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André Prous

VOLUME I
A arqueologia
mesoamericana
Equipe editorial
Rejane de Meneses · Supervisão editorial
Yana Palankof · Acompanhamento editorial
Gilvam Joaquim Cosmo · Preparação de originais
Danúzia M. Q. Cruz, Gilvam J. Cosmo e Ludimila Barbosa · Revisão
Editora Universidade de Brasília · Capa
Fernando M. das Neves · Editoração eletrônica
Elmano Rodrigues Pinheiro · Supervisão gráfica

Copyright © 2004 by André Prous

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Ficha catalográfica elaborada pela


Biblioteca Central da Universidade de Brasília
A arqueologia mesoamericana

e capturando animais menores, como os coelhos, em armadilhas. Nas


lagoas rasas dos platôs mexicanos, flechavam as carpas e capturavam
os axolotl e grandes batráquios, que ainda fazem parte do cardápio
de muitos mexicanos. Nas zonas litorâneas, desenvolveram as técni-
cas de pesca, enquanto os moluscos e os crustáceos passavam a ter
uma grande participação na alimentação. Para armazenar os vegetais
sazonais (grãos e nozes) a ser consumidos fora da estação de produ-
ção, desenvolveram técnicas como a cestaria.
Chamam de “arcaico” a esse período que se estende aproxi-
madamente entre 8 mil e 4 mil anos atrás e durante o qual se
desenvolveram populações de caçadores-coletores ou pescadores
que conheceram profundamente seu território, bem como todos os
recursos alimentares disponíveis em cada estação.

As populações do período formativo

As domesticações

Logo na sua chegada, algumas populações humanas começaram


a modificar o ambiente natural. Repetindo um processo já documenta-
do na Austrália, os primeiros imigrantes do Panamá central parecem
ter provocado queimadas, provavelmente para substituir as matas po-
bres em alimentos por vegetações secundárias de arbustos e plantas
rasteiras, mais ricas em produtos comestíveis para homens e animais,
facilitando a multiplicação dos herbívoros e, portanto, a caça. Nos
últimos milênios do período arcaico, com o aumento da participação
dos vegetais na dieta, a coleta sistemática passou a influenciar cada
vez mais a repartição e as características de certas plantas, sobretudo
onde as populações humanas se estabeleciam em caráter permanente
em regiões particularmente ricas em alimentos. No início, foi um pro-
cesso involuntário, decorrente da coleta e do armazenamento, mas,
aos poucos, tornou-se consciente, voluntário, com a seleção dos me-
lhores cultígenos e sua propagação em detrimento das outras plantas

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O povoamento da América do Norte e os primeiros mesoamericanos

consideradas de menor valia: estava aparecendo a agricultura. Esta


teve conseqüências importantes sobre as populações vegetais: aumento
do tamanho dos grãos, diminuição da espessura da casca protetora
das sementes, seleção das variedades cujo raque era mais resistente;
propagação das espécies domesticadas em ambientes naturalmente
desfavoráveis, diminuição do espaço ocupado pelas espécies concor-
rentes não cultivadas...
Com a técnica da agricultura, as populações passaram a fixar-
se e a concentrar-se cada vez mais nas regiões do seu território, onde
havia as melhores terras para o plantio, multiplicando as primeiras
aldeias; logo haveriam de adotar a cerâmica (cerca de 4 mil anos
atrás), pouco interessante para grupos de grande mobilidade por ser
pesada e quebradiça, mas muito útil para grupos com residência fixa
e que necessitavam armazenar e cozinhar vegetais. Os arqueólogos
chamam de “formativo” esse período, durante o qual se firma um modo
de vida camponês sem que existam ainda centros urbanos.
A possibilidade de armazenar uma grande quantidade de ali-
mentos vegetais, que permaneciam disponíveis mesmo nos períodos de
entressafra, tornou possível um aumento da densidade populacional,
enquanto o tempo dedicado aos trabalhos agrícolas diminuíam o tempo
dedicado à caça; outrossim, os agricultores, desejosos de proteger suas
colheitas, já que investiam muito no processo agrícola, trataram de
controlar ao máximo e, se possível, exterminar os animais que comiam
os alimentos superficiais, como os grãos, diminuindo dessa forma a caça
em locais próximos às aldeias. A obtenção de proteínas animais teve,
portanto, de ser conseguida de outra forma; isso ocorreu por meio da
domesticação de animais para finalidades alimentares.
Um dos principais vegetais alimentares domesticados da
Mesoamérica é o milho, cujo cultivo está comprovado nas terras altas
no vale de Tehuacán, cerca de 4.700 anos atrás (datações de até 7 mil
anos, antes aceitas para a mesma região, não foram confirmadas pelos
novos métodos de datação direta das sementes). Foram recentemente
encontradas populações do ancestral silvestre do milho: o teosinto (Zea
mays, subespécie Parviglumis), no médio vale do rio Balsas, entre 400 e

