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parte V

Conclusão

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Capítulo 22 Epílogo
22
Epílogo

P O N TO S P R I N C I PA I S
Anatomia comparada e homologia O estudo da morfologia animal é realizada há mais de
dois séculos; durante esse tempo foram observados
diversos períodos de extensa produtividade pontuados por
Forma e função: renascimento na anatomia dos
vertebrados períodos de estagnação, declínio e renascimento. Esse livro
Audição nos teleósteos que não possuem ossículos explorou brevemente a vasta base estrutural da anatomia
weberianos comparada, as novas perspectivas funcionais que surgiram
Audição nos teleósteos que possuem ossículos a partir de estudos integrados e do uso de novos méto-
weberianos dos experimentais, e as teorias dos métodos comparados.
Audição nos tetrápodes Apesar da grande quantidade de pesquisas, conhece-se, do
Inovação evolutiva e diversidade ponto de vista anatômico, menos de 6% das espécies de
O papel contemporâneo da anatomia comparada vertebrados existentes. Essa escassez de conhecimento é
um dos maiores impedimentos para as pesquisas atuais e
futuras que buscam explicar a natureza dos fatores causais
que estão envolvidos com o surgimento e diversificação dos
animais.
Em vez de fornecer uma conclusão geral e necessaria-
mente superficial e abstrata desse vasto assunto, optamos
por discutir concretamente um modelo que reflete as metas
e realizações da anatomia comparada e ilustra a direção de
futuros estudos nesse campo. Assim, selecionamos o apare-
lho auditivo dos vertebrados, em especial o ouvido interno,
como exemplo.

Anatomia comparada e homologia


A hipótese de que a hiomandíbula dos peixes é homóloga
à columela dos anfíbios revolucionou a anatomia compa-
rada por servir como um exemplo das modificações mor-
fológicas envolvidas na transição da vida aquática para
a terrestre, e por explicar a origem do sistema auditivo
dos mamíferos. Ainda que a hiomandíbula dos peixes
seja um elemento estritamente relacionado à sustenta-
ção do aparelho mandibular (Figura 22-1A), ela possui
uma articulação sinovial com o crânio e uma articulação
Epílogo 697

distal com o quadrado. Ambas articulações são um indi- presente (Figura 22-1C). O tímpano fica localizado pró-
cativo da configuração da hiomandíbula, que sofreu um ximo ao quadrado nos saurópsidas. Análises estruturais
leve deslocamento de sua conexão proximal com o crânio adicionais com base em um contexto filogenético levaram
para se conectar a uma janela na cápsula ótica, e um des- à descoberta de que, nos sinápsidas considerados como
locamento posterior (caudal) e dorsal de sua extremidade ancestrais dos mamíferos, tanto o quadrado quanto o
distal com o quadrado para se conectar ao tímpano, ou articular foram reduzidos e ficaram menos firmemente
caixa timpânica (Figura 22-1B). O desenvolvimento ini- articulados com os ossos vizinhos, reduzindo seu papel
cial da columela dos anfíbios é praticamente idêntico ao na sustentação da articulação da mandíbula (Capítulo 7).
desenvolvimento da hiomandíbula dos peixes. A posição Essa tendência resultou, nos mamíferos, na incorporação
originalmente vertical da hiomandíbula, alinhada ao eixo do quadrado, da columela (que permanece articulada com
dorsoventral, mudou, nos tetrápodes, para uma posição o quadrado) e do articular ao ouvido médio (Figura 22-
mais horizontal, inserida na nova cavidade timpânica, ou 1D); esses ossos são bastante pequenos nos mamíferos e
cavidade do ouvido médio (Capítulo 12 e Figura 22-1A seus nomes foram mudados para martelo (articular), bi-
e B). A cavidade do ouvido médio se desenvolve a par- gorna (quadrado) e estribo (columela). Estudos sobre o
tir da primeira bolsa faríngea embrionária, assim como o desenvolvimento da articulação mandibular e da região do
espiráculo de um peixe, indicando homologia entre essas ouvido do gambá mostram claramente o desenvolvimen-
regiões; essa homologia, por sua vez, apoia a homologia to de um processo no osso angular da mandíbula que se
da hiomandíbula dos peixes com a columela dos anfíbios. torna o osso timpânico que segura o tímpano e envolve
Evidências anatômicas adicionais também mostram a parcialmente o ouvido médio (Figura 22-2). Tais estudos
semelhança na posição entre a columela dos anfíbios e a também mostram como o martelo e a bigorna se diferen-
dos saurópsidas; nestes últimos, a columela proeminente ciam a partir de elementos originalmente envolvidos com
também fica posicionada horizontalmente, atravessando a sustentação da articulação mandibular em ossículos do
o ouvido médio da região da cápsula ótica para a caixa ouvido dos mamíferos. A hipótese de que o martelo deri-
timpânica, ou o tímpano, quando tal membrana está va a partir do articular é também sustentada pelo fato de

