muitas alegrias que a
cozinha já me deu.
Minha manga grelhada era uma entrada salgada do
restaurante. O sabor tostado da manga em combinação
com a manteiga levemente queimada, a pimenta-do-
reino (e sua potência) e a acidez do maracujá trazia
um conjunto incrível entre doces, salgados, amargos,
amendoados e ácidos. Se pudesse fazer um pedido,
gostaria de, uma vez por ano, conseguir fazer uma
receita que tivesse a força criativa e de sabor da
minha manga grelhada do Filomena.
oraanoarama de cozinha
E como funciona a hierarquia de uma cozinha.
Tradicionalmente temos o chef, o subchef, os chefs
de partida (ou de praça), os comins ou aprendizes, os
estagiários e os lavadores de louças.
Antes de explicar como essa escala funciona, quero
contar uma história que se repete em muitas cozinhas.
Muitos lavadores de louça viram grandes cozinheiros.
Isso é muito comum.
144
Há dez anos, Geovane Carneiro é meu subchef
e espero contar com ele por pelo menos outros dez,
vinte anos!). O que sinto por ele é u m misto de sócio,
parceiro, filho, amigo de muitas horas. E, sendo justo,
tenho de dizer que no mínimo 50 por cento do que é o
chef Alex Átala deve ser atribuído a Geovane Carneiro.
Não é exagero. Geovane no bastidor, como subchef, dá,
todos os dias, brilho para a minha imagem. E ele tem o
dom natura .
Geovane se candidatou a garçom, mas acabou indo
lavar louça. A sensibilidade, a observação e a capacidade
de assimilação de informação que ele tem foram me
chamando a atenção de u m a forma que, em pouco
tempo, ele galgou várias posições na hierarquia da
cozinha para, muito rápido, virar subchef. Apesar de
ter tido pouca instrução, ter trabalhado em u m boteco
antes de entrar para a minha brigada, Geovane, que
nasceu no interior da Bahia, não tinha tido contato
com o mundo da gastronomia. E aprendeu tudo com
3erfeição e acuidade, e é hoje u m dos grandes cozinheiros
que conheço. A q u i reforço uma de minhas convicções:
o aprendizado empírico é muito importante para a for-
mação de u m cozinheiro. Geovane tinha grande potencia
3orque ao longo de sua vida teve seu paladar trabalhado
e treinado pelos alimentos que conheceu.
Recebemos muitos cozinheiros, chefs, colegas de
lida no D.O.M., e todos ficam impressionados com a
qualidade de trabalho do Geovane. Por isso, não me
acho exagerado em a t r i b u i r ao menos metade da
m i n h a fama a ele.
145
Geovane é um executor exemplar. Essa é uma das
maiores qualidades que um cozinheiro pode ter. Seja na
cozinha clássica, seja na cozinha moderna, a perfeição
na execução de uma receita é algo que tem de estar
Dresente o tempo todo. Não prego que um cozinheiro
tem de ser subserviente ao chef, tampouco rebelde. Tem
de haver um equilíbrio e respeito mútuo nessa relação.
Voltemos ao início do orojanoCTama da cozinha.
Chamamos de brigada a equipe de um chef.
Na sustentação da cozinha, temos os lavadores de
louça. Eles são responsáveis pela lavagem da louça
e também pela manutenção e inventário de todo o
equipamento disponível. Como fazer um evento para
quinhentas pessoas se eu não sei se tenho quinhentos
pratos? Há uma relação de interdependência dentro
de uma cozinha, e, para tudo funcionar bem, o lavador
de pratos tem de ser muito bom.
Em seguida temos os estagiários e comins, ou apren-
dizes. A função deles não tem mistério: é exatamente o
que você imaginou mesmo. No caso dos estagiários, é
importante frisar que, para termos um bom prato, é
preciso ter construído (e preparado) uma boa base, e
é isso o que eles vêm aprender aqui (e na prática!).
Temos, então, os chefs de partida ou de praça.
Aqui mora a maior confusão que gente que não entende
de cozinha faz. Mas a escola é bastante simples: cada
partida cuida de um determinado tipo de receita que
compõe um prato. Na cozinha clássica há as partidas
de molhos, das carnes, dos peixes, das guarnições, da
confeitaria. No D.O.M. temos cinco chefs de partida:
146
para carnes; peixes; guarnições; entradas e confeitaria
(e cada u m deles é responsável pela totalidade de
sua praça).
Acima dessa equipe fica o subchef, que t e m de
coordenar todos os membros da brigada, manter u m
olho nos pontos de cozimento, nas texturas, na apre-
sentação, enfim, coordenar a equipe. Finalmente temos
o chef. A ele cabe cozinhar, coordenar a brigada,
manter a afinação da equipe e controlar a qualidade
de todo o restaurante. O subchef tem m u i t o mando,
mas dentro da cozinha. Fora dela, quem tem voz de
comando é o chef. Mas o chef é o grande controlador
de qualidade. Se algum prato sai r u i m no restaurante,
a culpa é dele. Por isso, ele tem de estar atento a
todos os detalhes.
marcha e sa
U m grande mistério que ronda o mundo da
cozinha é entender como dez pratos podem chegar
ao mesmo tempo à mesa e estar perfeitos, quentes,
3em apresentados. E mais difícil ainda entender isso
quando a mesa ao lado da sua, também grande,
recebe, de novo - e logo em seguida - , outro conjunto
de pratos bem executados. E em seguida outra mesa,
depois, mais outra.
O segredo está no conjunto. Para que isso
•uncione, é preciso entender o sentido de duas palavras:
marcha e sai.
147
Quando o chef recebe um pedido de uma mesa,
ele dá a ordem ("marcha!'') para cada uma das praças.
Marcha uma carne, marcha uma pasta, e assim por
diante. O chef de cada partida vai, então, usar da
memória e do ouvido e estar atento ao tempo de cozi-
mento de cada ingrediente, à sua colocação em um
prato de serviço ao lado de seus complementos (que
vêm das outras praças). O chef, então, dá a segunda
ordem: "Sai". E nessa hora tudo tem de estar bem
composto, perfeito, impecável, com todos os compo-
nentes do prato em seus devidos lugares para que sigam
para uma mesa.
A rotina da cozinha é um exercício diário de
desdizer o que ouvimos durante toda a nossa vida:
que a pressa é inimiga da perfeição. No tempo menor
possível (quem gosta de esperar para comer?), é
preciso que tudo seja executado - e da melhor forma.
Para isso, há pequenos segredos que podem ser
resumidos numa grande ideia central: organização.
A palavra "brigada', usada para designar o grupo
de integrantes de uma cozinha, remete ao universo
militar. Na lida diária da cozinha, percebe-se que isso
tem uma razão de ser: é preciso muita disciplina,
capacidade de execução rápida e perfeita, muita
organização para que tudo dê certo. Nessa hora,
códigos universais, que funcionem em qualquer lugar
do mundo, devem existir. "Marcha e sai" talvez seja o
mais emblemático deles.
148
nartidas
Outro pequeno segredo universal da ordem
interna de u m a cozinha de restaurante é como são
preparadas as partes de u m prato para que aquela
grande receita surja bem composta - quente e bem
apresentada - na mesa do cliente. As partidas são
responsáveis por isso. E m vez de todas as panelas
borbulharem ao mesmo tempo e u m a única pessoa
comandar o fogão, como acontece na casa de quase
todo m u n d o , em u m a cozinha profissional a adminis-
tração das panelas e fornos é dividida entre muitos
cozinheiros. Cada u m a dessas áreas de comando é
chamada de partida.
Na cozinha clássica temos as partidas de molhos,
carnes, peixes, entremeios ou guarnições, confeitaria
e garde-manger (ou entradas). No dia-a-dia, cada
restaurante pode acrescentar uma nova partida ou
excluir uma outra, de acordo com as exigências de seu
cardápio. No D.O.M., como já disse, não temos uma
praça específica de molhos. E m hotéis, há também as
partidas de açougues e de stewarding (responsável pela
higiene, manutenção e inventário de talheres, louças,
copos e t c ) . Essas duas funções são muito importantes
em locais onde a qualquer momento pode surgir a
necessidade de u m evento grande e importante.
Quando recebe a comanda de u m a mesa, o chef
(o subchef também t e m autoridade para isso) dá a
marcha, e cada u m dos chefs de p a r t i d a sabe o que
149
minilíngua-de-gato
Ingredientes
Preparo
150
tem de fazer. É importante que os comandantes ou
chefs de suas partidas conheçam bem o cardápio e
a sua obrigação dentro dele, para que, ao ouvir o
comando, comecem imediatamente a executá-lo. E
o chef das guarnições que tem de saber que um puré
nunca pode ferver; o das carnes busca o ponto perfeito
do alimento cuidando para que nunca seja excedido,
e assim por diante.
Dentro de uma cozinha, as ordens de preparo
dos pratos são executadas conforme os pedidos de
um grupo de pessoas que ocupa cada uma das mesas.
O chef e o subchef acompanham o tempo de execução
daquelas ordens e podem, sim, passar uma mesa
na frente, ou ordenar que toda uma mesa seja refeita
conforme o serviço entregue pelos chefs de praça
vai terminando.
Em grandes restaurantes acontece, sim, de os
Dratos de uma mesa inteira terem de ser refeitos porque
o chef de alguma das partidas errou feio. Isso faz
3arte da rotina de uma casa. Conforme a equipe vai se
afinando (e isso pode levar mais de ano!), esses erros
se tornam menos freqiientes.
Nessas ocasiões, costumo ser rígido, duro mesmo.
Acho que a melhor forma de corrigir um erro na cozinha
é ter consciência do tamanho do problema causado.
O melhor termómetro de um cozinheiro sempre será a
Doca. Por isso, em momentos de estresse e grandes erros,
já fiz um cozinheiro comer o que tinha preparado. E
um grande aprendizado ter de comer, inteiro, um prato
errado. A cada garfada você sente o gosto do problema
152
que poderia ter enviado para o comensal. Outra coisa
que afina o funcionamento da brigada são pequenas
punições. Com raras exceções, nas minhas cozinhas
todos começam lavando pratos. Voltar para essa função
por dois, três dias, quando comete uma grande burrada,
pode ser muito educativo.
Tome cuidado com as suas palavras nessa hora.
Você tem todo o direito de criticar um prato, puxar
a orelha de um cozinheiro que cometeu um grande
deslize e comprometeu a qualidade do trabalho da
equipe, mas há formas e formas de falar. Você pode
dizer para um cozinheiro que '"^esse prato está uma
droga!", mas nunca diga que ele é uma ''droga''. Se ele
é uma droga, ele não deveria estar em sua equipe e, se
está, aí o erro é todo seu. Afinal, quem supervisiona a
contratação e demissão da brigada também é o chef.
Há muita tensão no ambiente de uma cozinha. E
preciso que todas as praças funcionem muito bem,
com agilidade, inteligência. Estamos o tempo todo
muito próximos de u m grande fracasso ou de u m
imenso sucesso.
adando
A primeira vez que entrei em uma cozinha de
serviço à la carte e v i como aquilo funcionava, achei
que não seria capaz de ficar ali nem uma hora. Achei
que todo mundo corria, não entendi aquele ritmo
frenético. Graças a Deus, fui sugado para dentro daquela
153
equipe e muito rapidamente me entendendo em meio
àquele caos, perdendo o medo. Mas, nos meus pri-
meiros serviços, nadei e nadei muito. Aliás, nadamos
até hoje.
Nadar é a expressão que se usa na cozinha para
aquela hora em que você pára e não sabe o que fazer,
por onde começar. Para os iniciantes, e também para
os mais experimentados, quero dizer uma coisa: o pior
momento que vivi na cozinha e o melhor momento que
vivi na cozinha têm um ponto em comum - eles
passam. Quando tudo parece estar fugindo de seu
controle, é hora de respirar, buscar o equilíbrio, ter
calma, raciocinar. Lembrar onde você tinha parado e
tentar resgatar o fio da meada. Se não der, ter equilí-
brio para avisar "estou nadando!". Há sempre alguém
ao seu lado capaz de segurar a sua mão nessa hora.
Essa regra vale também para os grandes momentos.
Na cozinha, as alegrias e os desesperos estão lado
a lado. Resgatar uma equipe que está nadando tem os
dois momentos: perceber que tudo está descontrolado
e retomar o controle. Colocar todos a postos e cumprir
mais um dia é muito gratificante. Muito mesmo.
Fui aprendendo muito com a ''natação". Por
exemplo, quando são abertas as partidas (depois do
grito "marcha!"), é preciso estar atento a tudo o que
acontece à sua volta. Trabalhar limpo e organizado são
grandes vacinas para um bom cozinheiro não nadar.
O que vale dentro da cozinha é não ter movimentos
perdidos. Se tudo ao seu redor estiver impecável, certa-
mente será mais fácil não desperdiçar energia à toa.
154
Nadar é perder o pé. Cair fora da linha de produção.
No começo, nada-se muito. O importante é aprender
com a natação. Saber tirar as lições desse momento para
um dia estar preparado para salvar quem estiver
nadando do seu lado.
organização de cozinha
Uma das formas de evitar a natação dentro de
uma cozinha é mantê-la bem organizada. A organização
vai bem além dos legumes anteriormente picados.
das ervas pré-selecionadas, lavadas, secas e bem
acondicionadas, de os cortes de carne estarem bem-
:-eitos e na altura desejada, as panelas limpas, os pratos
empilhados, secos e limpos.
Higiene (de todo o salão, da cozinha, dos banhei-
ros), abastecimento, controle de compras (de bebidas,
de ingredientes, de itens descartáveis), cuidado rigoroso
com a provisão de bases (caldos, molhos e tudo o que
puder ser adiantado das receitas servidas no restaurante),
com a lavagem das toalhas, guardanapos e outros
itens que seguem para lavanderias, escala de folga das
equipes, horários e refeições de todos os funcionários,
tudo isso tem de ser organizado também.
Uma das maiores inteligências de um chef é tornar
suas receitas executáveis. Para serem repetidas, da
mesma forma, diversas vezes, as receitas têm de ser
estáveis. Para isso, ele tem de conhecer bem o seu
universo, saber o tamanho de sua equipe, quais as
155
habilidades e fraquezas de cada um, quais os limites
de seu equipamento (temos o prato e o talher certos
para servir essa receita?) e de seu espaço (o que ter, o
que alugar, onde guardar pratos, copos, talheres, o que
manter na despensa).
Chefs maduros, profissionais experimentados,
jovens chefs, todos têm de estar preparados para
assumir esse grande conjunto de funções de um
restaurante. Essas também são funções de um chef.
E estar atento a tudo isso garante que o comensal
que entra e sai de um restaurante fique satisfeito.
aestao
O custo de operação de uma cozinha é diretamente
proporcional à lucratividade do empreendimento. Esse
é o pesadelo de todo chef e também de todo dono de
restaurante (quando eles são a mesma pessoa, às vezes,
é difícil pegar no sono). Aqui tenho duas coisas a dizer:
1) o seu cliente não é burro; nunca venda gato por
lebre; 2) caros são os ingredientes de qualidade inter-
mediária, baixa. Pagar mais dinheiro por determinado
ingrediente pode não ser tão caro, o bom ingrediente
será mais bem aproveitado. Um ingrediente bem
aproveitado acaba saindo mais barato do que um pior
que não permite seu uso completo.
O duelo entre o chef e o departamento financeiro
do restaurante será eterno. Mas não veja seu departa-
mento financeiro como inimigo. Ouça atentamente, e
156
sempre, o que ele tem a dizer sobre o que você está
comprando e como está gerindo essa compra. Avalie se
há formas de melhorar o desempenho desse ou daquele
ingrediente. Peça uma chance quando achar que há
como melhorar e saiba ceder se, depois de todas as
suas considerações, essa for a melhor decisão a tomar.
Em hipótese alguma penalize o comensal.
Foi na Itália, trabalhando em uma Osteria, que
entendi esse processo bem de perto. Do lucro que
tínhamos com a venda de um dia, saía o dinheiro que
eu tinha para comprar os ingredientes para montar o
cardápio do dia seguinte. Era simples assim. Fazíamos
um menu despretensioso, caseiro, que mudava
diariamente e seria resultado da compra que eu fazia
antes de abrir o restaurante. Era eu quem montava o
menu, regia a cozinha e fazia a compra. Foi um grande
aprendizado. Para manter o bom funcionamento da
casa, ter bons pratos para oferecer, aprendi o valor de
ter bons ingredientes, tirar o máximo que eles podiam
oferecer (um caldo que pudesse ser reaproveitado
significava que eu não tinha de gastar na cenoura, no
salsão no dia seguinte) e também a entender como gerir
bem essa operação para que todos ficassem contentes.
Especialmente o comensal, que eu tinha de fazer feliz
para ter casa cheia - e, conseqiientemente, mais dinheiro
para fazer a feira do dia seguinte.
157
preço X qu.a idade
A gestão de uma cozinha vai além do food cost
(ou do custo do alimento). Inclui também a compra e,
principalmente, a manutenção dos equipamentos.
Lógico que eu gostaria de ter uma Ferrari, mas nunca
m o r r i por andar de ônibus. Não é preciso ter os me-
hores e mais reluzentes equipamentos para praticar
uma boa cozinha. Conheço pessoas que compraram
fornos e outros equipamentos de última geração e não
conseguem aproveitar u m décimo do rendimento desses
equipamentos. Na hora da compra, é bom decidir pelo
equipamento mais eficaz que o seu dinheiro pode
comprar. Para isso, é importante entender u m pouco
daquele equipamento, saber o que você v a i precisar
' ' t i r a r " dele. O vendedor, claro, quer vender o seu peixe.
Mas u m comprador com as perguntas corretas dificil-
mente será ludibriado.
Maravilha: você é dono de u m a boa cozinha,
agora tudo está resolvido. E r r a d o . A manutenção é
outro ponto essencial para a boa gestão (e o melhor
aproveitamento de seu dinheiro). O fogão bem regulado,
panelas bem lavadas, geladeiras limpas, motores f u n -
cionando em perfeita ordem são imprescindíveis para
a rotina perfeita de uma cozinha. E é função do chef
cuidar de sua cozinha. U m chef tem de cuidar mais de
sua cozinha do que de seu carro. A sabedoria do chef
está em possuir u m b o m equipamento e saber como
mantê-lo para tirar o máximo que ele tem a oferecer.
158
E isso, mais o controle do ingrediente, da brigada,
do salão, do bom entendimento com o financeiro,
reverterá no preço do prato. Se a entrega do prato for
Derfeita para o comensal, ele vai perceber que está
diante de uma grande orquestra. E vai aplaudir e pagar
o seu preço. Aqui vale o que eu já disse: seu cliente não
é burro. Se ele sentir que recebe qualidade, saberá
pagar o preço justo por isso.
auiocniica
A autocrítica é um dos pontos mais difíceis na vida
de todos nós. E natural que a gente tente sempre se eximir
dos próprios erros apontando-os em outro alguém.
Muitas vezes, seduzido por um novo ingrediente, uma
nova técnica, traço um plano de execução de um prato.
Testo, testo, e consigo um resultado que me parece
extraordinário. A autocrítica entra em ação quando você
expõe esse trabalho para as pessoas degustarem.
Nessa hora você vai ter de saber filtrar o que
ouve para melhorar o seu prato. Dá até para não
concordar com o que diz um cliente descontente. Mas
não ouvir sobre o que reclamam dez clientes será uma
atitude de louco.
As vezes, gosto de cozinhar para chatos, para
aquelas pessoas que implicam com tudo. E isso não é
masoquismo ou sessão de tortura. Uma pessoa muito
observadora e exigente é, muitas vezes, o filtro de que
você precisa para passar pela média menos exigente.
159
mana-moe
Ingredientes , Anna
Preparo
Para o Toffee
ingredientes
600 g de açúcar
4 0 0 g d e c r e m e d e leite
10 g d e gelatina e m folhas
Preparo OesV^9^®°
E m u m a frigideira g r a n d e , f a ç a u m c a r a m e l o c o m o a ç u c
o c r e m e d e leite a o s p o u c o s . Ligue o f o g o e deixe ferver p o r a p r o x i m a d a m e n t e u m m i n u t o .
Reserve 2 0 0 g d e toffee p a r a o recheio d a m a r i a - m o l e
Finalização
A d i c i o n e a o s 2 0 0 g d e toffee o s 1 0 0 g d e m a r i a - m o l e (reservados a n t e r i o r m e n t e ) .
A q u e ç a e m b a n h o - m a r i a p a r a o c r e m e a m o l e c e r o suficiente p a r a espalhar d e m a n e i r a u n i f o r m e s o b r e
a f o r m a c o m a m a r i a - m o l e . Leve à geladeira n o v a m e n t e . Q u a n d o estiver firme, a q u e ç a a o u t r a m e t a d e
d o c r e m e inicial e m b a n h o - m a r i a e e s p a l h e s o b r e o toffee L e v e àa l H
C u b r a c o m u m plástico u n t a d o c o m u m f/o d , ' esteja fr^^^
160
mas que sabe aplaudir (e criticar), apesar de não saber
explicar onde o chef errou. O chato é atento aos detalhes
e geralmente sabe colocar o dedo na ferida.
A grande lapidação de meu trabalho, meu último
grande salto de aprendizagem, se deu convivendo i n t i -
mamente com u m grande chato, no melhor sentido da
3alavra. Lucas Souza foi meu sócio por alguns anos,
e não me lembro de ter sido elogiado por ele uma
única vez. Mas foi ele quem me ensinou que há outra
maneira de avaliar u m prato. E que é tão importante
quanto aquela que o chef faz antes de autorizar a saída
do prato da cozinha depois de todo o trabalho da briga-
da. O chef tem de ver sua receita executada, também,
sentado à mesa de seu restaurante. Ver u m prato mon-
tado dentro de uma cozinha é completamente diferente
de ver o mesmo prato sentado à mesa do restaurante.
Para autorizar a saída de u m prato da cozinha, o
chef vai avaliar o equilíbrio do sabor, a proporção dos
ingredientes, a temperatura do molho, da carne, da
guarnição, do caldo, a disposição de cada elemento no
3rato. Eora da cozinha começam a ganhar peso outros
itens: o tipo de prato, o tipo de talher, a bebida que o
acompanha, o ponto da carne, a apresentação geral do
Drato, o copo em que é servida a água, o serviço do restau-
rante, e até o lugar onde a mulher vai guardar a bolsa.
Tudo tem de ser pensado nos menores detalhes.
E o Lucas me obrigava a continuar o exercício. Com
tudo isso coordenado, t i n h a de ser capaz de sentar e
avaliar meu prato como faz u m gourmet. Estando
atento a cada detalhe, se a guarnição foi suficiente, se
162
sobrou ou se faltou molho, se a apresentação causava
boa impressão. Cada um desses itens ganha uma
pontuação. Um chef tem de saber que será avaliado
em várias categorias quando apresentar um prato para
quem freqiienta os melhores endereços gastronómicos
(sejam gourmets, sejam críticos gastronómicos).
Quando um gourmet avalia um prato, ele dá notas
3ara a apresentação, textura e sabor. Comi lulas com
textura perfeita em pratos medíocres, comi grandes
receitas com ingredientes fora de seu ponto ideal. A
apresentação pode ser subjetiva, mas a textura, o
sabor, são bastante precisos; e só estando literalmente
no lugar do comensal é possível avaliar todo esse
conjunto com a propriedade necessária.
Conhecendo todos os passos de dentro e de fora
da cozinha será mais fácil incorporar um olhar externo
e julgar com rigor o seu produto. Quando você for
capaz de ser tão exigente com o seu produto quanto é
com o produto de qualquer restaurante que freqiiente,
saberá ouvir as críticas, entendê-las, considerá-las
(ou não). Esse passo é árduo, demorado, difícil, mas
leva para patamares melhores na profissão.
esco a X nraiica
Acho que as pessoas têm de fazer escola. Ensino
undamental, intermediário ou curso de cozinha.
Um aspirante a cozinheiro tem de se aperfeiçoar.
Não porque um bom diploma seja garantia de sucesso.
Mas ele habilita o aspirante ao ingresso no mercado.
Se você é um aspirante a chef, lembre-se: seu currículo
vai passar pela mão de muitas pessoas, inclusive pro-
fissionais de RH. Nessa dura triagem, quem não tem
escola será o primeiro descartado da imensa lista.
Por outro lado, um bom diploma, passagens pelas
melhores escolas, alguns estágios nos melhores restau-
rantes do mundo não são garantia de um futuro de
sucesso e de aplausos. Essa garantia ninguém pode
dar. O caminho mais seguro será sempre aliar seu
diploma (ou o conjunto deles) á prática.
Um médico, quando termina a sua universidade,
tem de fazer residência, um advogado, o exame da OAB.
165
Um jornalista, antes de virar redator-chefe, foi redator,
repórter. Seja em que etapa estiver da vida, um advogado
será sempre um advogado, e assim também será para
o médico, o jornalista, o arquiteto. Na cozinha, seremos
sempre cozinheiros. Comias, estagiários, chefs de partida,
subchefs são cozinheiros, e é a prática que lapida a
técnica (em qualquer um desses estágios da profissão).
Independentemente de qual seja o seu sonho (ser chef,
subchef, dono de restaurante, de um bufe, de um hotel,
de um catering), é a experiência que vai dar bagagem
para a boa execução de sua função, para a liderança e
para o sucesso.
qressando no mercado
Vou dar um conselho pessoal: nunca ligue para
pedir emprego. Nada dá maior ar de preguiça do que
um telefonema desse tipo. Apresente-se pessoalmente
em vez de telefonar. E sempre capriche na apresentação.
Esteja bem vestido, bem penteado, de banho tomado.
''O mundo trata melhor quem se veste bem!" Esse velho
slogan que já vendeu muita calça jeans virou máxima. E
isso funciona também nos bastidores dos restaurantes.
Demonstre determinação e disponibilidade. Evite
a palavra ^^não" a todo custo. Tente sempre encon-
trar uma forma elegante de se expressar e não use
expressões negativas.
Depois de passar pela entrevista, vem a prática. O
dia passa mais rápido quando você trabalha. A preguiça
166
faz minutos virarem horas. E isso vale para todos os dias
da sua vida. As últimas horas de um dia de serviço são as
mais longas. Limpar a cozinha nunca é o momento mais
divertido do dia (e é assim que termina a rotina de
todo cozinheiro. No D.O.M. só dispensamos a equipe
inteira, de todas as praças, quando a cozinha está
brilhando). Entregue tudo igual ou melhor que recebeu.
De preferência mais limpo e bem organizado. Durante
o trabalho, faça valer a máxima: sujou, limpou. Se for
impando enquanto trabalha, você perde muito menos
tempo na hora da faxina final - o caos não vai reinar
na sua praça e você pode, inclusive, não nadar. Se tiver
executado tudo com perfeição, vai funcionar melhor.
O malfeito costuma dar mais trabalho do que o bem-
"eito, porque terá que ser refeito.
Numa cozinha, o ideal é nunca ficar parado. Se na
sua praça tudo estiver limpo, organizado, praticamente
Derfeito, ajude um companheiro. O chef sempre está
vendo essas atitudes, pode ter certeza. Além disso,
ajudar o colega estimula o sentimento de equipe da
brigada. Também não perca de vista que um dia você
vai precisar de ajuda (todos, sem exceção, passam
por isso!).
Além de seu uniforme, sempre limpo e impecável,
cuide bem de seu equipamento básico de cozinha
(mantenha-o em perfeita ordem: facas têm sempre de
estar afiadas e limpas!).
Conforme você for ganhando prática, vai perceber
que, além das facas, do termómetro, outros itens
(como um descascador de legumes, um ralador, uma
167
pinça) serão importantes no seu cotidiano. O restau-
rante em que você trabalhar quase sempre terá bons
equipamentos. Mas com a prática você perceberá que
há um mais adequado ao tamanho da sua mão, ao
seu jeito de trabalhar. Depois de algum tempo, esse
pequeno kit pessoal ganhará sua forma, o tamanho da
sua necessidade, e o acompanhará. Mas nunca perca
de vista que, para se dar bem, vai precisar de muita
disposição, perseverança, e que a prática lapida a técnica.
E que a necessidade desses apetrechos (do seu kit) virá
com a lida diária. E mais: esteja preparado para as
críticas e não se deixe abater. As críticas devem sempre
funcionar como vitamina para o êxito do dia seguinte.
Uma última dica: não existe um único chef estrelado
que saiba tudo sobre o cozinhar. Esse universo é muito
vasto. Por isso, ingresse no mercado pronto a aprender e
alimente esse desejo durante toda a sua carreira. Acre-
dite, o fim está próximo dos que perdem essa vontade
de acumular conhecimento, de saber sempre um pouco
mais sobre a nossa rotina. A possibilidade de aprender
todos os dias é, sem dúvida, um dos atrativos da carreira
de cozinheiro. Palavra de quem está sempre em busca
de uma novidade.
168
Para o feijão esteja bem encorpado e o feijão 2 cebolas, 2 dentes de alho,
macio. Acerte o sal. Finalize com 2 talos de coentro,
Ingredientes ciboulette e coentro picados bem finos. 50 g de cebolinha verde,
3 dentes de alho, 2 cebolas, pimenta-do-reino, q.b. de sal
q.b. de óleo de canela, 80 g de couro Para o arroz
do bacon, 2 folhas de louro, Preparr
1 pé de porco fresco, 500,g de feijão, Ingredientes Descasque e pique a cenoura,
80 g de bacon, 5 g de ciboulette, 1 cebola pequena, q.b. de óleo, 200 g os tomates, o alho e a
5 g de coentro de arroz, 400 ml de água, q.b. de sal cebola em pedaços de 1 cm.
Corte a carne em tiras de
Preparo 2 centímetros. Em uma panela
Descasque e pique o alho e a cebola Pique a cebola e reserve. Em uma com um fio de óleo de canola,
e reserve. Em uma panela de pressão, panela, refogue a cebola com um refogue a cebola, o alho
refogue metade do alho picado, fio de óleo. Lave o arroz em água e a cenoura por cerca de
metade da cebola, adicione o couro corrente e escorra. Acrescente à 5 minutos, depois acrescente
panela e tempere com sal. Cubra a carne e o tomate. Cubra com
do bacon, uma folha de louro, o pé de
com a água. Cozinhe com a panela 1 litro de água, tampe e deixe
porco e o feijão, cubra com água,
tampada em fogo brando. cozinhar por 1 hora em fogo baixo
tampe e deixe cozinhar na pressão
ou até a carne ficar macia.
por 40 minutos. Corte o bacon em
cubos pequenos e reserve. Em outra Para o picadinho Tempere com sal e pimenta-do-reino.
Mexa bem para dar consistência
panela, refogue o bacon, o restante
Ingredientes ao molho. Finalize com o coentro
da cebola e do alho até que estejam
5 tomates bem maduros, e a cebolinha verde
dourados, adicione a outra folha
1 cenoura, 500 g de alcatra, picados grosseiramente.
de louro e junte o feijão. Cozinhe por
q.b. de óleo de canola. Sirva com pimenta.
mais 20 minutos ou até que o caldo
Esta receita talvez seja a menina-dos-meus-olhos. Acho que como todo francês tem de saber fazer uma
boa omelete, todo italiano tem de saber fazer um bom espaguete ao alho e óleo. Portanto, todo brasileiro tem
de saber fazer um bom arroz com feijão. Minha dica nesta receita é juntar um pé de porco ao preparo do feijão.
Apesar de ter um sabor bastante neutro, o pé de porco confere uma boa quantidade de gelatina à receita,
que além de dar uma textura agradável, deixa os sabores um pouco mais longos e persistentes na boca.
aaora voce e
m cozinheiro
Independentemente se daqui para a frente você
vai ser um cozinheiro profissional, um gourmet ou um
diletante, esperamos que já tenha assimilado um
3 0 U C 0 de teoria de cozinha. Depois de uma passagem
pelos fundamentos de base, ingressamos, em um
segundo momento, na prática; fazemos uma imersão
no dia-a-dia de um cozinheiro. Aqui, vamos discutir a
diferença entre fazer uma receita para quatro pessoas
ou um jantar para vinte pessoas - ou até realmente
gerir uma cozinha.
Sempre que penso nos primeiros anos de minha
vida na cozinha, avalio que fui um cozinheiro, no
máximo, medíocre. E acho que não dá para ser muito
diferente. Nos primeiros anos de lida com fornos e
fogões, você é uma esponja, vai absorvendo conhe-
cimento. A partir de um certo momento, a cozinha
começa a fluir de você. Você consegue executar técnicas,
sentir-se apto a arriscar pequenas criações, intervenções
em receitas clássicas. Muitas vezes, isso nem acontece
3elo ímpeto de criar, mas pela necessidade momentânea
de sair de um problema: há um jantar, as pessoas estão
esperando, você não tem equipamento, a despensa
está vazia, falta um ingrediente da receita e você tem
de, literalmente falando, fazer do osso o caldo. Para
sair ileso de situações como essas, é preciso certa
172
maturidade do profissional ou experiência como amador.
E aí que ele começa a perceber que é capaz de se virar
- e quase sempre muito bem - nas muitas armadilhas
do cotidiano da cozinha. Os fundamentos, as técnicas
de cozinha, são grandes ferramentas para isso.
Depois de uma imersão nas bases, vamos detalhar
a realidade da rotina do cozinheiro e como ele faz para
conduzir u m jantar, u m restaurante ou uma cozinha (e as
muitas possibilidades que esse universo oferece).
E m Cozinha confidencial., Anthony Bourdain diz
que todo mundo que vira cozinheiro está fugindo de
alguma coisa. Para ele, o profissional de cozinha costuma
ser alguém que não se adaptou bem à sociedade e por
isso se embrenha no mundo das facas, fornos e fogões.
Quando penso no que significa a transformação de u m
cidadão normal em cozinheiro (e nas gratificações que
essa profissão nos traz), preciso concordar com ele.
Acho, no entanto, que isso é muito pessoa N o meu
caso essa frase faz sentido, mas pode não ter a menor
razão de ser para outro colega.
Seja qual for a razão que o levou a esse mundo, é
impossível não se encantar com a mágica da cozinha,
com o "prazer de transformar" inerente a ela, com a
habilidade de se expressar através de u m prato, de
servir, de gerar prazer em u m comensal. Se o seu caminho
é esse, certamente você vai entender o que estou dizendo.
Esses sentimentos vão permear a rotina de u m cozinheiro,
seja ele u m fugitivo da realidade ou não.
Entre as muitas tentativas de definir esse
universo, já v i comparações entre cozinha e ciências
173
cachotra
Para o risoto
Ingredientes
Finalização
marcha e sai 2
Essas duas palavras de ordem são (mais um
legado da cozinha francesa. Certa vez comparei a
cozinha - ou a hierarquia da cozinha - a uma grande
17?
empresa, em que há um presidente, um vice-presidente
e vários diretores e seus subordinados. Uma cozinha é
parecida, com o chef, o subchef e chefs de partidas, os
cozinheiros. Qualquer alteração no mercado financeiro,
no câmbio ou no setor que atinja a empresa faz com
que todos os diretores repensem suas estratégias e
tenham de agir muito rapidamente em seus setores,
seja ele o marketing, ofinanceiro,o almoxarifado etc.
A chegada de uma nova informação faz com que esse
cara tenha de tomar uma atitude rápida que evite que
a empresa perca dinheiro ou (na melhor das hipóteses)
que a ajude a ganhar dinheiro. Na dúvida, um diretor
tem sempre um vice-presidente para aconselhá-lo, e
um vice-presidente, na dúvida, tem um presidente em
quem se ancorar. Muitas vezes tem-se a sensação de
que o presidente não faz nada. O que não se pode
esquecer é que ele é responsável por tudo aquilo.
Numa cozinha, o processo é bem semelhante.
As diferenças entre uma grande empresa e uma cozinha
são as ferramentas por onde se espalham as informações.
Na cozinha, ela vem do salão, numa comanda, e, em
vez de ser armazenada em computadores, tem de se
fixar na memória dos cozinheiros. Numa cozinha, há
dois comandos: "marcha" e "sai". Marcha é a ordem
3ara um cozinheiro começar a fazer uma preparação.
Em cada uma das partidas - das carnes, dos peixes, das
aves ou das sobremesas - , o cozinheiro está com os
ouvidos atentos, com os sentidos alertas e com a memória
muito ativa. Quando um chef pega uma comanda e diz:
"Atenção! Marcha um robalo, marcha um atum, marcha
178
uma galinha e depois de sobremesa eu quero um sorvete
de chocolate e um sorvete de baunilha'', a fábrica
começa a soltar fumaça. Cada responsável pela praça
tem de saber - de memória - o que tem de entregar,
porque alguns minutos depois o chef vai falar: ''Sai meu
robalo, meu atum e a minha galinha, da mesa número
tal". E cada uma das suas partidas tem de ter finalizado
a sua parte da receita em tempo coordenado com as
praças vizinhas, para que todos os pratos cheguem aos
clientes ao mesmo tempo.
As desvantagens de um cozinheiro em relação a
um diretor de banco é que o primeiro não tem um
pedaço de papel, e muito menos um computador, para
guiá-lo - só a memória e o domínio do fogão, o domínio
da receita e o conhecimento do cardápio. Para que
todos os pratos fiquem prontos ao mesmo tempo (e
isso tem de ser o mais rápido possível), há a hora certa
para cada uma das praças entrar em ação. Com a
prática, cada chef de partida sabe exatamente qual o
seu momento de entrar na fogueira. No caso de qualquer
dúvida quanto ao ponto da carne, se o molho será ou
não à parte, se o peixe tem de estar mais cru, o chef de
partida tem o subchef a quem recorrer; e este, se não
tiver a resposta, pergunta ao chef.
