Você está na página 1de 10

Conferência

Paolo Lollo – Tradução: Solange Mendes da Fonseca

Do mito da torre de Babel à diferença entre


Real, Simbólico e Imaginário
Psychoanalysis against fascism
From the myth of the tower of Babel to the difference between
Real, Symbolic and Imaginary
Paolo Lollo
Tradução: Solange Mendes da Fonseca
Revisão técnica: Cristiane Lollo

Resumo
O que é fascismo? Seria apenas um regime político ou igualmente uma forma de pensar (de
pesar o mundo), uma posição psíquica? Em que a psicanálise vai contra o fascismo? Como o
mito da Torre de Babel nos ajuda a pensar a diferença entre Real, Simbólico e Imaginário e
combater todo totalitarismo?

Palavras-chave: Psicanálise, fascismo, Torre de Babel, Real, Simbólico, Imaginário, Idolatria.

O fascismo e o um Por que a pedra fundamental do fascismo


O fascismo foi um movimento político ita- se chamava MILÍCIAS de combate [FASCI
liano que tomou seu nome das milícias de des combattants]? Que significa FASCIO?
combate [Fasci di combattimento] fundadas A palavra “fascismo” deriva da palavra
em 1919 por Benito Mussolini.1 As Fasci di latina fascio, que significa feixe. Como
combattimento eram uma organização ar- objeto, um feixe é um conjunto de elementos
mada paramilitar composta por militantes, longilíneos atados. Pensemos no feixe de
que usavam a violência para impor suas luz. Na Antiga Roma, os fasces lictoriae (o
ideias. Seus membros vestiam como uni- emblema do lictor) eram as armas levadas
forme uma camisa negra, tinham armas e pelo lictor, isto é, varas de madeira amarradas
se organizavam em grupos de ação militar com faixas de couro, em torno de uma
e nomeavam a si mesmos de squadracce, machadinha. A palavra “lictor” designava
isto é, milícias. tanto as armas assim ligadas quanto todo
Seu alvo e seu estilo eram a ação direta homem que as levava. Os lictores (em latim
contra as associações operárias, as câmaras clássico: lictor, -oris no singular; lictores,
do trabalho, os sindicalistas, as oposições -orum no plural) eram civis que pertenciam
em geral. à classe de servidores da antiga Roma. Eles

1. Em 1921 o movimento se tornara um partido e tomara o poder em 1922 com a Marcha sobre Roma. Ele se transformara
rapidamente em regime ditatorial de caráter totalitário e nacionalista, e governara a Itália até 25 de julho de 1943.

Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 48 | p. 15–24 | dezembro/2017 15


Psicanálise contra o facismo – Do mito da torre de Babel à diferença entre Real, Simbólico e Imaginário

constituíam a escolta dos magistrados, que devastação, a batalha da democracia estaria