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A arqueologia mesoamericana

700 metros de altitude, na vertente do Pacífico; por isso se supõe hoje


que lá poderia ter-se iniciado o processo de domesticação. A mandioca
parece ter existido também em estado selvagem nessa região, de onde
teria sido levada para as zonas baixas tropicais (já que não pode desen-
volver-se nas terras altas e relativamente frias do platô mexicano).
Duas espécies de feijão (Phaseolus lunatus e P. vulgaris) estavam
sendo cultivadas desde pelo menos 2.285 BP no vale de Tehuacán,
provavelmente importados da região de Guadalajara, também na ver-
tente do Pacífico, onde foram recentemente encontradas populações
de ancestrais silvestres.
A cabaça (Lagenaria sp.) e a abóbora também foram aproveitadas
cedo – suas sementes estavam sendo usadas na alimentação –, mas não
se sabe com certeza quando teve começo sua domesticação, embora
haja achados – de idade discutida – de cabaça possivelmente cultiva-
da desde 9 mil BP em Guila Naquitz.
O algodão, essencial para a fabricação de tecidos foi domestica-
do também há cerca de 6 mil anos. Com o tempo acrescentaram-se
novos cultígenos: o sapote (há cerca de 5 mil anos), o abacate e a
amaranta (entre 3.800 e 3.500 anos atrás). A pimenta aparece pouco
depois. Não se sabe quando a mandioca (originária da América do
Sul), o cacau e o urucum foram domesticados. Cactos como o maguey
também eram cultivados para fazer uma bebida fermentada; (o pulque),
para aproveitar a fruta alucinógena nas curas xamanísticas, as suas fi-
bras têxteis e para servir de cerca viva; o coração da agave é tradicio-
nalmente cozido em fornos de terra. O tabaco também foi cultivado
para ser utilizado em rituais xamanísticos de cura. O peru, o pato e
uma espécie de pequenos cachorros sem pêlo foram também criados
para fins alimentares durante o período formativo. Os indígenas che-
garam também a controlar espécies nativas de abelhas sem ferrão.
As plantas cultivadas por suas sementes (milho, feijão) apre-
sentam, além de carboidratos, uma certa quantidade de proteínas, o
que não ocorre com as raízes e os tubérculos, como a mandioca, que
fornecem apenas carboidratos. (A mandioca é a planta cujo plantio
fornece a maior quantidade de calorias por superfície cultivada.) No

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O povoamento da América do Norte e os primeiros mesoamericanos

entanto, as proteínas de origem vegetal são desbalanceadas, ou seja,


alguns dos seus aminoácidos essenciais são abundantes, enquanto outros
são raros, o que pode impedir quase totalmente o aproveitamento das
proteínas da planta; é o caso do milho, cujo teor em lisina é baixíssimo.
Isso explica por que este cereal tenha tido inicialmente um papel
secundário na alimentação, até ser associada ao feijão nas refeições.
Quando começou o cultivo desta leguminosa, o milho tornou-se uma
planta essencial na alimentação. Desde então, todas as culturas in-
dígenas de terras temperadas ou quentes com uma estação seca su-
ficiente tiveram como base alimentar a dupla milho/feijão,
complementada, na Mesoamérica, pela abóbora. Nas terras baixas
tropicais e muito úmidas, a mandioca substitui o milho e o feijão como
planta alimentar de base, mas, nesse caso, os agricultores precisam
dispor de uma quantidade maior de proteínas animais para conse-
guir uma dieta equilibrada.
A obra clássica e mais completa sobre a domesticação de plantas
no planalto mexicano continua sendo a de Byers e de Mengelsdorf, que
mostra, entre outras coisas, as espetaculares transformações do milho
primitivo (cujas espigas não passavam de dois a três centímetros de
comprimento) para as formas gigantes já conseguidas pelos indígenas
antes da chegada dos europeus, depois de milênios de seleção e de
hibridações. Trata-se certamente da planta que mais se transformou
sob influência do homem e chegou ao ponto máximo possível de
domesticação: não pode mais se reproduzir sem ajuda humana. No en-
tanto, algumas das idéias desenvolvidas por Mengelsdorf estão agora
descartadas, como a suposição de que haveria existido um milho selva-
gem – mais tarde hibridado com o teosinto (vimos que, hoje em dia,
considera-se o teosinto como ancestral direto) – e a impressão de que
a agricultura teve início há 7 mil anos; de fato, as técnicas de escava-
ção tradicionais dos americanos (a escavação por níveis arbitrários)
levou a atribuir idades exageradamente antigas aos depósitos alimen-
tares, geralmente enterrados em buracos.
Não somente as domesticações foram mais recentes do que
se pensava nos anos 1970 e 1980, mas a importância dos alimentos