Marcha" e "sai" são as palavras que regem a
espinha dorsal de uma cozinha, a ordem de começar
a preparar e a ordem de finalizar a receita e empratar.
Ao subchef e ao chef, nessa hora, só cabem a coorde-
nação da equipe e o controle de qualidade de cada
uma das preparações.
179
Quem tem o controle do relógio é o chef ou o subchef.
Geralmente, antes de abrir o expediente, é combinado
quem v a i gritar as ordens daquela noite (só uma voz
dá o comando na cozinha para não haver confusão).
É essa pessoa quem v a i conduzir a marcha da noite.
E ela quem vai pegar as comandas e dizer o que cada
mesa pediu.
O chef e o subchef também podem dar a ordem
para que essa ou aquela parte do prato seja refeita se
não estiver no ponto certo. No limite, eles podem até pedir
a repetição de todos os pratos de uma mesa. A função
maior dos dois é ser o controle de qualidade da comida
que deixa a cozinha. São eles que podem (e devem)
evitar que qualquer erro chegue ao salão.
Com os anos, esses profissionais aprendem que o
olho lê muito rápido. Quando se conhece muito bem
uma receita (e u m chef tem de conhecer todas as suas
receitas de cor), o olho estranha quando vê uma coisa
errada. O grande aprendizado é confiar no olho e
responder rapidamente àquela impressão. A quem
nunca regeu uma cozinha, essa afirmação pode parecer
estranha. Mas é assim que funciona. Geralmente, só de
olhar u m molho você sabe se ele deveria estar mais
denso ou menos denso. O mesmo acontece com o ponto
das carnes, com a textura dos purés, com o aspecto de
u m risoto, e assim por diante. U m chef só experimenta
uma receita - o paladar é sempre o mais seguro dos
controles de qualidade - quando seu olho lhe propõe
uma dúvida. Quando isso acontece, a colher e a boca
dão o voto de Minerva.
180
gourmet ou protissiona
O amadurecimento de um cozinheiro depende
muito de cada profissional. Mas é possível dizer que
com quatro ou cinco anos de prática já se chega a um
3om nível. Há profissionais que amadurecem mais
rápido, porém, em geral se leva meia década para
aprender a ler receitas com os olhos.
Para que uma equipe fique azeitada, é necessário
mais tempo. Costumo dizer que a partir do sétimo ou
oitavo ano chefiando é que você passa a confiar 100
por cento em sua equipe. Nesse período haverá, é claro,
substituições, mas, se o chef acertar a mão, ele terá,
depois de alguns anos de cozinha, alguns funcionários
que estão com ele desde sempre, que já sabem como
ele gosta de trabalhar.
No meu caso, digo com segurança que, quando
voltei ao Brasil (e tinha perto de cinco anos de prática),
era um bom cozinheiro. Acho boas várias das receitas
que criei dez anos atrás. Mas tenho certeza de que
melhorei muito desde que voltei de minhas andanças
pelo mundo. E pretendo continuar melhorando por mais
quinze anos, senão minha carreira vai entrar numa curva
descendente. Acho que a carreira de um chef começa a
entrar em declínio quando se perde a capacidade de
superação. Um chef não pode acomodar-se, sentir-se
confortável com o seu sucesso.
Logo no começo da minha carreira, ainda na
Bélgica, trabalhei num restaurante três-estrelas do
181
Para a nage
Ingredientes
6 trilhas de 60 g cada
50 g de cebola
50 g de cenoura
1 dente de alho
50 g da parte clara de 1 alho-poró
50 g de salsão
1 bouquet garni
50 ml de vinho branco seco
1 limão-cravo
1 trufa preta
Preparo.
500 g de salsão
1 í de água
q.b. de sal
-(00 ml de vinho branco seco
0,5 g de gomaxantana
Preparo
Finalização
Montagem
183
Guia Michelin. Foi u m dos melhores restaurantes em
que pisei como profissional contratado, mas não retive
nem 10 por cento do que aquela experiência podia
me dar. Era u m iniciante na cozinha, não conseguia
entender o todo da operação, detalhes como a razão de
as ervas serem separadas de uma certa maneira ou os
caldos desengordurados de outra. Muito do que eu fazia
ali era repetir ações, sem entender o porquê.
Conforme f u i ganhando experiência, veio o refina-
mento. Foi em u m restaurante mais informal, na Itália,
com equipamentos às vezes precários, de menu diário,
que lapidei minha técnica, meu gosto, minha expertise
de chef. O restaurante era tão modesto que nem se pode
dizer que eu era chef. A l i eu era o responsável pela
cozinha e tinha de montar u m menu diário com duas
entradas, dois primeiros pratos, dois segundos pratos e
duas sobremesas. E a verba que eu tinha para as compras
dependia do faturamento do dia anterior. Quando
assumi aquela cozinha, já trabalhava havia dois anos na
Itália. Como já tinha alguma bagagem, essa possibilidade
de gerir uma cozinha me fez crescer, consegui melhorar
com os meus erros. Foi ali que comecei a criar variações
de pratos a partir de uma gama de receitas básicas da
cozinha italiana - e também das adversidades impostas
pelo orçamento e pelos ingredientes disponíveis em
cada estação do ano.
Lembro de momentos pitorescos dessa época.
Passei quase u m ano esperando a hora de fazer
u m espaguete à carbonara. Achava que dominava essa
receita, mas ela só pode ser servida no frio. Também só
184
podia preparar no inverno polenta com escargot.
No começo do outono, fazia um friozinho discreto, e,
no mercado, achei um lote de escargots petit-gris
(menores e mais populares que os típicos da Borgonha,
os gros-gris). Não tive dúvida: comprei duas caixas e
voltei feliz da vida para o restaurante.
Nunca tinha trabalhado com escargots vivos, e a
primeira coisa que fiz foi abrir as duas caixas para ver
os bichos se mexendo. Aí, entrei em pânico. Apesar de
parecerem bem lentos, muitos deles se mexiam ao
mesmo tempo para todos os lados; virou uma grande
baderna. Quando abri a segunda caixa, os da primeira
já estavam saindo para todos os lados. Não tive dúvida:
antes de perder totalmente o controle, joguei as caixas
com madeira, arame e tudo dentro das panelas para
matar os bichos. E parti para a segunda parte do
problema - o que ia fazer dali para a frente. No final,
aproveitei os bons, e os ruins foram embora com os
restos da caixa. E, depois de tanto aperto, apelei para
o clássico. Cozinhei os bichos num houillon.,fizsalteados
com alho e óleo, cogumelos e ervas e servi em cima de
uma polenta.
Nesse dia eu acertei, mas talvez tenha errado no
dia seguinte. Naquele pequeno restaurante, lembro que
aprendia muito com a possibilidade de acerto e erro. Eoi
ali, por exemplo, que me dei conta de que coisas de que
eu gostava muito às vezes não eram comerciais e outras
para as quais eu nem ligava tanto eram sucesso absoluto
no cardápio. Também aprendi a criar com as porções
que não vendiam bem num dia. A primeira opção era
185
sempre insistir no prato - e correr o risco de morrer na
praia de novo. Outra opção era tentar outra receita -
também correndo o risco de não agradar. A verdade é
que esses pequenos macetes de montagem do cardápio,
bem como de ajuste da cozinha e do salão, me ensinaram
muitíssimo e me ajudaram bastante quando assumi as
primeiras cozinhas já no Brasil.
Com u m gourmet, o caminho é u m pouco diferente.
A gratificação de quem cozinha para amigos é colher
os aplausos. Errar, perceber que os elogios só vêm
porque os convidados são gentis, que todo mundo está
empurrando os pedacinhos para o canto do prato, é
muito decepcionante.
O amadurecimento nesses casos também v a i
chegar. U m gourmet v a i cozinhar melhor no dia em
que o erro não machucar, em que ele conhecer tão bem
seus ingredientes que, ao constatar que errou, saberá
que há mais uma alternativa para aquela receita.
Aprendi muito com os erros na cozinha. Posso até
dizer que novas receitas nasceram de erros. Repito
m u i t o que a cozinha é perversa e libidinosa - nela,
com jeitinho, pode tudo. Nesse contexto, erros podem
ser bons estímulos para futuros acertos.
186
cozinhando com
m
bases nutricionais
Quando terminei a escola de cozinha, na Bélgica,
tive que fazer três estágios obrigatórios: numa cozi-
nha com base nutricional, num catering e num res-
taurante gastronómico.
E muito interessante para um cozinheiro conhecer
todas essas possibilidades antes de decidir o caminho
que quer tomar. Muita gente não sabe, mas para trabalhar
na cozinha de um hospital, por exemplo, é recomendável
ter a mesma formação de um chef estrelado.
No meu caso, comecei trabalhando em uma clínica
de repouso para idosos. Tinha de cozinhar para pessoas
com dificuldade de mastigar e de engolir, que não con-
seguiam digerir bem alimentos extremamente crus ou
muito condimentados. Fiquei pouco tempo nessa cozinha,
mas foi gratificante, me fez ver outras possibilidades de
preparo e, antes de tudo, respeitar outros profissionais.
Além disso, pude perceber que o que é perfeito em um
ambiente pode ser inadequado em outro (um molho
perfeito nem sempre é saudável). Depois de passar por
essa experiência, mudei meu jeito de interpretar carnes,
molhos, pastas, legumes. Abri meus horizontes.
Foi nessa época que comecei a perceber que a
digestão tinha de ser considerada na cozinha (mesmo
187
num restaurante gastronómico). E muito ruim comer
demais e demorar para digerir aquela comida. Há
formas de evitar esse '''peso no estômago'', como a
compreensão e a boa utilização do ingrediente. Um
alho muito dourado libera uma substância que pode
ser tremendamente indigesta. Saber o ponto certo de
refogá-lo ajuda muito a digestão e torna os pratos
muito mais leves. Uso muito esses pequenos conhe-
cimentos no dia-a-dia da minha cozinha, e foi
cozinhando naquela clínica que aprendi a prestar
atenção nesses detalhes.
Caterina
Meu segundo estágio foi numa cozinha de
catering, em que fazíamos, em média, 5 mil quentinhas
para o porto de Rotterdam. Não havia o menor contato,
tampouco retorno, entre nós e as pessoas que alimen-
távamos. A primeira preocupação que tínhamos era
com a uniformidade, que os pratos saíssem razoavel-
mente parecidos não só no aspecto, como também na
proporção, para que a refeição fosse balanceada e não
louvesse briga de vizinhos por conta das diferenças.
Havia ainda a preocupação com o shelf life^ isto é, a
validade do alimento dentro da embalagem. O que
preparávamos, muitas vezes, era consumido dez horas
ou até dias depois.
A rotina nessa cozinha era simples. Entrávamos de
manhã e junto de nosso uniforme encontrávamos uma
188
prancheta onde constava a ordem do dia. Não pergun-
távamos nada para ninguém. Nosso dia vinha planejado
naquela folha de papel. Nossa parte era ir para o local
de trabalho e, caso tivéssemos alguma dúvida, consultar
o chef de partida. Quem encontrasse uma prancheta
vazia no vestiário estava cortado do estágio. Esse era o
sinal. Os estágios eram curriculares e obrigatórios, e eu
m o r r i a de medo de ser dispensado. U m dia, quando
cheguei, de longe percebi que minha prancheta estava
vazia. Gelei. Ao chegar mais perto, v i que ainda não
tinha chegado a minha vez de ser dispensado. A ordem
tinha uma única linha - u m pedido para fazer 1.200
omeletes. Nesses ambientes, há uma série de facilitadores
do trabalho, como ovos líquidos ou ovos pasteurizados
(não tive de quebrar mais de 5 m i l ovos para executar
as receitas). Mas não vou me esquecer tão cedo do dia
em que preparei tantas omeletes de uma só vez.
Há alguns anos, f u i contratado para prestar
consultoria para uma grande empresa de aviação.
Pude, na época, conhecer a cozinha de uma dessas
companhias por dentro. V i vários pontos em comum
com o trabalho do estágio de catering: a preocupação
com a segurança alimentar, ávida dentro da embalagem,
a proporção para cada passageiro. Se não me engano,
eles produziam perto de 32 m i l refeições por dia. Ao
conceber as receitas (como consultor não cabia a m i m
executá-las), tinha de considerar isso tudo e mais
alguns detalhes. As comidas eram produzidas para ser
esfriadas e depois requentadas (e não podiam perder em
qualidade nesse processo), e eram preparadas cerca de
189
100 g de abóbora
100 g de batata-doce
100 g de chuchu
50 g de banana-da-terra
50 g de jiló
50 g de abobrinha caipira
4 maxixes
50 g de quiabo
1 pimenta-dedo-de-moça
q.b. de óleo de canela
q.b. de sal
q.b. de pimenta-do-reino
8 folhas de coentro
q.b. de beldroega
1 colher de sopa de manteiga de garrafa
Preparo
Montagem
iVlisture cuidadosamente
os legumes e coloque em um prato.
Espalhe folhas de coentro e beldroega por cima.
Finalize com os gomos de maxixe cozido
e com 1 colher de sopa
de manteiga de garrafa.
191
seis horas antes de serem consumidas. Um aprendizado 4
qastronomia
Já contei como foi entrar numa cozinha gastro- 7
1
nómica pela primeira vez. Achei que não ia dar conta. i
cozinnar e aivertiao
aba har nem tanto
Mesmo um gourmet, que gosta de cozinhar e receber
amigos, de vez em quando é convidado à cozinha sem
estar com a menor vontade. Quem trabalha com ali-
mentação, apesar de quase sempre gostar muito do
que faz, não acorda todos os dias com vontade de
cozinhar. Mas trabalho é trabalho. E, no caso da cozinha,
a rotina costuma ter horários extenuantes (com muita
freqiiência se trabalha no almoço e no jantar), a execução
de cardápios é maçante. Mas, quando chega a hora de
colocar a mão na massa, lidar com o ingrediente, realizar
seu trabalho, o prazer acaba voltando, especialmente se
193
O
Para a calda de jabuticaba
Ingredientes
1 kg de jabuticaba
3 C de água
500 g de açúcar
Preparo
Para o sorbet
Ingredientes
Preparo
Este é um pré-dessert, um prato de transição, que deve ser servido depois dos salgados
e antes de um prato doce. É uma receita singela, mas apoiada em um raciocínio sofisticado. j
Nela misturei dois ingredientes comuns em São Paulo, cidade em que nasci: \
a jabuticaba, fruta comum nos fundos de quintal, e a raiz-forte, ]
introduzida pela imensa colónia japonesa que vive na cidade. Nas primeiraá vezes errr que a fiz, •
usei uma pacojet - uma revolução dos anos 1980. Misturando ali um xarope de frutas com clara de ovo^
conseguia-se uma consistência incrível. Quando cozinhei no hotel Ritz de Paris, j
o confeiteiro de lá me ensinou a trocar a mistura que eu usava pela combinação \
de merengue italiano e suco de frutas. Com o uso da proteína do ovo estabilizada pela temperatura,
aprendi a obter sorbets de pacojet mais estáveis ainda.
Já sabia que as proteínas podiam ser precipitadas ou desnaturadas c o m temperatura e acidez.
Há três anos comecei a ter sucessivos problemas com a minha adorada pacojet.
A assistência técnica brasileira da marca é digna das Organizações Tabajara.
Um dia me vi sem a minha pacojet. Da teoria à prática, passa-se pela experimentação
e chega-se a resultados surpreendentes. O passo intermediário desta receita introduz o Thermomix.
Com ele, emulsionamos as claras e o xarope, somando, ao mesmo tempo, a parte ácida,
e geramos uma consistência incomum à preparação clássica de sorbets. :
Venho demonstrando essa técnica junto com a representação gráfica do nosso processo criativo
(retratada na parte 3 deste livro) em aulas internacionais. j
você já domina a técnica e os fundamentos. A primeira
vez que você pega numa faca é difícil. Com o tempo,
você v a i ganhando tanta desenvoltura com aquele
instrumento que, muitas vezes, a faca parece u m a
extensão da sua mão. Quando você nota que isso acon-
teceu, a paixão por sua faca, por sua frigideira, pelo
liquidiíicador, se faz presente. E é muito prazerosa.
Sobretudo quando você começa a fazer aquilo melhor
do que as pessoas à sua volta (seu ego infla).
O desafio na cozinha é grande. Ninguém gosta de
esperar por u m prato, e a pressão é imensa. Gomo
profissional de cozinha, você tem de entender que esse
enxugar do tempo está na sua mão. Para isso, trabalhar
rápido e com perfeição vira uma obrigação. Quanto
melhor a qualidade do produto oferecido pelo restaurante
em que você trabalha, mais clara é essa pressão da com-
binação de tempo (mínimo) e qualidade (máxima).
As técnicas são valiosas aliadas nessa hora, assim
como a perspicácia. Por exemplo, se tenho de finalizar
u m prato com dez tipos de ervas e tiver à disposição
dez caixinhas com cada uma delas, vai ficar mais
fácil. Mas, se antes de começar o serviço, eu pegar u m
copinho descartável com u m pedacinho de guardanapo
de papel no fundo e jogar as dez ervinhas ali dentro,
sem os talos, bastará virar em cima do prato e ajeitar na
hora da saída. São esses pequenos truques que ajudam
muito no dia-a-dia.
Adoro cozinhar, mas não gosto de trabalhar.
Ser chef é m u i t o diferente de cozinhar quando você
está com vontade. Claro que quem gosta de cozinha
196
sente essa vontade muitas vezes, seja quando encontra
um ingrediente diferente, seja por conta de um novo
equipamento, seja porque alguém muito querido foi à
sua casa ou ao seu restaurante. O cotidiano é outra
coisa. Chegar de manhã ao escritório, ver as compras,
rever o cardápio, fazer o serviço do aknoço, tentar roubar
algumas horas da tarde para um breve descanso, reto-
mar o processo para a segunda festa do dia (o jantar)
é puxado e nem sempre prazeroso. Mas, se esse for o seu
caminho, ^'encontrar prazer no trabalho" entrará para a
ista de ossos do ofício.
ma esponja, voce e
caoaz de trabalhar
Quando se joga água numa esponja, durante
algum tempo ela vai absorvendo, absorvendo. Depois
de certa quantidade de líquido absorvido, ela satura
e começa a liberar toda água que recebe. Na lida com
a cozinha é mais ou menos assim. No começo, a gente
só absorve técnica, bases, fundamentos, macetes. De
um momento em diante, o conhecimento começa a
luir. Esse instante se parece um pouco com o primeiro
pedalar sem rodinhas. Mistura surpresa, susto e certo
receio. Mas aí a alegria o invade e você percebe que é
finalmente um cozinheiro.
Acho que não há momento em que um cozinlieiro é
mais cozinheiro do que esse. Quando acontece, a cozinha
197
Preparo
Para o brigadeiro 1. Em uma panela, junte o leite fresco e o creme de
Ingredientes leite e leve ao fogo médio, sem ferver.
2. Coloque os 100 g de gemas e o açúcar em uma
250 g de leite condensado batedeira e bata até ficar esbranquiçado.
120 g de chocolate 70 por cento de ótima qualidade 3. Quando a mistura de leite e creme de leite
25 g de manteiga sem sal atingir 80 graus, junte, aos poucos,
q.b. de sal maldon o creme obtido da mistura do açúcar
e das gemas batidas.
Preparo Isso deve ser feito com a batedeira
na velocidade mínima. Bata bem.
1. Aqueça o leite condensado 4. Despeje essa mistura na panela e leve
em fogo baixo por 5 minutos. ao fogo baixo, mexendo sempre com um fouet,
2. Pique o chocolate e misture ao leite até subir a primeira bolha. Retire o creme do fogo.
condensado quente até derreter por completo. 5. Corte o chocolate em pedaços pequenos
3. Deixe esfriar e junte a manteiga e coloque em um bowl. Passe o creme
pomada e leve à geladeira por 2 horas. por um chinois e o despeje sobre o chocolate,
misturando bem com um processador até que
o chocolate esteja totalmente dissolvido.
Para a gelatina de azeite 6. Cubra com filme plástico e bata nas laterais
do bowl para tirar todas as bolhas de ar
Ingredientes de dentro da musse.
Guarde coberto na geladeira por 12 horas.
150 g de azeite extra-virgem
2 folhas de gelatina
20 g de clara de ovo Para a espuma de maracujá doce
25 g de açúcar
Ingrediente
Preparo
2 maracujás doces
1. Aqueça o azeite até atingir 50 graus.
2. Hidrate as folhas de gelatina Preparo
e as derreta no azeite.
3. Resfrie a mistura em um banho-maria 1. Passe a polpa do maracujá por uma peneira,
de gelo, mexendo sempre, e reserve. raspando rapidamente com uma colher (dessa forma
4. Bata as claras com o açúcar o suco que cai será espumoso e consistente).
até chegar ao ponto de suspiro. 2. Reserve algumas sementes do maracujá
5. Emulsione o azeite e as claras batidas para a finalização.
em cima de um bowl com gelo e reserve.
Montagem
199
vira o tema central da sua vida. O fascínio por esse
novo universo vai levá-lo a querer ler sobre todas as
receitas, passar horas no supermercado lendo embalagens
(para saber mais dos ingredientes que compra), assistir
à novela para ver u m personagem cozinhar (e poder
dizer para os colegas no dia seguinte se ele estava ou
não cozinhando de mentira naquela cena), acompanhar
programas esdrúxulos de cozinha para tirar pequenas
lições. Essa vontade de superar limites é a mola eterna
de u m b o m cozinheiro, seja para executar receitas
existentes, seja para criar as suas próprias. Nessa hora
você vai perceber que uma vida inteira dedicada à
cozinha é pouco.
Não conheço u m cozinheiro 100 por cento completo.
Conheço grandes mestres que têm grande donunio de
uma cozinha. E muito difícil para uma mesma pessoa
conseguir cozinhar peixes, carnes, aves nas suas mais
variadas formas, n u m forno, numa frigideira ou n u m
papillote^ e, quanto aos doces, dominar todas as varia-
ções do açúcar, saber tudo do mimdo dos chocolates, dos
3ães, dos lácteos, das ervas. Os horizontes da cozinha são
praticamente sem fim. Mas essa possibilidade de estar
aprendendo sempre é muito gratificante.
E quando você percebe que, apesar de saber muito
e se sentir u m cozinheiro, ainda há muito a ser desco-
berto e dominado, que vem o segundo grande passo
dessa trajetória. Nesse momento, quase sempre, você
já domina m u i t o bem algum setor da gastronomia e
continua a receber coisas novas, mas já é capaz de
produzir com alguma marca de seu estilo.
200
Geralmente, é quando se começa a galgar posições
na cozinha. Passa-se de cozinheiro para chef de partida,
depois para subchef. Os sonhos passam a virar realidade
e novas aspirações surgem. Seu futuro ganha contornos:
ser um chef docente e dar aulas de cozinha, ser um
consultor, atuar como jornalista gastronómico, ser
chef e ter seu próprio restaurante, ou continuar
subchef, pois há pessoas que não têm personalidade
3ara reger uma casa, preferem se preocupar apenas
com a cozinha.
203
com 8
3 ovos
600 ml de óleo de canola
40 g de ralz-íorte
20 ml de suco de limão-siciliano
q.b. de sal
205
o oesadeo de
continuar che
Depois de realizar o sonho de ser chef, surge o
pesadelo de continuar sendo chef. Se seu trabalho
inicial tiver sido bem-feito, durante seis meses seu
restaurante estará lotado. Há uma imensa curiosidade
sobre lugares novos. Tudo é uma grande festa. Nos seis
meses seguintes, você vai conviver com as oscilações
da rotina de um restaurante, ou seja, se ele está indo
bem ou mal, se você corre o risco de ser substituído.
São riscos inerentes à profissão. E nessa hora é
muito importante saber que você pode estar no lugar
errado. Acho que todo chef experiente tem uma história
desse tipo para contar.
Um dos piores momentos da vida de um cozinheiro
é o que antecede a abertura do restaurante. Você olha
para a porta sem saber quantas pessoas vão entrar
naquela noite - se é que vai entrar alguém. Os minutos
viram horas, o ócio gera um ambiente muito desfavo-
rável, os produtos da bancada começam a perder seu
frescor (você lida com ingredientes perecíveis!), e talvez
você tenha de concluir que eles não estão mais no ponto
de serem vendidos.
O elo de confiança que se estabelece entre um
restaurante e seu comensal é gerido por um chef, e ele
tem de tomar todos os cuidados possíveis para que ele
não seja rompido.
206
Em certos momentos, o chef é pressionado por seu
departamento financeiro. Vamos detalhar essa parte
no decorrer do hvro, mas a hda com o setor de finanças
de um restaurante geralmente faz parte do pesadelo
de um chef.
Quando o chef conhece a concorrência e tem de
superar seus pares, tem saudade de ser apenas um
cozinheiro, da época em que não tinha de gerir uma
cozinha, de lidar com o ser humano (não há departa-
mento de RH em restaurantes; caberá a você também
essa função).
Para gerir uma equipe, é preciso gentileza,
elegância, pulso firme, mas sobretudo eficácia. E a
calibragem exata para chegar a esse ponto está entre
os pesadelos de um chef. O frio na barriga de saber
que terá de atender a uma mesa diferente (pelo número
avantajado de pessoas, ou porque nela está alguém
famoso - um crítico talvez - que poderá falar bem
ou mal do seu restaurante) também. E o pesadelo
continua conforme você ascende, ganha prémios
importantes e tem de pensar no que fará dali em
diante. Por outro lado, você também vai sofrer se
não ganhar um determinado prémio sabendo que
esteve muito perto de conseguir. Muitas vezes, fui
criticado por um prémio que não ganhei, por um
concurso que não venci. Essas derrotas são sutis,
demoram para ser digeridas e compreendidas.
Um dia você vai descobrir que o mundo não acaba
no final de um mau serviço, depois de uma crítica
negativa ou naquele dia em que você ficou sem o troféu
207
que tanto aguardava. Bem-vindo ao mundo dos chefs!
Sua cozinha vai continuar funcionando e permitir-lhe
participar de outros concursos, colocá-lo à prova de
outras críticas e gerar novos sonhos.
208
Mas como fazer sua própria equação e mostrar ao
mundo que você tem valor?
Se fizermos uma análise cronológica citando os
expoentes da cozinha, fica evidente que os que ganharam
projeção compreenderam e transmitiram muito bem
suas crenças, seus objetivos e suas receitas. E na raciona-
ização, no entendimento do que se faz para criar um
bom prato, que pode morar o sucesso. Com Carême,
Escoffier, Troisgros, Bocuse, Adriá, Michel Bras (só
para citar alguns) foi assim. Mas não trilhe seu caminho
esperando a notoriedade. Não há espaço para todos
aparecerem. Nos meus quase 20 anos cozinhando,
conheci muitos cozinheiros melhores do que eu que
não foram reconhecidos e nem por isso são infelizes.
Não quero parecer hipócrita e dizer que a fama e o
sucesso pouco me importam. Briguei por cada centí-
metro deles. E tenho consciência de que ganhei cada
centímetro com originalidade, capacidade de me
expressar através do meu ofício e me mantendo um
degrauzinho acima do medo de cair.
214
o Dolimento da técnica
Passada a fase da repetição à exaustão de u m
prato, quando chegamos à receita propriamente dita
e a conhecemos m u i t o bem, é a hora do pohmento.
E não estou falando do arremate do prato na cozinha,
mas de sua concepção. E surpreendente como são
diferentes as percepções de comer u m prato aos bocados
dentro de u m a cozinha, comer o mesmo prato inteiro
também na cozinha e, ainda, comê-lo como cliente,
sentado no restaurante. Sutis detalhes se revelam em
cada uma das situações.
Aos bocados, na cozinha, você consegue analisar
individualmente cada parte que compõe o prato - a
acidez, a quantidade de gordura, a textura - , mas o
faz de forma isolada (considera cada u m dos aspectos
separadamente). Comer o prato inteiro dentro da cozi-
nha ajuda a ter melhor noção de harmonia e proporção
daqueles sabores e ingredientes. Porém, é só sentado à
mesa que você v a i descobrir se o garfo e a faca são
adequados para aquele prato, se as temperaturas
chegaram corretas, se os contrastes não estão demasiados.
E na mesa que você v a i notar se o primeiro bocado
impressionante'' na verdade esconde u m a receita
enjoativa e enfadonha.
Adoto todos esses procedimentos antes de sugerir
u m prato para a degustação do cliente (geralmente ele só
entra no cardápio depois de passar pelo teste '^informaP'
do salão) e sei que é na sucessiva degustação, na extrema
215
confit de pato
com ragu de pinhão
Ingredientes
216
Preparo
1 kg de pinhão
1,5^ de água
q.b. de sal
1 cebola
1 dente de alho
15 g de manteiga sem sal
100 g da gelatina obtida do cozimento do patc
100 ml de vinho branco
20 ml de água do cozimento dos pinhões
1 folha de louro
1 ramo de tomilho
q.b. de pimenta-do-reino
1 ramo de salsinha
Preparo
se existissem
dez bocuses, será que
o original, o sr. bocuse,
teria valor?
O legado de Paul Bocuse na cozinha é inquestio-
nável. E a partir dele que o chef sai dos bastidores da
cozinha e ganha luz no palco. Foi Bocuse quem lapidou
a carreira de cozinheiro, quem abriu espaço para as
atuais "estrelas da cozinha''. De vez em quando penso:
se em vez de u m Bocuse, tivéssemos dez clamando
pelo mesmo propósito, daríamos o mesmo valor para
o que Paul fez por nós?
Na edição de 2007 da lista dos cinqiienta melhores
restaurantes do mundo da publicação inglesa Restaurant
Magazine^ o D.O.M. apareceu na frente do Bocuse, de
Paul Bocuse, e de outros nomes (como o UArpège, de
Alain Passard) que admiro desde que comecei a prestar
mais atenção no mundo da culinária. Outros restaurantes
que considero perfeitos (ou quase perfeitos) nem foram
citados na revista. Esse premio me fez perceber que o
reconhecimento público vem para quem t e m u m a
3roposta original.
218
Vamos pensar numa das cozinhas mais populares
do mundo: a italiana. Cada capital do Brasil e do mundo
tem pelo menos dois (ou mais) bons restaurantes
italianos. Nenhum deles, com exceção dos italianos da
Itália, entrou na lista dos cinqíienta melhores do mundo.
Nenhum. Do meu ponto de vista, isso reafirma o que
acabei de dizer. E u entendo que não sou o dono de u m
dos cinqíienta melhores restaurantes do mundo, sou
dono, sim, de uma das cinqíienta propostas mais originais
para restaurante do mundo. Esse é o cerne da discussão
atual, e é o que vai render holofotes ao chef.
Acredito que se pode comer tão bem - e até
melhor - em restaurantes que não foram citados na
ista. Mas nunca f u i à China sonhando em comer u m
cassoulet, ou à Africa do Sul em busca de uma feijoada.
A força da globalização e a velocidade na divulgação
dos fatos fazem com que tenhamos notícia do que
acontece além-mar e com que saibamos o que é
original em cada canto do globo. Nessa realidade,
quando temos de optar entre o parecido e o original,
ficaremos sempre com o origina
a miaia
A mídia é a cocaína dos chefs. Nada é mais inebriante
do que ver uma foto que não reflete sabor, nem textura,
nem temperatura, nem a complexidade do prato - mas
é de sua autoria! - estampada n u m jornal ou numa
revista. Perto da foto do seu prato, estará o seu nome.
219
terrine de
foie qras com
gelatina de acerola
e semente de abóbora
Ingredientes
Preparo
Preparo
Preparo
Montagem
221
V.
222
patamar, certamente atrairá os flashes das revistas, dos
jornais, das câmeras de TV.
A mídia é hoje a melhor f o r m a de reivindicar a
autoria de u m trabalho. Por isso, os grandes chefs
m u d a r a m de estratégia e passaram a publicar, e não
mais a esconder, seus grandes segredos e macetes.
Só assim eles são reconhecidos como criadores dos
tais macetes, receitas, combinações.
Se, quando isso finalmente ocorrer, o reconhe-
cimento for menor do que o que você esperava, seja
elegante e nunca contamine sua equipe. E muito bom
ter em mente nessa hora que a droga vicia porque é
boa, porque amplia a sua percepção. O problema são
os efeitos que ela produz. Mantendo o paralelo, a mídia
vicia porque é boa, mas, como as drogas, também tem
efeitos nocivos. Por isso, deve ser vista como u m a
ferramenta de difusão do seu trabalho, e não como u m
objetivo e muito menos como u m vício.
coDia
Vunca copiei algo que achasse r u i m . Entendo que
a cópia, ainda que às vezes maldosa, sempre tem u m
cunho de admiração. Toda vez que copiei ou me v i
copiado, preferi entender que era uma homenagem
que rendi, ou que alguém me rendeu. A cópia só não é
válida quando não são dados os devidos créditos, ou
seja, quando é plágio. O plágio, que não identifica o
autor da façanha, é nefasto, é a face negativa da cópia.
223
•
pamito tresco
e vieiras de cora
Para o molho de coral
Ingredientes
220 g de coral
100 ml de suco de limão
50 ml de molho shoyu suave
Preparo
30 g de salsinha, 10 g de sálvia,
10 g de tomilho fresco,
5 g de orégano, 15 g de alecrim,
500 ml de azeite de oliva extra-virgem
Preparo
Para a lula
Ingredientes
Preparo
225
4. Esfrie-os em água com gelo, retire da água e reserve.
5. Hidrate a alga por 5 minutos em água fria, escorra e reserve.
6. Pique a saisa e a cibouiette finamente e reserve.
7. Tempere a iuia com o sal, a pimenta, o azeite de ervas,
a aiga, a cibouiette e a saisa. Reserve.
Emulsão de shoyu
Ingredientes
Preparo
Azeite de manjericão
Ingredientes
Preparo
Finalização
Montagem
Com uma colher, faça um risco com um pingo de molho de corai no prato.
Disponha o carpaccio e, sobre ele, coloque uma gota de molho de coral,
outra de emulsão de shoyu, pimenta e sai maidon.
Coloque um fio de azeite de manjericão no risco de corai e finalize com uma cibouiette.
226
o que diferencia um bom chef de um mau chef
não é o fato de copiar, é o fato de entender o porquê de
estar copiando. Copiar essa ou aquela técnica, esse ou
aquele molho é uma ferramenta de trabalho, um
aprendizado. Mas não basta usá-los mecanicamente,
porque viu alguém que admira usar; o chef precisa
saber por que você está fazendo uso dessa técnica ou
daquela receita.
Eu me divirto muito com a palavra referência".
A meu ver, o que as pessoas chamam de referência não
deixa de ser cópia. Mas a cópia boa, claro. Ter referências
(e ser referência) é fundamental para o trabalho de
todos nós.
O legado moderno da gastronomia começa com
Carême, passa por Escoffier, Point e outros tantos até
chegar aos dias de hoje. Para construir nossos pratos,
usamos técnicas aprimoradas e difundidas por esses
grandes vultos. Isso também é copiar. Acho fundamental
que você, ao usar a referência do trabalho de alguém
- seja numa simples colherada de molho, seja em toda
uma receita - , dê o devido crédito. Copiar é um bom
exercício para atingir a perfeição. Se você for bastante
observador, pode pegar o livro de um grande chef e se
aproximar do brilho do molho, ou de sua textura, ou
do tom da carne, do ponto em que ela foi preparada.
E isso pode ser um bom exercício de aprendizado. Já
falei e vou continuar insistindo: a leitura, a pesquisa,
é uma das grandes ferramentas para um chef. E
conhecer, exercitar e até copiar o que você pesquisa e
lê é um bom modo de chegar ao agradável momento
227
em que começará a aprimorar aquelas receitas, a dar
seu toque pessoa .
Contudo, mesmo quando você estiver fazendo a
cozinha com características próprias, estará ^^copiando
Seria muito triste se chefs gastronómicos só usassem
molhos, cortes e deglaçagens cunhadas por eles mesmos.
Ou melhor, seria impossível. A cozinha é um exercício
milenar, e é muito difícil reivindicar a autoria dentro
dela. O homem aprendeu a cozinhar para desfrutar
com mais qualidade de algo que sempre precisou para
sobreviver: alimentar-se. Animais não cozinham. Por
seu tempo de existência, acredito que hoje em dia seja
muito difícil inventar receitas, técnicas realmente
novas e originais no universo da cozinha. As vezes me
admiro quando vejo jovens chefs reivindicarem para si
a autoria de receitas como ^^musseline de mandioquinha".
O que lhes garante que foram eles os primeiros? Não
existe patente para receitas, portanto é muito fácil
:'azer esse tipo de afirmação. Aqui volto a meu ponto:
os processos, as técnicas já estão aí. A musseline é uma
receita clássica, que tem uma história longa.
Por isso, acho que mais importante do que pensar
em cópia ou plágio é conhecer e exercitar bem esse
universo, conhecer os clássicos, experimentar os modernos
e, do seu j eito, no seuespaço, traduzir esse conhecimento
acumulado - e bem praticado - para uma forma que
tenha a ver com o cozinheiro que você quer ser.
228
mo e destino
Gosto de transpor essas duas imagens da navegação
Dara o universo da cozinha. Destino é aonde você
Dretende chegar, é o seu objetivo final, u m ponto fixo,
Dem determinado e conhecido. O rumo pode variar.
Para chegar ao destino, há uma série de possibifidades,
de caminhos. Ter essa referência em mente é muito
importante na hora de criar e finafizar uma receita.
