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Ética

Prof. Me. Kevin Daniel dos Santos Leyser

2018
Copyright © UNIASSELVI 2018

Elaboração:
Prof. Me. Kevin Daniel dos Santos Leyser

Revisão, Diagramação e Produção:


Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri


UNIASSELVI – Indaial.

L685e

Leyser, Kevin Daniel dos Santos

Ética. / Kevin Daniel dos Santos Leyser. – Indaial: UNIASSELVI,


2018.

284 p.; il.

ISBN 978-85-515-0233-4

1.Ética. – Brasil. II. Centro Universitário Leonardo Da Vinci.

CDD 170.1
Apresentação
Caro acadêmico, antes de apresentar o conteúdo deste livro, gostaria
de me apresentar a você.

Sou Bacharel e Licenciado em Psicologia (2005) e Licenciado em


Filosofia (2004) pela Universidade Comunitária Regional de Chapecó, e
Bacharel em Teologia pela Faculdade de Educação Teológica Logos (2002).
Especialista em Psicopedagogia e Práticas Pedagógicas e Gestão Escolar pela
Faculdade de Administração, Ciências, Educação, Letras (2007), Especialista
em Educação à Distância: Gestão e Tutoria pelo Centro Universitário
Leonardo da Vinci (2018) e Mestre em Educação pela Universidade Regional
de Blumenau (2011).

Agora vamos ao livro de estudos. Este livro tem como objetivo


sistematizar os elementos básicos da disciplina de Ética, o qual proporcionará
um contato com os principais tópicos, autores e obras, além dos instrumentos
necessários, não apenas para acompanhar a presente disciplina, mas também
para os estudos autônomos posteriores.

Na primeira unidade, intitulada Metaética, introduzimos a


natureza da moralidade, definições e delimitações da investigação sobre
o comportamento moral. Aqui, apresentamos os conceitos e o vocabulário
da ética filosófica. Distinguimos os diferentes campos de investigação do
comportamento e raciocínio moral. Assim como delimitamos o campo da
abordagem filosófica à moral, à metaética e à ética normativa.

A partir destes pressupostos, prosseguimos apresentando alguns


dos temas centrais do campo de estudos da metaética, como a liberdade, a
responsabilidade e o relativismo moral. Além disso, exploramos a proposta
do realismo moral e as principais alternativas aos problemas suscitados
por ele. Alternativas como o emotivismo, o antirrealismo, o irrealismo,
o expressivismo, o quase-realismo, o cognitivimo, o não-cognitivismo, o
internalismo, o externalismo, entre tantas outras propostas no domínio da
metaética contemporânea.

Na segunda unidade, o foco recai sobre a Ética Normativa. Primeiro


exploramos as teorias consequencialistas da moralidade. Aqui abordamos
questões como o egoísmo psicológico e ético, o utilitarismo de ato e de
regras, e a teoria da ética do cuidado de Gilligan. Depois, analisamos as
teorias não consequencialistas da moralidade, em que apresentamos o não
consequencialismo de ato e de regras, a teoria do comando divino, a ética
do dever de Kant e os deveres Prima Facie de Ross. Então, prosseguimos
para uma introdução da Ética da Virtude, que teve um ressurgimento na
contemporaneidade e cujos elementos essenciais se encontram nos antigos
III
gregos e no pensamento oriental. Finalizando esta segunda unidade, você terá
uma leitura complementar que fará uma síntese das teorias sobre a ética.

A terceira e última unidade deste Livro de Estudos tem como proposta


apresentar o campo da Ética Aplicada. Aqui vamos explorar questões pertinentes
à Bioética, à Ética dos Negócios e à Ética Ambiental.

Desejo uma boa jornada a todos rumo à edificação da educação e sucesso


frente aos desafios intelectuais, éticos e pessoais proporcionados pelo estudo da
Ética.

Prof. Me. Kevin Daniel dos Santos Leyser

NOTA

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para
você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano,
há novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é


o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um
formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova
diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também
contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente,


apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade
de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador.
 
Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para
apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto
em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas
institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa
continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de


Desempenho de Estudantes – ENADE.
 
Bons estudos!

IV
V
VI
Sumário
UNIDADE 1 - METAÉTICA.................................................................................................................... 1
TÓPICO 1 - A NATUREZA DA MORALIDADE................................................................................ 3
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................... 3
2 DEFINIÇÃO DE TERMOS-CHAVE: ÉTICO, MORAL, ANTIÉTICO, IMORAL...................... 3
2.1 CARACTERÍSTICAS DO BOM, MAU, CERTO, ERRADO, FELICIDADE OU PRAZER...... 4
2.2 O AMORAL E O NÃO MORAL...................................................................................................... 6
3 ABORDAGENS DO ESTUDO DA MORALIDADE....................................................................... 7
4 A MORALIDADE E SUAS APLICAÇÕES........................................................................................ 9
4.1 A ÉTICA E A ESTÉTICA................................................................................................................... 9
4.2 BOM, MAU, CERTO E ERRADO USADO EM UM SENTIDO NÃO MORAL...................... 10
4.3 A MORAL E AS BOAS MANEIRAS OU ETIQUETA................................................................. 11
4.4 A QUEM OU O QUE SE APLICA A MORALIDADE?.............................................................. 13
4.5 QUEM É MORAL OU ETICAMENTE RESPONSÁVEL? ........................................................ 16
5 DE ONDE VEM A MORALIDADE?................................................................................................. 17
5.1 A AVALIAÇÃO DE POSIÇÕES OBJETIVAS E SUBJETIVAS.................................................... 18
5.2 UMA SÍNTESE E POSSÍVEL RESPOSTA PARA A ORIGEM DA MORALIDADE............... 20
6 MORALIDADE COSTUMEIRA E MORALIDADE REFLEXIVA ............................................. 21
7 MORALIDADE, LEI E RELIGIÃO.................................................................................................... 23
7.1 A MORALIDADE E A LEI.............................................................................................................. 23
7.2 MORALIDADE E RELIGIÃO........................................................................................................ 24
8 A TEORIA DO DESENVOLVIMENTO MORAL DE KOHLBERG........................................... 26
8.1 DEFINIÇÃO DE ETAPAS MORAIS.............................................................................................. 27
9 POR QUE OS SERES HUMANOS DEVEM SER MORAIS?....................................................... 28
10 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ..................................................................................................... 29
RESUMO DO TÓPICO 1....................................................................................................................... 31
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................. 35

TÓPICO 2 - LIBERDADE, RESPONSABILIDADE E RELATIVISMO MORAL........................ 37


1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................................... 37
2 A NATUREZA DA RESPONSABILIDADE MORAL.................................................................... 38
3 A QUESTÃO DA COMPATIBILIDADE.......................................................................................... 39
3.1 EXPLICAÇÕES COMPATIBILISTAS............................................................................................ 43
3.2 EXPLICAÇÕES INCOMPATIBILISTAS....................................................................................... 46
4 A RESPONSABILIDADE MORAL É IMPOSSÍVEL?................................................................... 48
5 O RELATIVISMO MORAL................................................................................................................ 48
5.1 RELATIVISMO AGENTE............................................................................................................... 50
5.2 RELATIVISMO DO AVALIADOR................................................................................................. 55
6 SOLUCIONANDO DISCORDÂNCIAS.......................................................................................... 57
7 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES........................................................................................................ 58
RESUMO DO TÓPICO 2....................................................................................................................... 59
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................. 61

TÓPICO 3 - O REALISMO E SUAS ALTERNATIVAS.................................................................... 63


1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................................... 63

VII
2 O REALISMO MORAL....................................................................................................................... 64
3 AS CINCO CARACTERÍSTICAS CENTRAIS PARA A MORALIDADE................................. 65
4 ALTERNATIVAS METAÉTICAS EM RELAÇÃO A QUESTÕES DO REALISMO................ 68
4.1 PASSO 1 – AS AFIRMAÇÕES MORAIS POSSUEM CONTEÚDO COGNITIVO?................ 70
4.2 PASSO 2 – AO MENOS ALGUNS JUÍZOS MORAIS ESCAPAM À FALSIDADE?............... 71
4.3 PASSO 3 – A LINGUAGEM MORAL ESTÁ SENDO INTERPRETADA LITERALMENTE?..
78
4.4 PASSO 4 – AS CONDIÇÕES DE VERDADE DAS AFIRMAÇÕES MORAIS SÃO
INDEPENDENTES DO SUJEITO?................................................................................................ 80
4.5 PASSO 5 – OS FATOS MORAIS PODEM EXPLICAR NÃO TRIVIALMENTE NOSSAS
OPINIÕES MORAIS?...................................................................................................................... 85
5 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES........................................................................................................ 87
RESUMO DO TÓPICO 3....................................................................................................................... 88
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................. 90

UNIDADE 2 - ÉTICA NORMATIVA................................................................................................... 91


TÓPICO 1 - TEORIAS CONSEQUENCIALISTAS DA MORALIDADE..................................... 93
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................................... 93
2 O EGOÍSMO PSICOLÓGICO........................................................................................................... 94
3 O EGOÍSMO ÉTICO............................................................................................................................ 96
3.1 PROBLEMAS COM O EGOÍSMO ÉTICO INDIVIDUAL E PESSOAL................................... 97
3.2 O EGOÍSMO ÉTICO UNIVERSAL................................................................................................ 98
3.2.1 Problemas com o Egoísmo Ético Universal............................................................................... 98
3.2.2 Vantagens do Egoísmo Ético Universal................................................................................... 101
3.3 EGOÍSMO ÉTICO RACIONAL DE AYN RAND...................................................................... 102
4 O UTILITARISMO............................................................................................................................. 103
4.1 O UTILITARISMO DE ATO......................................................................................................... 106
4.1.1 Crítica ao Utilitarismo de Ato................................................................................................... 106
4.2 O UTILITARISMO DE REGRAS.................................................................................................. 107
4.2.1 Crítica ao Utilitarismo de Regras.............................................................................................. 108
4.3 UTILITARISMO DE PRÁTICAS.................................................................................................. 109
4.4 A ANÁLISE CUSTO-BENEFÍCIO OU ABORDAGEM “FIM JUSTIFICA OS MEIOS” ...... 110
5 DIFICULDADE COM AS TEORIAS CONSEQUENCIALISTAS EM GERAL...................... 112
6 A ÉTICA DO CUIDADO................................................................................................................... 114
RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 117
AUTOATIVIDADE............................................................................................................................... 120

TÓPICO 2 - TEORIAS NÃO CONSEQUENCIALISTAS DA MORALIDADE


1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................... 121
2 TEORIAS NÃO CONSEQUENCIALISTAS DE ATO................................................................. 122
2.1 INTUICIONISMO.......................................................................................................................... 123
2.2 CRÍTICAS AO NÃO CONSEQUENCIALISMO DE ATO....................................................... 124
3 TEORIAS NÃO CONSEQUENCIALISTAS DE REGRAS......................................................... 125
3.1 TEORIA DO COMANDO DIVINO............................................................................................ 125
3.2 A ÉTICA DO DEVER DE KANT................................................................................................. 126
3.2.1 Dever ao Invés da Inclinação.................................................................................................... 128
3.2.2 Crítica à Ética do Dever de Kant.............................................................................................. 129
4 DEVERES PRIMA FACIE DE ROSS............................................................................................... 132
4.1 CRÍTICAS À TEORIA DE ROSS.................................................................................................. 133
5 CRÍTICAS GERAIS ÀS TEORIAS NÃO CONSEQUENCIALISTAS...................................... 134
RESUMO DO TÓPICO 2..................................................................................................................... 137
AUTOATIVIDADE............................................................................................................................... 140

VIII
TÓPICO 3 - A ÉTICA DA VIRTUDE................................................................................................. 141
1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................... 141
2 DEFINIÇÃO DE TERMOS............................................................................................................... 141
3 A ÉTICA NICOMAQUEIA DE ARISTÓTELES........................................................................... 142
3.1 O CARÁTER E O FLORESCIMENTO HUMANO................................................................... 143
3.2 AVALIANDO A CONCEPÇÃO ARISTOTÉLICA DE FLORESCIMENTO ......................... 145
3.3 ABORDAGENS CONTEMPORÂNEAS AO FLORESCIMENTO.......................................... 146
3.4 A ESTRUTURA DAS VIRTUDES EM ARISTÓTELES............................................................. 148
4 O AUTOCULTIVO MORAL CONFUCIANO.............................................................................. 153
4.1 OS ANALECTOS CONFUCIANOS............................................................................................ 153
4.2 HARMONIA CONFUCIONISTA................................................................................................ 155
4.3 A ÉTICA CONFUCIONISTA DOS PAPÉIS............................................................................... 157
5 ANÁLISE CONTEMPORÂNEA DA ÉTICA DA VIRTUDE..................................................... 159
5.1 ANÁLISE DE ALASDAIR MACINTYRE DA ÉTICA DA VIRTUDE.................................... 159
5.2 DESVANTAGENS OU PROBLEMAS......................................................................................... 161
6 QUEM É A PESSOA VIRTUOSA IDEAL?.................................................................................... 162
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................................. 164
LEITURA COMPLEMENTAR............................................................................................................. 166
RESUMO DO TÓPICO 3..................................................................................................................... 179
AUTOATIVIDADE............................................................................................................................... 182

UNIDADE 3 - ÉTICA APLICADA...................................................................................................... 183


TÓPICO 1 - A NATUREZA DA ÉTICA APLICADA...................................................................... 185
1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................... 185
2 TEORIA ÉTICA GERAL E PRINCIPIALISMO............................................................................ 186
3 CONTEXTUALISMO E DESENVOLVIMENTOS RELACIONADOS.................................... 189
4 QUESTÕES DE CONVENCIONALISMO, EXPERTISE MORAL E PSICOLOGIA
MORAL.................................................................................................................................................... 191
5 DESAFIOS À ÉTICA APLICADA................................................................................................... 192
5.1 O DESAFIO DO RELATIVISMO................................................................................................. 193
5.2 O DESAFIO DO SUBJETIVISMO................................................................................................ 194
5.3 ÉTICA E O PAPEL DAS RAZÕES............................................................................................... 195
6 ÉTICA APLICADA E TEORIA ÉTICA........................................................................................... 196
6.1 TEORIA ÉTICA PARA A ÉTICA APLICADA........................................................................... 197
7 COMO DEVEM SER AS TEORIAS?.............................................................................................. 199
8 OUTRAS CONSIDERAÇÕES ......................................................................................................... 201
RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 203
AUTOATIVIDADE............................................................................................................................... 205

TÓPICO 2 - BIOÉTICA......................................................................................................................... 207


1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................... 207
2 NOTAS HISTÓRICAS SOBRE BIOÉTICA................................................................................... 207
3 QUESTÕES SUBSTANTIVAS EM BIOÉTICA............................................................................. 211
4 ABORDAGENS DISCIPLINARES DA BIOÉTICA..................................................................... 215
4.1 ABORDAGENS CLÍNICAS.......................................................................................................... 215
4.2 ABORDAGENS CIENTÍFICAS.................................................................................................... 216
4.3 ABORDAGENS RELIGIOSAS..................................................................................................... 217
4.4 ABORDAGENS LEGAIS............................................................................................................... 218
4.5 ABORDAGENS SOCIOLÓGICAS.............................................................................................. 218
4.6 ABORDAGENS PSICOLÓGICAS............................................................................................... 219
5 PRINCÍPIOS ÉTICOS FUNDAMENTAIS EM BIOÉTICA ....................................................... 219
5.1 O PRINCÍPIO DO RESPEITO PELA AUTONOMIA............................................................... 220

IX
5.2 O PRINCÍPIO DA MAXIMIZAÇÃO DO BEM-ESTAR UTILITÁRIO................................... 221
5.3 O PRINCÍPIO DA JUSTIÇA SOCIAL......................................................................................... 221
5.4 UMA ABORDAGEM QUASE-FUNDACIONAL – OS "QUATRO PRINCÍPIOS"............... 222
5.5 CASUÍSTICA.................................................................................................................................. 223
5.6 ÉTICA DA VIRTUDE.................................................................................................................... 223
5.7 ÉTICA NARRATIVA..................................................................................................................... 224
5.8 ÉTICA FEMINISTA....................................................................................................................... 224
5.9 BIOÉTICA GEOCULTURAL........................................................................................................ 224
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................................. 225
RESUMO DO TÓPICO 2..................................................................................................................... 226
AUTOATIVIDADE............................................................................................................................... 228

TÓPICO 3 - ÉTICA AMBIENTAL...................................................................................................... 229


1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................... 229
2 O ANTROPOCENTRISMO.............................................................................................................. 229
3 BIOCENTRISMO............................................................................................................................... 232
4 ECOCENTRISMO.............................................................................................................................. 238
5 ECOFEMINISMO............................................................................................................................... 243
6 ECOLOGIA PROFUNDA................................................................................................................. 245
7 PLURALISMO..................................................................................................................................... 246
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS: O COMUNITARISMO................................................................. 248
LEITURA COMPLEMENTAR............................................................................................................. 248
RESUMO DO TÓPICO 3..................................................................................................................... 260
AUTOATIVIDADE............................................................................................................................... 262
REFERÊNCIAS....................................................................................................................................... 263

X
UNIDADE 1

METAÉTICA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir dos estudos desta unidade, você será capaz de:

• delimitar o campo do estudo da ética e filosofia moral;

• introduzir a metaética abordando a natureza da moralidade;

• apresentar as principais questões sobre a liberdade e a responsabilidade


moral nos debates contemporâneos da metaética;

• elucidar a proposta do relativismo moral e suas objeções no campo da


metaética;

• comparar a proposta do realismo moral com as principais alternativas na


metaética contemporânea.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você
encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – A NATUREZA DA MORALIDADE

TÓPICO 2 – LIBERDADE, RESPONSABILIDADE E RELATIVISMO MORAL

TÓPICO 3 – O REALISMO MORAL E SUAS ALTERNATIVAS

1
2
UNIDADE 1
TÓPICO 1

A NATUREZA DA MORALIDADE

1 INTRODUÇÃO

A moralidade reivindica nossas vidas. Faz reivindicações sobre cada um


de nós que são mais fortes do que as reivindicações da lei e tem prioridade sobre
o interesse próprio. Como seres humanos que vivem no mundo, temos deveres
e obrigações básicas. Há certas coisas que devemos fazer e certas coisas que
não devemos fazer. Em outras palavras, há uma dimensão ética da existência
humana. Como seres humanos, experimentamos a vida em um mundo de bem
e mal e entendemos certos tipos de ações em termos de certo e errado. A própria
estrutura da existência humana dita que devemos fazer escolhas. A ética nos ajuda
a usar nossa liberdade de maneira responsável e a compreender quem somos. E,
a ética dá direção em nossa luta por responder às perguntas fundamentais que
questionam como devemos viver nossas vidas e como podemos fazer escolhas
certas.

2 DEFINIÇÃO DE TERMOS-CHAVE: ÉTICO, MORAL,


ANTIÉTICO, IMORAL
Na linguagem comum, frequentemente utilizamos as palavras ética e
moral (e antiético e imoral) de forma intercambiável. Isto é, falamos da pessoa ou
ato como ético ou moral. Por outro lado, falam de códigos de ética, mas apenas,
raramente, mencionamos códigos de moralidade. Alguns reservam os termos
moral e imoral somente para o reino da sexualidade e usam as palavras éticas e
antiéticas ao discutir como as comunidades profissionais e de negócios devem se
comportar em relação a seus membros ou ao público. Mais comumente, entretanto,
nós usamos nenhuma destas palavras com tanta frequência quanto usamos os
termos bom, mau, certo e errado. O que significam todas essas palavras, e quais
são as relações entre elas?

Ética vem do termo grego ethike que provém de ethos, que por sua vez
deriva de duas matizes distintas, uma que designa costumes normativos e outra
que designa constância do comportamento, hábito ou caráter. Na verdade, o
termo ethos é uma transposição metafórica de um termo que denota a morada dos
animais (VAZ, 2006). Os gregos antigos ao fazerem essa transposição queriam se
referir ao mundo humano, quanto aos seus costumes e o próprio agir humano

3
UNIDADE 1 | METAÉTICA

que constituiria sua morada e, simultaneamente, seu caráter.

Moral vem do latim moralis, que significa costumes ou hábito, mas com
uma maior amplitude de sentido. Termo este que foi usado para traduzir para
o latim o termo grego ethike, Ética (VAZ, 2006). A ética, contudo, normalmente,
é entendida como pertencente ao caráter individual de uma pessoa ou pessoas,
enquanto a moralidade parece apontar para as relações entre os seres humanos. No
entanto, na linguagem comum, se chamarmos uma pessoa de ética ou moral, ou
um ato de antiético ou imoral, realmente, não faz qualquer diferença significativa.
Na filosofia, no entanto, o termo Ética também é usado para se referir a uma área
específica de estudo: a área da moral, que se concentra na conduta humana e
valores humanos.

Quando falamos de pessoas como sendo morais ou éticas, geralmente,


queremos dizer que elas são pessoas boas, e quando falamos delas como sendo
imorais ou antiéticas, queremos dizer que elas são pessoas más. Quando nos
referimos a certas ações humanas como sendo morais, éticas, imorais ou antiéticas,
queremos dizer que elas estão certas ou erradas. A simplicidade dessas definições,
contudo, termina aqui, pois como definimos uma ação certa ou errada ou uma
pessoa boa ou má? Quais são os padrões humanos pelos quais tais decisões
podem ser tomadas? Estas são as questões mais difíceis que constituem a maior
parte do estudo da moralidade, e serão discutidas em mais detalhes em tópicos
posteriores. O importante é lembrar aqui que moral, ética, imoral e antiético
significam, essencialmente, o bom, o certo, o mau e o errado, com frequência
dependendo se alguém está se referindo às próprias pessoas ou às suas ações.

2.1 CARACTERÍSTICAS DO BOM, MAU, CERTO, ERRADO,


FELICIDADE OU PRAZER
Parece ser um fato empírico que o que os seres humanos consideram ser
bom envolve de alguma forma felicidade e prazer, e tudo o que eles consideram
ser mau envolve a infelicidade e a dor de alguma forma. Essa visão do que é
bom tem sido, tradicionalmente, chamada de "hedonismo". Enquanto uma ampla
variação de interpretação é dada a essas palavras (de simples prazeres sensorial
a prazeres intelectuais ou espirituais e da dor sensorial à profunda infelicidade
emocional), é difícil negar que tudo o que é bom envolve pelo menos algum
prazer ou felicidade, e o que é mau envolve alguma dor ou infelicidade.

Um elemento envolvido na realização da felicidade é a necessidade de


tomar a visão de longo alcance em vez da visão de curto alcance. As pessoas
podem sofrer alguma dor ou infelicidade a fim de alcançar algum prazer ou
felicidade no longo prazo. Por exemplo, podemos suportar a dor de ter nossos
dentes perfurados a fim de manter os dentes e gengivas saudável para que
possamos desfrutar do comer e da boa saúde geral que resulta de ter dentes
saudáveis. Da mesma forma, as pessoas podem engajar-se em trabalhos muito

4
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA MORALIDADE

árduos e até mesmo dolorosos por dois dias a fim de ganhar dinheiro que lhes
trará prazer e felicidade para uma semana ou duas.

Além disso, o termo bom deve ser definido no contexto da experiência


humana e das relações humanas e não apenas em um sentido abstrato. Por
exemplo, conhecimento e poder em si mesmos não são bons a menos que um ser
humano obtenha alguma satisfação deles ou a menos que contribuam de alguma
forma para relacionamentos morais e significativos do homem. Eles são, de outra
forma, não morais.

E quanto às ações que levarão algum bem a uma pessoa, mas que causarão
dor a outra, como aqueles atos de um sádico que obtêm prazer de maltratar
violentamente outro ser humano? Nossa declaração original era de que tudo
o que é bom trará alguma satisfação, prazer ou felicidade a alguém, mas essa
afirmação não necessariamente funciona no sentido inverso – que tudo o que traz
satisfação a alguém é necessariamente bom. Certamente há "prazeres maliciosos".

William Frankena (1975, p. 91) afirma que tudo o que é bom também,
provavelmente, envolverá "algum tipo ou grau de excelência". Ele continua
dizendo que "o que é mau em si é assim por causa da presença de dor ou
infelicidade ou de algum tipo de defeito ou falta de excelência". A excelência
é uma importante adição ao prazer ou à satisfação, na medida em que torna
“experiências ou atividades melhores ou piores do que seriam de outra forma".
Por exemplo, o prazer ou a satisfação obtida ao ouvir um concerto, ver um bom
filme, ou por ler um bom livro é devido, em grande medida, à excelência dos
criadores e apresentadores desses eventos (compositores, artistas, diretores, atores
e escritores). Outro exemplo, talvez mais profundo, da importância da excelência
é que se alguém obtiver satisfação ou prazer de testemunhar um caso judicial bem
conduzido e de ver e ouvir o juiz e os advogados cumprirem bem suas funções,
essa satisfação será aprofundada se o juiz e os advogados também são pessoas
excelentes, isto é, se são seres humanos bondosos, justos e compassivos, além de
inteligentes e capazes.

Tudo o que é bom, então, provavelmente conterá algum prazer, felicidade


e excelência, enquanto o que é mau será caracterizado por seus opostos: dor,
infelicidade e falta de excelência. As reivindicações acima indicam apenas que,
provavelmente, haverá alguns destes elementos presentes. De qualquer modo, os
destinatários da ação correta podem estar felizes por esta, e a ação correta pode
também envolver a excelência.

Há dois outros atributos de "bom" e "mau" que podem somar à nossa


definição. Estes são harmonia e criatividade no lado "bom" e discórdia, ou
desarmonia, e falta de criatividade no lado "mau". Se uma ação é criativa ou pode
ajudar os seres humanos a se tornarem criativos e, ao mesmo tempo, ajudar a
conseguir uma integração harmoniosa de tantos seres humanos quanto possível,
então podemos dizer que é uma ação certa. Se uma ação tem o efeito oposto,
então podemos dizer que é uma ação errada.

5
UNIDADE 1 | METAÉTICA

Por exemplo, se uma pessoa ou um grupo de pessoas pode terminar uma


guerra entre duas nações e criar uma paz honrosa e duradoura, então uma ação
certa ou boa foi realizada. Esta ação pode permitir que os membros de ambas
as nações sejam criativos e não destrutivos e podem criar harmonia entre os
dois lados e dentro de cada nação. Por outro lado, causar ou iniciar uma guerra
entre duas nações terá exatamente o efeito oposto. Lester A. Kirkendall enfatiza
esses pontos e acrescenta à discussão anterior sobre a necessidade de colocar
ênfase primária no que é bom ou excelente na experiência e nos relacionamentos
humanos:

Sempre que uma decisão ou uma escolha deve ser feita com relação
ao comportamento, a decisão moral será aquela que trabalha para
a criação de confiança e integridade nos relacionamentos. Deve
aumentar a capacidade dos indivíduos para cooperar, e aumentar a
sensação de autorrespeito no indivíduo. Atos que criam desconfiança,
suspeita e mal-entendidos, que constroem barreiras e destroem a
integridade, são imorais. Eles diminuem o senso de autorrespeito
do indivíduo e, ao invés de produzir uma capacidade de trabalhar
juntos, separam as pessoas e rompem a capacidade de comunicação
(KIRKENDALL, 1961, p. 6).

Dois outros termos que devemos definir são amoral e não moral.

2.2 O AMORAL E O NÃO MORAL


Amoral significa não possuir um sentido moral, ou estar indiferente ao
certo e ao errado (CORTINA; MARTÍNEZ, 2005). Este termo pode ser aplicado a
poucas pessoas. Certas pessoas que tiveram lobotomias pré-frontais tendem a agir
amoralmente após a operação. Isto é, elas não têm senso algum de certo e errado.
E há alguns seres humanos que, apesar da educação moral, permaneceram ou
se tornaram amorais. Encontramos tais pessoas entre certos tipos de criminosos
que não conseguem perceber que fizeram algo de errado. Eles tendem a não ter
qualquer remorso, arrependimento ou preocupação com o que eles fizeram.

Um desses exemplos de uma pessoa amoral é Gregory Powell, que, com


Jimmy Lee Smith, matou, gratuitamente, um policial em um campo de cebola ao
sul de Bakersfield, Califórnia. Uma boa descrição dele e de sua atitude pode ser
encontrada na obra The Onion Field, de Joseph Wambaugh (2008). Outro exemplo
é Colin Pitchfork, outro personagem da vida real. Pitchfork violentou e matou
duas jovens na Inglaterra e foi descrito por Wambaugh na obra The Blooding
(1989). Nesse livro, Wambaugh também cita vários psicólogos falando sobre a
personalidade amoral, psicopatológica, sociopatológica, que na obra é definida
como uma pessoa caracterizada por “instabilidade emocional, falta de bom senso,
comportamento perverso e impulsivo (muitas vezes criminoso), incapacidade
de aprender com experiência, sentimentos amorais e associais e outros defeitos
sérios de personalidade" (WAMBAUGH, 1989, p. 325). Robert Hare (2013)
descreve ausência do senso de consciência, culpa ou remorso, na psicopatia, que

6
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA MORALIDADE

conduzem a atos nocivos que são cometidos sem desconforto ou vergonha. A


amoralidade, então, é, basicamente, uma atitude que alguns – felizmente apenas
alguns – possuem.

DICAS

A obra The Onion Field, de Joseph Wambaugh, foi levada às telas do cinema no
filme Assassinato a sangue frio de 1979.

Tudo isso não significa que os criminosos amorais não devem ser
culpados e punidos por seus erros. Na verdade, essas pessoas podem ser ainda
mais perigosas para a sociedade do que aqueles que podem distinguir o certo do
errado, porque, geralmente, eles são moralmente ineducáveis.

A palavra não moral significa completamente fora do domínio da moral


(SHER, 2012). Por exemplo, objetos inanimados, como carros e armas, não são
nem morais nem imorais. Uma pessoa usando o carro ou arma pode usá-lo
imoralmente, mas as coisas em si são não morais. Muitas áreas de estudo (por
exemplo, matemática, astronomia e física) são em si mesmas não morais, mas
porque os seres humanos estão envolvidos nessas áreas, a moralidade também
pode estar envolvida. Um problema de matemática não é nem moral nem imoral
em si mesmo. No entanto, se ele fornece os meios pelos quais uma bomba de
hidrogênio pode ser explodida, então questões morais certamente sobrevirão.

Em resumo, a pessoa imoral viola conscientemente os padrões morais


humanos fazendo algo errado ou sendo mau. A pessoa amoral também pode
violar os padrões morais porque ele ou ela não tem senso moral. Algo não moral
não pode ser bom nem ruim, nem fazer nada certo ou errado simplesmente
porque não se enquadra no âmbito da moralidade.

3 ABORDAGENS DO ESTUDO DA MORALIDADE


Existem duas abordagens principais para o estudo da moralidade. A
primeira é científica ou descritiva (HEGENBERG, 2010a). Esta abordagem é
mais frequentemente utilizada nas ciências sociais e, como a ética, lida com o
comportamento e a conduta humanos. A ênfase aqui, entretanto, é empírica.
Isto é, os cientistas sociais observam e coletam dados sobre os comportamentos
e as condutas humanas e então extraem certas conclusões. Por exemplo, alguns

7
UNIDADE 1 | METAÉTICA

psicólogos, depois de terem observado muitos seres humanos em muitas


situações, chegaram à conclusão de que os seres humanos agem, frequentemente,
em seu interesse próprio. Esta é uma abordagem descritiva ou científica do
comportamento humano – os psicólogos observaram como os seres humanos
agem em muitas situações, descreveram o que observaram e tiraram conclusões.
No entanto, eles não fazem juízos de valor sobre o que é moralmente certo ou
errado, nem prescrevem como os seres humanos devem se comportar.

A segunda abordagem principal para o estudo da moralidade é chamada


abordagem filosófica, e consiste em duas partes.

A primeira parte da abordagem filosófica trata de normas (ou padrões)


e prescrições, denominada de Ética Normativa ou Prescritiva (HEGENBERG,
2010a). Usando o exemplo de que os seres humanos agem, frequentemente, em
seu interesse próprio, os filósofos ético-normativos iriam além da descrição e
conclusão dos psicólogos e quereriam saber se os seres humanos “devem” ou
“deveriam” agir em seu interesse próprio. Eles podem até ir mais longe e chegar a
uma conclusão definitiva. Por exemplo, "dado esses argumentos e essa evidência,
os seres humanos devem sempre agir em seu interesse próprio" (egoísmo). Ou eles
poderiam dizer: "Os seres humanos devem sempre agir no interesse dos outros"
(altruísmo), ou "os seres humanos devem sempre agir no interesse de todos os
interessados, o eu incluído" (utilitarismo). Estas três conclusões não são mais
apenas descrições, mas prescrições. Ou seja, as afirmações estão prescrevendo
como os seres humanos devem se comportar, não apenas descrevendo como eles,
de fato, se comportam. Outro aspecto da ética normativa ou prescritiva é que ela
abrange a realização de juízos de valor moral e não apenas a apresentação ou
descrição de fatos ou dados. Por exemplo, afirmações como "o aborto é imoral" e
"Maria é uma pessoa moralmente boa" podem prescrever nada, mas envolvem os
juízos normativos de valor moral que todos nós fazemos todos os dias de nossas
vidas.

A segunda parte da abordagem filosófica ao estudo da ética é chamada


de metaética ou, às vezes, denominada de ética analítica (HEGENBERG, 2010a;
NERI, 2004). Em vez de ser descritiva ou prescritiva, essa abordagem é analítica
de duas maneiras. Primeiramente, os metaeticistas analisam a linguagem
ética (por exemplo, o que significamos quando nós usamos a palavra “bom”).
Segundo, analisam os fundamentos racionais dos sistemas éticos, ou a lógica e o
raciocínio de vários eticistas. Os metaeticistas não prescrevem qualquer coisa nem
lidam diretamente com sistemas normativos. Em vez disso, eles "vão além" (um
significado-chave do prefixo grego meta), referindo-se apenas, indiretamente, aos
sistemas ético-normativos, concentrando-se no raciocínio, nas estruturas lógicas
e na linguagem, e não no conteúdo.

Deve-se notar aqui que a metaética, embora sempre usada por todos os
eticistas até certo ponto, tornou-se o único interesse de muitos filósofos éticos
modernos (NERI, 2004). Isto pode ser devido, em parte, à crescente dificuldade
de formular um sistema de ética aplicável a todos ou mesmo à maioria dos seres

8
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA MORALIDADE

humanos. Nosso mundo, nossas culturas e nossas vidas se tornaram cada vez
mais complicadas e pluralistas, e encontrar um sistema ético que subjaz as ações
de todos os seres humanos é uma tarefa difícil, senão impossível. Portanto, esses
filósofos sentem que poderiam fazer o que outros especialistas fizeram e se
concentrarem na linguagem e na lógica, em vez de tentar chegar a sistemas éticos
que ajudem os seres humanos a viver juntos mais significativamente e eticamente.

Um dos principais objetivos da primeira e segunda unidade deste livro é


um compromisso com uma síntese razoável das visões éticas. Isto é, esta síntese
pretende ser uma união de posições opostas em um todo, no qual nenhuma
posição se perde completamente, mas as melhores partes ou mais úteis de cada
posição são enfatizadas através de um princípio básico que se aplicará a todas.
Há, é claro, conflitos que não podem ser sintetizados – você não pode sintetizar as
políticas de genocídio do ditador alemão Adolf Hitler com qualquer sistema ético
que enfatize o valor da vida para todos os seres humanos – mas muitos podem
ser.

O ponto, entretanto, é que um estudo completo da ética exige o uso das


abordagens descritiva, normativa e metaética. É importante que os especialistas
em ética utilizem todos os dados e resultados válidos de experiências das ciências
naturais, físicas e sociais. Eles também devem examinar sua linguagem, lógica
e fundações. Todavia, parece ainda mais crucial que os eticistas contribuam
para ajudar todos os seres humanos a viverem de forma mais significativa
e ética. Se a filosofia não pode contribuir para este último imperativo, então a
ética humana será decidida ao acaso ou por cada indivíduo por si mesmo ou por
pronunciamentos religiosos não examinados.

Neste sentido, este tópico compromete-se com uma síntese da ética


descritiva, normativa e analítica, com grande ênfase na disposição da utilidade
da ética à comunidade humana. Contudo, como veremos, as questões que estão
sendo levantadas aqui pertencem mais ao domínio da ética analítica, ou metaética.

4 A MORALIDADE E SUAS APLICAÇÕES


Até agora, discutimos terminologia e abordagens para estudar a
moralidade, mas ainda temos de descobrir exatamente o que é moralidade. Uma
definição completa de moralidade, assim como outras questões complexas, será
revelada, gradualmente, à medida que prosseguirmos por esta primeira unidade.
Neste tópico, no entanto, o objetivo é duplo: fazer algumas distinções importantes
e chegar a uma definição operacional básica da moralidade.

4.1 A ÉTICA E A ESTÉTICA


Há duas áreas de estudo em filosofia que lidam com valores e juízos de

9
UNIDADE 1 | METAÉTICA

valor em assuntos humanos. A primeira é a ética, ou o estudo da moralidade – o


que é bom, mau, certo ou errado em um sentido moral. A segunda é a estética, ou
o estudo dos valores na arte ou na beleza – o que é bom, mau, certo ou errado na
arte e o que constitui o belo e o não belo em nossas vidas. Pode haver, obviamente,
alguma sobreposição entre as duas áreas (HERMANN, 2005). Por exemplo, pode-
se julgar a pintura de Pablo Picasso, Guernica (veja a figura a seguir), do ponto
de vista artístico, decidir se ela é bonita ou feia, se constitui uma arte boa ou má
em termos de técnica artística. Pode-se também discutir sua importância moral:
nela, Picasso faz comentários morais sobre a crueldade e a imoralidade da guerra
e a desumanidade das pessoas em relação umas às outras. Essencialmente, no
entanto, quando dizemos que uma pessoa é atraente, e quando dizemos que um
pôr-do-sol é bonito ou um cão é feio ou uma pintura é grandiosa ou seu estilo
é medíocre, estamos falando em termos de estética em vez de moral ou valores
éticos.

FIGURA 1 – GUERNICA

FONTE: Disponível em: <https://wallpapercave.com/wp/rhTfMEb.jpg>. Acesso em: 12


maio 2017.

4.2 BOM, MAU, CERTO E ERRADO USADO EM UM SENTIDO


NÃO MORAL
As mesmas palavras que usamos em um sentido moral também são,
frequentemente, usadas em um sentido não moral. O uso estético descrito
anteriormente é um deles. E quando, por exemplo, dizemos que um cão ou uma
faca é bom/boa, ou que um carro tem um mau desempenho, muitas vezes, usamos
esses termos de valor (bom, mau, ruim etc.) em nenhum sentido estético ou moral.
Ao chamar um cão de bom, não queremos dizer que o cão é, moralmente, bom
ou mesmo bonito. Nós, provavelmente, queremos dizer que não morde ou que
late apenas quando estranhos nos ameaçam ou que desempenha bem o papel de
um cão de caça. Quando dizemos que um carro tem um mau desempenho ou que

10
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA MORALIDADE

uma faca é boa, queremos dizer que há algo, mecanicamente, (mas não moral ou
esteticamente) errado com o motor do carro ou que a faca é afiada e corta bem.
Em suma, o que geralmente queremos dizer com tal afirmação é que a coisa em
questão é boa porque pode ser usada para cumprir algum tipo de função. Isto é,
está em "bom" funcionamento ou tem sido bem treinado.

É interessante notar que Aristóteles (384-322 AEC) argumentou que ser


moral tem a ver com a função de um ser humano e que, ao desenvolver seu
argumento, ele passou dos usos não morais para os usos morais de bom e mau.
Ele sugeriu que tudo o que é bom ou mau é assim porque funciona bem ou mal.
Ele então continuou dizendo que se pudéssemos descobrir qual é a função de um
ser humano, então saberíamos como o termo bom ou mau pode ser aplicado à
vida humana. Tendo chegado à teoria de que a função adequada do ser humano é
a razão, ele concluiu que ser moral significa, essencialmente, raciocinar bem para
uma vida completa (ARISTÓTELES, 1984).

Ao longo dos anos, muitas questões foram levantadas sobre esta teoria
(KRAUT, 2009). Alguns duvidam se Aristóteles realmente conseguiu identificar
a função dos seres humanos – por exemplo, algumas religiões afirmam que a
função primária de um ser humano é servir a Deus. Outros questionam se ser
moral pode ser diretamente ligado apenas ao funcionamento. O ponto dessa
discussão é que os mesmos termos que são usados ​​no discurso moral, muitas
vezes, também são usados ​​de forma não moral, e nem Aristóteles nem ninguém
realmente quis dizer que esses termos, quando aplicados a coisas como facas,
cães ou carros, têm algo, diretamente, a ver com o moral ou o ético.

4.3 A MORAL E AS BOAS MANEIRAS OU ETIQUETA


As boas maneiras, ou a etiqueta, é uma outra área do comportamento
humano aliada próxima à ética e à moral, mas distinções cuidadosas devem ser
feitas entre as duas esferas. Não há dúvida de que moral e ética têm muito a ver com
certos tipos de comportamento humano. No entanto, nem todo comportamento
humano pode ser classificado como moral. Alguns destes são não morais e alguns
são sociais, tendo a ver com boas maneiras ou etiqueta, que é, essencialmente, uma
questão de gosto e não de certo ou errado. Muitas vezes, é claro, essas distinções
se confundem ou se sobrepõem, mas é importante distinguir o mais claramente
possível entre comportamento não moral e moral e o que tem a ver somente com
os costumes ou boas maneiras (JOHNSON, 1999).

Tomemos um exemplo da vida cotidiana: um empregador dando ao


secretário uma carta de negócios rotineira para ela digitar. Tanto o ato de dar a
carta ao secretário quanto o ato do secretário digitá-la envolvem comportamento
não moral. Suponhamos agora que o empregador usa palavras de baixo calão ao
falar com o secretário e o faz em tom alto e rude na frente de todos os funcionários
no escritório. O que o empregador fez, essencialmente, é exibir más maneiras, ele
realmente não fez nada de imoral. O praguejar e a rudeza podem ser considerados

11
UNIDADE 1 | METAÉTICA

como conduta errada por muitos, mas, basicamente, são uma ofensa ao gosto, em
vez de uma de ofensa à moralidade.

Vamos agora supor, no entanto, que o conteúdo da carta iria arruinar a


reputação de uma pessoa inocente ou resultar na morte de alguém ou perda de
seus bens. O comportamento agora entra na esfera da moralidade, e questões
devem ser levantadas sobre a moralidade do comportamento do empregador.
Além disso, um problema moral surge para o secretário sobre se ele deve digitar
a carta. Além disso, se o empregador usa palavras de baixo calão para assediar
moral ou sexualmente o secretário, então ele está sendo imoral, ameaçando o
sentimento de segurança pessoal, privacidade, integridade e orgulho profissional
do funcionário.

O comportamento não moral constitui uma grande parte do


comportamento que vemos e realizamos todos os dias em nossas vidas. Devemos,
no entanto, estar sempre cientes de que nosso comportamento não moral pode ter
implicações morais. Por exemplo, digitar uma carta é, em si mesmo, não-moral,
mas se o ato de digitar e enviar a carta resultará na morte de alguém, então a
moralidade certamente entrará em cena.

No domínio das boas maneiras, comportamentos tais como praguejar,


comer com as mãos e vestir-se mal pode ser aceitável em algumas situações,
mas ser considerado má conduta em outras. Tal comportamento raramente seria
considerado imoral. No entanto, não quero dizer que não há conexão entre as
boas maneiras e a moral, apenas que não há nenhuma conexão necessária entre
elas. De um modo geral, em nossa sociedade, sentimos que as boas maneiras
acompanham a boa moral e assumimos que se as pessoas são ensinadas a se
comportarem corretamente em situações sociais, elas também se comportarão
corretamente em situações morais (JOHNSON, 1999).

Muitas vezes, porém, é difícil estabelecer uma conexão direta entre o


comportamento socialmente aceitável e a moralidade (TORRES; NEIVA, 2011).
Muitos membros decadentes de sociedades passadas e presentes agiram com boas
maneiras impecáveis ​​e, contudo, foram altamente imorais em seu tratamento de
outras pessoas. É, naturalmente, desejável que os seres humanos se comportem
com boas maneiras uns com os outros e sejam morais em suas relações humanas.
Todavia, para atuar moralmente ou trazer à luz um problema moral, às vezes,
pode ser necessário violar as "boas maneiras" de uma determinada sociedade.
Por exemplo, há algumas décadas, em sociedades como nos Estados Unidos da
América e na África do Sul durante o Apartheid, era considerado maus modos
e até mesmo ilegal que as pessoas negras comessem na mesma área de um
restaurante que os brancos. Nos EUA, ocorreram o que foram chamados de "sit-
ins" realizados nesses estabelecimentos, que eram protestos não violentos, em que
pessoas negras sentavam nestes restaurantes, pediam para serem servidos, eram
recusados, mesmo assim permaneciam sentados se recusando a sair (SILVA, 2015).
Este movimento inspirou o “kiss-in”, nos EUA e na Europa e o “beijaço” no Brasil,
que consistia na “demonstração pública de afeto entre homossexuais em locais

12
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA MORALIDADE

em que essa prática é coibida, buscando visibilidade para esse público” (GREEN;
TRINDADE, 2005, p. 320). Ou seja, estas ações violavam as “boas maneiras” para
apontar e tentar resolver os problemas morais associados à desigualdade de
tratamento e à negação da dignidade aos seres humanos.

Portanto, embora possa, às vezes, haver uma conexão entre as boas


maneiras e a moral, deve-se tomar cuidado para distinguir entre os dois quando
não há uma conexão clara. Não se deve, por exemplo, equiparar o uso de palavras
de baixo calão em companhia mista com estupro ou assassinato ou desonestidade
nos negócios.

4.4 A QUEM OU O QUE SE APLICA A MORALIDADE?


Ao discutir a aplicação da moralidade, quatro aspectos podem ser
considerados: moralidade religiosa, moralidade e natureza, moralidade
individual e moralidade social.

A moralidade religiosa refere-se a um ser humano em relação a um ser


ou seres sobrenaturais (COMPARATO, 2006). Nas tradições judaica e cristã, por
exemplo, os três primeiros dos Dez Mandamentos (figura a seguir) pertencem a
esse tipo de moralidade. Esses mandamentos tratam do relacionamento de uma
pessoa com Deus, não com qualquer outro ser humano. Ao violar qualquer um
destes três mandamentos, uma pessoa poderia, de acordo com este código de
ética particular, agir imoralmente em relação a Deus sem agir imoralmente em
relação a outra pessoa.

FIGURA 2 – OS DEZ MANDAMENTOS


Os dez mandamentos
1. Não terás outros deuses diante de mim.
2. Não tomarás o nome do teu Deus em vão.
3. Guardarás o dia do sábado.
4. Honre seu pai e sua mãe.
5. Não matarás.
6. Não cometerás adultério.
7. Não furtarás.
8. Não darás falso testemunho contra o seu próximo.
9. Não cobiçarás o cônjuge do seu próximo.
10. Não cobiçarás os pertences do seu próximo.

FONTE: Bíblia, Êxodo, 20. 1-17 (1966)

A moralidade e a natureza referem-se a um ser humano em relação à


natureza (HEGENBERG, 2010b). A moralidade natural prevaleceu em todas as
culturas primitivas, como nos povos nativos ameríndios e nas culturas do extremo
13
UNIDADE 1 | METAÉTICA

oriente. Mais recentemente, a tradição ocidental também se tornou consciente


da importância de lidar com a natureza de uma maneira moral. Alguns veem a
natureza como sendo valiosa apenas para o bem da humanidade, mas muitos
outros têm vindo a vê-la como um bem em si, digno de consideração moral
(OLIVEIRA; OLIVEIRA, 1996; SIQUEIRA, 1998). Com este ponto de vista não há
dúvida sobre se um Robinson Crusoé seria capaz de ações morais ou imorais em
uma ilha deserta estando lá sozinho. No aspecto da moralidade e da natureza, ele
poderia ser considerado moral ou imoral, dependendo de suas ações em relação
às coisas naturais ao seu redor.

A moralidade individual refere-se aos indivíduos em relação a si mesmos


e a um código individual de moralidade que pode ou não ser sancionado por
qualquer sociedade ou religião (LE BON, 2013). Este tipo de código permite uma
"moralidade superior", que pode ser encontrada dentro do indivíduo em vez de
além deste mundo em algum domínio sobrenatural. Uma pessoa pode ou não
realizar algum ato particular, não porque a sociedade, lei ou religião diz que pode
ou não, mas porque ele mesmo pensa que é certo ou errado dentro de sua própria
consciência.

Por exemplo, numa lenda grega, uma filha (Antígona) enfrenta um rei
(Creonte), quando ela procura contrariar a ordem do rei enterrando seu irmão
morto. Na peça de Sófocles (C. 496-406 a.C.), Antígona se opõe a Creonte por
causa da lei superior de Deus. No entanto, a Antígona na peça de Jean Anouilh,
opõe-se a Creonte não por causa da lei divina, da qual ela não reivindica nenhum
conhecimento, mas por causa de suas próprias convicções individuais sobre o que
é certo fazer ao lidar com seres humanos, até seres humanos mortos (POCIÑA et al.,
2015). Este aspecto também pode referir-se a essa área da moralidade preocupada
com as obrigações que os indivíduos têm para com eles próprios (promover seu
próprio bem-estar, desenvolver seus talentos, ser fiel ao que acreditam etc.). Os
mandamentos nove e dez (figura anterior), embora também aplicáveis ​​à moral
social, como veremos a seguir, são bons exemplos de pelo menos uma exortação à
moralidade individual. O propósito de dizer "não cobiçarás" parece ser a criação
de um controle interno dentro de cada indivíduo para que nem sequer pensem
em roubar os pertences ou o cônjuge de um vizinho. De qualquer modo, esses
mandamentos parecem enfatizar uma moralidade individual, assim como uma
moralidade social.

A moralidade social (TORRES; NEIVA, 2011) diz respeito a um ser humano


em relação a outros seres humanos. É, provavelmente, o aspecto mais importante
da moralidade, na medida em que atravessa todos os outros aspectos e é mais
encontrado em sistemas éticos do que qualquer um dos outros.

Voltando, brevemente, ao exemplo da ilha deserta, a maioria dos eticistas,


provavelmente, declararia que Robinson Crusoé era incapaz de qualquer ação
realmente moral ou imoral, exceto para si e para a natureza. Tal ação seria mínima
se comparada com o potencial de moralidade ou imoralidade se houvesse outras
nove pessoas na ilha a quem ele poderia subjugar, torturar ou destruir. Muitos

14
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA MORALIDADE

sistemas éticos permitiriam que o que ele faria a si mesmo é estritamente uma
questão que importa só a ele, desde que não prejudique ninguém.

Para a maioria dos eticistas, as questões morais humanas mais importantes


surgem quando os seres humanos se reúnem em grupos sociais e começam a
entrar em conflito uns com os outros (NERI, 2004). Mesmo que os sistemas éticos
judeus e cristãos, por exemplo, pressionem persistentemente os seres humanos a
amar e obedecer a Deus, ambas as religiões, em todas as suas divisões e seitas, têm
uma mensagem social forte. Na verdade, talvez 70 a 90 por cento de todas as suas
admoestações são direcionadas para como um ser humano deve se comportar em
relação aos outros (REIFLER, 1992). Jesus declarou esta mensagem sucintamente
quando disse que os dois maiores mandamentos são amar a Deus e amar ao próximo
(BÍBLIA, Mateus, 22. 37-40, 1966). Estes se enquadram igualmente sob os aspectos
religiosos e sociais, mas observando toda a ação e pregações de Jesus, vê-se a
maior ênfase no tratamento moral de outros seres humanos. Ele parece dizer que
se alguém age moralmente em relação a outros seres humanos, então este alguém
está automaticamente agindo moralmente em relação a Deus. Isto é enfatizado
em uma das parábolas do Juízo Final de Jesus, quando Ele diz (e eu parafraseio):
Tudo o que fizeste ao mais pequenino dos meus irmãos [seres humanos mais
marginalizados e necessitados], assim o fizestes a Mim (BÍBLIA, Mateus, 25.40,
1966). Três dos Dez Mandamentos são direcionados especificamente a Deus,
enquanto que sete são dirigidos a outros seres humanos – o aspecto social tem
precedência. Em outras religiões, como o budismo e o confucionismo, o aspecto
social representa quase toda a moralidade, havendo muito pouco ou nenhum
foco no aspecto sobrenatural ou religioso (BRANNIGAN, 2005). Além disso, tudo
o que é dirigido para o aspecto individual também muitas vezes destinado ao
bem de outros que compartilham da cultura do indivíduo.

Os sistemas éticos não religiosos, muitas vezes, enfatizam o aspecto social.


O egoísmo ético, que parece enfatizar o aspecto individual e diz em sua forma,
mais comumente declarada, que todos devem agir em seu interesse próprio
(FURROW, 2007), enfatiza também todo o meio social. O utilitarismo em todas as
suas formas enfatiza o bem de todos os interessados e, portanto, obviamente, está
lidando com o aspecto social. Teorias não consequencialistas ou deontológicas,
como a de Kant (2007), enfatizam as ações para com os outros mais do que
qualquer outro aspecto, embora as razões para agir, moralmente, em relação aos
outros sejam diferentes das do egoísmo ético ou do utilitarismo. Essas teorias serão
tratadas detalhadamente nos Tópicos 1 e 2 da próxima unidade. O importante a
ser observado neste ponto é que a maioria dos sistemas éticos, mesmo os mais
individualistas ou religiosos, enfatizará o aspecto social exclusivamente ou muito
mais do que qualquer outro aspecto.

Como, então, devemos usar esses aspectos? Podemos recorrer a eles como
distinções efetivas que nos permitirão pensar em termos mais amplos sobre a
aplicabilidade da ética humana. No espírito de síntese, entretanto, podemos
ser sábios em manter essas distinções abertas em unidade para que possamos
aceitar, em uma ética humana ampla, os aspectos religiosos, naturais, individuais

15
UNIDADE 1 | METAÉTICA

e sociais da moralidade. Reconhecendo, no entanto, que a maioria dos sistemas


éticos se encontram no aspecto social. Devemos, em outras palavras, manter os
olhos nos três primeiros aspectos enquanto permanecemos firmemente plantados
no aspecto social, no qual ocorre a maioria dos problemas e conflitos morais
humanos.