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A arqueologia mesoamericana

cultivados parece ter sido muito restrita durante muito tempo, pois
continuava a coleta dos vegetais silvestres locais. Muitos cultígenos,
por ser de origem exótica, teriam sido ingeridos inicialmente, sobre-
tudo por finalidades rituais, até que se passasse a modificar paulati-
namente os hábitos alimentares. Somente entre 2 mil e 1.500 BC as
análises de Carbono 13 em ossos humanos demonstram uma ingestão
crescente do milho na alimentação, enquanto o registro polínico com-
prova fortes desmatamentos, evidenciando o papel cada vez maior da
agricultura. Criava-se um novo modo de vida em aldeias estáveis e
cada vez mais populosas: de algumas dessas comunidades de campo-
neses teriam surgido as primeiras coletividades proto-urbanas e as
“altas culturas”.
Em todo o caso, a Mesoamérica dos últimos milênios antes de
Cristo estava ainda em parte ocupada por populações de caçadores-
coletores tardios que continuavam explorando as terras menos férteis
ou secas demais para ser cultivadas; mantinham, portanto, um modo
de vida “arcaico”, enquanto nas regiões mais úmidas vingavam os agri-
cultores, os quais não deixavam também de caçar, pescar e coletar ve-
getais silvestres: uns cultivando cereais e leguminosas em regiões com
estação seca e os outros, tubérculos, nas regiões tropicais úmidas.
Apenas algumas novas plantas foram domesticadas ou introduzidas
na Mesoamérica depois do período formativo: provavelmente sejam os
casos do tomate, da chia (uma planta de semente oleaginosa, particu-
larmente cultivada na vertente do Pacífico) e do tabaco, que, pelo
menos em certas regiões, aparecem apenas no pós-clássico.

As técnicas agrícolas na Mesoamérica

Nas regiões temperadas e secas dos platôs interioranos, a agri-


cultura foi inicialmente praticada nas terras aluvionárias ricas ao longo
dos rios ou na beira das lagoas ou nas encostas bem drenadas durante a
estação das chuvas. A terra era preparada com o pau de cavar, simples
vara com uma extremidade alargada para aumentar seu peso. Com esse

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O povoamento da América do Norte e os primeiros mesoamericanos

instrumento abria-se um buraco para colocar juntamente algumas se-


mentes de milho e de feijão (as bactérias fixadoras de nitrogênio, que
vivem nas raízes das leguminosas, forneciam dessa forma um adubo
natural); o buraco era a seguir fechado com o pé.
Nas zonas tropicais úmidas, as melhores terras, enriquecidas pelo
humo vegetal, encontram-se nas matas. Para poder cultivá-las, os cam-
poneses tinham de derrubar as árvores menores com seus machados de
pedra (que passam a multiplicar-se no Formativo) no início da estação
seca, queimando a madeira seca logo antes das chuvas. Dessa forma,
as cinzas adubavam o solo, no qual se plantava uma grande variedade
de legumes, plantas de sementes e tubérculos. Essa técnica (chamada
coivara no Brasil, mas que leva o nome de milpa na América central)
tem a vantagem de proteger o solo da erosão, pois as árvores maiores
são preservadas e, em princípio, desmatam-se apenas pequenas parce-
las que são abandonadas logo depois que a terra se esgota, facilitando
a regeneração da floresta. Apenas se a rotatividade for acelerada, o
desmatamento torna-se irreversível.
Nas encostas bastante íngremes, o cultivo facilita a erosão, pois
as enxurradas têm muita força, e, na maior parte do ano, não há plan-
tas crescidas cujas raízes possam reter o solo. Para amenizar o problema,
cultivadores de várias regiões acidentadas fizeram terraços e levanta-
ram pequenos muros de pedra atrás dos quais acumulavam terra – o
que permite reter mais umidade durante a seca –, quebrando, assim, a
força das águas durante as chuvas e evitando o efeito erosivo.
Mais tarde, com certeza vários séculos antes do início da era
cristã, os camponeses das regiões secas começaram a desviar parte da
água dos riachos para levar até as terras secas; isso era feito a partir
de canais de irrigação e permitia assegurar as colheitas mesmo em
caso de ano de chuvas insuficientes. Certas plantas, como o milho,
podiam mesmo ser cultivadas o ano todo. Em terras normalmente se-
cas, tornava-se possível plantar algodão, abacate, sapote, ciruela,
chupandilla, cosahuico, coyol, etc. No entanto, tal procedimento pro-
voca, a longo prazo, uma salinização das terras; antes mesmo que isso
ocorra pode também acontecer um entupimento dos canais, como se