Na cozinha criativa, sempre é fundamental conhecer
o seu destino, aonde você quer chegar. Dificilmente
você v a i conseguir u m b o m prato chutando, dando
tiro no escuro. Quando criamos u m prato, geralmente
já existe u m esboço do resultado em nossa cabeça.
Conhecendo os ingredientes e os processos, você cria uma
expectativa sobre o seu destino. A preparação daquela
receita será o teste para ver se o que você equacionou
estava correto. Você pode até não alcançar o resultado
imaginado, entretanto tem de saber o destino que quer
atingir, seja pela associação de sabor, seja pelo
emprego de uma técnica ou de u m ingrediente. O rumo
pode ser u m esboço, uma pequena luz, uma trilha
incerta (que será corrigida com a execução prática
daquela receita), mas o destino tem de ser conhecido
Delo cozinheiro. E, na hora de finalizar as receitas,
também é b o m ter esse conceito em mente.
E necessário conhecer rumos certeiros para montar
uma boa mise en place.^ fazer u m b o m pré-preparo,
chegar ao ponto de cocção. Para isso, é importante ter
229
bac loiaba
Em uma panela, coloque Abra a casca do bacuri
o açúcar e a água. e retire a polpa.
550 g de leite fresco j Misture bem e leve ao Entre os caroços dessa
75 g de açúcar | fogo médio até o açúcar fruta, há gomos que os caboclos
10 g de canela em pau| dissolver totalmente. Tire do fogo chamam de "filho do bacuri".
200 g de arroz brancoj e deixe resfriar. Retire e reserve-os em papel
0.5 g de goma xantanaj Com um descascador -*,*««àKBÍd£!.JJ.tiÍEe,-OS crus.,,
de legumes, tire a casca
da goiaba. Corte em quatro
Em uma panela, coloque o leite pedaços no sentido longitudinal
e o açúcar e a canela em pau. e, com uma faca, tire as
Leve ao fogo médio até fen/er e sementes. Repita o processo 120 g de açúcar
então iunte o arroz. Baixe o fogo, com a outra goiaba. 30 g de folhas de hortelã
misture bem e deixe cozinhar Coloque os pedaços da fruta 15 g de folhas de alecrim
por 18 minutos, mexendo em um saco de vácuo e raspas da casca de 1 limão
ocasionalmente. Tire do fogo e junte a calda de açúcar.
coe o arroz: com um processador, Feche bem no vácuo e
bata o líquido obtido e a goma cozinhe no termocirculador Coloque todos os
xantana por 1 minuto. Misture a 60 graus por 45 minutos. ingredientes em um
novamente ao arroz. Passe para Coloque em um banho-maria liquidificador e bata até virar
um bowl e deixe esfriar. com gelo e espere esfriar uma pasta lisa e verde.
Antes de usar, tire do vácuo Reserve até a hora de usar.
e escorra bem. i
231
diferentes da minha, e, para repetir a receita, preciso
de um tempo para olhar com cuidado a cozinha que
me hospeda. Muitas vezes, nesses locais, tenho de tomar
outro rumo para chegar ao meu destino, me adaptar
ao equipamento (ou até aprender a usar um) para
conseguir conceber outro traçado capaz de me levar ao
resultado final.
Mesmo em situações como essa, o exercício
exaustivo da escolha do melhor rumo (feito durante a
concepção e a execução do prato) e a certeza do destino
são extremamente úteis e representam economia
significativa de tempo e energia - que, na cozinha, são
moedas valiosíssimas.
criatividade
Criar, como disse, é diferente de inventar. Criar é
trabalhar sobre parâmetros estabelecidos, e inventar
consiste em um exercício que pode beirar a genialidade,
embora quem o pratica tenha de conviver muito de
perto com desilusões, acidentes e traumas. Por isso, muito
cuidado na hora de compor um prato: as invenções
tendem a ser mais perigosas do que gratificantes. Acredito
e pratico o que se convencionou chamar de cozinha
criativa''. Essa modalidade de gastronomia é a forma
mais evidente de um cozinheiro expressar suas ideias.
Para fazer esse exercício com sucesso, as bases têm de
ter sido bem assimiladas. E uma dica: tente evitar
misturas mirabolantes. E pouco provável que um chef
232
com pouca experiência consiga bons resultados com
misturas esdrúxulas. Ao contrário do que se imagina, a
cozinha criativa nada tem a ver com grandes invenções.
A técnica sempre é u m a boa ferramenta para a
criação. Também é preciso dominar as combinações
de sabores antes de chegar ao fogão. Acredite, as com-
binações que você conhece de antemão, cujo gosto sabe
antes de experimentar - por estar bem familiarizado
com as qualidades de cada ingrediente que entra na
receita - , têm grandes chances de dar certo.
E preciso p a r t i r do raciocínio lóçfico para ser
criativo. Então, uma análise de sabores clássicos pode
gerar outra combinação. Ás vezes, ao seguir a mesma
filosofia de criação, as estruturas de sabor de u m clássico
da cozinha, mas mudando os ingredientes de base,
elabora-se u m prato incrível.
Faço isso com muito mais freqiiência do que se pode
imaginar. E m uma de minhas primeiras aulas de grande
impacto fora do Brasil, falei sobre o terroir amazônico.
Terroir é uma expressão em francês sem tradução para
outras línguas, muito usada na apreciação de vinhos, cujo
significado está associado à relação do solo e do microclima
de uma região em particular. No caso dos vinhos, trata-se
da uva gerada em u m tipo de solo sobre o qual incide
uma característica climática específica (e que resultará
n u m vinho com características igualmente específicas).
E possível transpor a expressão para outros setores,
como a gastronomia. U m dos cozinheiros que mais
admiro, Michel Bras, é conhecido pela capacidade de
refletir seu terroir através de suas receitas.
233
Foi partindo do conceito de terroir que criei o
consome de cogumelos, u m a das receitas de sucesso
do D . O . M . A ideia desse trabalho começou quando
percebi que era possível remeter u m comensal a u m
ponto do globo utilizando ingredientes típicos. Por
exemplo, quando falamos em shoyu, algas e peixes,
logo pensamos na cozinha asiática. Se os ingredientes
à disposição forem tomates, manjericão e mussarela, é
a Itália que é lembrada. Resolvi então trabalhar sobre
ingredientes que me levassem à Amazónia. O primeiro
passo foi criar a receita de peixe com tucupi e tapioca.
Vale lembrar que a mandioca é o eixo central da cozinha
amazônica. Peguei u m peixe daquela região, o filhote,
talvez o grande astro da bacia hidrográfica amazônica,
preparei uma crosta de farinha de mandioca, acrescentei
as bolinhas da tapioca cozidas no próprio tucupi e fiz
u m caldo de peixe com t u c u p i , ervas e pimenta-de-
cheiro. A brincadeira desse prato era mostrar sua
diversidade de sabor e de texturas. A farinha u m pouco
mais grossa é típica da Amazónia e gera uma mordida
ligeiramente mais dura. Temos ainda a textura da
goma do tucupi, da tapioca, assim como a complexidade
das ervas e da pimenta-de-cheiro. Enfim, n u m prato
de elementos bem marcados, é possível perceber toda
a riqueza gastronómica daquele bioma brasileiro.
A partir desse primeiro exercício de transposição
do terroir amazônico para u m prato, resolvi demonstrar
a simbiose existente entre a cozinha europeia e o universo
Drasileiro. Com a Amazónia mais ou menos sintetizada
na m i n h a cabeça, p a r t i para a segunda observação:
234
como eu faria para resumir o bosque europeu? A resposta
era bastante simples: ervas, cogumelos e castanhas. Com
essa tríade de sabor, eu podia compor os aromas do
bosque. O passo seguinte f o i buscar u m a fusão desse
universo com o amazônico e mostrar que as duas regiões
estão muito mais próximas do que imaginamos. Traçando
paralelos, relacionei as ervas da horta com as ervas da
floresta; em seguida, elegi as castanhas típicas europeias
e as castanhas típicas da Amazónia. A i n d a faltava o
cogumelo, já que não conhecemos nenhum oriundo
daquela região brasileira. Parti para uma análise mais
Drofunda e me lembrei de que os cogumelos nascem no
húmus das florestas europeias, no que os franceses
chamam de sous-bois., e os italianos, de sotto-bosque. A
Floresta Amazônica é muito rica desse tipo de umidade
também. A lembrança do cheiro dos dois universos me
fez perceber que o ambiente em que nasciam os cogmiielos
era rico em fermentação. Na tríade dos sabores do
bosque europeu, o cogumelo desempenhava uma função
de "fermentado". E aí achei o equivalente nacional para
o fermentado natural: o tucupi. Com a tríade amazônica
montada, pude criar meu Consome de cogumelos, u m
prato típico do terroir amazônico, mas que pode ser
igualmente transposto para o universo do bosque
europeu. Por associação - forma clássica de criação de
pratos - , reuni esses dois sabores n u m caldo, que vem a
ser uma receita típica europeia. E ainda acrescentei u m
mix de ervas amazônicas. Depois foi só afinar a receita
- com o exercício repetido, provas e degustações - para
que ela fosse para o cardápio.
235
Apesar de ser surpreendente para quem prova, esse
3rato foi estabelecido a partir de um raciocínio lógico
que considerou ingredientes e misturas clássicas. Não
foi uma invenção mirabolante, mas a criação a partir de
regras já estabelecidas.
Por isso, antes de se impressionar com misturas
surpreendentes - e maravilhosas - como jabuticaba com
wasabi (que sirvo em forma de sorvete no D.O.M.),
morangos com pimenta, e assim por diante, procure
exemplos similares nos clássicos. Mostarda de Cre-
mona, morango com aceto balsâmico e outros pratos
milenares estão aí para comprovar que tais combinações
têm uma raiz clássica, foram criadas sobre conceitos
já conhecidos.
Quando se parte desses parâmetros, a criação passa
a ser um caminho muito mais seguro a ser trilhado; já
a invenção pode quase ser comparada a um "navegar
no escuro
ovação
Já falamos neste livro que inovar é aliar criatividade
à utilidade. Ou seja, não vale a técnica pela técnica, não
valem a posse ou a criação de uma máquina só porque
ela faz alguma coisa "bonitinha'', jamais vista em outra
cozinha. E necessário haver interação suficiente com o
universo da sua (e de outras) cozinha, ou com o ingrediente,
ou com a receita, para que ela seja útil e passe ao status
de inovação. Por outro lado, há muitos holofotes sobre a
236
função de chef e, por isso, a inovação se transformou
numa necessidade. Para chamar a atenção sobre o seu
trabalho (e ganhar espaço na mídia), o profissional de
cozinha precisa inventar, ou melhor, inovar.
Muitos cozinheiros acabam vítimas da exigência
de inovação e mergulham em excessos criativos, no
exercício ininterrupto de inventar pratos mirabolantes.
A linha que divide a criação ^'"espetacular' da "extrema-
mente perigosa^' é muito ténue. E o que permeia, ou
o que delimita a área reservada a cada uma delas é
exatamente a utilidade.
Na hora de inovar, assim como na hora de criar,
não se esqueça da cozinha clássica. No exercício da
criação, ela é o salvo-conduto da cozinha criativa,
sempre. Se nos transportarmos para outro universo, o
da música, de que também gosto muito (já fui DJ), fica
mais fácil compreender o que estou dizendo. Para criar
músicas, ser um bom compositor, nem é preciso ser um
exímio instrumentista, mas deve-se entender de tempos,
de harmonia, de notas, de arranjos, de melodia, enfim,
dos elementos necessários para a perfeita execução de
uma música.
Na cozinha, descarte os arroubos de genialidade
que não levam a canto algum, não são úteis (apesar de
serem bonitos, perfumados ou até gostosos). Os clientes
(e o departamento financeiro) de seu restaurante com
certeza agradecerão.
237
V.
239
subche'
O subchef é o adolescente da cozinha: m u i t o cru
3ara ser clief e experiente demais para estar nas
outras posições. O subchef ainda não tem o exercício
do ivre-arbítrio dentro da cozinha, do universo
3roíissional. Chegar a essa posição é vislumbrar
m u i t o de perto o ponto final de u m a travessia: a
posição de chef.
Ser eleito subchef é o sonho de quase todo cozi-
nheiro que trabalha em restaurante, e a realidade dessa
conquista é árdua (é importante ser bem vivida para
se dar o último passo da carreira). Na lida diária da
cozinha, o subchef sofre mais que o chef porque ele
ainda não realiza a cozinha com que sonha, apenas
segue os passos predeterminados por alguém que ele
admira. E u m repetidor ou u m executor.
O chef e o subchef mantêm u m a relação m u i t o
simbiótica. U m completa o outro. Existem chefs que
não cozinham com nenhum brilhantismo e, mesmo
assim, ganham fama porque são ancorados por subchef s
que cozinham excepcionalmente bem (e que por algum
motivo - falta de liderança, comodismo, timidez - não
têm ambição de chegar à chefia).
O questionamento costuma ser rotina na vida do
subchef. Ele é cobrado pelo chef e pelo resto da equipe,
cada parte com seus motivos, claro. Mas a subchefia é
u m dos passos mais importantes na formação de u m
cozinheiro. Porque é no exercício dessa função que os
240
devaneios, os sonhos, começam a florescer, a ganhar
contornos bastante claros.
Embora não tenha controle do processo como u m
todo, é o subchef quem comanda a execução da cozinha.
Ele não costuma ter a palavra final sobre o cardápio,
no entanto tem o controle da brigada, pode dar ordens,
aprovar ou reprovar receitas empratadas. Com o
controle da cozinha nas mãos, o subchef começa a
sentir na pele as exigências de u m chef, as qualidades
(e os defeitos) de toda sorte de equipamentos de uma
cozinha, a logística das compras, dos pedidos, da boa
utilização dos ingredientes, enfim, de todo o universo
da cozinha e também de u m restaurante.
E através do exercício dessa função - e da prática
dessa operação bastante complicada e delicada -
que o profissional v a i se inteirar do que é realmente
gerir u m a cozinha e u m a casa. Com o leme na mão,
o cozinheiro que ocupa a posição de ^'quase-chefia
completa'' começa a sonhar alto, a ter vontade de
reger sua própria cozinha, a ter espaço para trilhar os
rumos de que mais gosta para chegar a esse ou àquele
destino sem ter de seguir a t r i l h a já fixada pelo chef.
Também é no exercício da subchefia que o profissional
de cozinha costuma perceber qual será o caminho que
pretende trilhar no futuro: se quer continuar como
subchef, se quer ser chef de cozinha clássica (e executar
a seu modo receitas milenares e nem por isso menos
encantadoras), se v a i seguir a cozinha criativa, se
quer ter u m restaurante mais utilitário (para almoços
semanais honestos, mas sem grandes sofisticações),
241
Ingredientes
Preparo
che
Tenho grande admiração pelo momento atual
da cozinha espanhola. Lá, os grandes profissionais de
cozinha têm rejeitado o termo ''''cheí e adotado a
palavra cocínero^ ou cozinheiro. A verdade é que, para
se tornar chef, é preciso começar pelo começo. Apesar
de possuir u m diploma, n e n h u m aluno de faculdade
sai chef assim que termina o curso. Não é u m aventa
que faz da pessoa u m profissional, e sim sua trajetoria
- o aprendizado lento e gradual que vem da combinação
entre teoria e (muita) prática.
Mais do que chef, me considero u m cozinheiro.
E acredito piamente que só cheguei a este momento da
minha vida porque sou u m cozinheiro. Aliás, o dia em
244
que eu me afastar da cozinha será o início do fim. No
entanto, sou obrigado a confessar que, no sentido estrito
da palavra, sou menos cozinheiro e mais um executivo
do mercado de restaurante. Ser chef é isso. Quando você
chega à liderança de uma grande cozinha, a função
acaba por distanciá-lo da lida diária com o osao e o
obriga a abraçar toda a gestão de um restaurante.
Atualmente, durante alguns dias da semana, sou
o gestor de um negócio - o meu restaurante - , o respon-
sável direto pela finalização de vários processos de
administração de uma casa. E a verdade é que gerir esse
intrincado universo faz com que os dias em que volto a
ser um cozinheiro sejam ainda mais agradáveis. E por
isso que eu digo: cozinhar é bom, trabalhar nem tanto.
Ser chef é o passo seguinte da subchefia, é a hora
em que o profissional deixa de ser somente cozinheiro
para se embrenhar na rede de relações que compõe
um restaurante. Seja num hotel, seja num restaurante.
seja num catermg ou num hospitaJ o chef I d a com os
aspectos financeiros do restaurante (ou da empresa
Dara a qual trabalha) e conhece de perto as pressões
envolvidas na administração de uma cozinha. Seu
sucesso é colocado à prova (e não pelos cozinheiros
que você chefia) por outros profissionais, ligados a
setores diferentes do negócio.
As relações humanas e a administração de vários
indivíduos também entram no jogo; portanto o domínio
da técnica de cozinha não é suficiente para resolver os
conflitos. Diante de um questionamento do departamento
financeiro ou de um prestador de serviços de manobristas,
245
por exemplo, não adianta você provar que sabe fazer
u m béarnaise como ninguém. Lembre-se, no entanto,
de que as leis aprendidas no comando da brigada e o
seu jeito de lidar com as pessoas podem, sim, ser úteis.
O seu desempenho como gestor (e não só de uma
cozinha) de recursos humanos, de recursos financeiros,
de resultados de produtividade é importante (e cobrado)
para o sucesso de uma empresa e, além disso, pode gerar
novas oportunidades de emprego para muitas pessoas.
Se você for chef de u m hotel, seu raio de ação será
ainda maior, já que terá de trabalhar em conjunto com
o gerente de alimentos e o de bebidas (que não estão
subordinados a você), criar grandes eventos sem u m
planejamento pormenorizado, servir o jantar para
clientes que chegam famintos às quatro da tarde. Para
isso, terá de contar com uma equipe muito afinada,
disposta a esporadicamente cumprir cargas imensas
de trabalho, o que, por sua vez, gera grandes tensões
para a administração no que se refere a folgas, escalas
de férias etc.
Há também uma diferença entre ser chef proprie-
tário e chef contratado. O chef patrão tem mais autonomia
Dorque é ele quem realmente executa a cozinha, cria a
partir daquilo em que acredita e quer realizar.
Quando comecei a comandar cozinhas no Brasil,
atuei como chef contratado, não como patrão. Nos dois
primeiros restaurantes em que atuei, era o autor do
cardápio, mas agia sob a coordenação do dono do
restaurante - que podia ou não estar de acordo com o
que eu criava e que era quem dava a palavra final. No
246
Filomena, por exemplo, tinha a orientação de fazer uma
cozinha com sotaque italiano (os donos eram de família
italiana e o nome também fazia uma alusão àquele país).
Podemos dizer então que, como chef, tinha ^'liberdade
vigiada''. A l i , foi a primeira vez que sofri bastante com
custos. Trabalhei sob a batuta de u m patrão bastante
severo na gestão do restaurante, que exigia desempenho
excepcional. Aprende-se muito, mas também vivem-se
situações difíceis, de bastante tensão.
Para se dar bem nessa hora, o segredo é se voltar
para o universo que você domina (e que será sempre a
maior justificativa para você estar onde está): a cozinha.
Preocupar-se com quantos clientes você vai ter naquela
noite, se sua praça está devidamente montada, se o
pedido de amanhã já foi feito, se nada vai faltar naquela
noite são boas válvulas de escape para as horas em que
a pressão externa aperta seu pescoço.
Quando você é chef proprietário, assume o ónus e
o bónus completos do seu negócio, é o responsável por
decisões executivas com as quais tem de arcar. E terá
de achar o equilíbrio entre seus caprichos de profissional
de cozinha e suas necessidades de ganhos financeiros
reais. E nessa hora que muitas das lições que você teve
em sua trajetória começam a fazer sentido. O melhor
aproveitamento de uma carne, de u m legume, de uma
especiaria reflete diretamente n u m melhor desempenho
financeiro - e, no frigir dos ovos, seu restaurante será
o grande beneficiário disso.
O chef, proprietário ou não, t e m dupla jornada.
Assim como não existe meio ladrão, meio político,
247
também não há meio chef. E isso significa reger sua
cozinha (no almoço e no jantar, se esse for o perfil do
seu restaurante) e ainda falar com sua assessora de
imprensa, atender clientes e fornecedores, prospectar
novas possibilidades para o seu negócio (e também
para a criação de outros negócios a partir dele). Durante
muito tempo, relutei em aceitar que a função de chef
exigia o desempenho de tantos atributos, mas hoje dou
o braço a torcer. Ser chef implica administrar toda essa
gama de responsabilidades.
Há um caminho do meio. Chefs também podem
atuar como professores e trocar as cozinhas pela
: acuidade, onde não se tem a obrigação de trabalhar
todos os dias, tampouco nofimde semana, e onde de
vez em quando se prepara um jantar. Mas, para isso, é
necessário racionalizar bem o que aprendeu. E, se for
dar aulas práticas, é bom saber do que está falando:
sempre haverá um aluno que irá surpreendê-lo com
uma pergunta inteligente.
estaurante
Durante todo o tempo em que você sonha em ser
o proprietário de um restaurante, seus olhos e ouvidos
se mantêm atentos a todos os detalhes das casas
que você freqiienta, tanto a trabalho como por lazer.
Em seus devaneios, você é ácido ao criticar essa ou
aquela atitude de um garçom ou de um maitre, jura
que no dia em que comandar a sua própria casa
248
nunca vai permitir que certas coisas aconteçam, que
terá u m serviço impecável e comida perfeita. Essa
fase poética, cheia de convicções e certezas, molda
em sua mente a imagem detalhada do restaurante
que você pretende comandar. Até os cheiros que virão
da cozinha (e também os que não virão em hipótese
alguma) você controla nesse ambiente impecável do
seu imaginário.
Então, um dia você se vê chef e proprietário de
um restaurante. Falo do prisma do chef porque é com
o que tenho mais intimidade, mas u m gourmet ou
qualquer outro dono de restaurante que conseguiu
concretizar sua grande paixão sabe do que estou
falando. Quando isso acontece, você percebe que a
realidade é u m pouco diferente e que terá de rever
alguns dos seus tão bem delineados sonhos. Seja no
amor, seja na sua formação profissional, seja na sua
cozinha, os sonhos são fundamentais. E manter-se
fiel aos seus princípios certamente colaborará para o
sucesso do seu negócio.
No entanto, as intempéries vão colocá-lo à prova.
E tudo o que você condenou na vida (e julgou com
severidade) poderá ser revisto quando despontarem as
dificuldades financeiras, os problemas de relaciona-
mento pessoal ou de auto-afirmação - sua e das pessoas
à sua volta - , interpelações '^'^injustas'' de clientes,
atitudes sem volta de um funcionário. Com certeza
será uma experiência e tanto vivenciar tais situações e,
em vez de atuar como observador externo, ser aquele
a quem cabe a palavra final. Nessa hora, o profissiona
249
Para o brQIée
Ingredientes
Preparo
Preparo
Finalização
Montagem
251
precisa pesar tudo aquilo em que sempre acreditou e,
ás vezes, rever até questões próprias do seu caráter. O
importante é ter em mente que o seu restaurante reílete
você na sua integridade.
O mestre-de-cerimônias - que geralmente é u m
misto de dono e clief - é quem v a i dar as cartas no
ambiente. Quando você abre u m restaurante, está
transformando em ofício o seu jeito de receber, e o seu
jeito se reílete em seu endereço. E é no exercício diário
do comando de uma casa que se notam os eventuais
defeitos. Ter consciência deles e buscar superá-los
consiste em u m exercício constante na vida de u m clief
proprietário. E saiba que faz parte de u m ciclo o apa-
recimento de novas dificuldades quando as antigas
são superadas.
Quando voltei ao Brasil, em 1994, tinha uma boa
experiência ao fogão. Talvez fosse muito jovem para
assumir o comando de u m restaurante, contudo, as
oportunidades nem sempre aparecem quando estamos
mais bem preparados, então me atirei de cabeça.
Olhando em retrospecto, quase quinze anos depois,
tenho consciência de que hoje cozinho muito melhor
e sou bem mais capaz de reger a operação de u m
restaurante e de uma cozinha. Mas f o i a capacidade
de me superar, de tentar o tempo todo melhorar que
me trouxe até aqui. E não tenho a menor dúvida de
que daqui a quinze anos, quando eu olhar para trás,
a sensação será a mesma.
Saber reconhecer seus erros e acertos - e os de seus
amigos, concorrentes e colegas - , observar os erros e
252
acertos de quem trabalha com você e tentar superar os
Drimeiros e melhorar os segundos é uma das chaves
do sucesso de um restaurante. Profissionais ligados ao
negócio restaurante, por exemplo, devem ser pessoas
sistemáticas, extremamente observadoras, exigentes e
incisivas. Têm que possuir método e se ater a ele. E no
excesso de confiança que mora o inimigo do dono de
restaurante. Não podemos nos esquecer dos erros
Drimários cometidos no passado. Nosso método - seguido
à risca - é o que nos serve de escudo para evitá-los todos
os dias. J á v i profissionais renomados errarem feio
Dorque perderam o pé, porque se deixaram levar pela
falsa segurança conferida pelos grandes momentos. Por
isso, repito: o método é o seu mantra, o porto seguro
onde você se protege de todo e qualquer problema.
E um aviso aos navegantes de primeira viagem:
restaurantes são ambientes que/ fazem os olhos de
todos crescerem. Afinal, costumam servir de cenário
3ara negócios importantes, comemorações e confra-
ternizações. Entretanto, o maior patrimônio de uma
casa é o patrimônio social que ela oferece. Vamos
falar mais sobre isso adiante. As margens de lucro
dos restaurantes são muito pequenas, embora as
operações envolvidas (sobretudo a de restaurantes
gastronómicos) em geral sejam custosas.
Reger um restaurante dá trabalho, é algo que
exige muito de seu proprietário, ainda mais quando
l á uma associação da imagem da casa com a imagem
do chef, como no caso do D.O.M. Sua vida pessoal
fica bastante restrita e é preciso saber administrar
253
com maestria as adversidades resultantes. O cliente
nada tem a ver com as complicações de seu dia-a-dia
nem pode pressenti-las.
Realizar o sonho de ter sua própria casa dá muito
prazer. Minha obrigação de profissional mais experiente
não é destruir seu castelo de areia, mas lhe oferecer
elementos para que você entre mais consciente nessa
deliciosa aventura.
ecebendo amigos
Receber amigos em casa é uma atividade mais do
que divertida. Com os amigos, sempre há a possibilidade
de quebrar pequenos protocolos. Se o gelo acabar, não
será tão grave. Uma comida menos gostosa pode virar
motivo de piada, ou u m pedido de revanche (e a certeza
de u m novo encontro). Quando temos u m restaurante,
a coisa muda de figura. Mesmo que seja o seu melhor
amigo, provavelmente estará acompanhado e terá algum
interesse ao visitá-lo. Saber administrar esse tipo de
situação é u m desafio para o mestre-de-cerimonias, não
importa se ele é o dono do restaurante, o mâitre ou o
chef. O ato de sentar-se e levantar-se de uma mesa deve
ser m u i t o sutil e durar apenas o tempo necessário. O
humor tem de ser preciso, as palavras devem ser medidas.
Geralmente, você está se expondo a pessoas que não são
iguais a você, que podem ter valores diferentes dos seus.
Algumas pessoas gostam de piadas, outras não suportam.
Uma piada picante pode ser perfeita para uma mesa,
254
mas inadequada para a mesa vizinha - por isso, não se
pode perder de vista que sua casa abriga várias mesas.
E essencial lembrar que receber amigos é uma das
grandes alegrias de ter um restaurante, porém, sua casa
não existe (nem sobrevive) por causa dos amigos, mas
sim dos clientes.
Há alguns mandamentos que devem ser observados
nessas ocasiões, e muitos deles podem ser estendidos
ao relacionamento com o cliente de seu restaurante:
Preparo
1. Tire a palha das espigas e toste-as dos dois lados em uma chapa quente.
; Repita o processo com as espigas.
2. Descasque a cebola e a cenoura e corte-as em quatro pedaços.
Faça o mesmo com o salsão. Descasque os dentes de alho.
3. Coloque o alho, o milho e os demais legumes em uma panela,
acrescente o bouquet garni e um pouco de sal.
4. Cubra com água, tampe e leve ao fogo médio para ferver. •
Baixe o fogo e deixe cozinhar até os legumes ficarem macios.
5. Tire os legumes e reserve. Deixe o milho continuar cozinhando
até que fique macio. Retire o milho do líquido e reserve-o.
6. Volte a panela para o fogo e deixe o líquido reduzir em fogo baixo por 10 minutos.
7. Corte o milho em pedaços e os reaqueça com os outros legumes no caldo.
Para a manteiga
Ingredientes s
400 g de abacaxi
200 g de manteiga sem sal em temperatura ambiente
20 g de óleo de pequi
5 folhas de coentro
q.b. de sal
q.b. de pimenta-do-reino
Preparo
Montagem
Coloque alguns pedaços de milho no fundo de um prato acompanhado por alguns legumes do cozimento.
Espalhe algumas folhas de jambu e sirva com a manteiga de pequi.
257
desconfortável pode desfavorecer o que você está
servindo. O tom de sua voz também tem de ser adequado
ao ambiente.
Vinhos
Uma vida dedicada à compreensão das nuanças
do vinho seria pouco! Harmonizar vinhos com receitas
é uma tarefa bastante desafiadora para um chef.
Sempre que fico em dúvida, volto para as regras gerais.
A que mais uso é a clássica pergunta: ^'0 que é mais
importante, o vinho ou o prato?". Se for o vinho, eu
e minha equipe nos curvamos à nobreza daquela garrafa
258
ou daquele momento e aí servimos não aos clientes, mas
à garrafa de vinho. Do ponto de vista técnico, isso
significa partir para uma receita com acidez menos
pronunciada, sempre tendo como base o universo da
cozinha clássica, e fugir de combinações que "metalizem"
o sabor do vinho. Se, por outro lado, a resposta for o
prato, então todo o foco estará nas receitas, e o vinho
será colocado em segundo plano.
Aqui vale diferenciar dois conceitos muito usados
na enogastronomia: harmonização e compatibilização.
Chamamos de harmonização o momento em que
um vinho alavanca a comida e a comida alavanca o
vinho. Ou seja, estabelece-se uma relação entre os
sabores dos dois durante a refeição. A harmonização,
quando bem-feita, é fruto de um trabalho conjunto entre
chef e sommelier, muito difícil de ser bem realizado,
mas que, quando o é, leva o comensal para bem perto
do céu. No primeiro caso, quando o chef se rende a
uma garrafa e cozinha para ela, a chance de uma boa
harmonização é mais certa.
O que se faz no segundo exemplo é compatibilizar.
Quando compatibilizamos um prato com um vinho,
escolhemos uma boa garrafa para acompanhar determi-
nada receita. Nesses casos, corriqueiros em restaurantes,
o grande valor da bebida será o de limpar sua boca
para a próxima garfada (e a comida deve preparar a
sua boca para o próximo gole de vinho).
Em caso de dúvida, no momento de casar receitas
com vinhos, apele para as combinações clássicas: quase
todos os pratos podem ser acompanhados por champanhe
259
(para ostras e caviar, isso é quase uma regra). Carnes
muito gordurosas pedem vinhos tintos. Peixes e brancos
rimam. Foie gras casa bem com sauternes. Quase sempre.
Quando preparamos foie com caldo de carne ou
cogumelos, os bordeaux são os mais indicados.
O progresso da vinificação tem indicado caminhos
menos convencionais.
Aves e vegetais podem surtir grande efeito com
chardonnays amadeirados; peixes gordos e receitas mais
estruturadas de peixes podem fazer grandes combinações
com uvas leves, como, por exemplo, a pinot noir.
Os previsíveis e masculinos bordeaux são desde
sempre ótimos acompanhantes de cordeiros, porém os
vinhos modernos dessa região apresentam grande ver-
satilidade. O corte bordalês e a onipresença da cabernet
sauvignon no Novo Mundo tendem a trazer vinhos com
alto teor alcoólico, corretos, previsíveis e pouco flexíveis
no diálogo com a cozinha criativa.
No outro extremo, os femininos, elegantes e miste-
riosos borgonhas flertam bem com receitas aromatiza-
das, com pontos de acidez pronunciada. Já o bacalhau
e os frutos do mar (riquíssimos em iodo) são boa com-
panhia para vinhos produzidos com uvas alvarinho. Mas,
atenção: se a receita levar bacalhau mais tostado,
tempranillos e syrahs modernos são mais adequados.
Essas dicas são úteis e podem dar mais sabor a
uma refeição, mas não devem ser o centro das atenções:
bom senso e ótima companhia são, quase sempre, o
melhor da festa. E não se esqueça de combinar tudo
com muita água.
260
erros aue so vooe ve
Há erros que só são percebidos por quem está
dentro da cozinha. Mas ver não é tudo. Muitas vezes,
esses erros tendem a ser ignorados porque no conjunto
da obra não parecem tão importantes, fazem parte
de um pequeno detalhe do prato. Alcançar a perfeição
é impossível, porém se aproximar (e muito) dela é
obrigação. Por isso, dê atenção a todos os erros que
identificar na cozinha. Tente corrigi-los, mas também
saiba dar-lhes o devido valor. Os pequenos erros não
podem de forma alguma desestruturar o chef - e,
conseqiientemente, minar o ânimo da equipe. Acostu-
mar-se a comer sua comida fora da cozinha é um bom
exercício para dimensionar mais efetivamente os erros
que só você vê dentro dela. No salão, percebe-se a real
importância dos erros para o comensal. E aí, na hora
de corrigir a rota (ou deixar o rio correr), você estará
mais bem equipado para tomar a melhor decisão.
O equilíbrio de um chef é fundamental. A melhor
comida de um restaurante não é a que um chef faz, e
sim a que ele extrai de uma equipe. Para um jantar ser
bem-sucedido, o líder precisa estar bem. Por isso, se
você estiver fazendo um jantar e perceber que um prato
saiu com um erro que só você identificou, ou que outras
3essoas também identificaram, respire fundo e mantenha
o controle, porque a refeição ainda não está perdida.
O controle do chef é indispensável para o sucesso
de uma refeição. E não comprometê-lo por conta de um
261
q.b. de sal
q.b. de pimenta-do-reino
250 ml de vinho do Porto
100 ml de cognac
1
Para o consome de palmito
Ingredientes
1 cebola, 1 cenoura, 2 dentes de alho,
1 barca de palmito pupunha, meio alho-poró,
1 talo de salsão,1 bouquet garni, 1 talo de capim-santo,
8 folhas de salsinha, 12 castanhas,
de caju cruas, 200 g de Cambuquira
Descasque a cebola, a cenoura e os dentes de alho.
/-:. Corte o painnito e os demais legumes em pedaços
de 3 cm e coioque-os em uma panela. Junte o altio-poró
e o bouquet garni e cubra com água.
3. Leve ao fogo médio até ferver
Baixe o fogo e deixe cozinhar sem ferver por 2 horas.
4. Pique bem o capim-santo e a salsinha
e adicione-os à panela.
Tire do fogo e deixe em infusão por 1 minuto.
5. Coe em um chinois fino,
resfrie em um banho-maria de gelo e reserve.
265
í
í
.1
Ingredientes
4 pimentás-cambuci
1 ramo de alecrim
1 ramo de tomilino
q.b. de óleo de canola
6 pupunhas
q.b. de sal
125 g de coalliada
q.b. de ciboulette
q.b. de pimenta-do-reino
q.b. de cerefólio
pétalas de calêndula
Preparo
1. Em uma assadeira, coloque a pImenta-cambucI, o alecrim e o tomilho e regue com o óleo.
2. Asse por 30 minutos a 180 graus.
3. Retire do forno, tire a pele das pimentas e reserve.
4. Cozinhe as frutas da pupunha em água com sal por 30 minutos.
5. Escorra e deixe esfriar
6. Retire a casca das frutas e reserve a polpa. Separe metade da polpa e corte em brunolse.
7. Bata o restante da polpa em uma Thermomix com um fio de azeite por 5 minutos, a 50 graus.
8. Acerte o sal e reserve.
9. IVlisture a fruta cortada em brunolse com a coalhada,
a ciboulette picada e acerte o sal.
Para a coalhada
Ingredientes
5 è de leite tipo A ou fresco
30 ml de coalho
Preparo
1. Aqueça o leite a 35 graus. 2. Incorpore o coalho e deixe em uma tigela por 1 noite.
Montagem
Coloque 1 colher de puré de pupunha em um prato.
Pegue metade da mistura de coalhada e recheie as pimentas.
Coloque 1 pimenta sobre o puré e um pouco de coalhada ao lado.
Decore com o cerefólio, a ciboulette e as pétalas de calêndula.
267
Calibrar uma equipe, conhecer muito bem todos
os meandros das receitas de seu cardápio, treinar bem
os membros do salão são formas de evitar erros que
dificilmente são detectados. E estar pronto para assumi-
los quando eles lhe forem apresentados também faz
parte do negócio. O regente de seu restaurante é você.
O erro
Quando o erro acontece, é duro. Você tem de se
manter forte e não se abalar. Esse é, sem dúvida, o
melhor conselho, mas entre o conselho e a reafidade existe
u m hiato u m pouco maior do que imaginamos. Errar,
todos erramos. Costumo brincar que ando há quase
quarenta anos e ainda não deixei de escorregar nem de
cair de vez em quando.
Então, diante de u m erro existem duas atitudes
a tomar:
268
me de bacu
(Á n 11 tarota de choci
e amarula
Para o creme de bacuri
Ingredientes
200 g de polpa de bacuri
50 g de açúcar
100 ml de creme de leite
200 ml de licor de amarula
Preparo
1. Aqueça a polpa de bacuri em
uma Thermomix e bata a
60 graus, em velocidade média,
por 5 minutos.
