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Resumo
O que é fascismo? Seria apenas um regime político ou igualmente uma forma de pensar (de
pesar o mundo), uma posição psíquica? Em que a psicanálise vai contra o fascismo? Como o
mito da Torre de Babel nos ajuda a pensar a diferença entre Real, Simbólico e Imaginário e
combater todo totalitarismo?
1. Em 1921 o movimento se tornara um partido e tomara o poder em 1922 com a Marcha sobre Roma. Ele se transformara
rapidamente em regime ditatorial de caráter totalitário e nacionalista, e governara a Itália até 25 de julho de 1943.
uma mesma língua e das mesmas palavras” confundem, e essa língua monolítica de Ba-
(Gênesis, 11.1).3 bel perde sua força simbólica e se torna um
Chegando, pois, a Babel, os homens se palavreado vazio. “Eis que todos constituem
puseram a construir uma cidade e uma torre: um só povo e falam uma só língua” (Gêne-
“Construamos uma cidade e uma torre cujo sis, 11.6). O Simbólico perde sua função de
ápice penetre nos céus ! Façamo-nos UM religar os significantes, o símbolo não tem
nome (chem) e não sejamos dispersos sobre mais nenhum suporte e perde seu sentido,
toda a terra” (Gênesis 11.4). Tais foram as pois que tudo é UM. A metaforização não
palavras dos habitantes de Babel, que se pu- existe quando Tudo é o Mesmo. Quando
seram logo à obra sob o olhar do Eterno que real, simbólico e imaginário se confundem,
diz: “Eis que todos constituem um só povo e perdem toda a função de separação. Função
falam uma só língua” (Gênesis, 11.6). Deus que Deus ocupa ao intervir em Babel, sepa-
não parece satisfeito e decide intervir para rando as línguas para deixar espaço para a
confundir as línguas do povo de Babel. Esse interpretação, para a crítica. E é o que fará
verbo “confundir” é a tradução do verbo he- Lacan ao dar à psicanálise conceitos novos
breu NaVeL (noun, vet, lamed),4 que signifi- que nos são muito úteis. Nós podemos dizer
ca, mais precisamente, “separar”. que Lacan faz, com essa distinção e essa se-
Deus desce, pois, do céu, para separar as paração entre RSI, uma obra de criação ou de
línguas e dispersar esse povo que aspira a ser recriação da psicanálise.
UM.5 Na Babel como no fascismo a língua tor-
Vemos que Deus intervém para interrom- na-se muito concreta; seu alvo é o poder, a
per o processo que conduz ao Um: uma lín- apropriação: fazer UM. Fazer de modo que o
gua, um povo, um lugar. Deus considera que Eu faça UM com seu objeto. A língua é posta
qualquer tentativa visando produzir o UM em movimento por desejo de poder que quer
fazendo surgir uma torre que pudesse per- construir uma torre mais alta que o céu.
furar o céu é pretensiosa e idólatra, pois esse Tenho a impressão de que vivemos em
UM não pertence senão a Ele, o Deus único. uma Babel moderna. Nosso presente torna a
O mundo de Babel está fechado no UM, torre transparente, não mais toda construída
privado de abertura. Se tudo é UM, as pa- de tijolos e argamassa, mas composta de mi-
lavras não podem ser separadas das coisas. crochips. Ela tenta reduzir o Real ao Rimbóli-
Ora, sem distância entre as palavras e as co, mas o que consegue é criar uma linguagem
coisas, não há liberdade possível. A palavra terna, esvaziando-a de sua força simbólica. A
adere à matéria, o Simbólico é prisioneiro do fala se faz imagem fixa que cola no real. O Real,
Real. A palavra e a interpretação tornam-se por seu turno, perde sua voz/via e sua força.
impossíveis. A diferença se apaga. Não exis- O homem está ligado, preso-imobilizado
te mais diferença entre esses três registros em sua relação com os signos, os códigos, as
propostos por Lacan: Imaginário, Simbólico, imagens. As relações humanas estão secan-
Real. A linguagem, isto é, o Simbólico cola do. As imagens dificilmente tornam-se sig-
no Real e no Imaginário. Os três registros se nificantes. O discurso torna-se impossível.