possuíam o poder de constranger e punir. perdida logo de início. Seus informantes,
O emblema dos lictores é o símbolo do seus serviços secretos estão em toda parte, e
poder e da autoridade máxima: o Imperium. nós não podemos fazer nada para contê-los.
Esse emblema, de forma cilíndrica, que reú- Isso não é totalmente falso: nosso traba-
ne varas de madeira, com listas vermelhas, lho de luta contra o fascismo revela-se difí-
simboliza o poder de punir, e a machadinha cil, pois “o fascismo [...] está dentro de cada
que está no meio simboliza o poder de matar, um de nós, em nossas cabeças e em nosso
de decretar a morte. comportamento de todos os dias [...]” (Fou-
Observemos que esses símbolos – feixe cault, 2001, p. 136).
de varas, machadinha – são símbolos fálicos
que encarnam o poder. Um feixe une, reúne O fascismo em nós
elementos diferentes em um UM; um UM Por que o fascismo estaria em nós, em nossa
indivisível, um corpo sem articulação. Um cabeça? Por que nos impele a amar o poder e
UM que simboliza a força. a escolher o que nos oprime? Eis aqui ques-
tões que concernem à psicanálise e às quais
O fascismo é o adversário estratégico vou tentar responder.
Michel Foucault (2001, p. 133, 136) consi- Vimos que é próprio do fascismo fazer
dera o fascismo como o inimigo político a UM, reunir os elementos separados em uma
abater: unidade firme de tal modo que não se possa
mais separá-los. Reunidos em uma totalida-
O adversário estratégico é o fascismo […] o de, eles jamais poderão assumir sua própria
fascismo que está dentro de cada um de nós, autonomia. Cada vara deve ficar bem colada
em nossas cabeças e em nosso comportamen- ao cilindro que envolve a machadinha, po-
to de todos os dias; o fascismo, que nos faz der-se-ia dizer, machado de guerra. Assim,
amar o poder e desejar verdadeiramente o cada sujeito deve permanecer assujeitado,
que nos oprime e nos explora.2 escravizado ao poder de um único mestre,
caso contrário, o risco é de morte, e a ma-
Foucault define o fascismo como o ad- chadinha aí está para lembrá-lo disso.
versário estratégico. Sendo assim, o comba- O problema do fascismo é, então, esse
te contra o fascismo não pode ser senão de UM monolítico, totalitário. Ele se insinua
longo fôlego e dar-se permanentemente so- no interior da cidadela fechada do Eu, ele a
bre um vasto território. Porque o fascismo controla e a domina, impedindo, de todas as
posssui não apenas soldados evidentes que formas, que um sujeito emerja. O fascismo
se colocarão diante de nós, mas também sol- não seria, antes de tudo, uma posição psíqui-
dados infiltrados no campo inimigo (o que ca totalitária e idólatra, ou seja, uma posição
chamaria de ‘campo da democracia’). Esses de fidelidade a uma ideia, a uma imagem?
soldados são tão hábeis e treinados que têm Impossivel não pensar no papel do Supereu,
a capacidade de se infiltrar em nós, em nossa no severo controle de nossos atos e nossos
consciência e, ainda mais longe, em nosso in- pensamentos.
consciente. Poder-se-ia pois pensar que, face
a tal inimigo, a tamanha força, a tamanha A torre de Babel: uma língua,
um povo, um lugar
2. “L’adversaire stratégique est le fascisme […] le fascisme Para compreender a posição psíquica que se
qui est au-dedans de chacun de nous, dans nos têtes et dans submete ao UM, eu lhes proponho percor-
notre comportement de tous les jours; le fascisme, qui nous
fait aimer le pouvoir et désirer vraiment ce qui nous opprime rer uma passagem bíblica surpreendente: o
et nous exploite.” mito de Babel. “Todo o mundo se servia de

16 Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 48 | p. 15–24 | dezembro/2017