2. Acrescente o açúcar
e o creme de leite e bata
até o líquido se Incorporar
totalmente à mistura.
3. Resfrie e reserve na geladeira.
as receitas.
Igualmente fundamental para um chef é saber
aceitar críticas-que nada mais são do que apontamentos
de erros. Não é fácil ouvir uma crítica. Ainda mais
quando você elaborou seu prato, submeteu a receita a
todos os testes de qualidade possíveis. Mas, de todo
modo, é importante ouvir a crítica e reUetir sobre ela.
Certa vez, fiz um prato para um jornalista, um
filé curado apresentado em três versões, cuja receita
está no meu primeiro livro. Quando ele escreveu sobre
o prato, disse que era uma nova versão de carpaccio.
Ao ler a crítica, quase morri, achei que faltou sensi-
bilidade ao crítico gastronómico, que ele não podia
desconhecer as características de uma carne de carpaccio
e de uma carne curada (há imensas diferenças de sabor,
de acidez, entre elas). Como todo chef, tenho meus
caprichos e passei horas inconformado. U m tempo
depois, comecei a me perguntar por que aquela pessoa
não entendeu a minha receita. Percebi que ele não
tinha notado o sabor da carne curada porque eu não
lhe ofereci essa possibilidade. Na minha primeira versão
da receita, eu apresentei fatias do filé acompanhadas
de rúcula, cogumelo e foie gras. A partir da crítica, eu
alterei o prato. Incluí uma quarta versão: ao natural,
seguido das anteriormente elaboradas. Assim, deixei
mais claras as propriedades do ingrediente com que
eu estava trabalhando.
Até hoje, teimoso como sou, acho que tenho uma
ponta de razão ao indignar-me com a comparação do
meu filé curado com carne crua. No entanto, a primeira
versão do prato estava errada, incompleta, eu estava
270
introduzindo uma nova maneira de tratar uma carne
nova sem dar a devida referência. Ter melhorado esse
prato a partir de uma crítica foi uma grande lição
que aprendi nos últimos anos.
E mais importante do que a lição em si foi eu,
mais uma vez, ter sido lembrado de que o exercício
da cozinha é um eterno aprender, aprender e aprender
- e as lições podem vir de todos os lados.
O aceno
Um acerto é algo que nos inebria, é um dia feliz,
um momento especial da cozinha. Do mesmo modo,
também pode ser um inimigo do chef, porque já comentei
que é no excesso de confiança que residem todos os erros
citados. Um acerto é algo a ser comemorado, mas que
não pode ser carregado no peito como uma medalha.
O que deve ser carregado no peito são anos e anos de
sucessivos acertos.
Se cabe a m i m um pequeno conselho, eu diria:
comemore cada um dos seus acertos, mas lembre sempre
que errar é mais fácH que acertar - essa é uma lei da vida.
Muitas vezes, um erro tem mais valor do que dez acertos.
Volto a repetir: um chef tem obrigação de ser bom ou
muito bom (é de sua natureza buscar ser excepcional).
Portanto, somente sucessivos anos de acertos é que podem
colocar alguém acima do bem e do mal.
Um cliente só vai a um restaurante porque teve
alguma notícia a respeito daquele endereço, ou ainda
271
3or indicação de amigos, por causa de um artigo no
jornal, de uma nota num guia. Poucas vezes um cliente
entra desavisado em seu restaurante. Por isso, sempre
existe uma expectativa em jogo, geralmente de comer
no mínimo "bem",
Quando as coisas estão melhores, sua fama está
crescendo, tudo fica mais complicado. As expectativas
em torno da visita ao seu restaurante aumentam, e as
margens para erros diminuem. Essa é a hora de ouvir
a voz da experiência, ponto ao qual se chega só depois
de ter trabalhado bastante. Coisas que nos primeiros
anos de sua profissão não contavam muito passam
a ser importantes. Garfos e facas, por exemplo. Para
comer uma porção pequena, são necessários talheres
pequenos. A coordenação da colher apropriada com o
prato eleva o valor da refeição, reflete a busca da
perfeição da casa - o que às vezes está muito além das
receitas. Estar atento ao conjunto deve ser o foco do
chef nos bons dias de seu restaurante. São os detalhes
- prestar atenção na temperatura de cada item que
chega à mesa, seja uma Coca-Cola, seja um chá, cuidar
do sorriso no rosto de cada funcionário, saber a palavra
adequada para cada etapa do serviço - que o levam da
categoria "muito bom'' para "excepcionaP'.
Todos nós, chefs, temos muito a aprender com os
nossos acertos. E mais: é preciso aprender a não parecer
seguro demais nem inseguro demais. Esse é um limite
que não está dentro da cozinha, está dentro de cada
um de nós, mas, se reconhecido, pode elevar bastante
a importância de uma refeição.
272
adando 2
U m cozinheiro fica "nadando" quando se perde
em meio a muitas ordens de serviços, quando acha que
não vai dar conta do recado ou não vê como conseguirá
executar tudo o que lhe foi pedido em tempo hábil. O
caos pode imperar em sua cozinha por várias razões:
Dorque você não tem experiência, porque não fez uma
3oa mise en place^ ou até porque há noites em que tudo
o que pode dar errado dá errado. Nadar é u m termo
recorrente na vida de u m cozinheiro.
O melhor conselho para evitar a natação é não
desperdiçar movimentos. Ou seja, em sua cozinha,
cada movimento de seu corpo tem de ser previsto, e a
seqiiência dele também. Você se sente parte de uma
equipe de cozinha quando consegue sincronizar esses
movimentos com o de seus colegas. Nota que tudo o
que você faz combina com o tempo necessário para a
execução das tarefas que lhe foram indicadas (e às
vezes até sobra tempo para ajudar o colega do lado).
Bons profissionais não desperdiçam movimentos. Numa
cozinha em pleno funcionamento, o prenúncio da
natação é aquela "paradinha". Quando você não sabe o
que fazer, que movimento se espera de você, e levanta o
olhar para buscar a sintonia certa.
E m alguns momentos da carreira, nadar é
desestabilizante, opressor até. L e m b r o - m e de ter
chegado algumas vezes m u i t o perto de chorar diante
de u m fogão por ter perdido totalmente o controle
273
da minha praça. Há horas em que o trabalho é incessan-
te, a comida está atrasada, não se consegue chegar ao
3onto certo da carne e o desespero toma conta. Então,
de repente, depois de respirar fundo, você começa a
controlar de novo seus movimentos, a entrar na sincronia
da brigada e a recuperar uma noite que parecia perdida.
O prazer de conseguir sair da natação é inenarrável.
Arrisco-me a dizer que é um dos pontos altos da rotina
de um cozinheiro. Indica que você venceu a batalha, é
um guerreiro de sucesso. E não tem nada mais gostoso
do que, depois de uma noite de trabalho vencida, sentar
com os colegas (com uma cerveja na mão ou não) e
dar risada daquela noite caótica. Na cozinha, até o pior
das situações pode ser bem aproveitado.
Quando você sonha em ser cozinheiro, de vez em
quando é muito crítico com o chef ou o subchef da
equipe. Durante o desenrolar do trabalho, pensa que,
quando for chef, vai agir diferente. Entretanto, quando
esse dia chega, você age conforme seus instintos mandam
e começa a nadar. Nessa hora o importante é reconhecer
que sonhos são sonhos, e a realidade é diferente. E,
acima de tudo, não se apavorar. Num restaurante, a
sabedoria está em dimensionar o tamanho do problema.
Não se deixe levar pelo sentimento comum a todos os
seres humanos e achar que "o seu problema é o maior
de todos''. Lembre que o chef e o subchef que foram
alvos de suas críticas veladas estão ali porque têm
mais experiência (ou mais habilidade, pouco importa).
Segui-los nessa hora em geral é a melhor saída; não
hesite em fazer isso.
274
Minha equipe no D.O.M. está bastante afinada, por
isso os episódios de natação são raros. Mas me lembro
de uma noite, no começo de 2006, em que tudo estava
dando errado. Tive então de i r ao fundo da cozinha
buscar um ingrediente que tinha sido esquecido por um
dos cozinheiros e, na volta do percurso de menos de dez
metros, comecei a sentir que o pior estava passando,
que as panelas estavam corretamente no fogo, que os
Dontos estavam entrando em sincronia e que a água
estava saindo do meu pé. E uma alegria quase infantil
tomou conta de mim. A cozinha tem dessas coisas. São
quase 20 anos de profissão e ainda sou invadido por
imensas ondas de prazer quando coisas como essa
acontecem (e eu venço mais uma batalha). Nessas horas
eu relembro como é bom ser cozinheiro.
276
equipamento básico, aos itens que não podem faltar
a nenhum cozinheiro.
Na minha opinião, todo cozinheiro tem de ter uma
; aca filetadeira flexível, uma faca multiuso ou faca-
chefe e uma faca de ofício, que é uma faca pequena
que serve para quase todos os fins, além de um amolador
(de preferência uma chaira). Em minha cozinha, é
3roibido usar pedra de afiar ou chairas de diamante -
essas peças estragam as facas. Se você entrar em uma
cozinha e encontrar facas com barriga ou com o fio
arredondado no sentido oposto ao da placa de corte,
pode escrever que ali há cozinheiros que são vítimas
desses objetos. Com essas facas, adquirem-se péssimos
vícios, como usar só a ponta ou ofinaldela para executar
os cortes. Se tem uma coisa que me irrita são facas
mantidas erroneamente ou mal afiadas.
Tão importante quanto possuir o kit básico de
acas é saber usar seu afiador. Não é complicado. Foi
meu amigo Flávio Duprat quem me ensinou a descobrir
a correta angulação de cada faca e usá-la na lida com
o afiador. Atenção: cada faca tem uma angulação
diferente. E, claro, só o exercício leva à perfeição. E
bem provável que, nas primeiras vezes, você demore
muito para executar a tarefa e ofiode sua faca não
fique muito bom. Mas, insista. Com a prática, será
algo tão simples quanto beber água. E saber executá-
lo com perfeição faz, sim, parte das obrigações de um
3om cozinheiro.
277
a me hor terramenta
Devo m u i t o do meu aprendizado à leitura.
As vezes até exagero, dizendo que aprendi mais com o
que l i do que com a profissão. Explico: para os cozi-
nheiros, ler não se restringe a u m a bibliografia básica
(também importantíssima); é necessário saber o que
dizem as embalagens dos produtos que você compra.
Nelas, há muitas dicas sobre o ingrediente que guardam
e sobre como aproveitá-lo melhor.
E, mesmo que elas tragam u m a série de palavras
que você não conhece direito - como acidulantes,
edulcorantes, gomas - , é necessário ler e entender o
papel desses produtos na composição do produto.
Há alguns anos, ouvi o espanhol Ferrau Adriá
dizer que a descoberta da goma xantana tinha mudado
a vida dele. Confesso que fiquei surpreso com a
afirmação e até chequei se não t i n h a ouvido errado.
Danoninho tem goma xantana, panetone tem goma
xantana, entre outros produtos. A afirmação de
Eerran reforçou mais u m a vez a importância de ler
rótulos de ingredientes e descobrir o porquê de cada
u m dos itens estar ali. Essa também é u m a obrigação
do cozinheiro.
Para os curiosos, como o ágar-ágar, a goma
xantana é u m extrato vegetal que tem poder emul-
sificante (ou de dar consistência) sobre os molhos.
278
com Quia^^ '^o oorto e tiqo
Para o queijo de castanha-do-pará
Dial
Ingredientes
1 kg de castanhas-do-pará, 250 ml de água filtrada
Preparo
1. Rale as castanhas com um Microplane.
2. Triture as castanhas raladas com a água até virar uma massa homogénea.
3. Deixe descansar, coberta e em temperatura ambiente, por 2 dias.
Dia 3
Ingredientes
250 g de castanhas-do-pará, 150 ml de água filtrada, 20 g de açúcar
Preparo
1. Rale as castanhas com um Microplane.
2. Triture as castanhas raladas com a água e o açúcar até virar uma massa homogénea.
3. Misture a massa obtida com a massa do Dia 1.
4. Deixe descansar, coberta e em temperatura ambiente, por mais 2 dias.
Dia 5
Ingrediente
500 g de castanhas-do-pará
Preparo
1. Rale as castanhas com um Microplane. 2. Misture com a massa do Dia 3.
3. Deixe descansar, coberta e em temperatura ambiente, por mais 3 dias.
Dia 8
Preparo
1. Bata tudo no Thermomix a 50 graus por cerca de 20 minutos,
para que fique com a textura de queijo.
2. Coloque em um recipiente e cubra com água sem deixar que ela se incorpore à massa.
Esse processo vai evitar que o queijo entre em contato com o ar.
3. Deixe descansar por 2 dias em temperatura Inferior a 6 graus.
Após esse período, o queijo estará pronto para ser consumido.
280
Preparo
1 l de vinho do Porto
Preparo
1. Deixe o vinho do porto reduzir em uma panela em fogo brando, sem ferver,
até que fique com a consistência de um xarope.
2. Resfrie e reserve.
Preparo
Montagem
281
No panetone, por exemplo, ela evita que as passas
fiquem num só ponto do "bolo''. E a aplicação correta
da goma na massa que permite que encontremos passa
no meio, nas extremidades e na casca do panetone.
Assim como a goma xantana - ingrediente que
esteve o tempo todo embaixo do nariz de todos os
cozinheiros - ajudou Ferrau a dar mais um passo
em sua cozinha, a composição de um ingrediente
pode conter uma lição que o ajudará a aprimorar
suas receitas.
Ler receitas também é essencial. Muitas vezes, ao
ler o livro do chef, você encontra uma receita clássica
com um passo novo. Anos depois, vê a receita sendo
executada daquela maneira em um restaurante. O fato
de ter lido a respeito anteriormente com certeza o
coloca à frente dos outros na hora de executar a receita,
já que será conhecedor do '^^truque'.
O improviso é uma constante na vida de um
cozinheiro. As vezes ele não acontece dentro da sua
cozinha, mas num jantar para um cliente fora, ou em
sua cozinha doméstica e desprovida de todos os
recursos da cozinha de um restaurante. Quanto mais
bem informado e mais técnico for, mais capaz de
improvisar será o cozinheiro. E, assim como a prática,
a leitura pode ser uma aliada. Nessa hora vale tudo:
livros de aventura (que ensinam a cozinhar na selva,
num barco, para um piquenique), livros de chefs,
biografias de nomes da cozinha ou embalagens de
supermercado. Lembre: a leitura é uma arma para
um cozinheiro.
282
conhecendo
o ingrediente
Numa rápida conta de padeiro, calculo que, em
sete anos de D.O.M., passaram por minha equipe de
cozinha cerca de setecentas pessoas, aproximadamente
cem por ano (meus estagiários têm ciclos de u m mês).
Desse total, digo com certeza que 650 nunca haviam
atentado para as diferenças dos produtos que estavam
utilizando. Não que não soubessem que uma rúcula
era uma rúcula. Mas não sabiam a diferença entre uma
rúcula, uma rúcula selvagem e u m broto de rúcula; de
uma sardinha, uma cavalinha e uma anchova; de uma
tainha e u m parati; de uma lula pequena e uma lula
grande. A lula grande guarda imensas diferenças da
lula pequena. O mesmo acontece com o parati e a
tainha. Por essa razão é que conhecer o ingrediente é
u m dos passos fundamentais do cozinheiro.
E por isso que em geral os chefs não gostam de
substituir ingredientes. Com os similares não se
chega ao mesmo resultado do original. Se a receita
Dede robalo, tente executá-la com robalo. Se não for
possível, busque u m sucedâneo, mas é essencial
saber que a receita original pedia robalo. Na hora
de escolher o substituto, se você conhecer bem o
ingrediente a ser usado (e também o robalo), saberá
fazer a melhor escolha, a que menos comprometerá
o resultado do prato.
283
Para aprofundar um pouco mais o assunto, vamos
voltar ao caso do robalo. No Brasil, temos dois tipos
de robalo: o peva e o flecha. Como já mencionei na
primeira parte da obra, no capítulo dos peixes, cada
um vive em uma região do mar e, por isso, se alimenta
de um tipo de organismo diferente. Se formos mais
onge, dependendo da época do ano, da quantidade de
chuva e da vegetação marinha, o microcosmo do animal
se comporta de forma distinta. E teremos robalos com
peso e índices de gordura completamente diferentes.
Quem conhece bem esse peixe sabe a melhor época do
ano para utilizá-lo em sua receita, e se ela é mais
adequada para o peva ou para o flecha. Se, além
disso, também for conhecedor das características
das cavalinhas, das tainhas, dos cações, e tiver todos
esses sabores bem guardados em sua memória gusta-
tiva, quando tiver de buscar um substituto vai saber
exatamente em que ponta da banca de pesca procurar.
E dependendo do seu grau de originalidade, pode
até descobrir, com a simples troca de ingrediente,
uma nova receita, tão encantadora e perfeita quanto
a origina
novos ingredientes
Novos ingredientes são sempre sopros de ar fresco
no viciado ambiente da cozinha. Falo isso porque
a tendência da maioria dos restaurantes é ter um
cardápio estável. O lado mais maçante da vida de um
284
cozinheiro é cair na rotina, é ver que não há mudanças
no seu cotidiano: ele monta a sua praça sempre do
mesmo jeito, espera o horário do serviço, executa sua
função, limpa a cozinha, prepara as ordens de serviço
para o dia seguinte, volta para casa. U m novo
ingrediente sempre altera esse cotidiano regrado.
Apesar da alegria que provoca, ele deve ser visto
com deferência, respeito e muita atenção. Um ingre-
diente de estação ou um ingrediente exótico com o
qual não se está familiarizado pode ser perigoso.
Para interpretar u m ingrediente é preciso, antes de
mais nada, aprofundar seu conhecimento a respeito
dele: o país de origem e, de preferência, suas aplicações
mais comuns nessa região; o género do produto, sua
história, suas propriedades. Essa familiaridade irá
colocá-lo quilómetros adiante durante a criação de
um novo prato. Assim como a leitura de receitas de
grandes mestres pode ensinar pequenos macetes, o
uso que um povo faz de um ingrediente revela muito
de suas características, suas manhas, os cuidados
que são necessários para ele não mudar - e, às vezes,
mudar - de cor, a temperatura certa do fogo para
chegar ao ponto ideal de cozimento e até o que é
preciso fazer para evitar uma aplicação pouco
saudável de sua nova diversão.
Outro cuidado com os novos ingredientes é não
passar do ponto. Essa história já foi esquecida, mas na
ressaca da nouvelle cuisine o kiwi passou a ser consi-
derado '^a frutinha maldita"". Por conta de seu aspecto,
da acidez ora pronunciada, ora delicada, pelo tom do
285
a-cl'angola lutte
Esta receita tradicional francesa era usada quando não existia panela de pressão. Quando se leva
ao forno uma panela tampada, após um tempo de cozimento, cria-se leve pressão em seu interior,
e a massa vai assando. A certa altura, a massa começa a romper e a pressão interna da panela diminui.
Ingredientes Para a patê morte
2 cebolas Ingredientes
1 alho-poró (só a parte mais clara)
2 cenouras 200 ml de água
3 talos de salsão 500 g de farinha de trigo
2 folhas de louro 1 clara
1 ramo de tomilho
1 ramo de alecrim Preparo '
2 ramos de salsa lisa
2 ramos de hortelã Misture tudo até ficar uma massa homogénea.
3 dentes de alho Guarde na geladeira em um recipiente
1 galinha-d'angola com tampa até a hora de usar.
10 ml de óleo de canola
25 g de manteiga sem sal
6 tomates bem maduros Para a farofa
200 ml de vinho branco seco
1 maçã verde Ingredientes
50 g de bacon em cubos
Preparo 1 cebola média
10 g de manteiga
1. Pique e doure todos os legumes 2 ovos
e acrescente as ervas. 200 g de farinha de mandioca amarela
2. Com parte dos legumes, recheie a galinha, q.b. de sal
amarre bem, tempere com sál e pimenta q.b. de pimenta-do-reino
e doure na "cocote" com óleo e manteiga.
3. Retire a galinha. Coloque o restante Preparo
dos legumes e doure-os profundamente.
4. Adicione os tomates crus e o vinho 1. Em uma frigideira, doure o bacon em cubos
e cozinhe por 5 minutos. e adicione a cebola cortada em meia-lua.
5. Retorne a galinha à panela. 2, Coloque a manteiga
Feche com a tampa e a patê morte. e os ovos e cozinhe rapidamente.
6. Leve ao forno por 45 minutos, a 180 graus, 3. Acrescente a farinha de mandioca e,
depois por mais 15 minutos a 160 graus. em fogo baixo, salteie até ficar crocante.'
7 Retire a galinha, coe o caldo e 4. Verifique o sal e a pimenta e
reserve os legumes. 8. Sirva em seguida. reserve para o momento do serviço.
s,
287
verde, pela textura, o kiwi encantou os cozinheiros
franceses daquele movimento, mas, de um ponto em
diante, de novidade a fruta se tornou lugar-comum.
Um bom produto acabou vulgarizado.
No Brasil, o valor do novo ingrediente é redobrado.
A cozinha europeia já domina muito bem os seus e não
é de hoje que partiu para os conhecimentos tecnológicos
em busca de novos rumos para a gastronomia. Esse
movimento dos europeus tem uma só razão: eles não
têm mais para onde correr do ponto de vista da
descoberta de sabor. Resta-lhes reinterpretar o que já
conhecem, e, para isso, nada melhor do que apelar
para o que a tecnologia tem a oferecer.
No nosso caso, as pesquisas de ingredientes
nacionais mal começaram. Se o seu caminho for a
cozinha criativa, tenha olhos, ouvidos e olfato ligados
nos ingredientes que o cercam. Tenho certeza de
que nesse caminho há uma vertente maravilhosa a
ser trabalhada.
Convém aqui não esquecer que louvar o produto
da terra levou a Espanha catalã e basca, a Borgonha
francesa, o Mediterrâneo para os pontos mais altos do
pódio gastronómico. Por isso, se descobrir um produto
da sua terra, caipira mesmo, bata no peito e cante feliz.
Esse pode ser um bom caminho de sucesso.
Para se dar bem nesse campo, é preciso estar
aberto a experiências. Uma das prerrogativas de um
cozinheiro é não ter preconceitos com ingredientes,
receitas, técnicas. Aprender a degustar, a treinar seu
paladar para apreciar itens que no início de sua carreira
288
causavam aversão é essencial. Para ter sucesso na
criação, investigue, experimente. A cozinha experimental
pode não ser um íim, mas certamente é um meio, e
deixará grandes legados para a gastronomia.
ovas técnicas
Novas técnicas são inebriantes, muitas vezes até
espetaculares. Vale lembrar mais uma vez que, como
as velhas técnicas, elas também são uma ferramenta
para o cozinheiro. Então muito cuidado quando você
tiver o domínio de uma nova técnica, porque é funda-
mental usá-la com propriedade.
Um cozinheiro muito técnico, ou dominado por
uma nova técnica, pode ser tão chato quanto um
guitarrista que resolve fazer um solo de meia hora com
seu instrumento. Mostrar que você é capaz de utilizar
o novo conhecimento com perfeição e em todas as suas
facetas diminui o valor do que aprendeu. De entrete-
nimento, de meio para a busca de um prazer maior,
sua prática vira egocentrismo e deixa de interessar
aos clientes.
Aqui vale usar o conceito de inovação. Sempre
que estiver diante de uma técnica nova, faça tudo para
compreendê-la da melhor forma possível. Na sua
cozinha experimental, brinque com as possibilidades
que ela oferece. Depois olhe bem para o seu restaurante.
Relembre qual a proposta da sua casa, qual o elo de
confiança que você - como chef - firmou com a sua
289
Ingredientes
8 minialios-poró
8 minimillios
4 minibeterrabas com talos
8 minicenouras
2 miniberinjelas
2 pimentas-dedo-de-moça
6 minicebolas
2 espetos de queijo de coallio
2 quiabos
100 ml de melaço de cana
q.b. de cerefólio
q.b. de alecrim
q.b. de sal
q.b. de pimenta-do-reino
Preparo
1. Corte os legumes conforme a foto.
2. Toste um lado das cebolas e finalize o cozimento no forno.
Reserve-as aquecidas.
3. Doure profundamente os legumes em cliapa ou frigideira antiaderente.
4. Doure os cubos de queijo de coalho.
5. Frite o quiabo.
6. Disponha os legumes em um prato
e regue com o azeite de baunilha e o melaço de cana.
7. Salpique as ervas (o cerefólio e o alecrim).
Tempere com o sal e a pImenta-do-reino.
8. Coloque de maneira graciosa a espuma de fumaça.
292
Para o sal defumado
Ingrediente
sal
Preparo
Preparo
293
clientela. Avalie qual será a utilidade da nova técnica
na sua rotina. Se, além de muito criativa, ela for útil,
você estará diante de uma inovação que merece ser
considerada para o seu cardápio. Se não fizer diferença
alguma, guarde-a na sua gaveta de conhecimentos
adquiridos. Certamente, na ocasião oportuna ela
mostrará sua utilidade, ou pelo menos terá servido
3ara torná-lo um profissional melhor. As vezes, uma
nova prática, os erros e acertos a que se chega com um
brinquedo recém-lançado aprimoram nossa lida com
os velhos brinquedos do nosso cotidiano, nos ensinam
que eles podem ser mais bem aproveitados, que têm
valor. E nada mais.
ve nos inaredientes
As pessoas tendem a ver cebolas, cenouras, salsão,
ou até um filé mignon como ingredientes menores, corri-
queiros, monótonos. Nunca olhe um velho ingrediente
com desprezo. Ser criativo é também saber apresentar
algo que você sempre comeu de um jeito totalmente
inusitado. Velhos ingredientes e velhas receitas costu-
mam guardar ótimos ensinamentos e podem ser boas
fontes de inspiração para a cozinha criativa.
Vejamos, por exemplo, o caso do alho e da
cebola. Se compararmos o universo gastronómico
com o musical - o que faço com freqíiência, por gostar
muito dos dois - , o alho e a cebola estão para os
pratos assim como o baixo e a bateria estão para as
294
canções. Não conheço uma cukura sequer que não
os utihze. Como o baixo e a bateria na música, e es
dão a base de uma receita. Usando u m jargão dos
chefs, eles cooperam na preparação do fundo de u m
molho ou de u m cozido.
Cebola e alho são ricos em ácidos e óleos, que
fazem com que o sabor de uma receita persista por
mais tempo na boca. Uma das coisas que observamos
ao fazer um molho é a longevidade de seu sabor na
3oca. Molhos de carnes gordurosas devem persistir por
mais tempo, porque o gosto da carne também fica por
mais tempo na boca, então, é preciso que o molho
acompanhe a proteína. Nesses casos, o uso de alho e
cebola é importante. Com peixes, usamos ambos com
mais parcimônia, já que o sabor desse ingrediente é
mais delicado. Mas tanto no caso das carnes como no
dos peixes são o alho e a cebola que determinam o
tempo em que o gosto de uma receita permanecerá na
nossa boca. Na música, baixo e bateria têm função
semelhante na estrutura interna das canções. Eles estão
ali para sustentar o ritmo e o som.
Eu me divirto quando alguém diz que não gosta
de alho ou de cebola. A meu ver, são pessoas que gostam
de ser enganadas. U m e outra são onipresentes, pois é
difícil encontrar uma receita em que eles não entrem.
Ainda que não se note a presença dos dois em um risoto,
por exemplo, eles certamente entraram na composição
do caldo usado no preparo do prato. Há casos em que são
indispensáveis: sem a cebola ou o alho, um molho de
vinho tinto para acompanhar uma carne não amalgama
295
^^^^^^^^
.i.
arroz proibido".
neGentementé • Ruzene,
achacado p ico e,
depois de fazer algumas pesquisas, começou a inve iOtação desse tipo de arroz.
Como se não bastasse a boa história, ^ ^ Í U ^ J U Í O é incrível.
A essa receita aliei um ingrediente que já foi sinónimo de chique e agora virou maldito,
o Catupiry, que também considero um bom item nacional.
296
Para o arroz
Ingredientes
3 0 g de manteiga d e garrafa
20 g de cebola
2 0 0 g d e arroz p r e t o
1 0 0 g d e vinino b r a n c o s e c o
8 0 0 g d e c a l d o d e l e g u m e s (ver p á g . 43)
100 g de Catupiry
q . b . d e sal
q.b. de pimenta-do-reino
Preparo
1 E m u m a p a n e l a , e s q u e n t e l e v e m e n t e a m a n t e i g a d e garrafa.
2 . P i q u e a c e b o l a b e m fina e, e m f o g o baixo, a salteie n a m a n t e i g a .
3. A d i c i o n e o arroz p r e t o e salteie p o r m a i s 3 m i n u t o s .
J C o l o q u e o v i n h o e deixe evaporar.
5. P r e a q u e ç a o c a l d o d e l e g u m e s . A c r e s c e n t e p a r t e d o c a l d o à m i s t u r a d o arroz.
Cozinhe e m fogo baixo, m e x e n d o sempre.
Q u a n d o q u a s e t o d o o líquido tiver s i d o a b s o r v i d o , j u n t e mais c a i d o e c o n t i n u e c o z i n h a n d o .
R e p i t a o p r o c e s s o até q u e o arroz esteja ai d e n t e .
6. A c r e s c e n t e o C a t u p i r y e t e m p e r e c o m o sal e a p i m e n t a - d o - r e i n o .
Para os tomates
Ingredientes
12 tomates-cereja
q . b . d e óleo d e c a n o i a
q . b . d e sal m a l d o n
q.b. de pimenta-do-reino
Preparo
Finalização i
C o l o q u e 1 c o l h e r d e risoto no p r a t o ,
p i n g u e u m p o u c o d e m a n t e i g a d e garrais
e enfeite c o m o s t o m a t e s .
29?
sabores satisfatoriamente. E arroz branco sem cebola
ou alho parece comida de doente.
Os chamados velhos ingredientes precisam ser
compreendidos e aplicados de maneira correta. Assim
como a música, a cozinha tem notas de sabores, pontos
de cozimento de ingredientes, misturas que devem ser
empregadas em sua plenitude para se chegar aos
grandes resultados. U m cozinheiro sábio nunca abre
mão do maior número de possibilidades que pode
utilizar. E m cozinha não há u m ingrediente mais valioso
do que o outro. O que importa é o conjunto, e, para o
conjunto estar harmonioso, é preciso que todos entrem
na hora certa, do jeito certo e no ponto certo.
ve nas técnicas
O que dissemos sobre os velhos ingredientes vale
também para as velhas técnicas. Nunca as olhe com
desprezo. A cozinha vive de reciclagem. Algo que parece
démodé numa determinada época, como uma sobremesa
flambada, pode ressurgir em alguns anos e ser bastante
apreciado. As velhas técnicas são sábias e sabem esperar
seus ciclos. Não têm a ansiedade de estar o tempo todo
em evidência. Por isso, antecipe-se. Conheça-as. Saiba
quais são seus segredos.
O berço de u m bom cozinheiro criativo deve estar
'orrado pelo domínio de técnicas (e quase sempre das
antigas). Esse conjunto de conhecimento e habilidade
adquirida é o salvo-conduto do chef. A capacidade de
298
improvisação na cozinha é diretamente proporciona
ao domínio de técnicas que u m profissional tem. Vale
frisar que as velhas técnicas precisam ser compreendidas.
E, ao fazê-lo, u m cozinheiro salta de mediano para
muito bom. Quando você entende o que faz na cozinha,
deixa de ser u m mero repetidor de instruções e passa a
ser conhecedor do lugar aonde quer chegar com o
emprego de uma técnica.
Algumas receitas clássicas resultaram da combi-
nação de técnica e acaso. U m a das mais famosas é a
tarte tatin francesa. Segundo se conta, u m a freira
distraída preparava u m a torta de maçã e, depois de
cozinhar e caramelar as frutas, colocou-as diretamente
em uma assadeira. Estava pronta para mandar a torta
para o forno quando notou que tinha esquecido de forrar
a assadeira com uma massa. Com preguiça de recomeçar
o processo, cobriu as maçãs com a massa e as levou ao
forno. Quando a massa dourou, ela tirou a torta do forno
e a serviu de cabeça para baixo (esse é o significado de
tatin) para que seu ''pecado'' não ficasse tão evidente.
Não se sabe em que cozinha a receita foi aprimora-
da, mas é certo que u m cozinheiro, conhecendo a história,
partiu do erro da freira para criar uma das mais famosas
sobremesas francesas. Se cobrirmos a maçã com u m a
receita de massa tradicional, o peso e a espessura da
fruta impedem que o calor chegue corretamente até ela
e a base da torta fica "solada'', como dizem nossas avós.
No entanto, se usarmos a massa folhada (que em sua
receita permite a pré-formação de folhas que vão dar
leveza à massa), isso não acontece.
299
Para o royaI de banana 3 Unte uma forma com manteiga e açúcar
e sobreponha camadas de brioche e de pasta
Ingredientes de banana. Complete a forma com o creme.
Cubra com papel-alumínio e leve ao forno
4 ovos em banho-maria a 140 graus, por 25 minutos.
4 gemas 6. Deixe esfriar e leve à geladeira.
375 ml de leite
375 ml de creme de leite
150 g de açúcar Para o sorvete de coco
5 g de fava de baunilha
350 g de banana-passa Ingredientes
150 ml de rum escuro
2 brioches de 250 g 150 g de frutose
100 ml de água
Preparo 1200 ml de leite de coco fresco
.•SOO
Para a calda de cupuaçu Para a banana em pó
Ingredientes Ingrediente
301
Para a receita ficar perfeita, os franceses usam
alguns macetes, que surgem da boa compreensão da
técnica e do conhecimento do ingrediente: dobram a
massa seis vezes. Entre u m a dobra e a outra, eles a
giram, e sempre para o mesmo ado. o aue fara com
que a textura das folhas formadas fique mais agradável.
Os mais perfeccionistas (certamente os que melhor
d o m i n a m a técnica) fazem as duas últimas dobras
minutos antes da utilização da massa.
Usei esse exemplo para mostrar como o domínio
da técnica nos leva a lugares mais distantes, a patamares
mais altos. Sem a interferência do cozinheiro, a receita
da freira preguiçosa teria ficado no bolo solado e se
perdido no século em que foi criada.
saDores oasicos
A cozinha clássica, eurocentrista, trabalha com u m
quarteto de sabores: o salgado, o doce, o amargo e o ácido.
Numa visão mais global, aceita-se u m quinto sabor, o
umami, a respeito do qual não conheço texto mais claro
do que o do colega inglês Heston Blumenthal, do premia-
díssimo restaurante Fat Duck, que reproduzo adiante.
O bom conhecimento da cruz de sabores clássicos
é muito importante na hora de construir uma receita.
E u m cozinheiro tem de levar em consideração o
equilíbrio da cruz em u m prato na hora de inventá-lo.
A base para a construção de sabor de uma receita nasce
da boa compreensão desses quatro sabores. Quando se
302
sabe o ponto de equilíbrio desejado entre eles, é possível
corrigir u m molho ácido demais, amargo demais ou
até salgado demais.
U m dos motivos para o foie gras ser tão bem aceito
no universo gastronómico é sua complexidade de sabo-
res. O foie possui traços doces e amargos e desperta
todas as papilas gustativas. E por isso mesmo é extrema-
mente versátil. Podemos servi-lo cru; com ingredientes
clássicos como o vinho do Porto, pasta e risotos; inespe-
rados, como o filé curado, ou até em combinações mais
atrevidas, como feijão, gengibre, peixes.
O paladar brasileiro tende a repelir sabores
amargos. Mas, se os limites dessa equação forem com-
preendidos, poderemos - e devemos! - usar sabores
amargos para compor receitas. E u uso o tempo todo.
U m a das receitas de base do D . O . M . é u m caldo de
lágrimas de legumes que parte de uma tosta, processo
que mais evidencia o amargo de u m ingrediente.
Costumo dizer, aliás, que tostar através do fogo é
uma forma de temperar o ingrediente que deve ser
levada em consideração (desde que bem exercitada) por
todo cozinheiro. Quem já deixou uma panela tempo a
mais no fogo ou a retirou antes do tempo sabe exatamente
do que estou falando. A intensidade da chama e o tempo
que ela age sobre a comida são de extrema importância
para o sucesso da execução de uma receita (e também
para evidenciar o sabor desejado).
Com esse processo não há meio-termo. Se condu-
zido erroneamente, deve-se jogar o erro no lixo e começar
de novo. Experimente descuidar do preparo de u m
303
e cate
Para o puré de abóbora
Ingredientes
300 g de abóbora-moranga
q.b. de sal
100 g de queijo-de-minas-meia-cura
50 g de tutano de boi
azeite de café
grãos de café
1 folha de alfavaca-do-pará
Preparo
Preparo
Finalização
Montagem
305
molho de tomate em uma frigideira e permitir que o
fogo incida diretamente sobre o caldo. O resultado é o
pior possível: fica imprestáve .
No outro extremo, temos o murici, um tipo de
madeira que só existe na Amazónia. Qualquer coisa
tostada com chama de murici ganha um toque de
amargor e um perfume delicioso. Esse é o melhor caso
de temperar com o fogo com que já tive contato.
O fogo também tem uma elegância inquestionáve .
Todos se lembram com algum fascínio da primeira vez
em que viram um bom maitre fazer aflambagemde
uma receita ao lado da mesa em que estavam sentados.