Não há lugar para o diálogo, somente para
um monólogo coletivo, um murmúrio. Es-
tamos mergulhados em uma fala totalitária,
3. In: A Biblia de Jerusalém. que quebra a liberdade. A característica des-
4. O verbo, em sua raiz hebraica, é composto por três sa liberdade é a possibilidade de não dizer as
consoantes: noun, vet, lamed. coisas como elas são nem como elas aparen-
5. “Deu-se-lhe por isso o nome de Babel, pois foi lá que
o Eterno confundiu (BaLaL) a linguagem de todos os tam, mas poder dizê-las de outro modo, po-
habitantes da terra” (Gênesis 11. 9). der recriá-las, reinventá-las.
Pela tradição judaica, essa fala totalitária é apagado pela imagem, por uma escritura
é idólatra, é um culto da imagem, da aparên- fundamentalmente estabelecida sobre a ima-
cia. gem. Estamos em vias de viver uma espécie
Deus intervém, então, na Babel: ele separa de negação [déni]9 do Real?
as línguas dos habitantes de Babel e os dis-
persa pelo mundo. O método de criação de O Real, o Imaginário e a psicanálise
Deus é bem conhecido, sempre o mesmo: a Se o Real é negado, isso não significa que ele
separação. Para criar o Mundo, ele primei- não exista, que ele não opere, mas simples-
ro separou o céu da terra, o dia da noite, a mente que o ignoramos porque não pode-
mulher do homem. Ele transforma o UM em mos ter a representação dele. Quais são as
DOIS, em múltiplos. Separar as línguas, mas consequências? Vivemos em uma hipertrofia
também o Real do Simbólico, separar a pa- da imagem, em que o Imaginário toma o lu-
lavra da matéria, o tijolo da argamassa, que gar, todo o lugar do Real. O resultado é um
servem para construir esse arranha-céu das Mundo onde há muita comunicação, mas as
origens: a torre de Babel. Dessa forma, o ho- palavras são imobilizadas, o sentido abstraí-
mem sai da reclusão de um mundo totalizan- do, a fala esvaziada de seu sentido radical,
te. Ele assume o risco de viver em uma reali- das estratificações significantes e das emo-
dade aberta e múltipla, um mundo aberto à ções. As palavras tornam-se ídolos.
mudança, ao futuro onde os reencontros, as Deus responde, pois, à idolatria dos babe-
descobertas, as invenções são possiveis. Um lianos pela separação das línguas e a disper-
mundo de liberdade. são do povo sobre toda a Terra. Graças a essa
Deus se opõe à realização dessa cidade do disseminação, os homens saem de um mun-
UM (que ele nomeará Babel)6 e cria um lu- do fechado e se encontram em um mundo
gar onde as línguas são diferenciadas graças aberto. A psicanálise responde à idolatria pe-
à sua intervenção de separar. Cada nova lín- las palavras que se emancipam da escravidão
gua nomeará diferentemente o Real, e, para do sentido único, do sentido dogmático, pe-
compreendê-las, será preciso uma obra de las palavras ditas com toda liberdade. Elas se
interpretação e de tradução. referem à experiência do corpo, às emoções
A pluralidade das línguas e dos discursos que lhe deram forma, criaram-no, elabora-
impede que a palavra seja fixada, colada em ram-no. A psicanálise separa o significante
uma verdade. do significado. O significante se emancipa e,
Hoje a linguagem da internet e a comu- na autonomia encontrada, pode tomar sua
nicação virtual tornaram-se soberanas. O liberdade de significar. Uma análise é um
simbólico se confunde com o imaginário e novo começo que visa essa liberdade. Ela
faz desaparecer a nossos olhos o referente, o visa destruir os ídolos, para nos fazer sair do
Real.7 Temos a impressão de que o Real não é país do SENTIDO ÚNICO. Ela se abre para
mais necessário. Ele tem sido anulado e vem o significante e para suas potencialidades de
dando lugar a uma realidade virtual.
Nossa ‘aldeia global’ assemelha-se a uma
torre de Babel muito singular, onde o Real8 intermediário entre o significante e o sujeito, mas implica
a introdução do referente; ora, para Lacan, o referente é o
real, e um real aparentemente estruturado. Só que, se ele é
estruturado, ele o é pela linguagem. Dito de outro modo,
6. A palavra vem da raiz semítica BLL, que significa misturar. nada poderiamos saber do real se a linguagem não tivesse
7. Ora, para Lacan, o referente, é o Real, e um Real ajudado” (SAFOUAN, 2005).
aparentemente estruturado. 9. Negação [déni] (– da realidade) = D.: Verleugnung. [...]
