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Texto: As práticas da escrita (Roger Chartier). In: CHARTIER, Roger. (org).


História da vida privada 3: da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991.

-O texto mostra como, as novas modalidades de relação com a escrita (leitura


silenciosa/progressos na alfabetização) constroem, entre os séculos XVI e XVIII,
uma esfera de intimidade, refúgio e retiro para os indivíduos subtraídos do controle
público. Estabelecem-se novos modelos de comportamento e condutas culturais
característicos do processo de privatização da primeira modernidade.

- Questão: é possível avaliar as dimensões do progressivo ingresso das


sociedades ocidentais na escrita?

Para responder essa questão os historiadores fizeram um amplo trabalho de coleta


de assinaturas em documentos oficiais, paroquiais, fiscais, judiciários, especialmente
em inventários, para verificar o quantitativo das pessoas que sabiam assinar o
nome, bem como sua possível progressão em determinadas regiões da Europa,
entre os séculos XVI e XVIII. As análises das assinaturas atestam o progresso nas
taxas de assinatura/alfabetização, mas não a porcentagem da população que sabe
ler e escrever, dadas as limitações/ imprecisões do método e características das
sociedades analisadas onde nem todos os que lêem sabem assinar o nome, e vice-
versa. Desta forma, as assinaturas devem ser avaliadas pelo que são: indicadores
culturais macroscópicos, que não medem a escrita e leitura da totalidade da
população.

O que a análise das assinaturas mostram?

- Inferem a taxa de alfabetização em diversos países (Escócia, Inglaterra, França


etc), seus avanços e recuos de acordo com a conjuntura;

- Atestam progressos na escrita e um avanço contínuo e regular na alfabetização na


Era Moderna;

- Mostram que o acesso das sociedades ocidentais à escrita (séc. XVI e XVII) não foi
um progresso linear;

- Evidencia um domínio desigual da escrita: a escrita feminina é tida como perigosa.

- A capacidade de assinar relaciona-se com a condição social, profissão (ofícios) e


atividade econômica;

- A população que domina a leitura nas cidades é superior à do meio rural;

Desta forma, essas diferenciações no acesso à escrita determinam variações no


processo de privatização da era moderna, já que saber ler é condição obrigatória
para o surgimento das novas práticas constitutivas da intimidade individual:
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recolhimento, subtração dos controles sociais, modificação nas relações com os


poderes e o Estado Moderno se constitui nessa privatização de condutas.

-A privatização das condutas: instaura um novo modo de ser em sociedade e não se


difunde no mesmo ritmo em toda a Europa. Opõe uma Europa Norte/Noroeste (com
altas taxas de alfabetização) e uma Europa periférica (atrasada em relação ao
centro);

- Em determinados países protestantes (Suécia, Dinamarca, Escócia, Suíça), a


capacidade de ler se tornou universal, devido, entre outros fatores à influência dos
Estados que empreendem campanhas de alfabetização para fins religiosos. (Ex.
Suécia);

- Estabelece-se uma dicotomia: saber ler universal (de origem e uso religioso) e
saber escrever (privilégio da elite);

- Na Alemanha, a partir de 1520, ou seja, no contexto da Reforma Protestante,


Lutero abandona a exigência de uma leitura individual e universal da Bíblia, em prol
de um projeto que enfatiza a prédica (discurso religioso) e o catecismo e a missão
de ensinar é restituída aos pastores, evidenciando um separação entre as políticas
escolares dos estados luteranos (que visam a formação de elites pastorais) e a
educação religiosa do povo (baseada no ensinamento oral e na memorização e não
necessariamente na alfabetização/compreensão); Com a Segunda Reforma (séc.
XVIII), a relação individual com a Bíblia coloca-se como exigência individual.

- O desenvolvimento da alfabetização e a difusão da leitura (mensuráveis apenas


nos dois últimos séculos da Era Moderna), contribuem para modificar a idéia que os
homens têm de si mesmos e de sua relação com os outros;

- Havia, durante a Idade Média, uma certa hostilidade à escrita que pode ser
percebida nos escritos de Shakespeare (Peça de 1594); Numa oposição entre a
escrita (exercício de poder) e a valorização nostálgica de uma sociedade sem
escrita, “governada por palavras que todos podem entender”;

- A escrita é identificada com as convulsões sociais, profanação do saber, ameaça


ao monopólio do conhecimento por parte dos clérigos;