Paolo Lollo – Tradução: Solange Mendes da Fonseca

uma mesma língua e das mesmas palavras” confundem, e essa língua monolítica de Ba-
(Gênesis, 11.1).3 bel perde sua força simbólica e se torna um
Chegando, pois, a Babel, os homens se palavreado vazio. “Eis que todos constituem
puseram a construir uma cidade e uma torre: um só povo e falam uma só língua” (Gêne-
“Construamos uma cidade e uma torre cujo sis, 11.6). O Simbólico perde sua função de
ápice penetre nos céus  ! Façamo-nos UM religar os significantes, o símbolo não tem
nome (chem) e não sejamos dispersos sobre mais nenhum suporte e perde seu sentido,
toda a terra” (Gênesis 11.4). Tais foram as pois que tudo é UM. A metaforização não
palavras dos habitantes de Babel, que se pu- existe quando Tudo é o Mesmo. Quando
seram logo à obra sob o olhar do Eterno que real, simbólico e imaginário se confundem,
diz: “Eis que todos constituem um só povo e perdem toda a função de separação. Função
falam uma só língua” (Gênesis, 11.6). Deus que Deus ocupa ao intervir em Babel, sepa-
não parece satisfeito e decide intervir para rando as línguas para deixar espaço para a
confundir as línguas do povo de Babel. Esse interpretação, para a crítica. E é o que fará
verbo “confundir” é a tradução do verbo he- Lacan ao dar à psicanálise conceitos novos
breu NaVeL (noun, vet, lamed),4 que signifi- que nos são muito úteis. Nós podemos dizer
ca, mais precisamente, “separar”. que Lacan faz, com essa distinção e essa se-
Deus desce, pois, do céu, para separar as paração entre RSI, uma obra de criação ou de
línguas e dispersar esse povo que aspira a ser recriação da psicanálise.
UM.5 Na Babel como no fascismo a língua tor-
Vemos que Deus intervém para interrom- na-se muito concreta; seu alvo é o poder, a
per o processo que conduz ao Um: uma lín- apropriação: fazer UM. Fazer de modo que o
gua, um povo, um lugar. Deus considera que Eu faça UM com seu objeto. A língua é posta
qualquer tentativa visando produzir o UM em movimento por desejo de poder que quer
fazendo surgir uma torre que pudesse per- construir uma torre mais alta que o céu.
furar o céu é pretensiosa e idólatra, pois esse Tenho a impressão de que vivemos em
UM não pertence senão a Ele, o Deus único. uma Babel moderna. Nosso presente torna a
O mundo de Babel está fechado no UM, torre transparente, não mais toda construída
privado de abertura. Se tudo é UM, as pa- de tijolos e argamassa, mas composta de mi-
lavras não podem ser separadas das coisas. crochips. Ela tenta reduzir o Real ao Rimbóli-
Ora, sem distância entre as palavras e as co, mas o que consegue é criar uma linguagem
coisas, não há liberdade possível. A palavra terna, esvaziando-a de sua força simbólica. A
adere à matéria, o Simbólico é prisioneiro do fala se faz imagem fixa que cola no real. O Real,
Real. A palavra e a interpretação tornam-se por seu turno, perde sua voz/via e sua força.
impossíveis. A diferença se apaga. Não exis- O homem está ligado, preso-imobilizado
te mais diferença entre esses três registros em sua relação com os signos, os códigos, as
propostos por Lacan: Imaginário, Simbólico, imagens. As relações humanas estão secan-
Real. A linguagem, isto é, o Simbólico cola do. As imagens dificilmente tornam-se sig-
no Real e no Imaginário. Os três registros se nificantes. O discurso torna-se impossível.
Não há lugar para o diálogo, somente para
um monólogo coletivo, um murmúrio. Es-
tamos mergulhados em uma fala totalitária,
3. In: A Biblia de Jerusalém. que quebra a liberdade. A característica des-
4. O verbo, em sua raiz hebraica, é composto por três sa liberdade é a possibilidade de não dizer as
consoantes: noun, vet, lamed. coisas como elas são nem como elas aparen-
5. “Deu-se-lhe por isso o nome de Babel, pois foi lá que
o Eterno confundiu (BaLaL) a linguagem de todos os tam, mas poder dizê-las de outro modo, po-
habitantes da terra” (Gênesis 11. 9). der recriá-las, reinventá-las.

Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 48 | p. 15–24 | dezembro/2017 17


Psicanálise contra o facismo – Do mito da torre de Babel à diferença entre Real, Simbólico e Imaginário