4.5 QUEM É MORAL OU ETICAMENTE RESPONSÁVEL?


Quem pode ser moral ou eticamente responsável por suas ações? Todas
as evidências que obtivemos até hoje nos obrigam a dizer que a moral pertence
aos seres humanos, ao menos na complexidade com a qual a compreendemos.
Se alguém quer atribuir a moralidade a seres sobrenaturais, é preciso fazê-lo na
fé. Se alguém quer atribuir reponsabilidade moral aos outros animais ​​por atos
destrutivos uns contra os outros ou contra os próprios seres humanos, ou até
mesmo aos outros seres vivos, então é preciso ignorar a maior parte da evidência
que a ciência nos deu sobre o comportamento instintual de tais seres e a evidência
de nossas próprias observações diárias.

A experimentação com o ensino da língua aos animais sugere que


são, pelo menos, minimamente, capazes de desenvolver alguns processos de
pensamento semelhantes aos dos seres humanos. É mesmo possível que eles
possam ser ensinados moralidade no futuro, como os seres humanos são agora.
Se isso acontecer, então os animais poderiam ser considerados, moralmente,
responsáveis ​​por suas ações. Pesquisas recentes como as de Sarah Brosnan e Frans
de Waal (2003) demonstram que sim podemos ver traços fundamentais do senso
moral, como empatia, reciprocidade, cooperação e senso de justiça, em outros
animais. Essas evidências comprovam a natureza biológica de nossa moralidade.
Todavia a complexidade da moralidade humana ainda parece delinear o âmbito
da responsabilidade moral.

DICAS

Veja o vídeo Frans de Waal: Comportamento moral em animais, em que o


pesquisador Frans de Waal apresenta seus experimentos e comenta seus surpreendentes
resultados. Disponível em: <https://www.ted.com/talks/frans_de_waal_do_animals_have_
morals?language=pt-br>. Acesso em: 10 maio 2017.

Portanto, no momento presente, a maioria das evidências parece indicar


que seres como as plantas devem ser classificados como não morais ou amorais –
ou seja, devem ser consideradas como não tendo sentido moral ou como estando
fora da esfera moral completamente (TUGENDHAT, 2007). Os outros animais,

16
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA MORALIDADE

mais próximos do ser humano evolucionariamente, quando não se aplica a


classificação da não moralidade ou da amoralidade, no mínimo, são considerados
como inferiores moralmente no sentido da complexidade moral humana (e não
necessariamente no sentido do valor moral).

Portanto, quando usamos os termos moral e ético, os estamos usando


em referência apenas aos seres humanos. Não imputamos responsabilidade
moral a um lobo por matar uma ovelha, ou uma raposa como moralmente
responsável por matar uma galinha. Podemos matar o lobo ou raposa por ter
feito este ato, mas não o matamos porque consideramos o animal moralmente
responsável. Fazemos isso porque não queremos mais que nossas ovelhas ou
galinhas sejam mortas. Neste ponto da história do mundo, somente os seres
humanos podem ser morais ou imorais, especialmente, se enfatizarmos o aspecto
da responsabilidade moral, e, portanto, somente os seres humanos devem ser
considerados moralmente responsáveis ​​por suas ações e comportamento.
Há, naturalmente, limitações quanto ao momento em que os seres humanos
podem ser considerados moralmente responsáveis (o momento ou período do
desenvolvimento biológico em que estamos aptos a agir/pensar moralmente, ou
em casos de demência ou outros casos em que alegamos a perda da autonomia
do indivíduo e, portanto, alegamos que não pode mais agir/pensar moralmente),
mas a questão da responsabilidade moral não deve sequer ser levantada onde os
não humanos estão envolvidos (TUGENDHAT, 2007).

5 DE ONDE VEM A MORALIDADE?


Sempre houve uma grande quantidade de especulações sobre a origem
da moralidade ou da ética (HEGENBERG, 2010b). Será que tem sido sempre
uma parte do mundo, proveniente de algum ser sobrenatural ou incorporado
dentro da própria natureza, ou é estritamente um produto das mentes dos seres
humanos? Ou é alguma combinação de alguns destes fatores? Pela razão de que a
moralidade e a ética lidam com valores que têm a ver com o bem/bom, o mal/mau,
o certo e o errado, esses valores seriam totalmente objetivos – isto é, fenômenos
"externos" aos seres humanos? Seriam eles subjetivos ou estritamente "internos"
aos seres humanos? Ou são uma combinação destes dois domínios? Consideremos
as possibilidades que pertencem ao estudo da metaética (HEGENBERG, 2010a).

Há três maneiras de olhar para os valores quando eles são tomados como
sendo totalmente objetivos: 1. Eles vêm de algum ser, ou seres, sobrenatural; 2. Há
leis morais de alguma forma embutidas dentro da própria natureza; 3. O mundo
e seus objetos têm valor com ou sem a presença da valorização dos seres humanos
(HEGENBERG, 2010a; NERI, 2004; SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2007).

Vejamos primeiro a teoria sobrenatural. Algumas pessoas acreditam que


os valores vêm de algum poder superior ou de um ser ou seres sobrenaturais,
ou princípios – o Bem (Platão); Os deuses (os gregos e romanos); Javé ou Deus
(os judeus); Deus e Seu Filho Jesus (os cristãos); Alá (os muçulmanos); e Brahma

17
UNIDADE 1 | METAÉTICA

(os hindus), para citar alguns. Eles acreditam, além disso, que esses seres ou
princípios incorporam o próprio bem supremo e revelam aos seres humanos o
que é certo ou bom e o que é mau ou errado (NERI, 2004). Se os seres humanos
querem ser morais (e geralmente são encorajados em tais desejos por algum tipo
de recompensa temporal ou eterna), então eles devem seguir esses princípios ou
os ensinamentos desses seres. Se não o fizerem, eles acabarão sendo desobedientes
à moralidade mais elevada (Deus, por exemplo), serão considerados imorais e,
geralmente, receberão algum castigo temporal ou eterno por suas transgressões.
No caso de eles acreditarem em um princípio, em vez de um ser sobrenatural ou
seres, então eles estarão sendo não verdadeiros, desleais, ao mais alto princípio
moral (HEGENBERG, 2010a).
 
Agora vejamos o caso da teoria do direito natural. Outros acreditam
que a moralidade de alguma forma está incorporada na natureza e que existem
"leis naturais" às quais os seres humanos devem aderir se quiserem ser morais.
Santo Tomás de Aquino (1225-1274) defendeu isso tanto quanto defendeu a base
sobrenatural da moralidade (CORTINA; MARTÍNEZ, 2005; VAZ, 2006). Por
exemplo, algumas pessoas afirmarão que a homossexualidade é imoral porque vai
contra a "lei moral natural" – isto é, que seria é contra a lei da natureza que seres
do mesmo sexo desejem ou amem sexualmente uns aos outros ou se envolvam
em atos sexuais.

Em oposição a esses argumentos, há aqueles que argumentam que a


moralidade decorre estritamente do interior dos seres humanos, que são valores
totalmente subjetivos. Ou seja, eles acreditam que as coisas podem ter valores e
serem classificadas como boas, más, certas ou erradas se, e somente se, houver
algum ser consciente que possa valorizar essas coisas (HEGENBERG, 2010a). Em
outras palavras, se não há seres humanos, então não pode haver valores.

5.1 A AVALIAÇÃO DE POSIÇÕES OBJETIVAS E SUBJETIVAS


Vejamos agora os críticos da teoria sobrenatural. Albert Einstein (1879-
1955), o grande matemático/físico, disse: "Não creio na imortalidade do
indivíduo e considero a ética como uma preocupação exclusivamente humana,
sem nenhuma autoridade sobre-humana por trás" (EINSTEIN apud HITCHENS,
2016, p. 249). Obviamente, é possível que o sobrenatural exista e que de alguma
forma se comunique com o mundo natural e os seres humanos nele. Esta visão é,
principalmente, uma crença baseada na fé. Há, naturalmente, justificativa racional
para tal crença, e fé pode ter uma base racional. Evidências para a existência
de um ser sobrenatural são, frequentemente, citadas e, de fato, tem havido
argumentos filosóficos apresentados que tentaram provar a existência de Deus
(LEYSER, 2015). No entanto, não há nenhuma prova conclusiva da existência
de um ser, seres, ou princípio sobrenatural. Além disso, há muitas tradições
altamente diversas descrevendo tais seres ou princípios. Essa diversidade torna
muito difícil determinar exatamente quais valores os seres ou princípios estão
tentando comunicar e quais valores, comunicados através das muitas tradições,

18
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA MORALIDADE

os seres humanos devem aceitar e seguir.

Tudo isso não significa que devemos parar de procurar a verdade ou de


verificar a possibilidade de valores baseados sobrenaturalmente. Todavia, isso
significa que é difícil estabelecer, com alguma certeza, que a moralidade vem
dessa fonte.

Vejamos agora as críticas da teoria do direito natural. Certamente, falamos


sobre "leis da natureza", como a lei da gravitação universal, mas, se examinarmos
essas leis de perto, vemos que elas são muito diferentes das leis artificiais que têm
a ver com a moralidade ou o governo das sociedades. A lei da gravitação, por
exemplo, diz, de fato, que todos os objetos materiais são atraídos para o centro
da terra. Se lançarmos uma bola para o ar, ela sempre cairá de volta ao chão.
Sir Isaac Newton descobriu que esse fenômeno ocorreu cada vez que um objeto
foi submetido à atração da gravidade e descreveu essa recorrência constante
chamando-a de "lei da natureza" (STRATHERN, 1998). A palavra-chave neste
processo é descrita, pois as chamadas leis naturais são descritivas, enquanto as
leis morais e societárias são prescritivas. Em outras palavras, a lei natural não diz
que a bola, quando lançada no ar, deve ou não deve cair no chão, como dizemos
que os seres humanos devem ou não devem matar outros seres humanos. Em
vez disso, a lei da gravitação diz o que a bola faz ou vai fazer quando lançada,
descreve em vez de prescrever seu comportamento.

A pergunta que devemos fazer neste momento é: "Existem leis morais


naturais que prescrevem como os seres, na natureza, deveriam ou não deveriam
se comportar?" Se existirem tais leis morais, quais seriam elas? Como mencionado
anteriormente, a homossexualidade é considerada por alguns como "antinatural"
ou "contra as leis da natureza", uma crença que implica a convicção de que apenas
o comportamento heterossexual é "natural". Se, no entanto, examinarmos todos os
aspectos da natureza, descobriremos que a heterossexualidade não é o único tipo
de sexualidade que ocorre na natureza. Alguns seres na natureza são assexuados
(não têm sexo), alguns são homossexuais (outros animais, assim como os animais
humanos), e muitos são bissexuais (engajando-se em comportamento sexual com
machos e fêmeas da espécie). Os seres humanos, naturalmente, podem querer
prescrever, por uma razão ou outra, que o comportamento homossexual ou “anti-
heterossexual” é errado, mas é difícil argumentar que há alguma "lei da natureza"
que proíbe a homossexualidade.

Vejamos agora as críticas dos valores existentes no mundo e seus objetos.


É factível ou mesmo possível pensar em algo que tenha um valor sem que haja
alguém para valorizá-lo? Que valor o ouro, a arte, a ciência, a política e a música
têm sem seres humanos para valorizá-los? Afinal de contas, com exceção do ouro
nestes exemplos, os seres humanos não os inventaram e criaram? Parece, então,
quase impossível que os valores existam totalmente no mundo e nas próprias
coisas.

Quanto às críticas à posição subjetiva? Devemos então chegar à posição

19
UNIDADE 1 | METAÉTICA

de que os valores são inteiramente subjetivos e de que o mundo em todos os seus


aspectos não teria absolutamente nenhum valor se não existissem seres humanos
nele? Tentemos imaginar objetivamente um mundo sem nenhum ser humano
nele. Não há nada de valor no mundo e na natureza – ar, água, terra, luz solar,
mar – a menos que os seres humanos estejam lá para apreciá-la? Certamente,
quer os seres humanos existam ou não, plantas e animais encontrariam o mundo
"valioso" na realização de suas necessidades. Encontrariam "valor" no calor do
sol e na sombra das árvores, nos alimentos que comem e na água que saciam sua
sede. É verdade que muitas coisas no mundo, como a arte, a ciência, a política
e a música são valorizadas apenas por seres humanos, mas há também muitas
coisas que são valiosas se os seres humanos estão presentes ou não. Assim, parece
que os valores não são inteiramente subjetivos assim como não são inteiramente
objetivos.

5.2 UMA SÍNTESE E POSSÍVEL RESPOSTA PARA A ORIGEM


DA MORALIDADE
Parece, portanto, que pelo menos alguns valores residem fora dos seres
humanos, embora talvez muitos mais dependam de seres humanos conscientes,
que são capazes de valorizar as coisas (FURROW, 2007). Portanto, parece que os
valores são mais complexos do que a posição subjetiva ou a posição objetiva pode
descrever. Assim, uma posição melhor é assumir que os valores são objetivos
e subjetivos (RACHELS; RACHELS, 2014). Uma terceira variável deve ser
adicionada para que haja uma interação de três variáveis ​​da seguinte maneira:
1. A coisa de valor ou a coisa valorizada; 2. Um ser consciente que valoriza, ou o
avaliador; 3. O contexto ou situação em que a valorização ocorre.

Por exemplo, o ouro tem em si valor em seu conteúdo mineral e em que é


brilhante e maleável. No entanto, quando visto por um ser humano e descoberto
ser raro, torna-se – no contexto de sua beleza e em seu papel como um suporte para
as finanças do mundo – um item muito mais valorizado do que é em si mesmo.
Seu valor máximo, portanto, depende não só de suas qualidades individuais,
mas também de algum ser consciente que o está valorizando em um contexto
ou situação específica. Nem precisamos dizer que o ouro é uma daquelas coisas
cujo valor é fortemente dependente da valorização subjetiva. Note, entretanto,
que o valor do ouro mudaria se o contexto ou a situação o fizessem. Por exemplo,
suponha que alguém estivesse preso em uma ilha deserta sem comida, água
ou companheirismo humano, mas com 100 quilos de ouro. O valor do ouro
diminuiria consideravelmente em função do contexto ou da situação em que falta
comida, água e companhia humana e que nenhuma quantidade de ouro poderia
comprar? Este exemplo mostra como o contexto ou situação pode afetar valores
e valorização.

Os valores, então, pareceriam vir mais frequentemente de uma interação


complexa entre seres humanos conscientes e "coisas" (materiais, mentais

20
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA MORALIDADE

ou emocionais) em contextos específicos. No entanto, como essa discussão


pode nos ajudar a responder à questão de onde vem a moralidade? Qualquer
suposição sobre a resposta a esta questão da origem da moral, certamente, tem
de ser especulativa. No entanto, ao observar como a moralidade se desenvolve e
muda nas sociedades humanas, pode-se ver que ela surgiu em grande parte das
necessidades e desejos humanos e que se baseia nas emoções e na razão humana
(LE BON, 2013).
 
Parece lógico supor que, à medida que os seres humanos começaram a
tomar consciência de seu ambiente e de outros seres como eles, estes descobriram
que poderiam realizar mais quando estavam juntos do que poderiam quando
isolados uns dos outros. Através de sentimentos e pensamentos profundos, e
depois de muitas experiências, eles decidiram sobre "bons" e "maus" que iriam
ajudá-los a viver juntos com mais sucesso e significado. Essas crenças necessitavam
de sanções, que eram fornecidas por sumos sacerdotes, profetas e outros líderes. A
moralidade era ligada por esses líderes não apenas à sua autoridade, mas também
à autoridade de algum tipo de ser ou seres sobrenaturais ou à natureza, que, em
tempos anteriores, eram, muitas vezes, considerados inseparáveis (SÁNCHEZ;
VÁZQUEZ, 2007).
 
Por exemplo, os seres humanos são capazes de sobreviver com mais
sucesso em seu ambiente estando em um grupo do que eles podem como
indivíduos isolados. No entanto, se eles devem sobreviver como uma comunidade,
deve haver alguma proibição de matar. Esta proibição pode ser alcançada por
um consenso de todas as pessoas na comunidade ou por ações tomadas pelos
líderes do grupo. Os líderes podem fornecer mais sanções para a lei contra matar,
informando as pessoas que algum ser ou seres sobrenaturais, que podem ou não
ser pensado operar através da natureza, afirmam que matar é errado.

Também é possível, é claro, que um ser ou seres sobrenaturais que


estabeleceram tais leis morais realmente existam. No entanto, como a maioria
dessas leis de fato foram entregues a seres humanos por outros seres humanos
(Moisés, Jesus, Buda, Maomé, Confúcio e outros), só podemos dizer, com certeza,
que a maioria de nossa moralidade e ética vem de nós mesmos, ou seja, de origens
humanas. Tudo o mais é especulação ou uma questão de fé. No mínimo, parece que
a moralidade e a responsabilidade moral devem ser derivadas dos seres humanos
e aplicadas em contextos humanos. Além disso, as pessoas devem decidir o que
é certo ou bom e o que é errado ou mau, usando tanto a sua experiência e seus
melhores e mais profundos pensamentos e sentimentos e aplicando-os de forma
racional e significativa como eles podem. Isso nos leva à importante distinção
entre a moralidade costumeira ou tradicional e a moralidade reflexiva.

6 MORALIDADE COSTUMEIRA E MORALIDADE REFLEXIVA


John Dewey, em sua obra Teoria da vida Moral, distingue bem a moralidade
costumeira da reflexiva dizendo que “a distinção intelectual entre a moralidade

21
UNIDADE 1 | METAÉTICA

costumeira e a reflexiva é marcadamente clara. A primeira baseia a norma e as


regras de conduta no âmbito ancestral, a segunda apela à consciência, à razão
ou a algum princípio que implica pensamento” (DEWEY, 1965, p. 21). Podemos
dizer que estamos todos bastante familiarizados com a moralidade costumeira
ou tradicional, porque todos nós nascemos nela. É a primeira moral com a qual
entramos em contato. A moralidade que existe em várias culturas e sociedades é,
geralmente, baseada no costume ou na tradição, e é apresentada aos seus membros,
muitas vezes, sem análise crítica ou avaliação durante toda a sua infância e anos
de adultez. Não há nada necessariamente errado ou mau sobre essa abordagem
para a formação da juventude da sociedade e seus membros como um todo.

Muitos costumes e tradições são bastante eficazes e úteis na criação


de sociedades morais. Como sugerido nos parágrafos anteriores, muitos
ensinamentos morais surgiram da necessidade humana, na interação social e
se tornaram costumes e tradições em uma sociedade particular. Por exemplo,
para viver juntos criativamente e em paz, um dos primeiros ensinamentos ou
regras morais tem que ser sobre a vida humana porque, obviamente, se a vida
está constantemente em perigo, então é muito difícil para as pessoas viver e
trabalhar juntos. No entanto, para que os costumes e tradições sejam eficazes e
continuamente aplicáveis ​​aos membros de uma sociedade, devem ser analisados,
testados e avaliados criticamente, e é aí que entra a moralidade reflexiva.

Os filósofos, em geral, exigem de si mesmos e de outros que todas as


crenças, proposições ou ideias humanas sejam examinadas cuidadosamente e
criticamente para assegurar que ela tenha sua base na verdade. A moralidade
não é diferente de qualquer outra área de estudo filosófico a este respeito. Os
filósofos não sugerem que o costume e a tradição sejam eliminados ou expulsos,
mas exortam os seres humanos a usarem a razão para examinar a base e a eficácia
de todos os ensinamentos ou regras morais, por mais tradicionais ou aceitos
que sejam. Em outras palavras, a filosofia exige que os seres humanos reflitam
sobre seus costumes e tradições morais para determinar se devem ser retidos ou
eliminados. O reverenciado filósofo grego Sócrates (470-399 AEC) disse: "A vida
não examinada não vale a pena ser vivida" (PLATÃO, 2008, p. 163). Para a moral,
um corolário poderia ser: "O costume ou tradição não examinados não valem
a pena serem seguidos na vida". Portanto, assim como as pessoas não devem
aceitar declarações ou proposições para as quais não há prova ou argumento
lógico significativo, assim também não devem aceitar costumes ou tradições
morais sem primeiro testá-las contra a prova, a razão e a experiência.

É importante, portanto, que todos os costumes, tradições, sistemas


de ética, regras e teorias éticas sejam cuidadosamente analisados ​​e avaliados
criticamente antes de continuarmos a aceitá-los ou a vivê-los. Novamente, não
devemos rejeitá-los, mas tampouco devemos endossá-los de todo o coração, a
menos que os submetamos a um escrutínio cuidadoso e lógico. Ao longo dos
tópicos restantes deste livro, você será fortemente encorajado a se tornar um
pensador e praticante reflexivo quando estiver lidando com questões morais e da
moralidade.

22
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA MORALIDADE

7 MORALIDADE, LEI E RELIGIÃO


Nesse ponto, é importante que usemos a reflexão para distinguir a
moralidade de outras duas áreas da atividade e da experiência humana com as
quais, muitas vezes, é confundida e das quais, frequentemente, é considerada
uma parte: lei e religião.

7.1 A MORALIDADE E A LEI


A frase "lei injusta" pode servir como ponto de partida para entender que
as leis podem ser imorais. Nós também temos operadores do direito que podem
ser "corruptos", considerados antiéticos dentro de sua própria profissão. Por essa
razão faz-se necessário haver o Tribunal de Ética e Disciplina, no qual operadores
do direito podem julgar e punir outros operadores do direito por terem infringido
o seu Código de Ética. Obviamente, a moralidade e a lei não são, necessariamente,
a mesma coisa quando duas pessoas podem ser advogadas, ambas tendo estudado
em grande parte do mesmo material, e uma é moral, enquanto a outra não. Os
muitos protestos que tivemos ao longo da história contra leis injustas, em que, na
maioria das vezes, os manifestantes estavam preocupados com "o que é moral"
ou com uma "moralidade superior", também parecem indicar que as distinções
devem ser feitas entre lei e moralidade.

Tudo isso significa que não há relação entre lei e moralidade? Uma
resposta "sim" a essa pergunta seria extremamente difícil de sustentar, porque
grande parte de nossa moralidade se tornou encarnada em nossos códigos legais
(COMPARATO, 2006). Tudo o que temos a fazer é rever qualquer um dos nossos
estatutos legais em qualquer nível de governo, e encontramos sanções legais
contra furtar, estuprar, matar e causar maus tratos físicos e mentais aos outros.
Encontraremos muitas outras leis que tentam proteger os indivíduos que vivem
juntos em grupos de danos e fornecer resoluções de conflitos decorrentes de
diferenças – muitas delas estritamente morais – entre os indivíduos que compõem
esses grupos.

Qual é, então, a relação entre lei e moralidade? Note uma diferença


importante quando discutimos as diferenças e distinções entre os Dez
Mandamentos, que são as leis mais antigas da cultura ocidental, cridas por
cristãos e judeus de terem sido transmitidas por Deus. Podemos então, distinguir
entre as leis contra a cobiça e as leis contra assassinato, furto e adultério (veja
a figura a seguir). Não há nenhuma maneira em que uma lei possa regular o
desejo de alguém pelo cônjuge ou os pertences de outro alguém contanto que
o ato adúltero ou o ato do furto nunca forem executados (COMPARATO, 2006).
Portanto, as afirmações sobre a cobiça contidas nos Dez Mandamentos parecem
ser admoestações morais no que diz respeito a como se deve pensar ou manter a
moral interior, enquanto que as declarações contra o furto, assassinato e adultério
são leis, proibições que são, de alguma forma, aplicáveis contra certos atos
humanos.
23
UNIDADE 1 | METAÉTICA

A lei fornece uma série de declarações públicas – um código legal, ou


sistema de normas do que fazer e do que não fazer – para orientar os seres
humanos em seu comportamento e para protegê-los de fazer mal a pessoas e bens.
Algumas leis têm menos importância moral do que outras, mas a relação entre lei
e moralidade não é inteiramente recíproca. O que é moral não é necessariamente
legal e vice-versa (WEIL, 1990). Ou seja, você pode ter leis moralmente injustas,
como mencionado anteriormente. Além disso, certas ações humanas podem ser
consideradas perfeitamente legais, mas, moralmente, questionáveis.

Na verdade, deve ser óbvio, então, que a moralidade não é necessariamente


baseada na lei. Um estudo da história provavelmente, indicaria o oposto – que
a moralidade precede a lei, enquanto a lei sanciona a moralidade (RACHELS;
RACHELS, 2014). Isto é, a lei coloca a moral em um código ou sistema que pode
então ser executado por recompensa ou punição. Talvez quanto maior e mais
complexa a sociedade, maior a necessidade de leis, mas não é inconcebível que
uma sociedade moral possa ser formada sem qualquer sistema jurídico – apenas
alguns princípios básicos de moralidade e um acordo para aderir a esses princípios.
Isto não quer sugerir que a lei deve ser eliminada dos assuntos humanos, mas sim
mostrar que a lei não é um atributo necessário da moralidade.

Pode a lei, entretanto, existir sem a moralidade? Parece que a moralidade


fornece as razões que subjazem quaisquer leis significativas que governam os
seres humanos e suas instituições. Qual seria o sentido de ter leis contra matar
e roubar se não houvesse alguma preocupação de que tais atos fossem imorais?
É difícil pensar em qualquer lei que não tenha por trás alguma preocupação
moral, não importa quão menor ou remota. Podemos dizer, então, que a lei é a
codificação pública da moral que lista para todos os membros de uma sociedade
o que veio a ser aceito como a maneira moral de se comportar naquela sociedade.
A lei também estabelece qual é a maneira moral de agir e sanciona – por sua
codificação e por todo o processo judiciário criado para formar, defender e alterar
partes do código – a moralidade que ela contém. A correção de leis injustas,
no entanto, não é necessariamente mais leis, mas um raciocínio moral válido
realizado pelas pessoas que vivem sob o código.

7.2 MORALIDADE E RELIGIÃO


Pode haver moralidade sem religião? Será que Deus ou deuses existem para
que haja algum sentido real para a moralidade? Se as pessoas não são religiosas,
elas podem ser verdadeiramente morais? E se a crença em Deus é necessária para
ser moral, qual religião é o verdadeiro fundamento da moralidade? Parece haver
tantos conflitos como existem diferentes religiões e pontos de vista religiosos.

A religião é uma das mais antigas instituições humanas. Temos pouca


evidência de que a linguagem existia nos tempos pré-históricos, mas temos
evidências de práticas religiosas, que estavam entrelaçadas com a expressão
artística, e de leis ou tabus exortando os primeiros seres humanos a se comportarem

24
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA MORALIDADE

de determinadas maneiras. Nesses tempos antigos, a moralidade estava inserida


nas tradições, costumes e práticas religiosas da cultura (RACHELS; RACHELS,
2014).

Além disso, a religião serviu (como tem até muito recentemente) como
uma sanção poderosíssima para levar as pessoas a comportar-se moralmente.
Ou seja, se por trás de uma proibição moral contra o assassinato reside o poder
punitivo e recompensador de um ser ou seres sobrenaturais todo-poderosos,
então os líderes de uma cultura têm a maior sanção possível para a moralidade
que querem que seus seguidores abracem. As sanções do castigo e da recompensa
tribal empalidecem ao lado da ideia de uma punição ou recompensa que pode ser
mais destrutiva ou prazerosa do que qualquer outra pessoa poderia administrar.

No entanto, a noção de que a religião pode ter precedido qualquer sistema


jurídico formal ou sistema moral separado na história da humanidade, ou de ter
proporcionado sanções muito poderosas e eficazes para a moralidade, não prova,
de modo algum, que a moral deve necessariamente ter uma base religiosa. Muitas
razões podem ser dadas para demonstrar que a moralidade não precisa, e na
verdade não deve ser baseada unicamente na religião (OLIVEIRA, 1999).

Primeiro, para provar que se deve ser religioso para sermos morais,
teríamos de provar conclusivamente que existe um mundo sobrenatural e que a
moralidade existe lá, assim como no mundo natural. Mesmo que isso pudesse ser
provado, o que é duvidoso, teríamos que mostrar que a moralidade existente no
mundo sobrenatural tem alguma conexão com o que existe no mundo natural.
Parece óbvio, no entanto, que ao lidar com a moralidade, a única base que temos
é este mundo, as pessoas que nele existem e as ações que realizam.

Um teste da verdade dessa afirmação seria tomar qualquer conjunto


de admoestações religiosas e perguntar honestamente: quais delas seriam
absolutamente necessárias para o estabelecimento de qualquer sociedade
moral? Por exemplo, podemos fazer um argumento para qualquer um dos Dez
Mandamentos, exceto os três primeiros (veja a Figura 1). Os três primeiros podem
ser um conjunto de regras necessárias para uma comunidade judaica ou cristã,
mas se uma comunidade não religiosa observasse apenas os mandamentos
quatro a dez, como, moralmente, as duas comunidades difeririam – supondo que
a comunidade religiosa observasse todos os dez mandamentos? Não precisamos
implicar que a moralidade não pode ser fundada na religião. É um fato empírico
óbvio que ela tem sido fundada na religião e, provavelmente, será no futuro.
No entanto, a moralidade não precisa ser fundada na religião, e há o perigo
de estreiteza e intolerância se a religião se torna o único fundamento para a
moralidade.

É um fato conhecido que algumas pessoas religiosas podem ser imorais.


Considere as muitas guerras e outras perseguições realizadas por quase todas as
religiões na história da humanidade. Por outro lado, se pudermos caracterizar,
brevemente, a moral neste mundo como não prejudicar os outros ou assassinar

25
UNIDADE 1 | METAÉTICA

nossos semelhantes e, geralmente, tentar tornar a vida e o mundo melhores para


todos e tudo o que existe e se muitos seres humanos não aceitam a existência de
um mundo sobrenatural e ainda agir moralmente como outros fazem, então deve
haver alguns atributos além da crença religiosa que são necessários para alguém
ser moral. Embora seja óbvio que a maioria das religiões contém sistemas éticos,
não é verdade que todos os sistemas éticos são religiosamente fundamentados
(OLIVEIRA, 1999). Portanto, não há conexão necessária entre moralidade e
religião. O próprio fato de que pessoas completamente não religiosas (por
exemplo, eticistas humanistas) podem desenvolver sistemas éticos significativos
e consistentes é prova disso.

Além disso, fornecer uma base racional para um sistema ético é difícil
o suficiente sem também ter que fornecer uma base racional para a religião
que, supostamente, funda o sistema ético. Mesmo se as religiões pudessem ser
racionalmente fundadas, qual religião deveria ser a base da ética humana? Dentro
de uma determinada religião, essa questão é respondida, mas, obviamente, não
é respondida satisfatoriamente para membros de outras religiões conflitantes
ou para aqueles que não acreditam em nenhuma religião. Outra questão é como
resolvemos os conflitos decorrentes de vários sistemas éticos baseados na religião
sem recorrer a um sistema de moralidade mais amplo – uma base mais ampla
para tomar decisões éticas? Devemos estabelecer uma base para a moralidade
de fora da religião, mas deve ser uma em que a religião está incluída. Este é um
primeiro passo necessário para uma sociedade moral e um mundo moral.

Em resumo, qual é a conexão entre religião e moralidade? A resposta


é que não há conexão necessária. Pode-se ter um sistema ético completo, sem
menção ao sobrenatural. Isso significa que, para sermos morais, devemos evitar a
religião? De modo nenhum. Os seres humanos devem ser autorizados a acreditar
ou descrer, contanto que haja alguma base moral que proteja todas as pessoas do
tratamento imoral nas mãos dos religiosos e não religiosos. Considerando todas
as diferenças que existem entre religiões e entre religiosos e não religiosos, faz
sentido que devemos esforçar-nos ainda mais para criar uma moralidade mais
ampla que permita que essas diferenças e relações religiosas pessoais continuem
e se desenvolvam, ao mesmo tempo que permitam atitudes e ações éticas para
com todos. O que precisamos não é uma ética estritamente religiosa ou uma ética
estritamente humanista, mas sim uma ética que inclui esses dois extremos e o
meio termo também.

8 A TEORIA DO DESENVOLVIMENTO MORAL DE KOHLBERG


Na década de 1970, Lawrence Kohlberg (1927-1987) avançou, o que
muitos consideram ser, a teoria mais importante do desenvolvimento moral no
século XX (KOHLBERG, 1992). Sua tipografia, influenciada pelo trabalho do
psicólogo infantil suíço Jean Piaget (1896-1980), estabelece três níveis distintos
de pensamento moral: o pré-convencional, convencional e pós-convencional
(autônomo ou de princípios). Cada nível é organizado em dois estágios que

26
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA MORALIDADE

são "conjuntos estruturados" ou sistemas organizados de pensamento que dão


consistência racional aos juízos morais. Kohlberg estava preocupado com o
conhecimento crescente dos valores culturais e as implicações desse conhecimento
em apoio à posição da relatividade ética. Embora reconhecesse que os valores e
seu conteúdo específico variam de cultura para cultura, no entanto, ele acreditava
que existe uma sequência de desenvolvimento universal para estruturas de
desenvolvimento moral que se estende por todas as culturas.

8.1 DEFINIÇÃO DE ETAPAS MORAIS


No nível pré-convencional, os termos como bom e mau, certo ou errado
são interpretados em termos de consequências físicas ou hedonistas da ação. No
Estágio 1 – orientação de punição e obediência – as decisões morais são feitas em
resposta à autoridade. Evitação da punição e deferência a uma autoridade, que
tem o poder de produzir consequências físicas em resposta a atos de um agente,
explica o primeiro estágio da tomada de decisão moral. No Estágio 2 – orientação
instrumental/relativista – os indivíduos são pragmáticos, e a tomada de decisão
moral é condicionada, principalmente, pelo interesse próprio. De acordo com
Kohlberg (1978, p. 305), “a ação correta consiste naquilo que, instrumentalmente,
satisfaz as necessidades de alguém e, ocasionalmente, as necessidades dos outros".

O nível convencional da teoria de Kohlberg (1992) é semelhante à


moralidade costumeira ou tradicional como discutido anteriormente neste
tópico. Esse nível de moralidade é irreflexivo e consiste em manter ou conformar-
se às expectativas dos outros, da família, do grupo ou da sociedade. Em situações
de negócios, o nível convencional de Kohlberg envolveria a conformidade com
a cultura corporativa e o cumprimento das políticas de ética da empresa. No
Estágio 3 – orientação de concordância interpessoal ou orientação "Bom Garoto
– Boa Garota" – os indivíduos são agradadores de pessoas. A conformidade
com o grupo, vivendo de acordo com as expectativas dos outros, e ganhando
a aprovação dos outros por ser "agradável" caracteriza as pessoas no terceiro
estágio do desenvolvimento moral. Já no Estágio 4 – orientação de "Lei e Ordem"
– as pessoas estão preocupadas em manter a ordem social por si mesmas ou como
um fim em si mesmas. Um indivíduo do quarto estágio, por exemplo, obedece
à lei porque é a lei. O comportamento correto neste nível é caracterizado por
cumprir o dever de cada um e demonstrar respeito pela autoridade.

O terceiro nível, pós-convencional (autônomo ou de princípio) requer


moralidade reflexiva e a capacidade de envolver, efetivamente, o raciocínio ético,
independentemente da identificação e autoridade do grupo (KOHLBERG, 1992).
No Estágio 5 – a orientação do contrato social – os indivíduos compreendem que
existem fins além da lei e que as leis são criadas para trazer esses fins. Além disso,
no quinto estágio, aqueles que tomam a decisão entendem como as leis são feitas
e que as leis podem ser alteradas por boas razões. Ou seja, neste estágio, vemos
as leis como um "contrato social" baseado em considerações válidas destinadas
a trazer fins socialmente bons. Já para o indivíduo no Estágio 6 – orientação de

27
UNIDADE 1 | METAÉTICA

princípio ético universal – o certo é definido pela decisão de consciência de acordo


com os princípios éticos escolhidos por si mesmos, apelando à integralidade
lógica, universalidade e consistência. Esses princípios são abstratos e éticos (por
exemplo, a Regra de Ouro, o imperativo categórico), mas não são regras concretas,
como os Dez Mandamentos.

Em outras palavras, os indivíduos do estágio seis possuem um grande


estoque de conceitos éticos e entendem os princípios operacionais por trás das
regras morais, da lei e da norma ética. Além disso, as pessoas neste estágio do
desenvolvimento moral podem pensar claramente e bem sobre dilemas morais
usando conceitos como justiça, reciprocidade, igualdade e respeito pela dignidade
humana e, assim, são capazes de chegar de forma, independente, a julgamentos
morais sólidos.

Kohlberg (1992, 1978) tentou identificar estruturas cognitivas inatas que


são universais para todos os seres humanos. Tais estruturas explicam tanto o
desenvolvimento moral como a base para a tomada de decisão moral em vários
estágios. Sua teoria nos ajuda a entender "por que" certas decisões são tomadas
e como estágios anteriores são integrados em uma ordem superior de raciocínio
moral. De acordo com a teoria de Kohlberg, tende-se a passar para o próximo
nível mais elevado de desenvolvimento moral, a fim de resolver o conflito que
surge dentro do próprio ponto de vista do indivíduo. Em suma, sua teoria fornece
uma ferramenta adicional para analisar o nível de raciocínio moral.

9 POR QUE OS SERES HUMANOS DEVEM SER MORAIS?


Antes de discutirmos mais detalhadamente os sistemas éticos ou morais,
há uma última questão que deve ser tratada neste tópico: "Por que os seres
humanos devem ser morais?". Outra maneira de colocar o problema é a seguinte:
existe algum fundamento claro para a moralidade – pode-se encontrar alguma
razão para que os seres humanos sejam bons e pratiquem atos corretos em vez de
serem maus e praticarem atos errados? A pergunta acima não deve ser confundida
com a pergunta "por que eu ou qualquer indivíduo deveria ser moral?”, como Kai
Nielsen (1989) diz em seu brilhante ensaio "Por que devo ser moral?", estas são
duas questões diferentes. A segunda é muito difícil de responder com qualquer
evidência clara, conclusiva ou lógica, mas a primeira não é.

Se examinarmos a natureza humana da maneira mais empírica e racional


possível, descobriremos que todos os seres humanos têm muitas necessidades,
desejos, metas e objetivos em comum. Por exemplo, as pessoas, geralmente,
parecem precisar de amizade, amor, felicidade, liberdade, paz, criatividade e
estabilidade em suas vidas, não apenas para si, mas também para os outros. Não
é necessário um exame muito mais profundo para descobrir que, para satisfazer
essas necessidades, as pessoas devem estabelecer e seguir princípios morais que
os encorajem a cooperar uns com os outros e que os libertem do medo de perder
a vida, serem mutilados, roubados, enganados, severamente restringidos ou

28
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA MORALIDADE

presos.

A moralidade existe, em parte, por causa das necessidades humanas


e pelo reconhecimento da importância de viver juntos de forma cooperativa
e significativa. Pode não ser o caso que todos os seres humanos podem ser
convencidos de que eles devem ser morais, ou mesmo que será sempre no interesse
individual de cada indivíduo ser moral. No entanto, a pergunta "por que os seres
humanos devem ser morais?", geralmente, pode ser melhor respondida pela
declaração de que aderir aos princípios morais permite que os seres humanos
vivam suas vidas de forma pacífica, feliz, criativa e significativa como é possível.

Tem havido um aumento acentuado no ensino de ética, tanto em


instituições de ensino quanto em empresas e outras organizações. Assim como
cursos foram estabelecidos em escolas médicas e houve um aumento do interesse
na bioética e outros comitês de ética em hospitais e empresas diversas. Poder-
se-ia perguntar: "Isso significa que estamos a tornar-nos mais éticos, ou que
seremos, à medida que estas éticas começarem a filtrar-se para a população em
geral?". Certamente é admirável que muitos estejam interessados ​​nos valores e na
melhoria da vida ética, mas quão superficial é essa preocupação?

De qualquer modo, independentemente de quão popular, superficial ou


não, a ética pode se tornar, certamente deve ser o aspecto mais importante da sua
vida. Afinal, o que poderia ser mais importante do que aprender a viver mais
eticamente e melhorar a qualidade de sua vida e as vidas dos outros ao seu redor?
Como disse Albert Einstein (apud MARTINELLI, 1999, p. 51):

a mais importante busca humana é esforçar-se pela moralidade


em nossa ação. Nosso equilíbrio interno, inclusive da existência,
depende disso. Somente a moralidade em nossas ações pode dar
beleza e dignidade à vida. Fazer disso uma força viva e trazê-la para a
consciência é talvez a tarefa principal da educação.

Esperamos que, quando você terminar este livro e outros assim, você
tenha uma base muito melhor em ética do que a maioria daqueles que falam,
superficialmente, sobre os valores, talvez sem saber do que eles estejam falando.

10 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Neste tópico discutimos muito sobre o que a moralidade ou ética não
é, mas ainda não apresentamos detalhadamente o que ela é. Aqui está uma
definição de moralidade: A moralidade lida, basicamente, com os seres humanos
e como eles se relacionam com outros seres, tanto humanos como não-humanos.
Lida com questões de como os seres humanos tratam os outros seres de modo a
promover bem-estar, crescimento, criatividade e significado mútuos à medida
que se esforçam pelo que é bom sobre o que é mau, pelo o que é certo sobre o que
é errado.

29
UNIDADE 1 | METAÉTICA

Nos próximos dois tópicos, examinaremos questões centrais do campo


que chamamos de metaética. Aprofundaremos o que iniciamos neste tópico,
discutindo sobre a natureza da moralidade, e avançaremos para questões sobre a
liberdade, a responsabilidade, o relativismo, o realismo e suas alternativas, neste
vasto campo de investigação da Ética e da Filosofia Moral contemporânea.

NOTA

POR QUE SER MORAL?


Platão (2001) conta a história de Gyges, um pastor que encontra um anel mágico. Quando Gyges
gira o anel 180°, ele se torna invisível, e ao girar o anel novamente, ele reaparece. Sob o manto
da invisibilidade ele executa uma série de atos antiéticos e imorais, incluindo o assassinato. Ele
é um vilão, todavia, torna-se rico e famoso. Gyges não só acumula benefícios ao parecer ser
moral, mas também goza da recompensa colhida da maldade sem consequências punitivas,
pois ele nunca será pego.
Agora, imagine um segundo anel mágico dado a um indivíduo justo e reto. A tentação de se
envolver em transgressões para ganho pessoal será muito grande? Sabendo que não haverá
consequências punitivas, uma boa pessoa se transformaria rapidamente em um vilão? Dada a
situação que acabamos de descrever, por que alguém seria moral? Discuta. O que você faria se
a você fosse dado um anel de Gyges? Por que seria moral?

30
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• Moral e ético (e imoral e antiético) são intercambiáveis ​​na linguagem ordinária.


Moral significa o que é bom ou certo. Imoral significa o que é mau ou errado.

• Características de "bom, mau, certo, errado". "Bom" ou "certo" deve envolver


prazer, felicidade e excelência e levar a harmonia e criatividade. "Mau" ou
"errado" envolverá dor, infelicidade e falta de excelência e levará à desarmonia
e falta de criatividade.

• Os termos bom e mau devem ser definidos no contexto da experiência humana


e relações humanas.

• Amoral significa não ter sentido moral ou ser indiferente ao certo e ao errado.

• Não moral significa fora do reino da moral completamente.

• A abordagem científica ou descritiva é usada nas ciências sociais e está


preocupada com a forma como os seres humanos, de fato, comportam-se. Por
exemplo: Os seres humanos, muitas vezes, agem em seu próprio interesse.

• A abordagem filosófica é dividida em duas categorias. A normativa, ou


prescritiva, está preocupada com o que deveria ser ou o que as pessoas
deveriam fazer. Por exemplo: Os seres humanos devem agir em seu interesse
próprio. Uma segunda categoria diz respeito aos juízos de valor. Por exemplo:
"Barbara é uma pessoa moralmente boa".

• A metaética, ou ética analítica, é analítica de duas maneiras. Analisa a


linguagem ética. Analisa os fundamentos racionais dos sistemas éticos ou da
lógica e raciocínio de vários eticistas.

• No decurso da determinação da moralidade, algumas distinções devem ser


feitas. Existe uma diferença entre ética e estética. Ética é o estudo da moralidade,
ou do que é bom, mau, certo ou errado em um sentido moral. A estética é o
estudo da arte e da beleza, ou do que é bom, mau, certo ou errado na arte e o
que constitui o belo em nossas vidas.

• Os termos bom, mau, certo e errado também podem ser usados ​​em um sentido
não moral, geralmente, em referência a como alguém ou algo funciona.

• As boas maneiras, ou a etiqueta, difere da moral mesmo que as duas estejam


relacionadas, na medida em que boas maneiras se referem a certos tipos
de comportamento social lidando com o gosto, enquanto a moralidade se

31
preocupa com o comportamento ético.

• Há quatro aspectos principais relacionados à aplicação da moralidade. A


moralidade religiosa preocupa-se com os seres humanos em relação a um ser
ou seres sobrenaturais. A moralidade e a natureza se preocupam com os seres
humanos em relação à natureza. A moralidade individual preocupa-se com os
seres humanos em relação a si mesmos. A moralidade social preocupa-se com
os seres humanos em relação a outros seres humanos, esta é a categoria mais
importante de todas.

• Existe evidência para nos ajudar a determinar quem é moralmente ou eticamente


responsável. A experimentação com a comunicação com certos animais revela
que, no futuro, os animais poderiam, concebivelmente, ser ensinados a serem
morais. Experimentações recentes demonstram aspectos de comportamento
moral em outros animais.

• Atualmente, os seres humanos e apenas os seres humanos podem ser


considerados morais ou imorais e, portanto, apenas eles devem ser considerados
moralmente responsáveis.

• Há três maneiras de ver os valores como totalmente objetivos. Algumas pessoas


acreditam que os valores se originam com um ser ou seres sobrenaturais ou
um princípio. Alguns acreditam que os valores são incorporados na própria
natureza – isto é, que existem valores morais nas leis na natureza. Alguns
acreditam que o mundo e os objetos nele encarnam valores se há ou não há
seres humanos para percebê-los e apreciá-los.

• Alguns sustentam a teoria de que os valores são totalmente subjetivos: que a


moralidade e os valores residem, estritamente, dentro dos seres humanos e
que não há valores ou moralidade fora deles.

• É possível criticar a posição de que os valores são objetivos. É difícil provar,


conclusivamente, a existência de qualquer ser, ou seres, sobrenatural ou
princípio ou provar que os valores existem em qualquer outro lugar que não
no mundo natural.

• Há uma diferença entre "leis naturais", que são descritivas, e "leis morais e
sociais", que são prescritivas. E não há provas conclusivas de que existem "leis
morais naturais".

• É possível criticar a posição de que os valores são subjetivos. Porque os aspectos


do mundo e da natureza podem ser valorizados se os seres humanos existem
ou não, os valores não pareceriam ser totalmente subjetivos.

• Os valores são subjetivos e objetivos. Eles são determinados por três variáveis.
A primeira variável é a coisa de valor, ou a coisa valorizada. A segunda é um
ser consciente que valoriza, ou o avaliador. A terceira é o contexto ou situação

32
em que a valorização ocorre.

• Considerando a crença de que os valores são subjetivos e objetivos, é possível


construir uma teoria sobre a origem da moralidade. Provém de uma interação
complexa entre seres humanos conscientes e coisas materiais, mentais ou
emocionais em contextos específicos. Ela decorre de necessidades e desejos
humanos e é baseada em emoções e razão humanas.

• A moralidade costumeira ou tradicional baseia-se no costume ou na tradição e


é frequentemente aceita.

• A moral reflexiva é o exame cuidadoso e a avaliação crítica de todas as questões


morais, quer se baseiem ou não na religião, no costume ou na tradição.

• A moralidade não é, necessariamente, baseada na lei. A moralidade fornece as


razões básicas para quaisquer leis significativas. A lei é uma expressão pública
de uma sanção para a moralidade social.

• A moralidade não precisa, e de fato não deve ser baseada, unicamente, na


religião pelas seguintes razões. É difícil provar, conclusivamente, a existência
de um ser sobrenatural. As pessoas religiosas podem ser imorais. As pessoas
não religiosas também podem ser morais. É difícil fornecer um fundamento
racional para a religião, o que torna difícil fornecer tal fundamento para a
moralidade. Se a religião fosse o fundamento da moralidade, qual religião
fundamentaria e quem iria decidir?

• Existe uma dificuldade em resolver os conflitos decorrentes de vários sistemas


éticos religiosamente baseados sem sair deles.

• Parece ser necessário uma ética que não seja nem estritamente religiosa, nem
estritamente humanista, mas que inclua esses dois extremos e o meio-termo
também.

• A teoria de desenvolvimento moral de Kohlberg estabelece três níveis distintos


de pensamento moral, e cada nível é organizado em dois estágios que são
"conjuntos estruturados" ou sistemas organizados de pensamento que dão
consistência racional aos juízos morais.

• Nível pré-convencional: aqui termos como bons e maus, e certos e errados


são interpretados em termos de consequências físicas ou hedonistas da
ação. Estágios: 1 - A Orientação de Punição e Obediência; 2 - A Orientação
Instrumental/Relativista.

• Nível convencional: este nível da moralidade é, geralmente, irrefletido e


costumeiro. Consiste em manter ou conformar-se às expectativas dos outros
ou às regras da sociedade. Estágios: 3 - A Concordância Interpessoal ou
Orientação "Boa Garoto-Boa Garota"; 4 - A orientação "Lei e Ordem".

33
• Nível pós-convencional, autônomo ou de princípios: Esse nível de
desenvolvimento moral requer moralidade reflexiva e capacidade de envolver
o raciocínio ético, independentemente da identificação e autoridade do grupo.
Estágios: 5 - A Orientação do Contrato Social; 6 - A Orientação Princípio-Ético-
Universal.

• A importância de determinar porque os seres humanos devem ser morais. A


questão não é "porque um indivíduo deve ser moral?", mas sim "por que os
seres humanos em geral devem ser morais?".

• Foram postuladas várias razões para ser moral. É nossa conclusão que a
moralidade ocorreu por causa das necessidades humanas comuns e pelo
reconhecimento da importância de viver juntos de forma cooperativa e
significativa, a fim de alcançar a maior quantidade possível de amizade, amor,
felicidade, liberdade, paz, criatividade e estabilidade na vida de todos os seres
humanos.

• Uma definição operacional da moralidade. A moral ou a ética tratam,


basicamente, das relações humanas – como os seres humanos tratam os outros
seres de modo a promover o bem-estar, o crescimento, a criatividade e o
significado mútuos à medida que se esforçam pelo bom sobre o mau e o certo
sobre o errado.

34
AUTOATIVIDADE

1 Por que o aspecto social da moralidade é considerado o aspecto mais


importante?

2 O que é a metaética e como ela difere da ética normativa e da ética descritiva?

35
36
UNIDADE 1
TÓPICO 2

LIBERDADE, RESPONSABILIDADE E RELATIVISMO MORAL

1 INTRODUÇÃO
Comumente, consideramo-nos uns aos outros como agentes moralmente
responsáveis. Às vezes, culpamos alguém por fazer algo que ele não deveria ter
feito, ou elogiamos alguém por um comportamento exemplar. Geralmente se
pensa que somos responsáveis ​​por tais coisas somente se as fizermos livremente
(ou coisas que resultarem nelas). Duas questões filosóficas fundamentais que
surgem aqui são: qual é a natureza da responsabilidade moral, e que tipo de
liberdade ela requer? Somente com respostas a estas perguntas podemos decidir
se somos de fato moralmente responsáveis.

Antes de nos voltarmos para essas questões, vamos concentrar nosso foco
em distinguir o tópico aqui de algumas coisas relacionadas às quais podemos
falar usando as palavras “responsabilidade” ou “responsável”. Por exemplo,
podemos dizer que é responsabilidade da Suelen alimentar o gato, ou que ela é
responsável por ver se o gato foi alimentado. Neste caso, estaríamos dizendo que
a Suelen tem certa obrigação ou dever, talvez uma que ela adquiriu prometendo
cuidar do gato. Este tipo de responsabilidade é, frequentemente, chamado de
responsabilidade prospectiva. Se a Suelen é alguém que leva suas obrigações a
sério e, geralmente as realiza, podemos dizer que ela é uma pessoa responsável.

Mas agora suponha que, embora a Suelen, geralmente, faça o que ela deve
fazer, e embora ela tenha uma obrigação, neste caso, de alimentar o gato, ela de
fato não o faz. Podemos então culpá-la pelo gato passar fome. Ao atribuir culpa,
estaríamos achando a Suelen responsável no sentido em questão neste tópico.
Se a Suelen é alguém que pode ser responsável nesse sentido, então ela é, nesse
sentido, uma agente responsável. Esse tipo de responsabilidade é frequentemente
chamado de responsabilidade retrospectiva.

A responsabilidade retrospectiva pode ser moral ou legal. Alguém pode


ser moralmente responsável por algo para o qual, dadas as leis e instituições
legais existentes, ele não é legalmente responsável. A ofensa cometida pode
não ser suficientemente importante para ser considerada pela lei, e nenhuma
responsabilidade legal é atribuída a boas ações habituais. Todavia, alguém pode
ainda ser, moralmente, louvável por auxiliar o vizinho com algum trabalho no
quintal da sua casa.

Então, a responsabilidade moral retrospectiva é o nosso tópico. O que


exatamente é ser responsável por algo nesse sentido?
37
UNIDADE 1 | METAÉTICA

2 A NATUREZA DA RESPONSABILIDADE MORAL


Os filósofos ofereceram várias concepções diferentes de responsabilidade
moral. Uma noção central diz que responsabilidade é atributabilidade: você é,
moralmente, responsável por alguma coisa apenas no caso de ser atributável a
você como base para sua avaliação moral (SCANLON, 1998; WATSON, 2004). O
juízo apropriado pode ser positivo (você agiu heroicamente), negativo (você foi
imprudente) ou neutro, dependendo do caráter do que você fez. Os escritores
que sustentam essa concepção, às vezes, sustentam que nossa responsabilidade
pode ir além de nossas ações, até nossos pensamentos, sentimentos e até mesmo
a falha em pensar nas coisas (ADAMS, 1985; SCANLON, 1998; SMITH, 2005).
Desse ponto de vista, uma pessoa pode ser culpável por sentir inveja, ter uma
crença racista ou esquecer o aniversário de um amigo, independentemente, de
essas coisas serem resultantes ou influenciáveis ​​por suas ações, pois elas podem,
de qualquer modo, revelar falhas morais.