8. “Nada nos é inteligível, como ‘mundo’ ou como ‘realidade’, Termo empregado por Freud em um sentido específico:
sem que a linguagem tenha introduzido um corte em modo de defesa que consiste em uma recusa pelo sujeito
relação ao real; quanto à significação, ela não se produz sem de reconhecer a realidade de uma percepção traumatizante.
sentido, de novos sentidos. Com esse novo co meio de se aproximar dele. Traduzir é, de
começo, um sujeito assume o risco de viver alguma forma, recriar, reinventar, isto é, dar
em um mundo doravante aberto e múltiplo. uma nova forma, uma nova representação à
Um mundo de liberdade. Esse mundo de li- coisa, que, uma vez nomeada, nos escapará
berdade não é um mundo imobilizado, para- ainda, e mais ainda. Assim, a ação de Deus
do, siderado pela palavra, deslumbrado pelo não é somente uma punição. Essa abertura
excesso de luz, mas um mundo em constru- à pluralidade das línguas é sobretudo uma
ção. Quanto à confusão das línguas, ela re- bênção. Bene dire é o ‘bem dizer’, dizer dife-
introduz a diferença. As palavras encontram rentemente, tentar surpreender, tomar na pa-
sua distância em relação às coisas. O cavalo lavra a diferença da coisa. A ilusão do fascis-
é um cavalo, mas há tantas palavras para no- mo é dizer as coisas como elas são ‘verdadei-
meá-lo quantas são as línguas que existem. A ramente’; elas, porém, são sempre diferentes,
confusão das línguas introduzida por Deus, a elas são o impossível de dizer. A língua do
pluralidade da linguagem não constitui uma fascismo se quer concreta, verdadeira, inten-
complicação inútil; ao contrário, é útil ao sa e recusa a mediação da interpretação. O
Real que a linguagem tenta dizer, representar fascismo vê em toda tradução uma traição,
em seu movimento contínuo e em mudan- em toda interpretação, uma trapaça.
ça. Se há mil maneiras de dizer uma coisa, Da mesma maneira, o Eu é prisioneiro de
é porque essa coisa não é sempre a mesma. uma autoridade que o espreita, que o contro-
Ela muda continuadamente. Um copo em la. O Supereu está sempre sobre ele, prestes
alemão é chamado de Glas; em italiano, bic- a censurá-lo, a abatê-lo com seu olhar frio,
chiere; e a mesma palavra de uma mesma perseguidor. Um Supereu, que está assen-
língua ou dialeto é percebida e pronuncia- tado sobre o Eu e não o deixa se mover, se
da diferentemente por cada indivíduo. No autonomizar, tomar iniciativa, tornar-se
lugar, no furo dessa diferença, há o Real. O adulto, tornar-se sujeito. Nós estamos no
processo de comunicação é um trabalho que domínio da imagem, do eidolon, do ídolo.
consiste em aproximar o que está separado. O Eu surge no desenvolvimento da criança
Em unir o que está disperso. Essa união não e aparece com nossa imagem diante do es-
está, todavia, definida de uma vez por todas. pelho. Ele que, entretanto, persiste em nós.
Ela não está garantida, mas está sempre em A superpotência [surpuissance] da imagem
movimento e mudança. Dois homens jamais faz do Supereu um ídolo, um superman, que
falam exatamente a mesma língua. A distân- permite imaginar, mas não permite pensar,
cia entre a palavra e a coisa, entre a coisa e pesar nem avaliar.
o símbolo, devolve a cada um uma liberda-
de de discurso. Essa distância não significa, O Real, o impossível:
contudo, que a palavra se abstraia da coisa; o que “não cessa de não se escrever”
ao contrário, graças a essa distância, ela não Retornemos à questão do Real, isto é, do IM-
cola na coisa e se autonomiza para melhor POSSÍVEL, e à relação que ele mantém com
poder representá-la em novas formas. A coi- o Simbólico e o Imaginário.
sa não está imóvel, permanente; ela muda O Real é o impossível, nos diz Lacan
continuamente, ela é o Real. Se o fixamos em (1972-1973] 1976, p. 86). O Real é o “que
uma imagem, nós o perdemos de vista. Daí a não cessa de não se escrever”, isto é, alguma
necessidade de interpretar os discursos que coisa como uma necessidade, que não pode
vêm até nós. Compreender o outro é reco- ser gravada em uma escritura. Se ela assim o
nhecer sua singularidade e interpretá-lo. É for, não será mais o Real, mas o Simbólico. O
achar o tempo para traduzir seu discurso. E Real é invisível, incompreensível, não repre-
traduzi-lo não é traí-lo; ao contrário, é o úni- sentável.