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A arqueologia mesoamericana

verificou na região de Oaxaca no início da nossa era, quando os ca-


nais de irrigação ficaram preenchidos por carbonatos de cálcio e por
crostas de magnésio.
Por volta de seiscentos anos antes da nossa era, os habitantes
do vale de Tehuacán iniciaram a construção de duas grandes repre-
sas, sendo que a maior foi reconstruída e reformada várias vezes até
o início da nossa era. Quando chegou ao seu estágio final, media
mais de 100 m de comprimento, trinta de largura e dezoito de altura.
A construção estava então formada por três andares de preenchi-
mento de terra e cascalho segurados por muros de pedra que forma-
vam espécies de caixões. A parte externa era revestida por lajes de
pedra regularizadas. Esses andares foram edificados sucessivamente,
à medida que os aluviões depositavam-se no fundo da represa,
assoreando-a. No estágio final de construção, a profundidade do reser-
vatório alcançava 8 m e a quantidade de água armazenada devia ultra-
passar 2.640.000 m³, quantidade suficiente para irrigar os cerca de 775
hectares de terra fértil situados a jusante. Calcula-se que a última fase
de construção teria mobilizado mais de 4 mil trabalhadores a tempo
completo durante a estação seca de oito meses. Depois de mais de oito
séculos de uso, essa obra gigantesca foi abandonada no século II d.C.,
após o assoreamento definitivo. Ela não foi imitada, provavelmente,
porque os camponeses acharam mais rentável multiplicar pequenas re-
presas que podiam facilmente ser limpas do que investir em poucas
obras gigantescas que requeriam um trabalho constante.
Outro procedimento, que parece pelo menos duas vezes milenar
na região de Oaxaca, consiste em furar poços para tirar manualmente
água e regar uma por uma as plantas colocadas em vasos ou em peque-
nas depressões (de 35 a 50 cm de diâmetro) cavadas no chão; essa
“irrigação manual” requer muita mão-de-obra e não é rentável para
grandes superfícies, mas é praticada até hoje.
No início da era cristã, os habitantes dos platôs passaram a dre-
nar as zonas de brejo, cavando canais para concentrar a água; a terra
retirada era acumulada em pequenas elevações de umidade modera-
da que podiam ser cultivadas o ano inteiro, dando pelo menos duas

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O povoamento da América do Norte e os primeiros mesoamericanos

colheitas; a limpeza cíclica dos canais fornecia um adubo excelente;


salgueiros (árvores que aceitam bem terrenos muito úmidos) eram plan-
tados nos limites dos lotes, fixando a terra e participando do sistema de
drenagem. Esse tipo de plantação é conhecido como chinampa; recen-
temente, verificou-se a existência de sistemas bastante semelhantes
nas zonas pantanosas do litoral sul mexicano.
Nos últimos séculos antes da chegada dos europeus, os astecas
foram mais longe criando verdadeiros polders nas lagoas pouco profun-
das do México central, imergindo cestas cheias de terra até formar
espécies de ilhas artificiais, que eram transformadas em campos culti-
vados, também de grande fertilidade, adubados com os dejetos e os
excrementos domésticos – uma técnica que os europeus só desenvol-
veram no século XIX.

A ocupação territorial durante o período


formativo

No Formativo médio (1200/800 a.C.), as populações do vale do


México formavam pequenas aldeias com menos de mil habitantes; em
cada região, uma dessas aldeias destacava-se por ser um pouco maior,
mas não há nenhum indício de diferença de status entre os habitantes,
provavelmente organizados segundo os grupos de parentesco. No fim
do Formativo, a densidade populacional parece aumentar e surgem
aldeias maiores com uma população que poderia ter atingido até 2
mil habitantes; rapidamente, uma delas parece desempenhar um pa-
pel dirigente, tornando-se uma verdadeira capital; para Flannery, esse
fato refletiria uma organização social de tipo cacicado (chiefdom), pre-
parando o caminho para a emergência de um Estado. É claro que essa
interpretação é reflexo da corrente neo-evolucionista americana, para
a qual o nascimento do Estado seria o resultado natural de uma suces-
são de estágios de complexidade crescente (sociedades de “bandos”,
sociedades tribais, cacicados e Estado). De fato, os arqueólogos apenas
dispõem dos levantamentos de sítios, da avaliação do tamanho dos mesmos

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A arqueologia mesoamericana

mediante prospecções de superfície e do resultado de algumas escava-


ções localizadas. De qualquer forma, parece não haver dúvida de que
os vestígios disponíveis apontam para um aumento de densidade
populacional e para uma relativa hierarquização das aglomerações, sendo
que as maiores passam a apresentar estruturas monumentais, de uso
provavelmente coletivo. Ao redor das lagoas do vale do México, onde
havia muitas terras aproveitáveis para uma agricultura permanente, a
densidade das grandes aldeias é enorme, havendo uma em cada 4 km.
Nas matas do litoral atlântico de Vera Cruz, onde os solos são
mais pobres e mal drenados, não parece ter havido aglomerações tão
importantes no Formativo final; as aldeias agrupariam menos de oi-
tenta pessoas, embora a densidade de sítios fosse grande (onze sítios
em menos de 100 km² na fase puentes); várias pequenas aldeias man-
teriam um único centro cerimonial, formando uma espécie de “Estado
não urbano”, segundo a expressão de Flannery, com aldeias distantes
entre si em pelo menos 15 km, estando os centros cerimoniais afastados
mais de 40 km. Trata-se da cultura Olmeca, que será estudada no
próximo capítulo.