A ação da chama nesse caso é a maneira mais rápida
de baixar a quase zero a quantidade de álcool em um
molho ou uma calda. O recurso nem é o mais gastro-
nómico de todos, mas seu efeito cénico é imbatível.
Eu me demorei mais no amargo e os efeitos do
fogo para mostrar que todos os elementos da cruz de
sabor são importantes no universo do cozinheiro. Basta
saber como usá-los - e, para isso, nada melhor do que
a prática.
306
mami: o auinto aosto
Por Heston Blumenthal
200 g de açúcar
400 ml de água
20 ml de suco de limão
2 cravos-da-índia
2 anises-estrelados
1 pau de canela
5 g de pImenta-do-reino
4 aspargos
2 peitos de pato
q.b. de sal
q.b. de pimenta-do-reino
4 bananas-da-terra
4 bananas-ouro
q.b. de sal maldon
ml de demi-glace (ver pág. 48)
folhas de beldroega
Preparo
1. Faça um caramelo escuro com o açúcar,
acrescente a água, o suco de limão e as especiarias.
Deixe em fogo brando até reduzir à metade e reserve.
2. Descasque os aspargos, retire a parte fibrosa do talo e reserve.
3. Tempere os dois lados do peito de pato com o sal e a pimenta.
4. Sele o magret em frigideira sem óleo, em fogo brando,
começando pela parte da pele.
Quando estiver dourado,
vire e sele o outro lado rapidamente.
5. Finalize o cozimento em forno a 180 graus,
6. Asse as bananas-da-terra por 30 minutos,
a 180 graus, e reserve.
309
estimativa. Há ainda debate sobre o conceito dos cinco
gostos ser também simplista: só para o gosto amargo,
por exemplo, há mais de vinte receptores que respondem
a coisas diferentes e em diferentes combinações. E
alguns cientistas estão pressionando para que a gordura
seja identificada como um gosto.
O próprio quinto gosto só foi descoberto nos últimos
cem anos. Antes disso, os cientistas só reconheciam
formalmente quatro gostos distinguíveis pelo paladar:
salgado, doce, azedo e amargo. Mas, o professor-doutor
Kikunae Ikeda, da Universidade de Tóquio, interessou-
se pelo sabor de um caldo mais salgado gerado pelo
kombu, ou alga gigante, que cresce até trinta pés de
altura nas costas das ilhas do norte do Japão e que tem
sido usada como tempero nos alimentos por aproxi-
madamente mil anos. Em 1908, ele descobriu que esse
gosto salgado era causado pela presença do ácido
glutâmico no kombu, e decidiu chamar esse gosto
de 'umami' (que, em japonês, significa ""saboroso" ou
''delicioso ). Desde então, os cientistas descobriram nos
alimentos diversas outras substâncias que proporcionam
o gosto umami: inosinato (que está presente no bonito
e em muitas carnes), guanilato (mais abundante nas
plantas: os cogumelos shitake têm elevadas concen-
trações) e adenilato (que está presente, principalmente,
nos peixes e frutos do mar).
Ikeda continuou desenvolvendo um novo sabor
baseado no ácido glutâmico. Em 1909, introduziu no
mercado o glutamato monossódico (MSG), que, desde
então, foi rapidamente aceito nos países asiáticos (onde
310
aparece nas cozinhas muito mais do que o sal, em frascos
com flocos cristalinos) e chamou a atenção do Ocidente.
Um fenómeno conhecido como '^a Síndrome do Restau-
rante Chinês'' (CRS, sua sigla em inglês), cujos efeitos
incluem desidratação e dor de cabeça, acredita-se que
seja causado pelo MSG.
A realidade é que o acrónimo do glutamato mo-
nossódico não lhe fez nenhum favor, fazendo-o parecer
Darticularmente sintético e artificial. Mas, a verdade é
que os testes científicos que levaram à identificação do
CRS não foram muito rigorosos, e os testes mais recentes
demonstraram que as primeiras conclusões eram comple-
tamente sem fundamento. O escritor culinário Jeffrey
Steingarten defendeu sucintamente o MSG no título de
seu ensaio ^Tor que todos na China não têm dor de
c a b e ç a ? I s s o pode parecer leviano, mas muitas pessoas
que consideram o MSG prejudicial não pensariam duas
vezes em colocar ketchup em suas batatinhas ou em
acrescentar um tablete de caldo ao seu mofiio, e ambos
são ricos em umami.
E o que tem tudo isso a ver com pizza?
Embora o umami tenha sido identificado no Japão,
não é um fenómeno oriental. Está presente em todos
os tipos de alimentos que são familiares para nós:
anchovas, tabletes de caldos, bouillabaisse, cozidos de
carne/ave/peixe, molho de soja, ketchup, levedura
alimentar e os complementos básicos da pizza: queijo
parmesão e tomates. (Da próxima vez que você tiver
um tomate bem maduro, tente fazer o seguinte: dê uma
mordida na parte externa, e depois na parte que está
311
2 dentes de alho
50 ml de azeite de oliva
500 g de vôngole
400 g de fettuccine de jambu cozido
q.b. de sal
q.b. de pimenta-do-reino
5 9 de ciboulette
5 g de salsa lisa
folhas e flores de jambu
Preparo
1. Descasque o alho e em seguida triture-o
com o azeite. Reserve.
2. Cozinhe o vôngole em água com sal até que abra.
3. Retire-o da água e experimente.
Se estiver amargo, repita o cozimento.
Retire da água e reserve.
4. Pegue o fettuccine já cozido e, em uma frigideira,
refogue o azeite de alho em fogo baixo.
5. Acrescente o vôngole e o fetuccine.
e.Tempere com o sal e a pimenta
e finalize com a ciboulette
e a salsa finamente picadas.
313
em volta das sementes. Haverá uma grande diferença
no sabor, e a parte interna será a que dará a sensação
mais saborosa e encorpada em sua boca. Isso é o umami.
Como você provavelmente já percebeu, este é um assimto
que eu adoro. A Reading University concedeu-me,
recentemente, um título honorário de Doutor em
Ciência, do qual eu me sinto muito orgulhoso. A primeira
oesquisa com a qual contribuirei como doutor explora,
justamente, essa concentração de componentes de umami
nos tomates, e os fatores que podem afetá-los.)
E tem mais: quando combinados, os produtos
químicos do umami têm um efeito ampliado: se você
acrescentar um alimento rico em ácido glutâmico a
outro que tenha, por exemplo, vestígios de inosinato, o
gosto do umami é amplamente intensificado. Isso
representa uma parte importante das receitas deste
livro. Coloque ketchup de cogumelos em um bife,
refogue a carne com tomates em um molho à Bolognesa,
acrescente queijo parmesão a uma pizza Margherita, e
você obterá uma explosão de sabor!
sensação gustativa
Sensações gustativas - como quente, frio, morno,
crocante, macio, picante - são outras notas de sabor
que podemos adicionar a uma receita além dos sabores
básicos. São os sustenidos da cozinha e, como esses
sobretons na música, fazem muita diferença - se bem
usados - na construção de um sabor.
314
Estamos trabalhando há algum tempo com o
jambu, uma variedade do género Spilanthes que,
segundo a Embrapa, não tem origem definida e existe
há muito tempo em terreno nacional - assim como nas
Ilhas Maurício e em Madagáscar. A sensação que
o preparado dessa erva dá é o que chamamos de
"elétrico''. Ela faz a língua adormecer. Se usarmos essa
sensação apropriadamente, ela pode trazer notas de
sabor surpreendentes.
Quando lidamos com as sensações gustativas, é
importante salientar que a princípio elas podem ser
conflitantes ou chocantes com o conjunto de um prato.
A sensação que a pimenta e o jambu propiciam é um
bom exemplo disso. Nessa hora é bom lembrar que
tudo o que tem muita personalidade tem de ser usado
com parcimônia - e elegância.
No caso da pimenta e do jambu, tampouco se
pode esquecer de que a exposição às sensações que
eles proporcionam exige um grau de tolerância.
Quem está acostumado com os efeitos de um e de
outro ingrediente os tolera melhor. Na hora de dosar
tais sensações, é bom conhecer o público-alvo da
receita e suas peculiaridades. Se os considerarmos
da ótica gastronómica, haverá para a pimenta e o
jambu o ^'melhor m o m e n t o u m ponto ideal de
tolerância que não vai ferir nenhum comensal (nem
os acostumados, nem os que nunca ouviram falar
deles, nem os que ficam entre esses dois extremos).
Em um restaurante também é possível ^^brincar"
com as sensações gustativas. Quando introduzi o
315
macarron de casta d
e ioaurte
Para a farinha de castanha-do-pará 2. Leve à batedeira e bata até virar um
merengue cremoso (não deve ficar muito firme).
Ingredientes 3. Incorpore aos poucos a
farinha de castanha, mexendo
250 g de castanha-do-pará cuidadosamente até que
250 g de glaçúcar a mistura fique homogénea.
50 g de maisena 4. Encha um saco de confeiteiro e,
com um bico liso, faça pequenas bolas
Preparo sobre um tapete de silicone.
5. Asse a 150 graus, por 12 minutos.
1. Rale as castanhas-do-pará. Desligue e espere 1 minuto para
2. Misture-as aos outros ingredientes tirar os merengues.
e passe por uma peneira bem fina.
Para o recheio de iogurte
Para o macarron
Ingrediente
Ingredientes
200 ml de iogurte natural desnatado
100 g de claras
170 g de açúcar refinado Preparo
250 g de farinha de castanha Enrole o iogurte em um pano bem apertado
por 3 dias na geladeira, para que escorra
Preparo todo o seu líquido. Dispense o suco que restar.
1. Misture as claras com o açúcar Montagem
e leve ao fogo baixo, mexendo sempre até
que o açúcar esteja totalmente derretido. Cole dois macarrons com o iogurte.
Cupim com puré de pequi no cardápio do D.O.M., não
coloquei faca na hora de servir o prato. Foi uma pequena
3rovocação. A preparação do cupim nessa receita fazia
com que a carneficassetão macia que dispensava o uso
de facas. Resolvi brincar com o comensal, tirá-lo do lugar
de sempre diante de um prato com carne (que grita
3or uma faca) e mostrar que era possível ter uma nova
sensação gustativa ao comer aquela receita específica.
A lição que tiramos da apresentação desse prato, e
que é usada pelos grandes chefs de tempos em tempos,
com a parcimônia e a elegância necessárias para não
virar lugar-comum, é que as sensações gustativas são
nuanças de uma receita. Saber usar todas as possibi 1-
dades que elas nos oferecem pode levar uma receita mais
longe e diferenciar um cozinheiro bom de um cozinheiro
excelente e de um cozinheiro inigualável.
memoria gustativa
Vários estudos realizados na Europa e nos Estados
Unidos chegaram à conclusão de que nada nos parece
estranho desde que tenha sido introduzido na infância
e também de que tudo o que comemos nos remete a
esse período da vida.
Essas afirmações são sutilmente diferentes - e um
pouco confusas numa primeira leitura. Mas, se pensarmos
em um exemplo simples, como a comida japonesa, certa-
mente a primeira frase fará sentido. Há vinte e cinco anos,
o sushi era totalmente estranho aos brasileiros - se você
317
tem mais de trinta anos e procurar bem, vai se lembrar
de que uma irmã da sua mãe ou do seu pai até hoje não
tolera a ideia de comer peixe cru. A fase do exotismo já
3assou. E nossos filhos, que cresceram comendo sushi, se
lambuzam com as iguarias dos restaurantes onde usamos
hashi no lugar de talheres convencionais.
Para dar sentido à segunda frase, vou usar outro
exemplo: todos temos lembranças de sabores de nossa
infância, como uma bala de coco, um pão-de-ló da
vovó, o pudim de leite da titia. Essas receitas se tornam
referências do nosso paladar, e as carregamos com
muito afeto. No decorrer de sua vida, ao comer coisas
gostosas, irá exclamar: ^^Nossa! Isso aqui é tão bom
quanto o bolinho da minha a v ó ! E m outras palavras,
a emoção de provar um tal sabor é diretamente pro-
Dorcional àquela que você experimentava quando comia
a iguaria preparada por sua avó todo domingo.
Nossa memória gustativa com freqiiência é calçada
na memória afetiva. Nessa hora é importante lembrar
que o paladar humano nasce pronto para os doces -
somente para eles. Com os anos, começamos a aprender
a apreciar os salgados, os azedos, os amargos e todas
as outras possibilidades do mundo gastronómico. O
paladar é um sentido a ser desenvolvido.
No exercício diário da cozinha, a memória gustativa
é um grande recurso. Temos de saber como usá-la em
nosso benefício, para integrá-la ao nosso repertório.
Há uma imensa diferença entre comer alho cru,
alho assado, alho cozido e alho frito. Cada um apresenta
uma nota totalmente diferente de sabor, e elas se dife-
318
renciam de acordo com o preparo de cada tipo. Um alho
levemente refogado tem um sabor, um profundamente
refogado apresentará outro, e se a receita começar com
o óleo quente, ainda outro. Na hora de construir um simples
espaguete ao alho e óleo, esse conhecimento representa
uma tremenda diferença. Quanto maior a capacidade de
memorizar as características peculiares dos ingredientes,
melhor será a sua capacidade de construir sabores,
melhor será o seu repertório.
Um cozinheiro precisa conhecer a capacidade que
temos de construir uma memória gustativa para ampliar
suas possibilidades. E é o resultado desse exercício que
permitirá saber que um rôti amargo demais é sinal de
que o ponto da tosta dos ossos foi excedido ou de que
falta cebola para que o gosto dele persista por mais
tempo na boca.
Outro ponto bastante importante no que diz
respeito à memória gustativa é compreender as possi-
bilidades que você tem e as possibilidades que você
não tem por conta do que foi capaz de memorizar.
Por exemplo, dificilmente um japonês vai preparar uma
feijoada tão boa quanto a de um brasileiro: dificilmente
um brasileiro fará um cassoulet tão bem-feito quanto o
de um francês. Isso não o impossibilita de fazer incursões
e de ser até um profundo conhecedor das cozinhas
francesa, japonesa, chinesa - a nacionalidade pouco
importa. O que é bom ter em mente é que sua memória
gustativa, seu primeiro registro cultural, será sempre
brasileira. E, por mais que você consiga dominar a
técnica de outra cultura, sua referência estará no seu
319
Para desenvolver esta receita, usei como maior referência a minha memória gustativa:
o cheiro do leite fervido e derramado sobre o fogão, o bolo de fubá e o café.
Para o bolo de fubá
Ingredientes
4 ovos
360 g de açúcar
100 g de manteiga em temperatura ambiente
240 g de fubá
650 ml de ieite integral
240 g de queijo-de-minas padrão
20 g de fermento em pó
Preparo
1, Bata os ovos com o açúcar até dobrarem de volume. 2. Incorpore a manteiga, o fubá,
o leite, o queijo e, por último, o fermento. 3. Asse a 170 graus por aproximadamente
35 minutos em forma de silicone (se usar forma de inox, asse por 25 a 30 minutos).
2 i d e leite
3 g de ágar-ágar
200 g de ciaras
100 g de açúcar
Preparo
1. Aqueça bem uma paneia funda e despeje neia uma pequena quantidade de ieite.
2. Deixe secar e dourar profundamente. Repita esse processo três vezes.
3. Some o restante do ieite de uma só vez, mexa bem, apague o fogo, tampe
e deixe descansar até atingir a temperatura ambiente. Coe e reserve.
4. Coloque em uma panela pequena 200 mi de ieite queimado anteriormente
obtido, acrescente o ágar-ágar e eieve o fogo a 90 graus.
5. Adicione essa mistura à primeira quantidade de ieite queimado.
6. Faça um merengue com as claras em neve e o açúcar.
7. Incorpore aos poucos o leite queimado à batedeira.
8. Em seguida, leve a uma máquina de sorvete.
60 g de açúcar
0,3 g de goma xantana
300 mi de café solúvel
Preparo
Montagem
321
prato, como u m sotaque difícil de esconder quando
falamos uma língua estrangeira.
Doces exageradamente doces, a c o m b i n a ç ã o de
arroz com feijão, uma carne de porco bem-passada são
alguns exemplos de características bem brasileiras que
nos acompanham durante toda a vida e que surgirão
inevitavelmente em seus pratos quando você se aventurar
na cozinha de terras diferentes daquela onde nasceu.
Para finalizar: u m bom cozinheiro precisa conhecer
e cultivar muito bem sua memória gustativa - e saber
o que ela tem a acrescentar e o que ela tem para atrapalhar
na construção de sabor.
nrotundidade de sabo
Os mandamentos da cozinha clássica d i t a m que
Deixes devem ser acompanhados de vinhos brancos
e carnes, de tintos. E m S ã o Paulo usamos a expressão
"^café carioca'' para uma versão do espresso ligeiramente
mais fraca (ou aguada, se preferirmos u m termo mais
direto). Esses dois exemplos servem de introdução para
a discussão sobre a profundidade de sabor que eu gos-
taria de propor aqui.
A regra que indica vinho branco para acompanhar
Deixes existe porque a profundidade de sabor de u m
peixe costuma ser quase igual à do v i n h o branco. No
caso das carnes, sobretudo as mais gordurosas, a
persistência do sabor costuma ser tão longa quanto a de
u m vinho tinto.
322
Atualmente, essas regras estão sendo revistas, já
que existem vinhos brancos muito potentes e vinhos
tintos bastante leves. Há também peixes que reconhe-
cidamente têm sabor potente - como o salmão mas
isso não vem ao caso.
A profundidade de um sabor refere-se ao tempo
que um gosto persiste na boca de um comensal. Quando
produzimos uma receita, é muito importante estar
atento a esse detalhe. Uma das grandes dificuldades
da cozinha é o preparo correto de um risoto (já disse
anteriormente que, a meu ver, se trata de um prato não
tão simples quanto parece). O segredo dessa receita
costuma estar no caldo que alimenta o risoto e que estará
pronto para talfimum pouco antes da concentração de
sabor pretendida no término da receita. Expfico: durante
o cozimento do risoto, o caldo evapora e concentra seus
sabores. Por isso, se você fizer um caldo com a concen-
tração exata dos ingredientes e salgado na medida correta
(e provavelmente muito gostoso) e regar a iguaria com
ele, obterá uma receita figeiramente pesada e salgada.
Alho e cebola são essenciais na dosagem da
profundidade de sabor de um prato, como comentei
no capítulo ''Velhos ingredientes". O controle de sua
quantidade e de seu ponto de tosta influencia direta-
mente o tempo que o gosto de uma garfada persistirá
na boca de um comensal. Gostaria aqui de dividir uma
opinião que tenho sobre o uso desses dois ingredi-
entes: a personalidade da cebola é mais dócil, menos
contundente, ou seja, mais feminina; o alho tem uma
personalidade mais masculina, mais marcante e de
323
: 150 g de puré de cará (ver pág. 88)
1 limão-cravo
1 botarga (ver pág. 76)
1 ramo de manjericão
q.b. de creme de leite
q.b. de azeite extra-virgem
q.b. de pimenta-do-reino
Preparo
Montagem
O lu gamento de um prato
Quando u m cozinheiro prepara uma receita, leva
muitos aspectos em consideração: se a quantidade de
comida será suficiente para matar a fome de u m
comensal, se o prato está salgado na medida, se está
329
Para as vieiras
\r ;
Preparo
Preparo
200 g de pimenta-de-cheiro
30 ml de cachaça de boa qualidade
15 ml de vinagre branco
1 ramo de alecrim
1 folha de louro
1 dente de alho
750 ml de óleo de canola
Preparo
332
A textura ganha outros cinquenta pontos. Nesse
tópico, além da textura do ahmento, considera-se como
aqueles sabores se desenvolveram dentro da boca do
comensal e como a parte tátil ajudou na degustação dos
ingredientes. O bom manuseio do ingrediente é essen-
cial para que se atinja u m a pontuação elevada nesse
quesito. U m a lula ''borrachenta'' pode destruir u m a
boa receita; já uma lula que tenha a elegância da
m o r d i d a impecável é capaz de salvar u m prato (ou
elevá-lo a u m patamar superior).
O último aspecto da avaliação é o sabor. A ele, o
mais relevante do ponto de vista gastronómico, é atribuído
u m total de cempontos. Quando pensamos em restaurantes
gastronómicos, há muitas variantes envolvidas: o serviço,
a ambientação, a aparência dos pratos, o menu e outro
sem-fim de detalhes, mas o sabor das receitas tem sempre
de ser destacado. Nunca podemos perder de vista a
3rimeira obrigação de u m cozinheiro, que é montar pratos
sensacionais e gostosos, que dêem prazer ao comensal. O
3razer de comer u m bom prato costuma ser a razão do
sucesso de u m endereço. Por isso, no fim das contas, o
que pesa é o sabor - na verdade, o maior objetivo de uma
receita. E é na conquista de u m sabor inigualável que u m
3om profissional consegue se diferenciar dos demais.
U m detalhe sobre a avaliação: nenhum prato merece
nota máxima, por u m a questão simples: a cozinha
sempre guarda surpresas, e temos de reservar pontos
Dara a próxima emoção, já que ser surpreendido é uma
das maiores alegrias desse nosso universo. E, acredite,
as emoções às vezes vêm de ingredientes muito simples
333
(ou colocados com muita simplicidade numa receita):
comer um morango vermelho e doce é uma emoção;
comer moranguinhos de bosque, pequenos como a
unha do mindinho, quase sem cor, mas com um sabor
e um aroma impressionantes, é outra.
Mais um detalhe a ser observado: se um prato não
merece pelo menos 50 por cento da pontuação de cada
um dos itens (ou seja, vinte e cinco pontos pela apre-
sentação, vinte e cinco pontos pela textura e cinqiienta
pontos pelo sabor), tem de ser desclassificado. Não é
bom o suficiente para merecer julgamento. O que não
quer dizer que não mereça ser comido.
m
Coloque o arroz em um prato fundo e por
cima rale com um Microplane um pouco
de castanha^do-pará.
mento e de expressão. No Brasil, por exemplo, usamos
uma terminologia bastante informal no trato entre as
pessoas, dificilmente nos dirigimos a alguém chaman-
do-o de "senhor'' ou chegamos a um bar pedindo: "Boa
tarde, por favor, eu gostaria de uma caipirinha''. No
nosso protocolo, dizer "Me dá uma caipirinha",
dependendo da entonação, não é falta de educação.
Em outros países, isso é uma grande ofensa.
Para se dar bem em cozinhas fora daqui, aprender
a respeitar tais códigos é importantíssimo. A chave do
sucesso para se desenvolver em equipes lá fora está em
dizer "bom-dia" a todo mundo, se dirigir aos superiores
tratando-os como "senhor", lançar mão de frases como
"Gostaria de receber", agradecer sempre que recebe
alguma coisa, estar disponível e ser prestativo (com u m
sorriso no rosto) o tempo todo. Note: esses protocolos
têm de ser respeitados dentro do ambiente da cozinha,
no calor da atividade (e em ambientes sociais mais
"light" também).
Mais uma regra das cozinhas a ser observada é a
atitude: ter iniciativa, demonstrar que tem e saber aceitar
que errou. Muitas vezes, é difícil admitir um erro que
não se cometeu. As pessoas tentam se justificar, dizendo
que a culpa não é delas. Em uma cozinha estrelada no
exterior, mesmo que você tenha errado por culpa - clara
- de outro, simplesmente abaixe a cabeça e responda:
"Oui, chef, pardon, chef. Esse é o protocolo.
Para quem conseguir vencer todas essas barreiras,
a possibilidade de trabalhar em casas renomadas
proporciona experiências inigualáveis, muito enriquece-
338
doras. Quem não tiver a oportunidade de vivenciar tal
experiência, não se aflija: elas não são determinantes
para o sucesso profissional. Conheci vários cozinheiros
que trabalharam anos (seis, dez) em restaurantes
estrelados lá fora. Em geral, eles se movimentam (e se
portam) indescritivelmente bem dentro de uma cozinha.
Mas alguns deles, quando põem a mão na massa,
produzem pratos medíocres, não são bons cozinheiros.
Uma boa escola, um bom aprendizado, acrescenta
bastante, mas não certifica qualidade a ninguém. Gosto
de dizer isso para acalentar os menos providos de sorte
ou de dinheiro, mas também para estimular quem está
entrando em uma cozinha premiada pela primeira vez.
Ao dar os primeiros passos na profissão, respeite os
que estão começando, admire quem já é experiente
e nunca subestime sua capacidade.
Você tem capacidade de ser um cozinheiro muito
bom, ótimo e até excepcional, e só descobiirá isso traba-
lhando, seja fora do Brasil, seja aqui mesmo. O exercício
tem de vir antes do julgamento. Trabalhar no exterior é
uma ótima forma de pôr seu talento à prova, mas não é
a única, nem é essencial para o sucesso na profissão.
nromessas
e exoectativas
Quando você sonha em ser um chef, em abrir o seu
restaurante, em ter uma carreira ou somente em preparar
339
um jantar simples para os amigos, está exercitando sua
capacidade de gerar promessas e expectativas nas pessoas
que vai receber.
Para mim, é melhor prometer sete e entregar sete do
que prometer dez e entregar os mesmos sete. Ter cons-
ciência das próprias limitações e respeito pela pessoa que
se vai receber é muito importante. Trabalhar com a
entrega de "comida" não deixa de ser um processo de
venda. A qualidade do servdço que presta acompanha um
cozinheiro, um restauranteiro. um dono de hotel, um
vendedor de eventos, um gommet. a partir do momento
em que ele tornar piíbHca essa habilidade e a vende. E
aquilo que você promete e enti^ega tem relação direta com
o que as pessoas consideram caro ou barato.
Repito há anos que não gosto de pagar barato.
Gosto de pagar caro pelo que me traz qualidade. Pode
parecer extravagante dizer que não me incomodo em
gastar uma quantia acima da cobrada no mercado por
um ótimo ingrediente, mas não é: desde que receba em
qualidade o equivalente a cada tostão do que paguei.
Exigir é prerrogativa de um profissional de cozinha e
também do empreendedor.
Em contrapartida, acho caro pagar um centavo
que seja por um produto de baixa qualidade. Acho um
absurdo gastar R$ 1,00, R$ 1,50 no cachorro-quente
vendido próximo a estádios de futebol. Invariavelmente,
a salsicha é ruim, o pão é mole e o sanduíche chega frio
na mão do cliente. Mas, se eu souber que há um hot-dog
sensacional do outro lado da cidade, não vou fazer conta
da gasolina nem do preço pago por ele. Sou assim.
340
Saber reconhecer - e dosar - a relação que você
estabelece com o seu trabalho é um passo muito
importante na vida de um cozinheiro. Saber o que
prometer e que expectativas gerar é algo que você tem
de aprender e calcular antes de abrir as portas de um
endereço (e isso vale para a sua casa também).
Na hora de fazer essa conta, não deixe de levar em
conta suas possibilidades. Comecei a cozinhar na Bélgica,
dentro da tradição francesa. De início, fiquei fascinado
com a descoberta de sabores, de novos ingredientes,
das técnicas de preparo que conheci ao penetrar naquela
cultura. Naturalmente me embriaguei com a amplitude
daquele horizonte: não se tratava apenas de uma língua
que me era desconhecida, mas igualmente de outros
hábitos, de outra cultura, de outras temperaturas, de
coisas que não faziam parte do meu repertório. Aí, sonhei,
sim, em ser belga, francês e, um pouco mais tarde, sonhei
em ser italiano.
Um dia, me dei conta de que era brasileiro, de que
essa era a minha referência, era o que eu tinha. Que
era no meu país que eu tinha repertório para julgar
o bom, o muito bom e o excepcional. Ao acordar
para essa verdade, resolvi fazer dessa diferença - ser
brasileiro! - a maior força do meu trabalho. Fiz essa
opção por ter consciência das minhas limitações na
lora de trilhar caminhos estrangeiros. Mas também
com a certeza absoluta da minha capacidade pessoal,
e cheio de orgulho de ser filho desta pátria, mãe gentil.
341
Bpioca com sorbet de aça
e concentrado de fiao
Para a tapioca tostada
Ingredientes
400 ml de leite
100 g de açúcar
q.b. de canela em pau
200 g de tapioca grossa
q.b. de manteiga sem sal clarificada
folhas de poejo
1 pétala de flor de capuchinha
Prepare
100 ml de água
125 g de açúcar
400 g de polpa de açaí
suco de 1 limão, se necessário, para equilibrar a acidez
1 clara
C o r t e a t a p i o c a n a f o r m a d e u m retangulo d e 6 p o r 4 c m .
Doure o s d o i s lados e m u m a frigideira a n t i a d e r e n t e
q u e n t e c o m u m p o u c o d e m a n t e i g a clarificada.
E m u m p r a t o f u n d o , j o g u e 1 colher d o c o n c e n t r a d o d©
E m s e g u i d a , c o l o q u e u m p e d a ç o d a t a p i o c a grei
e u m a quenelle d e s o r b e t d e acaf
Finalize c o m folhas d e p o e j o e 1 p é t a l a .de
caminho sem vota
Depois de trilhar o caminho do aprendizado, sonhar
alto com seu futuro, você tem o duro encontro com a
realidade e percebe que está em um caminho sem volta.
Se já optou por essa carreira, dificilmente vai conseguir
retroceder. E, mesmo que desista (tudo é possível), vai
ter sempre aquela dúvida sobre a melhor decisão que
podia ter tomado. A cozinha não vai fazer de você um
milionário. Nem um homem muito famoso (contamos
nos dedos os que conseguiram essa proeza). Mas cozinhar
é realmente prazeroso e instigante. E quando os seus
sentidos se voltam para esse universo, mudar de rota é
muito difícil, e até doloroso.
De agora em diante, vamos tratar da realidade
de u m chef, de u m dono de restaurante, de u m
cozinheiro. Vamos mergulhar no dia-a-dia de uma
casa, falar sobre a administração de um restaurante
e, mais que tudo, de receitas (destacando o momento
de sua concepção e técnicas envolvidas em seu preparo).
Seremos mais assertivos em u m terreno volátil e
impreciso. Cozinhar começa a ficar u m pouco mais
complicado. Primeiro, porque trataremos das receitas
sob uma ótica gastronómica. Na primeira parte desta
obra, selecionamos receitas básicas; na segunda,
receitas para gourmets, que, para serem executadas,
não requeriam equipamentos requintados ou altamente
tecnológicos. Nesta parte da obra, vamos lançar mão
de tudo o que existe para ajudar u m chef a obter bons
346
resultados. Um chef gastronómico é um atleta de
alta performance.
Quando falo que a cozinha pode ficar difícil, não
quero dizer que não seja executável. Uma das carac-
terísticas dessa cozinha são pratos realizados em várias
etapas, as quais, isoladamente, não são complicadas.
O que gera a dificuldade é a soma de todas elas - e tudo
o que deve ser observado durante o processo.
Vamos também falar sobre restaurantes de uma
maneira mais globalizada. Na primeira parte da
obra, comentamos bastante o que ocorria dentro da
panela; na segunda, entramos no universo da cozinha.
Agora, vamos ver o que acontece num restaurante,
abordar a relação do chef com sua brigada, com os
fornecedores, com os jornalistas e com os clientes.
Como chef ou dono de restaurante, você começa
a deparar com alguns problemas que talvez não exis-
tissem antes na sua cozinha: o controle de qualidade,
o ato de delegar e o custo do que vai começar a operar
- seja em recursos humanos, seja em insumos. E isso
também é um desafio para o chef e, talvez, uma de suas
principais atribuições. Um restaurante não é um ateliê,
não é lugar para hobbies. E um negócio, um investimento,
um business, e requer planejamento e seriedade.
Será necessário também que você tenha bem
exercitada a capacidade de receber pessoas duas
vezes ao dia. Digo muitas vezes que administrar um
restaurante é como assinar um cheque sem fundos.
Todos os dias você promete - para você mesmo, para
sua equipe, para os seus clientes - que tudo vai correr
347
vongo e com tapioca
e caldo iodado
de erva-mate
Ingredientes
1 kg de vôngole na concha,
cebola, alho, q.b. de óleo,
vinho branco, kombu,
1 bouquet garni, q.b. de sal,
infusão de erva-mate,
200 g de sagu cozido (ver pág. 88),
flores de antirrino,
pétalas de crisântemo branco
Preparo
1. Lave bem os vôngoles em água gelada e cozinhe-os
em água fervente abundante até abrirem.
2. Escorra e volte-os para a água fria.
3. Em uma panela funda, refogue em um fio de óleo de canoia
a cebola e o alho, acrescente o vinho branco
e os vôngoles e deixe até quase secar.
4. Acrescente a água, o kombu,
o bouquet garni e o sai e cozinhe por 15 minutos.
5. Some a infusão de erva-mate e metade dos vôngoles
e deixe descansar por 3 horas. Durante esse período,
ocorrerá a reação entre a erva e o vôngole,
que resultará em um verde intenso.
6. Coe, retire toda a gordura e deixe decantar.
Coe novamente em tecido e retorne ao fogo.
7. Em uma panela pequena, coloque as bolinhas de tapioca
previamente cozidas e parte do caldo do vôngole.
Cozinhe até quase secar,
conferindo uma textura gelatinosa à tapioca.
349
às m i l maravilhas. Mas geralmente grande parte dos
ingredientes necessários para que isso aconteça ainda
está por ser entregue, você não tem certeza de que seus
cozinheiros, garçons e toda a equipe virão trabalhar,
muito menos de que seus clientes vão escolher o seu
restaurante para almoçar ou jantar naquele dia ou
naquela noite. E o frio na barriga de todos os dias
estar diante de uma batalha nos envolve. E não dá
para negar que não há um lado sadomasoquista nessa
rotina frenética de organizar e comandar duas festas
por dia. Mas, uma vez dentro dessa roda-viva - e
feliz pelas conquistas que ela traz fica difícil sair.
E mesmo um caminho sem volta.
meioao e organização
Restaurantes são neofócios de ofrande complexi-
dade. E é função do chef de cozinha gerir a casa com
competência, eficácia e um sorriso no rosto. Para isso,
é importante que ele seja, antes de qualquer coisa, um
cozinheiro, conheça bem todos os processos do restaurante
(da limpeza às peculiaridades de cada uma das praças
existentes em sua cozinha) - e tenha método e orga-
nização. Essas serão as grandes ferramentas de um
chef ou restauranteiro para bem gerir a sua casa. Para
que os dias corram à perfeição, sem grandes sustos, é
Dreciso que tudo esteja sob controle. Para isso, é função
do gestor antecipar problemas e saber, com detalhe,
tudo o que acontece todos os dias em seu restaurante.
350
o dia-a-dia de uma casa bem gerida será por isso u m
contínuo checar e rechecar de operações.
O bom prato entregue ao chente é o ponto
intermediário, mas também o começo de toda essa
operação. Como bem enumerou o chef norte-americano
Thomas Keller, as funções do chef moderno não mais se
restringem ao âmbito do restaurante: somos profissionais
multifacetados e temos de ser capazes de gerir uma
cozinha; administrar restaurantes e tudo o mais que
envolva a operação de uma casa; ser u m pouco psicólogos
para lidar com nossa equipe, nossos clientes; dominar
técnicas de recursos humanos para manter a brigada
estimulada; ter capacidade de falar para grandes
públicos; dar boas aulas; estar preparados para dar
entrevistas interessantes e até para participar de
programas de televisão. Somos, enfim, profissionais
multimídia. Mas tudo começa com o sucesso de u m
prato bem entregue a u m cliente.
E para chegar a esse passo decisivo é preciso ter
controle de sua operação. E preciso ter noção de que
para entregar u m prato perfeito ao cliente será
necessário gerenciar toda uma cadeia de produção
- que começa com peixes e verduras. Para que eles
sejam entregues, você depende de u m ser humano,
das flutuações do mercado financeiro e das condições
climáticas. Começam aqui os primeiros tormentos da
vida de u m dono de restaurante. Vivemos, sim, olhando
para o céu e tentando adivinhar como será o clima.
Não só para saber se os clientes vêm ou não, mas
porque, se esfriar demais, se chover demais, se fizer
351
Preparo
Preparo
Para o pó de pipoca
Ingredientes
Preparo
Finalização
Montagem
353
calor demais, as verduras, os legumes e os peixes poderão
não chegar com a qualidade desejada.
Muitas vezes, quando trabalhamos com ingredientes
raros, somos parceiros do nosso fornecedor, trazemos
sementes de viagens, ajudamos a investir na horta alheia
3ara colher um benefício ou um produto que não há
Dreço que pague, que pode ser u m broto de jambu,
algumas dúzias de cambuci, o germinado de u m grão
ou quaisquer outros produtos que ainda não estão no
mercado e que você, por tino, por faro ou por instinto,
ocaliza e neles acredita. Para conseguir um tal produto.
voce a]uda nos custos do negocio aJ heio. mas sempre
com um olho no benefício do seu restaurante. Essas
operações exigem cuidado. Só valem a pena se o seu
restaurante for beneficiado. E preciso ter sangue frio
nesse negócio (cada centavo tem de ser bem empregado,
já que seus ganhos não são estratosféricos).
O mesmo cuidado que você tem com o fornecimento
de verduras e peixes (pontos extremamente delicados
dessa cadeia), deve ter com o fornecimento de carnes,
queijos, farinhas, e por aí vai.