O Real é definido por uma negação; na (klēsis), de καλέω (kaleō). Essa palavra “ape-
fórmula proposta por Lacan, é alguma coisa lo”, na Bíblia dita Septuaginta, é a tradução
que ‘não cessa’ e que ‘não se escreve’. O nome do verbo hebreu ( ארקqârâ’), que designa, em
do deus da Bíblia não se pronuncia, mas ele um sentido específico, o apelo que Deus diri-
se escreve: YHVH.10 O Real, para a psicaná- ge ao homem.11
lise, toma o lugar de Deus; é um Real que
se faz sintoma, que se diz, entre outros, em As profissões impossíveis e o apelo do real
uma sessão analítica, mas ‘que não se escre- Em Análise terminável e interminável, Freud
ve’. Para descrever o Real, Lacan propõe co- (1937) tinha falado do ‘impossível’ a propósi-
locar em jogo duas negações: ‘não cessa’ é a to de certas profissões [misteres] como ‘edu-
primeira, que exprime a necessidade. O Real car’, ‘curar’ e ‘governar’. A isso ele acrescen-
é necessidade! A outra negação é ‘alguma tará ‘psicanalisar’. O impossível anúncio de
coisa que não se escreve’. O Real é negativo que estamos em presença do Real. Trata-se
ou ao menos é conotado negativamente. O de profissões impossíveis com efeito, porque
vocábulo negativo vem do latim necare, que têm a ver com o Real. Curar tem a ver com
significa matar. Seu radical é nex, necis, que o Real do corpo, psicanalisar com o Real da
significa morte, assassinato. O Real é, pois, psique. Mas, antes de ser impossíveis, essas
a necessidade: alguma coisa que ‘não cessa’, atividades humanas são misteres. E de onde
um continuum, é a Natureza com sua inces- vem este nome: mister? Em italiano, mestiere
sante renovação, possível somente por um está mais próximo da palavra ministerium,
contínuo assassinato do presente. A segunda com seu halo de sagrado. O ministro é, na
negação, ‘que não se escreve’, é o assassinato Bíblia, um servo de Deus: lidar com o Real
da escritura, do signo, do Simbólico. O Real é da ordem do sagrado e do mistério, pois
é o impossível de simbolizar, pois, desde que o Real escapa a toda representação. Mas é a
ele é simbolizado, não é mais Real. O Real é língua alemã que nos dá as chaves desse mis-
o impossível. tério. Em alemão, para dizer ‘mister’, diz-se
Mas o fato de que o Real nos escapa, de Beruf, que significa apelo ou retorno. Beruf é
que seja impossível, não significa que ele não o termo escolhido por Luther para traduzir
aja; ao contrário, ele age por excelência, des- a palavra bíblica ( ארקqârâ’), que foi traduzi-
de que o “que não cessa”, não cessa de recusar da em latim por vocatio e, em grego, Klesis.