As moradias e as populações camponesas

Embora cada região apresente particularidades, existe um pa-


drão geral já no período formativo, pelo menos para as terras altas;
exemplificaremos com os modelos de Tierras Largas, no vale de Oaxaca
e de Ticomán, no vale do México.
No início do primeiro milênio antes de Cristo, as aldeias de Oaxaca
eram formadas por vários conjuntos domésticos, cada qual comportava
uma casa e diversos anexos (geralmente dois a seis silos, um a três
sepultamentos, fornos e um depósito de lixo). Cada uma dessas unida-
des domésticas ocupava um espaço de cerca de 300 m², sendo separada
do conjunto vizinho por algumas dezenas de metros.
As casas, com 18 a 24 m², eram retangulares; quando estavam
instaladas num declive, uma base horizontal era cavada no solo até

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O povoamento da América do Norte e os primeiros mesoamericanos

uma profundidade de 30 a 50 cm se necessário. O chão era às vezes


regularizado por uma camada de entulho (cacos de cerâmica, frag-
mentos líticos, ossos) recoberta por outra de areia. O degrau da entrada
era feito de pedras e as paredes, de pau-a-pique, sendo eventualmente
revestidas de caliça; os postes principais eram de pinheiro, trazidos das
matas serranas, distantes cerca de 40 km. A porta abria-se numa das
paredes maiores, e o teto era feito de uma espécie de sapé (Phalaris
sp.). Flannery e Winter tentaram verificar se o espaço dentro da casa
já estaria dividido entre uma área de atuação feminina (com depósitos
alimentares, cerâmica...) e outra masculina (com altar, instrumentos
específicos), como ocorre nas habitações tradicionais atuais. Infeliz-
mente, a distribuição espacial dos vestígios nas casas de Tierras Largas
não forneceu indícios muito claros a respeito.
Quando uma casa era definitivamente abandonada, podia ser
aproveitada como local de entulho doméstico. Não havia fogueira fixa
no interior, mas braseiros portáteis de cerâmica. Em todas as casas es-
cavadas havia mós de pedra (metates) e suas respectivas manos, grandes
jarras para guardar líquidos, assim como braseiros portáteis de cerâ-
mica. Os vestígios alimentares mostram que a caça se dirigia prefe-
rencialmente aos veados, aos coelhos e às tartarugas, enquanto o ca-
chorro doméstico era também consumido; entre os vegetais constam
sempre sementes de opuntia, milho, abacate e feijão. Encontram-se
também no espaço doméstico fragmentos de quartzo ou sílex: inclu-
em núcleos (mostrando que havia lascadores em cada residência),
lascas brutas pequenas (menos de 5 cm) utilizadas como facas e al-
guns raspadores retrabalhados por retoque (provavelmente utilizados
para preparar as peles), feitos a partir de lascas maiores.
Existem fornos, sempre fora da casa, sendo alguns enterrados e
outros construídos; a base era levemente cavada no chão, a parede e a
cobertura eram de argila; a câmara tem geralmente cerca de 60 cm de
diâmetro interno.
Ao redor de cada casa encontram-se vários buracos siniformes
(= em forma de sino, com o fundo mais largo que a abertura) cavados
na rocha alterada, com um diâmetro maior, entre 1 e 1,5 m; sua capaci-

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A arqueologia mesoamericana

dade média é de cerca de 1m³ embora alguns possam ter uma capaci-
dade até quatro vezes maior. Eram sobretudo utilizados para guardar
alimentos, particularmente o milho; trata-se portanto de silos que eram
fechados por uma camada de argila para impedir a proliferação de in-
setos parasitas nos grãos. Num silo de tamanho “médio” podia ser con-
servada uma tonelada de grão de milho, uma quantidade suficiente
para suprir as necessidades de cereal de uma família padrão da região
durante um ano. Algumas dessas fossas eram também aproveitadas para
esconder objetos importantes para a vida quotidiana, como metates,
mãos de mó e instrumentos de madeira, cerâmica e osso. Aos poucos, a
erosão solapava as paredes dos buracos que não podiam mais ser utili-
zados como armazéns e eram, então, reaproveitados como local de se-
pultamento ou para despejo do entulho doméstico. Dessa forma, os di-
versos silos siniformes que rodeiam as casas não deviam ser utilizados
ao mesmo tempo, mas sucessivamente.
Nos depósitos de lixo encontram-se restos de facas e raspadores
de pedra lascada (mais raramente, alguma ponta de projétil), agulhas
de osso para costura e cestaria, restos alimentares (ossos, grãos carbo-
nizados), adornos de concha, restos de até várias dezenas de potes de
cerâmica.
Algumas casas dispunham de um poço de dimensões variáveis.
Pequenos regos canalizavam as águas de enxurrada longe das casas e
das cisternas.
No vale do México, as casas eram bastante parecidas; no entan-
to, no fim do Formativo (cerca de 500 a.C.), desenvolve-se uma elite
local, cujas casas passam a ser feitas de adobe (tijolos de argila seca
não queimada), material utilizado na construção dos monumentos
públicos desde 900 a.C. Outra evidência de diferença de hábitos em
relação aos oaxaquenhos: os habitantes do vale do México fabricavam
pontas de projétil de pedra para seus dardos. A boa conservação de
materiais orgânicos no vale do México brindou os arqueólogos com
informações sobre o equipamento dos artesãos: em Ticomán, foram achados
nos anos 1930 vários sepultamentos de adultos acompanhados por esto-
jos que continham instrumentos para fazer roupas de couro; são cinzéis