A recepção é outro ponto que deve ser muito bem
observado na rotina de uma casa. Um manobrista que
não diga boa-noite e já vá dizendo, em mau português,
'''é dez reaP' pode estragar uma bela refeição. E o cuidado
com o manobrista é só o começo. A pessoa que recebe o
cliente na porta, o maitre, os garçons, o sommelier e
toda a equipe do salão também têm de estar bem
treinados e com um sorriso no rosto para receber o seu
cliente. Temos também de lidar, todos os dias, com o
354
imponderável: grandes refeições são compostas de boa
mesa, e boa mesa é composta de bom humor. As vezes
o cliente traz uma chateação de casa e, mesmo que sua
comida esteja impecável, vai haver reclamação.
Além do humor do cHente, há muitas outras variáveis
que o dono do restaurante terá de administrar: se as
geladeiras estão funcionando bem, se o fogão está bem
calibrado, se os cozinheiros estão afinados, os garçons
bem treinados, prestativos e principalmente eficientes.
Há ainda a última ponta do elo, o pós-venda (muito
difícil de ser verificado): saber se o cliente comeu bem,
se foi até a porta satisfeito e se voltará. Se possível, é
3om que da próxima vez que ele vier, você (ou alguém
da casa embre o seu nome e o que ele comeu. Algo
que nunca precisa ser lembrado é a companhia de
um cliente. Donos de restaurantes precisam ter memória
seletiva; há segredos que devem ser bem guardados (isso
também cativa clientes).
Um bom termómetro do pós-venda é o prato que
retorna à cozinha. Estar de olho no que o cliente comeu
e no que ele deixou de comer é algo que deve ser treinado
em sua equipe. Nas reuniões sistemáticas do grupo
é importante que o chef seja colocado a par desses
detalhes. Comida boa não sobra no prato. Muitas vezes,
o ajuste fino do prato é encontrado a partir do exercício
sistemático de observação do que volta do salão: se
sobra muita guarnição, se foi muito molho, como é a
avaliação do prato, qual é a aceitação daquele prato
pelo grande público (sai muitas vezes ou é item quase
desprezado de seu cardápio?).
355
A equipe do salão também tem de estar bem
afinada nesse processo. De nada adianta um prato
Donito, gostoso e bem decorado na mesa do cliente, se
o garçom, ao ser questionado sobre a composição do
Drato, não souber responder. E, para isso, é bom que
ele tenha boas respostas para o tipo de preparo e para
os ingredientes usados. Por isso, não basta somente
contratar bem e posicionar bem seus funcionários.
Para o bom andamento de uma casa, são necessárias
reuniões semanais (com dia e hora fixos) e análise siste-
mática de cada um dos setores.
Para que essa complexa orquestra seja bem
conduzida, é preciso muita disciplina: nas compras, na
organização, no recebimento da mercadoria, no sorriso,
no servir. Uma medida para que isso funcione é ter uma
lista na qual se checa todos os dias se tudo está correndo
bem. A seguir, uma sugestão de checklist que uso há
muito tempo em meus restaurantes.
• das flores;
• da faxina;
da s reservas;
• dos vinhos;
• dos copos;
• dos talheres;
• da recepção.
• do escritório;
Finalização
Preparo
Aqueça as codornas cozidas em baixa temperatura
1. Pique bem a cebola e o alho. no termocirculador a 60 graus por 5 minutos.
2. Corte os cogumelos ao meio. Retire da embalagem e doure bem
3. Em uma frigideira com um fio de óleo, os dois lados em uma frigideira quente
refogue o alho e a cebola. com um pouco de manteiga.
4. Junte o tomilho e o alecrim. Corte-as no sentido longitudinal e reserve.
5. Em seguida, jogue os cogumelos e uma Aqueça os cogumelos, adicione o
pitada de sal e deixe que solte a água. vinagre de Jerez e mexa bem. Coloque a
6. Adicione o caldo da codorna e deixe reduzir manteiga de garrafa e o abacaxi cortado ,
até a metade. Acerte o sal e a pimenta. em pedaços de 3 cm e misture tudo.
Acerte o sal e a pimenta e reserve.
Rale as castanhas-do-pará em um
Para o creme de taioba Microplane e reserve. Aqueça levemente
o creme de taioba.
Ingredientes
Montagem
50 g de cebola, 300 g de folhas de taioba,
50 g de manteiga sem sal, Em um prato, espalhe o creme de taioba
q.b. de sal, q.b. de pimenta-do-reino em forma de risco. Escorra do molho alguns
cogumelos e pedaços de abacaxi.
Preparo Coloque 2 pedaços de codorna.
Faça um risco com o molho em volta do prato.
1. Descasque e pique bem a cebola e reserve. Em cima de um pouco de castanha ralada,
2. Corte as folhas de taioba grosseiramente. coloque uma quenelle do sorbet de abacaxi.
3. Branqueie-as em água com sal Moa pimenta-do-reino sobre
por 30 segundos e escorra bem. o sorbet e finalize com folhas de cenoura.
,361
das reformas previstas, ou possíveis, ou urgentes;
• da higiene pessoa
362
• do ambiente de trabalho (saber se tudo está
organizado, limpo e no devido lugar).
363
crista de gao
com caviar e
olhas de oitanaa
Ingredientes
364
Preparo
1. Corte fatias de 1 cm das cristas de galo
previamente confitadas. Reserve.
2. Refogue a ceboia e a manteiga,
adicione as cristas de galo e,
sem deixar ferver, junte vinho branco
e cozinhe até o álcool evaporar por completo.
Este processo deve ser feito
com bastante atenção e delicadeza,
pois temperatura e acidez
são inimigos de gelatina.
É fundamental para o sucesso da receita
preservar a gelatina do ingrediente.
3. Rapidamente retire as cristas,
acrescente a manteiga gelada
e vá emulsionando até obter uma
textura bastante aveludada.
Corrija o sal, coloque o vinagre e reserve.
365
gestão e administração
Conheço poucas pessoas que sabem administrar
u m restaurante. E u m negócio complicado, no qual você
quase nunca tem certeza do que vai vender. Sei que há
softwares que funcionam muito bem para restaurantes
que trabalham com porções idênticas, como os fast-food,
mas eles não são tão preciosos para todo o tipo de negócio.
Num bufe, as coisas são mais simples: quando contratam
seus serviços, você tem uma estimativa muito próxima
do número real de pessoas que vai servir (e se esse número
for ultrapassado, está no contrato que você será ressar-
cido). Assim, no momento da compra, você é capaz de
calcular as quantidades (para não faltar nem sobrar em
demasia). N u m restaurante, o cenário é muito diferente.
Você não consegue ter uma ideia clara de quantas pessoas
v a i servir. Além de estar lidando com u m complexo
universo de setores (como o agrícola e o humano) de
difícil calibragem e com grande margem de erro.
U m restaurante gastronómico tem ainda outro
complicador: o padrão das receitas. Quando compro
u m robalo, por exemplo, não posso servir o lombo para
u m cliente, o rabo para outro e a cabeça para u m
terceiro. Meu cliente, sobretudo o que compra o prato
mais caro da minha casa, o menu-degustação, vai pagar
u m preço fixo por aquele conjunto de pratos e tem de
receber pratos idênticos ao de seus companheiros de
alegria. Outra especificidade desse negócio são os altos
índices de pericibilidade dos itens estocados.
366
Para se ter uma ideia, temos no D.O.M. mais de mil
itens no estoque que terão de virar um número x de
refeições todos os dias. E o fator custo de cada porção
não é igual. Meus anos de experiência na administração
de restaurantes me mostraram que, para gerir uma casa,
temos de entender que, nesse negócio, um dia é total-
mente diferente do outro. Na hora de encontrar o ponto
de equilíbrio do seu restamante, você não tem de se fixar
num ponto, porque ele é muito difícil de ser enxergado,
e sim numa faixa.
Vou tentar explicar isso com um exemplo. Vamos
supor que meu restaurante estável, com mais de 80
por cento das mesas ocupadas todos os dias, tenha um
custo fixo de R$ 100 mil ao mês. No mês em que eu
atender 2 mil pessoas, terei um índice - que chamaremos
de ^'•fator custo" - de R$ 50 por pessoa. No mês em
que eu atender 5 mil pessoas, esse "fator custo'' de
operação per capita será igual a R$ 20. Ou seja, com
tickets médios da mesma grandeza obtive margens de
lucros diferentes. Não é possível prever se vou atender
2 mil ou 5 mil pessoas em um mês para calcular quantos
dias tenho de trabalhar para pagar as minhas contas
fixas, meus gastos operacionais. A partir de que dia
começo a ter expectativa de lucro? Devo pensar em
uma faixa de equilíbrio, que vai variar de mês a mês,
como indicado no esquema a seguir:
367
/
1 kg de abóbora pescoço
200 ml de suco natural de tangerina
q.b. de sal
q.b. de pimenta-rosa
pistilos de flor de calêndula
Preparo
Preparo
Montagem
369
Para o consome
Ingredientes
600 ml do caldo do cozimento da paca
q.b. de canela
1 anis-estrelado
8 folhas de estragão
q.b. de sal
2 claras de ovo
creme azedo
q.b. de cebolinha verde
1 flor de dill
Preparo
1. Aqueça o caldo. Em seguida,
clarifique-o e aromatize com a canela,
o anis-estrelado e o estragão.
2. Corrija o sal e leve à geladeira.
3. Sirva gelado com creme azedo
e uma flor de dill.
Preparo
Com a ajuda de um fuet, bata em um bowl
o creme de leite com uma pitada de sal
até que fique com consistência cremosa,
mas ainda líquida. Tempere com o
suco do limão e reserve.
Montagem
Em uma taça, coloque um pouco
do consome gelado. Adicione com cuidado
1 colher do creme azedo,
para não misturar com o consome.
Aplique a cebolinha verde
e finalize com 1 flor de dill sobre o creme.
371
Dial Ponto de equílibrio Dia 30
373
cristas com ho andaise
sem ovo e
embrionário
Ingredientes
construindo um time
Sempre que montamos equipes para empresas de
serviço - e um restam^ante é um negócio desse tipo não
podemos perder de vista que dependemos diretamente
de seres hmnanos. e eles é que garantirão o bom resultado
do nosso negócio. Portanto, treinamento é fundamental.
Cerca de 80 por cento dos funcionários do D.O.M. come-
çaram como estagiários e já passaram pela lavagem de
Dratos. Saber do processo desde o seu início, desde a
3ase, é sem dúvida uma boa forma de treinar e dar
uma visão ampla ao funcionário.
Além de treinar hem cada iiicli\T'duo, você precisa
conhecer cada membro da sua equipe e saber qual a
função que cada um exerce l3em. E preciso conviver um
certo período com as pessoas para salDcr como elas são.
Depois de algum tempo, você vai notar que terá pro-
fissionais melhores, profissionais piores e profissionais
polivalentes. Vamos imaginar uma situação hipotética:
há na sua equipe um indivíduo que ti'al3allia muito rápido
e outro que é um pouco mais lento. Os dois garantem
resultados muito bons, com velocidades diferentes. E
responsabilidade do chef colocar o mais ágil para trabalhar
na parte que exige maior produção de sua cozinha ou
salão. O profissional mais lento deve ser destacado para
uma parte da cozinha em que a menor produção não seja
377
de porco e foie qras
com feijão-preto
e azeite de
Dimentas brasileiras
Para o foie gras com pé de porco
Ingredientes
200 g de foie gras
1 pé de porco do cozimento do feijão
300 mi de caido de feijão-preto (ver pág. 210)
q.b, de doce de laranja (ver pág. 134)
brotos de saisão
azeite de pimentas brasileiras
Preparo
1. Recupere os pés de porco cozidos em feijão-preto.
Ainda mornos, desosse-os com delicadeza.
2. Em temperatura ambiente, sobreponina o
pé de porco em um escalope de foie.
3. Leve ao vácuo em potência máxima e cozinhe
a 60 graus por 20 minutos no termocirculador.
4. Resfrie. Em seguida, corte e apare as fatias.
379
mn estorvo para o bom andamento do trabalho. Posicionar
estrategicamente seus funcionários é um quebra-cabeça.
Mas o quebra-cabeça bem montado resulta em uma equipe
eficiente cujos resultados são altamente satisfatórios.
Muitos administradores de restaurante tendem a
contratar a peso de ouro funcionários importantes de
casas concorrentes, esperando que um único profissional
vá resolver o problema de seu endereço. Esse talvez
seja o erro mais recorrente no ramo. Nesses anos, v i
excelentes profissionais de algumas casas se tornarem
quase inativos em um novo endereço. E impressionante,
mas se você junta dez cozinheiros e pede que executem
a mesma receita, com os mesmos ingredientes, terá dez
versões do mesmo prato. E m outras palavras, cada
casa é uma casa, e um profissional que se adapta bem
a uma equipe não é garantia de sucesso em outra. Daí
minha insistência em reforçar que a construção de um
time é um processo lento. E sempre vale investir nas
pratas da casa.
Não por acaso, chefs de grande gabarito (ou melhor,
chefs de todos os gabaritos) têm como subchef alguém
que só trabalhou com eles, ou que está com eles há anos.
Equipes maduras tendem a ser formadas dentro do
próprio estabelecimento. De maneira exagerada, costumo
dizer que equipes e bons profissionais não são formados,
são forjados. Com fogo, pancada e água fria, tal qual
uma faca. A boa qualidade do aço é que determina o
fio, a boa qualidade da fibra humana é que determina
a boa brigada. Mas nunca esqueça que, como chef.
cabe a você a função que cabe ao cabo da (boa) faca.
380
derando um e
Liderar um time é levar a sério a brincadeira do
''siga o mestre''. Quando você tem uma equipe sob seu
comando, o mestre é você. Por esse motivo, sua postura
é fundamental.
No dia-a-dia é importante estar atento à forma como
você age e até como pensa. Passar a imagem de um
guerreiro, de uma pessoa otimista, é fundamental. Como
indivíduo, você tem o direito de fazer o que bem entender,
porém, diante da sua equipe, deve medir seus atos, porque
nos melhores e nos piores momentos de seu dia e de sua
profissão sua atitude estará sendo observada por ela.
Então seja vigilante com você. Suas atitudes (nos dias de
euforia ou nos de derrota) serão absorvidas por seu time
e terão forte impacto no comportamento do grupo. Um
time bem liderado começa com um líder íntegro.
E importante ter um sistema de educação, uma
brmabem compreendida de transmitir seu conbecimento,
de imprimir sua liderança. Em algumas situações, não
corrijo o erro. Deixo que o aprendiz o cometa. Errar pode
ser muito educativo. Quem não erra, não aprende. O líder
tem de dar a direção, indicar o erro, ser vigilante na prática
e na informação do conhecimento para que as mensa-
gens sejam bem transmitidas. Numa cozinha, o chef é
o controle de qualidade final, e ele tem de garantir que
seja extraído o melhor de sua cozinha, de sua equipe.
Liderar bem a equipe não é só fazer com que o grupo
de cozinheiros e de funcionários do salão desempenhe
381
120 ml de creme de leite
50 g de manteiga sem sal
O ingrediente no se
me nor momento
Não tem erro. H á sempre uma barraquinha na
praia que faz u m peixe melhor do que as outras
(e é sempre a mais concorrida). O motivo é simples:
certamente nessa barraca há alguém que acorda cedo
para esperar os pescadores chegarem, escolhe o melhor
peixe, limpa-o da maneira certa, acondiciona-o da forma
adequada, aquece o óleo na temperatura apropriada
para fritura, tempera o peixe na justa medida, frita-o
pelo tempo exato que a receita manda, coloca-o em um
prato limpo e passa para outra pessoa que, sem demora,
pega o prato pronto, montado e ainda quente e o leva
Drontamente ao cliente. Isto é gastronomia: compreender
3em o ingrediente, fazer uma boa compra, prepará-lo
384
da maneira correta, entregá-lo com rapidez para ser
saboreado. Em outras palavras, levar o ingrediente
a seu melhor momento - para a alegria e o prazer de
outra pessoa.
Bons cozinheiros não fazem milagres. Eles trabalham
a favor de uma receita. Para isso, é preciso exercitar
exaustivamente, ser minucioso, estar atento a todos os
detalhes. Perfeição não existe. Mas é obrigação de um
bom cozinheiro chegar muito perto, a milímetros dela.
Com a evolução e a alta exposição que os restaurantes
ganharam nos últimos tempos, as receitas evoluíram,
os equipamentos estão cada vez mais sofisticados e
pratos do cotidiano foram incorporados, com nova
leitura, aos restaurantes gastronómicos. O que se faz
nessas casas é então levar os ingredientes ao seu
momento apoteótico, ou, usando uma expressão que
cunhei, ''exponencializando"" o sabor natural de cada
um deles. E não apenas no ato de cozinhar, mas na
gestão de todo o processo.
Donos de restaurantes, cozinheiros têm a missão
de gerenciar esses processos. Se, como ocorre com o
melhor peixe da praia, houver cuidado na compra -
se possível em contato direto com o fornecedor - ,
no trato com o ingrediente (seja na limpeza, seja no
acondicionamento), no prep aro e na entrega, certamente
sua "barraquinha" será a mais concorrida. E é muito
importante respeitar o ingrediente. Não interessa se é
caro ou barato. Se for compreendido e bem executado,
o ingrediente se tornará sublime, independentemente
de quanto foi pago por ele.
385
Aqui vale lembrar também que no ramo de restau-
rantes a chegada da tecnologia melhorou a qualidade
do trabalho. Os benefícios da internet hoje são inegáveis,
tanto para a velocidade de comunicação como para
reservas, organização, conhecimento, pesquisas de
mercado. Há, a cada dia, melhores ofertas de equipa-
mentos tecnológicos que minimizam custos para cozinhas,
ajudam no melhor aproveitamento de cada ingrediente,
e muitas vezes - e este é o ponto mais relevante - nos
permitem chegar a resultados que métodos tradicionais
não nos proporcionavam. Nessa hora, eu sou um
apaixonado defensor da tecnologia na cozinha: temos
de ir cada vez mais longe (e a tecnologia está aí para
nos auxiliar).
Gastronomia é então estar atento a todos os momen-
tos do processo para saber usar o que há de melhor no
mercado em benefício do ingrediente e, acima de tudo,
em benefício do comensal. Afinal, a gastronomia só nasceu
- e se desenvolve a cada dia - porque a certa altura os
homens resolveram modificar os ingredientes crus para
terem uma vida mais confortável e, principalmente,
prazerosa. Depois que descobriram que essa viagem
levava a lugares impensáveis, nunca mais deixaram
de voltar à mesa para continuar a jornada. A nós,
cozinheiros, cabe indicar caminhos e abrir novas rotas.
388
o que e mais importante,
o ovo ou a trufa?
A trufa branca custa em média US$ 5 mil o quilo.
Conforme o ano, esse preço varia para cima ou para
baixo. Seu melhor momento é acompanhada de um
ovo frito - talvez o ingrediente mais comum e,
certamente, um dos menos custosos de uma cozinha.
Claro, é muito importante escolher a trufa e o ovo
usados no preparo do prato. Isso faz toda a diferença.
Mas a parceria é um clássico. Sempre que estou diante
dessa mistura impecável me pergunto: o que vale mais,
o ovo ou a trufa?
Por trás dessa questão há muito do conceito de um
restaurante gastronómico. Esses endereços se propõem
a fazer de uma refeição um momento especial. Para
isso, elevam-na à qualidade de jóia luxuosa, rara.
Como? Levando em consideração todos os detalhes.
Restaurantes gastronómicos servem luxo no serviço, nos
cristais, nas receitas mais laboriosas, nos ingredientes
mais exclusivos, nas combinações extravagantes e
surpreendentes. Um bom momento em uma dessas
casas ganha status de suvenir, que se fixará para sempre
na memória do comensal.
Para que esse resultado seja alcançado, é muito
importante ter noção do conjunto. O que vale para nós,
administradores de restaurantes gastronómicos, é o
conjunto e sua perfeita harmonia. Por isso, considero
389
ovo perteito com
cuitlacotche
4 ovos de 30 g cada
q.b. de sal maldon
q.b. de pimenta^do^reino
q.b. de brotos de coentro
q.b. de flores de manjericão
azeite de oliva extra-virgem
2 espigas de cuitlacotche
1 pimenta-malagueta pequena
% de cebola
meio dente de alho
meia folha de louro
5 grãos de pimenta-do-reino
q.b. de sal
4 folhas de gelatina
Preparo
Finalização
Montagem
391
emblemática a pergunta que faço, de tempos em tempos,
diante do casamento inabalável e perfeito do ovo com
a trufa branca, por conta da reflexão que ela esconde.
O fato de a excelência da trufa se evidenciar junto com
um dos ingredientes mais básicos da cozinha nos dá
uma grande lição: de que a força está no conjunto.
Na hora de montar a despensa de uma cozinha
gastronómica, o preço costuma ser o que menos conta.
E gostoso trabalhar com ingredientes caros e raros,
mas também é importante saber o valor (e há muito
valor) dos mais simples. A atenção que você deve ter
ao preparar trufas, caviar ou foie gras deve ser igual à
dada na execução de uma farofa, um ovo, um bom
arroz ou um pão.
Um restaurante gastronómico prima por cada
detalhe porque sabe que a grandiosidade do conjunto
não é composta somente de alguns e poucos ingredientes,
mas da totalidade de (bons) ingredientes que existem
a nosso dispor. E, sobretudo, da totalidade da deliciosa
experiência de uma refeição perfeita, que será lembrada
para todo o sempre (e, algumas vezes, não só pela comida,
como também pelo conjunto da obra, que inclui, é claro,
boa companhia).
chinue?
A palavra chique'' vive na boca das pessoas. E
muitas vezes ela é relacionada a um restaurante. Fala-se
em ir a um restaurante chique, como é chique comer em
392
4 ovos de 30 g cada Derreta a manteiga de garrafa em
q.b. de manteiga de garrafa fogo baixo. Retire um pouco da água
100 m! de essência de legumes tostados do Roner e coloque em um bowl.
(ver pág. 45) Abra os ovos dentro da água para que
q.b. de trufa preta soltem o excesso da clara.
q.b. de sal maidon Aqueça a essência de legumes tostados,
q.b. de pimenta-do-reino sem ferver.
1 pomfret
q.b. de sal
q.b. de pimenta-do-reino
q.b. de óleo de canola
1 limão
Preparo
396
importa se o acompanhamento for um kobe bife ou uma
colherada de caviar fresco e raro. O que quer que seja
servido com esse caldo, a meu ver, passa a ser acom-
panhamento. Para mim, luxo é o trabalho, a elegância,
o extrato que retiramos desses legumes (com essa técnica
simples, sofisticada, mas muito bem executada).
Há no mundo grifes famosas que estão sempre
associadas ao que se entende por luxo. Prada, Gucci,
Hermes, Louis Vuitton. O legal é lembrar que por trás
desses nomes existiu uma pessoa, um senhor que se
chamava Prada, outro chamado Gucci, o senhor Hermes
e o senhor Vuitton. Esses quatro senhores tinham
um ponto em comum: eram artesãos do couro, faziam
selas, botas, sapatos, malas e outros artigos com ele. A
qualidade do trabalho que realizavam com a matéria-
prima existente fez diferença e elevou o status de seu
produto no mercado. Certamente, para ganhar espaço
eles garimparam bons fornecedores, descobriram boas
linhas e agulhas para bem traballiar o couro. Desenvo -
veram (ou estavam atentos a) um maquinário ideal
parabém trabalhar amatéria-prima. Enfim, escreveram
uma receita, criaram um padrão de altíssima qualidade.
E isso lhes rendeu o lugar mais alto, aquele que é dado
aos campeões, aos que nunca passam.
administrando crises
Vida longa. Esse deve ser o grande objetivo de um
restaurante. E não há vida longa sem pequenos - e
397
3 cebolas, 25 g de manieiga.
50 ml de vinho branco seco,
500 ml de caldo de frango (ver pág. 40),
1 folha de louro, 1 ramo de tomilho,
q,b. de sal - • •
400
Crises - assim como os melhores momentos de
nossas vidas - acabam por ser adniinistradas e superadas.
Dependendo da atitude que você tiver diante delas,
podem passar mais rápido ou mais devagar. Diante de
uma crise, não se intimide e seja rápido. Arregace as
mangas, dê o melhor de si, não ceda. Concentre-se no
que sabe fazer melhor: cozinhar. Experimente. Se todas
as suas tentativas derem errado, transforme isso numa
grande piada. Enfim, tenha perseverança e faça a sua
parte. O resto acaba se resolvendo.
401
sua de oorco
403
igual ao do meu cliente mais pobre, da minha amiga
mais feia, ou do homem mais anónimo e desinteressante
da face da Terra.
Fico contente com as noites que passo em claro,
excitado com um bom trabalho realizado. Essa noite
não-dormida vale mais ainda se soubermos que o dia
seguinte está bem programado. E isso pode acontecer
num dia excepcional, em que clientes famosos vieram
(e proporcionaram momentos incríveis e promessas
que dificilmente serão cumpridas), ou numa noite
regular, em que pessoas sem maior brilho lotaram seu
salão, saíram felizes e pagaram. A real felicidade de um
restaurante são clientes contentes (independentemente
de quem sejam) e caixa cheio. Há motivos menos nobres
que tiram o nosso sono. No dia do erro, em que tudo
parece ofimdo mundo, também é difícil pregar os olhos.
Há ainda as noites de insónia que antecedem um almoço
de acerto de um negócio importante, o encontro com
uma pessoa cujo trabalho você admira, ou qualquer
outro motivo que realmente o empolgue.
Também é do negócio perder uma noite de sono por
causa de um cheque a pagar. Apesar de estar há quase
20 anos na profissão e ter um restaurante de sucesso,
há dias em que preciso correr atrás do dinheiro para
cobrir um cheque. Isso é do ramo, não tem jeito. E, embora
já seja raposa velha, eu ainda sinto o frio na barriga, a
tensão da espera do outro dia, da outra jornada, da
ansiedade de fazer tudo direito e ter o retorno merecido.
Em várias noites durmo com um gosto amargo na
boca. E não por conta de uma questãofinanceira,mas
404
do elo de confiança que se estabelece entre você, o cliente
e o seu funcionário toda vez que as portas de seu restaurante
se abrem e as pessoas começam a chegar. E quanto mais
famoso o seu endereço fica, mais clientes entrarão por
sua porta, e menos espaço para o erro você terá. Garantir
que a máquina funcione perfeitamente, e do melhor
jeito possível, todos os dias (no almoço e no jantar), é
um grande gerador de ansiedade.
Uma noite sem dormir pode vir de centenas de
outras coisas, de uma resposta errada que você ouviu
ou que deu, de uma mesa que você pretendia agradar
e não agradou, de um detalhe mínimo que comprometeu
um bom serviço por falta de perícia da equipe ou por
causa da intolerância de um cliente.
Falo tudo isso para lembrar que os dias se sucedem,
e os acertos também. Os erros acontecem e devem ser
evitados (ao máximo). Os dias sem dormir - por bons
ou maus motivos - vão acontecer. A vida inteira. Isso
também faz parte da vida do chef e do restauranteiro.
missão e ti osotia
Quando pensar em um restaurante, saiba que não
é só sua comida que vai atrair o cliente. Há algo que
está além da boa comida. O que atrai o seu cliente é a
mensagem que você deixa na mesa depois do jantar.
Essa mensagem, que chamo de missão, tem de ser
conhecida e bem resolvida antes de o restaurante estrear.
E muito importante escolher uma missão que perfile
405
Ingredientes Para a abobrinha
10 g de alga hijiki Ingredientes
10 castanhas de caju
50 ml de concentrado de tangerina 1 abóbora caipira
Tabasco
6 folhas de coentro Preparo
4 cabeças de lula cozidas a frio (ver pág. 117)
10 g de tobiko (ovas de peixe-voador) Corte a abobrinha em lâminas,
broto de beterraba no sentido do comprimento,
broto de coentro com uma mandolina,
broto de cenoura na espessura de 1 mm. Reserve.
broto de poejo
broto de trevo
broto de rúcula Para o vinagrete
broto de girassol de pimenta-de-cheiro
flor de amor-perfeito
flor de calêndula Ingredientes
flor de capuchinha
flor de violeta 250 ml de vinagre de vinho tinto, 100 g de açúcar,
flor de cravina
50 ml de óleo de pimenta-de-cheiro
q.b. de sal maldon
q.b. de pimenta-do-reino
Preparo
Ingredientes Finalização
407
com você como chef ou dono de restaurante. A crença e
a fidelidade nessa filosofia são o que você vai transmitir
3ara o seu cliente. São a imagem de seu restaurante.
Para o reconhecimento de seu negócio, é fundamental
ter u m a missão, seja ela tradicional, seja criativa ou
inventiva. E é importante também reafirmá-la todos os
dias para a sua equipe, seus clientes, jornalistas, para
todas as pessoas que giram em torno desse universo.
Trata-se de u m passo lento, demorado, u m caminho
longo que deve ser pontuado e bem sedimentado.
Quando pensei em abiir o D.O.M., nos idos de 1999,
conversei com u m destacado jornalista gastronómico
sobre a minha ideia iniciaL de criar u m restaurante brasi-
leiro. Na época, eu já era reconhecido por u m trabalho
de cozinha contemporânea. Fui então aconselhado a fazer
u m restaurante de cozinha contemporânea com toques
Drasileiros. A b r i r uma casa com u m a proposta m u i t o
diferente da que eu estava praticando até aquele
momento, me disse o sábio jornalista, ia confundir o
meu cliente. Pensei bastante e acabei por seguir o
conselho dele, o que se revelou u m b o m negócio. Com
o tempo, f u i i m p r i m i n d o com mais força a missão do
D.O.M. Hoje, dentro dos parâmetros dos grandes restau-
rantes contemporâneos, minha missão é fazer o resgate
da cozinha brasileira, levar para o prato do comensal os
sabores que trago da minha infância e de minhas andanças
pelo Brasil. Minha preocupação é retratar os ingredientes
brasileiros, com seus sabores únicos, e elevá-los ao pata-
mar de alta cozinha. Como u m restaurante gastronómico,
essa é a missão do D.O.M.
408
A filosofia do meu restaurante é mostrar que nossa
maior riqueza está na natureza, nos produtos que nascem
e crescem no Brasil. A relação de interdependência
entre u m bom produto e uma grande cozinha me faz
lembrar uma cobra que morde o rabo. A filosofia do
D.O.M. nada mais é que evidenciar esse elo entre o
bom ingrediente - e sua procedência - e a gastronomia,
exponencializar o prazer de estar à mesa comendo o
produto naciona .
E importante ter em mente que a definição do
conceito ou missão e da filosofia de sua casa é que vai
moldar a espinha dorsal do seu restaurante, vai definir
a imagem que ele provavelmente terá para o cliente,
para os guias gastronómicos, para as páginas da
imprensa especializada.
Só para dar u m exemplo externo à minha rotina,
quando você escolhe o conceito ou missão do restaurante
italiano, ainda não definiu a filosofia, o perfil de sua
casa. Embaixo desse grande guarda-chuva, existem
regionalismos, as diferenças da cozinha de cantina
(que é, no final das contas, uma cozinha caseira) e de
restaurantes tão finos e gastronómicos, como o Fasano.
Há muitas possibilidades. Tanto as cantinas como os
restaurantes de massa italianos, assim como o Fasano
e seus similares, têm o mesmo conceito, mas nem por
isso dividem a mesma filosofia.
Missão e filosofia (quando bem definidas) funcio-
nam como u m bom GPS. N u m momento em que u m
modismo (de u m novo ingrediente, forma de servir,
3ebida), uma questão arquitetónica ou de decoração
409
saada de cataonha,
crocante de cupim,
gelatina de pato e
maracu á doce
Ingredientes
1 cupim congelado
1 maço de catalonlia
3 maracujás doces
200 ml de gelatina de pato
q.b. de azeite
q.b. de sal
q.b. de sal de especiarias
q.b. de pimenta-do-reino
Preparo
Para o vinagrete
Ingredientes
1 limão-rosa
1 maracujá doce
q.b. de azeite de oliva extra-virgem
10 grãos de aroeira ou pimenta-rosa
Preparo
412
têm um prazer quase do mesmo tamanho por estarem
num lugar onde as pessoas dizem que a comida e o
vinho são o máximo; e há aquelas que não se importam
nem com a comida nem com o lugar (não acordaram
3ara o prazer de comer).
O paladar é um universo a ser desenvolvido, é
um sentido a ser expandido, é real fonte de prazer.
Se alcançarmos os limites do prazer, o que menos
importará é o preço a ser pago pelo que se come. Por
estar totalmente envoKddo na rotina caótica e frenética
de restaurantes gastronómicos, poucas vezes sou
surpreendido por pratos. Em geral meu prazer está em
comer fruta madura tirada do pé (simples assim). Mas
me rendo e me ajoelho - e peço para conhecer o chef
- sempre que sou surpreendido por uma nova receita,
3or um novo jeito de preparar um antigo alimento, ou
3ela simplicidade de um preparo que foi bem compreen-
dido por um parceiro de trabalho.
E por essas e outras que defendo que um restaurante
como o D.O.M. não deve ser uma extensão de sua casa.
A cozinha que pratico todos os dias está longe de ser a
que sirvo para meus filhos em casa. Não penso que
esteja falando algo contra mim. Acredito que a comida
que fazemos serve para os momentos de celebração. E
que todo restaurante com esse perfil tem de funcionar
para que assim seja. Celebrações, para pessoas de todas
as classes, cores e religiões, são momentos em que empe-
nhamos o melhor de nós e não medimos gastos. Nessa
hora, o caro é menos importante do que a qualidade do
que é entregue.
413
barriga de son
a 54° ga
mandioca e
ne; cozinna
saao e ambiente
Há uma brincadeira feita entre donos de restau-
rante que diz que, para avaliar uma boa casa, é preciso
saber a porcentagem de clientes que comem bem, a
porcentagem dos que comem muito bem, e a daqueles
que comem excepcionalmente bem (que é o vértice dessa
3Írâmide hipotética). Os bons endereços são os que têm a
maior porcentagem de clientes possível no vértice.
A realidade apresenta dificuldades que implicam
oscilações nesses números. Seu restaurante vai ganhando
estabilidade conforme sua equipe se solidifica. De tempos
em tempos, você perde uma noite de sono por conta de
uma pessoa que foi embora. Em seguida, vem a gratidão
416
de achar um bom substituto. Ninguém é insubstituível.
Essa é uma verdade que as equipes e suas oscilações
acabam por lhe mostrar.
O sucesso de um restaurante não está só na cozinha,
só no serviço do salão, ou só no ambiente. E o equilíbrio
desse tripé que vai levar sua casa longe. E para a equipe
funcionar bem é preciso que todos estejam bem
informados de sua filosofia - e sejam fiéis a ela. Para
uma churrascaria, um boteco. uma casa de menu fixo,
ou p ar a um restaurante gastronômic o, é muito imp ortante
que cozinha, salão e ambiente sejam coerentes com o
serviço que o endereço propõe. E comum vermos restau-
rantes belos, suntuosos, refinados, mas com cozinhas
modestas; outras vezes, restaurantes simples têm cozinhas
exageradas. Relações mal proporcionadas são, muitas
vezes, a razão da ruína de casas.
O ambiente costuma ser a última parte a ser formada
em um restaurante. Sua clientela se forma todos os dias.
Se a proposta de sua casa for bem compreendida e bem
difundida por sua equipe, o ambiente de seu salão, seus
clientes, se alinharão com ela. E você se alinhará com
seu cliente. E com a prática diária que você aprende
quem é o frequentador de sua casa e o que deve fazer
para ele gostar cada vez mais do que você faz. Ter clientes
contentes com o seu trabalho faz seu nome circular,
enche sua casa. Esse é um setor de que você tem de
cuidar, sempre.
Com uma casa funcionando a todo vapor, o serviço
será o ponto mais sensível. Ele é totalmente apoiado no
elemento humano, imponderável. Mas, quanto maior o
417
terrine de foie gras,
rabanada e manqaba
Para a terrine de foie gras
Para a rabanada
ingredientes
1 brioche, 1 ovo,
200 ml de leite, 20 g de açúcar,
manteiga noisette (ver pág. 382)
Preparo
1. Corte o brioche em palitos.
2. Passe em uma mistura de ovo, leite e açúcar e doure na manteiga preaquecida.
Finalização
Corte o foie em retângulos idênticos aos da rabanada.
Montagem
Coloque 1 pedaço de terrine de foie gras no prato com a gelatina gelificada,
Disponha a rabanada conforme a foto, pingue a redução
de vinho do Porto e espalhe algumas folhas tenras de alecrim.
Finalize com o sal maldon e grãos de pimenta-do-reino mignonette.
Ao lado, faça uma salada com os brotos de salsão,
as flores de jambo e as pétalas de rosa.
419
V.
caDita socia
Se, do ponto de vista do lucro, restaurantes não
são negócios estáveis, há u m a área em que nenhuma
profissão bate esse negócio: no número de pessoas
interessantes que passam por sua casa. U m dos maiores
Denefícios que u m restaurante pode nos dar é o convívio
com os que freqiientam seu salão e, desse conhecimento,
gerar combustível para o seu motor restaurante.
420
Em seu restaurante você vai conhecer e se aproximar
de muitas pessoas, uma vez que o que você vende
é o que elas querem comprar e desfrutar. Com esses
conhecimentos, poderá até formar uma ótima rede que
vai proporcionar boas oportunidades e até a possibilidade
de fazer bons negócios.
Por outro lado, é importante que o chef, o cozinheiro,
o maitre e o dono do restaurante sempre lembrem que,
se sua casa é freqiientada por estrelas, gente famosa e
bem relacionada, você não é nada disso. Conheço casas
que foram a pique, mesmo tendo o tripé cozinha, salão
e ambiente bastante eficiente, porque os chefs ou pro-
Drietários confundiram os clientes com a sua vida real.