Uma concepção um pouco semelhante é a da avaliabilidade: quando alguém


é, moralmente, responsável por alguma coisa, há uma marca – positiva, negativa
ou neutra – no livro-razão moral de alguém (ZIMMERMAN, 1988). Ser culpável
por alguma coisa é que haja um débito ou falta no registro moral de alguém para
aquela coisa; ser louvável é que haja crédito ou brilho no registro moral. Essa
visão difere da primeira ao sustentar que, da variedade de avaliações morais dos
agentes, apenas uma faixa estreita são atribuições de responsabilidade moral. Por
exemplo, nesta concepção, alguém pode ser repreensível por ter maus desejos ou
traços de caráter, ou admirável por ter bons desejos ou traços de caráter, sem ser
culpável ou louvável – e, portanto, sem ser responsável – por essas coisas.

Alguns escritores compreendem a atributabilidade como incluindo a


responsividade: quando alguém é moralmente responsável por alguma coisa, é
também responsável por essa coisa (SCANLON, 1998). Sob esse ponto de vista, a
crítica moral de um indivíduo exige que essa pessoa justifique seu comportamento
e, se não for justificável, reconheça o delito.

Quando abordamos essa demanda para alguém, estamos responsabilizando


essa pessoa. Podemos censurá-la por ter agido errado, e podemos expressar
indignação ou insistir em um pedido de desculpas. Às vezes, impomos sanções a
um malfeitor, dando-lhe o ombro frio ou recusando algum favor. No caso de uma
ação louvável, podemos expressar gratidão ou oferecer um sinal de agradecimento
ou uma recompensa ao agente meritório.

Uma concepção de responsabilidade como “responsabilização”


ou “prestação de contas” (do termo em inglês accountability) vincula-se à
adequabilidade das respostas desses tipos (SCANLON, 1998; WATSON, 2004;
ZIMMERMAN, 1988). Nessa visão, a responsabilidade de alguém por algo
pode permitir ou exigir que outras pessoas administrem sanções ou ofereçam
recompensas (dependendo do que foi feito). Pode-se dizer que alguém que é
culpado não tem motivos para reclamar sobre ser tratado com dureza, ou que é

38
TÓPICO 2 | LIBERDADE, RESPONSABILIDADE E RELATIVISMO MORAL

justo que ele seja punido, ou que ele mereça sofrer.

Muitas vezes, quando consideramos alguém responsável por alguma


coisa, temos algum tipo de atitude carregada de emoção em relação a essa pessoa.
Podemos ficar ressentidos se ele nos ofendeu, ou indignado se injustamente
prejudicou os outros. Podemos ficar gratos a alguém que foi, especialmente,
gentil conosco. Alguém pode se sentir culpado por seus próprios erros. Essas
emoções são, frequentemente, chamadas de atitudes reativas. Uma concepção
amplamente aceita de responsabilidade moral diz que ser responsável é ser um
alvo apropriado das atitudes reativas (FISCHER; RAVIZZA, 1998; STRAWSON; 2003;
WALLACE, 1994). Alguns proponentes dessa visão interpretam algumas dessas
atitudes, como a indignação ou a gratidão, como inerentemente retributivas,
trazendo com elas o pensamento de que a pessoa em questão merece alguma
sanção ou recompensa (STRAWSON, 2003). Mas outros proponentes, que
associam a responsabilidade proximamente com atitudes reativas, negam que
essas atitudes tenham um elemento retributivo (SCANLON, 1998).

Quais dessas concepções de responsabilidade moral estão corretas?


Talvez várias delas estejam; talvez existam diferentes tipos de responsabilidade
moral, como sustentam alguns escritores (SCANLON, 1998; WATSON, 2004;
ZIMMERMAN, 1988). De qualquer forma, quando nos deparamos com
argumentos sobre que tipo de liberdade é necessária para a responsabilidade, é
útil notar o que os autores em questão assumem que seja a responsabilidade.

3 A QUESTÃO DA COMPATIBILIDADE
Se eu sou responsável por algo que fiz, então, isso é geralmente aceito,
devo ter exercido certo tipo de liberdade ao realizar essa ação, ou ao fazer algo que
me levou a realizar essa ação. Uma questão fundamental sobre responsabilidade
é se a liberdade exigida é algo que poderíamos exercer mesmo se o determinismo
for verdadeiro, ou se, ao contrário, seu exercício requer indeterminismo.

O determinismo é a tese de que, dadas as leis da natureza, o modo como


o mundo está em determinado ponto no tempo determina completamente todos
os aspectos de como o mundo está em qualquer momento posterior no tempo.
Por exemplo, um aspecto de como o mundo está agora é que você está lendo este
tópico no Livro de Ética. Se o determinismo é verdadeiro, então, dadas as leis da
natureza, a forma como o mundo esteve em algum ponto no passado distante,
muito antes de existir qualquer ser humano, determinou este fato de você
estar lendo este tópico. Para eliminar a palavra "determina" da nossa definição,
podemos afirmar a tese da seguinte forma: uma declaração completa das leis
da natureza, conjugada com uma descrição completa do estado total do mundo
em qualquer ponto no tempo, implica toda verdade sobre como o mundo é em
qualquer momento posterior no tempo.

39
UNIDADE 1 | METAÉTICA

DICAS

Para enriquecer a sua compreensão sobre o debate do livre-arbítrio diante do


princípio do determinismo, assista à palestra do filósofo e neurocientista Sam Harris, em que
ele defende que o livre-arbítrio é de fato uma ilusão. Vídeo disponível em: <https://www.
youtube.com/watch?v=mRK9Gey-lKk>.

Poderíamos ter o tipo de liberdade necessária para a responsabilidade


moral, mesmo que o determinismo seja verdadeiro? A posição que não
podemos é conhecida como incompatibilismo; a visão que podemos é chamada
compatibilismo.

Uma linha de argumentação historicamente proeminente para o


incompatibilismo sustenta que alguém faz algo com a liberdade requerida apenas
se for capaz de fazer o contrário ou de algum modo diferente. Argumenta-se então
que, se o determinismo é verdadeiro, ninguém jamais poderá fazer o contrário
ou de algum modo diferente. A conclusão é que a verdade do determinismo
impediria que sejamos moralmente responsáveis. Por exemplo, de acordo com
essa linha de argumentação, se o determinismo é verdadeiro, e se eu contasse uma
mentira em certa ocasião, então eu não poderia ter feito outra coisa senão dizer
uma mentira; e não posso ser responsável por contar a mentira se não pudesse ter
feito o contrário.

O determinismo realmente impediria que pudéssemos fazer algo diferente


do que de fato fazemos? Um dos argumentos mais fortes para uma resposta
afirmativa a essa questão é o argumento da consequência. Ele observa que, se o
determinismo é verdadeiro, nossas ações atuais são consequências do passado
e das leis da natureza. Não depende de nós quais são as leis da natureza, nem
depende de nós agora o que aconteceu no passado. Portanto, as consequências
dessas coisas não dependem de nós. E se nossas ações não dependem de nós,
então quando as executamos, não somos capazes de fazer o contrário (VAN
INWAGEN, 1983).

DICAS

Para esclarecer melhor sobre os problemas do Livre-Arbítrio, assista à entrevista


realizada pelo projeto No Jardim da Filosofia com o filósofo Peter van Inwagen, que está
disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=YxGi0yilxF4>. Também assista à
explicação oferecida pelo filósofo Cláudio F. Costa do Argumento da Consequência. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=E3PZNDR9mgE>.

40
TÓPICO 2 | LIBERDADE, RESPONSABILIDADE E RELATIVISMO MORAL

O argumento da consequência é fortemente contestado (FISCHER, 1994;


KAPITAN 2002). Todavia muitos defensores do compatibilismo tentam evitá-lo.
A questão do argumento da consequência é se, sendo o determinismo verdadeiro,
poderíamos ainda ser capazes de fazer algo diferente do que de fato fazemos.
Mas será que a responsabilidade moral por ter feito certa coisa exige que alguém
seja capaz de fazer o contrário?

A tese de que há sim esta exigência é conhecida como o princípio das


possibilidades alternativas, ou PPA. Embora o PPA possa parecer óbvio, vários
filósofos o rejeitam. Se esse princípio é falso, então, seja qual for a liberdade
requerida para a responsabilidade, não inclui a capacidade de fazer o contrário.
E se é assim, então, mesmo que o determinismo impeça a capacidade de fazer o
contrário, isso não impede que sejamos moralmente responsáveis.

Um desafio para o PPA concentra-se em casos de sobredeterminação


preemptiva, casos em que um agente faz algo por conta própria, sem ser forçado
a fazê-lo, mas em circunstâncias, em que alguma condição assegurada faria o
agente realizar exatamente isso, se ele não o fizesse por conta própria. É estipulado
que o agente não tem consciência da condição assegurada e que essa condição
não influencia de fato o que acontece. Parece, então, que o agente poderia ser
responsável pelo que faz. Mas dadas as circunstâncias, ele não poderia ter feito o
contrário (FRANKFURT, 2003, 2010).

Suponha, por exemplo, que o Alberto considere se ele rouba uma maçã,
decide fazê-lo e rouba uma maçã. Suponha que, sem o conhecimento de Alberto,
a Elizabete estivesse monitorando suas deliberações (ela tem os meios para isso),
e se ele tivesse pensado seriamente em refrear-se e não roubar a maçã, a Elizabete
teria detectado esse fato, ela teria intervindo, e ela teria se assegurado de que o
Alberto decidisse roubar a maçã e executasse essa decisão. O Alberto não pensou
seriamente em refrear-se de roubar a maçã, e a Elizabete não interveio; ela não
precisou. O Alberto fez o que a Elizabete queria que ele fizesse, mas ele fez isso
totalmente por conta própria. Parece que, se alguém pode ser responsável por
qualquer coisa, Alberto pode ser responsável por roubar a maçã. Todavia, também
parece que, dada a prontidão de Elizabete em intervir, Alberto não poderia ter
feito outra coisa senão roubar a maçã. Tais situações são comumente chamadas
de cenários de Frankfurt, por causa do autor que as introduziu na literatura sobre
responsabilidade.

Se tal cenário realmente enfraquece o PPA, é um assunto controverso


(WIDERKER; MCKENNA, 2003). No entanto, suponha que o PPA seja falso – a
responsabilidade não exige a capacidade de fazer o contrário. Isso mostra que a
responsabilidade é compatível com o determinismo?

Vários escritores defendem o incompatibilismo sem apelar para o PPA.


Ser, moralmente, responsável por alguma coisa. Eles sustentam que isso requer
que alguém seja uma fonte dessa coisa de uma forma que é descartado se o
determinismo for verdadeiro. Não se pode ser uma fonte assim, afirma-se, se a

41
UNIDADE 1 | METAÉTICA

ação é determinada por algo sobre o qual não se tem controle (PEREBOOM, 2001;
STUMP, 1996; ZAGZEBSKI, 2000). Mas por que pensar que a responsabilidade
requer esse tipo de fonte de origem?

Os incompatibilistas da origem (como são chamados esses escritores),


às vezes, apelam para um argumento do desígnio em resposta a essa questão.
Suponhamos que, há cerca de trinta anos, uma agente muito engenhosa, Gaia,
quisesse uma certa sequência muito específica de ações realizadas trinta anos
depois. Gaia tinha, à sua disposição, os materiais necessários para criar um grande
número de diferentes zigotos humanos em placas de Petri. Ela tinha o poder de
assegurar que qualquer um que ela criasse desenvolver-se-ia de uma maneira
determinista, e que sua vida desdobrar-se-ia inteiramente deterministicamente,
e Gaia poderia prever exatamente como cada vida desdobrar-se-ia. Ela escolheu
certos materiais e combinou-os precisamente porque sabia que o indivíduo
resultante, e somente aquele, faria os feitos trinta anos depois exatamente como
ela queria que fossem realizados. Seu produto é o Roberto. Suas ações são todas
determinadas exatamente da maneira que Gaia previu, embora, em todos os
outros aspectos, ele seja como nós. Hoje, Roberto faz exatamente as coisas que
Gaia o criou para fazer. O que devemos dizer da responsabilidade moral de
Roberto por essas ações?

Os incompatibilistas da origem pensam que devemos negar que o Roberto


seja responsável pelo que faz. Além disso, eles argumentam, se o determinismo
é verdadeiro, não há diferença, no que diz respeito à responsabilidade, entre
Roberto e o resto de nós. Podemos conceder a hipótese de que nós não somos
criados por Gaia. No entanto, os incompatibilistas da origem afirmariam que se
somos produtos de tal ser ou não, não é algo sobre o qual nossa responsabilidade
possa depender. Se nossas vidas se desdobram de forma tão determinista quanto
a de Roberto, então, mesmo que não sejamos criados da mesma maneira que ele,
não somos mais responsáveis ​​do que o Robert é (MELE, 2006; PEREBOOM, 2001).

Uma premissa-chave do argumento é a negação de que Roberto é


responsável pelo que faz. Seria ultrajante rejeitar essa afirmação e sustentar
que Roberto pode de fato ser responsável por seus atos? A plausibilidade
dessa resposta depende do que é responsabilidade. Suponha que seja apenas
atributabilidade. Roberto realiza suas ações (Gaia não – ela pode não estar mais
por perto), e podemos fazer várias avaliações morais de Roberto com base em seu
comportamento, por exemplo, que ele é atencioso, ignorante ou cruel. Por outro
lado, pode ser menos claro que Roberto seja culpável ou louvável por suas ações;
pode parecer inadequado responder com indignação para com ele; e talvez não
achemos credível que Robert mereça sofrer pelos seus erros ou que a justiça exija
que ele sofra de algo modo.

Se existem diferentes tipos de responsabilidade moral, então talvez


devamos dizer que Roberto poderia ter alguns deles, mas não outros.
Então, poderíamos dizer, o determinismo é compatível com alguns tipos de
responsabilidade, mas não com os outros.

42
TÓPICO 2 | LIBERDADE, RESPONSABILIDADE E RELATIVISMO MORAL

3.1 EXPLICAÇÕES COMPATIBILISTAS


Se a responsabilidade é compatível com o determinismo, então o
determinismo é compatível com o exercício da liberdade requerida para a
responsabilidade. Que explicação pode ser dada dessa liberdade? É isso que uma
teoria compatibilista da responsabilidade moral deve nos dizer.

A liberdade requerida pode ser caracterizada, em parte, negativamente,


como liberdade de certos tipos de condições de subversão da responsabilidade. A
responsabilidade pode ser prejudicada se o comportamento da pessoa resultar de
hipnose, de lavagem cerebral ou (se isso for possível) de uma implantação direta
de pensamentos na mente da pessoa. A responsabilidade pode ser prejudicada
pela compulsão ou dependência de um medicamento (particularmente se não
se é responsável por ter se tornado viciado). A liberdade dessas condições é
compatível com o determinismo; a verdade do determinismo não implicaria que
todos nós estivéssemos o tempo todo hipnotizados, sofrendo lavagem cerebral ou
sofrendo de compulsões ou vícios.

A liberdade requerida também pode receber uma caracterização positiva.


Uma razão pela qual, ao que parece, nós, agentes humanos, somos responsáveis​​
pelo que fazemos, enquanto agentes não humanos, como gatos e chimpanzés,
não são, é que temos certas capacidades racionais que lhes faltam. Podemos,
por exemplo, selecionar certas considerações como razões que favorecem ou
desfavorecem um possível curso de ação. Entre as razões que reconhecemos deste
modo estão as razões morais, considerações que mostram que um ou outro curso
de ação é, em alguns aspectos, moralmente, melhor ou pior. Além disso, podemos
deliberar sobre o que fazer, avaliando as razões, emitindo juízos sobre quais
são mais importantes e decidindo com base em tal deliberação. Nesse processo,
muitas vezes nos conscientizamos de realizar essas deliberações, e podemos
refletir sobre o quão bem estamos fazendo isso, podendo alterar o processo com
base nessa reflexão.

A capacidade de se envolver em tal deliberação reflexiva, e de agir com


base nisso, parece ser necessária para a responsabilidade moral. A posse de tal
capacidade é compatível com o determinismo? Compatibilistas afirmam que um
processo deliberativo desse tipo pode ser um processo determinístico (ARPALY,
2006; DENNETT, 1984). Suponha que, em algumas ocasiões, eu não me envolva
de fato em nenhuma deliberação significativa sobre o que fazer; o pensamento
de fazer uma observação prejudicial me ocorre, e eu faço tal observação. Ou
suponha que eu delibero sobre se devo fazer a observação e faço com base na
minha deliberação. Se o determinismo é verdadeiro, eu poderia ter sido capaz de
deliberar, ou de deliberar de forma diferente, evitando fazer a observação com
base nesse processo?

43
UNIDADE 1 | METAÉTICA

DICAS

Assista à entrevista em vídeo em que Daniel Dennett, filósofo cognitivista e


professor norte-americano, explica seu entendimento sobre o livre-arbítrio. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=QoD1nDR3zFk>. Assim como, sua crítica aqueles
que afirmam que o livre-arbítrio e a responsabilidade moral são ilusões. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=M3vXxEp2T3U>. Ambos os vídeos fazem parte do das
Conferências das Fronteiras do Pensamento em 2010.

Alguns compatibilistas oferecem uma concepção de capacidades racionais


e de capacidades para agir com base no raciocínio prático, sobre o qual, mesmo
que o determinismo seja verdadeiro, podemos, em uma dada ocasião, possuir
capacidades desse tipo que, de fato, não exercemos no momento. A concepção
chama a atenção para disposições, como a fragilidade ou a solubilidade. Considere
a diferença entre um pedaço de açúcar e um pedaço de chumbo. O açúcar é
disposto a dissolver em água, o chumbo não é; em um sentido claro, o açúcar
pode se dissolver na água, enquanto o chumbo não pode. Essa diferença entre
açúcar e chumbo não é eliminada se o determinismo for verdadeiro; permanece
verdadeiro do açúcar que pode dissolver-se na água. E isso continua sendo
verdade para um pedaço particular de açúcar que não está agora na água e não
está se dissolvendo agora.

Agora, tal explicação afirma que as capacidades racionais requeridas para


a responsabilidade moral – aquelas que constituem a liberdade positiva requerida
– são (ou são compostas de) disposições. Assim como o açúcar que agora não
se dissolve pode dissolver-se, mesmo que não se dissolva agora, um agente
humano que faz uma observação prejudicial em alguma ocasião normalmente
tem a capacidade de deliberar e agir de outra forma com base nessa deliberação,
mesmo que seu comportamento real seja determinado. A liberdade positiva
requerida para a responsabilidade, afirmam esses compatibilistas, é compatível
com o determinismo (SMITH, 2003; VIHVELIN, 2004).

Uma teoria compatibilista alternativa concentra-se nos mecanismos (ou


processos) que ocorrem no interior de agentes e que geram seu comportamento
e requer, para haver responsabilidade, que esses mecanismos possuam certa
característica de disposição, uma responsividade a razões. Um processo emitido
na ação em uma determinada ocasião (por exemplo, deliberar sobre o que fazer)
é dito ter a responsividade necessária apenas no caso, com esse tipo de processo
operando, em que o agente exibisse um certo padrão de comportamento em uma
gama de possíveis situações. Suponha, por exemplo, que o roubo do Alberto de
uma maçã tenha sido produzido por um mecanismo do tipo “M”. Considere
todos os cenários possíveis em que um mecanismo do tipo M poderia operar em
Alberto e que houvesse razão suficiente para ele não roubar uma maçã. O que é

44
TÓPICO 2 | LIBERDADE, RESPONSABILIDADE E RELATIVISMO MORAL

necessário é que, entre essas possibilidades, exista um padrão compreensível de


casos em que Alberto reconheceria as razões – incluindo razões morais – para não
roubar uma maçã, e há pelo menos um desses cenários em que ele se absteria de
roubar com base nesse reconhecimento (FISCHER; RAVIZZA, 1998).

Observe que um mecanismo de produção de ações pode possuir a


responsividade requerida, mesmo que, dadas as circunstâncias em que uma ação
é executada, o agente não possa fazer nada além do que ele realmente faz. Por
exemplo, o processo que ocorre no roubo de uma maçã por parte de Alberto pode
ser apropriadamente responsivo a razões mesmo que, com a Elizabete preparada
para intervir, o Alberto não possa se abster de roubar. Como a Elizabete não
influencia de fato o que Alberto faz, ao julgar se o mecanismo que gera seu
comportamento é adequadamente responsivo, incluímos entre os possíveis
cenários a serem considerados, como nas situações em que a Elizabete está
ausente. E pode ser que em muitas dessas situações, se houvesse razão suficiente
para não roubar uma maçã, o Alberto se abstivesse.

Os proponentes dessa abordagem baseada em mecanismos, então, tomam


os cenários de Frankfurt para mostrar que a capacidade de fazer o contrário
não é necessária para responsabilidade. Eles argumentam que, mesmo que o
determinismo impeça a capacidade de fazer o contrário, é compatível com o fato
de termos a liberdade requerida para a responsabilidade.

No entanto, há uma diferença interessante entre os cenários de Frankfurt


e o modo como as coisas são, se o determinismo for verdadeiro. Nos primeiros
casos, nada no processo real pelo qual a ação é produzida impede que o agente seja
capaz de fazer o contrário. É a presença de uma condição assegurada – algo que
na verdade não afeta o que acontece – que elimina a possibilidade. Todavia, se o
argumento da consequência é sólido, então, dado o determinismo, a natureza dos
processos reais pelos quais nosso comportamento é produzido em si impede que
sejamos capazes de fazer o contrário. Nós somos, nesse aspecto, como o Roberto.
Pode-se então descobrir que, mesmo que tenhamos capacidade de agir de outra
forma, e mesmo que os mecanismos que afetam nossas ações sejam responsivos
às razões, não somos moralmente responsáveis ​​pelo que fazemos, pois não somos
em um sentido apropriado as fontes de origem do nosso comportamento. Pode-se
chegar a essa conclusão se alguém acredita que a responsabilidade envolve uma
forte forma de mérito. Ou pode-se conceder que, embora a liberdade caracterizada
por um ou outro desses relatos compatibilistas seja suficiente (no que diz respeito
à liberdade) para algum tipo de responsabilidade moral – atributabilidade,
digamos – não é suficiente para algum outro tipo, como a responsabilização
(accountability).

45
UNIDADE 1 | METAÉTICA

NOTA

Para aprofundar mais o seu conhecimento sobre as explicações compatibilistas,


leia o artigo Compatibilismo, de Robert Kane (2005). Disponível em: <https://criticanarede.
com/met_compatibilismo.html>.

3.2 EXPLICAÇÕES INCOMPATIBILISTAS


Se a responsabilidade moral – ou algum tipo de responsabilidade moral
– não é compatível com o determinismo, será que o indeterminismo de qualquer
espécie a permitiria? Teóricos que pensam que podemos ser responsáveis ​​se, mas
apenas se o indeterminismo for verdadeiro, oferecem explicações incompatibilistas
(ou libertárias) da liberdade requisitada.

Algumas dessas explicações tomam as ações livres como sendo


inteiramente não causadas e sustentam que elas não precisam consistir de uma
coisa que está causando a outra – elas podem não ter estrutura causal interna.
Os proponentes dessas teorias afirmam que temos um poder ativo, e o exercício
desse poder é uma ação livre. Exercícios básicos de poder ativo são simples
eventos não causados, como decisões (GINET 1990; GOETZ 1997; PINK 2004).
Uma decisão livre é explicada por alguma característica dessa decisão em si, e
não por qualquer coisa que a apresente (nada a produz).

Um segundo tipo de teoria incompatibilista indica que a causação não


precisa ser determinista. Um evento pode provocar outro, embora, até que isso se
realize, ainda existe uma chance de que o efeito não ocorra. Leis causais podem
ser probabilísticas; pode haver, por exemplo, uma probabilidade de 0,6 que, dado
um evento de um certo tipo, cause um evento de outro tipo. Os defensores deste
tipo de visão sustentam que as ações livres são causadas, mas não determinadas.
Uma decisão livre pode ser causada (e explicada) não deterministicamente pelo
processo deliberativo que leva a ela (KANE,1996).

Suponha, por exemplo, que uma empresária esteja a caminho de


uma reunião importante quando vê alguém sendo assaltado em um beco. Ela
considera parar e pedir ajuda, percebendo que, se o fizer, provavelmente perderá
sua reunião. Ela vê razões tanto para parar como para continuar no caminho ao
trabalho. Suponha que, até que ela tome sua decisão, permaneça indeterminado
qual decisão ela tomará. Se ela decidir não parar, essa decisão será causada (e
explicada) por seu reconhecimento da importância de chegar à reunião. No
entanto, terá permanecido aberta para ela decidir o contrário (Se ela tivesse, a
decisão de ajudar, teria sido causada e explicada por seu reconhecimento das
razões para parar.) Qualquer que seja a decisão tomada, ela poderá fazer o
contrário (KANE, 1996).

46
TÓPICO 2 | LIBERDADE, RESPONSABILIDADE E RELATIVISMO MORAL

Um terceiro tipo de explicação toma literalmente a ideia de haver uma


fonte de origem do comportamento de alguém. Agimos com a liberdade requerida
para a responsabilidade, sob esse ponto de vista, somente no caso que causemos
nosso comportamento e o fazer assim não é determinado. A causação exigida
por um agente – agente-causação – é dita ser diferente de, digamos, causação
pelo reconhecimento de razões, ou pelo processo deliberativo que leva à ação
de uma pessoa, ou a suas crenças ou desejos. É causação por si mesmo, o agente
que executa a ação. Uma ação pertence a alguém da maneira requerida para a
responsabilidade moral, é realizada, somente se este alguém é desta forma a sua
fonte de origem, a sua causa não causada (O'CONNOR, 2000; CLARKE, 2003;
PEREBOOM, 2001).

Se o indeterminismo de qualquer um desses tipos realmente existe é,


evidentemente, discutível. Independentemente dessa questão, há um poderoso
desafio para cada uma dessas explicações incompatibilistas. Se, até que algum
evento ocorra, ainda houver uma chance de que isso não ocorra, então, em algum
sentido, parece ser uma questão de sorte se esse evento ocorrerá. Se nossas
decisões ou outras ações são indeterminadas, elas também parecem estar sujeitas
a esse tipo de sorte. E na medida em que algo é uma questão de sorte, essa coisa
não está sob o controle de ninguém. Mas como podemos ser responsáveis ​​pelo
que fazemos se não estiver sob nosso controle?

Esse problema talvez seja o mais premente no primeiro tipo de explicação


incompatibilista não causal, mas também incide sobre as outras. Considere a
visão causal do agente. Suponhamos que a agente empresária cause uma decisão
de não parar e, até que ela faça de fato isso, há uma chance de que ela, em vez
disso, cause como agente uma decisão de parar. Existe, então, um mundo possível
com as mesmas leis da natureza, e com o mesmo histórico de pré-decisão, no qual
ela decide parar (e como agente cause essa decisão). Não há diferença entre o
mundo real, em que a agente mulher cause a decisão de não parar, e esse mundo
alternativo, no qual ela como agente cause uma decisão de parar, que possa
explicar a diferença entre ela tomar a primeira alternativa e ela tomar a outra
alternativa. Nada explica essa diferença. É, então, apenas uma questão de sorte.
E se a diferença entre a mulher como agente causar uma decisão de não parar
e como agente causar a decisão de parar é apenas uma questão de sorte, então,
parece que ela não é moralmente responsável pela decisão que ela de fato toma
(MELE, 2006).

Se o argumento da sorte enfraquece esse tipo de explicação incompatibilista


depende se a causação do agente, se isto de fato existir, constitui nosso originar
ou ser as fontes de origem de nossas decisões de uma maneira que seja suficiente
para nossa decisão livre. Se isso ocorre, então a diferença entre o mundo real
e o outro mundo possível é uma questão de como a empresária exerce sua
liberdade. A diferença não é apenas uma questão de sorte. Mas não está claro
como devemos decidir se o agente-causação, da maneira sugerida, constitui o
exercício da liberdade. Responder a essa pergunta parece exigir que saibamos
mais sobre o que o agente-causação deveria ser.

47
UNIDADE 1 | METAÉTICA

4 A RESPONSABILIDADE MORAL É IMPOSSÍVEL?


Alguns autores sustentam que algum tipo possível de indeterminismo
(por exemplo, um incluindo agente-causação), se existisse, permitiria a
responsabilidade, mas que temos boas evidências de que o indeterminismo
requerido não existe e, portanto, que não somos agentes responsáveis moralmente
(PEREBOOM, 2001). Outros sustentam que a responsabilidade é impossível, se o
determinismo é verdadeiro ou não.

Um argumento para esta última visão observa que as ações pelas quais
somos responsáveis ​​são (pelo menos tipicamente) coisas que fazemos por razões.
Quando alguém age por uma certa razão, faz o que se faz por causa da maneira
como este alguém é, mentalmente falando. Para ser responsável pelo que se faz,
então, deve-se ser responsável por ser como é. Todavia, para ser responsável por
ser assim, é preciso ter feito isso, e é preciso ser responsável por ter-se causado.
Ao fazer isso, este alguém terá agido por razões; então, este alguém terá agido
por causa do modo como era, mentalmente falando. A responsabilidade por essa
ação exigirá que essa pessoa seja responsável por como ela foi; e assim por diante,
infinitamente. Para ser responsável por qualquer coisa, então, essa pessoa deve
ter completado uma sequência infinita de ações pelas quais ela foi responsável,
criando, portanto, a si mesma, com relação a como esta pessoa é mentalmente.
No entanto, tal autocriação é impossível, pelo menos para seres finitos como nós.
A responsabilidade moral, então, é impossível, pelo menos para seres como nós
(STRAWSON, 2002).

Os proponentes de tal argumento, às vezes, enfatizam que o que eles


afirmam que é impossível é a responsabilidade final/última, algo que poderia
tornar um agente merecedor de uma recompensa eterna no céu ou condenação
eterna no inferno (STRAWSON, 2002). No entanto, mesmo que não seja possível
para nós possuir esse tipo de responsabilidade, continua a ser uma questão em
aberto se podemos ter o que é chamado de atributabilidade, ou algum tipo de
responsabilização (accountability) sobre a qual podemos merecer certos tipos de
tratamento em resposta ao nosso comportamento, mesmo que nunca recompensas
ou punições eternas. Mais uma vez, percebemos que se somos responsáveis​​
depende do que é a responsabilidade, ou de qual tipo de responsabilidade moral
está em questão.

5 O RELATIVISMO MORAL
Uma dificuldade para qualquer tentativa de explicar e avaliar o
relativismo moral é que tantas doutrinas diferentes, mesmo mutuamente
incompatíveis, estiveram sob esse nome, não apenas nas discussões populares,
mas também nos debates dos filósofos acadêmicos. O objetivo aqui é distinguir
algumas das doutrinas mais importantes que foram chamadas relativistas, expor
suas motivações e observar alguns problemas que elas enfrentam. É possível,
é claro, ser relativista sobre outros assuntos além da moralidade: nesse caso, o
48
TÓPICO 2 | LIBERDADE, RESPONSABILIDADE E RELATIVISMO MORAL

relativismo moral pode ser apenas uma aplicação de uma doutrina mais geral
(e, é claro, controversa). Aqui, no entanto, vamos nos focar quase inteiramente
em relativismos mais seletivos, aqueles que adotam uma linha relativista sobre
moralidade (e talvez, um pouco mais geral, sobre valores), mas não sobre outras
questões. Em parte, essa limitação é para manter a discussão gerenciável; mas
também se justifica pelo fato de que esse tipo de relativismo seletivo teve uma
influência considerável no pensamento popular e entre alguns filósofos.

Os argumentos para as principais formas de relativismo são muitas vezes


ditos partir da existência de discordância moral, especialmente, discordância
que se mostra racionalmente insolúvel (BRANDT, 1967). Como veremos, isso
não pode estar certo. Todavia, por enquanto, será dito que as formas padrão de
relativismo são uma resposta à aparência de discordância insolúvel (tornaremos
isso mais preciso abaixo). O que os relativistas sustentam, caracteristicamente, é
que, nessas discordâncias profundas, há algum sentido em que ambos os lados
podem estar certos. Ao considerar que esta é a ideia relativista central, estamos
tomando duas posições que vale a pena mencionar.

Em primeiro lugar, estamos compreendendo que o relativismo é uma


doutrina que se pode aplicar a algumas discordâncias morais – aquelas mais
profundos – mas não a todas elas. Algumas discussões tratam o relativismo
moral como se ele tivesse que se aplicar a todas as questões morais: e, é claro,
será assim mesmo em nossa caracterização para alguém que defende que todas
as reivindicações morais estão sujeitas a discordâncias profundas. No entanto,
alguns defensores do relativismo viram isso como uma aplicação seletiva mesmo
dentro da moralidade, e a formulamos aqui de modo a deixar essa possibilidade
em aberto (WONG, 1986; FOOT, 2002a). É claro que a doutrina se torna mais
interessante quando se afirma que ela se aplica a questões morais centrais e
controversas, não apenas periféricas; portanto, devemos supor que estamos
falando de uma doutrina voltada para questões centrais.

Em segundo lugar, a caracterização aqui põe de um lado algumas


doutrinas que, às vezes, foram chamadas de relativistas. Uma resposta alternativa
às discordâncias irresolúveis, por exemplo, seria declarar não que ambos os lados
estão certos, mas que nenhum deles está, na medida em que não haveria verdade,
nem fato da questão, sobre tais assuntos. Essa é uma visão importante que merece
discussão por si mesma – algumas vezes é chamada de niilismo moral, ou uma
“teoria do erro” – mas não a consideraremos como uma forma de relativismo.
Tampouco chamaremos a visão relativista de expressivista, de que a função
do discurso moral é primariamente expressar atitudes pró e contra, em vez de
expressar crenças que possam ser verdadeiras ou falsas. Em suas versões clássicas,
essa visão sustentava que, em discordâncias morais, ninguém está certo. Em
formulações mais recentes, seus proponentes permitem que possamos chamar
afirmações morais de verdadeiras ou falsas como uma maneira de concordar ou
discordar delas, mas elas evitam chamar de verdade as afirmações de ambos os
lados em uma discordância moral: assim elas não seriam, na perspectiva aqui
adotado, relativistas (veremos alguns maiores detalhes sobre estas outras visões

49
UNIDADE 1 | METAÉTICA

mencionadas acima no próximo Tópico desta Unidade).

O relativismo pode vir em duas formas, social e individual. Às vezes, as


divergências profundas são entre os indivíduos, às vezes entre as perspectivas de
diferentes sociedades históricas. As versões sociais precisam de uma explicação
sobre o que é para um grupo ter um ponto de vista. A menos que considerem que
isso seja mais do que a posse do ponto de vista de todos os indivíduos do grupo,
é improvável que difiram muito em suas implicações de versões individuais. Por
essa razão, presumiremos que eles defendem que uma sociedade pode acreditar
em algo, mesmo que nem todos os seus membros o façam. A maior parte da
discussão aqui será de versões do relativismo individual, já que muitos pontos
surgem mais facilmente dessa maneira, mas iremos falar um pouco sobre as
versões sociais também.

Além dessa distinção entre formas de relativismo social e individual, as


discussões filosóficas comuns diferem bastante na forma como elas distinguem
as versões dos pontos de vistas. Uma distinção muito útil, introduzida por David
Lyons, é entre as formas de relativismo do agente e do avaliador – em que um
agente é alguém que realiza uma ação, e um avaliador é alguém que forma um
juízo moral sobre a ação de alguém (LYONS, 1976). O relativismo do agente
assume que a qualidade moral do ato de um agente (para simplificar os exemplos,
sempre usaremos a qualidade de certo ou errado) será determinada no fundo por
algum recurso que pode variar entre os agentes. Na versão mais simples, trata-se
apenas da crença do agente sobre a ação, de modo que a ação, certa ou errada,
depende apenas de o agente pensar que está certo ou errado. O relativismo do
avaliador, em contraste, vê as condições de verdade para juízos morais feitas
por um determinado avaliador, como determinadas no fundo por alguma
característica que pode variar de avaliador para avaliador – tal como as crenças
morais do avaliador. Assim, na versão mais simples (e individual), o simples fato
de um avaliador acreditar que determinada ação é errada (seja por si mesma ou
por outra pessoa) é suficiente para assegurar que a opinião do avaliador esteja
correta. Veremos como podemos nos afastar da versão mais simples.

Uma razão para distinguir esses dois tipos de visões – grosso modo, que
devemos julgar os outros por suas próprias crenças, e que devemos julgá-los
pelas nossas próprias crenças – é que eles se confundem em discussões populares
e antropológicas (embora tipicamente não filosóficas). Outra é que, na medida
em que pode mantê-los distintos, o pensamento popular tende a ser atraído
mais para o relativismo do agente, uma visão que não teve muitos defensores
filosóficos; quando os filósofos levam o relativismo a sério, como alguns fazem, é
mais comumente a versão do avaliador que eles têm em mente. Vamos falar algo
sobre ambas as versões, começando com o relativismo do agente.

5.1 RELATIVISMO AGENTE


Comecemos então com a maneira pela qual o relativismo do agente tenta

50
TÓPICO 2 | LIBERDADE, RESPONSABILIDADE E RELATIVISMO MORAL

apreender a ideia de que ambos os lados em uma discordância profunda podem


estar certos. O relativismo do agente não diz que sempre que discordo de você
(profundamente) sobre uma questão de certo e errado, minha crença está correta.
O que ele diz, pelo menos na versão simples que mencionamos, é que se você e eu
temos uma profunda discordância na qual você acha que seria certo você agir de
uma certa maneira e eu discordo disso, você estaria certo e eu estaria enganado.
A maneira pela qual ambos podemos estar certos, pelo menos em uma aplicação
crucial de nossos pontos de vista, surge em um tipo diferente de caso. Suponha
que eu pense que mentir em um certo conjunto de circunstâncias é errado, ao
passo que você pensa que é certo (isto é, permissível) nessas circunstâncias, e
suponha que isso seja uma discordância profunda do tipo que o relativismo deve
sustentar. Então, de acordo com a versão mais simples do relativismo individual,
segue-se que seria errado para eu mentir nessas circunstâncias, mas permissível
para você fazê-lo.

O relativismo do agente individual é, portanto, a visão de que, em casos


de discordância profunda, as pessoas devem viver de acordo com seus próprios
padrões morais, conforme representado em suas crenças morais (ROSELL, 2013).
Parte de sua atração, certamente, vem da ressonância do senso comum dessa
visão. É claro que essa atração em particular não é, obviamente, compartilhada
por versões sociais do relativismo do agente, que dizem que, nesses casos, os
agentes devem seguir as crenças de sua sociedade. Além disso, deve-se ter
em mente que o relativismo do agente é uma visão unilateral: ele não trata a
injunção de alguém seguir suas próprias crenças morais como um princípio entre
outros para ser equilibrado com outros em casos de discordância profunda, mas
como o único princípio básico. Isso pode levar a algumas implicações bastante
contraintuitivas.

Sem dúvida, muitos proprietários de escravos, ao longo dos séculos,


pensaram que comprar e vender escravos era permissível, mas poucos de nós
achariam plausível que isso realmente fizesse ser certo que eles comprassem e
vendessem escravos – de fato, é bem provável que eles mesmos não acreditavam
que o que tornava certo para eles comprar e vender escravos era apenas que eles
pensavam isso ser certo. E pontos similares podem ser feitos sobre as inúmeras
outras práticas terríveis que os humanos têm endossado em vários momentos.
Em resposta, um relativista pode, é claro, simplesmente aceitar esses vereditos
não convencionais. Todavia deve-se notar aqui um ponto sobre debates em
ética. É prática comum pensar sobre teorias normativas como o utilitarismo ou o
kantismo (que veremos na próxima Unidade) para avaliar essas teorias, em parte,
considerando a plausibilidade de suas implicações para os casos. No entanto, o
relativismo do agente é uma teoria normativa que compete com essas outras teorias
normativas – é uma visão que às vezes é chamada de “relativismo normativo”
–, portanto, parece ser passível de avaliação da mesma maneira. Se comumente
se considera contar contra o utilitarismo o fato de que existem circunstâncias
concebíveis, mesmo que não reais, em que a escravidão fosse permissível, é difícil
ver como não poderia contar contra o relativismo do agente que aceitaria muitos
dos sistemas reais da escravidão que existiu. Deveríamos esperar uma objeção

51
UNIDADE 1 | METAÉTICA

semelhante a qualquer teoria ética que implique, como Gilbert Harman, certa
vez, argumentou que sua versão do relativismo do agente implicava, que não foi
errado Hitler ordenar o Holocausto (HARMAN, 2015).

Observando que o relativismo do agente é em si mesmo uma teoria


normativa controversa, podemos agora explicar por que não afirmamos que esta
doutrina diria que divergências profundas na ética são realmente insolúveis. A
razão é que, se não podemos resolver questões controversas na ética normativa,
então uma coisa que não podemos resolver é se o relativismo do agente está
correto, ao passo que, se pudermos determinar que ele está correto, então
as discordâncias profundas seriam solúveis, afinal de contas ​​– com base no
relativismo do agente. O que os defensores dirão sobre essas discordâncias, no
entanto – e esta é a formulação melhorada que mencionamos anteriormente – é
que elas não podem ser resolvidas em nenhuma outra base.

Uma resposta mais interessante que um defensor do relativismo do


agente poderia fornecer é que simplificamos demais a doutrina. Tornamos o
determinante do acerto ou erro de uma ação a própria crença do agente sobre se
está certo ou errado. Todavia, além de levar a implicações preocupantes sobre a
escravidão e outras questões, isso também tem a implausível implicação geral
de que não há espaço para erros nos juízos que formamos sobre o acerto ou o
erro de nossas próprias ações. Certamente, não é assim que nos sentimos quando
formamos tal juízo, mas também podemos nos perguntar se poderíamos estar
enganados. Essa implicação geral pode ser evitada, e talvez alguns dos problemas
sobre casos como a escravidão também, se fizermos a qualidade de certo ou o
errado das ações do agente não depender de suas crenças morais reais, mas de
alguma outra propriedade dela. Precisamos ter cuidado aqui, por causa de um
problema bem conhecido na formulação do relativismo do agente. Isso é que,
embora seja óbvio para uma versão do relativismo do agente sustentar que são
as várias crenças morais dos agentes sobre suas ações que as tornam certas ou
erradas, não é, em nenhum sentido interessante, relativista dizer sobre as muitas
outras circunstâncias variáveis ​​dos agentes que elas possam ter esse mesmo efeito.

Por exemplo, não é controverso que uma ação pode estar certa em uma
circunstância, mas errada em outra por causa de promessas diferentes que o agente
tenha feito, ou por causa das diferenças nos dois casos quanto as alternativas para
ação e suas consequências. Às vezes, a visão de que isso pode acontecer é chamada
de “relativismo circunstancial” (mas, assim, todo mundo seria um relativista
circunstancial). Então, o que há de especial nas circunstâncias variáveis ​​às quais
uma versão do relativismo do agente irá apelar? Provavelmente, a resposta é que
isso pode incluir não apenas as crenças morais do agente, mas também outros
estados do agente que são como crenças, na medida em que são normalmente
consideradas como respostas apropriadas ao acerto e ao erro das ações. Estas
podem incluir padrões para a formação de crenças morais (se estas não forem as
próprias crenças), e podem incluir emoções morais como a desaprovação (então
uma visão relativista de um agente pode dizer que uma ação está errada apenas
no caso de o agente desaprová-la, ou que a desaprovaria depois de um certo tipo

52
TÓPICO 2 | LIBERDADE, RESPONSABILIDADE E RELATIVISMO MORAL

de reflexão). Algumas versões do relativismo do agente também dizem que o


certo e errado dependem de convenção. Como as convenções relevantes sempre
serão aquelas que o agente ou a sociedade do agente pensa (ou pensaria, depois
de reflexão apropriada) que é, moralmente, apropriado aderir, não trataremos
isso como uma alternativa para apelar às crenças morais ou emoções do agente.

Em qualquer caso, a reparação que um proponente do relativismo do


agente poderia sugerir, em resposta às minhas objeções, é dizer que o que no
fundo faz uma ação certa ou errada não é necessariamente a crença real do agente
sobre a ação, mas sim a avaliação que o agente teria dela após a reflexão que
corrigiria os vários tipos de erros: desinformação ou informação incompleta
sobre os fatos não morais, e vários tipos de raciocínio ruim. Diferentes relativistas
podem defender diferentes versões desta proposta, defendendo diferentes graus
de idealização. Tudo o que importa aqui é que eles concordariam em fazer o
certo e o errado dependerem do que poderíamos chamar de resposta corrigida
do agente, em vez de sua crença real. Isso bloquearia rapidamente a objeção de
que o relativismo não deixa espaço para erros na avaliação de uma ação por parte
de um agente, pois minha crença real sobre minha ação pode certamente ser
diferente da minha crença corrigida.

A proposta também permitiria ao relativista dizer que algumas pessoas


que aprovaram a escravidão, no entanto, agiram erroneamente ao apoiá-la, sob o
argumento de que sua aprovação real da escravidão dependia de erros corrigíveis,
o que também se aplicaria a outros exemplos semelhantes. No entanto, a proposta
alterada também tem algum custo para o relativista.

Por um lado, até certo ponto, que depende do grau de idealização


solicitado, coloca pressão na ideia de que, de acordo com o relativismo do agente,
os agentes estão sempre certos sobre o que devem fazer; em vez disso, diz que
eles estariam certos se a resposta deles fosse aquela corrigida. Um corolário desse
ponto é que o relativismo do agente perderá seu apelo intuitivo em alguns casos.
Parte da atração da versão sem alterações é que ela promete respeitar o agir pela
consciência nos casos em que possa parecer plausível (e não apenas aos relativistas)
que essa é a coisa certa a fazer. Por exemplo, diria de alguém comprometido
com o pacifismo que seria errado ele participar de uma guerra. Todavia, a versão
revisada não garante mais esse resultado, pois uma convicção profundamente
arraigada poderia, no entanto, falhar no tipo de teste que estávamos propondo
para os defensores da escravidão. A concessão de que nossas crenças morais
estão sujeitas a correção, embora extremamente plausível, também abre a porta
para alguém que quer afirmar que essas questões contestadas são, na verdade,
racionalmente solucionáveis; um relativista negará isso, afirmando que agentes
diferentes em situações diferentes difeririam em suas respostas corrigidas, mas
isso não é tão óbvio na medida em que as pessoas discordam em suas crenças
morais reais. E muitos acharão implausível a contínua insistência do relativista
de que comprar e vender escravos, por exemplo, era o certo para alguns agentes.

Essas são algumas das dificuldades que afetam o relativismo dos agentes.

53
UNIDADE 1 | METAÉTICA

Além disso, os filósofos observam frequentemente que muito apoio popular a


esta visão é baseado em mal-entendidos. Um exemplo comum envolve confundir
o relativismo moral com o falibilismo moral, ou seja, com a visão que alega que
podemos estar errados sobre algumas crenças morais ou crenças que mantemos
(SCHLESINGER, 1989). Esta é, obviamente, uma doutrina diferente do relativismo
do agente que, como vimos, precisa até mesmo ser ajustado para permitir a
possibilidade de estarmos errados sobre o que nós mesmos deveríamos fazer.
O falibilismo moral também é diferente do relativismo do avaliador que, como
veremos, é formulado precisamente para permitir que nossos oponentes possam
estar certos sem que nossa visão seja de alguma forma equivocada. Uma confusão
ainda mais comum é a concepção popular de que o relativismo do agente apoia
a tolerância. Isso parece claramente ser um erro: o relativismo, simplesmente,
diz aos agentes para viver de acordo com suas visões morais, ou com suas visões
morais corrigidas, e se isso envolverá qualquer apoio à tolerância de diferentes
visões morais ou práticas morais depende inteiramente de quais são as opiniões
morais do agente, ou pontos de vista morais corrigidos.

As versões sociais do relativismo de agentes, sobre as quais falamos


pouco até esse ponto, também derivam seu apoio em parte por mal-entendidos.
Elas são, frequentemente, defendidas ao apontarem para vários bens, incluindo a
coesão social, que são promovidos pela conformidade com as normas morais de
uma sociedade. Todavia, é preciso uma estimativa excepcionalmente alta do valor
desses bens ou da fragilidade de uma sociedade para argumentar que ninguém
poderia estar justificado em se afastar dessas normas; e em qualquer caso, um
argumento apelando para os bens promovidos pela conformidade com as normas
aceitas parece basear-se, no fundo, em algum tipo de consequencialismo em vez
de relativismo.

Um caso especial e interessante é o que poderíamos chamar de o caso


da “regra da estrada”. As duas regras da estrada aceitas (literalmente) são que
todos devem dirigir pelo lado esquerdo da estrada e que todos devem dirigir pelo
lado direito da estrada. É óbvio que, abstratamente, não há nada a escolher entre
essas regras igualmente boas. No entanto, há razões poderosas para querer que
todos em uma determinada região aceitem a mesma regra e, assim, há também é
uma boa razão para se conformar com o que já prevalece localmente. Esta é uma
posição que será endossada por qualquer um que pense, em bases totalmente não
relativas, que devemos promover um transporte seguro e eficiente. Não é, em
nenhum sentido interessante, relativista. Note, por um lado, que embora existam
duas regras percebidas como sendo igualmente as melhores, existem várias
outras ruins – “randomizar”, “pelo lado esquerdo se a sua data de nascimento é
ímpar, de outra forma pelo lado direito” – que não teriam nenhuma reivindicação
sobre um agente mesmo que alguma sociedade fosse insensata o suficiente para
implementá-las.

É uma questão fascinante se pode haver padrões de vida moral que


sejam igualmente os melhores, mas que sejam incompatíveis. Cada um exigindo
conformidade generalizada. Desenvolvido, por exemplo, por civilizações

54
TÓPICO 2 | LIBERDADE, RESPONSABILIDADE E RELATIVISMO MORAL

históricas diferentes, de tal modo que os agentes educados em uma nunca


poderiam se adaptar com sucesso na outra. Se assim fosse, seria uma complexidade
importante para o pensamento moral. Todavia, provavelmente não seria, em
nenhum sentido interessante, um relativismo moral.

5.2 RELATIVISMO DO AVALIADOR


Como explicamos acima, o relativismo do agente deve ser distinguido
do relativismo do avaliador. A diferença pode ser ilustrada com um exemplo
de Lyons (LYONS, 1976). Suponha que Alice e Bárbara estejam considerando se
Claudia pode fazer um aborto, e suponha que isso é o que temos chamado de uma
discordância profunda. Alice acha que o aborto é errado – isto é, é inadmissível
– em casos como esse, ao passo que Bárbara acha que é permissível (e essas
também são suas visões "corrigidas"). O relativismo do agente diz que para saber
se Alice ou Bárbara estão certas, precisamos saber algo que ainda não nos foi dito,
quais são as visões de Cláudia (ou as suas visões corrigidas) sobre o assunto. O
relativismo do avaliador, em contraste, diz que não importa o que Claudia pensa,
Alice está certa ao pensar que o aborto é inadmissível para Claudia e Bárbara está
certa em pensar que é permissível.

O exemplo traz claramente um problema para o relativismo do avaliador.


Isto é, que parece endossar contradições, uma postura filosófica embaraçosa na
ética tanto quanto em qualquer outra área do pensamento. Alice pensa que o
aborto é inadmissível para a Cláudia e a Bárbara pensa que é permissível: como
ambas podem estar certas? A resposta relativista padrão é interpretar as opiniões
de Alice e de Bárbara para que elas ao afinal de contas não se contradigam. As
propostas diferem em detalhes, mas a ideia geral é interpretar o que Alice e
Bárbara estão dizendo como contendo uma referência implícita a elas mesmas,
o avaliador. Por exemplo, um relativista pode sustentar que, quando Alice diz:
“O aborto seria inadmissível para Cláudia”, o que a declaração significa, mais
completamente, é que “o aborto de Cláudia entraria em conflito com minhas
visões morais corrigidas”, enquanto o que a Bárbara está dizendo resulta, quando
explicitado, em: “Cláudia tendo um aborto seria permissível por minhas visões
morais corrigidas”. Já no caso de uma versão social do relativismo do avaliador
pode considerar a referência implícita como sendo “as visões do meu grupo”.
Vamos limitar nossa discussão do relativismo do avaliador às versões individuais,
já que todos os pontos são transferidos diretamente para as versões sociais.

Com base nessa compreensão do que eles estão dizendo, é fácil ver como
Alice e Bárbara poderiam estar certas. Cada uma delas está simplesmente falando
sobre como seus próprios padrões se aplicam a Cláudia. Não há contradição.
Agora há outro problema. Isso é, que também fica claro nesse entendimento
que Alice e Bárbara não estão realmente discordando: elas estão simplesmente
falando sobre assuntos diferentes. E aqui está a nossa observação acima, de que
é enganoso dizer que o relativismo moral repousa na suposição de divergências
profundas e insolúveis. Para o relativismo do agente, isso ocorre porque as

55
UNIDADE 1 | METAÉTICA

divergências acabam sendo resolvíveis; para o relativismo do avaliador, é porque


elas acabam não sendo realmente divergências.

Quase todos, incluindo os relativistas, acham essa implicação implausível.


Os relativistas argumentam que devemos aceitá-la mesmo assim, com base
em que as alternativas são ainda menos plausíveis. O argumento é que, se
não interpretarmos relativisticamente as afirmações morais sobre questões
profundamente disputadas, essas discordâncias serão de fato genuínas, mas
também irresolúveis. Assim, a existência de discordâncias insolúveis, em uma
compreensão delas que o relativista se propõe a rejeitar, desempenha um papel
no argumento. No entanto, isso, de acordo com o relativista, forçar-nos-ia ao
niilismo sobre essa questão – à visão de que Alice e Bárbara estão certas, porque
não há fato algum sobre a moralidade do aborto de Cláudia – e, portanto, para
qualquer outra questão sobre a qual há (em uma compreensão não relativista do
discurso) uma discordância insolúvel. E isso, por sua vez, exigiria que qualquer
não relativista parasse de fazer e emitir juízos sobre essas questões. O relativismo,
argumenta-se, pode, em contraste, "salvar o discurso" (WONG, 1986, p. 109),
fornecendo um conteúdo para os juízos de Alice e Bárbara. Pode-se também dizer
que ele fornece uma interpretação respeitosa das declarações de Alice e Bárbara,
na medida em que as credita estarem certas sobre alguma coisa, quando seu juízo
moral corresponde ao que seria seu juízo corrigido.