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O povoamento da América do Norte e os primeiros mesoamericanos

de chifre (para separar as carnes dos ossos), raspadores de obsidiana,


furadores feitos com um osso de perna de veado apontado, agulhas sem
furo (para passar cadarços), agulhas com furo e um grande número de
mandíbulas de roedores com os dentes incisivos para servir de buril.
A análise dos refugos domésticos mostra que cada unidade
doméstica do Formativo era razoavelmente autônoma, sendo capaz
de suprir a maioria das suas necessidades. Existiam no entanto al-
gumas especializações, com aldeias e indivíduos especializados na
produção de alguns artefatos. Perto de Etla (Oaxaca), duas aldeias
dedicavam-se, desde 1100 a.C., à fabricação de adornos de conchas
marinhas (dos gêneros Spondylus e Pinctada, cuja madrepérola é de
alta qualidade); em São José Mogote, o refugo doméstico mostra
uma grande quantidade de fragmentos de concha quebrados, de
furadores de sílex e buris, enquanto apenas se encontram adornos
completos nas aldeias vizinhas. Esses ateliês eram muito pequenos
(geralmente menos de 2 m²) e correspondiam provavelmente à ati-
vidade de um ou poucos indivíduos.
Em Tierras Largas, duas aldeias parecem ter-se especializado
em fabricar penachos de pena de arara (Ara militaris), cujos ossos dos
membros anteriores apresentam cortes típicos de uma atividade de
extração cuidadosa das penas; as aldeias vizinhas não apresentam ossos
dessa ave.
Desde 1300 a.C., as fontes salinas eram visitadas em Oaxaca; a
partir de 800 a.C., aldeias especializadas, com vasilhas destinadas a
ferver a água salgada, desenvolvem-se em Oaxaca, ao redor do lago de
Texcoco, no vale de Tehuacán e nas lagunas do litoral atlântico: como
no mundo inteiro, o sal passava a ser um importantíssimo item do co-
mércio inter-regional.
O trabalho da pedra também tornava-se produto de comércio
em regiões próximas a jazidas de pedras vulcânicas; metates de pedra-
pomes em Coapexco, perto de México; lâminas de obsidiana, perto da
cidade de Guatemala e, mais tarde, de Teotihuacán.
Mesmo nas aldeias onde o conjunto da população não estava se
especializando, existiam alguns artesãos que produziam para consumo

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A arqueologia mesoamericana

local; isso se verifica sobretudo no trabalho da pedra; é comum ver uma


ou duas casas da vila concentrando nos seus “silos” artefatos prontos
ou restos do processamento de artefatos polidos (machados com polidores
e seixos-batedores para picoteamento) e de instrumentos lascados mais
sofisticados (trabalhados por pressão).
No fim do Formativo, as populações que receberam a influência
olmeca começaram a construir edifícios públicos sobre pequenas plata-
formas revestidas externamente de argila pintada. Tais monumentos,
ainda modestos, costumavam ser construídos apenas em alguns pontos
do território tribal, os quais, aos poucos, tornavam-se pequenas “ca-
pitais” mercê ao seu papel central religioso e, logo, administrativo.
A partir desse momento, não tardava o aparecimento de uma elite
dirigente.

As sociedades do Formativo

Considera- se que os habitantes do período formativo da


Mesoamerica não tinham (ou tinham muito pouco) diferença de status
entre si, a não ser a que sempre existe entre as classes de idade e os
sexos. Todos os moradores de uma comunidade em princípio conhe-
ciam as técnicas tradicionalmente reservadas ao seu sexo e neces-
sárias a sua sobrevivência e ao sustento da sua família.
Supõe-se que os homens fossem trabalhar mais na derrubada das
árvores para abertura das roças ou fossem encarregados da caça, en-
quanto as mulheres fossem realizar tarefas que não as obrigassem a
afastar-se muito da casa e dos filhos menores. Alguns moradores pode-
riam ter uma posição de destaque por possuir conhecimentos específi-
cos que não fossem compartilhados pelos outros membros do grupo,
como seria o caso do xamã, capaz de entrar em contato com os espíritos
por meio do êxtase provocado por substâncias tóxicas e de curar as
doenças. Até esse “especialista” não precisaria estar muito tempo a ser-
viço da comunidade e cuidaria de produzir o próprio sustento e o da
família. Mesmo com o desenvolvimento da cerâmica, as vasilhas e sua

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O povoamento da América do Norte e os primeiros mesoamericanos

decoração eram bastante simples para que qualquer um as pudessem


fabricar durante períodos nos quais as tarefas agrícolas não eram muito
importantes. Não haveria, portanto, especialistas dependentes do co-
mércio ou da troca para sobreviver, mesmo se algum artesão pudesse se
sobressair por sua habilidade e ser requisitado pelos vizinhos.
As coisas começaram provavelmente a mudar com o comércio
inter-regional de bens de luxo, que imobilizavam totalmente algumas
pessoas (os mercadores ambulantes) durante períodos longos, tornan-
do-as dependentes de uma forma de pagamento que permitisse seu
sustento. Outrossim, os que compravam as mercadorias de luxo adqui-
riam um status especial por disporem de produtos raros. Aos poucos
deve ter-se formado uma classe de privilegiados que decidiu ao mesmo
tempo marcar e justificar sua superioridade mediante ações comunitá-
rias que refletissem a nova situação de desigualdade. Construções de
grande porte, para finalidades coletivas e, logo, particulares, parecem
ter sido o passo que levou à constituição da civilização clássica.