uma inscrição mesmo estando em um contí- Para Luther, um mister é uma vocação; so-
nuo vir-a-ser. E se o Real age, não podemos mos chamados por Deus para cumprir neste
ignorá-lo, mesmo se nos é incompreensível. mundo uma tarefa determinada. Nós cum-
Porque ele nos é incompreensivel é que deve primos um destino, pois somos chamados
ser levado em conta como um X que impul- por Deus. Se Freud chama a psicanálise de
siona nossa vida. um ‘mister’, é porque para ele, na psicanálise
Esse fator X, que é o Real, tem uma dupla e em outros misteres, alguma coisa do Real
característica: de um lado, ele é não gravável; apela. O Real da psicanálise chama e se ex-
de outro, ele é atuante. Ele não age completa- prime pela voz, por uma invocação. Isso sig-
mente em silêncio, pois, quando ele age, ele nifica que, embora seja da ordem do nega-
chama, ele nos chama, ele nos invoca. O ter- tivo, embora seja impossível, o Real desem-
mo “vocação” vem do latim vocatio, que sig- penha um papel determinante nas atividades
nifica chamar e corresponde ao grego κλῆσις humanas. O Real chama, e é preciso encon-
trar formas de ouvir esse apelo, vale mais ou- colagem é incestuosa. Nós nos encontramos
vi-lo, conectar-se com ele, para que, quando aí diante dessa unidade que forma um blo-
ele nos tocar, estejamos prontos para lhe dar co, onde não há diferença, onde não há mais
uma resposta, para acolhê-lo ou repeli-lo. E, significantes. Não há mais diferença entre as
de todo modo, quando nos toca, ele deixa coisas, entre palavra e coisa, nenhuma dife-
um sinal, uma marca, ele nos tange.12 O Real rença entre Real, Simbólico, Imaginário.
é uma manifestação da contingência, isto é,
“do que cessa de não se escrever”. O Real é “o O interdito de construir imagem
que não cessa de não se escrever”, contudo ele Na Bíblia, Deus, o Real, se revela na escri-
surge, quando bate à porta na forma “do que tura, dando a Moisés a tábua da lei e depois
cessa de não se escrever”, salvo se ele não se a Bíblia aos profetas. Deus, o Real, torna-se
escreve sobre o papel, ou não apenas, mas ele escritura. Esse impossível (de pronunciar e
se escreve na realidade, frequentemente em de ver) torna-se possível graças à ‘revelação’.
nosso corpo, deixando nele um sinal. Para Para a psicanálise, o Real não se escreve, não
entender o apelo do Real ou do sintoma, é se revela em um texto, mas na palavra viva,
preciso sair da necessidade, da impossibili- aquela, por exemplo, que tentamos fazer sur-
dade de ser tocado por ele. É interessante que gir em uma cura analítica. Na escritura bí-
esse apelo do Real, esse Beruf seja nomeado blica, a palavra é imagem, signo para ler e
em hebreu cara, termo que nos reenvia, na interpretar. A palavra do analisante é som,
língua latina, à ‘carícia’ de alguém próximo significante para ouvir e interpretar. Nos dois
que nos ama, a carícia de uma mão que nos casos, o leitor, o lictor, o intérprete é um su-
toca, a de um ser caro. Essa ‘carícia’ é o ponto jeito. O interdito de contruir imagem na re-
de contato onde o Real toca nosso corpo e ligião hebraica visa proibir que se fixe o sen-
se torna contingente. Ele nos ‘tange’. É essa tido de uma vez por todas em uma imagem,
tangibilidade que permite ao Real tocar o em uma única interpretação. Isso é proibido
Simbólico e o Imaginário e articular com eles uma vez que Deus, o Real, ‘não cessa’, no sen-
uma relação. Se o Real é simplesmente nega- tido de um continuum e no sentido de uma
do, ele permanecerá colado ao Simbólico e necessidade em movimento, impossível de se
ao Imaginário, e poderá causar danos. Nesse aprisionar em um UM. Para se fixar, ela se
caso, esse ‘tocar’ pode tornar-se violento, ele negará, visto que sua essência é não ser fixa.