Pela tradição judaica, essa fala totalitária é apagado pela imagem, por uma escritura
é idólatra, é um culto da imagem, da aparên- fundamentalmente estabelecida sobre a ima-
cia. gem. Estamos em vias de viver uma espécie
Deus intervém, então, na Babel: ele separa de negação [déni]9 do Real?
as línguas dos habitantes de Babel e os dis-
persa pelo mundo. O método de criação de O Real, o Imaginário e a psicanálise
Deus é bem conhecido, sempre o mesmo: a Se o Real é negado, isso não significa que ele
separação. Para criar o Mundo, ele primei- não exista, que ele não opere, mas simples-
ro separou o céu da terra, o dia da noite, a mente que o ignoramos porque não pode-
mulher do homem. Ele transforma o UM em mos ter a representação dele. Quais são as
DOIS, em múltiplos. Separar as línguas, mas consequências? Vivemos em uma hipertrofia
também o Real do Simbólico, separar a pa- da imagem, em que o Imaginário toma o lu-
lavra da matéria, o tijolo da argamassa, que gar, todo o lugar do Real. O resultado é um
servem para construir esse arranha-céu das Mundo onde há muita comunicação, mas as
origens: a torre de Babel. Dessa forma, o ho- palavras são imobilizadas, o sentido abstraí-
mem sai da reclusão de um mundo totalizan- do, a fala esvaziada de seu sentido radical,
te. Ele assume o risco de viver em uma reali- das estratificações significantes e das emo-
dade aberta e múltipla, um mundo aberto à ções. As palavras tornam-se ídolos.
mudança, ao futuro onde os reencontros, as Deus responde, pois, à idolatria dos babe-
descobertas, as invenções são possiveis. Um lianos pela separação das línguas e a disper-
mundo de liberdade. são do povo sobre toda a Terra. Graças a essa
Deus se opõe à realização dessa cidade do disseminação, os homens saem de um mun-
UM (que ele nomeará Babel)6 e cria um lu- do fechado e se encontram em um mundo
gar onde as línguas são diferenciadas graças aberto. A psicanálise responde à idolatria pe-
à sua intervenção de separar. Cada nova lín- las palavras que se emancipam da escravidão
gua nomeará diferentemente o Real, e, para do sentido único, do sentido dogmático, pe-
compreendê-las, será preciso uma obra de las palavras ditas com toda liberdade. Elas se
interpretação e de tradução. referem à experiência do corpo, às emoções
A pluralidade das línguas e dos discursos que lhe deram forma, criaram-no, elabora-
impede que a palavra seja fixada, colada em ram-no. A psicanálise separa o significante
uma verdade. do significado. O significante se emancipa e,
Hoje a linguagem da internet e a comu- na autonomia encontrada, pode tomar sua
nicação virtual tornaram-se soberanas. O liberdade de significar. Uma análise é um
simbólico se confunde com o imaginário e novo começo que visa essa liberdade. Ela
faz desaparecer a nossos olhos o referente, o visa destruir os ídolos, para nos fazer sair do
Real.7 Temos a impressão de que o Real não é país do SENTIDO ÚNICO. Ela se abre para
mais necessário. Ele tem sido anulado e vem o significante e para suas potencialidades de
dando lugar a uma realidade virtual.
Nossa ‘aldeia global’ assemelha-se a uma
torre de Babel muito singular, onde o Real8 intermediário entre o significante e o sujeito, mas implica
a introdução do referente; ora, para Lacan, o referente é o
real, e um real aparentemente estruturado. Só que, se ele é
estruturado, ele o é pela linguagem. Dito de outro modo,
6. A palavra vem da raiz semítica BLL, que significa misturar. nada poderiamos saber do real se a linguagem não tivesse
7. Ora, para Lacan, o referente, é o Real, e um Real ajudado” (SAFOUAN, 2005).
aparentemente estruturado. 9. Negação [déni] (– da realidade) = D.: Verleugnung. [...]
8. “Nada nos é inteligível, como ‘mundo’ ou como ‘realidade’, Termo empregado por Freud em um sentido específico:
sem que a linguagem tenha introduzido um corte em modo de defesa que consiste em uma recusa pelo sujeito
relação ao real; quanto à significação, ela não se produz sem de reconhecer a realidade de uma percepção traumatizante.

18 Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 48 | p. 15–24 | dezembro/2017