O conceito de “Mesoamérica”

O meio natural

A Mesoamérica compreende os países da América Central as-


sim como o território do México atual. O conceito de Mesoamérica
foi criado para designar o conjunto das populações que viveu nessa
região tropical durante os últimos milênios, pois este desenvolveu
uma série de traços culturais comuns que o opõe às demais culturas
americanas.
Mesmo assim, as culturas mesoamericanas diferem bastante entre
si, principalmente em função de ser adaptadas a meios naturais bas-
tante diversos. Em cada região ecológica, os homens dispuseram de
recursos diferentes, e a complementaridade entre as províncias natu-
rais fez que, muito cedo, se desenvolvesse um ativo comércio entre
elas.

37
A arqueologia mesoamericana

Uma primeira oposição pode ser feita entre as terras altas e as


terras baixas. A Mesoamérica é atravessada do norte ao sul por uma
zona serrana que se apresenta como sua espinha dorsal; de ambos os
lados leste e oeste há planícies litorâneas onde o clima tropical é quen-
te e úmido; houve, portanto, sobretudo a leste, desenvolvimento de
matas densas.
As terras baixas da Mesoamérica tropical são geralmente for-
madas de terrenos sedimentares; seus solos tornam-se frágeis logo que
a cobertura vegetal vem a ser destruída e empobrecem depois de pou-
cos anos de cultivo, logo que a camada húmica desaparece. As matas
nativas têm árvores que fornecem produtos de alto valor, como a bor-
racha e o cacau, e alimentos abundantes, como certas palmáceas; em
termos alimentares, essas regiões tropicais favorecem o cultivo de plantas
com raízes ou tubérculos alimentares como a mandioca. Nas matas
existe uma fauna variada, porém as espécies de interesse alimentar
mais representadas são sobretudo formadas por animais de porte me-
nor (aves, primatas) ou aquáticos (répteis). Animais mais raros – como
as onças e as antas – apresentam peles valiosas (peles de onça para
roupas de aparato, couro de anta para fazer couraças), enquanto as
aves multicoloridas são capturadas para a fabricação de adornos de
pena. As abelhas nativas – sem ferrão – são particularmente ativas
nessas regiões quentes, embora a produção de mel das abelhas nativas
não se compare à das suas irmãs do Velho Mundo. Animais de porte
médio, como veados e porcos de mato, são facilmente caçados nessas
regiões, sem apresentarem altas densidades de população.
Não havendo grandes rios na Mesoamérica, o mar representa
a melhor via de transporte para populações que não dispunham da
roda nem de animais de carga ou tração. O litoral fornece também
alimentos animais de fácil obtenção, como moluscos, crustáceos e
peixes, facilitando a fixação de grupos pescadores mesmo sem agri-
cultura. Outrossim, essas regiões fornecem produtos valorizados como
cascos de tartarugas marinhas (para fazer tambores), dentes de ja-
caré (elementos de colar), dardos de arraias (estiletes rituais para
provocar sangramentos) e, sobretudo, conchas como búzios do gê-

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O povoamento da América do Norte e os primeiros mesoamericanos

nero Strombus (trombas), Olivella, Cardium etc. (para fabricação de


adornos).
As regiões de altitude mais povoadas são os vales profundos ou os
platôs do México central, espremidos entre as duas cordilheiras para-
lelas (Sierra Madre Ocidental e Sierra Madre Oriental). Quando se
vai do norte para o sul, as terras altas são primeiramente desérticas e
bastante frias no inverno, aumentando gradualmente a temperatura e
a pluviosidade para o sul. Parte das serras são de origem vulcânica,
tendo seus terrenos basálticos um alto potencial para a agricultura,
desde que recebam bastante chuva. Outrossim, encontra-se nas ime-
diações de certos vulcão um vidro natural, a obsidiana, extremamente
preciosa para as sociedades sem metal por fornecer gumes de altíssima
qualidade e instrumentos de aspecto muito bonito (há obsidianas pre-
tas, cinzas com reflexos dourados, ou verdes). As regiões serranas secas
do norte permitem o cultivo de plantas com fibras têxteis (algodão e
cactos); os animais mais caçados são os cervídeos e os coelhos.