Cavidade Columela
Columela (hiomandíbula)
Cavidade (hiomandíbula) cerebral Cavidade
cerebral cerebral
Tímpano
Tímpano

Quadrado
Quadrado
Cavidade
Hiomandíbula do ouvido
médio Articular
Cavidade
Quadrado Articular do ouvido
médio
Articular Dentário

A. Teleósteo primitivo B. Lissanfíbio C. Lepidossauro

Bigorna
(quadrado)

Martelo
(articular) Estribo
(columela)

Janela
redonda

FIGURA 22-1
Tímpano
Tuba Ouvido de vertebrados vistos em corte
auditiva
Cavidade do transversal. A. Condição típica de um teleósteo
ouvido médio primitivo. B. Lissanfíbio. C. Lepidossauro.
D. Mamífero eutério D. Mamífero eutério. (Modiificado de Romer.)
698 Anatomia funcional dos vertebrados – uma perspectiva evolutiva

Martelo

Bigorna

Estribo

Timpânico

A. Gambá adulto B. Ossículos do ouvido do gambá adulto

Cartilagem de Meckel

Martelo
Bigorna

Estribo Quadrado

Articular
Angular

C. Filhote de gambá em desenvolvimento D. Cinodonte primitivo

FIGURA 22-2
A. Crânio de um gambá adulto, Didelphis virginiana, mostrando a conformação característicada da articulação mandibular dos
mamíferos. B. Ossículos do ouvido de um adulto. C. Os elementos do ouvido médio na fase inicial do desenvolvimento. D.
Representação do crânio do cinodonte Thrinaxodon, mostrando a condição primitiva da articulação mandibular. Exceto pelos ossos
dérmicos timpânico/angular, todos os elementos diferenciam-se a partir dos arcos mandibular e hioide e são ossos de substituição.
(Modificado de Hopson).

que o martelo está associado ao músculo tensor do timpâ-


no, inervado pelo nervo trigêmio (V) do arco mandibular Forma e função: renascimento na
(Capítulo 13). Por outro lado, o estribo (a hiomandíbula anatomia dos vertebrados
modificada) é derivado do hioide e o músculo o estapédio
associado a ele é inervado pelo nervo facial (VII). À medida que o estudo da anatomia foi sendo desenvolvi-
Além da homologia entre os ossículos do ouvido dos, foram surgindo questões além da estrutura e da homo-
médio dos mamíferos e os elementos de sustentação da logia, e o foco foi então mudando de uma simples descrição
mandíbula nos outros vertebrados também são observa- de padrões para a compreensão das diferenças causais na
das outras hipóteses de homologia; dentre essas estão a forma dos vertebrados. Como veremos no exemplo dos
homologia do ducto espermático dos mamíferos com o estudos do aparelho auditivo, esta abordagem é essencial-
ducto arquinéfrico dos anamniotas (Capítulo 21), ou a mente funcional.
homologia dos componentes da laringe dos mamíferos
com os elementos de certos arcos branquiais (Capítulo 7), Audição nos teleósteos que não possuem
por exemplo. A congruência entre as inúmeras homolo-
gias hipotetizadas pela anatomia comparada é um forte
ossículos weberianos
apoio para a teoria de Darwin sobre descendência com A densidade do corpo dos peixes é quase a mesma que a
modificação. O estudo da anatomia, associado à biologia da água, portanto, ondas sonoras movem o corpo do ani-
do desenvolvimento, e ambos analisados sob um pano- mal em amplitude e frequência aproximadamente iguais
rama evolutivo comparado, permite elucidar importantes às aplicadas sobre a movimentação da água; como con-
padrões de diversidade entre os vertebrados. sequência, os peixes são incapazes de perceber sons. No
Epílogo 699