Há muitas maneiras pelas quais alguém pode achar esse argumento pouco
convincente. Por um lado, o expressivismo (que será visto com mais detalhes no
próximo tópico desta unidade) é uma visão concorrente que também promete
salvar o discurso em face de discordâncias insolúveis, fornecendo um ponto (se
não um conteúdo) para os juízos de Alice e Bárbara. O expressivismo considerará
sua discordância como uma genuína “discordância em atitude", e não como uma
situação em que duas ou mais pessoas falam sobre assuntos diferentes, enquanto
acreditam que estão falando sobre a mesma coisa. Assim, o relativista precisa de
um argumento para descartar o expressivismo, uma questão muito vasta para
poder ser explorada aqui, mas que pode encontrar alguns aliados entre os não
relativistas que também rejeitam o expressivismo.

Por outro lado, não está tão claro por que o discurso precisa ser salvo.
Mesmo colocando o expressivismo de lado, não é como se nossas únicas escolhas
fossem continuar usando o discurso moral como antes (na medida em que o
entendemos como um relativista o faria) ou não dizer nada. Existe também a
opção de falar de maneira mais subjetiva, do que é importante para nós e por
quê isso seria importante. Além disso, certamente é discutível se Alice e Bárbara
considerariam uma compreensão relativista de suas posições como sendo
respeitosa. Pois, mesmo que as imaginássemos reconhecendo que sua disputa é
insolúvel, elas poderiam facilmente achar bastante desdenhosa a sugestão de que
elas estão simplesmente falando sobre seus próprios pontos de vista e não estão
realmente em discordância.

Além disso, alguns relativistas sustentam, como mencionamos, que

56
TÓPICO 2 | LIBERDADE, RESPONSABILIDADE E RELATIVISMO MORAL

sua doutrina não se aplica a todas as divergências morais. Eles querem que se
aplique àquelas divergências que seriam insolúveis se tratadas como genuínas,
mas não a outras que são racionalmente solucionáveis. Todavia, isso torna ainda
mais urgente a questão de por que devemos querer salvar o restante do discurso.
Fazê-lo da maneira relativista produzirá uma descrição surpreendentemente
desarticulada dos juízos morais. Isto é, alguns seriam vistos como verdadeiros
com referência ao que for que os faça serem objetivamente verdadeiros, outros
seriam vistos como verdadeiros simplesmente com referência às crenças dos
avaliadores (ou suas crenças corrigidas). E pode parecer muito enganoso, para
dizer o mínimo, propor que continuemos falando da mesma maneira solidamente
objetiva sobre questões cujo status é pensado ser tão diferente.

6 SOLUCIONANDO DISCORDÂNCIAS
Como deve ter ficado claro, não contamos como relativista a mera tese
de que algumas discordâncias morais, até mesmo aquelas discordâncias morais
centrais, sejam irresolúveis, pois isto é compatível com visões que não são
relativistas. No entanto, alguma forma desta tese – como a proposta de que as
discordâncias são insolúveis exceto pelo apelo ao relativismo do agente, ou como
a proposta de que são insolúveis a menos que interpretada como um relativista do
avaliador as interpretaria – é, no entanto, central para uma perspectiva relativista.
Isso levanta uma questão muito difícil, e vamos apenas expor algumas coisas aqui
para mantê-la em perspectiva.

Primeiro, os relativistas seletivos que estamos considerando contrastam


a ética, na qual eles veem os debates centrais como insolúveis, com outras áreas,
como as ciências, nas quais as discordâncias se solucionam. Todavia é amplamente
aceito entre os filósofos que poucas questões científicas (alguns dizem que
nenhuma) são solucionáveis com certeza. O melhor que se pode esperar é que a
evidência e o argumento pesem, objetivamente, mais para um lado do que para
o outro. Para manter o contraste, o relativista seletivo deve negar não apenas que
as divergências morais podem ser solucionadas com certeza, mas também que
elas podem receber essa forma mais modesta de resolução – uma tese bem menos
óbvia.

Em segundo lugar, o relativista precisará de uma explicação realista da


ciência. Durante boa parte do século XX, muitos filósofos aceitaram um enquadre
amplamente positivista no qual as disputas científicas eram solucionadas ao
observar o desempenho de hipóteses concorrentes frente à evidência empírica
descrita em uma linguagem teoricamente neutra que sabíamos a priori como
sendo apropriada, de acordo com uma “lógica indutiva” igualmente a priori. Era
razoavelmente fácil argumentar, neste contexto, que as visões éticas se davam
muito mal nesse teste. Todavia, essa explicação do procedimento científico tem
sido amplamente criticada, muitas vezes, com base no fato de que há menos
padrões a priori na ciência do que se afirmava que tinha. Isso pode tornar mais
difícil, o que uma vez pareceu ser fácil, argumentar que o raciocínio científico e o

57
UNIDADE 1 | METAÉTICA

raciocínio ético não estão no mesmo nível (BOYD, 1988; CORBÍ, 2004).

7 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Neste tópico levantamos questões sobre a natureza da responsabilidade
moral e concomitantemente o tipo de liberdade que ela requer. Neste percurso
apresentamos várias questões sobre a compatibilidade, isto é, a relação entre a
liberdade exigida pela responsabilidade e seu exercício frente ao determinismo,
sendo este verdadeiro, ou a possível necessidade de aceitarmos o indeterminismo.
Nesse contexto exploraremos vários argumentos ditos incompatibilistas e aqueles
ditos compatibilistas.

Além disso, deparamo-nos com várias questões pertinentes ao tema do


relativismo moral. Pudemos distinguir algumas das doutrinas mais importantes
que foram chamadas relativistas e expor suas motivações, assim como observar
alguns problemas que elas enfrentam. Neste rumo, apresentamos o relativismo
em suas duas formas, a social e a individual, na medida em que analisamos a
distinção entre o relativismo do agente e do avaliador.

No próximo tópico desta unidade, vamos explorar uma série de questões


sobre o realismo moral. Ao fazer isso, você poderá estrar em contato com uma
taxonomia quase completa da metaética contemporânea e conhecer as várias
alternativas propostas ao realismo moral.

58
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• Os filósofos ofereceram várias concepções diferentes de responsabilidade


moral.

• Uma noção central diz que responsabilidade é atributabilidade, que você é


moralmente responsável por alguma coisa apenas no caso de ser atributável a
você como base para sua avaliação moral.

• Outra noção é da avaliabilidade, que afirma que quando alguém é moralmente


responsável por alguma coisa, há uma marca – positiva, negativa ou neutra –
no livro-razão moral de alguém.

• Alguns escritores compreendem a atributabilidade como incluindo a


responsividade: quando alguém é moralmente responsável por alguma coisa, é
também responsável por essa coisa.

• Uma concepção de responsabilidade a vê como “responsabilização” ou


“prestação de contas”.

• O determinismo é a tese de que, dadas as leis da natureza, o modo como o


mundo está em determinado ponto no tempo determina completamente todos
os aspectos de como o mundo está em qualquer momento posterior no tempo.

• O incompatibilismo sustenta que alguém faz algo com a liberdade requerida


apenas se for capaz de fazer o contrário ou de algum modo diferente.

• Que o argumento da consequência afirma que se o determinismo é verdadeiro,


nossas ações atuais são consequências do passado e das leis da natureza.

• O princípio das possibilidades alternativas, ou PPA, afirma que a


responsabilidade moral por ter feito uma certa coisa exige que alguém seja
capaz de fazer o contrário.

• Um desafio para o PPA concentra-se em casos de sobredeterminação


preemptiva.

• Os incompatibilistas da origem, às vezes, apelam para um argumento do


desígnio.

• Alguns compatibilistas oferecem uma concepção de capacidades racionais e de


capacidades para agir com base no raciocínio prático.

59
• Uma teoria compatibilista alternativa concentra-se nos mecanismos (ou
processos) que ocorrem no interior de agentes e que geram seu comportamento.

• Teóricos que pensam que podemos ser responsáveis ​​se, mas apenas se o
indeterminismo for verdadeiro, oferecem explicações incompatibilistas (ou
libertárias) da liberdade requisitada.

• Um tipo de teoria incompatibilista indica que a causação não precisa ser


determinista.

• Um tipo de explicação incompatibilista toma literalmente a ideia de haver uma


fonte de origem do comportamento de alguém.

• Os argumentos para as principais formas de relativismo são muitas vezes ditos


partir da existência de discordância moral, especialmente, discordância que se
mostra racionalmente insolúvel.

• O relativismo pode vir em duas formas, social e individual.

• Uma distinção muito útil é entre as formas de relativismo do agente e do


avaliador.

60
AUTOATIVIDADE

1 Na literatura da metaética, vários filósofos ofereceram diferentes concepções


de responsabilidade moral. Compare as concepções da responsabilidade
como atributabilidade, como avaliabilidade e como responsividade.

2 Explique o que seria uma visão incompatibilista e o que seria uma visão
compatibilista da responsabilidade moral.

3 Descreva o que seria um Cenário de Frankfurt e explique quais implicações


este experimento mental tem sobre as questões compatibilistas da
responsabilidade moral.

4 Compare o relativismo do agente com o relativismo do avaliador.

61
62
UNIDADE 1
TÓPICO 3

O REALISMO E SUAS ALTERNATIVAS

1 INTRODUÇÃO
Os debates tradicionais sobre o realismo diziam respeito à existência de
coisas em si mesmas, "coisas-em-si", cuja existência não depende de ser percebida
ou concebida por uma mente. A maioria de nós é realista sobre o mundo externo
nesse sentido, embora as “coisas” em questão não precisem ser entidades
concretas. Os platonistas, por exemplo, eram realistas em relação aos universais,
que consideravam eternos e independentes de qualquer mente ou atividade
mental. Aqueles que negam a existência de um domínio de entidades, como os
céticos sobre o mundo ou os nominalistas sobre os universais, são chamados de
antirrealistas.

Também há uma terceira posição. Os idealistas do século XIX viam os


realistas e céticos sobre o mundo externo como compartilhando a visão equivocada
de que nossa fala sobre “o mundo” deve ser entendida como se referindo a
uma entidade transcendente à experiência. Em vez disso, eles argumentaram,
o mundo é realmente um objeto do pensamento – um constructo mental usado
na descrição de padrões em nossa experiência. Para eles, o debate entre realistas
e céticos era tão equivocado quanto nos preocupar se poderíamos conhecer o
endereço do "brasileiro médio". Enquanto os realistas sobre o mundo externo
aceitam uma ordem de explicação na qual um mundo autossubsistente é a fonte da
nossa experiência, os idealistas explicam as coisas ao contrário: a experiência é
suficiente em si mesma e o fundamento apropriado para qualquer teoria do ser
(ontologia) – incluindo o ser do que chamamos de “o mundo”. Uma visão como
essa é chamada de irrealismo sobre o mundo externo, em vez de antirrealismo,
porque trata a nossa fala ordinária sobre o mundo como perfeitamente bem
fundamentada, assim como falar do "brasileiro médio" é perfeitamente bem
fundamentado, uma vez que vemos o que realmente significa. O único erro é a
tendência dos filósofos de reificar ou projetar tais objetos do pensamento como
“coisas-em-si”. Como veremos, o debate entre realistas, antirrealistas e irrealistas
sobre a moralidade assume uma forma bastante semelhante.

Neste tópico, vamos introduzir uma série de questões sobre o realismo,


e ao fazer isso pretendemos gerar uma taxonomia quase completa da metaética
contemporânea. Seria necessário mais espaço para dedicarmos atenção individual
às principais abordagens e vertentes que surgem a partir deste debate entre
realistas, antirrealistas e irrealistas sobre a moralidade. Contudo, a partir deste
Tópico, sobre o realismo e suas alternativas, você poderá ter uma clara noção da
paisagem diversa e rica que compõe a metaética contemporânea.
63
UNIDADE 1 | METAÉTICA

2 O REALISMO MORAL
Como poderiam os realistas morais afirmar que a moralidade (entre todas
as coisas!) é uma “coisa em si”, independente da mente? Levantar a pergunta
desse modo pode fazer soar estranho defender o realismo moral. No entanto,
essa é uma maneira enganosa de representar tal posicionamento. O realismo
não é uma visão filosófica independente, como o empirismo ou o racionalismo.
Precisamos saber: realismo sobre o quê? E para entender o que o realismo
sobre X envolve, devemos perguntar que tipo de "coisas" os X seriam se fossem
reais. Substância mental, por exemplo, se fosse real, dificilmente poderia ser
independente da mente. Todavia, poderia ser independente do que pensamos
sobre isso, ela, portanto, não dependente de qualquer percepção ou concepção
real. O que, então, é realismo sobre X quando este X é a moralidade? Essa não é
uma pergunta simples, mas uma resposta curta seria: há fatos genuínos sobre o
que é moralmente certo ou errado – fatos que são independentes do que qualquer
pessoa, ou qualquer sociedade, pensa ser moralmente certo ou errado.

É justo dizer que a maioria dos grandes filósofos morais, eticistas, ao longo
da história tem sido realista nesse sentido. Embora tenham divergido sobre quais
qualidades morais são básicas, corretas ou boas, elas concordaram que existem
fatos genuínos sobre o que deveríamos fazer moralmente e sobre que tipo de
vida é melhor, e que essas não são meras questões de opinião, ou incapaz de ser
verdadeira ou falsa. Tem havido poucos céticos da moral ou antirrealistas (como
os niilistas e, talvez, Nietzsche) e ainda menos irrealistas da moral (embora esse
possa ser o modo certo para entender alguns idealistas pós-kantianos e David
Hume). Contudo, atualmente as coisas estão diferentes. Embora o ceticismo moral
permaneça raro, houve um aumento dramático no irrealismo moral, começando
com a "virada linguística" da filosofia no início do século XX. Com essa virada, o
foco da teoria ética ampliou-se nas questões de primeira ordem sobre o certo e o
bom para incluir perguntas de segunda ordem sobre o que significa chamar algo
de certo ou de bom. Isso abriu a possibilidade na qual o irrealismo se insere, a
saber, aceitar nossa fala moral de primeira ordem de atos como certos ou errados,
ou resultados como bons ou maus, mas então dizer na segunda ordem que não
são necessários “fatos morais” para tornar essas afirmações verdadeiras. Nos
últimos anos, muitas variantes dessa ideia surgiram, e este tópico pretende tanto
caracterizar o realismo moral quanto introduzir uma ampla gama de alternativas
na metaética contemporânea.

Alguns filósofos morais questionam se os debates metaéticos têm alguma


importância real para o pensamento e a prática morais de fato. No entanto, embora
a metaética contemporânea possa se tornar bastante técnica e aparentemente
arcana, as preocupações subjacentes em questão são familiares para qualquer
pessoa pensante. Os costumes sociais diferem entre as sociedades e os tempos
de inúmeras formas, e os indivíduos mostram uma diversidade ainda maior
de pontos de vista morais – todos afirmando estarem mais próximos de acertar
as coisas. Parece não haver maneira de resolver essas diferenças, mesmo entre
pessoas razoáveis. Pior, em comparação com muitas outras áreas da inquirição

64
TÓPICO 3 | O REALISMO E SUAS ALTERNATIVAS

humana, parece que não podemos dizer muito sobre o que equivaleria a uma ou
outra opinião moral ser a correta. Embora algumas injunções morais pareçam
quase universais – proibições de assassinato, agressão e roubo, ou exigências
de cumprir promessas, cuidar de seus filhos e demonstrar lealdade à família
e amigos – isso pode refletir nada mais que amplas semelhanças na natureza
humana e ampla semelhanças na condição humana. Talvez a moralidade não seja
tudo aquilo que supomos que seja.

3 AS CINCO CARACTERÍSTICAS CENTRAIS PARA A


MORALIDADE
Para resolver essa questão, precisamos perguntar o que é tudo aquilo
que supomos que a moralidade seja. A maioria dos filósofos concorda que as
cinco características seguintes, pelo menos, são centrais para a moralidade como
a conhecemos.

Característica 1 (C1) – Forma cognitiva. Embora nos preocupemos com


a verdade e o conhecimento na moralidade, ainda assim, certamente falamos
como se tais coisas fossem possíveis. Nós regularmente chamamos afirmações
morais de verdadeiras ou falsas, justificadas ou injustificadas. E falamos de
nossas convicções morais como crenças, de crianças que devem vir a entender a
diferença entre certo e errado, e de psicopatas criminosos que falham em conhecer
essa diferença. Isso está espelhado na gramática e na lógica das reivindicações
morais, que se parecem e agem tal como declarações factuais ordinárias. Quando
argumentamos sobre o certo e o errado, nós requeremos de nós mesmos, e uns
aos outros, as mesmas regras lógicas, os mesmos padrões de consistência, como
fazemos quando raciocinamos sobre questões factuais ordinárias. De fato, as
declarações morais e as declarações factuais se entrelaçam perfeitamente no
pensamento e na fala.

Característica 2 (C2) – Significado objetivo. Declarações morais também


se comportam como declarações factuais ordinárias de outra maneira. Embora
possamos temer que a moralidade seja meramente “subjetiva”, ainda assim
fazemos uma distinção clara entre juízos morais e expressões de preferência.
Suponha que você e eu acabamos de ouvir um discurso do Presidente anunciando
novos impostos para as pessoas em nossa faixa de renda. Se eu disser: "Bem,
não estou feliz com isso", estou apenas relatando minha resposta pessoal, não
pretendendo falar por mais ninguém. Se você responder, “É sério? Estou feliz
com isso”, você também está falando por si mesmo. Embora sua atitude seja, em
certo sentido, o oposto da minha, e possa levá-lo a se comportar diferentemente
de mim, nossa oposição em atitude permanece "subjetiva", uma questão de
preferência, não de princípio. De fato, nada do que dissemos contradiz o outro, e
podemos aceitar que o que o outro diz é verdade. Todavia, suponha que eu tivesse
dito em vez disso: "Isso é uma injustiça clara, estamos pagando o suficiente!"
Então eu estaria expondo uma reivindicação no espaço de conversação que se
estende além do meu espaço pessoal – diz respeito sobre como você ou qualquer
65
UNIDADE 1 | METAÉTICA

outra pessoa, deve responder, independentemente das preferências pessoais. E


você tivesse respondido: “O que? É uma questão de justiça simples” você não
estaria descrevendo sua própria reação, mas sim uma contrarreivindicação para
o mesmo espaço de conversação, contradizendo o que eu disse, e solicitando uma
resposta. Nós teríamos uma diferença de atitude baseada em princípios. Embora
qualquer diferença assim tenha algum sentido "subjetivo" e "pessoal" na origem e
na localização, ainda assim, o significado dessas atitudes é objetivo, independente
de nossa perspectiva pessoal, até mesmo universal. Em contraste com o primeiro
caso, nenhum de nós pode aceitar plenamente o que o outro disse e deixar
por isso mesmo. A questão não é uma questão de intensidade de sentimento.
Mesmo que nossos sentimentos estivessem confusos, de fato, mesmo que eu não
sentisse nada e estivesse falando de maneira não sincera, ainda assim iríamos
nos contradizer. Quaisquer que sejam nossos estados mentais, existe um conflito
objetivo no significado ou conteúdo do que dissemos.

Característica 3 (C3) – Superveniência. Algumas formas de valoração ou


avaliação são convencionais, como preços. Outras são pessoais, como apego ou
afeição. Dois martelos podem ser idênticos em todos os aspectos – mesma forma,
tamanho, material, resistência, durabilidade etc. – e, no entanto, um é mais
caro do que o outro ou, sendo um presente, é objeto de maior apego pessoal
do que o outro. Outras formas de valoração não são assim. Os dois martelos
serão igualmente bons martelos, independentemente de como os precificamos
ou os apreciamos. Diz-se que sua qualidade de martelos é superveniente às suas
constituições físicas. Agora considere um julgamento por assassinato que foi a júri
popular. Se o júri concluir que os fatos jurídicos relativos ao réu A e ao réu B são
os mesmos – as mesmas circunstâncias, intenções, atos, efeitos etc. – então o júri
não pode concluir corretamente que um é culpado de homicídio e o outro não.
Há uma norma em ação aqui: um júri deve tratar casos semelhantes do mesmo
modo. As avaliações jurídicas são ditas, por esse motivo, serem supervenientes
sobre os fatos – uma vez que todos os fatos estejam estabelecidos, também estará a
culpa ou a inocência de um réu. A valoração ou avaliação moral e as propriedades
morais putativas seguem esses mesmos padrões de superveniência. Se dois atos
de quebra de promessa são os mesmos em todos os aspectos factuais, então, se
um deles está errado, o outro deve estar; se um deles deve ser julgado censurável,
o mesmo deve acontecer com o outro. Particularmente, meras diferenças em
quem está envolvido não podem mudar as coisas. A superveniência da valoração
moral ajuda a explicar um fato muito importante da nossa vida moral. Embora as
controvérsias morais persistam, o debate moral não é anárquico. Quaisquer que
sejam as razões pelos quais tratamos como relevantes na valoração ou avaliação
de outros, devemos reconhecer e aplicar igualmente a nós mesmos. Devemos
apresentar nossos casos imparcialmente, tentando oferecer razões com uma certa
generalidade, cuja relevância pode ser reconhecida a partir de pontos de vista
diferentes do nosso.

Característica 4 (C4) – Categoricidade. Como observamos ao discutir a C2,


significado objetivo, os juízos morais têm a intenção de se aplicar aos agentes,
independentemente de suas preferências pessoais. Kant apontou que isso dá

66
TÓPICO 3 | O REALISMO E SUAS ALTERNATIVAS

injunções morais a forma de imperativos categóricos, em vez de hipotéticos.


Assim, se julgo que comer carne é desumano, não estou dizendo: “Se você se
importa com animais, não deve comer carne”, mas sim: “Você não deve comer
carne, ponto final. Se você não considera agora o sofrimento dos animais, deveria
fazê-lo”. As demandas morais não são feitas em nome de uma meta racional
optativa, e devem aplicar-se mesmo diante de uma inclinação contrária.

Característica 5 (C5) – Implicação prática. A C1 e a C2 deixam claro o quanto


a linguagem moral se parece com a linguagem descritiva ou factual ordinária, e
a C3 deixa claro quão próximo o juízo moral está vinculado aos fatos. Mesmo
assim, a linguagem moral parece ser mais do que uma forma mais colorida de
descrever o mundo. Também tem um caráter prático ou prescritivo. Mudamos para
a linguagem moral ao tentar decidir o que fazer ou como os outros devem agir.
A linguagem moral é adequada para essas funções de "orientar a ação" porque é
rica em conceitos normativos e avaliativos, permitindo-nos perguntar não apenas
como as coisas são, mas como devem ser, ou se é bom que assim seja. Juízos factuais
ordinários não pretendem, do mesmo modo, orientar a ação. Se eu enfrentar um
dilema moral, até mesmo uma longa série de juízos factuais bem considerados
ainda não constituiria uma “decisão” sobre o que, à luz desses fatos, é a coisa a
se fazer. O pensamento moral também funciona para guiar a ação depois que eu
me decidi. Você se importa em me convencer de que eu deveria pagar impostos
mais altos, porque você acredita que, se eu puder ser convencido, isso moldará
não apenas o que eu acredito, mas também como vou agir. Se você me convenceu,
então, quando eu me encontrar na cabine de votação, sentirei alguma pressão
interna para não rejeitar um candidato só porque ele apoia impostos mais altos.
Essa pressão não parece surgir de outra fonte além da minha convicção moral
e será sentida mesmo que eu ainda não goste da ideia de pagar mais. Se eu me
render ao impulso egoísta e votar contra esse candidato, sentirei alguma medida
de culpa ou insatisfação comigo mesmo por fazê-lo, assim como um sentimento
de “inconsistência” entre minhas palavras e meus atos. O quanto o juízo moral
está ligado à orientação da ação, e se é sempre motivador, está longe de ser óbvio.
No entanto, é óbvio que normalmente esperamos alguma ligação desse tipo, e
tendemos a duvidar da sinceridade da declaração moral de um falante se, quando
a pressão chega, não tem efeito sobre como ele age ou se sente.

Se as características de C1 à C5 nos dá uma ideia do que é a moralidade,


torna-se claro porque é difícil, ou talvez impossível, mostrar como a moralidade
poderia corresponder às expectativas do que promete ser. Por exemplo, a maneira
mais direta de acomodar a forma cognitiva (C1) e o significado objetivo (C2) é
dizer que os juízos morais se comportam como juízos factuais porque eles são
juízos factuais – juízos de fatos morais – e expressam crenças capazes de verdade
ou falsidade. Essa é uma típica posição do realismo moral. Mas isso dificulta ver
como acomodar a categoricidade (C4) ou a implicação prática (C5). Tomemos um
caso de uma crença factual comum, digamos, minha crença de que há um jarro
de água na mesa diante de mim. Para que você saiba como essa crença afetará
meu comportamento, você precisa saber o que eu quero – estou com sede? Eu
quero te oferecer uma bebida? Qualquer desejo ou objetivo parece ser um estado

67
UNIDADE 1 | METAÉTICA

completamente separado da minha crença sobre o jarro, que, em si mesmo,


parece ser praticamente “inerte”. David Hume (2009) ofereceu uma explicação
de porque isso acontece. As crenças funcionam para representar o mundo e
“não adicionam nada” ao seu objeto. Por essa razão, uma crença de que “p” é
verdadeira exatamente quando o próprio “p” é verdadeiro. Colocados em termos
modernos, as crenças têm uma direção de ajuste da “mente para o mundo”
(SEARLE, 2006): uma crença de que “p” desempenha com sucesso a sua função
de representar que “p” apenas no caso de “p” ser verdadeiro, ou seja, apenas no
caso de o conteúdo da crença “se ajustar” ao estado do mundo – há realmente um
jarro de água diante de mim.

Por outro lado, estados da mente com força motivacional inerente, como o
desejo de beber ou ser educado, não podem ser meras representações do mundo.
Desejar beber não é apreender como verdadeiro que eu estou bebendo – isso
tornaria o desejo autossatisfatório, e nenhum estímulo à ação de forma alguma.
Pelo contrário, é apreender o beber como algo para ser fazer verdadeiro. O desejo,
portanto, tem uma direção de ajuste do “mundo para a mente” (SEARLE, 2006):
um desejo que “p” motiva o indivíduo a encontrar uma maneira de fazer o “p”
acontecer e executa sua função com sucesso (o desejo é “satisfeito”) somente
quando “p” acontece, digamos, eu sacio a minha sede. Ora, se os juízos morais têm
implicação prática (C5), parece que eles, como os desejos, devem ter uma direção
de ajuste do mundo para a mente – eles apresentam uma ideia de como as coisas
devem ser. Além disso, se esta implicação é categórica (C4), elas devem motivar
por si mesmas, sem necessidade de qualquer desejo adicional. Então parece que
os juízos morais não podem ser simplesmente crenças factuais, como a C1 e a C2
sugerem. Pois como poderia um estado da mente ter ambas as direções de ajuste?
(LEWIS, 1988, 1996; SMITH, 1994).

4 ALTERNATIVAS METAÉTICAS EM RELAÇÃO A QUESTÕES


DO REALISMO
A dificuldade de conciliar as características de C1 à C5 é um problema para
qualquer teoria da moralidade que procure evitar o ceticismo enquanto assume
a moralidade ordinária pelo seu valor nominal. Com certeza, uma interpretação
da moralidade não precisa tomar todos os aspectos da moralidade de fato de
maneira acrítica. Por exemplo, é uma característica marcante do realismo ter uma
visão substancial da verdade e permitir a possibilidade de que até mesmo nossas
visões atuais mais bem estabelecidas estejam erradas. Os realistas tendem a ser
falibilistas, que observam que nossos pontos de vista em quase todas as áreas de
investigação sofreram mudanças dramáticas historicamente – e a moralidade não
é exceção. No entanto, qualquer interpretação da moralidade deve realizar um
delicado ato de equilíbrio, esforçando-se para ser fiel aos fatos, mas também não
mais do que modestamente revisionista sobre a moralidade, para que não mude
simplesmente de assunto. Diferentes formas de alcançar esse equilíbrio levaram
à proliferação de formas de realismo moral, antirrealismo, irrealismo, “quase-

68
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA MORALIDADE

realismo” etc. na ética contemporânea. Será que podemos encontrar algum modo
ordenado de descrever a complexa paisagem da metaética contemporânea e as
questões em jogo?

Podemos responder a esta questão com a seguinte abordagem. Considere


uma série de perguntas que confrontam qualquer interpretação em escala total da
moralidade, cada uma delas constituindo uma encruzilhada ou ponto de escolha
na paisagem metaética. Em cada um desses pontos, uma resposta positiva, um sim
(aparecendo em negrito, na Figura 1), leva a interpretação um passo adiante no
caminho em direção a um realismo maior. As respostas negativas, um não, nesses
pontos de escolha gera uma taxonomia razoavelmente natural de alternativas
ao realismo. Algumas dessas alternativas percorrerem uma boa distância no
caminho do realismo moral antes de se distanciarem.

FIGURA 3 – TAXONOMIA RAMIFICADA DE POSIÇÕES METAÉTICAS EM RELAÇÃO A


QUESTÕES DO REALISMO
Será que ao menos alguns juízos morais escapam a falsidade?

NÃO - ceticismo (p. ex. teoria do erro de SIM - (2) não-ceticismo


Mackie, niilismo, instrumentalismo
eliminativista

A linguagem moral deve ser interpretada literalmente?

NÃO - irrealismo, ficcionalismo, SIM - (3) literalismo ou


instrumentalismo não-eliminativista, revisionismo moderado
teorias de substituição

As condições de verdade dos estados morais são independentes do sujeito?

NÃO - subjetivismo e relativismo (p. ex. SIM - (4) objetivismo


«subjetivismo sensível» de Wiggins,
relativismo de Harman)

Podem os fatos morais explicar não-trivialmente nossas opiniões morais?

NÃO - quase-realismo (p. ex. projetivismo de SIM - (5) realismo


Blackburn, expressivismo de normas de Gibbard);
cognitivismo sem realismo; construtivismo
neo-kantiano.

Essa explicação é racional no sentido de não ser empírica?

NÃO - realismo moral naturalístico SIM - (6) realismo moral não-


(p. ex. naturalismo não analítico de Boyd naturalístico (p. ex. racionalismo de Nagel,
e Railton, naturalismo analítico de Smith intuicionismo de Parfit e Scanlon, platonismo de
e Jackson; naturalismo aristotélico de Moore, particularismo de Dancy)
Foot

FONTE: O autor

69
UNIDADE 1 | METAÉTICA

As posições indicadas em negrito na figura anterior correspondem, em


cada ponto de ramificação, ao caminho que conduz a um realismo maior.

4.1 PASSO 1 – AS AFIRMAÇÕES MORAIS POSSUEM


CONTEÚDO COGNITIVO?
No início do século XX, os empiristas lógicos procuraram fornecer uma
"reconstrução racional" de todo o conhecimento para colocá-lo sobre uma base mais
sólida. Alegações de conhecimento que não puderam ser verificadas pela lógica
ou testadas na experiência foram rejeitadas como cognitivamente sem sentido
– “pseudoproposições”, que poderiam ter força retórica, mas não poderiam ser
verdadeiras ou falsas. Moritz Schlick (1939) e A. J. Ayer (AYER, 1991) aplicaram
esse critério a enunciados morais e concluíram que a linguagem moral servia a
uma função dinâmica e não descritiva, permitindo que as pessoas expressassem
seus sentimentos positivos e negativos em relação a certos cursos de ação e, assim,
influenciassem o comportamento de outras. De acordo com esses emotivistas, um
juízo como “Tortura é sempre errado”, embora seja cognitivo na forma (C1), não
declara um fato – nem mesmo o fato de que o falante abomina a tortura. Em
vez disso, quando proferido com sinceridade, expressa a repulsa do falante à
tortura – uma atitude categórica (C4). Ao expressar essa repulsa na linguagem
moral, o falante espera desencorajar a tortura, um efeito emotivo e não racional.
A intratabilidade das disputas morais é atribuída a diferenças nos sentimentos
mais básicos das pessoas, que não estão sujeitas a nenhum tipo de juízo racional.
A implicação prática (C5) dos juízos morais segue diretamente: repulsa, elogio,
endosso, indignação etc., são sentimentos que moldam diretamente como o
falante está disposto a agir.

O emotivismo logo se tornou muito influente, mas, a partir da década


de 1950, decaiu sob ataque filosófico sustentado. Peter Geach (1960) argumentou
que, se as declarações morais funcionassem apenas para expressar emoções,
não haveria explicação de como as usamos no raciocínio condicional. Mesmo
supondo que "Roubar é sempre errado" expressa uma atitude contra o roubo,
nenhuma atitude como essa é expressa por "Se roubar é sempre errado, então
Robin Hood se comportou mal", o que pode ser afirmado com igual sinceridade
por alguém que aprova ou desaprova o roubar. O emotivismo, portanto, falha
em um teste bastante básico de uma teoria do significado para uma afirmação
– deve ser capaz de explicar como essa afirmação contribui para o significado
das declarações compostas ou contextos embutidos nos quais ela aparece. Pior,
podemos entender claramente o seguinte argumento: Se roubar é sempre errado,
então Robin Hood se comportou mal. Mas, Robin Hood fez o que é certo. Então
roubar nem sempre é errado. Além disso, podemos ver imediatamente que
esse argumento é logicamente válido – que seria completamente inconsistente
aceitar ambas as premissas, mas rejeitar a conclusão. Deve haver algum conteúdo
cognitivo na linguagem moral, afinal, já que não há inconsistência lógica em ter
emoções conflitantes sobre roubo – ao contrário, ter sentimentos mistos sobre o

70
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA MORALIDADE

roubo pode ser uma marca de bom senso, tal casos como o de Robin Hood. O não
cognitivismo, portanto, parece incapaz de compreender como as reivindicações
morais funcionam no raciocínio. Isso veio a ser denominado de o Problema de
Frege-Geach.

Philippa Foot (1994, 2002b) e outros salientaram que não é qualquer


atitude incondicional pró ou contra que poderia contar como uma atitude moral.
Os bebês, por exemplo, são capazes de expressar atitudes não qualificadas pró e,
especialmente, atitudes contra, antes de nos inclinarmos a dizer que eles adquiriram
conceitos morais. Além disso, ao traduzir a língua de outra cultura, nos veremos
confrontados com vários termos diferentes usados ​​para expressar desaprovação
incondicional. A menos que saibamos algo sobre o tipo de situações ou ações a
que esses diferentes termos estão ligados, não saberemos qual termo estrangeiro
traduzir como errado, em oposição à imprudente, indelicado, ilegal etc. Os
conceitos éticos são densos, isto é, eles possuem critérios descritivos definidos
de aplicação, bem como força normativa. Assim, eu lhe transmito informações
bem diferentes se elogio um amigo como corajoso em vez de consciencioso. Esses
critérios também dão estrutura ao raciocínio moral e à discussão, uma vez que
moldam os tipos de razões que podem ser dadas em nome de se fazer um certo
juízo moral. Não posso defender minha afirmação de que uma pessoa é justa e
corajosa ao dizer que ela é rica e influente, embora esses últimos traços possam
me fazer sentir uma atitude pró em relação a ela.

Por essas e outras razões, poucos filósofos contemporâneos acham que


o não cognitivismo poderia dar a melhor explicação do significado dos juízos
morais, e assim a maioria aceita o realismo do Passo 1 sobre a moralidade: os
juízos morais têm alguma medida de conteúdo cognitivo e são responsáveis​​
pelo comum: normas de raciocínio e justificação. De fato, até os descendentes
contemporâneos do emotivismo agora aceitam isso.

4.2 PASSO 2 – AO MENOS ALGUNS JUÍZOS MORAIS


ESCAPAM À FALSIDADE?
O cognitivismo pode ser uma condição necessária para o realismo moral,
mas está longe de ser suficiente, pois é compatível com o cognitivismo que
todas as afirmações morais afirmativas sejam falsas: nada é realmente bom ou
mau, e nenhum ato é realmente certo ou errado. Como isso poderia ser? Duas
possibilidades são mais salientes. Primeiro, pode haver uma contradição lógica
ou confusão conceitual no interior do pensamento moral que torne impossível
que os juízos morais sejam verdadeiros. Já vimos um exemplo disso ao discutir a
dificuldade de satisfazer em conjunto a C1-C5. J. L. Mackie (2000), por exemplo,
afirmou que qualquer valor moral putativo teria que ser “objetivo” (C2) e
cognitivo (C1), e possuir um “ser-buscado” categórico (C4 e C5). Simplesmente ao
reconhecer esse valor motivaria necessariamente o agente, quaisquer que fossem
seus desejos ou objetivos pessoais. Isso pareceu a Mackie algo impossivelmente

71
UNIDADE 1 | METAÉTICA

“bizzaro” (queer). Além disso, ele acrescentou, se houvesse tais valores, eles não
"impeliriam" os seres humanos a um consenso muito maior em moralidade?
Mackie adotou assim uma "teoria do erro" da moralidade.

A outra possibilidade saliente para o ceticismo é que a moralidade tem


algumas condições bem definidas de aplicabilidade, que, por questões de fato ou
necessidade metafísica, não são satisfeitas. Nietzsche achava que a moralidade
exigia a existência de um tipo de livre-arbítrio que nenhum ser natural, e
certamente nenhum humano, poderia ter. E alguns filósofos pensaram que, se
Deus não existe, então não existiria nem o certo nem o errado.

Poucos filósofos morais, no entanto, são tentados pelo ceticismo de


qualquer tipo. A maioria dos filósofos contemporâneos acredita que podemos
dar um relato da liberdade humana suficiente para sustentar atribuições de
responsabilidade moral e, além disso, acreditar que a moralidade não depende
de nenhuma maneira essencial da vontade ou sanção divina (veja no Tópico 2
desta unidade questões específicas sobre este tema). Além disso, os filósofos
dividem-se entre aqueles que pensam que os juízos morais estão sujeitos a noções
de exatidão ou afirmação que estão numa dimensão diferente da verdade ou da
falsidade – portanto, a fortiori, juízos morais não podem ser sistematicamente
falsos – e aqueles que argumentam que, sob uma interpretação que satisfaça o
suficientemente as características de C1 a C5, pelo menos alguns juízos morais são
verdadeiros. Quanto seria o satisfazer suficientemente? Aqui está uma possível
resposta. Mesmo se pensarmos que as características C1 à C5 capturam algo
essencial da moralidade, ainda assim, estamos muito mais confiantes de que trair
um amigo ou torturar por prazer é errado do que estamos confiantes nos detalhes
de das cinco características. De fato, tão logo Mackie abandonou a moralidade
como errônea, começou a recomendar um sistema de normas notavelmente
semelhante à moralidade básica, que ele considerava essencial para nosso bem-
estar coletivo. Por que essa moralidade não está sob outro nome? Poderíamos
ver Mackie como um instrumentista eliminativista da moralidade: deveríamos
dispensar as noções morais tradicionais e objetivistas como errôneas e aceitar
com franqueza um substituto mais subjetivista.

A maioria diria, no entanto, que o erro não está na moralidade, mas em


uma interpretação exagerada das cinco características (C1-C5) – essas condições
podem ser satisfeitas o suficiente para evitar preocupações eliminativistas. Mas,
como? Normalmente, uma das três abordagens a seguir é adotada.

A primeira é aquela adotada pelos internalistas do juízo motivacional. Estes


tomam a principal característica distintiva do juízo moral como sua “praticalidade”
(C5) – uma conexão necessária, conceitual (“interna”) entre julgar e estar motivado
a agir de acordo. Esses internalistas se dividem em vários grupos.

Os expressivistas contemporâneos, como Allan Gibbard (1990, 2003)


e Simon Blackburn (1993, 1998), retomaram o ponto em que os emotivistas,
os primeiros expressivistas, pararam. Como os emotivistas, os expressivistas

72
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA MORALIDADE

contemporâneos dão uma explicação não representacional ou não descritivista


da linguagem moral. Eles abordam o significado indiretamente, através da
pergunta: "Que tipo de estado psicológico é expresso no juízo moral sincero?"
Para os emotivistas, esse estado mental é não cognitivo, um sentimento. Para os
expressivistas contemporâneos, pelo contrário, o estado tem conteúdo cognitivo,
bem como força motriz.

Allan Gibbard (1990) propôs as atitudes de endossar uma norma ou aceitar


um plano (expressivismo de normas). Tais estados mentais não são crenças, mas
eles apoiam “lógicas” de permissão e proibição, inclusão e exclusão, que exibem
um número de paralelos com a lógica proposicional ordinária e, pelo menos
parcialmente, abordam o Problema de Frege-Geach. Gibbard, por exemplo,
argumentou mais recentemente que um juízo, "Roubar é sempre errado",
expressa a aceitação de um plano. Em todas as circunstâncias, evite roubar.
Suponha que aceitemos esse plano. Então, de fato, damo-nos um imperativo
categórico (C4). É de âmbito universal porque, no raciocínio moral, perguntamo-
nos (“planejamos”) o que faríamos se fossemos o outro em sua circunstância,
assim como em nossa própria circunstância. Suponhamos que reflitamos “O
que eu faria nas circunstâncias de Robin Hood?” E percebemos que emitimos
juízos que o que ele fez foi o que deveria ser feito. Assim, aceitamos o plano:
Nas circunstâncias de Robin Hood, roube exatamente como ele. Todavia, agora
estamos presos em uma solução mental que simula modus tollens – devemos ou
desistir de nosso ponto de partida, o plano geral de nunca roubar, ou mudar
nossa opinião sobre o juízo específico de Robin. Este modelo explica padrões
de inferência (C1) e desacordo intra e interpessoal (C2) por apelar à inclusão ou
exclusão mútua de planos, sem apelar para a verdade. Além disso, ao contrário
das meras crenças, os planos têm implicação prática (C5) – parte do que é aceitar
um plano é ter alguma tendência a realizá-lo ou sentir-se em desacordo consigo
mesmo se não o fizer.

Esse tipo de explicação expressivista pode apreender plenamente a


lógica e o significado objetivo do pensamento moral? Até agora, nenhuma
solução expressivista completa existe para o Problema de Frege-Geach e outras
dificuldades em apreender toda a lógica e semântica do discurso cognitivo
(SCHROEDER, 2008), mas talvez nós começamos a ver como o expressivismo
pode chegar perto o suficiente para assumir-se como, ao menos, moderadamente
revisionista.

Outros internalistas do juízo motivacional, como John McDowell (1985) e


David Wiggins (1998), tomam o rumo oposto dos expressivistas e argumentam
que os juízos morais expressam crenças proposicionais. Todavia, essas são crenças
com um tipo especial de conteúdo dependente de resposta, de forma que elas
estão ligadas de maneira necessária à motivação (C5). Considere um paralelo.
Uma pessoa com sagacidade está viva para as ironias da vida, e para ela existe
uma conexão “interna” entre reconhecer o humor em uma situação (um estado
cognitivo) e se divertir/entreter por ela (um estado afetivo, com força motriz). De
fato, estes parecem não ser dois estados, mas dois aspectos do mesmo estado, a

73
UNIDADE 1 | METAÉTICA

saber, “perceber” o humor, “entendê-lo”.

Para explicar isso, não há necessidade de postular fatos bizarros (queer) de


“estar-entretido” – um senso de humor e uma mente alerta aos fatos ordinários
seriam suficientes. Além disso, dentro de uma cultura, as sensibilidades do humor
humano se sobrepõem suficientemente para possibilitar “comunidades de juízos”
fundamentadas em formas familiares e práticas de humor compartilhado – ironia,
sarcasmo, piadas, comédia etc. – que desempenham um papel básico em nossas
vidas cotidianas. Podemos descrever essa comunidade como centrada em uma
propriedade dependente de resposta – aquela que as pessoas de com sagacidade
humana real acham divertido – da mesma maneira que nossa linguagem comum
de cor está centrada nas sensibilidades de cores compartilhadas do sistema visual
humano. Nem os juízos de humor nem os de cor serão meramente “subjetivos”.
Alguém não se pode simplesmente declarar-se uma autoridade sobre o que
é engraçado ou o que é vermelho – tal autoridade deve ser conquistada ao
demonstrar excelência em sagacidade ou discriminação de cor.

Agora, considere o conceito de uma necessidade e uma virtude moral


como a bondade. Uma pessoa bondosa tem uma maneira distinta de ver o mundo,
uma sensibilidade que a sintoniza não apenas com os sentimentos dos outros,
mas também com suas necessidades. Ela pode, em uma resposta unificada a
uma situação, perceber que alguém está em necessidade (com fome, com frio,
desanimado, enlutado) e sentir-se motivado a ajudá-lo – não é necessário
nenhum desejo ou objetivo adicional (C4). Não há nada de misterioso aqui,
nenhum fato de “ter-de-ser-feito”, apenas reações de um tipo com o qual estamos
todos familiarizados. Na medida em que possuímos bondade, vemos casos de
necessidade que chamam por uma certa resposta – um fato que existe no plano
humano, tão óbvio quanto o humor e tão objetivo quanto a cor. Seria isso objetivo
o suficiente para apreender o significado objetivo pleno da moralidade (C2)?

Vamos considerar uma preocupação sobre isso, a seguir. No entanto, se


entendermos os conceitos morais como dependentes de resposta dessa maneira
e as comunidades morais construídas sobre tais sensibilidades compartilhadas,
o resultado é um desafio às restrições neo-humanas sobre “direção de ajuste” –
sem dúvida, a cognição (C1) e a motivação (C5) podem fundir-se dentro do juízo
moral de uma maneira que pode ser chamada de ver as coisas propriamente.

A segunda abordagem é adotada pelos externalistas do juízo motivacional.


Esses também buscam capturar a forma cognitiva (C1) e o significado objetivo
(C2), mostrando que afirmações morais expressam proposições genuínas, mas
argumentam que o elo entre o juízo moral e a motivação é mais psicológico do
que conceitual. As pessoas normalmente têm uma forte motivação para agir bem
e serem vistas como agindo bem. Há uma forte pressão interna, ou necessidade
sentida, de nos vermos sob uma boa luz, e sermos consistente em pensamento
e ação. A autoimagem positiva que psiquicamente subscreve essa ligação entre
juízo e ação pode, no entanto, romper-se – por exemplo, na depressão crônica.
Quando isso acontece, um indivíduo pode achar que pensar que ele deveria fazer

74
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA MORALIDADE

algo não evoca impulso algum para a ação. Será que essa pessoa se tornou amoral
ou perdeu sua compreensão da linguagem moral? Ou ela é simplesmente uma
vítima do achatamento de afeto e da perda de motivação?

O externalista sustenta que os internalistas motivacionais confundiram


a conexão conceitual entre o juízo moral e a força normativa com uma conexão
com a força motiva. O indivíduo deprimido que julga seu comportamento
autodestrutivo errado pode não ter motivação para superá-lo, mas certamente
concordará que ele deveria estar motivado assim, que há razões para mudar.
Portanto, estariam então os externalistas comprometidos com razões como fatos
"intrinsecamente normativos", acima e além dos fatos ordinários? Eles se dividem
nesse ponto, grosso modo, em naturalistas e não naturalistas.

Os externalistas motivacionais naturalistas tentam mostrar como razões


e valores podem ser fatos ordinários, assegurando assim a C1 e a C2 diretamente.
Duas estratégias predominam. Naturalistas não analíticos, como Richard
Boyd (1988) e Peter Railton (1986), distinguem conceitos normativos de fatos e
propriedades normativas. Eles aceitam a longa tradição de argumentos, desde o
argumento de Hume sobre o “é” e o “deve” ao argumento do teste da “questão
em aberto” de Moore (1999), mostrando que conceitos normativos e naturais
são categoricamente distintos. Todavia, argumentam eles, isso não requer a
postulação de fatos e propriedades normativas irredutíveis – pois esses conceitos
normativos podem funcionar para representar fatos ou propriedades naturais
de uma maneira especial, em vez de se referirem a um domínio separado de
fatos ou propriedades. A dor debilitante, por exemplo, é um estado psicológico
intrinsecamente aversivo, portanto, é tanto algo ruim para a pessoa que a
experimenta e algo que ela tem motivos para evitar. Essa maldade ou atribuição
de razão não é um fato adicional – é constituída pela própria natureza de tal
dor, propiciando uma explicação direta da superveniência (C3). A linguagem
normativa tem o distintivo “trabalho” de apresentar a aversão natural da dor
como má, um “modo de apresentação” que pode entrar diretamente na avaliação,
deliberação e escolha (C5). Railton (1993), por exemplo, oferece uma explicação
do significado dos conceitos morais ao longo destas linhas de raciocínio.

DICAS

O Argumento da Questão em Aberto de George Edward Moore (1873-1958)


pretende mostrar que qualquer que seja a definição que se dê ao predicado “bom”, é sempre
possível perguntar se um ato que possui as propriedades oferecidas pela definição é realmente
bom, sem que a pergunta seja sem sentido ou despropositada. O objetivo do Argumento da
Questão em Aberto (AQA), portanto, é demonstrar que as definições naturalistas de “bem” têm
de estar sempre erradas. Para aprofundar mais sobre este argumento, as objeções ao mesmo
e as réplicas a estas objeções, leia o artigo Moore e os intuicionistas contra o naturalismo de
Matheus Martins Silva (2006), disponível em: <https://criticanarede.com/eti_aqa.html>.

75
UNIDADE 1 | METAÉTICA

Por exemplo, os procedimentos médicos diferem em sua intensidade de dor,


duração, eficácia e assim por diante. Precisamos de uma maneira de representar
esses vários recursos que permitem pesá-los uns contra os outros. A linguagem
de valor ou razões permite exatamente isso – não porque essas características
diferentes compartilhem alguma propriedade não natural uniforme, mas porque
cada uma à sua maneira é uma razão, ou um dano ou um benefício de uma
certa força, ligada à motivação (C5) através da psicologia e não da semântica. Os
naturalistas não analíticos tipicamente fornecem uma caracterização funcional
das propriedades normativas – por exemplo, a bondade como uma questão
de conduzir a vidas consideradas intrinsecamente gratificantes, a justiça como
uma questão de práticas que conduzem a relações sociais que promovem vidas
intrinsecamente gratificantes – e argumentam que fatos sobre o que satisfaria ou
não essas funções podem ser objetivos (C2) e conhecidos através da experiência,
história e ciências naturais e sociais. O que é chamado de "intuição moral" pode
ser o resultado de milênios de experiência humana, não uma visão especial,
extraempírica, de uma ordem moral a priori. Além disso, nossas intuições morais
continuam a ser moldadas pela experiência e pelo crescimento do conhecimento
– testemunhamos mudanças fundamentais nas intuições sobre a justiça da
escravidão, a subjugação das mulheres e o tratamento dos animais.

Naturalistas analíticos, como Frank Jackson (1998) e Michael Smith


(1994) podem concordar muito com o programa naturalista não analítico, mas
acreditam que uma estratégia semelhante pode produzir um resultado ainda mais
forte: definições naturalistas definitivas de conceitos normativos. Baseando-se
em uma técnica desenvolvida por funcionalistas analíticos na filosofia da mente,
naturalistas analíticos da moralidade começam com nossas teorias normativas em
curso sobre o que é certo ou bom, e então idealizam a forma que a teoria normativa
tomará quando estiver plenamente desenvolvida e idealmente justificada.

Essa teoria ideal pode ser vista como estabelecendo papéis funcionais
complexos ou descrições de funções para conceitos morais fundamentais. Como
a superveniência do normativo sobre o não-normativo (C3) é a priori, sabemos
de antemão que, a menos que o niilismo seja verdadeiro, haverá algumas
propriedades naturais possivelmente complexas que satisfaçam essas descrições
de trabalho. Essas complexas propriedades naturais serão, necessariamente,
coextensivas aos conceitos normativos correspondentes, e assim permitirão
definir esses conceitos. Tais definições, provavelmente, seriam funcionais, e longe
de serem óbvias – as complexas propriedades naturais envolvidas poderiam
carecer de qualquer unidade explicativa do tipo que os naturalistas não-analíticos
buscam. Todavia, essas definições pelo menos estabelecem que não precisamos
nos comprometer com nenhuma extravagância metafísica por meio do uso de
conceitos normativos, e que as verdades normativas podem ter uma base natural
objetiva (C1-C2). Como essas definições funcionais são geradas a partir da teoria
normativa ideal, uma resposta imediata está disponível para a questão de saber
se temos razão para pensar que o que satisfaz essas funções teria implicação
normativa (C5). Na medida em que poderíamos responder a essa pergunta
definitivamente, afirmaríamos que sim.

76
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA MORALIDADE

Os externalistas motivacionais não naturalístas não compartilham


do senso naturalista de que propriedades não naturais, intuídas a priori, são
duvidosas. Eles argumentam que muito do nosso conhecimento mais firme
é "não natural" e conhecido por meios a priori, por exemplo, a matemática, a
geometria e a lógica. Além disso, como as alegações da matemática, verdades
morais fundamentais têm um ar de necessidade sobre elas mesmas. Pode haver
mundos possíveis nos quais a antigravidade existe, ou onde as pessoas crescem
a partir de sementes, mas existe um mundo possível em que a dor debilitante é,
em si mesma, o que é o viver bem? Ou em que impor grande sofrimento a muitos
para proporcionar ligeiro benefício a poucos privilegiados é, em si mesmo, um
paradigma de agir justamente? Tais coisas são manifestamente impossíveis,
argumentam os não-naturalistas, e podemos saber disso sem precisar fazer
experimentos ou aguardar o veredicto da história. Além disso, esse conhecimento
não é apenas tautológico ou "analítico", pois tem implicações sobre como viver
ou agir. Reconhecer tais verdades óbvias é exatamente o que é ter uma “intuição
racional a priori sintética” – então a ideia não é tão misteriosa, afinal de contas. O
cognitivismo (C1) e o significado objetivo (C2) estão assim palpáveis.