Paolo Lollo – Tradução: Solange Mendes da Fonseca

sentido, de novos sentidos. Com esse novo co meio de se aproximar dele. Traduzir é, de
começo, um sujeito assume o risco de viver alguma forma, recriar, reinventar, isto é, dar
em um mundo doravante aberto e múltiplo. uma nova forma, uma nova representação à
Um mundo de liberdade. Esse mundo de li- coisa, que, uma vez nomeada, nos escapará
berdade não é um mundo imobilizado, para- ainda, e mais ainda. Assim, a ação de Deus
do, siderado pela palavra, deslumbrado pelo não é somente uma punição. Essa abertura
excesso de luz, mas um mundo em constru- à pluralidade das línguas é sobretudo uma
ção. Quanto à confusão das línguas, ela re- bênção. Bene dire é o ‘bem dizer’, dizer dife-
introduz a diferença. As palavras encontram rentemente, tentar surpreender, tomar na pa-
sua distância em relação às coisas. O cavalo lavra a diferença da coisa. A ilusão do fascis-
é um cavalo, mas há tantas palavras para no- mo é dizer as coisas como elas são ‘verdadei-
meá-lo quantas são as línguas que existem. A ramente’; elas, porém, são sempre diferentes,
confusão das línguas introduzida por Deus, a elas são o impossível de dizer. A língua do
pluralidade da linguagem não constitui uma fascismo se quer concreta, verdadeira, inten-
complicação inútil; ao contrário, é útil ao sa e recusa a mediação da interpretação. O
Real que a linguagem tenta dizer, representar fascismo vê em toda tradução uma traição,
em seu movimento contínuo e em mudan- em toda interpretação, uma trapaça.
ça. Se há mil maneiras de dizer uma coisa, Da mesma maneira, o Eu é prisioneiro de
é porque essa coisa não é sempre a mesma. uma autoridade que o espreita, que o contro-
Ela muda continuadamente. Um copo em la. O Supereu está sempre sobre ele, prestes
alemão é chamado de Glas; em italiano, bic- a censurá-lo, a abatê-lo com seu olhar frio,
chiere; e a mesma palavra de uma mesma perseguidor. Um Supereu, que está assen-
língua ou dialeto é percebida e pronuncia- tado sobre o Eu e não o deixa se mover, se
da diferentemente por cada indivíduo. No autonomizar, tomar iniciativa, tornar-se
lugar, no furo dessa diferença, há o Real. O adulto, tornar-se sujeito. Nós estamos no
processo de comunicação é um trabalho que domínio da imagem, do eidolon, do ídolo.
consiste em aproximar o que está separado. O Eu surge no desenvolvimento da criança
Em unir o que está disperso. Essa união não e aparece com nossa imagem diante do es-
está, todavia, definida de uma vez por todas. pelho. Ele que, entretanto, persiste em nós.
Ela não está garantida, mas está sempre em A superpotência [surpuissance] da imagem
movimento e mudança. Dois homens jamais faz do Supereu um ídolo, um superman, que
falam exatamente a mesma língua. A distân- permite imaginar, mas não permite pensar,
cia entre a palavra e a coisa, entre a coisa e pesar nem avaliar.
o símbolo, devolve a cada um uma liberda-
de de discurso. Essa distância não significa, O Real, o impossível:
contudo, que a palavra se abstraia da coisa; o que “não cessa de não se escrever”
ao contrário, graças a essa distância, ela não Retornemos à questão do Real, isto é, do IM-
cola na coisa e se autonomiza para melhor POSSÍVEL, e à relação que ele mantém com
poder representá-la em novas formas. A coi- o Simbólico e o Imaginário.
sa não está imóvel, permanente; ela muda O Real é o impossível, nos diz Lacan
continuamente, ela é o Real. Se o fixamos em (1972-1973] 1976, p. 86). O Real é o “que
uma imagem, nós o perdemos de vista. Daí a não cessa de não se escrever”, isto é, alguma
necessidade de interpretar os discursos que coisa como uma necessidade, que não pode
vêm até nós. Compreender o outro é reco- ser gravada em uma escritura. Se ela assim o
nhecer sua singularidade e interpretá-lo. É for, não será mais o Real, mas o Simbólico. O
achar o tempo para traduzir seu discurso. E Real é invisível, incompreensível, não repre-
traduzi-lo não é traí-lo; ao contrário, é o úni- sentável.

Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 48 | p. 15–24 | dezembro/2017 19


Psicanálise contra o facismo – Do mito da torre de Babel à diferença entre Real, Simbólico e Imaginário