entanto, os peixes possuem duas estruturas com densida- Audição nos teleósteos que possuem
des bem diferentes à da água e que se movem de maneira ossículos weberianos
também diferente: a bexiga natatória (Capítulo 18) e o
otólito (Capítulo 12). A bexiga natatória se movimenta Um acoplamento acústico funcional entre o ouvido inter-
em resposta às ondas sonoras que chegam no animal e no e a bexiga natatória pode mudar a relação física entre os
atua como um hidrofone e como uma fonte secundária dois. Em espécies do grupo Otophysi (um subgrupo dos
de propagação, enviando uma onda acústica com energia Ostariophysi), a bexiga natatória e o ouvido interno são
suficiente para estimular o ouvido interno. Os otolitos, mecanicamente acoplados pelos ossículos weberianos (Fi-
por serem mais pesados e mais densos, não são facilmente gura 22-4). Como discutido no Capítulo 12, esse aparelho
colocados em movimento como ocorre com o tecido que é formado por três ou quatro pequenos ossículos deriva-
os envolve; assim, sua fase e amplitude de movimento di- dos dos elementos vertebrais; estes ossículos articulam-se
ferem das do resto do corpo, o que causa uma deformação de forma móvel com uma cartilagem elástica que transmite
dos cílios das células ciliadas e resulta, consequentemente, as vibrações da bexiga natatória para o ouvido interno (Fi-
na detecção de som. Os peixes que possuem bexiga nata- gura 22-4). O movimento das paredes da bexiga natatória
tória são bons detectores de sons, mas os peixes sem be- resultantes do estímulo acústico promovem a movimenta-
xiga natatória são menos sensíveis a sons em geral e mais ção dos ossículos weberianos no sentido anteroposterior.
limitados na sensibilidade de variações de frequências A bexiga natatória possui uma parede dupla, formada por
(Figura 22-3); esse fato mostra a importância da bexiga uma túnica externa dura de colágeno e por uma túnica in-
natatória para a audição. A remoção da bexiga natatória terna elástica. Dorsalmente, a túnica externa possui uma
resulta, invariavelmente, em uma perda de sensibilidade fenda (Figura 22-4) que expõe a túnica interna e, durante
para sinais acima de 160 Hz. a vibração do gás localizado dentro da bexiga natatória,
A utilização de tecnologias modernas para a coleta de a túnica interna elástica vibra junto e salta para dentro e
dados (câmaras sonoras e as ferramentas neurofisiológi- para fora da fenda, provocando a deformação das margens
cas, por exemplo) é usada por pesquisadores interessados desta fenda. Como o processo posterior do ossículo we-
em analisar a relação dos animais com seu meio. Especia- beriano mais posterior (o tripus) é ligado à margem da
listas em neurobiologia podem gravar experimentalmen- fenda, os movimentos vibratórios induzem movimentos
te a maior eficiência mecânica de determinada estrutura, anteroposteriores nesse ossículo, que são transmitidos, su-
por exemplo. cessivamente, por ligamentos, para os ossículos anteriores,
A pressão sonora necessária para uma resposta comportamental (dB re 1dyne/cm2)

40
Teleósteo (sem bexiga natatória)

30

20

10

0
Teleósteo (com bexiga natatória)

–10

FIGURA 22-3
–20 Audiogramas mostrando a maior sensibilidade
Otofisiano (com bexiga natatória e do ouvido de peixes otofisianos. Observe
ossículos weberianos) que os ouvidos menos sensíveis são os de
–30 um peixe que não possui bexiga natatória,
ao passo que o ouvido mais sensível é
aquele do peixe que possui o aparelho
–40
weberiano. Peixes com bexiga natatória,
0,05 0,08 0,1 0,2 0,3 0,4 0,5 0,8 1 2 3 5 mas sem ossículos weberianos possuem uma
Frequência do som (log kHz) sensibilidade intermediária. (Modificado de
Fay e Popper.)
700 Anatomia funcional dos vertebrados – uma perspectiva evolutiva

Fenda da
Arcos neurais bexiga natatória
Intercalarium
Scaphium
Claustrum
Seio
ímpar

Câmara posterior
da bexiga natatória

Ligamentos

Tripus
A. Aparelho weberiano em vista lateral

Túnica interna
Claustrum Scaphium Ligamento Intercalarium Tripus Ligamento projetando-se para
fora da fenda
Seio ímpar
Otólito
Canal Sáculo
transversal
Túnica
externa