Se o seu cliente tem muito dinheiro, status ou fama, ou
qualquer outro valor, lembre-se de que você está lá para
recebê-lo, mas não é parte integrante da vida dele.
Com os anos, talvez isso até possa acontecer, mas
esse processo é bastante lento. E para você chegar a
esse tão almejado status ou coisa que o valha, a melhor
'orma é saber usufruir do que um restaurante lhe traz.
Que não é exatamente dinheiro, e sim a possibilidade
de conviver com pessoas interessantes, inteligentes,
com boas ideias - e dinheiro também -, e a partir daí
formar um capital real para o seu negócio: o capital
social. Esse é o capital que você detém e os bancos não
oferecem - aliás, cobiçam.
421
Ingredientes
Preparo
Preparo
Finalização
423
caDita etetivo
Na hora de implantar um restaurante, é preciso fazer
muita conta. E saber exatamente do que se precisa,
o que pode ser reformado, o que pode ser reaproveitado.
O que realmente é útil, o que não passa de uma moda
momentânea, qual é o luxo que você pode se permitir.
Mesas, cadeiras, roupas de mesa, talheres, copos
costumam custar caro. Mas, uma vez em uso, não têm
o mesmo valor que tinham quando estavam nas vitrines
das lojas. Isso sem falar na cozinha. O metro quadrado
construído e equipado mais caro do mercado é o
da U T I hospitalar. E m seguida estão as cozinhas de
restaurantes. Para se abrir uma casa com uma cozinha
respeitável, é preciso que se faça u m investimento
considerável. O grande problema é que, se o seu restau-
rante for mal das pernas, não há nada que se receba
vendendo ou empenhando mesas usadas, cadeiras veUias,
copos dos mais variados tipos e tamanhos. EmlDora no
momento da compra isso tenha grande valor, na venda
vale muito pouco.
E muito importante que o dia-a-dia da sua casa
seja muito bem gerenciado. Em restaurantes vivemos
as agruras do mercado. Somos suscetíveis a épocas de
inflação, de estabilização de juros altos e baixos. E, em
teoria, você compra a prazo e recebe à vista. Isso, ao
contrário do que muita gente pode pensar, não é
garantia infalível de bons negócios. Tudo o que você
compra tem de vender. Para vender bem, é importante
426
comprar na medida do seu recebimento. Um bom fluxo
de caixa é importante e, para mantê-lo, é preciso prestar
muita atenção nas taxas.
Hoje, boa parte dos restaurantes recebe mais de
60 por cento dos pagamentos de contas via cartão de
crédito. Esse serviço é bastante seguro e eficiente, mas
caro para os proprietários das casas. Por isso, na hora
de gerir a compra e a venda é preciso estar atento aos
pequenos percentuais, ser bastante cauteloso, negociar
bem com todas as pontas.
O capital efetivo de seu restaurante não tem de estar
no que foi imobilizado dentro da casa, mas na vitalidade
de seu negócio, na possibilidade de longa vida de sua
proposta. Se a conta partir desses pressupostos, você
estará num bom caminho.
sem caDita
Todo dono de restaurante um dia fatalmente se
depara com a falta de dinheiro. Tenho algo a dizer
sobre esses dias. Sei que há restaurantes que só traba-
lham com dinheiro vivo. \ ã o emitem nem recebem
notas fiscais. São praticamente ilegais. Dá para entender
quem faz isso. Apesar da segurança que cartões de
crédito, vales ou outros recursos desse tipo podem
trazer, o custo da operação é bastante alto. Falamos de
considerável percentual do seu faturamento bruto
retido na hora do repasse da verba, com vinte dias de
prazo para pagamento. Cartões são uma grande forma
427
cupim com
puré de pequi
Ingredientes Faça um puré de batata e incorpore
o óleo de pequi batendo vigorosamente.
2 ka de cupim Reserve aquecido.
30 g de azeite de oliva
1 follia de louro
3 cebolas Retire o cupim do vácuo, pincele glacé
1500 ml de água de carne e leve à salamandra.
500 g de puré de batata
50 ml de óleo de pequi
sal maldon
Em um prato de serviço, disponha
Preparo o puré, tempere a carne com sal maldon
e, em frente ao comensal, regue com
Retire o excesso de gordura da carne o caldo de cozimento.
8 doure-a bem numa chapa. Leve-a à panela
de pressão com o alho, o azeite, o louro e a cebola.
Cubra com água e cozinhe até que brasileir:
fique macia. Resfrie.
Recupere o caldo de cozimento,
desengordure e clarifique. Reserve.
Com a carne ainda fria, corte-a em fatias de
3 cm de largura e em seguida em
retângulos de 3 por 5 cm.
Embale a vácuo e leve ao termocirculador
a 60 graus por 3 horas.
de divulgação do seu restaurante, de aceitação do seu
empreendimento junto ao público, no entanto são um
negócio caro. Saber mensurar os recebimentos de cartões
é bastante importante na rotina de seu restaurante.
Tudo isso para dizer que é proil3Ído pedir adianta-
mento do seu capital de giro à operadora de cartão. A
taxa que eles vão impor é nociva ao seu negócio. Nenhum
restaurante propõe tal margem de lucro. A menos que
seja vital para o seu empreendimento, essas antecipações
de cartão custam muito caro. O jogo sempre favorece a
banca, e acho que nos negócios o jogo sempre favorece
o banco. Aconselho atenção redobrada na hora de for-
mar o capital social. E dele que virá a vitalidade do seu
empreendimento. Não titubeie em baixar sua margem
de lucro, se for necessário.
O fundamental é estabelecer e reafirmar a relação
de honestidade junto a seu cliente. Para isso, nunca
abra mão da qualidade do que compra. Certamente
seu cliente tem em casa produtos de qualidade; não o
subestime fazendo compras de segunda. Se você fizer
boa utilização dessa compra, a má onda, assim como
veio, vai passar. Depois dela, como tudo na vida, novas
oportunidades surgirão.
432
de eaando
Uma das primeiras coisas que se aprendem muito
antes de virar chef é que o sucesso de uma cozinha, de
u m restaurante, é fruto do trabalho de equipe. Nenhum
ser humano sozinho consegue cumprir a contento todas
as etapas dos processos envolvidos em uma cozinha e
na rotina de u m restaurante. Nos restaurantes gastro-
nómicos, essa equipe é ainda mais numerosa, razão
pela qual é primordial aprender a delegar.
Para delegar, é preciso confiar. Para isso, você tem
de primeiro confiar no seu treinamento. E saber checar
se os fundamentos estão sendo bem executados. Checar
é, aliás, a grande função de u m chef. Ele tem de saber
de quem necessita e em que função, tem de dar autonomia
para aquele profissional realizar o trabalho da melhor
forma possível, mas não pode deixar de cobrar resultados,
de verificar; e também elogiar e repreender quando for
necessário (uma bronca ou u m elogio na hora certa
comprova que o líder está atento).
Como toda pessoa normal, o chef também não
sabe de tudo. U m homem virtuoso é aquele que sabe
que não sabe - já dizia o filósofo grego Sócrates. Mais
virtuoso ele será ainda se, quando não souber, contratar
quem saiba. Contudo, mesmo nessa hora é importante
que o chef saiba o que quer desse profissional. Quando
se é direto, se conhece bem cada necessidade, o momento
da contratação de u m profissional é muito transparente.
E fica fácil cobrar pela execução daquele trabalho.
433
po vo em baixa
temperatura e seu consome,
com caramelo de especiarias
puré de funcho
e qerqelim
Para o consome de polvo Para o caramelo de especiarias
Ingredientes Ingredientes
434
Limpe o funclio.
Numa mistura de água, vinagre, vinho,
sal e anis, cozinhe o funcho picado até ficar macio.
Escorra bem e descarte o anis. Reserve a água do cozimento.
Leve o legume ao processador até obter uma textura homogénea.
Acrescente o gergelim previamente tostado e a goma xantana
e misture bem. Caso necessário, escorra por 1 hora.
ao apresse o no,
ele corre sozinho
Além dos vários aspectos que discutimos até
aqui, novos empreendimentos têm, sem exceção, u m
ingrediente indesejável: a ansiedade. Tudo o que é novo
tem a pureza da adolescência, é natural. Quando era
menino, l i u m livro que mudou a minha vida: Não
apresse o rio [ele corre sozinho), de Barry Stevens,
(lançado em 1970 pela editora Summus). A grande
mensagem da obra zen está no título. E m u m restaurante,
há conquistas que levam u m tempo certo para se alcançar.
E u m caminho longo, cheio de pedras grandes e pequenas.
Sou ansioso por natureza e em várias ocasiões meti os
pés pelas mãos.
Muitas vezes me senti injustiçado, olhei trabalhos
reconhecidos que podiam ter ou não melhor qualidade
que o meu, cachei que eu merecia estar lá. A perseverança,
os anos de trabalho, a maturidade me mostraram que
essas coisas vêm no tempo correto. Ainda que eu
cozinhasse muito bem, precisava de amadurecimento.
Saber esperar o momento correto, não desistir, é a
melhor forma de vencer a ansiedade.
436
V.
deta hes
"detalhes tão pequenos de nós dois
são ooisas muito grandes pra esquecer"
Roberto Carlos
Sempre me pergunto onde está a perfeição de uma
refeição. Essa é uma busca incessante na minha rotina
de profissional da cozinha. Chegar o mais próximo
possível do perfeito é minha obrigação.
Com o exercício contínuo dessa busca, aprendi
que é verdadeira a frase ''Deus mora nos detalhes".
Toda vez que alcancei os mais altos patamares com
meu trabalho, cuidei de cada detalhe da receita. Nessa
hora, o imenso universo do prato (como será feita a
combinação de sabores, se as quantidades estão bem
proporcionadas, qual a melhor forma de apresentá-lo)
é apenas uma parte do quebra-cabeça. Os arranjos de
flores da sala, a limpeza do salão, o bem-estar dos
funcionários, a higiene dos banheiros, a forma como
as ervas foram guardadas e colocadas no preparo, como
437
Ingredientes
2 peitos de marreco
300 g de mandioca grande
1 manga
100 g de grãos de pimenta-do-reino preta
400 mi de licor de jenipapo
100 ml de gelatina de confit de pato (ver pág. 216)
broto de beterraba
broto de cenoura
broto de poejo
pétalas de minirrosa vermelha
q.b. de sal maldon
q.b. de sal
q.b. de pimenta-do-reino
Preparo
Finalização
Disponha os ingredientes
em um prato e regue levemente
com a gastrique de jenipapo.
Finalize com os brotos de beterraba,
cenoura e poejo,
as pétalas de minirrosa e flor de sal.
439
creme oe taioDa
e caviar
Ingredientes
50 ml de demi-glace (ver pág. 48)
60 g de caviar beluga
100 g de creme de taioba
440
o garçom apresentou o prato ao cliente, tudo, absolu-
tamente tudo, conta. O sucesso da refeição não está
somente dentro de um prato, mas no conjunto que se
chama restaurante.
Muitas vezes fui a grandes restaurantes e me vi
capaz de executar tudo aquilo que eu via dentro do
prato que estava à minha volta, mas não descansava
enquanto não achava a vírgula que conferia ao lugar uma
atmosfera diferenciada. Na restauração, na hospedagem,
na recepção de amigos ou de clientes, todos os detalhes
contam, e contam muito.
Na rotina do meu negócio dedico atenção redobrada
a detalhes como uma toalha bem passada, guardanapos
perfumados, banheiros limpos, minha equipe bem vestida,
o controle de qualidade muito exigente com os meus
fornecedores e com o resultado do meu trabalho. Um
pão com casca e aparência impecáveis não será notado
se o seu sabor for decepcionante. Cada detalhe do pão
garante a diferença do produto. O pulo-do-gato está em
cuidar de cada um deles. E no detalhe que você conseguirá
a exponencialização do sabor, e nessa hora todos os
sentidos têm de ser aguçados. Afinal, no frigir dos ovos.
são os detalhes que ficam impressos na nossa memória.
nstinto
Quando estamos totalmente envolvidos em um
trabalho, acontece de sentirmos o cheiro de algo sem sal^er
muito bem de onde ele vem. Esses momentos têm de ser
442
respeitados e levados em consideração. A íntima convi-
vência com determinado assunto desperta nossos instintos.
E importante segui-los, mas devemos ser sensatos.
Várias vezes, deixei passar ideias que surgiram no
calor da execução de uma receita e, logo em seguida, v i
outro colega executando o que deixei de fazer. A luzinha
passou e eu deixei de segui-la. Por outro lado, não há
como negar que parte do sucesso do D.O.M. veio da fé
que deposito nos meus palpites. Na rapidez com que
tomo decisões. Já dei u m passo no escuro, apenas
confiando no meu ti^aballio. certo de que acjuela proposta
acabaria por vingar.
Sempre tive muita garra, perseverança, mas não
posso dizer que trilhei caminhos que eu já conhecia
(ou antevia). Nunca planejei ser u m chef de gastronomia
brasileira. Na verdade, sempre fui u m péssimo planejador
da minha vida pessoal. Foi o instinto que me fez crescer
profissionalmente, e é ele que me guia na criação das
receitas, na hora de eu escolher uma boa isca, seja para
pescar, seja para atrair u m cliente. Quando percebi que
o ingrediente nacional era uma oportunidade que a
vida me oferecia, agarrei-me a ele. F u i me envolvendo
cada vez mais com os sabores, os temperos, as receitas
brasileiras, incorporando-os ao meu trabalho, valori-
zando-os, e acabei por abrir u m caminho. Não acordei
u m dia e pensei: "De hoje em diante só faço cozinha
brasileira''. Foi u m processo de evolução, aceitação e
afirmação dessa escolha.
Quando somos sérios e acreditamos no que fazemos,
as oportunidades surgem, e nessa hora o instinto é f u n -
443
damental para saber quais são boas e quais devem ser
deixadas de lado. Mas a vozinha só deve ser ouvida
quando seu coração estiver certo de que aquele é o
caminho correto. Do contrário, seja sensato e aja dentro
dos padrões de segurança. O instinto pode nos levar
longe. Mas, às vezes, nos leva mais longe do que queremos
estar, e aí fica difícil voltar.
nadando 3
Os horários do cotidiano de u m restaurante são
3 0 U C 0 compatíveis com entretenimento, especialmente
com o cinema. Assisti a poucos filmes na telona nos
últimos anos. Mas me lembro de u m com detalhes:
O filho da noiva. Estava n u m a semana estressada,
iteralmente nadando (ou perdido) com os afazeres do
D.O.M., então resolvi sair com minha mulher e ver u m
filme alternativo, produzido longe de Hollywood. Me
v i diante desse drama argentino que, entre outras
coisas, contava a história de u m dono de restaurante
egoísta, que vivia ao telefone resolvendo os problemas
de seu estabelecimento e tem u m enfarte por conta de
tanta pressão. Quando o filme t e r m i n o u , achei que
estava enfartando também.
O que acompanhei no filme argentino, na noite em
que tentei esquecer m i n h a realidade exaustiva, é u m
resumo do que significa "nadar'' no dia-a-dia d e u m
restaurante. Essa extenuante rotina é bem mais complexa
do que as pessoas imaginam. E é composta de mna série
446
de pequenos detalhes que têm de ser observados para
que tudo corra bem. Gomo amadurecimento da profissão,
do restaurante, do cozinheiro, a equipe tende a funcionar
melhor. E m c o m p e n s a ç ã o , o número de solicitações
feitas ao chef t a m b é m aumenta. D a í v ê m os primeiros
motivos para nadar: quanto melhor você fica, mais
solicitações recebe (e já começa a nadar), e, quanto mais
solicitado, menos tempo passa na cozinha (mais u m
round embaixo d ' á g u a ) .
Conforme f u i me aprofundando no projeto deste
livro, mais tempo passei nadando. Atualmente. nado
de frente, de costas, de lado. nado pelo fundo e pelo
raso, nado no escritório com e-mails, telefonemas,
afazeres, detalhes, negociações, nado com a m i n h a
vida, meus filhos, minha mulher, minha casa, com tudo
o que demanda a minha atenção, incluindo cachorros,
gatos, passarinhos.
Nado dentro da cozinha porque parte da m i n h a
personalidade é não deixar nada fora do lugar. Claro
que no D.O.M. as coisas não mudam de lugar de u m dia
para o outro, mas, quando passamos algum tempo fora
da cozinha, muitas vezes não lembramos onde guarda-
mos esse ou aquele apetrecho, onde fica essa ou aquela
erva, e aí a natação volta a tomar conta. E u m dia-a-
dia conturbado. O telefone talvez seja a m i n h a maior
ferramenta, e meu maior inimigo. Ele me torna acessível
e me dá acesso a todos o tempo todo. E não p á r a !
A natação tende a piorar nos períodos de grandes
eventos - ou nos meses de eventos sucessivos e, algumas
vezes, simultâneos - , quando escrevo livros, preparo
447
amoa
amo
Ingredientes
Preparo
Pré-montagem
Finalização
449
V.
assessoria ae imprensa
Um restaurante tem de ser divulgado. Clientes em
potencial têm que saber que o seu endereço existe. Não
há melhor forma de chegar à mídia do que através de
uma assessoria de imprensa. Escolher uma boa voz para
levar a sua mensagem para o grande público é uma
decisão importante. Mas antes de fazer isso é preciso
colocar a mão na consciência e avaliar se sua mensagem
tem mesmo capacidade de frequentar o grande público.
Uma boa assessoria de imprensa e uma má assessoria
de imprensa podem surtir efeitos idênticos, dependendo
do que você tiver a oferecer a elas.
Antes de contratar esse serviço, pense bem sobre
o seu trabalho. Leia jornais, revistas especializadas,
revistas de interesse geral. Avalie onde você pode aparecer
450
3elo trabalho que realiza. Feita a lição de casa, orce
o trabalho com algumas assessorias, ouça o que esses
profissionais têm a lhe dizer, o que eles prometem. E faça
a sua escolha.
Aos que acham que assessorias de imprensa são
capazes de operar milagres, tenho uma triste notícia a
dar: esses profissionais embrulham e vendem notícia,
informações, mas quem fabrica a matéria-prima para
eles divulgarem é você. Uma boa assessoria de imprensa,
com acesso aos jornalistas que redigem os melhores guias
de restaurantes, produzem programas de televisão, editam
jornais etc., pode, sim, colocar o seu endereço em evidência.
Porém, a informação que eles derem terá de vir da sua
cozinha, do seu salão, do conceito da sua casa. E será
confirmada pelo leitor que resolver conferir o que foi
Drometido pelo texto ou pela imagem. Aí, voltamos a
uma questão recorrente neste livro: não subestime seu
cliente, prime pela qualidade. E venda - seja no seu
cardápio, seja para o assessor de imprensa que contratar
- o que você é capaz de fazer. A freqíiência de sua casa
será conseqiiência de um bom trabalho de equipe que
você realizar junto ao seu assessor de imprensa.
vinhos 2
Os vinhos respondem hoje por uma representativa
parcela de lucro de um restaurante. A margem de lucro
expectada no vinho é bastante elástica com relação ao
preço da garrafa. Praticamos margens pecjiienas em
451
relação ao tamanho do escalope de fole.
2. Sobreponha os ingredientes, embale a vácuo em
potência máxima e cozinhe no termocirculador
a 60 graus, por 20 minutos, Leve à geladeira por 12 horas.
4. No momento do serviço, retire da embalagem,
corte e apare as fatias. Disponha em um prato e leve-o
à estufa a 50 graus até a hora de levar à mesa.
1. Dissolva o açúcar no vinagre.
2. Branqueie o wakame por 30 segundos.
3. Ainda quente, escorra e jogue na
marinada de Chardonnay. Sirva gelada.
Montagem
20 ml de shoyu
50 ml de shirodashi
200 ml de água
suco de limão
vinhos caros e mais avantajadas em vinhos de menor
custo. As chances de vendermos duas garrafas em uma
mesa de quatro pessoas são enormes. No caso dos
superalcoóhcos, como uísque e vodca, em que o lucro
por embalagem é quase três vezes ao do valor da
compra, a probabilidade de vender uma garrafa da
bebida em um dia é mínima. Ou seja, apesar do lucro
bem maior por espécie, uísques não chegam nem perto
da margem de lucro que conseguimos com vinhos.
Na Europa, o vinho não é taxado como bebida, e
sim como alimento. Com isso, as taxas que incidem
sobre cada garrafa são menos pesadas. No Brasil, a
legislação é diferente. Vinho é considerado bebida
alcoólica e tem seu preço bastante fermentado por taxas.
Para nós, que compramos em grande quantidade, ele
já vem caro. E ainda pagamos taxas sobre as garrafas
vendidas. Como dono de restaurante, no entanto, sou
bastante honesto ao reconhecer que, ainda assim, vinhos
oferecem boas margens de lucro.
Na hora de montar a carta de vinhos de seu restau-
rante, é muito importante ser coerente com sua proposta.
Se você tem um restaurante de comida barata, não
deve oferecer vinhos caros. Uma boa forma de balizar
essa relação é nunca permitir que uma taça de vinho
custe mais caro do que o prato mais barato que você
serve (nos casos de bar au vin.^ essa regra é diferente).
Com a explosão do consumo de vinho no Brasil
nos últimos anos, muitos clientes passaram a levar suas
próprias garrafas aos restaurantes. Tenho algumas
coisas a dizer sobre isso. Vejo como uma grande
456
//
homenagem o fato de u m cliente trazer sua melhor
garrafa para acompanhar a minha comida. Quando o
vinho é realmente bom, chego até a dispensar a cobrança
de rolha daquela garrafa. Sinto-me homenageado.
Na maior parte das vezes, cobro e sou totalmente
a favor da cobrança de rolha. E uma taxa legítima.
Tenho uma série de gastos para bem receber e servir
uma garrafa de vinho da minha adega ou da do cliente:
pago meus funcionários e a limpeza das toalhas, tenho
copos de cristal adequados àquela bebida (que são
bens mais caros que os copos padrão), treino meus
funcionários para abrir e servir corretamente a bebida
(aqui e no exterior), e por aí vai.
Se você é cliente de u m restaurante, acho que vale a
pena, no primeiro momento, consultar o estabelecimento
sobre a possibilidade de levar suas garrafas de vinho.
No segundo momento, deve estar disposto a pagar pela
rolha daquela casa. Se for dispensado do pagamento,
aceite como u m presente, nunca como uma regra. Se em
outra ocasião lhe for cobrada a rolha, não se ofenda.
Como dono de restaurante, dispenso rolha em situa-
ções especiais, para clientes especiais. As vezes, quando
u m cHente traz três garrafas, cobro rolha de uma ou duas
e dispenso a terceira. Mas a regra em meu restaurante
é cobrar; a exceção é examinada caso a caso.
Sobre vinhos, tenho ainda a dizer que cozinhas
criativas, de autor, não costumam ser as mais adequadas
para harmonizar com vinhos. E m restaurantes como o
D.O.M. é muito importante que exista uma bem estabe-
lecida relação de respeito do chef com o vinho, e do
457
V
cyber trufas
Para a mousse de chocolate
Ingredientes
Preparo
mi
í
1. Tenha à mão um sifão vazio, porém com gás.
2. Corte quadrados de filme plástico de 20 por 20 cm sobre uma bancada de trabalho.
3. No centro de cada retangulo, coloque mousse de chocolate ou ganache de chocolate branco.
4. Com delicadeza, feche o filme, formando pequenas petecas, e reserve,
5. Em um copo descartável, coloque outro quadrado de filme plástico e o afunde com o dedo ao centro.
6- Coloque uma peteca e, com delicadeza, segurando a base da mousse,
feche o segundo filme plástico, deixando um pequeno espaço que permita a passagem do gás.
7. Encoste o bico do sifão perto do polegar e do indicador e delicadamente infle o papel-filme.
8. Girando a pequena bexiga, imprima pressão suficiente para formar as pequenas trufas.
9. Amarre com elástico, de modo a não permitir a saída do gás.
10. Corte o excedente do filme e do elástico e sirva em recipiente apropriado.
11. À mesa, em frente aos comensais, sugira que peguem
as trufas com uma das mãos, façam um furo nas duas camadas de filme,
com um instrumento cortante ou palito de dente, e suguem o recheio.
da a as
Um cozinheiro que dá aulas é um cozinheiro
melhor. Na hora de verbalizar seu conhecimento, o
profissional de cozinha é obrigado a racionalizar seu
processo, a fim de responder a dúvidas internas que
geralmente não surgem diante do fogão na lida diária.
Quando temos que expressar com detalhes o método
que usamos, o porquê de cada uma das atitudes que
tomamos, fixamos o conhecimento e trazemos para o
consciente informações incorporadas ao cotidiano,
realizadas mecanicamente.
O exercício de organização, de sistematização de
procedimentos rotineiros necessários para a preparação
de uma aula contribui muito para o polimento da
técnica. A lida freqiiente com aulas enriqueceu a forma
como me coloco diante das panelas, me fez a^ir de
460
maneira menos aleatória, me ensinou a chegar ao fogão
com os procedimentos na cabeça, a brincar mais
livremente com conceitos táteis e aromáticos. Encurtou
o caminho das minhas experimentações (organizando
aulas, aprendi a trabalhar melhor antes de chegar perto
do fogão para testar, fazer e refazer uma receita).
Minhas primeiras aulas foram catastróficas. Mas logo
Dercebi que, assim como na cozinha, também na sala de
aula a prática e a repetição formam um bom profissiona .
Com o tempo, fui relaxando e pude encontrar meu jeito
de trabalhar. Achei o timing correto para as piadas e
os momentos mais prolixos. Aprendi a ler os sinais no
rosto dos alunos para decidir que direção tomar (há
alunos mais preparados, ansiosos por informações
técnicas, e outros que vão a sua aula para assistir a um
show, quase divertir-se).
Há inúmeras maneiras de dar aula. Nas de culinária
o mais comum é o chef preparar uma entrada, um prato
principal e uma sobremesa e explicar os métodos empre-
gados. Apostilas, monitores de T V e fogões servem de
suportes. Gosto de ter sempre um vértice para as minhas
aulas: aromatizacão. fermentação, tostados, conservas.
Partindo de uma mesma ideia, mosti^o os empregos da
técnica escolhida em vários momentos da refeição. A
meu ver, aula boa é a que ti'az respostas, mas também
deixa dúvidas, questionamentos para os alunos. Para
apresentar uma ideia diante deles, é preciso ter domínio
de um assunto. Sem a prática, a teoria vale pouco. A
prática acaba gerando esse vértice principal e prepara
você para os questionamentos - inteligentes ou não -
461
• Faça porções do lombo do peixe
em formato dé cubos de 2 por 2 cm.
1 barca de pupunha Tempere com sal e pimenta. Reserve.
2 dentes de alho Coloque o aceto em uma panela
50 ml de azeite de oliva ^de boca larga e deixe reduzir em fogo brando,
q.b. de sal sem ferver, até o ponto de xarope. Reserve.
brotos de coentro - Pique a ciboulette finamente e reserve.
flores de borago
uma au a
A seguir, divido com você a íntegra do material
que preparei para uma aula que dei nos principais
eventos de gastronomia na Espanha, Portugal, França,
Itália e Estados Unidos. Nesses eventos disputados e
freqiientados por chefs e críticos gastronómicos de alto
464
gabarito, receitas ou degustações de pratos surpreen-
dentes é o que menos importa. Como professores, somos
convidados a apresentar ideias, conceitos que a cozinha
nos inspira. Passei vários anos lapidando essa aula.
Ela não tem aplicação prática nenhuma no cotidiano
do cozinheiro. E apenas uma reflexão que fiz a partir
da cozinha.
O mais incrível dessa experiência, no entanto,
foi que, a partir da elaboração do que reproduzo a
seguir, arejei minhas ideias e comecei a prestar mais
atenção nos processos de fermentação e tosta. Essa
aula gerou filhotes para as salas de aula e também
para os salões do D.O.M. Depois dela. mergulhei em
pesquisas com fermentados e tostados. Com isso, criei
mais uma aula e também uma série de outros pratos
deliciosos e divertidos.
Apresento, então, a aula que dei na Espanha,
e depois dois capítulos: "Temperando pelo fogo'' e
"Os fermentados'', que surgiram na esteira do pensar
nessa apresentação.
465
iche de jambo
com flores
Ingredientes
Preparo
Para a marinada
Ingredientes
50 ml de suco de limão-cravo,
25 ml de melaço de cana,
10 ml de siioyu, meia laranja
Preparo
Preparo
Finalização
Montagem
ingredientes
Para as aceroias curadas
600 g de farinha
5 ovos Ingredientes
100 ml de azeite de oliva
100 g de acerola
Preparo 10 g de sal
10 g de açúcar
1. Faça uma pasta com a farinha, q.b. de óleo de canola
os ovos e o azeite de oliva e deixe
descansar por 1 hora. Preparo
2. Passe a mistura pelo cilindro até
obter uma massa bastante firme. 1. Frite por imersão as aceroias
3. Corte quadrados de 7 cm, até que desprendam a casca.
recheie e feche os capeletti. 2. Corte-as ao meio, retire os caroços
e polvilhe sal e açúcar.
3. Deixe curar por 1 hora em
Para o brodo de pombo temperatura ambiente.
Ingredientes
Para o cerefólio carbonizado
600 g de carcaça de pombo
2 cebolas ingrediente
2 cenouras
2 talos de salsão folhas de cerefólio fresco
3 dentes de alho
3 tomates Preparo
meio alho-poró
200 ml de vinho branco Envolva as ervas em papel-alumínio,
100 ml de vinho do Porto deixando espaço interno, e leve ao forno
50 g de cogumelo paris a 250 graus por 1 hora.
1 bouquet garni Deixe esfriar e retire as ervas.
10 g de galanga
15 g de pau de canela Finalização
3 claras
Cozinhe os capeletti em água e sal.
Preparo Disponha-os em um prato,
acompanhados das aceroias e sobre
1. Asse as carcaças a 180 graus eles verse o consome.
por 40 minutos. Some o mirepoix e retorne Decore com ciboulette fresca
ao forno por mais 20 minutos. e folhas de cerefólio carbonizadas.
469
a ex ata a e seu
d.o.m. restaurante
ideias em decisivo no processo de racionalização
do trabalho de Alex Átala. Reconhecido
movimento como o mais criativo chef brasileiro de
todos os tempos, Átala baseou sua
Todo chef que se preza sabe que, gastronomia no resgate dos sabores
para calar com um prato, é preciso selvagens e em sua transposição para
conhecer e obter os melhores ingre- a cozinha. Seu esforço diário é fazer
dientes; dominar técnicas de preparo valer a frase: da selva para o D.O.M.
dos alimentos; racionalizar seu pro- (nome de seu restaurante). Nessa
cesso gastronómico. Não há um só busca incansável por sabores dos
cozinheiro que tenha deixado sua pontos longínquos do Brasil, o encon-
marca na história da gastronomia e tro com os textos de Lévi-Strauss, há
não tenha ultrapassado, com elegân- mais de meia década, foi quase uma
cia, essas três etapas. Assim como a consequência. Formado em Bruxelas,
batida dos Ramones, os movimentos na Escola de Hotelaria de Nammur,
de Pina Bausch, as pinceladas de Van em 1994, Átala se consagrou pela
Gogh, as formas de Gaudí são reconhe- construção de uma gastronomia bra-
cidos à distância, pratos construídos sileira, baseada em grande parte na
a partir desse tripé também imprimem matéria-prima da selva amazônica.
uma assinatura, uma alma única a seu
criador. Como em todas as artes, criati-
O percurso de Lévi-Strauss foi quase
vidade é uma exigência imposta aos o oposto. Nascido na Bélgica, edu-
cozinheiros. E, para atingi-la, é preciso
cado na França, Lévi-Strauss passou
muito suor. Que vai um pouco além uma temporada no Brasil, na década
daquele despendido embaixo das altas de 1930. Sua missão era ajudar a
temperaturas das cozinhas. montar a Universidade de São Paulo,
um dos maiores redutos da intelectua-
O estudo O cru e o cozido, do antropó- lidade brasileira desde então. Mas ele
logo Claude Lévi-Strauss, teve impacto foi além. Durante o tempo que passou
470
no Brasil, visitou um sem-número de para o ser cultural. Para Lévi-Strauss,
vezes os índios Bororó, na região cen- assim que aprendeu a controlar o fogo,
tral do país, e outras tribos amazôni- o homem ultrapassou a realidade crua
cas, e colheu mais de oitocentos mitos imposta pela natureza e passou a criar
que descreviam as grandes verdades um universo diferente, cultural. Ao re-
daqueles povos. Em 1964, lançou o dor - e através do domínio - do fogo,
livro O cru e o cozido, que integra a a teoria de Lévi-Strauss foi sistemati-
trilogia Mitológicas, tida como sua zada em um gráfico, reproduzido a
principal obra. Reduzindo aquele uni- seguir, no qual ele acrescenta o podre,
verso fantástico à sua essência, sis- para onde todos os ingredientes vol-
tematizou a passagem do ser natural tam para um novo ciclo começar.
COZIDO
I PODRE
471
doce, seja no salgado, ficou evidente complementar o esquema, Átala in-
que faltava um "norte" ao esquema. cluiu então o tostado (conseguido pela
Do ponto de vista do paladar do chef, exposição direta de um ingrediente ao
o esquema de Lévi-Strauss contem- fogo) e com isso inseriu o amargo no
plava o sabor natural, no cru, o doce, gráfico. E fez o primeiro esboço dos
evidenciado ao se cozinhar qualquer pontos cardeais do universo do sabor,
ingrediente, e o ácido no podre. Para tendo como ponto central o fogo.
472
Entre o fogo e os apodrecidos, Átala Átala colocou então seu cérebro para
localizou outro fenómeno natural do- fermentar. Observou que o paladar de
mesticado: a fermentação. Apesar de um chef rejeita todos os ingredientes
a roda ter passado para a história que estão nos extremos desse gráfico.
como o grande marco evolutivo do Conscientemente não comemos nada
homem, ela não teria ganhado veloci- podre. Mas vinhos e queijos são frutos
dade se não fossem a fermentação e da fermentação, que são uma forma
o fogo. O domínio desses dois fenó- controlada de apodrecimento. A partir
menos naturais move até os dias de desse raciocínio, ele desenvolveu então
hoje as máquinas, a química, a física, uma escala hipotética de apodrecimen-
a medicina e também a gastronomia. to. com o vinagre no extremo da lista.
IOGURTES
QUEIJOS
FAISANDÉ
VINAGRE
PODRE
•do<
> acLdo
473
Seguindo na mesma linlia, mas desta mento. No extremo d a linha, está
vez passando pelo fogo, Átala entrou o overcooked (ponto ideal das bata-
no universo dos cozidos. Cozinhar um tas para o preparo de um puré e das
ingrediente em meio líquido ou gordu- carnes excessivamente cozidas que
roso ressalta seu dulçor natural. Na serão matéria-prima para receitas
gastronomia, convencionou-se chamar como o ragu).
de al dente o ponto ideal de cozimen-
to de um ingrediente, ponto esse que Vale notar que, para reinserir algum
alia textura e sabor. Nos cozimentos ingrediente overcooked no universo
de estabilização, ou branqueamentos, gastronómico, o cozinheiro tem de
os ingredientes são menos expostos compreender bem aquele item e
à temperatura. Ficam então antes do usar toda a sua expertise em favor do
al dente na escala hipotética de cozi- aproveitamento total daquele sabor.
BRANQUEAMENTOS
OU COZIMENTO DE AL DENTE OVERCOOKED COZIDOS
ESTABILIZAÇÃO
CAFÉ E CHOCOLATE
GOLI iWN
A M Ê N D O A S TORRADAS
474
escala hipotética final
de alex atala
AMÊNDOAS TORRADAS
BRANQUEAMENTO
^ ^ ^ ^ ! OSMOSES ESCABECHES DESIDRATADOS OU COZIMENTO •••• Iffiy OVERCOOKED COZIDO
DE ESTABILIZAÇÃO ^fÊÊT
IOGURTES
VINHOS E
QUEIJOS
FAISANDÉ
VINAGRE
PODRE
475
estáticos combinações agradáveis e surpreen-
dentes ao paladar
e dinâmicos
Os pontos intermediários entre os
Assim como as batatas excessiva- extremos do esquema de Alex Átala,
mente cozidas, a carne ultra-refoga- se ligados, formam um quadrado
da, grãos de café torrados e moídos perfeito. Os ingredientes dinâmicos
e cacau 100 por cento são ingre- estão dentro do quadrado delimitado
dientes estáticos, rejeitados pelo pa- pelos cozimentos a frio, golden brown,
ladar gastronomicamente treinado. al dente e ponto de fermentação de
Eles não são maleáveis, nem capazes vinhos e queijos.
de interagir com outros sabores e
ser prazerosamente usufruídos por Todos os ingredientes que se inserem
comensais. A expertise do cozinheiro dentro desses limites do gráfico estão
e sua busca pela exponencialização prontos para ser trabalhados ao pé
do sabor são capazes de transformar do fogão por qualquer cidadão que
esses ingredientes. domine minimamente as técnicas da
cozinha. Ao chef cabe transformar os
Quer ver? Ao acrescentar açúcar, leite elementos de fora dos limites desse
e manteiga ao cacau, chegou-se ao quadrado - os ingredientes estáticos
chocolate. Se o cacau puro é um ingre- - em dinâmicos.
diente estático, o chocolate é dinâmico.