O Real é definido por uma negação; na (klēsis), de καλέω (kaleō). Essa palavra “ape-
fórmula proposta por Lacan, é alguma coisa lo”, na Bíblia dita Septuaginta, é a tradução
que ‘não cessa’ e que ‘não se escreve’. O nome do verbo hebreu ‫( ארק‬qârâ’), que designa, em
do deus da Bíblia não se pronuncia, mas ele um sentido específico, o apelo que Deus diri-
se escreve: YHVH.10 O Real, para a psicaná- ge ao homem.11
lise, toma o lugar de Deus; é um Real que
se faz sintoma, que se diz, entre outros, em As profissões impossíveis e o apelo do real
uma sessão analítica, mas ‘que não se escre- Em Análise terminável e interminável, Freud
ve’. Para descrever o Real, Lacan propõe co- (1937) tinha falado do ‘impossível’ a propósi-
locar em jogo duas negações: ‘não cessa’ é a to de certas profissões [misteres] como ‘edu-
primeira, que exprime a necessidade. O Real car’, ‘curar’ e ‘governar’. A isso ele acrescen-
é necessidade! A outra negação é ‘alguma tará ‘psicanalisar’. O impossível anúncio de
coisa que não se escreve’. O Real é negativo que estamos em presença do Real. Trata-se
ou ao menos é conotado negativamente. O de profissões impossíveis com efeito, porque
vocábulo negativo vem do latim necare, que têm a ver com o Real. Curar tem a ver com
significa matar. Seu radical é nex, necis, que o Real do corpo, psicanalisar com o Real da
significa morte,  assassinato. O Real é, pois, psique. Mas, antes de ser impossíveis, essas
a necessidade: alguma coisa que ‘não cessa’, atividades humanas são misteres. E de onde
um continuum, é a Natureza com sua inces- vem este nome: mister? Em italiano, mestiere
sante renovação, possível somente por um está mais próximo da palavra ministerium,
contínuo assassinato do presente. A segunda com seu halo de sagrado. O ministro é, na
negação, ‘que não se escreve’, é o assassinato Bíblia, um servo de Deus: lidar com o Real
da escritura, do signo, do Simbólico. O Real é da ordem do sagrado e do mistério, pois
é o impossível de simbolizar, pois, desde que o Real escapa a toda representação. Mas é a
ele é simbolizado, não é mais Real. O Real é língua alemã que nos dá as chaves desse mis-
o impossível. tério. Em alemão, para dizer ‘mister’, diz-se
Mas o fato de que o Real nos escapa, de Beruf, que significa apelo ou retorno. Beruf é
que seja impossível, não significa que ele não o termo escolhido por Luther para traduzir
aja; ao contrário, ele age por excelência, des- a palavra bíblica ‫( ארק‬qârâ’), que foi traduzi-
de que o “que não cessa”, não cessa de recusar da em latim por vocatio e, em grego, Klesis.
uma inscrição mesmo estando em um contí- Para Luther, um mister é uma vocação; so-
nuo vir-a-ser. E se o Real age, não podemos mos chamados por Deus para cumprir neste
ignorá-lo, mesmo se nos é incompreensível. mundo uma tarefa determinada. Nós cum-
Porque ele nos é incompreensivel é que deve primos um destino, pois somos chamados
ser levado em conta como um X que impul- por Deus. Se Freud chama a psicanálise de
siona nossa vida. um ‘mister’, é porque para ele, na psicanálise
Esse fator X, que é o Real, tem uma dupla e em outros misteres, alguma coisa do Real
característica: de um lado, ele é não gravável; apela. O Real da psicanálise chama e se ex-
de outro, ele é atuante. Ele não age completa- prime pela voz, por uma invocação. Isso sig-
mente em silêncio, pois, quando ele age, ele nifica que, embora seja da ordem do nega-
chama, ele nos chama, ele nos invoca. O ter- tivo, embora seja impossível, o Real desem-
mo “vocação” vem do latim vocatio, que sig- penha um papel determinante nas atividades
nifica chamar e corresponde ao grego κλῆσις humanas. O Real chama, e é preciso encon-

11. ‫( ארק‬qârâ’) significa também encontrar, atingir,


10. YHVH, Yod-He-Vav-He: o nome de Deus da Bíblia atacar. Kereh, que tem a mesma raiz de qârâ, significa
hebraica (a Torah), composto por quatro letras que não se acontecimento (het), Karah (het) chamar, esbravejar, ser
pronunciam. atingido pela palavra, pelo chamado.

20 Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 48 | p. 15–24 | dezembro/2017