Crânio
Saco endolinfático

B. Aparelho weberiano em vista dorsal

FIGURA 22-4
A. Representação, em vista lateral, de um peixe Otophysi, mostrando os ossículos weberianos e a bexiga natatória.
B. Detalhe da bexiga natatória e dos ossículos weberianos em vista dorsal. As vibrações, indicadas por setas, aplicadas sobre a bexiga
natatória são transmitidas para o tripus e para os outros ossículos, que são conectados por ligamentos com o seio ímpar e com os
canais transversais, e depois para o sáculo, onde as ondas são percebidas. (B, Modificado de Alexander).
Epílogo 701

o intercalarium e o scaphium (Figura 22-4) e, finalmente, Audição nos tetrápodes


para o claustrum. O deslocamento do scaphium e claustrum
A condição primitiva para os tetrápodes (os saurópsidas,
provoca o movimento do líquido para o seio ímpar, que é
por exemplo) é a de o som ser transmitido da caixa timpâ-
uma câmara perilinfática especializada. O seio ímpar, por
nica, ou tímpano (na superfície da cabeça) para a endolin-
sua vez, transfere os movimentos para um canal transversal
fa do ouvido interno pela columela, um ossículo auditivo
e para os sáculos, provocando a movimentação dos otó-
que atravessa a cavidade do ouvido médio. A columela
litos localizados nos sáculos. Uma ação de força de ala- une-se lateralmente ao tímpano e medialmente, por sua
vanca ocorre nos ossículos, especialmente no tripus (Figura base, à fenestra oval na cápsula ótica (Capítulo 12). Há
22-4): seu processo posterior fica mais distante do fulcro uma correlação entre a proporção da membrana timpâni-
(que corresponde à articulação da terceira vértebra) do ca e o tamanho da base da columela, com a sensibilidade
que seu processo anterior, que fica ligado ao intercalarium. auditiva; quanto maior a proporção, maior é a sensibi-
Assim, os ossículos não apenas transferem, mas também lidade da audição. Quando o tímpano é grande, toda a
amplificam as ondas de pressão da bexiga natatória em di- energia que incide sobre ele é concentrada na pequena
reção ao ouvido interno. A arquitetura da túnica externa, base da columela. O aumento resultante na quantidade
com uma fenda dorsal pela qual a túnica interna pode se de energia por unidade de área da base permite que as
projetar, associada ao mecanismo de alavanca amplificador vibrações superem a inércia, ou a impedância, do líquido
do tripus, explica a excepcional audição nos peixes Oto- do ouvido interno. Os ouvidos de alguns saurópsidas, no
physi que possuem uma capacidade auditiva superior em caso os lepidossauros, podem responder a frequências de
termos de frequência e sensibilidade (Figura 22-3). até 10 kHz (Figura 22-5A).
Pressão sonora necessária para a resposta
comportamental (dB re 1 dyne/cm2)

80

60

40

–20

–20
0,1 1 10 100
A. Lepidosauria Frequência do som (log kHz)
Pressão sonora necessária para a resposta
comportamental (dB re 1 dyne/cm2)

80

60

40

20

0 FIGURA 22-5
Audiogramas mostrando as diferenças nas
–20 sensibilidades e nas variações de frequências
0,1 1 10 100 percebidas, tanto para lepidossauros (A)
B. Mammalia Frequência do som (log kHz) quanto para mamíferos (B).
702 Anatomia funcional dos vertebrados – uma perspectiva evolutiva