Os intuicionistas podem apontar que todos os sistemas de pensamento


racional devem confiar em algo como a intuição em algum momento. As crenças
factuais comuns podem parecer baseadas apenas na experiência e no raciocínio,
não na “intuição”, mas considerem os princípios básicos nos quais confiamos ao
fazer inferências ou aprender com a experiência. Não podemos, sem circularidade,
apelar à inferência ou experiência para justificá-las. Em vez disso, afirmamos que
as regras fundamentais da lógica ou princípios de indução são "autoevidentes".
Podemos exemplificar com uma eliminação da conjunção, em que "p & q implica
p" e "Se alguém tem razão para acreditar que p & q, também tem razão pro tanto
para acreditar que p." E é justamente esse tipo de evidência que o não naturalista
está reivindicando para as verdades morais fundamentais.

Historicamente, alguns intuicionistas, como Henry Sidgwick, achavam


que as intuições das verdades morais sempre eram “acompanhadas por um certo
impulso para realizar os atos reconhecidos como certos” e, portanto, poderiam
aceitar uma forma de internalismo do juízo motivacional (MULGAN, 2012). Isso,
no entanto, estraga a analogia com a lógica ou as normas de inferência, uma vez
que envolve não apenas o reconhecimento de um fato, mas a motivação necessária
de sua parte. A maioria dos não naturalistas modernos, como Derek Parfit (2006),
e T. M. Scanlon (1998), rejeita esta tese motivacional, e aponta, como observamos
acima, que o que é necessário é uma conexão entre juízo moral e reconhecimento
de razões para agir, não um impulso motivacional. Tudo o que eles precisam
mostrar é que podemos intuir fatos que constituem razões para agir (C5). E, como
o exemplo acima da “eliminação da conjunção” na inferência mostra, as razões
podem ser exatamente o tipo de coisa que a intuição a priori pode fornecer.

A terceira abordagem é aquela adotada pelos kantianos. Os kantianos


buscam um caminho diferente para as verdades morais sintéticas a priori,
através da noção de razão prática, ou seja, raciocínio a respeito da ação. Para

77
UNIDADE 1 | METAÉTICA

eles, a questão sobre se a moralidade é o tudo aquilo que supomos que seja, é se
existem razões práticas categóricas (C4), razões para agir que comprometeria em
obrigação a todos os seres racionais como tais, independentemente de qualquer
variação contingente na motivação ou objetivo (C5). Os adeptos desta abordagem
tomam a perspectiva do agente deliberativo, e argumentam que tal agente deve
se considerar livre no sentido especial de ser regulado por escolha, em vez de
meras causas, e essa escolha só é inteligível como tal, se for baseada em razões.
No entanto, as razões, por sua natureza, são gerais, de um tipo reconhecível por
qualquer ser racional. O resultado é que agir por uma razão é agir como se fosse um
princípio universal, ou seja, um princípio que se compromete obrigatoriamente
a todos os seres racionais. Aqui, então, encontramos o “imperativo categórico”
que está na base da moralidade: devemos agir apenas com base nas máximas
que poderiam, ao mesmo tempo, ser leis universais. Tudo isso é considerado
inevitável da perspectiva deliberativa, proporcionando uma concepção mais
prática do que metafísica da objetividade do juízo moral (C2). Como resultado,
os kantianos contemporâneos tipicamente rejeitam o rótulo de "realista moral" e
preferem falar de si mesmos como construtivistas, por exemplo, Rawls (1980) e
Korsgaard (1996). Embora insistam que existem fatos genuínos sobre o que é certo
ou errado (C1), estes são "fatos da razão" surgindo dentro e através do exercício
da agência, não existindo independentemente fatos naturais ou não naturais que
determinem como a agência deve ser exercida.

4.3 PASSO 3 – A LINGUAGEM MORAL ESTÁ SENDO


INTERPRETADA LITERALMENTE?
Até agora, as interpretações que discutimos foram destinadas a apreender
o suficiente das características C1 à C5 para evitar o ceticismo. Todavia, isso é
uma tarefa difícil. Podemos esperar que qualquer parte da linguagem natural,
normativa ou não-normativa, reflita uma história contenciosa que e seja complexa
demais para encaixar-se perfeitamente em uma explicação. Nossa discussão
anterior sobre o instrumentalismo eliminativo sugere uma possibilidade. Por
que não um instrumentalismo sem a eliminação? Isto é, por que não tomar uma
proposta dos kantianos e colocar ênfase normativa primária na função prática
da moralidade, seu papel de orientação da ação (C5), mas então mostrar que
isso pode ser alcançado sem precisar tomar o discurso moral literalmente? Se
isso fosse possível, então o resultado seria que podemos continuar a pensar e
agir como se as características C1-C5 se sustentassem, sem nos preocupar que
a moralidade possa ser um grande erro se essas condições não puderem ser
satisfeitas literalmente. Afinal, se a moralidade é essencial para o florescimento
humano, devemos descartá-la em um excesso de purismo metateórico?

Essa linha de pensamento sugere a vertente do irrealismo conhecida como


ficcionalismo moral. Os ficcionalistas admitem que as alegações morais podem ser
falsas, se interpretadas literalmente, mas sugerem que a interpretação literal é
irrelevante. Considere uma ficção real, digamos, As aventuras de Huckleberry Finn,

78
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA MORALIDADE

de Mark Twain (2011). Entrar numa ficção não é pensar que vale tudo, mas entrar
no mundo da ficção, dentro do qual existem muitos fatos, e a verdade e a falsidade
funcionam praticamente como costumeiramente, por exemplo, é verdade que
Huck Finn é um menino e, portanto, não uma menina, e que Pap Finn é um
homem cruel e, portanto, não é um pai modelo.

Pode ser objetado: não há nenhum menino ou pai de verdade, nenhum


abuso real, então nenhuma dessas coisas pode ser verdadeira. No entanto, essa
mentalidade literal é simplesmente obtusa. O que importa para entender um
romance é o que é fictício, ou verdadeiro no interior do mundo do romance. Tratar a
moralidade ficcionalmente seria tratar a nós mesmos como coabitando – encenando
coletivamente em pensamento, palavras e ações – um mundo moral, onde há fatos
de certo e errado com força orientadora de ação categórica. O ficcionalismo é uma
opção atraente em qualquer domínio cujos conceitos e princípios são úteis, ou
mesmo indispensáveis, mas onde compromissos metafísicos parecem estar além
do ponto em debate, ou por serem tão incompreensíveis poderiam estar além
de qualquer debate (considere o debate sobre o livre arbítrio como causação do
agente). No entanto, embora possa ser verdadeiro que a metafísica está além do
ponto para muitas preocupações morais, é difícil acreditar que nossas convicções
morais não sofreriam, essencialmente, nenhuma mudança ​​se passássemos a
pensar que a liberdade, a responsabilidade, o benefício, o dano e a justiça são
apenas uma ficção compartilhada e nada real. Além disso, se as características
C1-C5 envolvem incoerências, então não teremos nenhum progresso real se
aderíssemos ao ficcionismo, já que para agir como se as características C1-C5
fossem verdadeiras teríamos que encenar um mundo incoerente.

Finalmente, o ficcionalismo sobre o normativo pode trazer incoerências


próprias. O que significaria dizer que deveríamos manter discursos de valor e
razões para agir como ficções úteis? "Útil" soa como uma afirmação sobre o valor,
e "dever manter" soa como alegando a existência de uma razão para agir. Pode o
ficcionalismo sobre o normativo engolir seu próprio rabo e não sufocar?

Para permanecer no caminho do realismo, como argumentamos, a


interpretação da moralidade deve ser literal, ou próxima o suficiente – não mais
do que moderadamente revisionista. O que isso significa, é claro, é uma fonte de
debate interminável. Expressivistas veem o internalismo do juízo motivacional
como a essência dos conceitos normativos, e assim enxergam os externalistas do
juízo motivacional como revisionistas imoderados em relação a característica C5.
Alguns externalistas do juízo motivacional retornam o favor e veem os internalistas
do juízo motivacional como revisando de forma desordenada a característica C5,
substituindo as razões objetivas para agir com as tendências motivacionais do
falante. Entre os externalistas, os não naturalistas tendem a ver os naturalistas
como revisando imoderamente o pensamento moral, dispensando a ideia de
fatos morais irredutíveis, intrinsecamente normativos. E assim por diante.

Tais debates sobre o revisionismo ocorrem em todas as áreas da reflexão


filosófica de ordem superior – epistemologia, semântica, filosofia da mente etc. –

79
UNIDADE 1 | METAÉTICA

e isso de modo apropriado. Toda tentativa de introduzir clareza e coerência no


pensamento humano vivo envolverá alguma limpeza, e decidir quanto é demais
é uma questão de pesar custos e benefícios.

A seguir, vamos supor que todas as principais tendências interpretativas


que se apresentam como não-revisionistas, ou apenas modestamente revisionistas,
podem, razoavelmente, fazer essa reivindicação e, portanto, enquadrar-se como
realismos do Passo 3. Vejamos a vivacidade do debate atual como evidência.

4.4 PASSO 4 – AS CONDIÇÕES DE VERDADE DAS


AFIRMAÇÕES MORAIS SÃO INDEPENDENTES DO SUJEITO?
Muitos filósofos consideram a objetividade (C2) a questão central nas
discussões sobre o realismo moral. Como vimos, a "objetividade" tem múltiplos
sentidos, mas eles compartilham uma ideia básica, independência do sujeito. No
sentido metafísico, a objetividade é uma questão de existência que é independente
de experiência e de opinião. No sentido epistêmico, a objetividade é uma questão
de crenças ou métodos que são livres de, ou tendem a reduzir, a influência de
perspectivas ou interesses subjetivos. E, no sentido prático, a objetividade é
uma questão de requisitos ou razões para agir que se aplicam a todos os agentes
racionais da mesma forma, independentemente, de qualquer variação de sujeito
a sujeito no ponto de vista ou nos objetivos. E quanto ao senso moral? Nas visões
kantianas, a objetividade da moralidade é justamente a objetividade prática.
Todavia, em outros discursos da moralidade, a resposta é menos direta. Afinal, a
moralidade tem a ver com sujeitos, isto é, seres capazes de experiência ou agência,
de modo que nenhuma exclusão geral de fatos sobre os sujeitos poderia estar
certa. Em vez disso, o que torna uma determinada interpretação do discurso moral
objetiva ou subjetiva é como os fatos sobre os sujeitos e suas visões ou pontos de
vista entram no significado ou nas condições de verdade das afirmações morais.

Os subjetivistas morais sustentam que os juízos morais funcionam mais


como juízos de legalidade – eles contêm uma referência (usualmente implícita)
às normas da comunidade relevante. Dentro de uma determinada comunidade,
haverá fatos sobre o que é legal ou ilegal, e o que é certo ou errado. Esses fatos
dependerão do que as leis e os tribunais da comunidade, ou os princípios e práticas
morais compartilhados, permitem ou proíbem. À parte de todas as comunidades,
a pergunta: “O que é exigido legalmente?” Ou “O que é moralmente correto?”
Simplesmente não tem resposta. Os subjetivistas morais diferem em relação a
como a comunidade moral relevante é determinada, e quão homogênea ou ampla
ela deve ser – poderia, por exemplo, haver uma comunidade de uma só pessoa? –
mas eles compartilham a ideia de que a dependência das normas da comunidade é
construída no significado dos juízos morais, quando interpretados corretamente.

Como resultado, os subjetivistas têm dificuldade em explicar uma


manifestação-chave de significado objetivo (C2), a saber, a existência de

80
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA MORALIDADE

discordância moral e crítica entre as diferenças nas comunidades morais.


Quando os defensores dos direitos humanos declaram que “Torturar as pessoas
por suas opiniões é errado”, eles se propõem a fazer uma reivindicação que se
aplica igualmente a todas as sociedades, incluindo, em particular, aquelas que
não aceitam essa norma. De fato, parece ser o ofício peculiar da linguagem/
discurso moral, por exemplo, o discurso dos direitos humanos, em oposição ao
discurso jurídico ou ao discurso do costume, permitir a expressão e a aplicação de
afirmações normativas que se aplicam a diferentes culturas e ao longo do tempo.
Embora bastante diferente do subjetivismo, o expressivismo pode enfrentar uma
dificuldade similar em lidar com divergências morais fundamentais, já que a
“procuração” expressivista para um assunto compartilhado no juízo moral é uma
sobreposição de atitudes – por exemplo, nas normas ou planos fundamentais aceitos
pelos indivíduos – o que fornece base comum suficiente entre os indivíduos para
dar aos seus pronunciamentos morais uma relevância normativa um para o
outro. Sem essa sobreposição e considerações estratégicas à parte, não está claro
qual autoridade ou aplicabilidade os pronunciamentos morais de um indivíduo
poderiam ter para outros.

O “subjetivismo sensível” de David Wiggins (1998) procura remediar o


tipo de dependência de opinião ou relativismo social que aflige os subjetivismos
mais antigos, fixando rigidamente o significado dos termos morais num índice
não variável: as respostas das sensibilidades morais reais. Se nossa sensibilidade
ou cultura mudar, isso não alteraria o que é certo ou errado, assim como as cores
dos objetos não mudariam se nossos sistemas visuais ou convenções de nomeação
de cores mudassem. No entanto, a incapacidade de apreender certas formas
potencialmente importantes de crítica ou desacordo permanece. Duas culturas
com diferentes sensibilidades fundamentais terminarão tipicamente falando dois
discursos moralizantes diferentes, cada um ancorado em um conjunto diferente
de respostas reais canônicas – assim como marcianos e humanos, se possuírem
diferentes sistemas perceptivos com diferentes respostas normais canônicas,
acabariam com conceitos de cores diferentes. Se alguém perguntasse se os
conceitos terráqueos ou marcianos distinguiam as cores reais – “Qual grupo faz as
coisas certas?” – a única coisa a dizer é que essa não é uma questão sensata. Nada
de objetivo está em jogo e, em qualquer caso, nem o discurso da cor é uma opção
ao real para o outro. Algo semelhante parece ocorrer no caso de perguntarmos:
entre duas culturas com sensibilidades fundamentalmente diferentes, qual delas
tem a concepção correta de uma vida boa ou virtuosa – “qual delas acerta as coisas
no campo da moral?”. Um modo de vida baseado em uma sensibilidade que não
podemos acessar nem compreender não é uma opção real para nós, nem poderia
representar um desafio genuíno à autoridade de nossas próprias respostas.

Essa resposta, no entanto, parece muito menos convincente no caso


moral, pois algo objetivo parece estar em jogo. Talvez uma população dominada
por uma ética de guerra xenofóbica e um código de honra masculino não possa
acessar ou compreender facilmente a sensibilidade de uma população moderna
dominada por normas universais, mais pacíficas, benevolentes, neutras em termos
de gênero, e vice-versa. Todavia, a história testemunhou a transição gradual da

81
UNIDADE 1 | METAÉTICA

primeira para a segunda em numerosos lugares, portanto uma opção pode existir
apesar das dificuldades de compreensão mútua, e seria difícil dizer que nada de
objetivo foi obtido, ou que normas menos xenófobas e mais de neutras referente
ao gênero não estão mais perto de acertar as coisas sobre o significado moral de
nossos companheiros humanos. Além disso, refletindo sobre tais exemplos de
melhoria histórica dramática, podemos perguntar, de maneira significativa, se
nossas próprias sensibilidades morais reais também podem precisar de mudanças
dramáticas. As sensibilidades reais, então, não parecem desempenhar o papel de
fixar nossos conceitos morais que “subjetivistas sensíveis” imaginam.

Recentemente, despertou-se o interesse em formas de relativismo moral


que oferecem uma maneira um tanto diferente de dizer não no Passo 4. Por
muitos anos, o relativismo moral foi descartado como incoerente, já que parece
fazer afirmações universais sobre o que é certo ou errado – por exemplo, que
em qualquer sociedade S, o que as normas e os costumes de S aprovam está
certo – enquanto, ao mesmo tempo, nega que tais declarações sejam capazes
de verdade ou falsidade. Essa rápida refutação dependia, no entanto, de ver o
relativista como emitindo juízos normativos em vez de avançando uma posição
metaética. Assim, os filósofos contemporâneos, impressionados com o fenômeno
da diversidade moral aparentemente intratável e com a dificuldade de identificar
"razões objetivas", procuraram formular um relativismo metaético coerente.

Conscientes das falhas do subjetivismo, alguns "novos relativistas"


rejeitam a ideia de que há um elemento dependente da cultura no significado
dos conceitos morais, e localizam a conexão com normas culturais nas condições
de verdade dos juízos morais (HARMAN, 1996). De acordo com tais visões,
a afirmação “queimar hereges é errado” em si não faz referência a nenhum
grupo particular de sujeitos ou conjunto de normas, e assim significa a mesma
coisa se pronunciado na Espanha do século XXI ou em Castela do século XIII.
No entanto, o relativismo entra na identificação do quadro de referência com
o qual se avalia a verdade ou a falsidade de determinados juízos morais – por
exemplo, padrões morais modernos versus medievais. Por analogia, considere a
alegação "X está em movimento". Isso tem um significado definido e constante,
independentemente, da escolha do referencial, mesmo que quais corpos estejam
em movimento ou em repouso possa depender de qual sistema de coordenadas
se está fixando. No caso do movimento, argumentam os relativistas, aprendemos
a aceitar a ideia de que nenhum sistema de coordenadas desse tipo é privilegiado,
ou "objetivamente inquestionável" – de modo que simplesmente não há fatos
sobre "movimento absoluto". Eles querem que aprendamos a mesma lição sobre
moralidade. Se alguém perguntar: "Bem, quem está certo sobre a possibilidade de
queimar hereges, europeus medievais ou modernos?", não deveríamos esperar
uma resposta absoluta, objetiva e independente de enquadres do que se alguém
perguntasse: "Bem, o sol está em movimento ou em repouso?”. Esse tipo de
relativista não precisa negar o significado objetivo dos juízos morais ordinários
(C2), mas ele alegará que não há nada na realidade que responda a isso além da
verdade relativa a um padrão. E nenhum padrão é, em si mesmo, objetivamente,
privilegiado ou absoluto. O resultado é, na melhor das hipóteses, um "realismo

82
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA MORALIDADE

relativo", que, segundo eles, é suficiente para apreender toda a "objetividade"


realmente encontrada na prática moral.

Como uma reivindicação sobre o real significado de nossos termos morais,


o relativismo moral parece ser falso ou radicalmente revisionista. Como uma
reivindicação sobre a verdade moral, parece estar em conflito com o significado
objetivo da moralidade. Todavia, como uma reivindicação sobre como a
moralidade funciona na prática – a saber, que as pessoas tendem a encaminhar
questões morais para suas próprias atitudes ou aquelas que prevalecem em
sua sociedade – pode ter mais plausibilidade. Mesmo assim, essa observação
sociopsicológica tem menos força do que parece à primeira vista. Afinal, no
mesmo sentido, as pessoas tendem a referir todos os seus juízos, incluindo os
juízos factuais ordinários, às suas próprias atitudes ou àquelas predominantes
em seu “grupo de referência”. De fato, muitos desacordos factuais fundamentais
entre indivíduos e culturas também parecem bastante intratáveis, e podemos
nos encontrar incapazes de identificar “razões epistêmicas objetivas” que não
apresentem raciocínio circular. Se quisermos nos deixar levar por fatos sobre
diversidade e intratabilidade para ingressar no relativismo moral, é difícil
entender por que pararíamos por aí.

Os cognitivistas naturalistas e não naturalistas rejeitam caracteristicamente


o relativismo moral e factual, e fornecem uma explicação do conteúdo dos juízos
morais e dos juízos factuais em termos de proposições ou representações com
condições de verdade clássicas, não relativizadas ao falante ou à cultura (cabe
aqui a ressalva feita por Horgan e Timmons (1991), em seu Argumento da Terra
Gêmea, de que alguns naturalistas podem acabar como relativistas de “mundos
cruzados”). Nas últimas duas décadas, entretanto, um modo alternativo e não
clássico de pensar a verdade dos juízos morais começou a afetar os debates sobre
o realismo. De acordo com uma concepção minimalista da verdade (HORWICH,
1998), afirmar que uma teoria – factual ou moral – é verdadeira é apenas dizer
que tudo o que a teoria diz é verdadeiro, e que, dado o esquema de Tarski – “p”
é verdadeiro se e somente se “p” – é apenas asserir a própria teoria. O predicado
da verdade não corresponde a uma relação “palavra/mundo” ou requer uma
explicação substantiva de “proposições”, “representação”, “referência” ou
“condições de verdade”. Em vez disso, é simplesmente um dispositivo linguístico
que nos dá uma regra para alternar entre um discurso de primeira ordem, sobre
repolhos e reis, para um discurso de segunda ordem, sobre sentenças relativas a
repolhos e reis. Caso contrário, falar da verdade acrescenta nenhum conteúdo e
assume nenhuma metafísica.

DICAS

Para compreender melhor o Argumento da Terra Gêmea aplicada à moral, de


Terence Horgan e Mark Timmons (1991), leia o artigo O Ataque de Moore ao Naturalismo
Ético, de Luís Veríssimo (2015), disponível em: <http://ojs.letras.up.pt/index.php/filosofia/article/
view/1052/1292>.

83
UNIDADE 1 | METAÉTICA

O minimalismo permitiu que os expressivistas reclamassem a verdade


para si mesmos. Suponha que eu julgue que a tortura é sempre inadmissível. De
acordo com o expressivista, isso é uma expressão da minha atitude de aceitar uma
norma ou plano que exclui a tortura em todas as situações, por qualquer pessoa e
por qualquer motivo. Segundo o minimalista, uma vez que julgo que a tortura é
sempre inadmissível, nada mais é necessário para eu dizer que “a tortura é sempre
inadmissível” é verdadeiro. Eu não preciso lhe fornecer uma teoria metafísica
explicando que tipo de "fato" ou "verdade" isso é, ou me preocupar que eu tenha
apenas explicado o que é julgar isso, e não fornecido suas "condições de verdade".
Verdadeiro é verdadeiro – isso não significa muito mais do que um dispositivo
para citação e descitação. De fato, uma vez que vemos como isso é feito, podemos
ver como os minimalistas podem aceitar a noção de fato também: dizer que “é um
fato que p” é apenas dizer que “p” é verdadeiro, que por sua vez é só dizer que
“p”. Assim, enquanto o expressivista estiver preparado para julgar que a tortura é
sempre inadmissível, ele teria todo o direito de insistir que isso é um "fato moral".

Pressupondo que as preocupações com o Problema de Frege-Geach e


outras preocupações sintáticas e semânticas enfrentadas pelo expressivismo
possam ser atendidas, esse tipo de expressivismo é uma nova forma de realismo
moral? Sim, mas que precisamos distinguir de formas anteriores de realismo
que assumiam a verdade como sendo uma relação substantiva da palavra com o
mundo e, portanto, preocupavam-se sobre como fornecer condições de verdade
substantivas para os juízos morais. Assim, esse "realismo expressivista" é,
geralmente, chamado de quase-realismo ou realismo mínimo (BLACKBURN, 1993).

DICAS

Assista a este curto vídeo, que faz parte do projeto Fronteiras do Pensamento de
2012, em que o Simon Blackburn, filósofo britânico, explica as divergências sobre a moralidade
ao longo da história e comenta como chegou a sua visão de um Quase-Realismo. Disponível
em: <https://goo.gl/cRRYjs>.

Para ser claro, o minimalista ortodoxo não acha que ele esteja sendo quase
sobre verdade ou fatos – ele está apenas fornecendo a “verdade” e ao “fato” seu
significado literal, o que acaba sendo muito mínimo. De acordo com o quase-
realista, então, nunca houve uma alternativa de “realismo real”, que “leva a
verdade mais à sério” – simplesmente havia pessoas chamando a si mesmas de
“realistas reais”, presos em uma ilusão do que a verdade deveria ser. Seria tomar
partido em um debate controverso sobre a natureza da verdade se descartarmos
a posição do quase-realista. Digamos, portanto, que os quase-realistas possam
alcançar o passo 4 do realismo moral ao lado de realismos mais antigos, e juntar-
se a eles ao passar para o próximo ponto de escolha.

84
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA MORALIDADE

4.5 PASSO 5 – OS FATOS MORAIS PODEM EXPLICAR NÃO


TRIVIALMENTE NOSSAS OPINIÕES MORAIS?
O realismo, como observamos no começo, favorece certa “ordem de
explicação”. Ele está preocupado em desenvolver uma compreensão do mundo
que é mais do que apenas a sombra projetada pelo que pensamos. O mundo nos
antecede, muitas vezes, resiste aos nossos esforços para impor nossas opiniões
ou vontade sobre ele e, às vezes, recompensa-nos com sucesso quando acertamos
alguma coisa. Esta é uma instância do esquema realista genérico: apelamos para
o fato de que “p”, ou a verdade de “p”, como parte de uma explicação de como
chegamos a acreditar que “p”. Por que acreditamos que os continentes se movem?
Aqui está uma resposta não-trivial: porque encontramos maneiras – através da
observação e experimentação sísmica, geológica e biológica – de disciplinar nosso
pensamento ao comportamento dessas grandes massas de terra. Aqui está uma
resposta trivial: porque a deriva continental é a visão hegemônica dentro do
estabelecimento científico, e é isso que é necessário para que isso seja um fato.

Vimos um exemplo de explicação não trivial de crenças normativas no


caso das teorias naturalistas não analíticas de um bem-estar humano – os próprios
fatos que constituem esse bem-estar moldaram nosso pensamento e experiência
através da história e da experiência sobre o que consiste este bem-estar. Um
naturalista analítico pode dar, essencialmente, o mesmo tipo de explicação
funcionalista (embora algumas partes dessa explicação sejam truísticas, o todo
não será). Explicações funcionalistas enfrentam algumas dificuldades bem
conhecidas, especialmente, a ameaça de subdeterminação, uma vez que muitas
explicações candidatas – incluindo algumas bastantes perversas – podem
existir para satisfazer uma dada função. Todavia, esses são problemas para o
funcionalismo em geral, e, portanto, não há razão especial para negar a ambas as
formas de naturalismo moral o status dos realismos que encontramos no Passo 5.

Um naturalismo neoaristotélico também pode fornecer explicações não


triviais – pelo menos se, como o próprio Aristóteles teria afirmado, as funções
humanas apropriadas essenciais e as sensibilidades que fornecem a base para a
moralidade possam vir a ser conhecidas através da reflexão e da experiência. O
próprio Aristóteles pensava que as essências poderiam ser identificadas através
de uma compreensão da teleologia da natureza, mas os aristotélicos modernos
tendem a adotar uma explicação menos metafísica e mais francamente normativa,
baseada na prática. Essas explicações são declaradamente circulares, uma vez que
nos permitem, no início, ajudar-nos a ver as verdades normativas. No entanto, se
a circularidade de tais explicações puder ser mostrada como não viciosa, então o
naturalismo neoaristotélico pode fornecer uma explicação não trivial de nossas
opiniões morais em termos de verdades morais, e assim alcançar o realismo do
Passo 5 (FOOT, 2002b).

As explicações naturalistas tendem a invocar uma noção substantiva da


verdade, mas e a noção mínima da verdade moral defendida pelo quase-realismo?
Poderia a verdade mínima de "p" fornecer uma explicação não trivial de como
85
UNIDADE 1 | METAÉTICA

chegamos a acreditar que p? Parece que não – que aquele é simplesmente um


novo nome do outro. O próprio Blackburn adotou o rótulo de “projetivismo”
para a sua visão, revertendo a “ordem de explicação” realista. Todavia, o
minimalismo é tipicamente destinado a deixar nosso discurso moral e práticas
sem serem perturbados, ou seja, é uma forma de quietismo. E, de fato, uma vez
que se desiste da noção de um fato carregado de significado metafísico, não há
mal algum em dizer que os apologistas do escravismo moderno eram “incapazes
de disfarçar o fato da injustiça da escravidão”. Desta forma, uma noção bastante
fina de explicação moral é permitida – uma "quase-explicação", talvez. Não é
suficiente para um realismo do Passo 5, mas talvez o suficiente para deixar o
discurso ordinário sobre a realidade moral imperturbável.

Resta perguntar sobre o não naturalismo. À primeira vista, é difícil ver o


que significaria para fatos morais não naturais – fatos que não são eles próprios
parte da ordem causal, não situados no espaço e no tempo – explicar nossas
opiniões morais. Isso é, simplesmente, privilegiar a explicação causal sobre outras
formas. Considere um domínio que muitos veriam como paradigmaticamente não
natural: a lógica e a matemática. Será que o fato de a aritmética estar incompleta
explica a nossa crença de que ela é? Certamente, essa crença repousa diretamente
sobre uma prática matemática que encontrou um meio, através da prova, de
disciplinar nosso pensamento matemático pelos próprios fatos que são seu objeto.
Assim, a prova de Gödel e muitas provas subsequentes explicam nossa crença
de que a aritmética é incompleta. Certamente, esta maneira de colocar as coisas
encobre questões difíceis sobre a epistemologia da prova e o status metafísico
dos fatos lógicos e matemáticos. E pressupõe que nossos pensamentos, palavras
e símbolos possam vir a representar ou se referir ao domínio dos abstratos. No
entanto, o argumento para dizer que, na prova de Gödel, temos uma explicação
não-trivial do tipo certo, é intuitivamente muito forte.

No entanto, o caso moral parece muito mais difícil para os não naturalistas,
já que na ética não temos nada como prova lógica para desempenhar o papel
explicativo. Em vez disso, devemos recorrer diretamente à ideia de que certas
afirmações sobre quais razões temos para agir, e o que a moralidade exige, são
autoevidentes. Todavia, como vimos anteriormente, os apelos à autoevidência
no nível fundamental parecem ser encontrados em todas as formas de inquirição
racional. Será que o fato de que a dor debilitante ser uma razão prima facie para
agir, ou que promessas-prima facie devem ser mantidas, é menos evidente que a
Lei do Terceiro Excluído? Afinal de contas, os lógicos tiveram um longo debate
sobre o terceiro excluído que parece claramente de caráter normativo. Lógicos e
matemáticos, especialmente aqueles no campo “clássico”, têm reivindicado suas
suposições muitas vezes, com o desenvolvimento de um corpo vasto, poderoso,
coerente, útil e maravilhosamente inteligível de resultados autorreforçadores.
Não temos nada tão grandioso no caso moral, e, em efeito oposto aos esforços
kantianos, a quantidade de ética que é autoevidente, ou segue logicamente
daquilo que é autoevidente, é decepcionantemente pequena.

Além disso, os não naturalistas morais tiveram muito menos a dizer do que

86
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA MORALIDADE

os filósofos da lógica e da matemática por meio de uma teoria da epistemologia


e da metafísica dos fatos não naturais, ou como podemos obter acesso semântico
ou epistêmico a eles. Alguns não naturalistas morais fariam a observação de que
tais preocupações de ordem superior não fazem nada para minar a autoridade
de nossas convicções morais mais firmes, fruto de séculos de sábia reflexão. O
não-naturalista pode firmar sua reivindicação aqui, argumentando que fatos
morais – não o acidente, o preconceito, a idiossincrasia individual ou o costume
social – desempenharam realmente o tipo certo de papel na formação de algumas
de nossas opiniões morais mais profundas. Por isso, ele também pode ocupar o
realismo moral do Passo 5. Uma estratégia ligeiramente diferente é tomada por
não naturalistas particularistas, como Jonathan Dancy (1993), que argumentam
que não são princípios gerais, abstratos – que sempre parecem admitir exceções –,
mas juízos sobre quais razões para agir nós temos em particular, casos concretos
que têm verdadeira evidência.

5 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Colocando uma série de questões sobre o realismo, pudemos gerar uma
taxonomia quase completa da metaética contemporânea, e isso é razão para pensar
o realismo como uma questão central na filosofia moral. Todavia, tal afirmação
não deve deixar a impressão de que “a questão do realismo” é uma questão.

Em vez disso, como vimos, é uma série de questões – semântica, epistêmica,


metafísica e normativa – que refletem as muitas maneiras pelas quais podemos
nos preocupar se realmente existe um fato da questão sobre como devemos viver
juntos, sobre o que é afinal de contas a moralidade e tudo aquilo que supomos
que seja. Assim como, se temos algum mérito para estar reivindicando o que isso
poderia ser.

87
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• O realismo moral afirma que há fatos genuínos sobre o que é moralmente certo
ou errado – fatos que são independentes do que qualquer pessoa, ou qualquer
sociedade, pensa ser moralmente certo ou errado.

• A maioria dos filósofos concorda que há cinco características centrais para


a moralidade como a conhecemos: forma cognitiva; significado objetivo;
superveniência; categoricidade e implicação prática.

• A dificuldade de conciliar as características de C1 a C5 é um problema para


qualquer teoria da moralidade.

• Os realistas tendem a ser falibilistas.

• Houve uma proliferação de formas de realismo moral, antirrealismo, irrealismo,


“quase-realismo” etc. na ética contemporânea.

• O emotivismo alega que a intratabilidade das disputas morais é atribuída a


diferenças nos sentimentos mais básicos das pessoas, que não estão sujeitas a
nenhum tipo de juízo racional.

• Se as declarações morais funcionassem apenas para expressar emoções, não


haveria explicação de como as usamos no raciocínio condicional.

• O não cognitivismo parece incapaz de compreender como as reivindicações


morais funcionam no raciocínio, e isso veio a ser denominado de o Problema
de Frege-Geach.

• O cognitivismo pode ser uma condição necessária para o realismo moral, mas
está longe de ser suficiente.

• Uma possibilidade para o ceticismo é que a moralidade tem algumas condições


bem definidas de aplicabilidade, que, por questões de fato ou necessidade
metafísica, não são satisfeitas.

• Mackie (2000) abandonou a moralidade como errônea, teoria do erro da


moralidade, e começou a recomendar um sistema de normas notavelmente
semelhante à moralidade básica, que ele considerava essencial para nosso
bem-estar coletivo.

• Os internalistas do juízo motivacional tomam a principal característica distintiva

88
do juízo moral como sua “praticalidade”, e se dividem em expressivistas,
expressivistas de normas etc.

• Os externalistas do juízo motivacional argumentam que o elo entre o juízo


moral e a motivação é mais psicológico do que conceitual, e se dividem em
externalistas motivacionais naturalistas, naturalistas não analíticos, naturalistas
analíticos, externalistas motivacionais não naturalistas, intuicionistas.

• Os kantianos buscam um caminho diferente para as verdades morais sintéticas


a priori, através da noção de razão prática.

• Os ficcionalistas admitem que as alegações morais podem ser falsas, se


interpretadas literalmente, mas sugerem que a interpretação literal é irrelevante.

• Os subjetivistas morais sustentam que os juízos morais funcionam mais como


juízos de legalidade.

• O subjetivismo sensível fixa rigidamente o significado dos termos morais num


índice não variável: as respostas das sensibilidades morais reais.

• O minimalismo é tipicamente destinado a deixar nosso discurso moral e


práticas sem serem perturbados, é uma forma de quietismo.

89
AUTOATIVIDADE

1 O realismo moral é um dos temas centrais no debate da metaética, tanto a


clássica quanto a contemporânea. Defina o que é o Realismo Moral.

2 A maioria dos filósofos concorda que há cinco características que são


centrais para a moralidade. Descreva brevemente estas cinco características:
a forma cognitiva, o significado objetivo, a superveniência, a categoricidade,
e a implicação prática.

3 Umas das alternativas ao realismo moral é a posição do emotivismo. Quais


são os argumentos que os emotivistas levantam referentes à moralidade?

90
UNIDADE 2

ÉTICA NORMATIVA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir dos estudos desta unidade, você será capaz de:

• definir a teoria consequencialista da moralidade e descrever suas princi-


pais abordagens;

• descrever as teorias não consequencialistas da moralidade e identificar


seus principais conceitos;

• descrever as teorias da ética da virtude e compará-la com as outras teorias


éticas.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade, você
encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – TEORIAS CONSEQUENCIALISTAS DA MORALIDADE

TÓPICO 2 – TEORIAS NÃO CONSEQUENCIALISTAS DA MORALIDADE

TÓPICO 3 – ÉTICA DA VIRTUDE

91
92
UNIDADE 2
TÓPICO 1

TEORIAS CONSEQUENCIALISTAS DA MORALIDADE

1 INTRODUÇÃO

Depois de ler este tópico, você deverá ser capaz de definir as concepções
consequencialistas (teleológicas) e não consequencialistas (deontológicas) da
moralidade. Assim como diferenciar o egoísmo psicológico do egoísmo ético, e
explicar ambas as teorias. Distinguir os três tipos de egoísmo ético e descrever
e analisar criticamente as duas principais teorias consequencialistas, o egoísmo
ético e o utilitarismo. E distinguir entre os dois tipos de utilitarismo.

A palavra grega theoria significa literalmente "uma maneira de ver"


(BARROS, 2013). As teorias morais tentam "ver" ou "perspectivar" fenômenos
morais, e, portanto, entender a moralidade, a partir de uma perspectiva
abrangente. Boas teorias morais também fornecem princípios práticos para
orientar e dirigir a conduta humana. As teorias que veremos neste tópico tratam
de uma avaliação das consequências, resultados ou fins de ações e, como tais, são
baseadas em consequências.

Na história da ética, emergem dois pontos de vista principais: o


consequencialista (baseado ou preocupado com as consequências) e o não
consequencialista (não baseado ou preocupado com as consequências).
Tradicionalmente, essas teorias foram chamadas de teorias "teleológicas" e
"deontológicas" (CORTINA; MARTÍNEZ, 2005), respectivamente, mas este livro
referir-se-á a elas como consequencialistas e não consequencialistas porque essas
palavras apontam as diferenças reais entre elas.

As duas principais teorias éticas consequencialistas são o egoísmo ético


e o utilitarismo (MULGAN, 2012). Ambas as teorias concordam que os seres
humanos devem se comportar de maneira que trarão boas consequências. Elas
diferem, no entanto, na medida em que discordam sobre quem deve se beneficiar
dessas consequências. O egoísta ético diz essencialmente que os seres humanos
devem agir em seu interesse próprio, enquanto que os utilitaristas dizem,
essencialmente, que os seres humanos devem agir no interesse de todos os
envolvidos.

Suponha que João tenha a chance de desviar alguns fundos da empresa


que trabalha. Se ele for um consequencialista, tentará prever as consequências de

93
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

desviar e de não desviar os fundos. Na hipótese de ele ser um consequencialista


egoísta, tentará prever o que estará em seu interesse próprio. Caso ele seja um
consequencialista utilitarista, tentará prever o que estará no interesse de todos os
envolvidos. À primeira vista, quando ainda estamos aprendendo sobre o egoísmo
ético, algumas pessoas imediatamente assumem que se uma pessoa, tal como
João, adere a esta teoria, vai desviar os fundos porque fazê-lo lhe dará o dinheiro
que precisa para viver uma vida boa e assim por diante. No entanto, é interessante
notar que tanto os egoístas éticos quanto os utilitaristas podem decidir, com base
em suas abordagens opostas às consequências, não desviar o dinheiro. Egoístas
éticos podem pensar que não é em seu interesse próprio quebrar a lei ou causar
raiva da empresa e seus acionistas ou sujeitar-se ao risco de punição por sua ação.
Os utilitaristas, por outro lado, poderiam chegar à mesma conclusão, mas com
o argumento de que o desfalque teria consequências ruins para outras pessoas
envolvidas na empresa, embora isso possa trazer boas consequências para eles.
Assim como os egoístas e utilitaristas podem acabar agindo da mesma maneira
por diferentes razões, seu raciocínio ético também é semelhante, na medida em
que ambos se preocupam com as consequências de qualquer ação que estão
contemplando. É importante examinar cada teoria ética mais detalhadamente,
observando vantagens e desvantagens e examinando semelhanças e diferenças.

2 O EGOÍSMO PSICOLÓGICO
Antes de discutir o egoísmo ético em mais detalhes, devemos fazer uma
distinção entre o egoísmo psicológico, que não é uma teoria ética e egoísmo
ético. Alguns egoístas éticos tentaram basear suas teorias egoísticas no egoísmo
psicológico, por isso é importante examinarmos se esta é uma inferência válida
e termos certeza de que sabemos a diferença entre a forma como as pessoas de
fato agem e a forma como elas deveriam agir (BONJOUR; BAKER, 2010). No
Tópico 1, da primeira Unidade, o egoísmo psicológico foi introduzido a fim de
apontar a diferença entre as abordagens científicas e as filosófico-normativas da
moralidade. Para reiterar, o egoísmo psicológico é uma abordagem científica e
descritiva do egoísmo, enquanto que o egoísmo ético é a abordagem filosófico-
normativa (prescritiva). Veja o quadro a seguir.

QUADRO 1 – TIPOS DE EGOÍSMO


Tipo de egoísmo Tipo de reivindicação Tese principal
Afirma que cada um age em seu
Psicológico Descritiva interesse próprio.

Afirma que todos devem agir em


Ético Normativa
seu interesse próprio.
FONTE: O autor

O egoísmo psicológico pode ser dividido em duas formas (RACHELS;

94
TÓPICO 1 | TEORIAS CONSEQUENCIALISTAS DA MORALIDADE

RACHELS, 2014). A forma forte sustenta que as pessoas sempre agem em seu
interesse próprio – que elas são psicologicamente construídas para fazê-lo –,
enquanto que a forma fraca sustenta que as pessoas muitas vezes, mas nem sempre,
agem em seu interesse próprio. Entretanto, nenhuma das duas formas pode operar
como base para o egoísmo ético. Se a forma forte for aceita, então por que dizer
às pessoas fazerem o que não podem deixar de fazer? Se os seres humanos são
psicologicamente construídos de modo a agir sempre por interesse próprio, que
bem fará dizer a alguém que ele deve sempre agir por interesse próprio? Quanto
à forma mais fraca, a afirmação de que os indivíduos muitas vezes agem a partir
do interesse próprio não tem nenhuma conexão em si mesma com a compreensão
do que eles deveriam fazer. Isto é referido na ética como tentando obter "um
deveria de um é" – não há nenhum argumento lógico que prove conclusivamente
que, porque as pessoas estão se comportando de determinadas maneiras, devem
fazê-lo ou continuar a fazê-lo. Alguém poderá ser capaz de mostrar, por meio de
algum argumento racional, que se deve agir sempre a partir do interesse próprio,
mas se fizer isso não constituirá nem um argumento necessário (absolutamente
necessário) tampouco um argumento suficiente de que se deve agir assim.

E quanto à verdade da forma mais forte do argumento? Se os seres


humanos precisam realmente agir em seu interesse próprio e não podem fazer o
contrário, então estaríamos condenados à posição egoísta. Existe alguma prova
conclusiva de que o egoísmo psicológico forte é verdadeiro? A fim de fazer uma
declaração abrangente, absoluta e universal, usada sempre em conexão com
motivos e comportamentos humanos, que são ao mesmo tempo complexos e
variados, seria necessário examinar todos os motivos e comportamentos de todos
e cada ser humano antes que tal declaração pudesse ser provada conclusivamente.

É presunçoso para os egoístas psicológicos argumentar que as pessoas
sempre agem por interesse próprio se alguém lhes puder dar um exemplo de
uma só vez quando não agiu deste modo (HEGENBERG, 2010a). Eles certamente
podem inventar uma série de maneiras de mostrar a um indivíduo que tudo o que
ele faz está, em última análise, relacionado, por uma razão ou outra, ao interesse
próprio, mas pode-se replicar: "Olha, quando eu desprezei minha própria
segurança e fui atrás do ladrão que roubou a loja, eu não estava motivado por
nenhuma das razões que você sugere, eu simplesmente fiz isso porque eu pensei
que o que o ladrão fez estava errado, e porque eu gosto do meu chefe e não queria
vê-lo sendo roubado”. Os egoístas psicológicos podem insistir, por sua vez, que
o indivíduo provavelmente queria impressionar seu chefe ou queria parecer um
herói para sua namorada ou que o indivíduo queria a aprovação da sociedade
ou de Deus ou do patrão, mas se a pessoa insiste que esses motivos não estavam
presentes, então os proponentes do egoísmo psicológico estão apenas teorizando,
e eles não podem transformar tal teorização em uma teoria absolutista sobre todos
os motivos e ações humanas (FURROW, 2007).

Pela razão que os seres humanos variam tanto nos pensamentos,


sentimentos, motivos e razões de suas ações, é altamente presunçoso supor que
todos "sempre" pensam, sentem, são motivados ou raciocinam de uma forma à

95
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

exclusão de todas as outras (FEINBERG, 2013). Esta teoria, como a teoria sobre a
existência de um ser sobrenatural, não pode ser provada de forma conclusiva. Na
verdade, há provas do contrário.

Quando todos os outros argumentos falham, como costumam fazer na


tentativa de defesa do egoísmo psicológico, o egoísta psicológico, ao tentar provar
seu caso, frequentemente, volta-se para a posição de que as pessoas sempre fazem
o que realmente querem fazer. De acordo com o egoísta, se as pessoas "querem"
realizar tal ato desinteressado, então elas não estão realmente sendo altruístas
porque estão fazendo o que realmente querem fazer, mas há problemas com esse
argumento. Em primeiro lugar, como o egoísta psicológico pode lidar com o fato
de que, muitas vezes, as pessoas não querem agir desinteressadamente, mas o
fazem de qualquer maneira? Às vezes, alguém realmente prefere fazer outra coisa,
mas o indivíduo, no entanto, sente que ele ou ela "deve" ou "tem que" fazer o que
não quer fazer. Em segundo lugar, a única evidência que o egoísta psicológico
pode citar em apoio da afirmação "as pessoas sempre fazem o que querem fazer"
é que o ato foi feito. Tudo isso significa que "todos fazem sempre o que fazem", e
isso realmente não dá qualquer informação sobre a conduta humana, nem prova
de modo algum que os seres humanos sempre agem apenas em seu interesse
próprio (FEINBERG, 2013).

Parece que podemos descartar o egoísmo psicológico como base para o


egoísmo ético. Em sua forma forte destruiria toda a moralidade e ainda assim
lhe faltaria evidência e lógica. E tanto na forma forte quanto na fraca, falham em
fornecer uma base racional para o egoísmo ético.

3 O EGOÍSMO ÉTICO
O que é o egoísmo ético? Não é necessariamente a mesma coisa que o
egoísmo, que poderia ser um comportamento que não está de nenhum modo
no interesse próprio do egoísta, ou seja, se eu estiver sempre agindo de forma
egoísta, as pessoas podem me odiar e, geralmente, me tratar mal, então talvez
esteja mais no meu interesse próprio não ser egoísta. Eu poderia até chegar ao
ponto de ser altruísta em meu comportamento, pelo menos uma parte do tempo
– quando estiver no meu interesse próprio ser assim, é claro. Portanto, o egoísmo
ético não pode ser equiparado ao egoísmo, nem deve ser equiparado a ter um ego
grande ou ser presunçoso. Um egoísta pode muito bem ser pretensioso e vaidoso,
por outro lado, ele pode parecer ser muito modesto e humilde (RACHELS, 2013).

O egoísmo ético pode assumir três tipos possíveis, o pessoal, o individual


e o universal, veja o quadro a seguir.

96
TÓPICO 1 | TEORIAS CONSEQUENCIALISTAS DA MORALIDADE

QUADRO 2 – TIPOS DE EGOÍSMO ÉTICO


TIPOS DE EGOÍSMO ÉTICO TESE PRINCIPAL
Diz que eu vou agir em meu próprio
Egoísmo ético pessoal
interesse e todo o resto é irrelevante.
Diz que todo mundo deve agir em seu
Egoísmo ético individual
interesse próprio.
Diz que cada pessoa deve agir em seu
Egoísmo ético universal
próprio interesse.
FONTE: Hinman (2008, p. 114)

3.1 PROBLEMAS COM O EGOÍSMO ÉTICO INDIVIDUAL E


PESSOAL
Há sérios problemas associados ao egoísmo ético individual e pessoal, na
medida em que se aplicam apenas a um indivíduo e não podem ser estabelecidos
para a humanidade em geral. Trata-se de uma verdadeira desvantagem ao pensar
na moralidade ou no sistema moral como algo aplicável a todos os seres humanos,
isto é, se desejamos ir além de uma moralidade estritamente individualista, o que
a maioria dos moralistas faz. Entretanto, os problemas associados à promulgação
de qualquer dessas formas de egoísmo ético são mais profundos do que sua
falta de aplicabilidade geral. Provavelmente, não seria do interesse de egoístas
individuais ou pessoais declararem sua teoria, porque eles poderiam enfurecer
outras pessoas e, assim, frustrar seu interesse próprio. Por esta razão, tais egoístas
podem ter de aparecer diferente do que realmente são ou mentir sobre o que
realmente acreditam, sendo que a desonestidade e a mentira são consideradas
ações morais questionáveis ​na maioria das teorias morais (RACHELS, 2013).

Podemos também perguntar se um sistema moral não deve ser consistente,


e se não deve ser mais do que apenas uma teoria. Se uma pessoa tem que propor
uma teoria moral, enquanto que conscientemente e propositadamente opera
sob outra, então não estaria ele sendo inconsistente? E quão moral pode ser esse
sistema se não puder ser exposto para que os outros vejam? Outro problema
com tais sistemas individualistas é que eles não levam em consideração o fato de
que os seres humanos não estão isolados uns dos outros e que as ações morais
e imorais de todas as pessoas afetam outras pessoas ao seu redor. Essas duas
versões do egoísmo, contudo, são boas apenas para uma pessoa e podem nem
mesmo ser benéficas para aquele indivíduo, especialmente, se alguém descobrir
que ele está realmente operando sob tal sistema (HINMAN, 2008). Portanto, essas
concepções do egoísmo não são impossíveis de sustentar – na verdade, você
poderá descobrir, depois de termos terminado de discutir sobre o egoísmo ético
universal, que elas são as únicas realmente possíveis –, mas elas são altamente
suspeitas como teorias morais válidas.

97
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

3.2 O EGOÍSMO ÉTICO UNIVERSAL


O egoísmo ético universal é a versão da teoria mais comumente apresentada
pelos egoístas, porque, como a maioria das outras teorias éticas, é, como diz
seu nome, "universal" – uma teoria ética que afirma se aplicar a todos os seres
humanos. Esta teoria não diz apenas o que o indivíduo deve fazer. Antes, trata-se
do que todos os seres humanos devem fazer se querem ser morais: devem sempre
agir em seu interesse próprio. O egoísmo ético universal tem sido proposto por
Epicuro (1985, 2002), Ayn Rand (1991), Jesse Kalin (1970) e John Hospers (1973,
1982), entre outros. Esses filósofos desejam estabelecer um sistema ético para
todos os seres humanos, e eles acreditam que o ponto de vista mais ético é que
cada um aja em seu interesse próprio.

3.2.1 Problemas com o Egoísmo Ético Universal


O primeiro problema aqui é a inconsistência. O ataque mais devastador ao
egoísmo ético universal foi feito por Brian Medlin (1970) em seu artigo “Princípios
Últimos e o Egoísmo Ético", que Jesse Kalin (1970) tentou refutar em seu artigo
"Em defesa do egoísmo". Medlin (1970) apresentou alguns dos mesmos argumentos
já descritos aqui contra o egoísmo ético individual e pessoal. Por exemplo, ele
afirmou que o egoísta ético diz que todos devem agir em seu interesse próprio
individual. Suponha, no entanto, que Pedro está agindo em seu interesse próprio
individual, o que não estaria no interesse próprio do egoísmo ético de, por
exemplo, João. Então, certamente, não seria do interesse de João dizer a Pedro
que ele deveria agir em seu (o de Pedro) interesse próprio. Portanto, João estaria
pelo menos reticente em afirmar seu sistema ético e, provavelmente, seria mais
sábio sob o egoísmo ético em não o declarar em absoluto. Suponhamos que João,
o egoísta ético, signifique realmente que todas as pessoas devem agir em seu
próprio interesse individual, que o maior bem deve ser feito a todos os envolvidos​​
por qualquer ação ética ou, como Medlin (1970) afirma, que João realmente quer
que todo mundo saia como vencedor. Não estaria João propondo realmente
alguma forma de utilitarismo (que indica que todos devem sempre agir de modo
que o número maior de consequências boas acumule a todos envolvidos ​​pela
ação) ao invés de egoísmo? Isso poderia fazer os utilitaristas felizes, mas não
precisamos de dois nomes para uma única teoria ética.

O problema torna-se realmente crítico quando perguntamos exatamente


o que os egoístas éticos universais significam quando afirmam que todos devem
agir em seu interesse próprio individual. Quer dizer que tanto João quanto Pedro
devem agir em seu próprio interesse quando seus interesses pessoais conflitam?
Como esse conflito será resolvido? Suponha que Pedro pergunte a João o que
ele deveria fazer no meio do conflito entre eles? Deveria João dizer-lhe para
agir em seu interesse próprio, mesmo que isso signifique que João irá perder? O
egoísmo ético universal parece defender isso. No entanto, obviamente, não seria
do interesse próprio de João que o Pedro fizesse isso. Há uma inconsistência aqui,
não importa o que João faça, porque quando os interesses próprios conflitam, o
98
TÓPICO 1 | TEORIAS CONSEQUENCIALISTAS DA MORALIDADE

egoísmo ético universal não oferece nenhuma resolução que será verdadeiramente
no melhor interesse de todos. O egoísmo ético torna-se altamente questionável
quando falamos em oferecer conselho moral (RACHELS; RACHELS, 2014).

Tal conselho é inconsistente, na medida em que João deve fazer o que está
em seu interesse próprio, mas deve aconselhar Pedro a agir quer no interesse de
João ou no interesse de Pedro. Se ele aconselhar Pedro a agir em seu interesse, o
de João, então João está recuando para o egoísmo individual. Se ele aconselhar
Pedro a agir em seu próprio interesse, então João não está servindo ao seu
interesse próprio. De qualquer maneira, parece que o propósito subjacente ao
egoísmo ético fica derrotado.