se transformará em um choque. É o caso do Negar a necessidade é negar a vida e a ma-
amor que dá lugar ao ódio ou à perversão. téria. O significante da psicanálise é um sig-
O que importa aqui é que Real, Simbólico e nificante sonoro, é um dizer, um “dieure”,13
Imaginário estejam separados e, ao mesmo como diz Lacan. O significante bíblico é uma
tempo, articulados, isto é, em relações recí- escritura que deve ser, contudo, lida e inter-
procas. Está claro que nessa relação não po- pretada. Eu digo ‘lida’. E isso significa alguma
demos excluir o Real. coisa de especial na língua hebraica, uma vez
O silêncio do Real, o fato de que ele não que há uma diferença entre o que se lê no
nos chama não significa que ele está ausen- signo da escritura e o som, a pronúncia da
te, mas que ele está colado no Simbólico e palavra. Às consoantes que são efetivamente
no Imaginário: ele não tem necessidade de escritas, o leitor deve acrescentar as vogais,
chamá-los, pois Simbólico e Imaginário já isto é, a articulação das consoantes, que não
estão ali, o Real se funde com eles. Quando são grafadas no texto bíblico originário. Isso
o Real se cala, a tempestade chega, pois essa para lembrar que, à escritura que fixa, que
imobiliza, é preciso acrescentar a voz, uma autoridade que protege o Eu, mas que ao
vocalização que é sempre singular, única, e mesmo tempo imobiliza o sujeito e faz isso
da qual não se pode fazer imagem. Com efei- de tal modo que ele não possa vir-a-ser. Ele
to, o risco da escritura, enquanto imagem, é se comporta um pouco como esses pais que,
ser imobilizadora, risco de fechar o sentido para proteger seus filhos do perigo da rua, os
em uma única interpretação, em uma prisão. encerram em seu quarto e lhes tiram toda a
É um fato que frequentemente as religiões liberdade. O Supereu se apresenta com um ar
são produtoras de dogmas, uma vez que elas superseguro – seguro de si nessa confronta-
estão do lado do ideal. Eidos, em grego, sig- ção com o Eu, que obedece docilmente às in-
nifica imagem. O grande cuidado da Bíblia junções desse ditador que dita ‘de dentro’ os
na Torah é cassar (fazer cessar) toda idola- protocolos de ação. O Eu obedece e se sub-
tria. O judaísmo, no relato bíblico, nasce da mete a ele. Por quais razões? Fazemos a hi-
revolução operada por Abraão, que cassa os pótese de que isso seja por amor. O fascismo
ídolos, a estatueta que seu pai Terah adorava nos faz amar o poder, o mesmo poder que
e vendia no mercado. Terah, o pai do primei- nos submete. E, mais ainda, ele nos faz dese-
ro patriarca, era um mercador de ídolos. O já-lo. Nós ‘desejamos o que nos oprime’. Não
judaísmo é mais próximo da psicanálise com seria por que sua autoridade, sua força idea-
relação aos outros monoteísmos, pois, como lizada nos tranquiliza? O supereu, ao qual
a psicanálise, ele luta contra os ídolos, mes- nós aderimos, se mostra forte, capaz de nos
mo aqueles que são inscritos no texto bíblico. proteger, mas sua ação sedutora é perversa.
E isso por meio da fala, da interpretação. Se o Seu lado autoridade tranquilizadora nos faz
texto bíblico é uma revelação, isso não impe- esquecer que ele pode, a qualquer momen-
de que ele seja continuamente interpretado. to, nos esmagar. Como não cair de amores
O dever de um judeu é ler e reler a Torah e por tal super-herói musculoso? Semelhante
lhe dar sentido, um novo sentido. A revela- a uma estrela que, com seu brilho, possui
ção não é un desvelamento radical do divino, um grande poder de sedução, mas também
do Real, mas somente parcial, fragmentário, de ‘sideração’, o Supereu fascina, reúne toda
que deve ser interpretado sempre de novo. diferença e a reduz ao UM, a uma imagem
do poder que nós não hesitamos em chamar
O fascismo nos faz amar o poder ‘fálico’.
Para terminar meu propósito, eu retorno à
citação de Foucault que abriu este artigo: o Abstract
fascismo “[...] nos faz amar o poder e dese- What is Fascism? Was it just a political regime
jar verdadeiramente o que nos oprime e nos or a way of thinking (of weighing the world), a
explora”. Como é possível que o fascismo nos psychic position? In what psychoanalysis goes
faça amar nosso inimigo? Aquele que nos against fascism? How does the myth of the
oprime e nos explora. Não existe em nós al- Tower of Babel help us to think the difference
guma coisa que favoreça essa posição de sub- between Real, Symbolic and Imaginary and to
missão? Alguma coisa que coloca o sujeito combat all totalitarianism?
para baixo e que se coloca como autoridade
acima? Keywords: Psychoanalysis, Fascism, Babel
Etimologicamente, o Supereu se coloca Tower, Real, Symbolic, Imaginary, Idolatry,
‘sobre’(super), acima do Eu. O Supereu é Judaism.
uma instância psíquica que se encontra ‘so-
bre’ o Eu e não hesita em esmagá-lo. É uma
instância superior que tem, pois, uma certa
ascendência sobre o Eu. O Supereu é uma
Referências
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