Nos mamíferos, dois ossículos auditivos adicionais, bi- rialidade, reprodução, comunicação agressiva e de alerta,
gorna e martelo, foram adicionados ao sistema da colume- predação e forrageamento, e cuidado paternal. Evidências
la, que, nesses animais, é chamado estribo. Juntos, os três indiretas mostram que uma habilidade melhorada para
ossículos formam um sistema de alavanca que amplifica o detectar sons de alta frequência seria uma vantagem seleti-
som em aproximadamente 1,5 vezes; a amplificação adi- va para os mamíferos insetívoros noturnos; essa inovação
cional resulta da área da membrana timpânica, que é 22 poderia ter sido um importante fator para a diversificação
vezes maior que a área da base do estribo. O resultado do grupo Mammalia.
dessa organização é um sistema auditivo bastante sensível Os desafios da anatomia comparada, no entanto, vão
(Figura 22-5B). além da simples afirmação de que a presença de determi-
Assim, a bexiga natatória associada ao aparelho we- nada inovação esteja relacionada à diversificação de um
beriano nos peixes Otophysi é, funcionalmente, bastan- grupo. Lauder (1981) propôs o uso de padrões filoge-
te semelhante ao sistema de três ossículos auditivos no néticos para avaliar o papel relativo de determinada ino-
ouvido médio dos mamíferos. Em ambos os grupos, a vação na diversidade de espécies, mas neste caso, o pro-
amplificação é intensificada pela maximização do siste- blema é conseguir determinar se os ossículos auditivos
ma de alavanca dos ossículos, pela arquitetura da bexiga dos mamíferos foram, de alguma maneira, responsáveis
natatória nos peixes Otophysi, e pela proporção entre o pela grande diversificação dos mamíferos. Quando com-
tímpano e a base do estribo nos mamíferos. Como con- paramos o grupo Mammalia, caracterizado pela presença
sequência, tanto os mamíferos como os peixes Otophysi dos três ossículos auditivos, com grupos externos tanto
possuem ouvidos mais sensíveis que respondem a uma mais próximos como mais distantes entre os Synapsida
maior variação de frequências (Figuras 22-3 e 22-5) em (Figuras 3-31 e 22-6) que não apresentam tal caracterís-
comparação a seus grupos-irmãos que não dispõem de tica, nota-se que esses últimos não são tão diversos, pelo
tais mecanismos. Pelo fato do desempenho funcional ser menos considerando-se as evidências fósseis encontradas
tão parecido apesar da distante e distinta origem evolu- até o momento (Figura 22-6). Ainda, a diversidade limi-
tiva entre os Mammalia e os Otophysi, os ossículos we- tada de grupos de Synapsida parece estar relacionada a
berianos e os três ossículos auditivos dos mamíferos são baixa ocupação de habitats nos quais as habilidades audi-
um dos exemplos mais didáticos de evolução convergente tivas reforçadas seriam benéficas ao animal. Para avaliar
entre os vertebrados. Ambos sistemas se originaram in- melhor a relação causal entre a inovação evolutiva dos
dependentemente, mas a mesma especialização funcional ossículos auditivos dos mamíferos e sua diversificação,
foi adquirida, em ambos os casos, por ossículos forman- examinamos o aspecto convergente da inovação evolutiva
do sistemas de alavanca relacionados com a amplificação do aparelho weberiano, que promove uma melhor capa-
das ondas sonoras. cidade auditiva, e seu provável efeito na diversidade dos
A compreensão da evolução independentee destes dois peixes Otophysi. Assim como nos mamíferos, a presen-
sistemas auditivos eficientes é reflexo da integração de ça dos ossículos weberianos e a consequente capacidade
diversos estudos anatômicos, fisiológicos, biomecânicos auditiva melhorada podem ter contribuído para a ocu-
e do desenvolvimento aplicados sobre um contexto filo- pação de diversos habitats pelos peixes Otophysi. A audi-
genético; outro exemplo de uma abordagem integrativa ção, especialmente em habitats profundos de água doce,
como esta elucidando padrões evolutivos é a evolução é usada nos encontros reprodutivos, no comportamento
funcional da respiração dos vertebrados (Capítulo 18). A agressivo, estabelecimento de abrigo, localização da pre-
anatomia comparada moderna mostra que os principais sa, reconhecimento de espécies, migração e orientação. A
avanços são feitos quando se integra métodos, conceitos e diversificação dos Otophysi é mais extensa (mais de 600
teorias vindos de diferentes áreas. espécies) do que a dos mamíferos (Figura 22-6). Ainda, o
grupo externo mais basal (entre os Ostariophysi) em rela-
ção a Otophysi, os Anotophysi não possuem um aparelho
Inovação e diversidade evolutiva weberiano e não se observa uma diversificação tão grande
quanto a observada no grupo Otophysi (Figura 22-6).
A presença três ossículos auditivos na cavidade do ouvido Esses padrões filogenéticos contrastantes, observados en-
médio dos mamíferos é considerada, por muitos biólogos, tre os mamíferos e os peixes Otophysi e seus respectivos
como uma inovação evolutiva, da mesma forma que os grupos externos, apoiam a ideia de que as diferenças dos
ossículos weberianos conectando a bexiga natatória com o sistemas auditivos de Mammalia e Otophysi possam ser
ouvido interno nos peixes Otophysi. Apesar de claramen- causalmente correlacionadas com a evolução e diversifica-
te convergentes, os dois sistemas fornecem a cada grupo ção dos dois grupos. Somente após a comparação dentro
habilidades auditivas exclusivas: os mamíferos são co- de um contexto filogenético é que podemos concluir que
nhecidos por usar tanto a precisão quanto a sensibilidade o projeto funcional pode ter um papel na influência dos
auditivas no reconhecimento de parceiros sexuais, territo- padrões ecológicos, comportamentais e evolutivos.
Epílogo 703