O complexo cultural

Os traços culturais comuns incluem desde hábitos alimentares


até crenças e rituais.
A agricultura mesoamericana é baseada no trio milho/feijão/abó-
bora, ao qual acrescenta-se em cada região plantas nativas especifica-
mente adaptadas. A preparação do milho é também a mesma em todo o
lugar: os grãos são fervidos numa água com cal, após o que são moídos
sobre um metate, mó de pedra levemente inclinada, na frente da qual a
mulher se ajoelha para preparar a farinha, triturando o grão com um
seixo; os melhores metates são de calcário ou de rocha vulcânica e sua
superfície picoteada costuma soltar um pouco de pó, que, misturado à
farinha, a torna abrasiva; dessa forma, os comedores de farinha de mi-
lho mesoamericanos gozam de dentes com poucas cáries (o pó abrasivo
limpa os dentes), mas padecem de uma abrasão dentária muito rápi-
da... A massa de milho é a seguir transformada em tamales cozidos no

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A arqueologia mesoamericana

vapor, ou em tortillas, espécies de panquecas que são torradas num pra-


to de cerâmica especial mantido por três pedras acima do fogo.
Desde o início do período formativo, todas as aldeias mesoamericanas
produziam uma grande quantidade de esculturas femininas que se cos-
tuma interpretar como sinal de cultos da fertilidade, preocupação bem
adaptada aos anseios dos agricultores.
Mais tarde, na transição entre o Formativo e o pré-clássico, no-
vas características acrescentam- se ao patrimônio comum dos
mesoamericanos: a construção de pequenas plataformas de pedra que
servem de base para as habitações, isolando-as das enxurradas e da
umidade.
A seguir, aparece o hábito de construir em cada aldeia grandes
aterros em forma de tronco de pirâmide sobre os quais instalam-se os
templos. Aos poucos, formam-se, nos centros maiores que se desenvol-
vem no fim do Formativo, conjuntos de aterros organizados ao redor de
uma praça quadrangular.
A partir desse momento, estamos muito próximos das culturas
“clássicas”: verifica-se então a existência de uma escrita hieroglífica
com características regionalmente diversas, a existência de livros
de pergaminho (pele de veado) ou de fibras vegetais de entrecasca
preparadas por martelagem. O prestígio da escrita, tanto entre os
letrados quanto os iletrados, é imenso desde a época pré-colombina
e permanece até hoje. O discurso perfeito, a poesia e o canto são as
únicas formas, além dos sacrifícios sangrentos, de se aproximar das
divindades. Por isso, a criação de uma literatura em língua indíge-
na talvez explique o sucesso das igrejas protestantes na Guatemala
nos últimos anos.
Todas as religiões mesoamericanas acreditam numa sucessão
de criações e destruições cataclísmicas dos mundos sucessivos. Cada
divindade apresenta pelo menos dois aspectos, por vezes quatro, cada
um ligado a uma direção geográfica (leste, oeste, norte e sul) e a uma
cor. Esses aspectos são opostos e complementares: muitas divindades
têm, assim, uma versão feminina e outra masculina; uma benévola e
outra malévola. Esse dualismo estrutural das situações e das pessoas

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O povoamento da América do Norte e os primeiros mesoamericanos

explica provavelmente como os grupos indígenas mesoamericanos


conseguiram, no fim do século XX, participar simultaneamente do
mundo moderno (na vida pública) e do mundo tradicional (quase
pré-colombiano) na vida doméstica. Trata-se menos de sincretismo
quanto de uma vida dupla.
A essas divindades geralmente se ofereciam vítimas sangrentas,
até mesmo humanas. Não por crueldade, mas porque é pelo sacrifício
dos homens que os deuses sustentam o mundo; dessa forma, os comba-
tes e a morte são condições essenciais para a manutenção da vida. Por
isso a ligação afetiva que mexicanos ou guatemaltecas mantêm até
hoje com a morte. Outrossim, os conflitos são uma condição preliminar
para o aparecimento da ordem; os conflitos fazem parte da humanidade
e opõem muitas vezes os dois aspectos de uma mesma pessoa, como se
verifica nos cultos dos maias atuais ao “Cristo”.
Utilizam-se paralelamente dois calendários; enquanto um deles
é ligado ao ano solar, o outro é astrológico e exclusivamente ritual,
determinando o destino das pessoas. O conceito de tempo é cíclico: a
história se repete, o passado sendo o modelo do futuro; nessas condi-
ções, o homem não é livre de inovar, mas enfrenta situações já ocorri-
das. Os movimentos milenaristas indígenas repousam sobre a certeza
de que um novo ciclo do tempo deve chegar e destruir o mundo da
dominação espanhola (ou seja, os dirigentes brancos ou mestiços que
falam espanhol).
Entre os rituais, ligados ao mesmo tempo ao curso dos astros e à
fecundidade da natureza, destaca-se o jogo de pelota, jogado com uma
bala de borracha em campo construído especificamente para essa fina-
lidade. Numerosos rituais (e festividades atuais que atualizam os anti-
gos rituais pagãos) celebram os grandes ciclos da vida humana e da
natureza.
Algumas das características acima enumeradas encontram-se em
outras regiões das Américas, mas a presença de todas elas numa mesma
cultura é típica da área cultural mesoamericana, sendo este conceito por
enquanto insubstituível. Muitas delas ainda fazem parte do quotidiano
das populações indígenas atuais.

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