Paolo Lollo – Tradução: Solange Mendes da Fonseca

trar formas de ouvir esse apelo, vale mais ou- colagem é incestuosa. Nós nos encontramos
vi-lo, conectar-se com ele, para que, quando aí diante dessa unidade que forma um blo-
ele nos tocar, estejamos prontos para lhe dar co, onde não há diferença, onde não há mais
uma resposta, para acolhê-lo ou repeli-lo. E, significantes. Não há mais diferença entre as
de todo modo, quando nos toca, ele deixa coisas, entre palavra e coisa, nenhuma dife-
um sinal, uma marca, ele nos tange.12 O Real rença entre Real, Simbólico, Imaginário.
é uma manifestação da contingência, isto é,
“do que cessa de não se escrever”. O Real é “o O interdito de construir imagem
que não cessa de não se escrever”, contudo ele Na Bíblia, Deus, o Real, se revela na escri-
surge, quando bate à porta na forma “do que tura, dando a Moisés a tábua da lei e depois
cessa de não se escrever”, salvo se ele não se a Bíblia aos profetas. Deus, o Real, torna-se
escreve sobre o papel, ou não apenas, mas ele escritura. Esse impossível (de pronunciar e
se escreve na realidade, frequentemente em de ver) torna-se possível graças à ‘revelação’.
nosso corpo, deixando nele um sinal. Para Para a psicanálise, o Real não se escreve, não
entender o apelo do Real ou do sintoma, é se revela em um texto, mas na palavra viva,
preciso sair da necessidade, da impossibili- aquela, por exemplo, que tentamos fazer sur-
dade de ser tocado por ele. É interessante que gir em uma cura analítica. Na escritura bí-
esse apelo do Real, esse Beruf seja nomeado blica, a palavra é imagem, signo para ler e
em hebreu cara, termo que nos reenvia, na interpretar. A palavra do analisante é som,
língua latina, à ‘carícia’ de alguém próximo significante para ouvir e interpretar. Nos dois
que nos ama, a carícia de uma mão que nos casos, o leitor, o lictor, o intérprete é um su-
toca, a de um ser caro. Essa ‘carícia’ é o ponto jeito. O interdito de contruir imagem na re-
de contato onde o Real toca nosso corpo e ligião hebraica visa proibir que se fixe o sen-
se torna contingente. Ele nos ‘tange’. É essa tido de uma vez por todas em uma imagem,
tangibilidade que permite ao Real tocar o em uma única interpretação. Isso é proibido
Simbólico e o Imaginário e articular com eles uma vez que Deus, o Real, ‘não cessa’, no sen-
uma relação. Se o Real é simplesmente nega- tido de um continuum e no sentido de uma
do, ele permanecerá colado ao Simbólico e necessidade em movimento, impossível de se
ao Imaginário, e poderá causar danos. Nesse aprisionar em um UM. Para se fixar, ela se
caso, esse ‘tocar’ pode tornar-se violento, ele negará, visto que sua essência é não ser fixa.
se transformará em um choque. É o caso do Negar a necessidade é negar a vida e a ma-
amor que dá lugar ao ódio ou à perversão. téria. O significante da psicanálise é um sig-
O que importa aqui é que Real, Simbólico e nificante sonoro, é um dizer, um “dieure”,13
Imaginário estejam separados e, ao mesmo como diz Lacan. O significante bíblico é uma
tempo, articulados, isto é, em relações recí- escritura que deve ser, contudo, lida e inter-
procas. Está claro que nessa relação não po- pretada. Eu digo ‘lida’. E isso significa alguma
demos excluir o Real. coisa de especial na língua hebraica, uma vez
O silêncio do Real, o fato de que ele não que há uma diferença entre o que se lê no
nos chama não significa que ele está ausen- signo da escritura e o som, a pronúncia da
te, mas que ele está colado no Simbólico e palavra. Às consoantes que são efetivamente
no Imaginário: ele não tem necessidade de escritas, o leitor deve acrescentar as vogais,
chamá-los, pois Simbólico e Imaginário já isto é, a articulação das consoantes, que não
estão ali, o Real se funde com eles. Quando são grafadas no texto bíblico originário. Isso
o Real se cala, a tempestade chega, pois essa para lembrar que, à escritura que fixa, que

13. A expressão ‘dieure’, criada por Lacan, mescla ‘dieu’[deus]


12. Do latim tangere, que significa tocar. e ‘dire’ [dizer] (N.T.).

Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 48 | p. 15–24 | dezembro/2017 21


Psicanálise contra o facismo – Do mito da torre de Babel à diferença entre Real, Simbólico e Imaginário