†Cynognathia (diversidade baixa) uma parte integrante de muitas áreas da biologia, desde a
sistemática filogenética até as biologias celular e molecular
evolutivas. Embora a teoria moderna das relações filoge-
Monotremata néticas dos vertebrados esteja fundamentada principal-
mente na anatomia comparada (Capítulo 3), novas ideias
Mamíferos sobre a natureza e destino da segmentação dos músculos
Metatheria (diversidade:
22 grandes da cabeça, dos esqueletos branquiais e dos nervos cra-
3 ossículos linhagens) nianos resultaram da integração de estudos de anatomia
auditivos
comparada, sistemática, biologia do desenvolvimento e
Eutheria
genética molecular. Os principais avanços na compreensão
A. Presença de ossículos auditivos e provável efeito do nado dos peixes e do voo dos vertebrados, por exem-
na diversidade dos Mamíferos em relação a seu
grupo externo, que não apresenta tal inovação plo, resultaram da aplicação e da incorporação, respectiva-
mente, de métodos vindos das engenharias hidrodinâmica
Chanoidei e aeronáutica e das teorias sobre a anatomia comparada e
Anotophysi
(baixa o comportamento (Capítulo 11). Novas abordagens inte-
diversidade) grativas renderam uma nova explicação sobre o sistema de
Gonorynchoidei alimentação dos vertebrados, substituindo noções especu-
lativas mais antigas, fundamentadas na simples derivação
da função a partir da forma, por teorias fundamentadas
Cypriniformes
em dados experimentais obtidos a partir de técnicas como
o uso seletivo de pequenos transdutores de pressão alta-
mente sensíveis nos peixes; eletromiografia; cinematogra-
Characiformes
Otophysi fias óptica e radiográfica de alta velocidade; medidores
(diversidade:
4 grandes de tensão para medir estresse, tensão e deformação do
Gymnotoidei linhagens, osso; e pequenas câmeras colocadas dentro da boca do
6 mil espécies)
animal. Essas ferramentas empíricas foram “importadas”
Ossículos
weberianos de pesquisas em medicina, fisiologia e indústria nuclear
Siluroidei e são integradas com a neurobiologia e a anatomia com-
parada. Os resultados dessas pesquisas sobre o sistema de
B. Presença de ossículos weberianos e o provável efeito
na diversidade dos Otophysi em relação a seu grupo alimentação em particular são resumidos no Capítulo 16,
externo, que não apresenta tal inovação com ênfase dada aos peixes que se alimentam por sucção e
FIGURA 22-6 por captura ativa, e nos geradores de padrão e mastigação
A. Comparação filogenética do possível efeito da presença dos estereotipada nos amniotas. Nos capítulos 18 e 19, são
três ossículos auditivos na diversificação dos mamíferos, com abordadas a mecânica da ventilação pulmonar e a separa-
17 linhagens ordinais, em relação a diversificação do grupo ção do fluxo sanguíneo sem uma barreira física.
externo sinápsida, Cynognathia, que não apresenta os ossículos
A anatomia comparada não apenas serve como base
do ouvido médio.
B. Comparação filogenética do possível efeito da presença do para outras áreas da biologia, como também vem se tor-
aparelho weberiano na diversificação do grupo Otophysi em nando precursora na integração de várias áreas da biologia.
relação a diversificação do seu grupo-irmão Antrophysi, que É uma disciplina desbravadora e pioneira, que se propõe a
não apresenta aparelho weberiano. identificar e resolver novos problemas e gerar novas teorias,
atravessando as barreiras interdisciplinares tradicionais da
filogenética, biologia do desenvolvimento, zoologia expe-
rimental, comportamento, ecologia, evolução e engenharia
O papel contemporâneo científica. A anatomia comparada tenta, por meio da inte-
da anatomia comparada gração de diferentes campos de pesquisa, explicar do ponto
de vista causal, os efeitos evolutivos do design funcional na
Como a anatomia comparada tem uma abordagem ver- diversidade biológica. Assim, a anatomia comparada entra
dadeiramente multidisciplinar, ela pode ser considerada com uma nova e promissora proposta de pesquisa.
704 Anatomia funcional dos vertebrados – uma perspectiva evolutiva

REFERÊNCIAS
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