Jesse Kalin (1970) diz que a única maneira de declarar o egoísmo ético
universal consistentemente é defender que João deveria agir em seu interesse
próprio individual e Pedro em seu interesse próprio individual. Tudo então ficará
bem, porque mesmo que a teoria seja anunciada a todos e mesmo que João tenha
que aconselhar Pedro que ele (o Pedro) deveria agir em seu próprio interesse,
João não precisa “querer” que Pedro atue em seu próprio interesse. É neste ponto
que Kalin sente que ele refutou Medlin, pois afirma que o egoísmo ético universal
é inconsistente, porque o que o egoísta “quer” é, obviamente, incompatível, ele
quer que ele vença e quer que todos os outros também vençam. Os interesses
conflitam, pois tem, obviamente, desejos incompatíveis. Kalin usa o exemplo de
João e Pedro jogando xadrez. João, vendo que Pedro poderia mover seu bispo e
colocar o rei de João em cheque, acredita que Pedro “deve” mover seu bispo, mas
não “quer” que ele o faça, não precisa persuadi-lo a fazê-lo. Na verdade, “deve”
sentar-se lá em silêncio, esperando que ele não faça o movimento como deveria.
Com esta afirmação, o problema que ocorreu com o egoísmo ético individual
e pessoal surge novamente no egoísmo ético universal – que o que as pessoas
deveriam fazer não pode ser promulgado (isto é, apresentado para que todos
possam ver). Em outras palavras, temos novamente uma teoria ética que tem de
ser um segredo. Caso contrário, violará ao ser declarada seu próprio princípio
central: o interesse próprio.

Devemos também examinar como Kalin (1970) está usando o termo "deve"
em seu exemplo sobre o jogo de xadrez. Um dos resultados não intencionais do
artigo de Kalin parece ser um ofuscamento da distinção entre o uso moral dos
termos “deve” e “deveria” e um uso não moral dos dois termos. No Tópico 1, da
primeira unidade, descrevemos a grande diferença entre as abordagens científica
e as filosófico-normativas da moralidade como sendo a diferença entre o que “é”
ou o que se “faz” e o que “deve” e o que “deveria” ser feito. Também foi apontado
que as duas últimas palavras (deve e deveria) nem sempre são usadas em um
sentido moral e, com frequência, podem ser usadas em um sentido não moral.

Por exemplo, se as instruções para montar um brinquedo especificar que


você deveria colocar dois parafusos e porcas nas extremidades antes de colocar
os outros quatro parafusos, não há nenhum sentido moral em operação nesta
atividade. "Deveria" aqui implica "se você quiser que este brinquedo funcione

99
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

direito e quiser que estas duas peças se encaixem bem". Não existe um imperativo
moral, a não ser que a montagem incorreta do brinquedo possa custar à criança
sua vida, por exemplo. Raramente, as vidas dependem se jogos como xadrez são
ganhos ou perdidos, ou se dois lados de um brinquedo se encaixam bem. Deveria,
nesses contextos, provavelmente, não ter qualquer ramificação moral.

Evidentemente, pelo menos para Kalin (1970), as regras e os conselhos


morais têm uma aplicação tão superficial que “deveria” e “deve” significam nada
a mais do que significariam quando aplicado a um jogo ou às instruções para
montar algo. Parece que apenas o mais estranho dos sistemas éticos indicaria
muitos “faça” e “não faça” e dizer que as pessoas devem aderir a eles, mas, em
seguida, esperar que elas não o façam. Considere o que significaria para João
aconselhar Pedro: "Você deveria me matar porque eu estou no caminho entre
você e a minha esposa, já que você a deseja, e está em seu interesse próprio que
você faça isso. Todavia, porque não está em meu interesse próprio que você
faça isso, eu espero que você não o faça”. Certamente não estaria incompatível
com o que João diz que pensa que deve ser, mas é um sistema moral no mínimo
estranho sendo que de fato afirma o que seu proponente realmente não quer. É
óbvio que o que João realmente pensa que o que Pedro deveria fazer é deixar João
e sua esposa em paz. Isto significa, na melhor das hipóteses, que o egoísmo ético
universal é altamente impraticável e, na pior das hipóteses, que é uma teoria que
causa seriamente um conflito nos desejos das pessoas por coisas boas e que vê a
busca da felicidade como sendo algum tipo de jogo intelectual sobre as regras
das quais os seres humanos "devem" ser instruídos a seguir. Kalin parece ter
mostrado que o egoísta não precisa querer que outros façam o que ele advoga.
Ao fazê-lo, no entanto, Kalin levanta o espectro de uma divisão ainda mais ampla
entre o que "deve ser" e o que “é".

É óbvio que o que João realmente pensa que o que Pedro deveria fazer é
deixar João e sua esposa em paz. Isto significa, na melhor das hipóteses, que o
egoísmo ético universal é altamente impraticável e, na pior das hipóteses, que é
uma teoria que causa seriamente um conflito nos desejos das pessoas por coisas
boas e que vê a busca da felicidade como sendo algum tipo de jogo intelectual
sobre as regras das quais os seres humanos "devem" ser instruídos a seguir.

O dilema acima leva o argumento de volta à lógica de Medlin (1970, p.


56-63): “Mas não seria acreditar que alguém deveria agir de certa maneira, tentar
persuadi-lo a fazê-lo?", e "faz sentido dizer, claro que você deveria fazer isso, mas
por tudo o que é mais sagrado, não faça?" Sem essa lógica, os sistemas éticos não
são mais do que meros ideais abstratos que seus proponentes esperam que não
sejam efetivamente realizados. O que isso significa, se Kalin estiver correto, é que
o egoísmo ético universal reivindica ser um sistema moral baseado na não moral
– suas regras não têm mais importância moral do que as regras de um jogo de
xadrez ou as instruções para montar um brinquedo.

Outra crítica ao egoísmo ético, em qualquer de suas formas, é que ela não
fornece a base ética apropriada para as pessoas que estão em profissões ligadas

100
TÓPICO 1 | TEORIAS CONSEQUENCIALISTAS DA MORALIDADE

ao cuidado e à ajuda. Certamente, é verdade que muitas pessoas estão em tais


profissões por seu interesse próprio, até certo ponto, mas a verdadeira razão
para ser psicólogo, enfermeiro, médico, assistente social, professor, entre outras
profissões afins é ajudar os outros e uma atitude de interesse próprio exacerbada
não teria boas consequências para alguém nestas profissões. Bandman e Bandman
(2002) argumentam que profissionais da saúde que aceitam o egoísmo ético
sempre colocaram seus interesses e conforto como fim último de sua ação moral,
escolhendo, por exemplo, contextos e locais de trabalho que não tenham que
atender e cuidar de indivíduos com doenças infecciosas.

Essas críticas apoiariam as afirmações de alguns filósofos de que o


egoísmo ético em qualquer de suas formas não é realmente um sistema moral,
mas sim a postura não moral da qual se pergunta: "Por que eu deveria ser
moral?" (NIELSEN, 1989). No entanto, não é necessário endossar uma posição
tão extrema para perceber que há muitos problemas com o egoísmo ético que
não são facilmente resolvíveis. Portanto, parece ser uma teoria ética altamente
questionável.

3.2.2 Vantagens do Egoísmo Ético Universal


Que conclusões podem ser tiradas desta discussão sobre o egoísmo ético?
A teoria tem alguma vantagem? Uma vantagem do egoísmo ético sobre as teorias
que advogam fazer o que é de interesse para outros envolvidos é que é muito
mais fácil para os indivíduos saber quais são os seus próprios interesses do que
seria para eles saberem o que é do melhor interesse para os outros. As pessoas
nem sempre agem em seu interesse próprio e, certamente, cometerão erros no
julgamento sobre o que é de seu próprio interesse, mas estão em uma posição
muito melhor para estimar corretamente o que elas querem, precisam e deveriam
ter e fazer do que qualquer outra pessoa. Além disso, elas têm uma melhor chance
de avaliar seu interesse próprio pessoal do que avaliar os interesses de qualquer
outra pessoa (HINMAN, 2008).

Outra vantagem do egoísmo ético universal é que ele encoraja a liberdade


e a responsabilidade individuais (RACHELS, 2013). Os egoístas precisam apenas
considerar seu interesse próprio e então assumir a responsabilidade por suas
ações. Não precisa haver dependência de ninguém, basta buscar seu interesse
próprio e deixar que os outros façam o mesmo. Portanto, os egoístas também
argumentam, isso significa que suas teorias realmente se encaixam melhor com a
economia capitalista da maior parte das sociedades vigentes.

O egoísmo ético pode funcionar com sucesso, mas tem severas limitações.
A teoria funcionará melhor enquanto as pessoas estiverem operando em relativo
isolamento, minimizando assim as ocasiões de conflito entre seus interesses
próprios (BONJOUR; BAKER, 2010). Por exemplo, se todos pudessem ser sua
própria comunidade autossuficiente e ser quase totalmente independente, então
o interesse próprio funcionaria bem. No entanto, assim que as esferas individuais

101
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

começam a se tocar ou se sobrepor, e o interesse próprio de João começa a entrar


em conflito com o de Pedro, o egoísmo ético não fornece os meios de resolver
esses conflitos de tal forma que o interesse pessoal de todos seja protegido ou
satisfeito. Algum princípio de justiça ou de compromisso deve ser introduzido, e,
provavelmente, não seria do interesse de todos. Neste ponto, os egoístas devem
ou se tornar utilitaristas e se preocupar com os melhores interesses de todos
os envolvidos ou entrar em seu jogo não moral, dizendo às pessoas o que elas
deveriam fazer, esperando que elas não irão, de fato, fazê-lo.

O problema real e imediato com o egoísmo, entretanto, é que não vivemos


em comunidades autossuficientes. Vivemos, em vez disso, em comunidades cada
vez mais abarrotadas onde a interdependência social, econômica e até mesmo
moral é um fato da vida e onde os interesses próprios conflitam constantemente
e, de alguma forma, devem ser comprometidos. Isso significa que o interesse
pessoal de uma pessoa será apenas parcialmente servido e, de fato, poderá não
ser servido em absoluto.

3.3 EGOÍSMO ÉTICO RACIONAL DE AYN RAND


Ayn ​​Rand (1905-1982), a principal expoente moderna do egoísmo ético
universal (que ela chamou de egoísmo ético racional), disse que os interesses
próprios dos seres humanos racionais, em virtude de serem racionais, nunca
entrarão em conflito. Não importa como Rand (1991) tente discutir os conflitos de
interesse próprio que continuamente surgem entre os seres humanos racionais, a
observação mostra que eles existem e precisam ser tratados. Por exemplo, Albert
Einstein (1879-1955) e Bertrand Russell (1872-1970), matemáticos e cientistas
(Russell também era filósofo), eram totalmente opostos ao desenvolvimento de
armas atômicas. Por outro lado, o Dr. Edward Teller (1908-2003), o renomado
físico responsável por muitos dos desenvolvimentos do poder atômico,
defendia sua proliferação. Não são meras diferenças de opinião. Russell, por
exemplo, até mesmo foi preso em protesto contra o acoplamento de submarinos
nucleares americanos na Inglaterra (ROSA, 2005). Russell não só pensava que o
desenvolvimento e o uso de armas atômicas não eram de seu interesse próprio,
mas também sentia que não eram do interesse dos seres humanos em geral.

Rand pode querer argumentar que esses homens não são racionais nem
inteligentes, mas se assim forem, seria difícil aceitar a sua definição de seres
humanos racionais e interesse próprio racional. Além disso, é interessante
especular, nesse sentido, por que Ayn Rand se recusou firmemente a apoiar
qualquer das comunidades ou projetos que foram criados sob suas teorias. Um
deles foi o Projeto Minerva, uma comunidade insular a ser governada sem governo
(STRAUSS, 1999), e outro foi o Libertarianismo, um partido político que nomeou
John Hospers como candidato presidencial em 1972 (SMITH, 2002). Nenhum dos
esforços recebeu a bênção de Rand.

Em conclusão, parece que as pessoas podem ser egoístas éticos com algum

102
TÓPICO 1 | TEORIAS CONSEQUENCIALISTAS DA MORALIDADE

sucesso somente se advogarem alguma outra teoria além do egoísmo ético,


e somente se não disserem às pessoas que é isso que estão fazendo. Conforme
observado anteriormente, isso a torna uma teoria ética questionável na pior das
hipóteses e, na melhor das hipóteses, impraticável. Diante de todos esses sérios
problemas, certamente não devemos contentar-nos com o egoísmo ético até que
tenhamos examinado outras teorias éticas.

4 O UTILITARISMO
O utilitarismo é uma teoria ética cujos principais arquitetos foram Jeremy
Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873). Deriva seu nome da concepção
de utilidade. O utilitarista diz que um ato é correto (moral) se for útil em produzir
um fim desejável ou bom (MULGAN, 2012). Os utilitaristas, portanto, alegam
que a única coisa que conta moralmente é o que produz a maior quantidade de
utilidade, ou as maiores consequências positivas gerais. No entanto, qual é o
critério apropriado de utilidade? O que tem valor intrínseco? Historicamente, os
utilitaristas têm tomado o prazer e a felicidade como medida de consequências.
Versões mais recentes do utilitarismo voltaram-se para bens mais elevados
("ideais") ou para preferências como medida de consequências. Cada uma dessas
quatro medidas de valor intrínseco tem suas forças e suas limitações.

Originalmente, o utilitarismo tornou-se influente com o trabalho de


Jeremy Bentham (1748-1832), que definiu a utilidade em termos de prazer e dor.
De acordo com Bentham (1974), devemos agir de forma a maximizar o prazer e
minimizar a dor. Esta posição é conhecida como utilitarismo hedonista. Observe
que isso é muito diferente de um hedonismo direto, que recomendaria maximizar
o próprio prazer e minimizar a própria dor. O utilitarismo hedonista recomenda
maximizar a quantidade total de prazer e minimizar a quantidade total de dor.

A filosofia de Bentham rapidamente foi atacada como "a filosofia do


porco" por causa do que parecia ser sua ênfase grosseira em prazeres sensuais e
corporais, em que os porcos também sentem tais prazeres assim como os humanos
(SANTOS, 2017). John Stuart Mill (1806-1873), o afilhado de Bentham, propôs
uma grande reformulação da posição utilitarista argumentando que a utilidade
deveria ser definida em termos de felicidade em vez de prazer (MILL, 2000). O
padrão de Mill parecia ser um avanço definitivo sobre o de Bentham, pois era
baseado em um padrão mais elevado que o simples prazer. Isso é chamado
de utilitarismo eudemonista (a palavra eudemonista vem da palavra grega para
"felicidade", eudaimonia). Para ver por que este é o caso, consideraremos algumas
das diferenças entre prazer e felicidade como o padrão de utilidade.

As diferenças entre prazer e felicidade são significativas. Tendemos


a pensar que o prazer é, primordialmente, corporal ou sensual. Comer, beber
e fazer sexo vêm, imediatamente, à mente como modelos de casos de prazer.
Felicidade, por outro lado, geralmente, é menos imediatamente atrelada ao corpo.
Poderíamos, inicialmente, caracterizá-la como pertencendo mais à mente ou ao

103
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

espírito do que ao corpo (SANTOS, 2017).

Em segundo lugar, o prazer, geralmente, parece ser de duração menor do


que a felicidade. Isso decorre da natureza do próprio prazer (MULGAN, 2012).
O prazer, pelo menos aos olhos de muitos psicólogos e filósofos, é o sentimento
agradável que experimentamos quando um estado de privação é substituído por
um estado de saciedade ou satisfação. Por exemplo, o prazer é o que sentimos
quando bebemos um copo de água fresca e agradável para saciar nossa sede.
No entanto, isso nos dá uma visão da razão pela qual os prazeres são de curta
duração. Uma vez que estamos saciados, já não experimentamos o objeto como
prazeroso. Uma vez que não estamos mais sedentos, beber água torna-se menos
agradável. A felicidade, em contrapartida, parece estar na realização de certas
metas, esperanças ou planos para a própria vida. Na medida em que esses
objetivos são intrinsecamente gratificantes, não nos cansamos deles da mesma
maneira que podemos nos cansar de certos prazeres.

Em terceiro lugar, a felicidade pode abranger tanto o prazer quanto a dor


(DONNER; FUMERTON, 2011). Na verdade, poderíamos facilmente imaginar
alguém dizendo que sua vida é feliz, mas ainda reconhecendo momentos
dolorosos. Um bom exemplo disso é uma mulher que dá à luz uma criança há
muito esperada. Ela pode experimentar um pouco de dor durante e após o parto,
mas ela ainda pode se sentir feliz. Sob outra perspectiva, podemos imaginar
alguém experimentando prazer, mas não se sentindo feliz. Pense em alguém
fumando crack, que estimula diretamente o centro de prazer do cérebro. Eles
podem ter prazer quando inalam profundamente, mas poderiam sentir-se muito
infelizes com sua vida, carreira, casamento, e assim por diante.

Finalmente, há um melhor elemento avaliativo em nossa noção de


felicidade do que há em nossa ideia de prazer. Podemos querer distinguir
entre prazeres bons e maus, entre inofensivos e nocivos, mas não duvidamos
que os maus prazeres sejam ainda prazeres. Com a felicidade, por outro lado,
construímos um componente avaliativo (DONNER; FUMERTON, 2011). É
provável que questionemos se as pessoas são genuinamente felizes de uma forma
que não questionamos se elas estão realmente sentindo prazer.

O prazer e a felicidade não são os únicos padrões possíveis de utilidade,


e, no século XX, as tentativas de redefinir o padrão de utilidade em termos de
bens ideais como liberdade, conhecimento e justiça (G. E. Moore) e preferências
individuais (Kenneth Arrow) (HINMAN, 2008). Estas versões, utilitarismo ideal
e utilitarismo de preferência, respectivamente, fornecem variações sobre o tema
utilitarista. Podemos resumir estas várias versões do utilitarismo da seguinte
maneira:

104
TÓPICO 1 | TEORIAS CONSEQUENCIALISTAS DA MORALIDADE

QUADRO 3 - MEDIDAS DE UTILIDADE


NÚMERO
TIPO DE PADRÃO DE PRINCIPAL
DE BENS
UTILITARISMO UTILIDADE PROPONENTE
INTRÍNSECOS
Hedonista Prazer Um Bentham
Eudaimonista Felicidade Um Mill
Ideal Justiça, liberdade etc. Muitos Moore
De preferência Preferência Indeterminado Arrow
FONTE: Hinman (2008, p. 133)

Nenhum candidato único surgiu como a única escolha entre os filósofos


para o padrão de utilidade. O desacordo entre os filósofos sobre esta questão
parece refletir um desacordo maior em nossa própria sociedade (MULGAN, 2012).
Se as consequências importam, ainda temos que decidir qual critério utilizar na
medição delas. A atração da teoria da preferência neste contexto é que ela permite
essa multiplicidade de padrões, todos os quais são expressos como preferências.

Na verdade, pode haver uma vantagem distinta em permitir uma


multiplicidade de diferentes tipos de fatores subjacentes à utilidade. Este é um
tipo de pluralismo dentro de uma teoria moral específica. O utilitarismo já foi
criticado por ser muito estreito, por reduzir todas as nossas considerações na vida
a um único eixo de utilidade, geralmente prazer ou felicidade. Há muito a ser
dito para uma teoria mais completa e flexível que nos permita reconhecer que as
consequências precisam ser medidas de acordo com vários padrões. A dificuldade
com tal movimento, entretanto, é que torna o utilitarismo uma doutrina mais
complexa, que seja mais difícil de aplicar na prática (RACHELS; RACHELS, 2014).
Além disso, os utilitaristas que vão nessa direção precisam especificar a relação
entre os diferentes tipos de padrões. Quando, por exemplo, uma alternativa ocupa
um lugar de destaque na medida da felicidade, e outra linha de ação se destaca
na escala da justiça, qual delas teria precedência. Finalmente, ameaça roubar o
utilitarismo de sua principal vantagem, isto é, oferecer um método claro para o
cálculo da moralidade das ações, regras e políticas sociais (MULGAN, 2012).

O utilitarista sustenta que devemos preferir o que produzir a maior


utilidade total, e isso é determinado pesando as consequências, mas as
consequências de quê? Os utilitaristas deram pelo menos três respostas diferentes
a esta questão, que não são necessariamente mutuamente exclusivas: atos, regras
e práticas.

DICAS

Assista ao documentário “O utilitarismo: o projeto de construir uma ética racional”,


do Curso Livre de Humanidades – Filosofia, com Luis Alberto Peluso, Prof. Dr. em
Filosofia PUC/Campinas. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=xf_SeZjM0Zw>.
Acesso em: 11 jul. 2018.

105
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

4.1 O UTILITARISMO DE ATO


O utilitarismo de ato diz, essencialmente, que todos devem executar esse
ato que trará a maior quantidade possível de bens para todos afetados pelo ato
(BONJOUR; BAKER, 2010). Seus defensores não acreditam na criação de regras
para a ação porque sentem que cada situação e cada pessoa são diferentes. Cada
indivíduo, então, deve avaliar a situação em que está envolvido e tentar descobrir
qual ato traria a maior quantidade de consequências boas com a menor quantidade
de consequências ruins, não apenas para si mesmo, como no egoísmo, mas para
todos os envolvidos na situação.

Ao avaliar a situação, o agente (a pessoa que vai atuar ou está agindo)


deve decidir se, por exemplo, dizer a verdade é a coisa certa a fazer nesta situação
e neste momento. Não importa que a maioria das pessoas acredite que dizer a
verdade é, geralmente, uma coisa boa a se fazer. O utilitarista de ato deve decidir-
se com respeito à situação particular que está vivendo no momento se ou não é
correto dizer a verdade. Para o utilitarismo de ato, não pode haver regras absolutas
contra matar, roubar, mentir e assim por diante, porque cada situação é diferente
e todas as pessoas são diferentes (CORTINA; MARTÍNEZ, 2005). Portanto, todos
aqueles atos que, em geral, podem ser considerados imorais, seriam considerados
morais ou imorais pelo utilitarista de ato apenas em relação a se eles trariam
ou não trariam o maior bem sobre o menor mal para todos em uma situação
particular.

4.1.1 Crítica ao Utilitarismo de Ato


Existem várias críticas ao utilitarismo de ato. Uma delas foi citada como
fornecendo apoio para o egoísmo ético, e isso é porque é muito difícil determinar
o que resultará em boas consequências para os outros (HINMAN, 2008; HURKA,
2008). Envolvido na dificuldade de decidir quais serão as consequências de
qualquer ação que se está a tomar, soma-se o problema de decidir o que é "bom" e
"certo" para os outros. O que pode ser uma boa consequência para você, pode não
ser igualmente bom, ou de nenhum modo bom para outros. E como você poderia
saber, a menos que você possa perguntar às outras pessoas, o que seria bom
para elas? Muitas vezes, é claro, não há tempo para perguntar nada a ninguém.
Simplesmente devemos agir da melhor maneira possível.

Além disso, há certa impraticabilidade em ter que começar de novo com


cada situação (RACHELS; RACHELS, 2014). De fato, muitos moralistas podem
questionar a crença do consequencialista de ato e avaliar que cada ato e cada
pessoa é completamente diferente, afirmando que há muitas semelhanças entre
os seres humanos e seus comportamentos que justificariam a definição de certas
regras. Por exemplo, os críticos do utilitarismo de ato podem dizer que há
pessoas suficientes que valorizam suas vidas para que haja alguma regra contra o
assassinato, mesmo que tenha que ser qualificado, por exemplo dizendo: "Nunca
mate, exceto em legítima defesa". Poderia ainda dizer que é uma perda de tempo
106
TÓPICO 1 | TEORIAS CONSEQUENCIALISTAS DA MORALIDADE

e até absurdo reavaliar cada situação quando há uma escolha de matar ou não
matar. Parece que alguém deveria simplesmente seguir a regra geral e qualquer
de suas qualificações válidas. Como mencionado anteriormente, o fator tempo
na tomada de decisões morais é, muitas vezes, importante. Muitas vezes, uma
pessoa não tem tempo para começar do zero quando confrontada com cada novo
problema moral. Na verdade, ser forçado a começar constantemente de novo
pode resultar em uma incapacidade de cometer um ato moral a tempo.

O utilitarista de ato responderia que depois de experimentar muitas


situações, aprende-se a aplicar a experiência de uma pessoa à situação nova
prontamente, com um mínimo de desperdício de tempo, de modo que alguém
não estaria realmente começando do zero a cada vez (HINMAN, 2008). Quando as
pessoas invocam a experiência passada e agem consistentemente de acordo com
ela, não estariam realmente agindo com base em regras não especificadas? Se elas
estiveram em uma série de situações em que a escolha moral é não matar outro ser
humano, e elas fossem agora confrontadas com outra situação semelhante, então
elas não estariam realmente operando sob uma regra oculta que diz: "Nunca mate
outro ser humano em qualquer situação semelhante à situação X"? Se assim for,
eles são utilitaristas de regras que simplesmente não anunciaram suas regras.

Uma última crítica ao utilitarismo de ato pergunta como se deve educar


os jovens ou os não iniciados a agir moralmente se não houver regras ou guias a
seguir, exceto uma: cada pessoa deve avaliar quais seriam as maiores e melhores
possíveis consequências boas de cada ato para cada situação que surge para todos
envolvidos (MULGAN, 2012). Parece que sob este sistema ético todo mundo deve
começar de novo na medida em que ele está crescendo em busca de descobrir
qual é a coisa moralmente correta a ser feita em cada situação, tal como ela ocorre.
Isso pode ser admissível na estimativa de alguns filósofos, mas é muito difícil,
se não impossível, conduzir qualquer tipo de educação moral sistemática nessa
base.

4.2 O UTILITARISMO DE REGRAS


Foi para dar uma resposta a muitos dos problemas do utilitarismo de ato
que o utilitarismo de regras foi estabelecido (MULGAN, 2012). Nessa forma, o
princípio básico utilitarista não é que "todos deveriam sempre agir para trazer
o maior bem para todos os envolvidos", mas sim que "todos deveriam sempre
estabelecer e seguir essa regra ou as regras que produzirão o maior bem para
todos os envolvidos​​". Isso, pelo menos, elimina o problema de ter que começar
de novo para descobrir as prováveis ​​consequências para todos em cada situação,
e também fornece um conjunto de regras que podem ser aludidas na educação
moral dos não iniciados.

Os utilitaristas de regras tentam, a partir da experiência e do raciocínio


cuidadoso, estabelecer uma série de regras que, quando seguidas, renderão o
maior bem para toda a humanidade (FURROW, 2007). Por exemplo, ao invés

107
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

de tentar descobrir se alguém deve ou não matar alguém em cada situação em


que esse problema possa surgir, os utilitaristas de regras podem formar a regra
“nunca mate, exceto em autodefesa”. Sua suposição em afirmar esta regra é que,
exceto quando é feito em legítima defesa, matar trará mais consequências ruins
do que boas para todos os envolvidos, tanto agora como provavelmente em longo
prazo. Matar, eles poderiam acrescentar, se permitido em qualquer situação,
exceto a situação de autodefesa, criaria precedentes perigosos. Isso encorajaria
mais pessoas a tirar a vida dos outros do que eles fazem agora, e porque a vida
humana é básica e importante para todos, não ter tal regra sempre causaria mais
mal do que bem a todos os interessados.

Os utilitaristas de regras, obviamente, acreditam ao contrário de


suas contrapartes de "ato", que existem motivos, ações e situações humanas
semelhantes o suficiente para justificar a criação de regras que se apliquem a
todos os seres humanos e a todas as situações humanas (HINMAN, 2008). Para
o modo de pensar do utilitarista de regras, é tolo e perigoso deixar as decisões
das ações morais aos indivíduos sem lhes dar alguma orientação e sem tentar
estabelecer uma espécie de estabilidade e ordem moral na sociedade, ao contrário
da aleatoriedade, quase adivinhação, que parece ser defendida pelo utilitarista de
ato.

4.2.1 Crítica ao Utilitarismo de Regras


Associados ao utilitarismo de regras estão alguns dos mesmos problemas
que encontramos com o utilitarismo de ato, especialmente na área de tentar
determinar as consequências boas para os outros (RACHELS; RACHELS,
2014). Esse problema, como mencionado anteriormente, é uma desvantagem
que o egoísmo não compartilha. Como se pode ter certeza, dadas as grandes
diferenças entre os seres humanos e as situações humanas, que realmente se
pode estabelecer uma regra que cubra tal diversidade, muito menos que ela
sempre e verdadeiramente produza o maior bem para todos os interessados?
Esta dificuldade é acrescentada àquela compartilhada pelo egoísta e pelo
utilitarista de ato, que é tentar determinar todas as consequências não apenas
para uma ação, mas para todas as ações e situações que ocorrem sob qualquer
regra particular. Os moralistas que não aderem às regras argumentam fortemente
que não há nenhuma regra para a qual não se pode encontrar pelo menos uma
exceção em algum lugar ao longo do tempo, e no momento em que um indivíduo
incorpora todas as exceções possíveis em uma regra, está na verdade defendendo
o utilitarismo de ato. Portanto, eles argumentam, uma pessoa estaria melhor sem
regras, como elas possivelmente não podem aplicar-se a todas as situações que
alguém poderá enfrentar.

Por exemplo, poderia a regra “nunca mate, exceto em legítima defesa”


cobrir todas as situações em que os seres humanos estariam propensos a se
envolver? Abrangerá o aborto, por exemplo? Muitos antiabortistas pensam assim,
afirmando que de nenhuma maneira poderá o feto não nascido ser considerado

108
TÓPICO 1 | TEORIAS CONSEQUENCIALISTAS DA MORALIDADE

um agressor. Portanto, não poderia ser abortado. Por outro lado, os defensores
da pró-escolha não consideram o feto como um ser humano ou defendem a
precedência da vida da mãe sobre o feto e acreditam que há momentos em que
o feto deve ser abortado (BONJOUR; BAKER, 2010). Como, por exemplo, a regra
utilitarista lida com o aborto do feto quando a vida da mãe está em perigo não
especificamente porque ela está grávida, mas por alguma outra razão? O feto não
pode ser considerado um agressor, então como poderia ser abortado em legítima
defesa?

Nenhuma reivindicação foi de fato feita que os utilitaristas de regras


tivessem tal regra, mas o exemplo foi projetado aqui para mostrar como é difícil
formar uma regra que cubra todas as situações sem exceção. Os utilitaristas
de regras podem, obviamente, classificar suas regras colocando-as em
categorias primárias e secundárias (MULGAN, 2012), mas o problema continua
independentemente da categoria na qual a regra é encontrada. Os utilitaristas,
de ato, não têm esse problema. Eles podem ter problemas para justificar uma
determinada ação, mas pelo menos eles não se comprometem a agir de uma só
maneira em todas as situações. Eles podem cometer um erro na situação A, mas
quando a situação B surge, eles têm outra chance de julgar e agir de novo, sem
serem impedidos por quaisquer regras vinculativas que os liguem a uma série de
erros.

4.3 UTILITARISMO DE PRÁTICAS


Alguns filósofos tomaram um passo além dos utilitaristas de regras,
sugerindo que as considerações utilitaristas têm relevância para justificar a
existência de certos tipos de práticas (HINMAN, 2008), embora o utilitarismo
possa não fornecer uma base adequada para decidir atos específicos dentro dessa
prática. Pode-se considerar isso como um tipo de utilitarismo de regra, mas é
importante notar que há uma diferença significativa entre regras e práticas. As
regras são mais específicas do que as práticas, e uma prática pode abranger
numerosas regras. Colecionar selos, por exemplo, é uma prática, e contém muitas
regras de ação específicas sobre quais tipos de selos comprar, quando vender
e assim por diante. As práticas incluem regras, mas contêm outras coisas a
mais também. Elas são, muitas vezes, incorporadas em instituições específicas
(sociedades filatélicas) e em padrões de interação social (por exemplo, convenções
de colecionadores de selos) que vão além de qualquer conjunto específico de
regras.

John Rawls (2000), filósofo contemporâneo cuja obra Teoria da Justiça é


uma das mais recentes e influentes obras de ética, sugeriu que podemos justificar
a prática da punição como um todo através de argumentos utilitários. Uma
sociedade sem instituições e práticas de punição produziria menos utilidade
geral do que aquela que contivesse tais instituições e práticas. Rawls evita os
problemas levantados pelas justificações utilitaristas de ato de punição específicas,
argumentando que punições específicas devem ser determinadas com base em

109
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

considerações retributivas, não por motivos utilitários. A punição específica


dependeria da gravidade da ofensa, não da utilidade de impor a punição. Em
outras palavras, indivíduos específicos seriam punidos porque o mereciam, não
por causa das consequências produzidas punindo-os. O mérito de uma sugestão
como a de Rawls é que ela nos permite combinar intuições utilitárias e kantianas
(LOVETT, 2013). O raciocínio utilitarista justifica a existência da instituição da
punição, e as considerações kantianas de retribuição determinam a natureza e
a severidade de atos punitivos específicos. Quando resumimos essas várias
posições, obtemos o seguinte quadro:

QUADRO 4 – CONSEQUÊNCIAS DO QUÊ?


CONSEQUÊNCIAS DO
TIPO DE UTILITARISMO PRINCÍPIO CENTRAL
QUÊ?
Desempenhar o ato
Ato Cada ato que produzirá a maior
quantidade de utilidade.
Seguir a regra que
Regra Regras produzirá a maior
quantidade de utilidade.
Apoiar as práticas que
Prática Práticas produzirão a maior
quantidade de utilidade.
FONTE: Hinman (2008, p. 149)

4.4 A ANÁLISE CUSTO-BENEFÍCIO OU ABORDAGEM “FIM


JUSTIFICA OS MEIOS”
Há outro problema em ambas as formas de utilitarismo, e essa é a
dificuldade de se levar o aspecto "útil" do utilitarismo longe demais (RACHELS;
RACHELS, 2014). Os não utilitaristas podem perguntar, por exemplo, se é sempre
correto tentar alcançar "o maior bem para o maior número". Isso não acabaria às
vezes como o maior benefício para a maioria, todavia, com algumas consequências
muito ruins para a minoria? Será que a ciência, por exemplo, estaria justificada
em pegar 100 crianças e realizar experiências dolorosas e, eventualmente, fatais
se os médicos pudessem garantir a salvação de 10 milhões de vidas de crianças
no futuro? Certamente, pensando só em número, isso seria o maior bem para o
maior número, mas muitos moralistas objetariam dizendo que cada indivíduo é
único, moralmente falando, e, portanto, nenhuma dessas experiências deve ser
realizada, independentemente, de quantas pessoas serão salvas.

Podemos também imaginar um caso em que a escravização de uma


população de minoria muito pequena fará a população da maioria muito feliz.
Em geral, a felicidade será maximizada por reter, em vez de abolir, o sistema.
Em sua defesa cuidadosamente argumentada do utilitarismo de ato, Richard M.

110
TÓPICO 1 | TEORIAS CONSEQUENCIALISTAS DA MORALIDADE

Hare (2013) argumenta que a preservação da escravidão sob tais circunstâncias


é de fato uma exigência moral. Hare (2013) argumenta que nossas convicções
sobre a importância da justiça podem ser explicadas e justificadas por motivos
utilitários. Quando se trata de avaliar a moralidade real de nossas práticas, às
vezes, devemos deixar de lado essas crenças convencionais fortemente mantidas
e apelar diretamente ao princípio utilitarista de ato que nos diz que estamos
realmente moralmente obrigados a perpetrar algumas instâncias de injustiça.

No entanto, se estamos buscando o maior bem para todos, existe o perigo


do que muitos chamam de "análise de custo-benefício" ou abordagem "fim que
justifica os meios" da moralidade, ou seja, tentar calcular quanto esforço ou custo
trará mais benefícios. Esta abordagem também nos envolve na determinação do
valor social dos indivíduos em uma sociedade, de modo que aquelas pessoas que
são de "valor" mais elevado para a sociedade, como alguns profissionais, recebem
mais benefícios do que aqueles com “valor” menor. Em outras palavras, às vezes,
ao tentar fazer o maior bem para o maior número, podemos nos encontrar sendo
muito imorais em relação a alguns poucos.

Alguns moralistas, incluindo Immanuel Kant (2007) e Ayn Rand (1991),


acreditam que cada ser humano deve ser considerado como um fim em si mesmo,
nunca meramente como um meio. Tentar ser equitativo e justo para com todos
os membros de uma sociedade parece ser uma abordagem mais moral do que
simplesmente tentar alcançar o maior bem para o maior número. Certamente,
há momentos em que um grupo de pessoas tem que pensar na sobrevivência do
grupo em vez de um ou dois indivíduos, e então as decisões morais têm que ser
feitas sobre quem recebe os "bens" que estão em falta. No entanto, uma pessoa
que sempre opera sob o ideal "o maior bem para o maior número" muitas vezes
ignora o que é bom para todos.

Na medicina, por exemplo, pode ocorrer um momento em que a


sobrevivência do grupo é colocada acima da sobrevivência de alguns indivíduos
(CLOTET, 2003). Durante um desastre grave, quando as instalações médicas
simplesmente não podem lidar com todos os que estão feridos, os médicos
concentram-se nos pacientes que sabem que podem salvar e não nos casos "sem
esperança". Além disso, um médico ou enfermeira ferida que poderia ser posto
a trabalhar, provavelmente, seria o primeiro a obter atendimento médico porque
ele ou ela seria capaz de ajudar a salvar mais pessoas feridas do que uma pessoa
leiga em medicina.

Estas, felizmente, são circunstâncias incomuns, e elas exigem prioridades


diferentes de situações mais normais. Aplicar a análise de custo-benefício ou
a abordagem fim que justifica os meios às situações mais normais, no entanto,
equivale tratar os seres humanos como se fosse algum tipo de "produto" inanimado
em uma transação de negócios. Deste modo, a maioria dos moralistas acha esta
visão da humanidade abominável e imoral.

Em conclusão, então, o utilitarismo é uma melhoria em relação ao egoísmo

111
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

ético, na medida em que ele tenta levar em consideração em qualquer ação moral
todas as pessoas envolvidas. Ao mesmo tempo, no entanto, ele se depara com a
dificuldade de determinar o que seria bom para os outros, uma dificuldade não
envolvida no egoísmo ético. No utilitarismo de ato, o problema é que não há
regras morais ou guias para conduzir-nos. Uma pessoa deve decidir o que é certo
para todas as pessoas em cada situação que ele enfrenta. No utilitarismo de regras,
o problema é descobrir quais regras abrangem realmente todos os seres humanos
e situações, embora esta forma de utilitarismo evite a ambiguidade de ter que
recomeçar em cada nova situação. O último problema com ambas as formas de
utilitarismo é que ele se presta ao tipo de pensamento de análise custo-benefício,
que muitas vezes resulta no tipo de moralidade em que se busca o "maior bem
para o maior número", ou seja, a noção de que qualquer fim, e, especialmente,
qualquer fim que seja bom, justifica qualquer meio usado para alcançá-lo. Existe
uma questão entre muitos moralistas sobre se devemos nos concentrar apenas
nas consequências ou nos fins e ignorar outras coisas, como meios ou motivos
ao tomar decisões morais. Essa questão será discutida mais adiante quando o
Imperativo Prático de Immanuel Kant for apresentado no próximo tópico.

Outra vantagem que o utilitarismo tem sobre o egoísmo ético é que ele é
muito mais adequado para as pessoas nas profissões de ajuda, como a psicologia,
na medida em que se preocupa com as melhores consequências boas para todos.

5 DIFICULDADE COM AS TEORIAS CONSEQUENCIALISTAS


EM GERAL
Uma dificuldade inerente a todas as teorias consequencialistas é a
necessidade de tentar descobrir e determinar o máximo de consequências
possíveis de nossas ações – uma tarefa difícil na melhor das hipóteses (HINMAN,
2008; RACHELS; RACHELS, 2014). Esse problema existe tanto para aqueles
que estão preocupados com o interesse próprio como para aqueles que estão
preocupados com o interesse de todos. Porém, obviamente, é um problema maior
para os utilitaristas, porque eles têm que se preocupar em como as consequências
afetam outras pessoas além de a si mesmas. O crítico às teorias consequencialistas
provavelmente diria que é muito difícil avaliar todas as consequências de qualquer
uma de nossas ações porque os indivíduos não podem ver o suficiente no futuro,
nem os humanos têm conhecimento suficiente sobre o que é melhor para nós ou
para todos os interessados para fazer tal julgamento. Por exemplo, se alguém
está vivendo sob o governo de um líder incompetente, a maneira mais rápida
de remover esse líder seria assassiná-lo, mas qual seria a consequência de tal ato
e como os indivíduos podem calcular o número de benefícios em oposição ao
número de consequências ruins e fazer isso para nós ou para todos os envolvidos
pela ação? É óbvio que alguém acabaria com o governo do líder matando-o, mas
quem chegaria ao poder depois? Essa próxima pessoa seria melhor, ou seria pior?
Suponhamos que alguém soubesse quem seria o próximo líder e pensou que seria
um bom líder, mas acabou por ser pior do que o líder anterior. O que seria pior,

112
TÓPICO 1 | TEORIAS CONSEQUENCIALISTAS DA MORALIDADE

sofrer por três ou quatro anos sob um líder incompetente ou dar precedente ao
ato de assassinato, de modo que quando as pessoas estivessem insatisfeitas, com
razão ou sem razão, com seu líder sentissem que podem usar do assassinato
para removê-lo? No caso do utilitarismo, pela razão de que os indivíduos estão
preocupados com todos os envolvidos na situação, pode-se avaliar com alguma
precisão o efeito que matar ou não matar o líder terá sobre as crianças da sociedade
e até mesmo sobre seus futuros membros que irão nascer? Será que será possível
saber quais serão as consequências, presentes e futuras, de um ato? Se não, então
como se pode julgar cada situação bem o suficiente para tomar a ação correta?

Em um exemplo tirado da história dos EUA, poderia o presidente Harry


Truman ter previsto todas as consequências de sua decisão de derrubar as
bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki durante a Segunda Guerra Mundial?
Obviamente, ele poderia determinar as consequências mais imediatas, como o
encurtamento da guerra e poupar mais vidas de cidadãos norte-americanos.
Poderia ele ter previsto as consequências em longo prazo: a guerra fria, o
desenvolvimento das bombas de hidrogênio e de nêutrons, o armazenamento
de armas nucleares até uma quantidade na qual a capacidade de destruição
ultrapassaria o necessário, as consequências da radiação e consequente poluição
da atmosfera? Como ilustra este exemplo, a descoberta e determinação das
consequências dos atos e das regras, seja para nós mesmos ou para os outros,
não é uma tarefa fácil, não é uma tarefa que pode ser realizada com acurácia ou
precisão.

As preocupações sobre como o consequencialismo pode ser muito exigente


levaram muitos a rejeitá-lo (VAZ, 2006). Peter Railton (2013) tenta diagnosticar
e refutar essas preocupações, oferecendo uma imagem impressionantemente
matizada de consequencialismo de ato que ele acredita que pode resistir às várias
preocupações que foram agrupadas sob as objeções da "exigência". Se ele tem
razão, então, na melhor compreensão das exigências do consequencialismo,
podemos manter nossas amizades, integridade pessoal e compromissos especiais
com outras coisas além de tornar o mundo um lugar melhor e ainda agir como
o consequencialismo exige que façamos. Peter Singer também está alerta para as
preocupações sobre como o consequencialismo pode ser exigente. Ele argumenta
francamente que a moralidade pode ser muito exigente, e que nossa relutância
em aceitar isso é autoindulgência, e não uma razão para duvidar dos méritos do
utilitarismo de ato. Singer (2013) aplica a doutrina utilitarista do ato ao tema do
alívio da fome, argumentando que nós que vivemos nos países mais prósperos
podemos salvar muitos outros da morte prematura se abrirmos mão de uma boa
parte do que temos. Pensamos que temos discrição moral sobre nossas posses e
nossas folhas de pagamento, mas se Singer está correto, esse pensamento está
errado. Grande parte do que possuímos não é, ele pensa, moralmente pertencente
a nós, mesmo que a lei nos proteja em nossas reivindicações. Na visão de Singer,
se pudermos evitar o sofrimento sem, no entanto, causar a nós mesmos um mal
similar ao dos nossos pretendidos beneficiários, então estaríamos moralmente
obrigados a fazê-lo.

113
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

DICAS

Àqueles que se opõem a tal sugestão aconselhamos a ler o artigo provocativo


Famine, affluence and morality (Fome, riqueza e moralidade) de Singer (2013) ou sua obra
O maior bem que podemos fazer (2016) e usá-lo como uma espécie de caso avaliativo para
determinar a plausibilidade do utilitarismo do ato que sua proposta encarna.

E se alguém criasse um sistema moral sem ter que considerar as


consequências? Se os indivíduos pudessem decidir o que é certo ou errado em
alguma base diferente das consequências, talvez pudéssemos evitar algumas
das dificuldades envolvidas tanto no egoísmo ético quanto no utilitarismo. O
próximo tópico abordará essas teorias.

6 A ÉTICA DO CUIDADO
Há uma teoria mais nova chamada "ética do cuidado", e, às vezes, "ética
feminista", que foi estabelecida pela psicóloga Carol Gilligan (1936-) em seu livro
Uma voz diferente (1992). Esta teoria não é geralmente considerada uma teoria ética
consequencialista no sentido formal, como o egoísmo ético e o utilitarismo, mas
parece que se enquadra no consequencialismo mais do que no não sequencialismo.

De acordo com Gilligan (1992), homens e mulheres pensam de forma


bastante diferente quando se trata de tomada de decisão ética. Outro psicólogo
famoso, Lawrence Kohlberg (1992), concorda, mas conclui que essa diferença
significa que o raciocínio ético das mulheres é inferior ao dos homens. Gilligan
(1997), por outro lado, acha que as opiniões das mulheres sobre a ética são
diferentes, mas devem ser consideradas iguais às dos homens. A diferença,
segundo ambos os psicólogos, é que os pontos de vista dos homens sobre a ética
têm mais a ver com a justiça, os direitos, a competição, a independência e o viver
segundo regras, enquanto as mulheres têm mais a ver com a generosidade, a
harmonia, a reconciliação e o trabalho para manter relacionamentos próximos.

Kohlberg (1992) criou um dilema no qual a mulher de um homem está


desesperadamente doente e o homem não pode pagar a medicação que ela precisa.
Kohlberg então perguntou a duas crianças de 11 anos, um menino e uma menina,
se o homem deveria roubar a medicação. O menino disse sim porque a vida da
esposa é mais importante do que a regra de não roubar. A garota, no entanto,
disse que não, porque se o homem for pego e conduzido à cadeia, quem cuidaria
de sua esposa doente? Assim como ele talvez pudesse pedir ao farmacêutico para
dar-lhe o medicamento e ele poderia pagar ao farmacêutico mais tarde.

114
TÓPICO 1 | TEORIAS CONSEQUENCIALISTAS DA MORALIDADE

De acordo com Kohlberg (1992), o rapaz tinha uma compreensão clara


da situação porque os direitos da esposa iriam se sobrepor à regra de não
roubar, ou seja, a questão era toda sobre direitos e justiça. Além disso, Kohlberg
achou que a compreensão da menina sobre a situação era fraca. Por outro lado,
Gilligan (1997) pensa que o menino e a menina estavam respondendo a diferentes
perguntas: O rapaz estava respondendo à pergunta: “O homem deveria roubar
ou não a medicação?" Enquanto a menina estava respondendo à pergunta: “O
homem deve roubar a medicação ou fazer alguma outra coisa?” A menina não
estava tão preocupada com direitos e justiça, mas com o que aconteceria com o
homem e sua esposa, e ela também estava considerando a humanidade possível
do farmacêutico. Em outras palavras, ela pensou em termos de cuidar. Portanto,
Gilligan vê uma tendência dos homens para se concentrar em uma ética da justiça,
enquanto as mulheres se concentram em uma ética do cuidar. Todavia, ela acha
que ambos os pontos de vista da ética são vantajosos e devem ser considerados
diferentes, mas igualmente válidos. Ela acha que a situação ideal é que homens e
mulheres devem considerar ambas as visões de ética porque os homens poderiam
aprender sobre compaixão e cuidado na ética e as mulheres poderiam aprender
a se concentrarem em direitos e justiça. Além disso, ela ressalta que as mulheres
deveriam reconhecer seus próprios direitos como seres humanos e não serem
consideradas inferiores aos homens simplesmente porque eles pensam de forma
diferente sobre a ética.

Alguns críticos, como Dindia (2006) e Hyde (2005), pensam que, aceitando
a teoria de Gilligan, pode-se elevar os chamados valores femininos muito acima
dos valores masculinos e substituindo um sistema ético injusto por outro sistema
ético injusto, estabelecendo as mulheres como normais e os homens como
inferiores. Além disso, se alguém diz que é a natureza das mulheres ser cuidadosas
e compassivas, não estamos as empurrando de volta para onde estavam antes
de Gilligan? Portanto, ao invés da teoria de Gilligan, oferecer aos homens e às
mulheres mais oportunidades, ela pode criar novas categorias que poderiam
resultar na exclusão de mulheres de trabalhos tradicionalmente masculinos
(por exemplo, engenharia) e homens de trabalhos femininos (por exemplo,
enfermagem). Além disso, os críticos dizem que Gilligan perturbou a filosofia
da igualdade de gênero de modo que uma empresa que queira contratar alguém
com uma boa compreensão de regras legais, por exemplo, não vai contratar uma
mulher para o trabalho, porque ela não tem verdadeiro senso de justiça. Desta
forma, sua teoria psicológica do gênero pode passar de descrever a igualdade
de gênero para prescrever um conjunto de regras sobre quem deve fazer quais
trabalhos.

115
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

UNI

Problema ético
VOCÊ ACIONARIA O INTERRUPTOR?
A filósofa Philippa Foot (1920-2010), em 1967, desenvolveu um experimento de pensamento
ético conhecido como o Dilema do Bonde. Outros filósofos criaram variações deste problema
e uma busca rápida na internet possibilitará a atualização sobre os detalhes.
O experimento segue assim. Um bonde está fora de controle, está acelerando em direção
a um grupo de quatro ou cinco homens que trabalham na trilha. Eles não veem o bonde
vindo e todos serão mortos se nenhuma ação for tomada. No entanto, você pode acionar um
interruptor que desviará o bonde para uma trilha lateral. Isso vai salvar os trabalhadores, mas há
um trabalhador solitário na trilha lateral que será morto se você acionar o interruptor. Você vai
acionar o interruptor? Por que ou por que não?
Depois de ter discutido o problema, pesquise o "Homem gordo", uma variação do Dilema do
bonde. Você empurraria o homem gordo da ponte? Por que ou por que não? Quais são os
limites do pensamento utilitarista estrito?

116
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• A moralidade consequencialista (teleológica) se baseia ou se preocupa com


as consequências. A moralidade não consequencialista (deontológica) não se
baseia ou se preocupa com as consequências.

• O egoísmo psicológico não é uma teoria ética, mas é uma teoria descritiva ou
científica que tem a ver com o egoísmo.

• O egoísmo psicológico aparece em duas formas, nenhuma das quais pode


funcionar como base para o egoísmo ético. A forma forte sustenta que as
pessoas sempre agem em seu interesse próprio. A forma fraca sustenta que as
pessoas muitas vezes, mas não sempre, agem em seu interesse próprio.

• O egoísmo psicológico em sua forma forte não refuta a moralidade, e em sua


forma fraca não fornece uma base racional para o egoísmo ético.

• O egoísmo ético é uma teoria filosófica-normativa e prescritiva. Aparece em


três formas: 1. A forma individual sustenta que cada um deve agir em meu
interesse próprio individual; 2. A forma pessoal sustenta que eu deveria agir
em meu interesse próprio, mas não fazer afirmações sobre o que qualquer outra
pessoa deveria fazer; 3. A forma universal sustenta que todos devem sempre
agir em seu interesse próprio.

• O problema com a primeira e a segunda forma do egoísmo ético é que elas


se aplicam apenas a um indivíduo e não podem ser estabelecidas para a
humanidade em geral, porque isso, provavelmente, não estaria no interesse
próprio do egoísta ético.

• O egoísmo ético universal é a versão mais comum do egoísmo ético, mas


também tem seus problemas: 1. É inconsistente, na medida em que não está
claro qual interesse próprio deve ser satisfeito; 2. O que se entende por “todos”
não é claro; 3. Há uma dificuldade em determinar como dar conselhos morais;
4. Ao responder a essas críticas, os defensores do egoísmo tendem a nublar os
usos morais e não morais dos termos “deveria” e “deve”; 5. Não se encaixa
bem com as profissões de ajuda.

• O egoísmo ético tem certas vantagens: 1. É mais fácil para os egoístas saberem
o que está em seu interesse próprio do que para outros moralistas, que se
preocupam em saber o que é do melhor interesse dos outros; 2. Incentiva a
liberdade individual e a responsabilidade e se encaixa melhor, de acordo com
os egoístas, com nossa economia capitalista; 3. Pode funcionar com sucesso,
desde que as pessoas estejam operando em esferas limitadas, isoladas umas
das outras, minimizando conflitos.
117
• As limitações destas vantagens são: 1. Não oferece um método consistente de
resolução de conflitos de interesse próprio; 2. Não vivemos em comunidades
isoladas e autossuficientes, mas em comunidades cada vez mais abarrotadas
onde a interdependência social, econômica e moral são fatos da vida e onde os
interesses próprios conflitam constantemente e, de alguma forma, devem ser
comprometidos.

• O utilitarismo sustenta que todos deveriam executar esse ato ou seguir essa
regra moral que trará o maior bem (ou felicidade) para todos os envolvidos.

• O utilitarismo de ato afirma que todos devem executar esse ato que trará o
maior bem em detrimento do mal para todos os afetados pelo ato.

• O utilitarismo de ato acredita que não se pode estabelecer regras


antecipadamente para cobrir todas as situações e pessoas porque são todas
diferentes.

• Há dificuldades com este argumento: é muito difícil determinar quais seriam


as boas consequências para os outros; é impraticável ter que começar de novo
com cada situação, para decidir o que seria moral nessa situação; é quase
impossível educar os jovens ou os não iniciados a agir moralmente se eles não
podem receber regras ou guias para seguir.

• O utilitarismo de regras afirma que todos devem seguir a regra ou regras que
trarão o maior número de boas consequências para todos os envolvidos.

• O utilitarista de regras acredita que existem suficientes motivos, ações e


situações humanas similares para justificar a criação de regras que se aplicarão
a todos os seres humanos e situações.