- Séc. XVII: a Revolução Científica derruba as proibições e os limites ao


conhecimento, mas não se anulam a transmissão a uma restrita minoria
(intelectuais- novos clérigos); Motivos: recusa do povo á cultura escrita, vista como
instrumento de dominação/ recusa dos letrados à apropriação vulgar do saber; Faz-
se necessário o confronto com essas idéias para que a sociedade ocidental ingresse
na cultura escrita;

- Séc. XVI- XVIII: a capacidade de ler acarreta novas práticas: leitura na intimidade,
reflexão solitária; (privatização das práticas de leitura, uma das principais
evoluções culturais da modernidade);
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- Condições de possibilidades da leitura silenciosa/solitária: ler sem oralizar


possibilita a interiorização imediata do que é lido; maior facilidade e rapidez; o
trabalho intelectual torna-se ato de intimidade individual; confronto pessoal com os
textos (memorização, remissivas, assinaladas no livro); O protestantismo e a
relação direta entre o indivíduo a divindade, apóia-se nessa nova prática de leitura;

- A invenção da imprensa não é responsável pelas mutações intelectuais ou afetivas


resultantes dessa nova forma de ler. Séc. XVI – a revolução da leitura é parcial, a
maioria inscreve-se ainda numa sociabilidade comunitária.

- Questões:

A privatização da prática de leitura significa um aumento do número de livros


que as pessoas possuem em casa?

A posse privada do livro cresceu entre os séculos XVI e XVIII?

O processo de privatização apoiou-se na consulta íntima de mais livros por


mais leitores?

-Tentativas de respostas:

.A imprecisão nas fontes (inventários dos bens dos mortos, etc) não permitiriam
responder tais questões com exatidão, apenas fornecer indicações globais sobre a
presença do livro na sociedade;

.Séc. XVI: a análise dessas fontes permite observar que há uma presença maior do
livro como propriedade pessoal; Mantém-se a estabilidade e a hierarquia da
porcentagem dos possuidores de livros e um aumento dos livros possuídos;
(clérigos, profissionais liberais, nobres, comerciantes, trabalhadores braçais);

.Existem contrastes entre as regiões: Na Inglaterra a presença do livro é


determinada pela posição social. Em Florença observa-se estabilidade no número
de livros inventariados;

. Os países protestantes aparecem á frente na posse de livros no final do séc. XVIII


e demonstram progresso em relação ao século anterior.

. A diversificação dos livros (obras profanas, por exemplo), relaciona-se a cultura e


renda de seus possuidores.

.América (séc. XVII e XVIII): leitura e fé estão indissocialmente ligadas;


Familiaridade com o texto bíblico (leitor intensivo); Leitura transmitida entre
gerações;

-Bibliotecas*: o retiro isolado do mundo, lugar de meditação e liberdade


conquistada longe do público; “local de onde se vê, sem ser forçosamente visto,”
instrumento de um poder secreto;
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*Tensão entre a vontade de subtrair-se à multidão e de manter o domínio sobre o


mundo;

*Gabinete: termo usado para designar a biblioteca; local isolado, onde trata-se de
negócios;

-Estabelece-se um vínculo entre a presença do livro, o hábito de ler e a intimidade;

-Os inventários mostram que o quarto é local privilegiado para a leitura no século
XVIII: leitura antes de dormir; leitura conjugal e presença do criado-leitor.

- Também há uma relação estritamente pessoal entre o leitor e seu livro em espaços
abertos ( na rua, no trem);

-Observa-se um processo de laicização e feminização de uma leitura antes religiosa


e majoritariamente masculina, o que não anula as práticas antigas;

.Associa-se a leitura feminina ao ócio, preguiça, prazer sensual e intimidade


secreta.

- Ouvir a leitura:

.Entre os séculos XVI e XVIII a leitura em voz alta é um elemento essencial de


sociabilidade;

.Leitura ouvida coletivamente nos trens, em viagens: criação de um laço temporário,


uma “comunidade anônima e efêmera”

.Reforça a intimidade familiar. Ex. Leitura bíblica paterna.

-Existe um público que tem acesso à escrita através do ouvido.

-A leitura possibilita, encoraja à escritura de diários, coletâneas manuscritas, relatos


de vida;

*A leitura atua nos diversos níveis de privatização: é uma das práticas


constitutivas da intimidade individual, mas também está no centro das
relações grupais.

-Sociabilidade do convívio, intimidade familiar e doméstica, isolamento


individual: três esferas da vida do Ocidente em que o livro e suas leituras
atuam fortemente; Há uma pluralidade do uso do impresso que alcança
letrados e iletrados (elite e meios populares). Entre os populares, os
impressos nem sempre são livros, podem ser coletâneas, cartazes, textos
religiosos, cartas de casamento imagens de peregrinação, etc;

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