Nessa forma, trabalhado por um cozi- Os ingredientes dinâmicos são a base
nheiro, ele pode ser inserido em várias do cotidiano da cozinha. Os elemen-
receitas. Do universo doce e salgado. tos do dia-a-dia do chef. Mas um chef
O mesmo acontece com o grão de só é chef quando sabe reconhecer e
café torrado ao acrescentar-se água manipular os estáticos para inseri-los
e açúcar E às batatas overcooked, no universo dos dinâmicos, na rotina
quando se acrescentam manteiga e de sua cozinha. Afinal, para ser chef
leite fresco. Cabe ao cozinheiro co- não basta um bom diploma de escola
nhecer intimamente os ingredientes e de gastronomia, é preciso conquistar
saber levá-los ao ponto ideal gastrono- o paladar absoluto, saber distinguir o
micamente prazeroso. É ele que faz ponto exato do sabor agradável de
um ingrediente estático virar dinâmi- cada ingrediente e conseguir introduzi-
co, encontrando a distância ideal lo na lista das receitas inesquecíveis.
que ele tem de estar do fogo e suas
476
quadro dos sabores
estáticos e dinâmicos
CAFE E CHOCOLATE
COLDEN BROWN
A M Ê N D O A S TORRADAS
SALGAS BRANQUEAMENTOS
OSMOSES ESCABECHES DESIDRATADOS OU COZIMENTO , OVERCOOKED COZIDO
MARINADOS DE E S T A B I L I Z A Ç Ã O ^
IOGURTE
VINHOS E
QUEIJO
FAISANDÉ
VINAGRE
477
de paragens distantes do globo, al-
movaçao guns nomes se embrenharam em per-
cursos similares ao do chef brasileiro.
Graças a uma incansável pesquisa de
ingredientes originais e pouco explo- Antoine Garême foi o primeiro a sis-
rados nos pontos mais remotos do tematizar a cozinha francesa. Depois
Brasil, Alex Átala conseguiu construir temos Auguste Escoffier, que criou um
bases sólidas de uma gastronomia bra- padrão para ela, com procedimentos
sileira. Apoiado em técnicas universais simplificados e fáceis de ser repetidos
de cozinha, Átala põe à mesa de seu em cozinhas de grandes proporções,
restaurante D.O.M. pratos com alma como as dos hotéis. Em seguida está
e misturas 100 por cento brasileiras. o menos conhecido Fernand Point,
Sem medo de errar, podemos dizer que criou uma metodologia de ensino
que ele inventou uma nova cozinha de cozinha. Seu trabalho foi obscure-
nacional, que surpreende - e agrada cido pelas duas guerras mundiais,
- até os mais exigentes comensais. mas seus discípulos comprovam sua
excelência. De sua escola saíram
O sentido de inovação foi uma das os papas da nouvelle cuisine como
molas que impulsionaram esse salto Paul Bocuse, Pierre Troisgros. Alain
de Átala. Para ele, inovação é a soma Chapei. Roger Vergé.
de criatividade e utilidade. O que não
interage não deve existir. Ao cozinheiro A nouvelle cuisine aconteceu por duas
cabe reduzir sua rotina aos elementos importantes razões. Porque alguns
mais simples possíveis. Usando as franceses - educados por Point -
engenhocas, ingredientes e ideias que entraram em contato com o Oriente e
tenham função, que inovem. E sa- trouxeram uma infinidade de novos
bendo desprezar os instrumentos que, sabores para suas cozinhas. E também
apesar de lindos e bem apresentados, graças a uma revolução tecnológica
ficam como aquela caneta-tinteiro que introduziu novas técnicas, utensí-
maravilhosa que você tem na estante: lios e precisão à gastronomia. O passo
sem a menor utilidade. seguinte dessa pequena viagem ao
passado do prazer à mesa é o retorno
Desde o surgimento da gastronomia, às origens promovido por chefs como
logo depois das Grandes Navegações Joel Robuchon, Alain Ducasse e Michel
que levaram para a Europa ingredientes Bras. Nos pratos desses mestres temos
478
a humanização da cozinina, um frango técnica, sim, e uma boa dose de dom
volta a ser servido como um frango. criativo. Mas também através do esfor-
Eles retornam ao terroir. O próximo ço contínuo de entender os processos
passo não é de um chef, mas de um de criação em que estavam envolvidos
químico: Hervé This explica aos cozi- para revelar a importância dos sabores
nheiros e ao mundo o que acontece - ou das técnicas, ou do ensino destas
dentro de uma panela. - e propiciar o surgimento de obras-
primas da gastronomia.
Como em algum momento aconteceu
na filosofia - que deixou de ser domi- Voltamos então ao começo de nossa
nada por gregos e alguns séculos conversa. Ao criar a teoria do cru e do
mais tarde por alemães -, assistimos cozido, Claude Lévi-Strauss assinalou
então a uma expansão dos horizontes que o cozinhar, ou a cozinha, é o
gastronómicos. A partir da compreen- grande responsável pela transição
são dos processos químicos apre- do homem-natureza para o homem-
sentados por Hervé This, o espanhol cultura. Átala dá um passo à frente.
Ferran Adriá reinventou a gastronomia Para ele, gastronomia é hoje o grande
e mostrou que há vida inteligente elo entre natureza e cultura. É ela que
diante do fogão bem além das fron- pega os elementos naturais - e crus
teiras francesas. A hegemonia da - e, com o conhecimento técnico
gastronomia francesa - que dura cerca adquirido e a racionalização do cozi-
de duzentos anos! - é rompida. nheiro, chega aos mais delicados
níveis de prazer à mesa. Atire a primei-
Como no caso de Alex Átala, o mérito ra pedra quem nunca se calou diante
de todos os chefs citados até aqui foi da obra-prima de um mestre-cuca.
a inovação. Conseguida com muita
479
ã ao vapor de cachaça
com bacon, castanha
de caju e peste de ervas
anisadas
480
cavainha contitada
e defumada ao pesto
de ora-pro-nóbis
e vinaareira
Para a cavalinha Para o fettuccine
Ingredientes Ingredientes
2 filés de cavalinha de 140 g cada 50 ml de azeite
300 ml de óleo de canola 250 g de maniçoba
1 ramo de tomilho 250 g de farinha de trigo
10 grãos de pimenta-do-reino 5 ovos
100 g de cará, 200 ml de água
50 ml de vinagre de vinho branco Preparo
200 g de fettuccine de maniçoba
3 dentes de alho 1. Devido ao longo preparo da maniçoba
50 g de bacon (a maniva necessita de 7 cias de cozimento),
5 g de pó da madeira de murici para defumar recomendo a compra da receita
já pronta e congelada. Desickaie a
Preparo maniçoba em estufa a 50 gmis.
2. Uma vez bem seca, transforme-a
1. Confite os filés de cavalinha por 3 minutos, em pó e faça una massa de Mbuccine
a 54 graus, em óleo de canola, usando a mesma proporção
tomilho e pimenta. Reserve. de farinha e pó de maniçoba
2. Corte cubos pequenos de cará cm 3. Cozinhe a massa e salteie com lâminas
e deixe-os em água, gelo e vinagre de atx5 e bacon previamente dourados.
até o momento do serviço. Reserve aquecido.
Finalização
Para a emulsão de vinagreira Doure a pele da cavalinha com
Ingredientes o maçarico e aqueça com a salamandra
em fogo baixo. Disponha os ingredientes
50 g de vinagreira, 50 g de ora-pro-nóbis no prato e defume no momento com
0,5 g de goma xantana serragem de murici. Para isso,
50 ml de azeite extra-virgem utilize equipamento adequado
q.b. de sal para defumação no prato, conforme se vê
na foto (esta é uma técnica recente
Preparo que permite baixa impregnação de carbono
e grande impregnação de sabor.
1. Branqueie as ervas, escorra-as Pode ser feita com ingredientes crus
e faça um puré com 50 ml da água do cozimento. e até mesmo saladas; quanto maior
2. Adicione a goma xantana e o azeite a porosidade dos ingredientes,
e acerte o sal. Reserve. maior a capacidade de absorção).
482
coxinna iquiaa
com catupiry
Para o catupiry
Ingredientes
300 g de Catupiry
100 ml de creme de leite
Preparo
Preparo
Montagem
485
temnerando neo toao
Quando escreveu^ Fisiologia do Gosto^ nos idos
de 1800, Brillat-Savarin disse que o homem nasce
assador e se transforma em cozinheiro. Quanto mais
me inteiro das possibihdades que o fogo nos permite,
e observo o esquema de Lévi-Strauss, fico admirado
com a sabedoria contida nessa frase cunhada há
mais de dois séculos por esse francês apontado por
muitos como o inventor da gastronomia. O fogo é o
primeiro fenómeno natural domesticado pelo homem.
Para melhor sobreviver, o homem aprendeu a lidar
com ele rotineiramente. O cozinheiro, nos ensina
Savarin, aprimorou esse hábito. Quando pensamos
nos muitos usos que o cozinheiro pode dar ao fogo.
temos u m a dimensão desse universo e da complexi-
dade do raciocínio humano.
Vou me ater agora a técnicas de cozinhar e temperar
com o fogo e seus derivados.
486
o carvão - Derivado da lenha, o carvão guarda ainda
3oa capacidade de impregnação. E possível temperar
ingredientes com a fumaça da queima desse produto,
mas ele é mais stitil. Quando cozinhamos em uma grelha
de carvão mineral, o qtie predomina são os sucos e as
gorduras dos próprios ingTedientes cozidos que caem
sobre as pedras aquecidas, se transformam em fumaça
e também temperam aquilo qtie está sendo preparado.
Se bem compreendidas, as características específicas
desses processos de cozimento podem ser controladas e
•avorecer muito u m preparo.
487
Ingredientes
Preparo
Preparo
Preparo
Preparo
1. Reduza o caldo de codorna a fundo.
2. Faça uma farofa solta e crocante
com a farinha de mandioca e a manteiga.
3. Acerte o sal e reserve.
250 ml de água
250 g de açúcar
20 g de glicose
2 g de gelatina em folha
700 ml de cerveja clara
100 ml de suco de limão
Preparo
Montagem
490
u m cachimbo ou charuto. Todas as fumaças produzidas
da tosta de camarão, sementes de coentro, curry,
carcaça de peixe entre muitas outras carregam matizes
de sabor de seu produto de origem e também podem
temperar bases aeradas.
491
aromas voláteis fica mais evidente. Quando usamos bases
alcoólicas para flambar u m ingrediente, o que nos sobra
é o sabor residual da bebida; quando aromatizamos com
álcool, temos a capacidade de impregnar u m ingrediente
com o álcool volatilizado.
OS Termentaaos
Depois de domesticar o fogo, o homem aprendeu
a controlar o apodrecimento dos alimentos. A diferença
entre apodrecidos e fermentados é clara, entretanto foi
através da observação e do controle da matéria em
decomposição que o homem entendeu e aprendeu a
dominar a fermentação.
Ao dominá-la, o homem dá outro largo passo em
favor de seu bem-estar, na direção do que Lévi-Strauss
chamou de homem cultural (e que está no extremo oposto
do homem natural, que só comia o alimento cru). E não
só no caso da alimentação, mas também na medicina,
nos meios de transporte.
A forma como lidamos com a fermentação na
gastronomia se mantém estável há algumas décadas.
Os processos de produção de vinhos e queijos são bem
compreendidos e bastante engessados. A simbiose entre
Drocessos pode gerar resultados originais. Foi estudando
a fermentação do pão e o processo de fabricação do tofu
(queijo de soja) que comecei a pensar na possilDrlidade
de fermentar outros cereais e grãos. \ processo de
construção de fermento de pão, é necessária a adição de
492
amido e açúcar para o alimento das bactérias. No caso
específico do fermento de castanhas, por conta das
características da estrutura desse ingrediente rico em
gorduras, não é necessário adicionar o amido.
O fermento gerado dessa experiência tem uma
textura pastosa e se assemelha mais a queijos. Enquanto
o tofu apresenta baixa acidez, os fermentados de castanha
tendem a desenvolver notas claras de queijos caprinos e
deixam na boca um sabor residual de queijos azuis.
Meus experimentos nessa área não param por aí.
O tradicional método de preparação de fermentos para
pães foi desenvohido a pairà de maçãs. LemiDrando
disso, abri outro imenso leque de criação. Apresento neste
ivro uma receita de fermento de fi'aml3oesa. O ponto que
pretendo evidenciar nesse preparo é a capacidade de
uma fruta vermelha transferir seu sabor orioinal ao
resultado do pão pronto. Ao contrário da maçã, que não
transfere seu sabor para o pão assado, a framboesa altera
o sabor e até a cor do que é produzido com seu fermento.
Essa mistura tem uma aplicação diferente da tradicional,
produz um pão com outras características.
Usando essa mesma técnica de fermentação, hoje no
D.O.M. estamos desenvolvendo uma série de fermentos
a partir de frutas brasileiras, com especial preferência
às de sabor extremamente potentes, como o cupuaçu.
O cupuaçu é um ancestral do cacau e tem matizes de
aroma e sabor com clara referência a químicos como o
éter e o clorofórmio. Suas sementes tostadas podem
gerar um sucedâneo do chocolate ou do café. Mas a sua
fermentação ainda in natura ocorre espontaneamente de
493
Esponja de castanha-do-pará
Ingredientes
500 g de farinha de trigo
400 g de queijo de castanha (ver pág. 280)
200 ml de água
40 g de açúcar
Preparo
Misture a farinha com o queijo de castanha,
a água e o açúcar. Deixe descansar por 24 horas.
Esponja de tucupi
Ingredientes
500 g de farinha de trigo
400 ml de tucupi fermentado
200 ml de água
40 g de açúcar
Preparo
Misture a farinha com o tucupi, a água e o açúcar.
Deixe descansar por 24 horas.
495
V,
oorque bras
dos filhos deste solo és mãe gentil
Nunca fui à França com vontade de comer sushi;
nem ao Japão para comer paella; muito menos à Espanha
em busca de um bom pato laqueado. Na China, não busco
bons cassoulets. A cozinha desses países é reconhecida
à distância em qualquer parte do mundo. E, uma vez
ali, a vontade é comer um autêntico prato naciona .
O Brasil tem enorme potencial para virar um
destino gastronómico disputado. Claro, vamos demorar
496
séculos para conquistar a excelência dos países que acabo
de citar, mas temos, sim, tudo para nos tornar rapidamente
u m destino gastronómico exótico tão disputado como
outros países que já conseguiram esse feito (leia-se
índia, México e Tailândia).
O que temos de fazer para isso? Simples: seguir
o exemplo dos que chegaram lá. ter orgulho do p r o -
duto nacional.
Como reforcei no decorrer de toda esta obra. temos
universos complexos e riquíssimos por desvendar, como
a Floresta Amazônica e o Cerrado. Tenlio ceiteza de que
há nesses espaços espécies maravilhosas, com altíssimo
valor gastronómico, esperando ser descobertas. Há ainda
os mais diversos preparos e receitas praticados de norte
a sul do país que precisam ser resgatados, catalogados e
registrados. E ingredientes já conhecidos, como o coração
da flor da banana (cuja parte central pode ser comida),
a castanha do pequi e a cabaça jovem, chamada de caxi
(ou cachi), que precisam encontrar suas vocações gastro-
nómicas. Nossa cozinha está muito além da famosa - e
folclórica - feijoada com caipirinha (que não deixa de
ser uma bela mistiua).
Desde pequeno sou curioso. Adoro a natureza.
Vivo embrenhado no mato. E sempre que estou em
u m lugar diferente falo com o nativo do lugar. Quero
saber com o que ele cozinlia. como prepara determinado
ingrediente. LemlDro C[Lie. aos 6 anos. quando soube que
no interior de São Paulo se comia farofa de içá feita com
"ormiga tanajura, aquela bem bimdudinha, não sosseguei
até saber que gosto aquilo tinha. Quando, garoto, eu
497
caranqueio de manque
espuma de tucupi e
granizado de tomate
Ingredientes
2 caranguejos de mangue
100 g de pimenta-de-cheiro verde
10 g de coentro
q.b. de azeite extra-virgem
q.b. de sal
q.b. de pimenta-do-reino
Preparo
1 kg de tomates maduros
5 g de sal
Preparo
Para o tucupi
Ingredientes
1 Ide tucupi
meia cebola
1 dente de alho
1 ramo de chicória, alfavaca e jambu
meia pimenta-de-cheiro amarela
5 g de lecitina de soja
q.b. de sal
Preparo
3 pimentas-de-cheiro verdes
100 ml de azeite extra-virgem
q.b. de ciboulette
1 limão
Preparo
Finalização
499
ia caçar macuco com o meu avô materno, reparava
que ele bebia pinga com uma fruta que eu nunca tinha
visto em casa, o cambuci. Quis provar daquela fruta
que hoje é uma das vedetes do meu restaurante. E m
outro momento, f u i muito para Goiás, quando meu
pai comprou uma fazenda por lá. E descobri a mangaba,
o pequi, a jurubeba, a guariroba. Na cozinha de casa
também vivia atento ao que minha mãe fazia. Não
esqueço até hoje como ela preparava a Cambuquira e
outras receitas caipiras.
Outro caminho de estudo são as relações m u l t i -
disciplinares que vamos fazendo no decorrer da vida.
Ou o encontro de duas pessoas compaixões complemen-
tares. Sou apaixonado por mergullio e por pesca. Nmna
de minhas aventuras, conheci o biólogo marinlio Guv
Marcovaldi, criador, ao lado de sua mulher, a Neka.
de u m a das mais bem-sucedidas ONGs brasileiras: o
Projeto Tamar. Além de cuidar de tartarugas, Guy é
u m apaixonado por pesca. A paixão mais u m a vez
abriu espaço para a pesquisa. Atualmente, ele desenvolve
estudos científicos sobre peixes de águas profundas (entre
300 e 1.200 metros de profundidade). Esse trabalho
abre novas fronteiras tanto para nós, cozinheiros, como
para a pesca comercial, para a extração de pescado de
forma mais consciente e todos os avanços que esses
conhecimentos proporcionam.
O que faço todos os dias sem cansar é pesquisar,
experimentar a fim de me tornar expert no produto
nacional. Minha cozinha transpira o Brasil por todos
os poros. Essa é a minha escolha. Tenho uma boa base
500
clássica, o salvo-conduto do bom cozinheiro, mas me
concentro no que conheço de berço, no que tenho gravado
na minha memória, no meu ingrediente, no produto da
minha terra. Por conta desse trabalho, recebo e tenho
contato com produtos e produtores de outros ingredientes
originais e maravilhosos que em solo brasileiro brotam
e dão frutos.
E é esse bom vento que tem me levado para longe.
E por conta da cozinha que pratico, com sotaque na-
cional, que sou convidado a dar aulas onde nunca
nenhum outro profissional de cozinha brasileiro esteve,
e conquisto prémios inéditos para a história da nossa
gastronomia. Com este livro tentei mostrar o caminlio
das pedras do meu trabalho, apresentei receitas e contei
como penso na hora de criar u m prato. D i v i d i essa
trilha com vocês e torço para espalhar sementes, ver
germinar novos endereços e grandes cozinheiros. Só
vamos nos tornar u m destino gastronómico de fato se
tivermos algo novo - e nosso - a oferecer. Ingredientes,
temperos, cores exuberantes, preparos e receitas não
nos faltam para explorar, inspirar e reinterpretar (como
disse algumas vezes, criar é também olhar para trás).
E, para isso. temos de ser muitos, centenas, oxalá
milhares, cantando a nossa terra: Brasi
501
Para o queijo de castanha-do-pará
Prepare o queijo conforme expiicado
na receita de queijo de castanlia (ver pág. 280).
50 g de banana-passa
300 ml de cachaça
Preparo
Preparo
Ingredientes
Montagem
503
Para o caldo de legumes tostados Preparo
Ingredientes Montagem
500 g de quiabo grande, 1 cebola pequena, Em um prato fundo, coloque uma colher do quiabo
5 g dente de alho, q.b. de azeite de oliva, q.b. de salteado. Coloque o caviar de quiabo por cima.
sal, q.b. de pimenta-do-reino, q.b. de vinagre de e decore com um quiabo frito e o papel de quiabo.
Jerez, q.b. de óleo de canola, q.b. de suco de limão Finalize com o caldo de legumes tostados.
505
^ ne manei
"O
d
100 g de feijão-manteiguinha •
50 g de cebola
1 dente de alho
50 g de cenoura
1 bouquet garni
100 g de parte gorda
da carne-de-sol dessalgada
q.b. de sal
10 g de manteiga de garrafa
Preparo
1. Em um bowl, deixe o feijão
imerso em água fria por 24 horas.
2. Descasque e corte os
legumes grosseiramente
e refogue-os em uma panela.
3. Coloque a carne-de-sol,
o bouquet garni e o feijão e cubra com água.
Deixe cozinhar por 1 hora ou até que esteja macio.
4. Adicione a manteiga de garrafa.
5. Coe e dispense a carne e os legumes, e reserve.
Para a gelatina de
consome de cupim
Ingredientes
Preparo
1, Aqueça o consome
e adicione a gelatina
pré-hidratada.
Disponha em um
recipiente grande
o suficiente para
fazer 4 rodelas de
10 cm de diâmetro
e 3 ml de altura.
Deixe na geladeira
por 2 horas.
Finalização
Montagem
Cubra o fundo de um
prato com o feijão em
temperatura ambiente.
Coloque o carpaccio de came-de-sol
sobre ele. Recorte o disco da
gelatina e cubra o feijão. Rnalize com 4 tiras
de queijo, flores de dill, brotos de manjericão roxo
e um fio de azeite na borda de todo o prato.
as esco as n°2
e o haicai de abuticaba
Carlos Alberto Dória
514
Fakircook e muitos outros surgiram da cooperação
técnica entre cozinheiros e universidades espanholas e,
hoje, ocupam lugar de destaque num modo de cozinhar
que evidentemente é universal - porque técnico -
apesar de terem vindo ao mundo com a chancela
espanhola. Alex Átala, que participa ativamente da
rede internacional de pesquisas técnicas de vanguarda,
conhece tudo isso e utiliza, em sua cozinha, vários
equipamentos decisivos para a gastronomia moderna.
A sua singularidade, portanto, não reside aí.
Ora, a inovação pode vir também pelo plano das
matérias-primas. Dado um certo nível técnico e tecno-
lógico, dominado com maestria, um chef pode se dife-
renciar pelas matérias-primas que utiliza, isto é, pode
construir o seu estilo apoiado nelas. Dessa perspectiva,
o estilo de Alex Átala é bastante claro. Confunde-se com
'filosofia''.
a sua
Ele mesmo tem enfatizado sua busca constante por
matérias-primas brasileiras, e sei o quanto viaja Brasil
afora atrás delas. Nessas viagens, vai estabelecendo sua
rede de colaboradores das pesquisas gastronómicas, de
tal sorte que, no D.O.M.. podemos sempre comer coisas
brasileiras que só se encontram a. como o s imples
sorvete de cambuci.
Mas a escolha de matérias-primas incomuns seria
muito pouco para caracterizar o estilo de Alex Átala.
Ao contrário, o estilo ficará mais claro se nos demorarmos
um pouco na análise do seu soi^x ete de jabuticaba com
wasabi. O que temos ali é algo absolutamente insólito
e que vem à luz com a marca das coisas que ficam, isto
515
é, de coisas cuja receita será repetida inúmeras vezes,
no presente e no futuro, com variações introduzidas
por quem vier a fazê-la.
No processo de concepção desse sorvete entra a
percepção de uma convivência transnacional de japo-
neses e brasileiros na cidade de São Paulo. Só em São
Paulo essa associação é tão próxima. Só nessa cidade
'^faz sentido'' aproximar coisas tão díspares que, no
entanto, conversam muito bem dentro do sorvete. Ora.
tomando essa questão (convivência entre japoneses e
brasileiros em São Paulo) a ideia de associar wasabi e
jabuticaba é a verdadeira criação de Átala, pois essa
ideia ocorreu a ele. não a outro chef.
Esse sorvete é m n liaicai paulistano que tem por
tema a natureza brasileira e uma estacão do ano. como
é obrigatório na estrutura dos haicais ti^aclicionais. Obras
assim precisam ser analisadas como a inteipretação do
lino nacional norte-americano por Jimi Hendrix. ou
uma peça qualquer de Miles Davis. Não se pode reduzii'
o sorvete aos ingredientes, assim como tais músicas não
se reduzem à guitarra, ao trompete ou a notas isoladas.
O importante são as notas que Alex "tirou'' da jabuticaba
e do wasabi ao colocá-los juntos e sorvetificá-los com
limão, açúcar e clara de ovos.
Ao resenhar para a revista eletrônica Trópico o
primeiro livro que Alex publicou, eu o saudei como o
aparecimento das "Escoffianas brasileiras". Mais do cjiie
u m trocadilho com as ''Bachianas brasileiras", o cjue
parecia digno de nota era justamente a fusão de mna
cultura culinária europeia, clássica, com o "nacional no
516
domínio da culinária, assim como Villa-Lobos fizera na
música. Parece-me que a metáfora não só se confirmou
como se ampfiou neste novo fivro de Átala.
O ''lado Escoffier" pode ser representado pelas téc-
nicas, isto é. pelo miiversalismo que elas necessariamente
expressam neste momento da gastronomia m u n d i a
e que, como sabemos, começou a sua sistematização
moderna com Auouste Escoffier no início do século
X X . Alex achnira e cidtiva o racionalismo técnico e
sabe que a ele está ligado o sucesso de uma receita. O
outro lado. a adjetivação "brasileií-a". está por conta
dos ingredientes. E o seu lado pessoal. " M l l a - L o b o s " ,
está em ver a combinação dessas coisas através de
algumas receitas, como as que nos oferece aqui. Ou
seja, considerando os planos técnico e da matéria-
p r i m a , ainda resta o da criatividade, que, no caso. é
nacional-orientado.
Esse talvez seja o aspecto mais difícil de se avaliar,
visto que é algo imaterial, não sendo diretamente
verificável nem na técnica nem na matéria-prima.
Trata-se na verdade de uma orientação de sentido, de
curiosidade, de observação, e, é claro, da projeção de
u m desejo supraculinário. Numa época de globalização
do gosto, esse detalhe não é desprovido de sentido.
Colocada de outra maneira, a questão pode ser a
seguinte: o que é comer com gosto nacional?
Considerando como o gosto tem sido tratado mo-
dernamente, ele não se confunde fisiologicamente com
o sabor, ou ao menos não se reduz a ele. A história e a
cultura determinam em boa medida a nossa percepção
517
dos alimentos. Definem tabus, preferências etc. Então,
um "gosto nacional" deve estar necessariamente em
sintonia com isso. Uma concepção de história e da
própria cultura orienta a busca de uma impressão a
ser produzida no espírito do comensal.
Imagino que seja exatamente isso o que Alex Átala
persegue ao investigar os amidos da mandioca em suas
quase infinitas variedades. Não só na forma tradicional
de farinhas, mas em todas as aplicações gastronómicas
que o amido possa ter. E nesse particular é notável
que conhecemos melhor os amidos tradicionais do que
aqueles que a natureza brasileira nos oferece. Portanto,
há por trás dessa pesquisa uma ideia de terroir: o sabor
que um lugar pode propiciar para a experiência gasti^o-
nômica, seja ele meramente "natiual". seja ele expressão
das formas de traballiai' sobre a própria natmeza num
pedaço específico de nosso planeta. E o que _Alex mostia
naquilo que faz a partir do tucupi.
Essa questão, colocada como problema para uma
cozinha moderna, é a diretriz que verdadeiramente
diferencia a cozinha. Técnicas tradicionais, preparações
tradicionais conforme prescritas por receitas que integram
uma certa ideia e ementa de cozinha brasileira serão,
sempre, convencionais. Uma espécie de cacofonia culinária
que só não ocorre quando tomamos os produtos como
problemas estritamente gastronómicos, como é o caso
ao se considerar a mandioca uma forma de amido em
vez de tomá-la como mero signo de brasilidade.
Voltemos, então, ao sorvete de jabuticaba com
wassabi. Por trás da fruta genuinamente brasileira, é a
518
sua adstringência que é confrontada com o wasabi,
e aí está a ideia original. Nesse confronto não há '"''nacio-
nalismo ' dirigindo a escolha, mas a ideia de construção
de u m gosto novo a p a r t i r de dois sabores e sensações
Dastante típicos e associados às duas matérias-primas
que, por acaso da história, podem ser pensadas (ou
Dercebidas mais facihnente) em São Paulo. Se imaginar-
mos como diferentes tradições se interpenetram ao longo
da história dos povos, verificaremos que é exatamente
assim. Seguramente alguém associou - em Cuba, por
exemplo - o abacate ao sal; do mesmo modo que, numa
direção diversa, alguém no Brasil juntou, pela primeira
vez, o abacate ao açúcar. E Cuba não tinha a mesma
característica do Brasil, enquanto país monocultor da
cana-de-açúcar? Mas o asco que a ideia de associar o
abacate ao açúcar provoca em Cuba, ou de associá-lo
com sal no Brasil, é que faz a distinção das duas c u l i -
nárias (apesar de já estarmos nos acostumando ao
guacamole. mas sempre como u m sabor "exótico"...).
Essa percepção nos afasta por completo da ideia,
culinariamente absurda, da fusion cmsme. Os in^re-
dientes, a matéria-prinia. podem transitar li^Temente
entre culturas, visto que é da lógica da cozinha ocidental
assimilar influências sem sucumlDir; ao contrário, a
•usion cuisine trabalha no sentido de f u n d i r diferentes
lógicas de sistemas alimentares. E m outras palavras,
podemos assimilar palavras e expressões em inglês
ou francês sem descaracterizar o português, mas não
podemos fundir a gramática portuguesa com a inglesa
sem criar algo monstruoso.
519
Há, portanto, um acerto histórico nesse diálogo
de matérias-primas que o sorvete de jabuticaba com
wasabi provoca. Ele reproduz um percurso de convi-
vência e assimilação que é um resumo da história das
aculturações. Evidentemente esse passo pode não "cair
no gosto" geral, mas essa questão diz respeito aos
ritmos do processo cultural, de natureza interpessoal,
que independe das soluções criadas pontualmente.
Por esse caminho podemos imaginar vários
diálogos a partir das matérias-primas nacionais como
Dontos de partida de acoplamentos com a cultura
culinária de qualquer parte do mundo sem que nós.
brasileiros, percamos aquilo sobre o que muita gente
fala sem entender bem o que é: a identidade. De fato.
se há uma cultura do gosto, ela não se expressa em
manuais sobre o nacionalismo culinário, mas como
preferência gastronómica ativa, isto é, no desejo que
nos despertam os pratos que temos diante de nós para
comer. Esse talvez seja o grande acerto de Alex Átala:
3egar o "nacional" pelo lado dos sabores que reco-
nhecemos mas que não estão todos integrados, de
maneira moderna, ao gosto. Deixando de lado receitas
tradicionais e se concentrando na memória dos sabores
de nossos produtos, abre-se um caminho dialogai que
nenhum "restaurante brasileiro" hoje empreende com
determinação. Alex liberta a culinária da quase-obriga-
toriedade da cacofonia como condição para ter o direito
de ostentar o rótulo de "nacional Ele :'az. portanto.
uma crítica cultural relevante para pensarmos o país
em sua modernidade.
520
Para terminar, voltemos à sociologia, contando
u m a breve história. Há quase dois anos, de passagem
por Barcelona, eu quis conhecer o famoso taller de
Ferrau Adriá. Esse laboratório está, a partir de agora,
na Fundació Alimentació i Ciência - Alicia, dirigida
pelo próprio Adriá. Ela é também u m a evolução do
taller que já não existe mais.
Na ocasião, a secretária de Adriá foi logo avisando:
ele estava muito ocupado, não poderia ficar conversando;
iria apenas me cmnprimentar e a visita seria guiada por
u m auxiliar seu. Quando chegTiei e fui apresentado a ele
por uma amiga comimi - Joana ^Immé - . como " sociólogo
e jornalista'', Adriá disse, entusiasmado:
- A h , nós precisamos muito de sociólogos!
- Para quê? - perguntei.
- Para explicar isso tudo...
- Isso tudo o quê, Adriá?
- Isso...! - respondeu, ao mesmo tempo que, n u m
gesto inclusivo, abarcava todo aquele espaço m o n u -
mental em que estávamos, u m belíssimo edifício antigo
de pé-direito duplo que é uma das tantas expressões
visíveis do sucesso do seu trabalho.
Adriá comddou-nos a sentar e seguiu-se u m diálogo
de mais de uma hora: a tal entrevista impensável.
Lembro que cjuando morreu o sociólogo, ensaísta e
ficcionista Manuel A ázquez Montalbán. Adriá fez o seu
elogio fúnebre e disse que a gastronomia perdia u m dos
poucos "^'para não dizer o úiúco. intelectual da cozinha''.
Sua importância cultural devia-se ao fato de que
ele tornara possível 'que a cozinha tradicional e a
521
contemporânea convivessem sem problemas'' na
Espanha. ''Quem ocupará o seu lugar a partir de agora?
- 3erguntava Adrià. "E uma incógnita, mas acredito
que é importante que haja gente como ele, intelectuais
dispostos a falar de gastronomia com conhecimento''.
Está claro que o que Adrià queria dizer, tanto no
elogio fúnebre a Montalbán quanto na recepção entu-
siástica da visita ao seu taller, é que a gastronomia se
tornou, em definitivo, um domínio interdisciplinar.
Cozinheiros não dão conta sozinhos do impacto social
do que fazem; sociólogos, antropólogos, jornalistas, físicos,
químicos não são capazes de chegar a conhecimentos
úteis para os modos de comer se estiverem distantes das
práticas da atualidade. Essa dimensão interdisciplinar,
mais do que uma ''escolha", é uma imposição.
Ora, não deixa de ser uma boa nova que existam
chefs capazes de perceber, entre as exigências do seu
tempo, que o gosto moderno se constrói através de um
diálogo que, além de se dar entre ingredientes, se dá
também em torno do sentido do que fazem dentro da
cozinha. Afinal de contas, se não percebermos, neste
ivro que se leu, a abertura da moderna culinária brasi-
leira, situada atrás do pano de boca desse teatro que é o
restaurante, então teremos perdido a oportunidade de
mergulhar mais fundo naquilo que todos queremos
saber: afinal, como "isso tudo" se explica?
522
adec mentos
A Mareia Lagos, sempre.
Alain Poletto, Amaríldo Silva Macedo, Ana Claudia Perine, Ana Paula da Silva.
Andrea Uchida, Antonio Chiquita Silva Filho, Antonio Coelho de Lemos,
Antonio Genivaldo A. Gomes, Antonio Marcos S. Almeida, Antonio V. Souza,
Anel P. P. Nascimento, Áureo Cesar P. Nascimento, Bianca Bassani Silveira,
Bjõrn Olsson, Carlos Eduardo P. da Silva, Daniel Ferreira Magri,
Daniel Monteiro Oliveira, Demian Zimmer, Diego de Souza Lima, Diego Lozano,
524
Edilson Cerqueira Silva, Edilson F. Santos, Elizete O. Zanelli, Fabio D. Wertheimer,
Felipe Brandini Simões, Fernando P. Campana, Francisco Assis dos Santos,
Francisco Assis S. Viana, Francisco Belarmino de Sousa, Francisco Damião de Souza,
Francisco Evando P. Barros, Francisco Iran Barbosa, Gabriela Rodriguez,
Genivaldo Moraes Carneiro, Geovane Carneiro, Gianlucca Calandra, Henrique Benedetti,
Henry Alexander Villar, Izaque Pereira Oliveira, Jailson Arcanjo Reis, Jardel M. Oliveira,
Jorge Conceição Aragão, José Alves de S. Viana, José de Souza Costa, José Maria S. Lopes,
Juliana W. Faingluz, Julieta Leardine Handa, Julieta Valle P. Lanas, Lindomar R. Amorim,
Lindoval Gomes, Luci Yreijo Viana, Luciano Expedito Souza, Manoel R Frazão,
Manoel Santos Silva, Mareio Ramos Santana, Marcos Antonio Santos Souza,
Marcus CInaves Pompeo, Maria José da Silva, Mariana S. Feltran, Maurilio Monteiro Santos,
Maurizio Quarantiello, Michela Teixeira, Miguel Torikachvilli, Nayara Talita O. Macedo,
Nicolas Dornaus. Paulo Bassi Simões, Pedro R. O. Preto, Raimundo Nonato S. Alves,
Reginaldo Andrade e Silva, Renata Aparecida Lisse, Ricardo Cher, Robson M. Cavalcante Silva,
Thiago Sakamoto, Thieli Komatsu. Wagner Brito de Jesus e Wagner Aparecido dos Santos.
525
bib logratia
La Cocina ai vacío,
Joan Roca e Salvador Brugués, Barcelona, Montagud Editores, 2003
In Search of Perfection,
Heston Blunnenthal, Bloomsbur/, 2006
Clorophyla,
Aduriz Luiz Andoni
Larousse Gastronomique,
Larousse, 2000
Cozinha confidencial,
Anthony Bourdain, Companhia das Letras, 2001
La cuisine du marche.
Paul Bocuse, Flammarion, 1998
A fisiologia do gosto,
Jean Anthelme Brillat-Savarin, Companhia das Letras, 1995
526
Nestes anos perdi minha inocência,
Meus idecus não são os mesmos
dos senhores que nos governam,
Mas aquilo em cpie ainda creio aprendi com eles!
Fodam-se! Sua consciência vai roer a sua alma.
Sou feliz por ter nascido em um país
que ccmta, dança e é feliz.
Alex Átala
Escoffianas Brasileiras foi impresso em São Paulo - SP
pela RR Donnelley para a
Larousse do Brasil em setembro de 2008.