• Existe o perigo de tentar determinar o valor social dos indivíduos; "o maior
bem para todos os interessados" pode muitas vezes ser interpretado como "o
maior bem para a maioria", com possíveis consequências imorais para qualquer
pessoa na minoria; até mesmo um bom fim justifica qualquer meio usado para
alcançá-lo, ou devemos também considerar nossos meios e motivos?

• As teorias consequencialistas exigem que descubram e determinem todas as


consequências de nossas ações ou regras. Isso é praticamente impossível de
realizar. As consequências ou fins constituem toda a moralidade?

• Gilligan (1992) acredita que as atitudes morais dos homens têm a ver com
justiça, direitos, competição, ser independente e viver de acordo com as regras.
As atitudes morais das mulheres têm a ver com generosidade, harmonia,
reconciliação e trabalhar para manter relações íntimas. Estas duas visões são
diferentes, mas igualmente válidas.

118
• As críticas à teoria de Gilligan argumentam que pode estar substituindo uma
teoria problemática por outra. Em vez de sua teoria descrever a igualdade de
gênero, pode prescrever quem deve realizar certas atividades profissionais,
por exemplo.

119
AUTOATIVIDADE

1 Qual é a diferença entre as concepções consequencialistas (teleológicas) e


não consequencialistas (deontológicas) da moralidade?

2 Explique a diferença entre egoísmo psicológico e egoísmo ético.

3 Em que os utilitaristas de ato acreditam? Como suas crenças diferem das de


utilitaristas da regra?

120
UNIDADE 2 TÓPICO 2
TEORIAS NÃO CONSEQUENCIALISTAS DA MORALIDADE

1 INTRODUÇÃO
Depois de ler este tópico, você deverá ser capaz de descrever as teorias
não consequencialistas da moralidade, mostrando como elas diferem das teorias
consequencialistas. Assim como diferenciar entre o não consequencialismo de
ato e de regras e mostrar como eles diferem do utilitarismo de ato e de regras,
respectivamente. Você deverá ser capaz de descrever e analisar criticamente o não
consequencialismo de ato, a teoria do comando divino, a ética do dever de Kant e
os deveres Prima Facie de Ross (os principais exemplos do não consequencialismo
de regras). Em suma, definir e analisar termos e conceitos importantes como
universalizabilidade, imperativo categórico, reversibilidade, seres humanos
como fins e não meios e deveres prima facie.

Vimos, no tópico anterior, que muitas vezes é difícil, quando não


impossível, controlar as consequências de nossas ações. No entanto, podemos
controlar diretamente o que escolhemos fazer ou não fazer. Em uma análise não
consequencialista, as consequências ou possíveis resultados de nossas ações são
irrelevantes quando se trata de fazer juízos morais (HEGENBERG, 2010b). Em
vez disso, as ações devem ser julgadas por padrões básicos de certo e errado. O
dever, então, é fazer a coisa certa, como prescrito pelos padrões morais, ou seja, a
ética não consequencialista é baseada no dever (NERI, 2004).

As teorias não consequencialistas da moralidade baseiam-se em algo que


não sejam as consequências das ações de uma pessoa. Vimos que, tanto no egoísmo
ético quanto no utilitarismo, os moralistas estão interessados nas consequências
ou resultados das ações humanas. Os egoístas éticos estão preocupados com o
fato de que as pessoas devem agir em seu interesse próprio, e os utilitaristas estão
preocupados com o fato de que as pessoas devem agir no interesse de todos os
envolvidos. Nessas duas teorias, a bondade de uma ação é mensurada pelo quão
bem ela atende aos interesses de alguém, enquanto a bondade de um ser humano
é mensurada na medida em que ele executa tais ações e realmente causa boas
consequências.

A coisa mais importante de lembrar quando se discutem as teorias não


consequencialistas é que seus proponentes afirmam que as consequências não
participam, e, na verdade, não deveriam participar do juízo de ações ou pessoas
se elas são morais ou imorais. Os atos devem ser julgados unicamente no quesito
de se eles são corretos e as pessoas unicamente no quesito de se elas são boas, com
121
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

base em algum outro padrão ou padrões (muitos não consequencialistas diriam


“padrão superior") de moralidade (CORTINA; MARTÍNEZ, 2005). Ou seja, os
atos ou as pessoas devem ser julgados morais ou imorais, independentemente
das consequências das ações. O exemplo mais óbvio de tal teoria é a “Teoria
do Comando Divino”. Esta teoria sustenta que se alguém acredita que existe
um Deus, deusa ou deuses, e que Ele, ela/eles criaram uma série de comandos
(mandamentos, ordenamentos) morais, então uma ação é correta e as pessoas
são boas se, e somente se, obedecerem a esses comandos, independente das
consequências que podem advir (RACHELS; RACHELS, 2014).

Por exemplo, Joana d'Arc estava agindo sob as instruções do que ela sentia
ser vozes de Deus. Os egoístas éticos, provavelmente, considerariam seu martírio
como não tendo sido em seu interesse próprio. Eles estariam preocupados com as
consequências de suas ações (sua tortura e morte) ao recusar-se negar as vozes. No
entanto, o teórico do Comando Divino declararia que se deve obedecer a um Ser
sobrenatural e aos seus mandamentos transmitidos aos seres humanos (através
de vozes ou de qualquer outro meio), independentemente das consequências,
simplesmente porque esse Ser é bom e nos diz o que é que devemos fazer (HOOFT,
2013). O que é bom, e o que é correto, é o que este Ser declarou que é bom e
correto. O fato de que as consequências podem envolver a perda de vidas, por
exemplo, não tem nada a ver com a moralidade ou imoralidade de um ato ou uma
pessoa. Deve-se apenas aceitar quaisquer consequências que surjam. Esta teoria
é, provavelmente, o exemplo mais claro de uma teoria não consequencialista da
moralidade, mas não é a única teoria. Na verdade, nem precisamos que tal teoria
se fundamente na existência de um ser sobrenatural.

2 TEORIAS NÃO CONSEQUENCIALISTAS DE ATO


Assim como o utilitarismo se divide em duas categorias (ato e regras),
o mesmo acontece com as teorias não consequencialistas. Lembre-se, no
entanto, que a principal diferença entre o utilitarismo de ato e de regras e o
não consequencialismo de ato e de regras é que os primeiros são baseados nas
consequências, enquanto os últimos não são (MANCUSO; PACOMIO, 2003). No
entanto, alguns dos problemas e desvantagens das teorias são semelhantes, como
veremos a seguir.

Os não consequencialistas de ato aderem à suposição de que não há


nenhuma regra ou teorias morais gerais em absoluto, mas somente ações,
situações, e pessoas particulares sobre as quais nós não podemos generalizar.
Consequentemente, é preciso abordar cada situação individualmente como algo
único e, de alguma forma, decidir qual é a ação correta nessa situação (ISRAEL;
HAY, 2006). É o "como nós decidimos" nesta teoria que é mais interessante. As
decisões para os não consequencialistas de ato são "intuicionistas", ou seja, o que
uma pessoa decide em uma situação particular, pela razão de que ele não pode
usar quaisquer regras ou padrões, é baseado no que ele acredita ou sente ou
intui como sendo a ação correta a adotar. Este tipo de teoria, então, é altamente

122
TÓPICO 2 | TEORIAS NÃO CONSEQUENCIALISTAS DA MORALIDADE

individualista – os indivíduos devem decidir o que sentem que seja a coisa certa a
fazer, e depois colocar isso em prática. Não se preocupam com as consequências
– e, certamente, não se preocupam com as consequências de outras situações –, ou
com pessoas que não estão imediatamente envolvidas nesta situação particular.
Todavia, devem fazer o que consideram correto, dada esta situação particular e
as pessoas envolvidas nela.

Esta teoria é caracterizada por dois slogans populares da década de 1960:


“Se isso te faz sentir bem, faça-o” e “Faça do seu jeito”. Também tem uma base mais
tradicional nas teorias intuicionistas, emotivas e não cognitivas da moralidade
(POJMAN, 2005). O que essas teorias parecem enfatizar é que a moralidade no
pensamento, na linguagem e na ação não se baseia na razão. Algumas dessas
teorias sugerem até mesmo que a moralidade não pode ser racionalizada porque
não se baseia na razão da mesma maneira que a experimentação científica
e afirmações factuais sobre a realidade. A "teoria emotiva", conhecida como
“emotivismo” (HARE, 2003), por exemplo, afirma que as palavras e sentenças
éticas fazem realmente apenas duas coisas: (1) expressam os sentimentos e
atitudes das pessoas; e (2) evocam ou geram certos sentimentos e atitudes nos
outros.

2.1 INTUICIONISMO
Neste ponto é importante discutirmos o significado de intuição e sua
relação com a moralidade. Em seu livro Direito e Razão, Austin Fagothey (2000)
enumera algumas razões gerais para aceitar ou rejeitar a intuição como base para
a moral. As razões gerais que apoiam o intuicionismo moral são:

(1) qualquer pessoa bem-intencionada parece ter um sentimento


imediato de certo e errado; (2) os seres humanos tinham ideias e
convicções morais muito antes que os filósofos criassem a ética
como um estudo formal; (3) nosso raciocínio sobre questões morais
geralmente é usado para confirmar nossas percepções mais diretas ou
"intuições"; e (4) nosso raciocínio pode dar errado em relação a questões
morais, assim como outras questões, e então devemos retornar aos
nossos insights morais e intuições (FAGOTEY, 2000, p. 114-115).

Esses argumentos apresentam a intuição como uma forma mais elevada


de raciocínio, indicando que os seres humanos têm insights morais profundos que
têm valores em si mesmos.

Há pelo menos quatro argumentos fortes contra o intuicionismo moral


(HARE, 2003; RACHELS; RACHELS, 2014). Primeiro, algumas pessoas descrevem
a intuição como "palpites", "inspirações irracionais" e "clarividência", entre outros
significados que carecem de respeitabilidade científica e filosófica. Em suma, é
difícil definir a intuição, e é ainda mais difícil provar sua existência. Em segundo
lugar, não há prova alguma de que tenhamos um conjunto de regras morais inatas
com as quais podemos comparar nossos atos para ver se eles são ou não morais.

123
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

Em terceiro lugar, a intuição é imune à crítica objetiva porque se aplica apenas


ao seu possuidor e porque as intuições diferem de uma pessoa para a outra. Em
quarto lugar, os seres humanos que não possuem intuições morais não teriam
ética alguma ou teriam que estabelecer sua ética em outras bases.

2.2 CRÍTICAS AO NÃO CONSEQUENCIALISMO DE ATO


O maior problema para o não consequencialismo de ato pareceria ser
o terceiro argumento alistado no parágrafo precedente, porque se as intuições
diferem de pessoa para pessoa, como podem os conflitos entre intuições opostas
ser resolvidos? Tudo o que poderíamos dizer é que discordamos das intuições
da outra pessoa. Não teríamos base lógica alguma para dizer: "Sua intuição está
errada, enquanto a minha está correta". As intuições simplesmente não podem ser
arbitradas como o podem ser as razões e juízos de evidência. Portanto, qualquer
teoria da moral baseada apenas em intuições, como o não consequencialismo de ato
é altamente questionável (HARE, 2003). Outras críticas ao não consequencialismo
de ato são estas (RACHELS; RACHELS, 2014):

1. Como sabemos que o que intuímos – sem mais nada para nos guiar – será
moralmente correto?
2. Como podemos saber quando temos fatos suficientes para tomar uma decisão
moral?
3. Sendo a moral tão altamente individualizada, como podemos ter certeza de
que estamos fazendo a melhor coisa para qualquer outra pessoa envolvida na
situação?
4. Podemos realmente confiar em nada mais do que nossas intuições momentâneas
para nos ajudar tomar nossas decisões morais?
5. Como seremos capazes de justificar nossas ações, exceto dizendo: “Bem, eu
tive uma intuição que era a coisa certa para fazer?”

Parece ser muito difícil estabelecer uma moralidade de qualquer


aplicabilidade social aqui porque as intuições de qualquer pessoa poderão
justificar qualquer ação que ela poderia tomar. Uma pessoa zangada pode matar
aquele que o irritou e depois justificar o assassinato dizendo: "Tive a intuição de
que eu deveria matá-lo". Como arbitrar o conflito entre a intuição do assassino e
o intenso sentimento da família da vítima e de seus amigos de que o ato estava
errado? Este é o relativismo moral do mais alto grau, e absolutamente nenhum
acordo é possível quando as únicas coisas que temos de seguir são as intuições de
um determinado indivíduo em um determinado momento.

Outra crítica ao não consequencialismo de ato, similar à crítica ao


utilitarismo de ato, centra-se na suposição questionável de que todas as situações
e pessoas são completamente diferentes, não tendo nada em comum (HARE,
2003). Há, naturalmente, algumas situações altamente únicas para as quais não
podem ser estabelecidas regras com antecedência, mas existem muitas outras
situações que contêm semelhanças suficientes para que as regras, talvez com

124
TÓPICO 2 | TEORIAS NÃO CONSEQUENCIALISTAS DA MORALIDADE

algumas exceções ou qualificações anexadas, possam ser declaradas de forma


bastante eficaz. Por exemplo, todas as situações em que alguém é assassinado
têm pelo menos a semelhança de haver um assassino e uma vítima. Pela razão
de que a vida humana é considerada, essencialmente, valiosa em si mesma, as
regras que regem quando o assassinato é ou não justificado não são difíceis de
estabelecer. Nosso sistema jurídico, com suas diferentes categorias de homicídio
(como o homicídio simples, privilegiado, qualificado, culposo e doloso) é um
bom exemplo de regras carregadas de importância moral (BRASIL, 2007). Estes,
geralmente, funcionam bastante satisfatoriamente condenando atos imorais, ao
mesmo tempo em que reconhecem circunstâncias atenuantes, alcançando assim
um grau significativo de justiça e equidade para todos os envolvidos.

Essas duas críticas – de que cada ato é completamente diferente de


qualquer outro é, simplesmente, uma falsa afirmação empírica e a dificuldade de
confiar unicamente nas intuições individuais – tornam o não consequencialismo
de ato um sistema ético questionável. Até mesmo um "situacionista” como Joseph
Fletcher (1970), autor da obra “Ética situacional”, afirma que em todas as ações
éticas deve haver pelo menos um fator unificador, a saber, o amor cristão. Por
causa de sua crença religiosa, ele, provavelmente, deve ser classificado como um
utilitarista de ato e não um não consequencialista de ato.

3 TEORIAS NÃO CONSEQUENCIALISTAS DE REGRAS


Os não consequencialistas de regras acreditam que há ou podem haver
regras que sejam a única base para a moralidade e que as consequências não
importam. É o fato de seguir as regras (que são os comandos morais corretos) que
é moral e o conceito de moralidade não pode ser aplicado às consequências que
sucedem quando se segue as regras. A principal maneira pela qual as diferentes
teorias não consequencialistas diferem é nos seus métodos de estabelecer as
regras (ISRAEL; HAY, 2006).

3.1 TEORIA DO COMANDO DIVINO


Conforme descrito anteriormente, a Teoria do Comando Divino afirma
que a moralidade não se baseia nas consequências de ações ou regras, nem no
interesse próprio ou em outro interesse, mas sim em algo "superior" a esses
meros eventos mundanos que ocorrem nos mundos humano ou natural (HOOFT,
2013). Baseia-se na existência de um ser de todo-bondoso ou em seres que são
sobrenaturais e que comunicaram aos seres humanos o que deveriam e o que não
deveriam fazer no sentido moral. Para sermos morais, então, os seres humanos
devem seguir literalmente os comandos e as proibições de tal ou tais seres sem
se preocupar com as consequências, o interesse próprio, ou qualquer outra coisa.

As dificuldades da Teoria do Comando Divino são inerentes à falta de

125
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

fundamento racional para a existência de algum tipo de ser ou seres sobrenaturais


e à falta de provas de que a sustentação de tal ser ou seres é suficiente para tornar
racional e útil o sistema ético em questão (veja o Tópico 1 da primeira Unidade).

Mesmo que se pudesse provar conclusivamente a existência do


sobrenatural, como se poderia provar que qualquer ser sobrenatural é moralmente
confiável? As próprias regras podem ser moralmente válidas, mas a justificativa
para segui-las independentemente das consequências é de fato fraca. Além
disso, qual validade teriam as regras se uma pessoa não acreditasse em qualquer
tipo de existência sobrenatural? E mesmo se aceitássemos a existência deste ser
sobrenatural e seus mandamentos, como poderíamos ter certeza de que estávamos
interpretando corretamente? As interpretações dos Dez Mandamentos variam e
muitas vezes entram em conflito (HESTER, 2003). Não deve haver alguma base
mais clara e, geralmente, mais aceitável para as regras do que a existência do
sobrenatural?

3.2 A ÉTICA DO DEVER DE KANT


Outra teoria não consequencialista de regras, muitas vezes chamada de
"Ética do dever" (MARCONDES, 2016), foi formulada por Immanuel Kant (1724-
1804) e contém vários princípios éticos. Vejamos alguns destes princípios a seguir.

Kant (2007) acreditava que nada era bom em si, exceto a boa vontade, e
definiu a vontade como a habilidade humana única de agir de acordo com regras,
leis ou princípios morais, independentemente de interesses ou consequências.
Depois de estabelecer a boa vontade como o atributo humano mais importante,
Kant (2003, 2007) então argumentou que a razão era o segundo atributo humano
mais importante e que, portanto, era possível estabelecer regras morais absolutas
válidas com base apenas na razão, não por referência a qualquer ser sobrenatural
ou por evidências empíricas, mas pelo mesmo tipo de raciocínio lógico que
estabelece verdades tão indiscutíveis em matemática e lógica.

A primeira exigência de Kant (2007) para uma verdade moral absoluta


é que ela deve ser logicamente coerente. Isto é, não pode ser autocontraditória
como seria a afirmação "Um círculo é um quadrado". Em segundo lugar, a
verdade deve ser universalizável. Isto é, ela deve ser capaz de ser declarada
de modo a se aplicar a tudo sem exceção, não apenas para algumas ou talvez
até mesmo a maioria das coisas. Isso é exemplificado pela afirmação "Todos os
triângulos são triláteros", para os quais não há exceções. Triângulos podem ser
de diferentes tamanhos e formas, mas eles são por definição indiscutivelmente e
universalmente triláteros. Se as regras morais pudessem de fato ser estabelecidas
da mesma maneira, como pensava Kant, então elas também seriam indiscutíveis
e, portanto, lógicas e, moralmente, obrigatórias para todos os seres humanos.
É claro que algumas pessoas podem desobedecer a essas regras, mas podemos
claramente classificar essas pessoas como imorais.

126
TÓPICO 2 | TEORIAS NÃO CONSEQUENCIALISTAS DA MORALIDADE

De certa forma, as ideias de Kant foram brilhantes. Por exemplo, ele


poderia estabelecer o fato de que viver parasiticamente seria imoral porque
também seria ilógico. Ele poderia dizer que o mandamento "sempre seja um
parasita, vivendo à custa de outra pessoa" é ilógico porque se todas as pessoas
vivessem como parasitas, então às custas de quem poderiam viver? É fácil ver
que o fato de estar em conflito com o princípio da universalizabilidade causa a
inconsistência aqui. Obviamente, algumas pessoas podem ser parasitas, mas não
todas. Agora, se pudéssemos encontrar tais absolutos morais, então um sistema
ético completamente irrefutável poderia ser estabelecido, e a obediência das regras
deste sistema seria o que é moral, independentemente das consequências para si
ou para os outros. A principal maneira que Kant (2007) nos deu para descobrir
esses absolutos morais foi por meio de seu Imperativo Categórico.

O Imperativo Categórico pode ser declarado de várias maneiras, mas,


basicamente, afirma que um ato seria imoral se a regra que o autorizar não
puder ser transformada em uma regra a ser seguida por todos os seres humanos
(KANT, 2007). Isso significa que sempre que alguém está prestes a fazer uma
decisão moral, ele deve, segundo Kant, perguntar primeiro: "Qual é a regra que
autoriza esse ato que estou prestes a realizar?" E, segundo, "Pode se tornar uma
regra universal para todos os seres humanos?" Por exemplo, se uma pessoa
preguiçosa está pensando: "Por que eu deveria trabalhar tanto para viver, por que
não apenas roubo de todos os outros”? Se esta pessoa está ciente da exigência de
Kant, ele terá que se perguntar qual seria a regra para esta ação contemplada. A
regra teria de ser: "Eu nunca trabalharei, mas roubarei o que eu preciso de outros
seres humanos". Se a pessoa tentar universalizar esta afirmação, então esta será:
"Nenhum ser humano deve nunca trabalhar, mas todos os seres humanos devem
roubar o que precisam uns dos outros”. Se ninguém trabalhasse, não haveria
nada para roubar. Como, então, os seres humanos viveriam? Quem haveria para
roubar? É óbvio que alguns seres humanos podem viver somente roubando dos
outros, mas é contraditório que todos os seres humanos o façam. Segundo Kant
(2007), o roubo deve ser imoral porque não pode ser aplicado a todos os seres
humanos.

Outro exemplo, mais crucial, do Imperativo Categórico de Kant diz


respeito à morte de outro ser humano. Kant (2007) argumentava que não se podia
matar outro ser humano sem violar um absoluto moral porque, para isso, teria
que estabelecer uma regra que seria autocontraditória: "Todo ser humano deve
matar todos os seres humanos. "Pela razão que o sentido da vida é “viver”, todos
matando todos os outros iria contradizer esse significado e, portanto, violaria o
imperativo categórico e não conseguiria universalizar-se. Matar, então, é imoral,
e não se deve matar.

Outro princípio importante no sistema ético de Kant (2007) é que nenhum


ser humano deve ser pensado ou usado apenas como um meio para o fim de outra
pessoa, que cada ser humano é um fim único em si mesmo, moralmente falando
ao menos. Esse princípio, às vezes, é referido como o "Imperativo Prático" de Kant.
Ele, certamente, parece ser um princípio importante se considerarmos a justiça e a

127
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

igualdade de tratamento como atributos necessários de qualquer sistema moral.


Aliás, este princípio também pode funcionar como um antídoto para a "análise
custo-benefício", ou o problema "fim-justifica-os-meios" mencionado em conexão
com ambas as formas de utilitarismo no Tópico 1.

Daremos um exemplo de como este imperativo prático poderia funcionar


na prática a partir do campo da ética médica na área de experimentação humana.
Kant (2007) se oporia a usar um ser humano para fins experimentais "para o
bem da humanidade" ou por qualquer outra razão que nos leve a encarar um ser
humano como meramente um "meio" para um "fim". Assim, no caso descrito no
Tópico 1 sobre a experimentação em 100 bebês para salvar 10 milhões de vidas de
crianças no futuro, Kant, definitivamente, classificaria essa experimentação como
imoral. Por outro lado, se um procedimento experimental fosse a única maneira
de salvar a vida de uma criança e também fornecesse aos médicos informações
que poderiam salvar vidas no futuro, Kant, provavelmente, o permitiria, porque,
neste caso, um ser humano não se limitaria a ser usado como um meio para
um fim, mas seria considerado um fim em si mesmo, ou seja, o procedimento
experimental seria terapêutico para o ser humano envolvido, neste caso, a criança.

3.2.1 Dever ao Invés da Inclinação


Em seguida, Kant (2007) falou sobre obedecer a tais regras por um senso
de dever. Ele disse que cada ser humano está inclinado a agir de certas maneiras,
ou seja, cada um de nós está inclinado a fazer uma variedade de coisas, como
ajudar aos pobres, ficar na cama em vez de ir ao trabalho, estuprar alguém, ou ser
gentil com as crianças. Pela razão de que as inclinações, de acordo com Kant, são
irracionais e emocionais e porque nós parecemos operar com base no capricho
ao invés da razão quando nós as seguimos, as pessoas devem forçar-se a fazer
o que é moral a partir de um senso de dever. Em outras palavras, temos muitas
inclinações de vários tipos, algumas das quais são morais e outras imorais. Se
devemos agir moralmente, no entanto, devemos confiar em nossa razão e nossa
vontade e agir a partir de um senso de dever.

Kant (2007) chegou até mesmo a dizer que um ato simplesmente não
é totalmente moral a menos que o dever, em vez da inclinação, seja o motivo
por trás dele. Uma pessoa que está meramente inclinada a ser gentil e generosa
com os outros não deve ser considerada moral no sentido mais completo em que
Kant usa a palavra. Somente se esta pessoa, talvez por causa de alguma tragédia
inesperada em sua vida, já não está mais inclinada a ser gentil e generosa com os
outros, mas agora se obriga a ser assim somente por um senso de dever, só então
ela estará agindo de forma totalmente moral. Isso impressiona a maioria das
pessoas como sendo uma abordagem muito severa, mas revela a ênfase de Kant
em seu conceito de dever na medida em que se refere ao seguir regras morais
claramente estabelecidas e absolutas. Kant acreditava que tinha estabelecido
absolutos morais, e lhe parecia óbvio que, para ser moral, deveríamos obedecê-
los por um senso de dever.

128
TÓPICO 2 | TEORIAS NÃO CONSEQUENCIALISTAS DA MORALIDADE

Com este último ponto estabelecido, parece que finalmente temos um


sistema moral bem completo, que não pode ser atacado de forma alguma. Temos
"provado" que existem regras morais absolutas que podem ser estabelecidas
irrefutavelmente pela razão, que se deve obedecê-las por um senso de dever para
serem morais, e que todas as pessoas devem ser consideradas como indivíduos
únicos que nunca devem ser usados como meio para os fins de qualquer outra
pessoa.

Para mostrar como Kant levou sua teoria à prática, é importante apresentar
aqui uma de suas várias "ilustrações". Kant (2007) descreve um homem que, em
desespero, ainda em posse de sua razão, está contemplando o suicídio. Usando
o sistema de Kant, o homem deve descobrir se uma máxima de sua ação poderia
ser transformada em uma lei universal para todos os seres humanos, então ele
enquadra a máxima da seguinte maneira: "Por amor-próprio eu deveria acabar
com a minha vida sempre que não acabar com ela é provável que traga mais mal
do que bem". Kant afirma então que esta máxima não pode ser universalizada
porque é contraditório acabar com a vida pelo próprio sentimento (amor-
próprio) que impulsiona alguém a melhorar a vida. Portanto, a máxima não pode
existir como uma lei universal para todos os seres humanos, porque é totalmente
inconsistente em si mesma e com o Imperativo Categórico.

Também viola o Imperativo Prático de Kant (2007) – que todo ser


humano é um fim em si mesmo – porque se o homem se destrói para escapar
de circunstâncias dolorosas, ele usa uma pessoa meramente como um meio para
manter condições toleráveis ​​até o fim de sua vida. No entanto, Kant sustenta que
as pessoas não são nem coisas, nem meios para os fins de outra pessoa, mas são
fins em si mesmos. Portanto, o homem suicida não pode destruir uma pessoa
(seja ela mesma ou outra pessoa) sem violar este princípio.

3.2.2 Crítica à Ética do Dever de Kant


Como você pode suspeitar, existem várias críticas significativas ao
sistema de Kant. Ele mostrou que algumas regras, quando universalizadas,
tornariam-se inconsistentes e, portanto, poderiam ser consideradas imorais
por causa de sua inconsistência. No entanto, isso não nos diz quais regras são
moralmente válidas. Kant promulgou várias proibições morais ao estilo dos Dez
Mandamentos baseadas em seu sistema moral, tais como "Não matarás", "Não
furtarás" e "Não quebrarás promessas" (MARCONDES, 2016). Ele argumentou,
por exemplo, que não se deve quebrar uma promessa porque seria inconsistente
dizer: "Eu prometo que te pagarei em 30 dias, mas não pretendo cumprir minha
promessa" (BLACKBURN, 2008). Além disso, Kant argumentou, você não pode
universalizar a regra "Nunca quebre promessas, exceto quando é inconveniente
para você mantê-las", porque as promessas, então, não teriam sentido, ou pelo
menos não saberíamos quando elas teriam ou não sentido. Kant perguntou qual
sentido um acordo contratual teria se depois de ter dito: "Eu prometo cumprir
as cláusulas 1, 2, 3 e 4", mas a cláusula 5, diria, "eu posso quebrar esse acordo a

129
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

qualquer momento, de acordo com a minha conveniência”.

Suponha, no entanto, que não quebrar uma promessa resultaria em


alguém ser gravemente ferido ou até mesmo morto. De acordo com Kant, teríamos
que cumprir a promessa, e porque as consequências não importam, uma pessoa
inocente simplesmente teria que ser ferida ou morta (BLACKBURN, 2008). O que
é, de fato, mais importante: manter uma promessa ou impedir que uma pessoa
inocente seja ferida ou morta? Um dos problemas aqui é que Kant nunca nos diz
como escolher entre deveres conflitantes, como obedecer a regras diferentes, mas
igualmente absolutas. Temos um dever de não matar e um dever de não quebrar
as promessas, mas qual teria precedência quando os dois deveres conflitam?

Outra crítica à universalizabilidade e à consistência, como critério


da moralidade, é que muitas regras de valor moral questionável podem ser
universalizadas sem inconsistência (FORD, 2006). Por exemplo, há alguma coisa
inconsistente ou não universalizável sobre "Nunca ajude alguém em necessidade?"
Se uma sociedade fosse constituída por indivíduos bastante autossuficientes, não
haveria nada de imoral em não ajudar ninguém. Mesmo se houvesse pessoas
necessitadas, o que estabeleceria a necessidade de ajudá-las? Se 100 pessoas
em um grupo fossem autossuficientes e 15 estivessem em necessidade, seria
inconsistente ou não universalizável que os 100 mantivessem o que tinham e
sobrevivessem, permitindo que os outros 15 morressem? Poderia não ser moral
sob algum outro tipo de regras ou princípios, mas não seria inconsistente declarar
tal regra.

Kant respondeu a esse tipo de crítica introduzindo o critério da


reversibilidade (ZINGANO, 1989), ou seja, se uma ação fosse revertida para o
agente de tal ação, esta pessoa quereria que lhe fosse feito tal ação? Isto é conhecido
de outra maneira como “o conceito da Regra de Ouro". Por exemplo, Kant pediria
à regra "nunca ajude alguém em necessidade", o que você quereria que fosse feito
para você se você estivesse em necessidade? Você gostaria de ser ajudado. Portanto,
tal regra, embora universalizável, não seria moralmente universalizável, porque
não iria satisfazer o critério de reversibilidade (você quereria-isto-feito-a-você).
Este critério ajuda a eliminar um pouco mais do que parecem ser regras imorais,
mas não é uma forma bastante suspeita de contrabandear as consequências?
Será que Kant não está realmente dizendo que, embora a máxima "nunca ajude
alguém em necessidade" seja universalizável, não é moralmente aceitável porque
as consequências de tal regra podem ser contraproducentes para a pessoa que a
declara? Isso, obviamente, não é problema para o consequencialista (o utilitarista
de regras que estaria mais próximo da teoria de Kant se não fosse pelo fato de que
o utilitarista considera as consequências importantes), mas Kant disse que regras
morais absolutas, e não consequências, são a base da moralidade. Não seria
inconsistente para ele, especialmente, porque ele fez questão de tal consistência,
permitir que as consequências se infiltrem em sua teoria?

Outra crítica ao conceito de regras absolutas é que deixa em aberto a


questão de saber se uma regra qualificada é menos universalizável do que aquela

130
TÓPICO 2 | TEORIAS NÃO CONSEQUENCIALISTAS DA MORALIDADE

que não é qualificada (WOOD, 2008). Kant nunca distinguiu entre fazer uma
exceção a uma regra e qualificar essa regra. Por exemplo, se a regra é declarada,
"Não quebrarás promessas, mas eu posso quebrá-las a qualquer momento que
eu quiser", eu estaria fazendo uma injusta exceção de mim mesmo à regra. Kant
pensava que não se deve fazer uma exceção a uma regra geral e, certamente, não
para um único indivíduo. No entanto, o que ocorre se a regra for qualificada para
que se aplique a todos: "Não quebrarás promessas, exceto quando não quebrar
uma promessa gravemente prejudicaria ou mataria alguém”? Aqui a exceção se
aplica à própria regra e não a algum indivíduo ou indivíduos. Kant certamente
tinha um argumento forte a fazer sobre não fazer exceções. Afinal, de que serve
uma regra se alguém pode fazer uma exceção de si mesmo a qualquer momento
que quiser? No entanto, "Não matarás exceto em autodefesa" não é menos
universalizável do que "Não matarás", e a regra anterior parece estar relacionada
à história dos valores humanos e também a uma doutrina de justiça muito melhor
do que a segunda.

Há ainda outra crítica que tem a ver com o conflito entre inclinação e dever
que Kant (2013) descreveu, e isto é, o que acontece quando suas inclinações e
deveres são os mesmos? Por exemplo, se você está inclinado a não matar pessoas,
uma tendência que se encaixa bem com a regra de Kant "Não matarás", que é seu
dever de obedecer. Isso significa que, porque você não está inclinado a matar,
você não seria uma pessoa moral, porque o seu dever não está lhe afastando de
suas inclinações? Muitos moralistas discordam da ideia de que as pessoas não
são morais meramente porque estão inclinadas a ser boas em vez de sempre se
debater com elas mesmas para serem assim. Kant não acreditava que uma pessoa
que age moralmente por inclinação é imoral, mas acreditava que tal pessoa não é
moral no sentido mais verdadeiro da palavra.

É verdade que, em muitas ocasiões, o verdadeiro teste da moralidade


pessoal vem quando os seres humanos devem decidir se querem lutar contra suas
inclinações (por exemplo, roubar dinheiro quando ninguém pode pegá-los) e agir
por um senso de dever (eles não devem roubar porque é errado ou porque eles
não querem que alguém roube deles). Isso seria motivo suficiente para considerar
as pessoas como não sendo totalmente morais se elas levam uma vida boa, não
fazem mal aos outros porque não querem, e também pensam que este é seu
dever? Com qual tipo de pessoa você se sentiria mais seguro, com a pessoa que
está inclinada a não prejudicar ou matar os outros ou a pessoa que tem uma forte
inclinação para matar outros, mas se restringe apenas por um senso de dever?
Parece que a sociedade tem uma melhor chance de ser moral se a maioria das
pessoas se torna inclinada a ser moral através de algum tipo de educação moral.
Outra incoerência na Ética do Dever de Kant é que ele era fortemente contra matar
e ainda assim era a favor da pena de morte.

131
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

DICAS

Assista ao vídeo da Conferência “A Antropologia Pragmática: Uma investigação


sobre a natureza humana a partir da filosofia transcendental de Immanuel Kant” com o Prof. Dr.
Daniel Omar Perez. Nesta conferência busca-se apresentar a concepção kantiana de natureza
humana e de antropologia, bem como a relação destas com a tarefa da filosofia como crítica.
Esta discussão possibilitará maior compreensão da teoria da moralidade kantiana. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=cNroJH3qi9k>. Acesso em: 19 jul. 2018.

4 DEVERES PRIMA FACIE DE ROSS


Sir William David Ross (1877-1940) concordou com Kant que a moralidade,
basicamente, não deve assentar-se nas consequências, mas discordou com o
absolutismo inflexível das teorias de Kant. Podemos situar Ross em algum lugar
entre Kant e os utilitaristas de regras, na medida em que ele acreditava que temos
certos deveres prima facie que devemos sempre aderir, a menos que circunstâncias
ou razões sérias nos digam para fazer de outra forma. Nessas circunstâncias
excepcionais, o dever real de um indivíduo pode ser diferente do dever prima facie.
Em outras palavras, ele não acreditava que as consequências tornavam uma ação
certa ou errada, mas ele pensava que é necessário considerar as consequências
quando estamos fazendo nossas escolhas morais.

O termo prima facie significa, literalmente, "à primeira vista" ou "à superfície
das coisas". Um dever prima facie, então, é aquele que todos os seres humanos
devem obedecer de uma maneira geral antes que qualquer outra consideração
entre em cena. Alguns dos Deveres Prima Facie de Ross (2002) são os deveres
seguintes:

1. Fidelidade (ou lealdade): dizer a verdade, manter as promessas reais e implícitas


e cumprir os acordos contratuais.
2. Reparação: compensar os erros que fizemos aos outros, em outras palavras,
fazer reparação por atos ilícitos.
3. Gratidão: reconhecer o que os outros fizeram por nós e estender nossa gratidão
a eles.
4. Justiça: impedir a distribuição imprópria do bem e do mal que não estão de
acordo com o que as pessoas merecem ou têm direito.
5. Beneficência: ajudar a melhorar a condição dos outros nas áreas da virtude,
inteligência e felicidade.
6. Autoaperfeiçoamento: a obrigação que temos de melhorar nossa própria
virtude, inteligência e felicidade.
7. Não maleficência: não ferir ou causar danos aos outros e prevenir lesões aos
outros.

Assim, Ross, como Kant, pensou que existissem regras a que todos os

132
TÓPICO 2 | TEORIAS NÃO CONSEQUENCIALISTAS DA MORALIDADE

seres humanos deveriam aderir porque é sua obrigação moral fazê-lo. Ele também
melhorou muito a proposta kantiana na área do que fazer quando deveres
(especialmente deveres Prima Facie) conflitam.

Ross (2002) estabeleceu dois princípios que podemos invocar ao tentar


lidar com o conflito de deveres Prima Facie: (1) sempre faça aquele ato de acordo
com o dever prima facie mais forte; e (2) sempre faça aquele ato que tem o maior
grau de retidão prima facie acima da injustiça prima facie.

4.1 CRÍTICAS À TEORIA DE ROSS


Claramente, há alguns problemas prima facie com as teorias de Ross. Como
devemos decidir quais deveres são, na verdade, prima facie? Ross listou alguns
desses deveres para nós, mas baseado em que ele fez isso, e qual justificação para
a evidência ou o raciocínio ele nos ofereceu? Quando confrontado com perguntas
sobre como devemos selecionar os deveres prima facie, Ross disse que ele estava:

afirmando que nós sabemos que eles são verdadeiros. Para mim,
parece tão autoevidente como qualquer coisa poderia ser, que fazer
uma promessa, por exemplo, é criar uma reivindicação moral sobre
nós em outra pessoa. Muitos leitores talvez digam que não sabem que
isso é verdadeiro. Se assim for, certamente não posso provar isso para
eles. Só posso pedir-lhes para refletir novamente, na esperança de que
eles acabem por concordar que eles também sabem que é verdadeiro
(ROSS, 2002, p. 20-21).

Deste modo, Ross (2002) está realmente baseando essa seleção de tais
deveres na intuição, ou seja, não há lógica ou evidência para justificar suas
escolhas, mas devemos aceitar o que ele diz com base na intuição. Se não
tivermos as mesmas intuições que ele, então devemos continuar tentando até que
a tenhamos. Obviamente, isto é altamente especulativo e vago em sua aplicação
com todos os problemas que encontramos quando discutimos e avaliamos a base
intuitiva para o não consequencialismo de ato (KOTTOW, 1995).

Um segundo problema surge quando olhamos para a maneira pela qual


Ross tenta resolver a dificuldade da tomada de decisão ao escolher o dever prima
facie correto quando ele entra em conflito com outro (SGRECCIA, 1996). Ambos
os princípios de Ross são difíceis de aplicar. Ele realmente não nos diz como
devemos determinar quando uma obrigação é mais forte do que a outra. Além
disso, ele não nos dá uma regra clara para determinar o "equilíbrio" de retidão
prima facie acima da injustiça. Por conseguinte, não parece haver critérios claros
para escolher quais os deveres que são prima facie ou para decidir como devemos
distinguir entre eles depois de terem sido estabelecidos.

133
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

5 CRÍTICAS GERAIS ÀS TEORIAS NÃO CONSEQUENCIALISTAS


A crítica às teorias não consequencialistas em geral é esta: Podemos e
de fato deveríamos evitar consequências quando estamos tentando estabelecer
um sistema moral? (RACHELS; RACHELS, 2014). Além disso, as teorias não
consequencialistas de regras levantam os seguintes problemas:

1. Por que devemos seguir as regras se as consequências de as seguir podem


ser ruins mesmo para alguns, mas também, em alguns casos, para todos os
interessados?
2. Como podemos resolver conflitos entre regras que são todas igualmente e
absolutamente obrigatórias?
3. Existe tal coisa como uma regra moral absolutamente sem exceções, dadas as
complexidades do comportamento e da experiência humana? Se assim for,
qual seria?

Primeiro, até mesmo Kant, que lutou contra as consequências, parece tê-
las contrabandeado por meio de sua doutrina da reversibilidade (ZINGANO,
1989). Mesmo sem essa doutrina, quando alguém pressiona qualquer sistema
ético o suficiente, perguntando por que alguém deveria fazer as coisas prescritas,
as respostas não teriam que trazer as consequências para si, para os outros ou
para todos os interessados? Por exemplo, na Teoria do Comando Divino, não seria
realmente possível justificar os mandamentos mais imediatamente aplicáveis​​
e práticos como sendo necessidades éticas, quer se acredite ou não que um ser
sobrenatural os prescreva aos seres humanos? Poder-se-ia perguntar por que tal
ser seria tão sábio ao afirmar que os seres humanos não devem matar, roubar ou
cometer adultério e responder que as consequências de não ter algumas regras
nessas áreas seriam muito piores. Se a matança fosse livremente permitida, então
a vida das pessoas estaria constantemente em perigo, o crescimento humano
não seria capaz de acontecer e não haveria sistemas ou culturas morais, apenas
batalhas constantes para evitar a morte. Estes mandamentos e outros como eles
ajudam todos os seres humanos a respeitar os direitos de seus semelhantes e
trazer alguma estabilidade e ordem em um sistema social que de outra forma
estaria em constante estado caótico.

Em segundo lugar, é verdade que Kant inicia sem usar oficialmente


as consequências, começando com a inconsistência lógica, mas será que as
consequências ficam realmente fora da questão? Qual é o ponto real de qualquer
sistema moral se não fizer o bem para si ou para os outros, ou se não criar uma
sociedade moral na qual as pessoas possam criar e crescer pacificamente com
um mínimo de conflitos? Seria realmente possível pensar em um sistema de
moralidade que não está preocupado com as consequências em algum ponto
ao longo de sua elaboração? Muitos sistemas podem tentar justificar seus
imperativos afirmando: "Você deve fazer isso simplesmente porque é certo [ou
porque algum ser sobrenatural disse assim, ou porque fazer o contrário seria
logicamente inconsistente]". Apesar dessas justificativas, as prescrições morais de
cada sistema são calculadas para causar algumas consequências boas, geralmente

134
TÓPICO 2 | TEORIAS NÃO CONSEQUENCIALISTAS DA MORALIDADE

para a maioria, se não para todos os seres humanos (MARCONDES, 2016).

Terceiro, Ross pelo menos tentou responder à questão de se realmente


existem regras morais absolutas. No entanto, muitos teóricos, especialmente,
no século XXI, demonstraram haver exceções naquilo que eram considerados
absolutos. Estes teóricos insistem que não há absolutos, ou são tão poucos que
dificilmente se poderia afirmá-los. Alguns moralistas – relativistas morais –
afirmam que tudo é relativo e que não há absolutos (BONJOUR; BAKER, 2010).
Outros, como Joseph Fletcher (1905-1991), afirmam que há apenas um absoluto, o
amor, e que tudo o mais é relativo ao amor (FLETCHER, 1970). Independentemente
de seus argumentos serem convincentes, existe um sério problema com todas
as teorias não consequencialistas, na medida em que a seleção das regras e dos
deveres morais parece ser arbitrária e, muitas vezes, destrutiva do argumento
criativo. Não se pode argumentar que o assassinato, às vezes, pode ser justificado
se um não consequencialista declarou simplesmente que, para ser moral, não se
deve matar.

Um bom exemplo desse tipo de raciocínio sem saída é o argumento


antiaborto que, sob nenhuma circunstância, uma vida pode ser tirada e que
a vida começa na concepção (RACHELS; RACHELS, 2014). Como se pode
defender a salvação da vida da mãe ou considerar o tipo de vida que a mãe ou
o bebê viverão se tais absolutos já tiverem sido estabelecidos? Por outro lado,
como se pode argumentar sobre o valor da vida de um feto se o defensor da pró-
escolha tomar como absoluto o direito de uma mulher sobre seu próprio corpo,
independentemente do que esse corpo contém? Qual justificação poderia ambos
os arguidores oferecer para a validade destes absolutos e por que não poderia
haver exceções a eles sob quaisquer circunstâncias?

Quando as pessoas estão argumentando as consequências, elas podem


pelo menos mostrar que uma ação terá melhores consequências do que outra,
mas quando elas estão apenas apresentando "absolutos", não pode haver contra-
argumentos que sirvam para justificar exceções. Se simplesmente adotarmos uma
regra moral absoluta arbitrária, não consequencialista, então todos os argumentos
dos consequencialistas e de outros simplesmente são excluídos. Encerrar o debate
desta forma é destrutivo para a busca da verdade e da compreensão em outras
áreas, como a ciência, mas é desastroso na esfera da moral, na qual a necessidade
de chegar a respostas certas é mais crucial do que em qualquer outra área de
experiência humana.

Em suma, as teorias não consequencialistas da moralidade têm certas


vantagens. Primeiro, elas não exigem a difícil tarefa de computar as consequências
para uma ação moral. Em segundo lugar, elas fornecem, em sua forma de regra,
um conjunto forte de guias morais, ao contrário dos moralistas de ato, tanto das
abordagens da moralidade consequencialistas quanto das não consequencialistas.
Terceiro, os não consequencialistas são capazes de fundar seu sistema em algo
que não seja consequências, evitando assim a armadilha de uma análise de custo-
benefício da moralidade.

135
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

Sob outra perspectiva, por mais difíceis que possam ser as consequências
da computação, os não consequencialistas parecem realmente evitar ponto
central da moralidade – certamente da moralidade social – ao tentar ignorar as
consequências de suas regras ou atos. Embora seja útil ter uma série de regras e
guias fortes a ser seguido, o não consequencialismo de regras torna difícil decidir
quais regras seriam essas e como classificá-las em ordem de importância ou
resolver conflitos quando os absolutos se opõem uns aos outros. Além disso, o
não consequencialismo de regras não prevê discussão alguma aberta dos dilemas
morais porque fecha a porta arbitrariamente afirmando o que é certo e o que é
errado, sem qualquer possibilidade de exceção. E o que é certo e errado é baseado
nos supostos comandos de um ser sobrenatural a quem ninguém é permitido
questionar ou sobre uma teoria de consistência lógica que pode mostrar que os
seres humanos não devem ser inconsistentes, mas oferecem poucas outras razões
por que se deve seguir uma regra e não outra.

As teorias não consequencialistas de regras não parecem ser mais


satisfatórias do que as consequencialistas. O que faremos, então? Devemos recuar
para as teorias consequencialistas com os problemas que as acompanham ou
adotar a abordagem não consequencialista como sendo o "menor de dois males"?
Ou, poderia haver valor na tentativa de sintetizar o melhor desses sistemas
enquanto diminuímos a ênfase no pior.

UNI

PROBLEMA ÉTICO

VOCÊ MATARIA POR CAUSA DO DEVER?

Há uma cena dramática no clássico hindu conhecido como o Bhagavad-Gita (ACHARYA;


PARAMADVAITI, 2003). Nos momentos antes de uma grande batalha, o mais nobre guerreiro dos
Pandavas, e arqueiro extraordinário, Arjuna, tem sérios questionamentos sobre a moralidade da
guerra. Ele considera a carnificina que está prestes a acontecer. Ele sabe que no exército oposto
dos Kauravas estão seus primos, professores e amigos. Se ele se envolver na batalha, muitos
morrerão, talvez mortos por suas flechas. Considerando as consequências e os resultados que
seriam prováveis, Arjuna não deseja lutar. No entanto, seu cocheiro Krishna (uma encarnação
do deus Vishnu) explica que a obrigação moral de Arjuna reside no desempenho do dever
(dharma). Como membro da classe guerreira, seu dever é lutar. Sua escolha é fazer a coisa
certa, agir sem levar em conta as consequências, e assim ele luta. Você concorda com o
conselho de Krishna e a decisão de Arjuna? Por que ou por que não? Você mataria por causa
do dever? Ou as consequências devem ser consideradas?

136
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• Teorias não consequencialistas (deontológicas) da moralidade. A suposição


básica destas teorias é que as consequências não devem participar do nosso
juízo de se as ações ou as pessoas são morais ou imorais.

• O que é moral e imoral é decidido com base em algum padrão ou padrões de


moralidade que não sejam consequências.

• A suposição principal do não consequencialista de ato é que não há nenhuma


regra ou teorias morais gerais, mas somente ações, situações e pessoas
particulares sobre as quais nós não podemos generalizar.

• As decisões baseiam-se no "intuicionismo". Isto é, o que é certo ou errado em


qualquer situação particular é baseado no que as pessoas sentem (intuem) que
seja certo ou errado, esta é, portanto, uma teoria altamente individualista.

• Há várias críticas ao não consequencialismo de ato: 1. Como podemos saber,


sem outros guias, que o que sentimos é moralmente correto? 2. Como saberemos
quando adquirimos fatos suficientes para tomar uma decisão moral? 3. Com
a moral tão altamente individualizada, como podemos saber que estamos
fazendo a melhor coisa para todos os envolvidos em uma situação particular?
4. Podemos realmente confiar em nada mais do que nossos sentimentos
momentâneos para nos ajudar a tomar nossas decisões morais? 5. Como
seremos capazes de justificar nossas ações, exceto dizendo: "Bem, senti que era
a coisa certa para eu fazer"?

• A principal suposição das teorias não consequencialistas de regras é que há ou


pode haver regras que são a única base para a moralidade e que as consequências
não importam – seguir as regras, que são comandos morais corretos, é o que é
moral, não o que acontece porque se segue a regras.

• De acordo com a Teoria do Comando Divino, uma ação é correta e as pessoas


são boas se, e somente se, obedecem aos comandos supostamente dados a eles
por um ser divino, independentemente das consequências.

• Existem algumas críticas à Teoria do Comando Divino: 1. A teoria não fornece


um fundamento racional para a existência de um ser sobrenatural e, portanto,
tampouco oferece para a moralidade; 2. Mesmo se pudéssemos provar
conclusivamente a existência de um ser sobrenatural, como poderíamos provar
que esse ser é moralmente confiável?; 3. Como interpretar esses mandamentos
mesmo se aceitarmos a existência do sobrenatural?; 4. As regras fundadas na
Teoria do Comando Divino podem ser válidas, mas precisam ser justificadas

137
em alguma outra base mais racional.

• Ética de Dever de Kant. Kant acreditava que só por meio do raciocínio é


possível estabelecer regras morais absolutas e válidas que tenham a mesma
força de verdades matemáticas indiscutíveis: 1. Tais verdades devem ser
logicamente consistentes, não autocontraditórias; 2. Elas também devem ser
universalizáveis.

• De acordo com o Imperativo Categórico, um ato é imoral se a regra que o


autorizasse não puder ser transformada em uma regra para todos os seres
humanos seguirem.

• O imperativo prático, outro princípio importante no sistema moral de Kant,


afirma que nenhum ser humano deve ser pensado ou usado apenas como um
meio para o fim de outra pessoa, mas sim que cada ser humano é um fim único
em si mesmo.

• Uma vez que as regras morais foram descobertas como absolutas, os seres
humanos devem obedecê-las por um senso de dever, em vez de seguir suas
inclinações.

• Há críticas ao sistema de Kant: 1. Embora Kant tenha mostrado que algumas


regras se tornariam inconsistentes quando universalizadas, isso não nos diz
quais regras são moralmente válidas; 2. Kant nunca nos mostrou como resolver
conflitos entre regras igualmente absolutas, como "Não quebre uma promessa"
e "Não mate"; 3. Kant não distinguiu entre fazer uma exceção a uma regra e
qualificar uma regra.

• Algumas regras como “Não ajude ninguém em necessidade”, podem ser


universalizadas sem inconsistência, mas ainda têm valor moral questionável.
Kant respondeu a essa crítica por meio do critério de reversibilidade, isto
é, a ideia de se você-iria-querer-que-isto-fosse-feito-a-você, ou a Regra de
Ouro. No entanto, o critério de reversibilidade sugere uma dependência das
consequências, o que vai contra tudo o que Kant pretende fazer em seu sistema.

• Kant parece ter enfatizado os deveres sobre as inclinações, ao afirmar que


devemos agir a partir de um senso de dever e não de nossas inclinações. No
entanto, ele não nos deu nenhuma regra para o que devemos fazer quando
nossas inclinações e deveres são os mesmos.

• Os deveres Prima Facie de Ross. Ross concordou com Kant quanto ao


estabelecimento da moral em uma base diferente das consequências, mas
discordou das regras excessivamente absolutas de Kant. Ele se situa entre Kant
e o utilitarismo de regras em sua abordagem à ética.

• Ross estabeleceu os Deveres Prima Facie que todos os seres humanos devem
aderir, a menos que haja razões sérias por que eles não deveriam.

138
• Ross enumerou vários deveres Prima Facie: 1. Fidelidade; 2. Reparação;
3. Gratidão; 4. Justiça; 5. Beneficência; 6. Autoaperfeiçoamento; 7. Não
maleficência.

• Ross ofereceu dois princípios para uso na resolução de deveres conflitantes: 1.


Sempre agir de acordo com o mais forte dever Prima Facie; 2. Sempre atuar de
forma a obter a maior quantidade de justiça prima facie sobre a injustiça.

• Críticas gerais a teorias não consequencialistas: Podemos, e deveríamos evitar


consequências quando estamos tentando estabelecer um sistema moral?; é
inteiramente possível excluir consequências de um sistema ético?; qual é o
sentido real de qualquer sistema moral se não for fazer o bem para si, para os
outros, ou para ambos, e se não for para criar uma sociedade moral na qual
as pessoas possam criar e crescer pacificamente com um mínimo de conflitos
desnecessários?; como resolver conflitos entre regras morais igualmente
absolutas? Esse problema é peculiar para as teorias não consequencialistas de
regras; qualquer sistema que funcione com base em absolutos rígidos como faz
o não consequencialismo de regras fecha a porta para continuar a discussão
dos dilemas morais.

139
AUTOATIVIDADE

1 O que são, essencialmente, as teorias não consequencialistas (deontológicas)


da moralidade? Como diferem das teorias consequencialistas (teleológicas)?