imobiliza, é preciso acrescentar a voz, uma autoridade que protege o Eu, mas que ao
vocalização que é sempre singular, única, e mesmo tempo imobiliza o sujeito e faz isso
da qual não se pode fazer imagem. Com efei- de tal modo que ele não possa vir-a-ser. Ele
to, o risco da escritura, enquanto imagem, é se comporta um pouco como esses pais que,
ser imobilizadora, risco de fechar o sentido para proteger seus filhos do perigo da rua, os
em uma única interpretação, em uma prisão. encerram em seu quarto e lhes tiram toda a
É um fato que frequentemente as religiões liberdade. O Supereu se apresenta com um ar
são produtoras de dogmas, uma vez que elas superseguro – seguro de si nessa confronta-
estão do lado do ideal. Eidos, em grego, sig- ção com o Eu, que obedece docilmente às in-
nifica imagem. O grande cuidado da Bíblia junções desse ditador que dita ‘de dentro’ os
na Torah é cassar (fazer cessar) toda idola- protocolos de ação. O Eu obedece e se sub-
tria. O judaísmo, no relato bíblico, nasce da mete a ele. Por quais razões? Fazemos a hi-
revolução operada por Abraão, que cassa os pótese de que isso seja por amor. O fascismo
ídolos, a estatueta que seu pai Terah adorava nos faz amar o poder, o mesmo poder que
e vendia no mercado. Terah, o pai do primei- nos submete. E, mais ainda, ele nos faz dese-
ro patriarca, era um mercador de ídolos. O já-lo. Nós ‘desejamos o que nos oprime’. Não
judaísmo é mais próximo da psicanálise com seria por que sua autoridade, sua força idea-
relação aos outros monoteísmos, pois, como lizada nos tranquiliza? O supereu, ao qual
a psicanálise, ele luta contra os ídolos, mes- nós aderimos, se mostra forte, capaz de nos
mo aqueles que são inscritos no texto bíblico. proteger, mas sua ação sedutora é perversa.
E isso por meio da fala, da interpretação. Se o Seu lado autoridade tranquilizadora nos faz
texto bíblico é uma revelação, isso não impe- esquecer que ele pode, a qualquer momen-
de que ele seja continuamente interpretado. to, nos esmagar. Como não cair de amores
O dever de um judeu é ler e reler a Torah e por tal super-herói musculoso? Semelhante
lhe dar sentido, um novo sentido. A revela- a uma estrela que, com seu brilho, possui
ção não é un desvelamento radical do divino, um grande poder de sedução, mas também
do Real, mas somente parcial, fragmentário, de ‘sideração’, o Supereu fascina, reúne toda
que deve ser interpretado sempre de novo. diferença e a reduz ao UM, a uma imagem
do poder que nós não hesitamos em chamar
O fascismo nos faz amar o poder ‘fálico’.
Para terminar meu propósito, eu retorno à
citação de Foucault que abriu este artigo: o Abstract
fascismo “[...] nos faz amar o poder e dese- What is Fascism? Was it just a political regime
jar verdadeiramente o que nos oprime e nos or a way of thinking (of weighing the world), a
explora”. Como é possível que o fascismo nos psychic position? In what psychoanalysis goes
faça amar nosso inimigo? Aquele que nos against fascism?  How does the myth of the
oprime e nos explora. Não existe em nós al- Tower of Babel help us to think the difference
guma coisa que favoreça essa posição de sub- between Real, Symbolic and Imaginary and to
missão? Alguma coisa que coloca o sujeito combat all totalitarianism?
para baixo e que se coloca como autoridade
acima? Keywords: Psychoanalysis, Fascism, Babel
Etimologicamente, o Supereu se coloca Tower, Real, Symbolic, Imaginary, Idolatry,
‘sobre’(super), acima do Eu. O Supereu é Judaism.
uma instância psíquica que se encontra ‘so-
bre’ o Eu e não hesita em esmagá-lo. É uma
instância superior que tem, pois, uma certa
ascendência sobre o Eu. O Supereu é uma

22 Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 48 | p. 15–24 | dezembro/2017


Paolo Lollo – Tradução: Solange Mendes da Fonseca

Referências

FOUCAULT, M. Dits et écrits (1994). Paris: Gallimard,


2001. Tome III, texte n. 189 (1976-1988).

LACAN, J. Le séminaire, livre XX: encore (1972-1973).


Paris: Le Seuil, 1976.

SAFOUAN, M. Lacaniana: les séminaires de Jacques


Lacan 1964-1979. Tome 2. Paris: Fayard, 2005.

Recebido em: 17/11/2017


Aprovado em: 05/12/2017

Sobre o autor

Psicanalista, filósofo por formação.


Ensinou literatura italiana e línguistica
no ensino médio e universitário na Itália,
Alemanha, Polônia e França.
Pesquisador da Universidade de Paris 13
(Unité transversale de recherche
psychogenèse et psychopathologie).
Membro e secretário-geral da Insistance,
associação que liga a psicanálise à arte e à política.
Membro do conselho editorial
da revista Insistance (Paris: Érès).
Cofundador e presidente da Escola
de Psicanálise Corpo Freudiano, seção Paris.

Endereço para correspondência


E-mail: <insistance@free.fr>

Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 48 | p. 15–24 | dezembro/2017 23


Psicanálise contra o facismo – Do mito da torre de Babel à diferença entre Real, Simbólico e Imaginário

24 Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 48 | p. 15–24 | dezembro/2017

Você também pode gostar