2 Em que acreditam os não consequencialistas de ato? Como diferem dos


utilitaristas de ato?

3 Em que os não consequencialistas de regras acreditam?

4 Descreva a Teoria do Comando Divino.

5 Explique o imperativo prático de Kant.

140
UNIDADE 2 TÓPICO 3

A ÉTICA DA VIRTUDE

1 INTRODUÇÃO

Depois de ler este tópico, você deverá ser capaz de descrever as teorias da
Ética da Virtude, mostrando como elas diferem das teorias éticas consequencialistas
ou não consequencialistas. Também poderá definir e analisar termos e conceitos
importantes como as virtudes e os vícios. Assim como descrever a Ética a
Nicômaco de Aristóteles e como as virtudes são essenciais para viver uma vida
boa. Descrever a ética de Confúcio nos Analectos e explicar as virtudes à luz da
noção confucionista de autocultivo e explicar as vantagens e desvantagens da
ética da virtude no contexto de uma teoria geral da ética.

As éticas da virtude são éticas baseada no caráter. Este tipo de teoria


moral centra-se na questão do tornar-se certo tipo de pessoa. Sua preocupação,
idealmente, é o desenvolvimento da excelência humana (HOOFT, 2013). Desde
que as ações fluem do caráter, a ética da virtude aspira desenvolver pessoas boas
e comunidades humanas boas.

Podemos então dizer que outra teoria moral que se tornou significativa
para muitos éticos contemporâneos é conhecida como a "ética da virtude".
Certamente não é uma nova teoria, pois é tipicamente associada aos gregos e,
especialmente com Aristóteles no século IV AEC (Antes da Era Comum). Embora
suas origens na filosofia chinesa sejam ainda mais antigas. Essencialmente, esta
teoria difere de todas as anteriores que discutimos na primeira unidade em que se
concentram não em consequências, intuições ou regras, mas no desenvolvimento
interior dos seres humanos de um caráter moral ou virtuoso por meio do agir tal
como uma pessoa boa ou "virtuosa" agiria.

2 DEFINIÇÃO DE TERMOS
Se olharmos um dicionário de língua portuguesa veremos uma definição
de virtude como “força moral; disposição firme e habitual para a prática do bem;
boa qualidade moral; ato virtuoso; castidade e modo austero de vida” (FERREIRA,
1986, p. 2093). Um dicionário de filosofia descreve o termo virtude como aquele
que “designa uma capacidade qualquer ou excelência, seja qual for a coisa ou o ser
a que pertença [...] capacidade ou potência em geral [...] capacidade ou potência
do homem […] capacidade ou potência moral do homem” (ABBAGNANO, 2007,

141
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

p. 1003).

Como você pode ver, a ênfase está no caráter bom ou virtuoso dos próprios
seres humanos, e não em seus atos ou nas consequências de seus atos, sentimentos
ou regras. Em outras palavras, é o desenvolvimento da pessoa boa ou virtuosa
que é importante nesta teoria moral, e não regras abstratas ou consequências de
atos ou regras, exceto quando derivam de uma pessoa boa ou virtuosa ou fazem
com que essa pessoa seja boa ou virtuosa.

3 A ÉTICA NICOMAQUEIA DE ARISTÓTELES


A Ética da Virtude deriva da Ética a Nicômaco de Aristóteles (1984), obra
dedicada ao seu filho, Nicômaco. Tal ética tem caráter teleológico (isto é, aponta
para algum fim ou propósito). Como disse Aristóteles: "Admite-se geralmente
que toda arte e toda investigação, assim como toda ação e toda escolha, têm em
mira um bem qualquer; e por isso foi dito, com muito acerto, que o bem é aquilo
a que todas as coisas tendem” (1984, 1.1, 1094a, p. 49). Por exemplo, a arte do
médico visa à saúde, a marinhagem visa a uma viagem segura e a economia visa
à riqueza. Ele prossegue dizendo que o fim da vida humana é a felicidade, e a
atividade básica dos seres humanos é o uso da razão – uma atividade virtuosa.
Portanto, o objetivo dos seres humanos, segundo Aristóteles, é raciocinar bem
para uma vida inteira ou completa.

Aristóteles está preocupado com a ação, não como sendo correta ou boa
em si mesma, mas por ser condutiva ao bem humano (ROSS, 1987). Em sua
elaboração teórica da ética, ele parte dos julgamentos morais reais dos seres
humanos e diz que os comparando, contrastando-os e os ponderando, chegamos
à formulação de princípios gerais (ARISTÓTELES, 1984). Observem como isso
difere da Teoria do Comando Divino e das teorias de Kant e Ross, quanto ao modo
como os princípios são estabelecidos. Nas três últimas teorias, os princípios éticos
são objetivos ou externos aos seres humanos e são estabelecidos pelo sobrenatural
ou pela própria razão abstrata. Aristóteles pressupõe que há tendências éticas
naturais implantadas nos seres humanos e que as seguir com uma atitude geral
de harmonia e proporção consistentes constitui uma vida ética.

Aristóteles descreve seu sistema ético como sendo eminentemente


baseado no senso comum, na maior parte, fundado como está nos juízos morais
do ser humano ideal que, baseado na razão, é considerado bom e virtuoso
(KRAUT, 2009). Ele afirma que os seres humanos começam com uma capacidade
de bondade, que tem de ser desenvolvida pela prática. Ele diz que começamos
fazendo atos que são objetivamente virtuosos, sem o conhecimento de que os atos
são bons e sem os escolhermos ativa ou racionalmente. Ao praticarmos esses atos,
percebemos que a virtude é boa em si mesma (RICKEN, 2008). Por exemplo, uma
criança é ensinada a dizer a verdade (objetivamente uma virtude) por seus pais, e
ela faz isso porque eles ensinaram que ela deveria. Eventualmente, ela reconhece
que a verdade é uma virtude em si mesma, e ela continua a dizer a verdade,

142
TÓPICO 3 | A ÉTICA DA VIRTUDE

porque ela sabe que é virtuoso fazê-lo.

Este processo parece ser circular, exceto que Aristóteles faz uma distinção
entre os atos que criam uma boa disposição, por exemplo, dizer a verdade sem
saber que isso é uma virtude, e aqueles que fluem da boa disposição uma vez que
foi criada, por exemplo, dizer a verdade porque a pessoa a conhece como uma
virtude (SILVEIRA, 2000). Aristóteles afirma ainda que a própria virtude é uma
disposição que se desenvolveu a partir de uma capacidade pelo próprio exercício
dessa capacidade (PERINE, 2006).

3.1 O CARÁTER E O FLORESCIMENTO HUMANO


Um dos principais atrativos da ética de Aristóteles é a forma como encoraja
o florescimento humano (KRAUT, 2009). Na verdade, a ética de Aristóteles está
em grande parte preocupada com a questão do que promove a felicidade ou o
florescimento humano e conduz a uma vida humana mais plena e mais feliz.
A palavra grega para felicidade que Aristóteles usa, eudaimonia, também pode
ser traduzida como "florescimento", “plenitude”, “prosperidade” ou "bem-estar"
(CRUZ, 2013). Virtudes e vícios são compreendidos precisamente nesse contexto.
As virtudes são aquelas forças ou excelências de caráter que promovem o
florescimento humano, e os vícios são aquelas fraquezas de caráter que impedem
o florescimento. A coragem, por exemplo, é uma virtude porque devemos
enfrentar e superar nossos medos se quisermos alcançar nossos objetivos na vida.
No entanto, o que, exatamente, é o florescimento humano?

A noção de florescimento ou felicidade humana é notoriamente


escorregadia, mas a abordagem de Aristóteles é útil, mesmo que, em última
análise, seja incompleta. Duas linhas de argumento passaram por sua abordagem
para determinar o que conta como um florescimento humano. Por um lado, o
florescimento é entendido em um contexto funcional. Um martelo, por exemplo, é
um bom martelo se ele faz bem o que foi projetado para fazer – se martelar bem os
pregos. Um violão é um bom violão se for capaz de fazer boa música. Aristóteles
(1984, p. 72) expressa-se desta maneira no Livro 2 da Ética de Nicômaco:

Observemos, pois, que toda virtude ou excelência não só coloca em


boa condição a coisa de que é a excelência como também faz com que a
função dessa coisa seja bem desempenhada. Por exemplo, a excelência
do olho torna bons tanto o olho como a sua função, pois é graças à
excelência do olho que vemos bem. Analogamente, a excelência de
um cavalo tanto o torna bom em si mesmo como bom na corrida, em
carregar seu cavaleiro e em aguardar de pé firme o ataque do inimigo.
Portanto, se isto vale para todos os casos, a virtude do homem também
será a disposição de caráter que o torna bom e que o faz desempenhar
bem a sua função.

Observe, no entanto, que estes são objetos projetados para atender a um


propósito humano particular, como martelar pregos ou fazer música. Os seres
humanos não têm uma função óbvia na mesma maneira não problemática que os

143
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

martelos e os violões têm suas funções.

É claro que, em certos contextos religiosos, os seres humanos têm uma


função ou propósito óbvio, e esse propósito é ordenado por Deus. Dentro dessa
visão de mundo, as virtudes têm uma justificativa muito mais óbvia: são essas
forças de caráter necessárias para que possamos cumprir o plano de Deus para
nós. Mas tal visão pressupõe que nos foi dado um propósito por um ser divino e
que podemos saber qual é a finalidade.

Por outro lado, Aristóteles, às vezes, entende o florescimento em termos do


exercício de propriedades únicas (SHIELDS, 2010). Considere uma ameixeira. Sua
característica única é que ela dá ameixas. Consequentemente, uma boa ameixeira
será uma que faça isso bem. De forma semelhante, existe uma característica
única que separa os seres humanos de outros tipos de seres: a capacidade de
raciocinar ou pensar. Consequentemente, um bom ser humano será aquele que
raciocine bem. O florescimento humano é, portanto, definido em termos de
raciocínio ou pensamento – para Aristóteles, em última análise, em termos da
vida contemplativa.

Quando o florescimento é abordado através de uma análise da função


(SHIELDS, 2010), Aristóteles tende a enfatizar como a felicidade está relacionada
à sabedoria prática. Pessoas de sabedoria prática, Aristóteles (1984) nos diz na
Ética de Nicômaco, são pessoas que podem deliberar bem sobre o que é bom
para sua vida como um todo, não apenas o que é bom para parte dela ou o que
é conveniente. Esses indivíduos, muitas vezes, pensam que o florescimento tem
elementos sociais e políticos profundamente enraizados nele. De acordo com essa
concepção de florescimento, os seres humanos são profundamente sociais por
natureza, e a participação na vida comum da cidade-estado, a polis, é uma parte
essencial de qualquer vida feliz. Felicidade ou florescimento seria impossível
sem comunidade (RICKEN, 2008). Podemos chamar a isso de concepção política
da felicidade, mas é importante reconhecer que a palavra política não carregava
conotações negativas para os gregos do tempo de Aristóteles. Para os gregos, o
domínio político abrangia praticamente tudo o que se refere à criação de uma
vida comum em conjunto.

Há uma segunda concepção de florescimento no pensamento de


Aristóteles que existe em uma tensão desconfortável com a primeira. Esta é a
teoria do florescimento que deriva do argumento da unicidade (SHIELDS,
2010). De acordo com esta concepção, o florescimento consiste essencialmente
na contemplação do bem. O ócio é um pressuposto necessário de tal visão,
pois deve haver algum modo de criar o tempo necessário para a contemplação.
Esta é a concepção contemplativa da felicidade. Considerando que a concepção
política vê a felicidade como residindo pelo menos parcialmente na atividade, a
concepção contemplativa enfatiza como a felicidade é encontrada através de um
afastamento do mundo e de seus assuntos cotidianos.

Os próprios escritos de Aristóteles sugerem que ele vacila entre essas

144
TÓPICO 3 | A ÉTICA DA VIRTUDE

duas concepções de felicidade (PICHLER, 2004). Assim como estudiosos de


Aristóteles, como argumenta Ricken (2008), estiveram divididos sobre qual
destas representa sua visão verdadeira ou se as duas concepções podem ser
reconciliadas. Se ampliássemos a abordagem pluralista desta questão na filosofia
de Aristóteles, poderíamos dizer que a própria felicidade pode ser entendida
de forma pluralista. A felicidade em geral pode ser vista como a satisfação que
vem com a consecução dos objetivos mais importantes da vida, mas podemos
reconhecer que existe uma ampla variabilidade em metas aceitáveis. Alguns
desses objetivos podem estar localizados firmemente dentro do domínio social, e
outros podem ser principalmente contemplativos. No entanto, também podemos
reconhecer que existem algumas restrições mínimas impostas a esses objetivos
por nossa natureza social e intelectual. Assim como não podemos encontrar a
felicidade em completo isolamento de outras pessoas, também não conseguimos
encontrá-la sem uma reflexão significativa sobre os objetivos que nós escolhemos
realizar. Ambos os elementos são necessários em uma extensão mínima, mas
existe uma ampla variabilidade no peso relativo que damos a um sobre o outro.

3.2 AVALIANDO A CONCEPÇÃO ARISTOTÉLICA DE


FLORESCIMENTO
Há muito a ser dito em favor do relato de Aristóteles sobre o florescimento
humano, não menos importante, é que é antirreducionista (HINMAN, 2008).
Aristóteles não tenta reduzir a existência humana a um único e menor denominador
comum. Isso contrasta fortemente com as teorias que reduzem os seres humanos
a algum fator único – como a genética (como faz a sociobiologia), a economia
(como alguns marxistas e alguns capitalistas tentam fazer), ou o meio ambiente
(como o behaviorismo mais estrito) – que eles têm em comum com outros tipos
de seres vivos. Aristóteles vê os seres humanos como únicos entre outros seres
vivos e não tenta minimizar ou ignorar esse aspecto dos seres humanos que os
torna únicos.

No entanto, Aristóteles, às vezes, parece ir quase ao outro extremo,


aparentemente procurando apenas pelo denominador comum mais elevado
(SHIELDS, 2010). Porque o pensar torna os seres humanos únicos, ele o trata
como a única coisa que nos torna únicos. Como resultado, às vezes, ele tem uma
noção mais intelectualista e contemplativa da natureza e da virtude humana. Seu
erro no raciocínio é simples, como podemos ver de outro exemplo. Imagine que
você tenha um MP3 player que também seja um gravador de voz. O recurso de
gravação de voz pode torná-lo único, mas sua excelência ainda está na totalidade
de suas funções. Da mesma forma com os seres humanos: Sua excelência reside
na totalidade de suas funções e poderes (incluindo a capacidade de sentir),
não apenas na capacidade de pensar. Aristóteles, às vezes, enfatizando demais
o papel do pensamento em sua concepção de florescimento humano, não era
suficientemente holístico em sua abordagem. Enfatizamos isso porque, muitas
vezes, o papel positivo de emoções e sentimentos na vida moral é negado ou

145
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

negligenciado. Este é um perigo para o qual Aristóteles às vezes, mas nem sempre,
sucumbe.

Há ainda outra desvantagem para o relato das virtudes de Aristóteles, que


compartilha com a maioria das outras abordagens antigas e, em menor medida,
as medievais e as modernas. É uma ética para a classe dominante, para homens
gregos privilegiados, livres e adultos, cujos principais interesses eram a política
doméstica, a guerra e o ócio. Tal ética excluiu completamente as mulheres e a
maioria dos estrangeiros, muitos dos quais eram tratados como escravos ou menos
do que pessoas morais completas. No entanto, a vida que essa classe privilegiada
apreciava dependia, em grande medida, do apoio desses grupos excluídos. O
ócio grego, que Aristóteles viu como o pressuposto da filosofia, é baseado nessas
desigualdades (JAEGER, 1995).

O que devemos dizer sobre tudo isso? Claramente, em aspectos


importantes, Aristóteles estava no caminho certo. Assim como claramente, vemos
que sua visão, às vezes, era obscurecida ou distorcida, em parte por causa da
época em que ele vivia. Podemos aprender com a abordagem de Aristóteles ao
florescimento, mas, dificilmente, podemos entendê-la como a palavra final.

3.3 ABORDAGENS CONTEMPORÂNEAS AO


FLORESCIMENTO
Pensadores contemporâneos – psicólogos, economistas e outros cientistas
sociais, bem como filósofos – continuaram a tarefa de Aristóteles de entender o
florescimento humano (HEGENBERG, 2010b). Em termos gerais, suas abordagens
se dividem em duas categorias, dependendo de onde localizam os impedimentos
primários para o florescimento humano. Para aqueles que veem as principais
barreiras ao florescimento humano como externas a qualquer indivíduo em
particular, sua abordagem de uma vida florescente, normalmente, irá estressar
fatores externos e sociais. Para aqueles que veem os principais obstáculos ao
florescimento humano como internos ao indivíduo, o florescimento é, geralmente,
retratado principalmente em termos internos e psicológicos.

A abordagem externa ou social ao florescimento humano abrange uma


ampla gama de diferentes tipos de fatores que afetam o bem-estar humano.
Alguns são óbvios: muitas pessoas sentem que fatores econômicos, por exemplo,
desempenham um papel importante na determinação do desenvolvimento
humano. Aqui, o florescimento ou o bem-estar podem ser descritos em termos
de fatores objetivos como o padrão de vida. Aqueles que conseguem certo nível
de bem-estar econômico são ditos florescer, e aqueles que se afastam do nível
mínimo não são vistos como florescentes. Economistas e cientistas sociais estão
profundamente preocupados com esta questão e procuram desenvolver índices de
bem-estar em uma sociedade. Um dos conceitos mais intrigantes, defendido por
Robert Putnam (1997), é a ideia de que as sociedades possuem certa quantidade

146
TÓPICO 3 | A ÉTICA DA VIRTUDE

de "capital social" que funciona para fortalecer as comunidades e permitir que o


caráter individual floresça mais plenamente.

Outros tipos de fatores externos podem ser menos óbvios para a maioria
de nós. Pense, por exemplo, na relação entre a arquitetura e o florescimento
humano. As formas como estruturamos nossos ambientes de vida e trabalho
refletem e afetam nossas interações com outras pessoas. Locais de trabalho
sem áreas comuns para funcionários incentivam um isolamento e separação
de colegas de trabalho que não são encontrados tão facilmente em ambientes
de trabalho que estimulam a interação (GÜNTER; GUZZO; PINHEIRO, 2004).
Casas em que todas as cadeiras estão voltadas para a televisão refletem uma
concepção diferente de felicidade do que casas em que as cadeiras são situadas
de frente para si (DE BOTTON, 2007). Historicamente, os pensadores utópicos,
muitas vezes, forneceram-nos modelos possíveis de uma vida social que encoraja
o florescimento humano. Muitos desses modelos pressupõem que as pessoas
serão felizes (ou seja, florescerão) se certas condições materiais e sociais possam
ser atendidas (FREITAG, 2006). Muitas versões das teorias sociais marxistas e
capitalistas compartilham esse pressuposto.

Uma vez que o florescimento é especificado em termos de condições


externas, temos um caminho claro para aumentar a quantidade ou grau de
florescimento na sociedade. Nós, simplesmente, temos que aumentar as condições
externas necessárias para florescer, sejam elas especificadas em termos de renda,
cuidados de saúde ou algum outro fator objetivo.

Muitos teóricos conectaram o florescimento humano, principalmente,


com algum estado interno. Praticamente todas as abordagens espirituais para
o bem-estar humano, por exemplo, veem o florescimento principalmente como
um estado da alma que é, em grande parte (talvez inteiramente), independente
das condições externas. Da mesma forma, muitos relatos psicológicos do
florescimento enfatizam os fatores internos na psique do indivíduo que afetam
o bem-estar. Algumas abordagens psicológicas analisaram a questão do
florescimento humano, como a Teoria do Fluxo de Mihalyi Csikszentmihalyi
(1999), em que enfatiza um estado mental de total envolvimento no processo de
uma atividade, ou a abordagem da Psicologia Positiva de Martin Seligman (2009,
2011) ao florescimento e à felicidade autêntica.

DICAS

Assista ao vídeo de Mihaly Csikszentmihalyi, “Fluidez, o segredo da felicidade”,


no qual ele explica a sua Teoria do Fluxo. Disponível em: <https://www.ted.com/talks/mihaly_
csikszentmihalyi_on_flow?language=pt-br>. Acesso em: 12 jul. 2018. Assista também ao vídeo
de Martin Seligman, “Psicologia Positiva”, no qual ele descreve como a psicologia investiga
a felicidade e o florescimento humano. Disponível em: <https://www.ted.com/talks/martin_
seligman_on_the_state_of_psychology?language=pt-br>. Acesso em: 12 jul. 2018.

147
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

O que é comum à maioria dessas abordagens internas é o pressuposto


compartilhado de que, muitas vezes, somos o nosso pior inimigo e nos retemos
de ter as mesmas satisfações que valorizamos tão altamente. Sabotamo-nos
sem perceber o que estamos fazendo. O caminho para a felicidade envolve,
principalmente, a superação das barreiras internas ao florescimento, e isso,
geralmente, é uma questão de disciplina espiritual ou de saúde psicológica. Nesta
tradição, o florescimento é, principalmente, um estado de espírito ou psíquico e
não um estado meramente físico.

3.4 A ESTRUTURA DAS VIRTUDES EM ARISTÓTELES


Nós já falamos muito sobre virtudes sem realmente definir o que
Aristóteles significa pelo termo. Remediaremos essa situação.

A virtude, Aristóteles (1984) nos diz, é (1) um hábito ou disposição da


alma, (2) envolve sentimento e ação, (3) busca a mediania em todas as coisas
relativas a nós, (4) e a mediania é definida através de razão tal como o homem
prudente (virtuoso e de sabedoria prática) a definiria. A virtude conduz, como já
vimos, à felicidade ou ao florescimento humano. Cada um desses elementos na
definição de Aristóteles é importante, sendo assim, pausaremos para examinar
cada parte da definição.

Aristóteles nos diz que a virtude é um hexis, termo grego que se refere a
uma disposição ou hábito (SHIELDS, 2010). Não nascemos com virtudes. Elas não
são naturais ou inatas. Em vez disso, elas são adquiridas, muitas vezes, através
da prática. A educação moral para Aristóteles, portanto, se concentra em torno
do desenvolvimento do caráter fundamental de uma pessoa, o que Aristóteles
chama de psique ou "alma".

A virtude, para Aristóteles, não é simplesmente uma questão de atuação


de uma maneira particular. Também é uma questão de sentir de certas maneiras.
A virtude inclui emoção e ação (SILVEIRA, 2000). A pessoa compassiva não age
apenas de certas maneiras que ajudam a aliviar o sofrimento dos outros, mas
também tem certos tipos de sentimentos em relação ao seu sofrimento. A inclusão
do sentimento na definição de virtude é importante para nossas preocupações
aqui, pois, como vimos nos tópicos anteriores desta Unidade, a exclusão das
emoções na vida moral (ou pelo menos sua desvalorização) leva a problemas
significativos para as teorias kantiana, utilitaristas e egoístas da moral. O relato
de Aristóteles sobre a vida moral em termos de virtude, com sua ênfase no caráter
emotivo ou afetivo da virtude, permite-nos deixar de lado essa objeção.

Uma virtude, diz-nos Aristóteles (1984), envolve encontrar a mediania


entre os dois extremos de excesso e deficiência. A coragem, por exemplo, é aquele
meio-termo entre covardia (deficiência) e temeridade (excesso). Nas virtudes que
contêm vários elementos, pode haver vários vícios associados dependendo de
qual dos elementos está em excesso e quais são deficientes. A coragem, quando a

148
TÓPICO 3 | A ÉTICA DA VIRTUDE

examinamos mais de perto, tem pelo menos dois componentes: medo e confiança
(ROSS, 1987). Podemos errar em relação a qualquer um dos fatores: podemos
ter muito ou pouco medo, ou podemos ter muita ou pouca confiança em nós
mesmos.

O próprio Aristóteles (1984) sugere que este quadro tripartido nem sempre
se aplica. O exemplo que ele dá é o assassinato. Não há, ele nos diz, qualquer
mediania em relação ao assassinato. É apenas um extremo. No entanto, penso
que Aristóteles está confuso sobre este assunto, pois o assassinato não é uma
virtude, nem um vício. É uma ação, não uma qualidade de caráter. Na verdade,
a qualidade de caráter relevante seria algo como o respeito pela vida, que é uma
virtude que pode ter extremos. Por um lado, há aqueles com pouco respeito pela
vida. Eles matam e ferem outros sem levar em conta a dor e o sofrimento que
estão infligindo. Em contrapartida, há aqueles que nem pisam em uma formiga.
Pode-se argumentar que eles têm um respeito excessivo pela vida.

Entretanto, Aristóteles dá duas maneiras de determinar qual seria a


mediania: através da razão e através da observação da pessoa prudente (SHIELDS,
2010). Essa dualidade reflete a questão de que precisamos tanto de princípios e
quanto de pessoas para a vida moral. Em vez de escolher um ou outro, Aristóteles
escolhe os dois porque os vê como complementares.

Deste modo, segundo o filósofo, a virtude é uma mediania, o meio-termo


entre dois extremos, em que ambos são vícios – ou excesso ou deficiência (ou
defeito). A virtude moral, então, é definida por ele como sendo

uma disposição de caráter relacionada com a escolha e consistente


numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, a qual é determinada
por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria
prática. É um meio-termo entre dois vícios, um por excesso e outro
por falta (ARISTÓTELES, 1984, p. 73).

Assim, a sabedoria prática é a capacidade de ver qual é a coisa certa a


fazer em qualquer circunstância (SPINELLI, 2007). Portanto, uma pessoa deve
determinar o que um homem virtuoso com sabedoria prática escolheria em
qualquer circunstância que exigisse uma escolha moral e então faria a coisa
certa. Obviamente, Aristóteles atribui muito mais importância a uma consciência
esclarecida do que a regras teóricas prévias (diferindo de novo do teórico do
Comando Divino, Kant ou Ross).

Então, qual é o meio-termo, a mediania entre o excesso e a deficiência, e


como a podemos determinar? De acordo com Aristóteles, a mediania na ética não
pode ser determinada matematicamente. Pelo contrário, é uma mediania "relativa
a nós" ou para quem está tentando determinar a coisa certa a fazer (CRUZ, 2013).
Por exemplo, se dez quilos de alimentos são demais (excesso) e dois são muito
pouco (deficiência ou defeito), então seis quilos, que é o meio-termo entre estes
dois extremos, ainda pode ser muito para alguns e pouco para os outros. Portanto,

149
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

deve-se escolher a mediania apropriada entre os dois extremos, em relação a si


mesmo.

Alguns exemplos de meios-termos entre dois extremos estabelecidos


por Aristóteles e tabulados por Sir William David Ross (1987, p. 208-209), que
estabeleceu a teoria ética dos deveres Prima Facie, estão na tabela a seguir. Esta
lista parcial lhe dará uma ideia do que Aristóteles queria dizer por mediania entre
dois extremos, mas não mostra realmente o que seria o meio-termo "relativo a
nós". Contudo, ela nos fornece algumas diretrizes gerais às quais podemos nos
referir quando tentamos determinar a mediania "relativa a nós".

QUADRO 5: VIRTUDES ARISTOTÉLICAS


Sentimento/Ação Excesso Meio-termo Defeito
Confiança
(Atitude frente à Temeridade Coragem Covardia
morte ou perigo)
Prazer sensual
(Atitude frente Temperança/
Luxúria/Gula Anedonia
aos próprios moderação
desejos)
Empatia
(Atitude frente ao
Pena/dó Compaixão Insensibilidade
sofrimento dos
outros)
Vergonha
(Atitude frente as Culpa tóxica Arrependimento Indiferença
nossas ofensas)
FONTE: Adaptado de Ross (1987) e Van Hooft (2006)

Assim, Aristóteles nos diz que a virtude é a disposição da alma/mente


através do raciocínio para encontrar a mediania em todas as coisas relativas a nós.
A mediania é aquele meio-termo entre dois extremos – os extremos do excesso
(tendo muito de algo) e deficiência (tendo pouco). A mediania é descrita de
forma diferente, dependendo da esfera particular da existência em que estamos
buscando o meio-termo. Certas esferas de existência são encontradas em quase
todas as culturas (PERINE, 2006).

As virtudes, diz-nos Aristóteles, são aquelas forças do caráter que


promovem o florescimento humano. Algumas dessas forças são forças da vontade
(KRAUT, 2009). A perseverança em face de uma tarefa difícil e longa é uma virtude
da vontade, o que alguns chamaram de Virtude Executiva (HOOFT, 2013). Assim
também é a coragem, a capacidade de agir em face dos medos de alguém. Essas
virtudes da vontade são em grande parte independente da bondade moral.
Alguém pode tão facilmente perseverar em uma vida de crime como em uma
vida de bondade. Ladrões de banco podem exibir tanta coragem quanto um

150
TÓPICO 3 | A ÉTICA DA VIRTUDE

agente da polícia que tenta capturá-los. Outras virtudes estão mais intimamente
relacionadas com o bem moral, e nós podemos chamá-las de Virtudes Morais ou
de Caráter (HOOFT, 2013). A compaixão é claramente uma virtude de caráter, pois
está diretamente ligada a uma preocupação com o bem moral de uma maneira
que a perseverança e a coragem não o estão.

No núcleo da compreensão de Aristóteles da vida moral, está a sua noção


de phronesis, que é várias vezes traduzida como "sabedoria", "sabedoria prática",
"prudência" e até "inteligência" (PERINE, 2006). Sabedoria prática, embora o termo
pareça ter um ar paradoxal porque a sabedoria, geralmente, pensa-se ser algo
contemplativo em vez de ativo, é a tradução mais precisa. Ao discutir phronesis,
Aristóteles está enfatizando dois elementos nesta faculdade de juízo. Primeiro,
ele enfatiza a dimensão prática de tais juízos, que está, essencialmente, focada na
aplicação de algo geral – uma concepção da vida boa (ou seja, de florescimento
humano) – a casos muito específicos. Em segundo lugar, ao chamar isso de
sabedoria, enfatizamos o fato de que vai além da mera aplicação mecânica das
regras (KRAUT, 2009). Desta forma, os juízos morais aristotélicos se distinguem
dos simples cálculos do tipo que encontramos no utilitarismo. De fato, phronesis
está mais perto da arte do que da ciência. Analisaremos isso mais de perto.

A sabedoria prática tem vários elementos (FURROW, 2007). Envolve


a aplicação reflexiva e afetiva de uma disposição geral para a ação correta de
algum tipo (ou seja, uma virtude como a coragem) para uma situação particular
(por exemplo, uma ameaça de um ladrão) à luz de uma concepção geral do
florescimento humano. Assim, existem três elementos principais: uma virtude,
uma situação particular e uma concepção da vida boa ou do florescimento
humano.

Assim, a sabedoria prática consiste na aplicação de uma excelência


específica de caráter a uma situação particular à luz de uma concepção geral da
vida boa. Esta aplicação tem uma dimensão intelectual e afetiva. É um processo de
reflexão ou um ato de reflexão em que tomamos um conceito geral e o aplicamos a
um caso específico. No entanto, é acompanhado também por um processo afetivo
pelo qual o indivíduo ordenou corretamente os desejos.

Uma parte da sabedoria é conhecer a melhor maneira de alcançar um


fim particular e, para isso, não há um conjunto exaustivo de regras detalhando
como determinar em qualquer caso particular quais são os melhores meios. Pelo
contrário, é uma questão do que Aristóteles chama de astúcia (PERINE, 2006). Ao
discutir esta questão, Aristóteles faz um ponto interessante e importante sobre
a diferença entre sabedoria e mera astúcia. A pessoa simplesmente astuta ou
inteligente, afirma Aristóteles (1984), conhece os melhores meios para qualquer
fim particular, mas não sabe quais os fins que vale a pena perseguir. A pessoa
sábia, ao contrário, não só sabe a melhor forma de atingir um fim particular, mas
também entende quais os fins que merecem ser alcançados.

Aristóteles (1984) faz o que parece ser uma afirmação surpreendente

151
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

em sua discussão sobre as virtudes: você não pode ter uma virtude sem ter as
outras, ou seja, há uma reciprocidade das virtudes. Contudo, dada a concepção
de Aristóteles sobre a sabedoria prática, isso faz sentido. As virtudes não existem
isoladamente, elas estão conectadas tanto a situações particulares quanto a uma
concepção geral do florescimento humano. Se este for o caso, então, ter qualquer
virtude específica de modo pleno é ver como ela se encaixa no esquema mais
geral de uma vida boa. E para fazer isso, é preciso ter as outras virtudes que são
necessárias para prosseguir a vida boa também.

Esta visão da relação entre virtudes específicas e uma concepção geral


do florescimento humano nos permite resolver alguns casos sobre a decisão
em relação às virtudes. Tome a coragem como exemplo. Indivíduos temerários
e imprudentes enfrentam grandes perigos por coisas de pouco valor. Eles não
conseguiram integrar sua capacidade de enfrentar o medo em uma concepção
maior de florescimento humano e, como resultado, disso, não possuem a total
virtude de coragem. Existe uma questão semelhante com a compaixão. A pessoa
que sente muita pena ou dó é aquela que responde dando ajuda (ou dinheiro)
de forma irreflexiva e sem uma concepção geral suficiente da vida boa. A pessoa
genuinamente compassiva responderá ao sofrimento dos outros tanto de forma
pensativa como emocional e fará isso no contexto de uma concepção da vida boa
tanto para a pessoa compassiva quanto para a pessoa em necessidade.

Às vezes, é difícil saber como responder a problemas morais de uma


maneira que mostre sabedoria prática. Pense, por exemplo, no problema da
pobreza na sociedade brasileira de hoje. O desafio que enfrentamos como nação
é como responder às grandes desigualdades econômicas encontradas em nosso
meio, especialmente aquelas desigualdades que têm pouco a ver com habilidade
ou perseverança. Os programas sociais, como o Bolsa Família, foram destinados
a responder desta forma, e muitos destes programas foram, parcialmente,
bem-sucedidos. No entanto, os programas foram muitas vezes desenvolvidos
e administrados sem uma concepção clara do florescimento humano (ou seja,
a vida boa que estamos buscando realizar). Como resultado, as etapas foram
motivadas pela compaixão, mas não foram suficientemente orientadas por uma
concepção da vida boa. Pense, por exemplo, em projetos de habitação pública.
Eles foram bem-intencionados na maioria dos casos, mas raramente conseguiram
seus objetivos. Eles criaram comunidades mais alienadas e isoladas, cada vez mais
incomodadas pela violência e com uma sensação de desesperança e raramente
foram orientadas por uma visão realista da vida boa.

Aprender a ser compassivo de boa maneira, que é o sentido desta


virtude, é realmente difícil. Assim também é aprender a ser um artista realizado,
um médico qualificado ou um bom pai. Mas a dificuldade não é motivo para
abandonar a tentativa. Seja como for, é um motivo para tentar ainda mais.

Agora, dedicaremos um espaço para explorar a virtude na perspectiva


das teorias chinesas, em especial o confucionismo.

152
TÓPICO 3 | A ÉTICA DA VIRTUDE

4 O AUTOCULTIVO MORAL CONFUCIANO


No núcleo das teorias chinesas do autocultivo moral, está o conceito de
virtude. O termo chinês “Te” (virtude) pode ser rastreado até a dinastia Shang
no século XII AEC. Onde era entendido como "uma espécie de poder que se
acumulava ou residia dentro de um indivíduo que agia, favoravelmente, a um
espírito ou a outra pessoa" (IVANHOE, 2000, p. ix). Em etimologias posteriores,
o termo “Te” (virtude) significava "ter um controle sobre” alguém, mas esse
poder de influenciar os outros era tal que não podia ser usado para manipular
os outros, a fim de satisfazer o seu próprio interesse (IVANHOE, 2000). “Te” é o
poder inerente ou tendência para afetar os outros e é, portanto, mais comumente
traduzido como "virtude” ou “poder”.

Todavia, acreditava-se que o “Te” poderia ser cultivado e desenvolvido


de forma que levaria a uma autotransformação necessária para viver uma vida
eticamente plena. As vidas desses indivíduos transformados, por sua vez, teriam
um efeito positivo, dramático e poderoso sobre os outros. O termo, assim, carrega
o sentido de autorrealização em que significa tudo o que uma pessoa pode fazer
ou ser como membro de uma comunidade. Como tal, o termo "excelência" pode
ser uma melhor tradução do termo “Te”. Ele denota um indivíduo sobressaindo-
se em tornar-se tudo o que se pode ser no sentido de fazer o melhor com o que
se tem. Aquilo que cada pessoa tem inerentemente é o “Te”, mas a excelência é
desenvolvê-lo plenamente no contexto de sua própria vida e na sociedade (LAU,
2012).

Desde a época da dinastia Zhou, aproximadamente no século XI AEC, a


virtude esteve intimamente ligada ao estado. Os antigos reis sábios governavam
através da propriedade ritual e dos costumes (termo em chinês “Lí”) e não pela
lei e pela força, pois os bons governantes exibiam reverência sincera pelo seu
passado e se preocupavam em cuidar do bem-estar material e espiritual do povo
e manter a harmonia entre céu e terra. O cultivo apropriado da virtude real ou
“Te” era necessário para realizar isso de maneira apropriada, porque permitia
ao governante obter o endosso do céu, atrair e reter ministros bons e capazes, e
assegurar o respeito e a lealdade dos súditos (LAU, 2012; BUENO; NETO, 2014).

Kongzi ou "Confúcio" (551-479 AEC) disse: “O governo pela virtude [Te]


pode ser comparado à estrela Polar, que comanda a homenagem da multidão
de estrelas sem sair do lugar” (CONFÚCIO, 2012, 2.1, p. 78). Era por meio do
cultivo apropriado do “Te” que um excelente líder era capaz de exercer um efeito
tão poderoso e abrangente sobre a sociedade. Foi Confúcio e seus seguidores
que trabalharam as bases para um programa abrangente de autocultivo moral
(IVANHOE, 2000).

4.1 OS ANALECTOS CONFUCIANOS


Nenhum pensador influenciou a ética da Ásia mais do que Confúcio.
153
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

Ele é o maior professor da China e suas lições são profundamente humanistas,


enfatizando as responsabilidades que as pessoas têm entre si com o objetivo de
produzir e manter uma sociedade justa e ordenada. Confúcio viveu durante um
período de agitação política e caos conhecido como o Período das Primaveras
e Outonos, uma época que, imediatamente, precedeu o Período de Estados
Combatentes, e suas percepções morais prevaleceram e se tornaram a base para a
longa estabilidade da China como civilização e como nação (COUTO, 2008).

Para Confúcio, os seres humanos são, fundamentalmente, sociais


de natureza. Um indivíduo é nascido em uma família e é membro de uma
comunidade e de uma nação que era considerada como uma família extensa
ou "grande" (BUENO; NETO, 2014). Em outras palavras, a identidade está
sempre ligada ao grupo e aos relacionamentos dentro da ordem social. Como
um eu relacional, o indivíduo ocupa certos papéis sociais que carregam
responsabilidades correspondentes (IVANHOE, 2000). Em um mundo chinês, a
unidade fundamental é a família, enquanto o estado é, de fato, a família como
um mandado ampliado. O indivíduo enredado e como parte dessa estrutura
social, espera-se que ele exerça uma consideração mútua em todas as relações
humanas. No confucionismo existem cinco relações cardeais, principalmente de
natureza patriarcal e hierárquica, que especificam deveres e privilégios. É dentro
da estrutura dessas relações que se realizam as virtudes e atitudes que reforçam
a vida cotidiana (OUTHWAITE; BOTTOMORE, 1996).

QUADRO 6 – AS CINCO RELAÇÕES CARDEAIS CONFUCIANAS


As cinco relações cardeais confucianas
Governante e súdito
Pai e filho
Marido e esposa
Irmão mais velho e irmão mais novo
Amigo e amigo
FONTE: Outhwaite e Bottomore (1996, p. 124)

Discutimos a relação entre governante e súdito anteriormente em nossa


apresentação da virtude real (Te) e da propriedade e dos costumes rituais (Li).
Nos Analectos, Confúcio expressa assim:

Guie-o por meio de editos (zheng), mantenha-o na linha com punições


(xing), e o povo se manterá longe de problemas, mas não será capaz de
sentir vergonha. Guie-o pela virtude (Te), mantenha-o na linha com os
ritos (Lí), e o povo, além de ser capaz de sentir vergonha, reformará a
si mesmo (CONFÚCIO, 2012, 2.3, p. 78).

Podemos ver, portanto, que Confúcio percebe uma clara diferença entre
fazer a coisa certa e ser uma boa pessoa.

154
TÓPICO 3 | A ÉTICA DA VIRTUDE

Todos os relacionamentos confucianos são governados pela prática de Shu,


"reciprocidade". O pai deve cuidar do filho, dar proteção e fornecer educação. Em
troca, o filho deve praticar piedade filial. Aceitar instrução, orientação e direção
do pai e cuidar dele na velhice. Além disso, o filho mais velho deveria realizar
a cerimônia de sepultamento de acordo com os procedimentos costumeiros e
honrar os antepassados (CONFÚCIO, 2013).

Como marido, o homem é a cabeça da casa e cuida dos deveres da


família e provê para sua esposa e família. Além disso, ele deveria ser honrado
e fiel. A posição da esposa é subordinada ao marido. Ela deve cuidar da casa
e ser obediente ao marido. Há um velho ditado na China: "O marido canta e a
esposa harmoniza" (HSU, 2009, p. 452). Além disso, a esposa deve atender às
necessidades de seu marido e cuidar das crianças. O irmão mais velho deve dar
um exemplo de bom comportamento e cultivar refinamento para as crianças mais
novas. O irmão mais novo, por sua vez, mostra respeito ao irmão mais velho por
causa de sua experiência e caráter.

A amizade é uma relação recíproca de respeito entre iguais. É a única


relação cardinal que não é hierárquica (OUTHWAITE; BOTTOMORE, 1996). A
natureza das relações confucianas nos diz que, embora devamos mostrar respeito
igualmente a todos, nem todos são iguais. Há um lugar para a autoridade
legítima e é apropriado mostrar deferência a essa posição de autoridade. Com o
passar do tempo, as relações e seus papéis correspondentes e responsabilidades
mudam – o filho mais velho se torna marido e pai e os filhos tornam-se pais. Nos
relacionamentos confucianos cada pessoa compreende seu lugar em relação aos
outros, e a virtude só faz sentido dentro das relações interpessoais. As virtudes
confucianas são assim decididamente de natureza social.

4.2 HARMONIA CONFUCIONISTA


Um estudo do pensamento chinês sugere que seu objetivo é alcançar
uma grande harmonia. À luz desta noção de harmonia, discutiremos as duas
principais virtudes confucianas, a saber, o termo “Ren”, traduzida diversas vezes
como amabilidade humana, benevolência, bondade ou humanidade e o termo
“Lí”, traduzido como ritos, propriedade ritual, ou adequação (BUENO, 2011).

Ren etimologicamente se referia a "membros de um clã" em oposição


àqueles fora do clã ou forasteiros. Dentro do clã, referia-se à tolerância em
relação a outros membros que não era estendida para aqueles fora do clã. Seu
comportamento era humanitário e acabou se tornando um termo geral para o ser
humano, distinguindo assim o "humano" do "animal" e sugerindo uma conduta
digna e apropriada de um ser humano como distinta dos brutos. Caracteriza-se
pela Regra de Ouro, às vezes chamada de Regra de Prata Confucionista: "Não
faça aos outros o que você não gostaria que fizessem a ti mesmo” (IVANHOE,
2000, p. 96).

155
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

Ren é a principal virtude confucionista e destaca e realça a relação natural


entre o indivíduo e a comunidade. Na verdade, o termo Ren é realmente composto
de dois caracteres chineses. O primeiro representa a pessoa individual e o segundo
é o carácter para o número dois. Portanto, o ideograma para Ren é "um-ser-com-
outros" (BRANNIGAN, 2005, p. 296). O self chinês é um self relacional. A pessoa
é um "indivíduo" apenas em relação aos outros e essas relações constituem a
própria identidade. O estudioso confuciano Roger Ames (1988, p. 201) descreve
assim:

A comunidade é um projeto de revelação. Essa inseparabilidade da


integridade pessoal e da integração social colapsa a distinção entre
meios e fins, tornando cada pessoa um fim em si mesmo e uma
condição ou meio para todos os outros na comunidade serem o que
são. O modelo é de mutualidade.

O Ren tenta harmonizar interesses individuais com o bem da comunidade.


No entanto, em todos os casos, o primado se estende ao bem comum. Este último
ponto conduz logicamente a uma consideração de Lí.

Lí, a "propriedade ritual", é a virtude confucionista que deve ser cultivada


se quisermos ser um participante pleno na comunidade. Lí refere-se a todos os
papéis e formas de vida com significado investido dentro da comunidade que
são transmitidos por meio do costume e da tradição de geração em geração. Se
o cultivo da virtude Ren resulta na atitude disposicional adequada que, como
ser humano, o indivíduo traz para as relações humanas, então Lí torna possível
ao indivíduo exibir uma conduta apropriada em qualquer situação específica de
conduzir-se na presença de um governante, como vestir-se, as maneiras de mesa
e etiqueta, padrões de saudação, de graduações, casamentos, funerais e culto aos
antepassados. "Lí é a expressão concretizada da humanidade" (BRANNIGAN,
2005, p. 298). Lí é a apropriação pessoal da tradição e, portanto, da comunidade
de uma forma não meramente formal e superficial, mas também autêntica, sincera
e pessoal. Lí traz estabilidade social a uma sociedade e permite que ela funcione
bem sem a imposição excessiva de leis e ameaças de punição.

O discípulo de Confúcio, Meng Zi ou Mencius (391-308 AEC) apresentou


um confucionismo idealizado e argumentou que os seres humanos são inatamente
bons. Isto é, as pessoas têm uma disposição natural em relação ao bem. Como
tal, o autocultivo moral envolve o desenvolvimento e a promoção de verdadeira
natureza do indivíduo (LAU, 2012). Como "brotos", a virtude precisa ser cultivada
e cultivada em plena floração. No entanto, uma figura igualmente grande na
tradição confucionista, Xun Zi (310-219 AEC), ofereceu o que considerava uma
interpretação realista do pensamento confucionista. O Mestre Xun ensinou que a
natureza humana é má. A natureza humana é má porque as pessoas não são, como
ensinou Mencius, naturalmente dispostas ao bem, mas inclinadas ao interesse
próprio. Como os bens são limitados e as pessoas desejam as mesmas coisas,
haverá conflito e mal. Assim, a conduta virtuosa que leva a uma sociedade estável
e boa envolve o cultivo disciplinado. Em contraste com Mencius que descreve o
autocultivo moral utilizando a metáfora agrícola da tendência de brotos, Xun Zi

156
TÓPICO 3 | A ÉTICA DA VIRTUDE

descreve o autocultivo moral metaforicamente em termos dos processos severos


de endireitar a madeira torta e afiar o metal em uma moagem. Ou seja, tornar-se
virtuoso não é natural, mas estritamente convencional (BUENO, 2011).

De qualquer modo, todos os confucionistas concordam que as virtudes


são desenvolvidas através do autocultivo moral até se tornarem hábitos e
atitudes de caráter. Este processo é um processo de não só se tornar uma boa
pessoa, mas também, de fato, de se tornar plenamente humano. Este ideal moral é
encarnado na pessoa do Junzi, "pessoa superior" ou "indivíduo cultivado" (similar
em alguns aspectos ao "homem virtuoso com sabedoria prática" de Aristóteles).
No pensamento confucionista, o autocultivo moral é sempre um exercício e um
refinamento da virtuosidade social (IVANHOE, 2000).

4.3 A ÉTICA CONFUCIONISTA DOS PAPÉIS


As qualidades de excelência e, de fato, a instituição da moralidade na
tradição confucionista estão fundamentadas no cultivo da reverência familiar. Os
Analectos de Confúcio declaram:

É raro um homem que é bom como filho e obediente [Xiaoti] como


jovem ter a inclinação de transgredir contra seus superiores; não se
sabe de alguém que, não tendo tal tendência, tenha iniciado uma
rebelião. O cavalheiro [Junzi] dedica seus esforços às raízes, pois, uma
vez que as raízes estão estabelecidas, o Caminho [Dao] daí brotará. Ser
um filho bom e um jovem obediente é, talvez, a raiz do caráter [Ren] de
um homem (CONFÚCIO, 2012, 1.2, p. 74).

A reverência familiar é a raiz do Ren que também pode ser traduzida como
bondade ou humanidade (BRANNIGAN, 2005).

Henry Rosemont e Roger Ames (2009, p. xii) identificaram este sistema


confucionista da moralidade como "Ética dos Papéis". Eis o que eles dizem:

Dada esta centralidade do sentimento familiar na evolução de uma


sensibilidade moral confucionista, tentamos com base no Xiaojing
– o Clássico da Reverência Familiar – e passagens suplementares
encontradas nos outros escritos filosóficos iniciais para articular o
que consideramos ser uma concepção confucionista da "ética dos
papéis". Essa ética dos papéis toma como seu ponto de partida e como
sua inspiração a necessidade percebida do sentimento familiar como
fundamento no desenvolvimento da vida moral.

Ames e Rosemont estão, de fato, colocando a ética dos papéis como uma
teoria distintamente diferente das teorias morais básicas que emergiram no curso
da tradição ética ocidental.

Neste livro, a "ética confucionista dos papéis" também é considerada


como um tipo "novo" de teoria ética, juntamente com as teorias tradicionais da

157
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

ética consequencialista e não-consequencialista, mas distintas delas. Incluímo-la


aqui no tópico sobre Ética da Virtude, porque há conexões óbvias e imediatas
que são frequentemente feitas entre a ética de Aristóteles e a ética de Confúcio. O
argumento aqui é que, como o mundo chinês assume uma ontologia inteiramente
diferente, não essencialista, um cosmos dinâmico e um mundo humano em
que todas as relações são caracteristicamente familiares, a ética dos papéis
confucionista é distinta como uma teoria ética e deve ser entendida em seus
próprios termos.

A ética dos papéis confucionista não tem equivalente ocidental. O antigo


léxico chinês contém quase nenhum dos termos utilizados no discurso moral
ocidental. Por exemplo, o self relacional chinês é, fundamentalmente, diferente
da visão iluminista e ocidental contemporânea de um indivíduo como um
"agente moral livre, racional e autônomo". Assim, o confucionista não considera
indivíduos abstratos, mas coloca o foco da atenção e da tomada de decisão ética em
pessoas concretas em uma matriz de relações de papéis relacionais com os outros.
O fundamento dessa ética é a "reverência familiar" ou o "sentimento familiar"
(Xiao). O caráter chinês Xiao era representado em um retrato estilizado de uma
pessoa idosa de cabelos grisalhos e uma criança pequena, e assim, refletindo
a deferência geracional e a reverência que ela engendra. Tradicionalmente, foi
traduzida como "piedade filial", mas tal tradução não ressoa bem com os leitores
modernos (IVANHOE, 2000; SANTIAGO, 2004).

Quanto à centralidade de Xiao em uma teoria da ética dos papéis,


Rosemont e Ames (2009, p. 1) são explícitos:

Xiao é a base de todos os ensinamentos confucianos, pois sem o


sentimento de reverência pela e no interior da família, o cultivo moral
e espiritual necessário para se tornar "um ser humano consumado
[Ren]” e uma "pessoa exemplar" [Junzi] social e politicamente
engajada não seria possível. Significativamente, essa "ética dos papéis"
confucionista – como viver otimamente nos papéis e relações que
constituem a si – origina e irradia dos sentimentos familiares concretos
que constituem as relações entre crianças e seus idosos e os papéis
interdependentes que eles vivem. Tal sentimento familiar é ao mesmo
tempo comum e cotidiano, e ao mesmo tempo, sem dúvida, é o aspecto
mais extraordinário da experiência humana.

A reverência da família, então, é tanto o solo como a cola que permeia


todas as relações confucionistas. E, é por meio de papéis familiares e sociais
(família extensa) que se exerce responsabilidade, alcança-se a humanidade e,
assim, estende o caminho (Dao). Através de vários papéis e relacionamentos, ao
indivíduo, é possível atualizar virtudes como Ren, Lí e Shu. Como a ética dos
papéis confucionista é uma ética de responsabilidades que requerem ação, é uma
ética robusta que invoca uma imaginação moral criativa que permite ao indivíduo
colocar-se no lugar de outro, a fim de determinar a fazer o melhor esforço para o
resultado mais adequado nas circunstâncias específicas.

158
TÓPICO 3 | A ÉTICA DA VIRTUDE

5 ANÁLISE CONTEMPORÂNEA DA ÉTICA DA VIRTUDE


As teorias contemporâneas da ética da virtude são, primeiramente, uma
reação contra as teorias morais que tentam encaixar nossa experiência moral em
um sistema estabelecido de regras ou de ideais pré-estabelecidos. Isto é, as teorias
contemporâneas da ética da virtude estão em oposição às teorias morais que
passaram a dominar o mundo moderno, especificamente o consequencialismo
e o kantianismo. Foram feitas sugestões de que a filosofia moral moderna está
equivocada, hiperformalizada e incompleta (MACINTYRE, 2001; SATTLER,
2012). Os defensores da ética da virtude sustentam que a consideração do caráter
fornece uma compreensão mais adequada e abrangente da experiência moral,
porque capta mais adequadamente as questões e preocupações da vida ordinária.
Há uma grande variedade de teorias contemporâneas de Ética da Virtude, e
embora a maioria se baseie fortemente nas ideias de Aristóteles, essas teorias
se preocupam, principalmente, em superar as fraquezas percebidas da teoria
moral moderna baseada em grande parte nas regras. Tem havido um crescente
interesse, e um ressurgimento, de pontos de vista confucionistas da ética também
(HOOFT, 2013).

5.1 ANÁLISE DE ALASDAIR MACINTYRE DA ÉTICA DA VIRTUDE


Provavelmente, a análise contemporânea mais significativa e proeminente
da Ética da Virtude, especialmente a versão aristotélica dela, pode ser encontrada
no livro de Alasdair MacIntyre (1984, 2001) Depois da Virtude. Ao analisar as
intenções de Aristóteles, MacIntyre afirma que as virtudes são disposições não
apenas para agir de maneiras particulares, mas também para sentir-se de maneiras
particulares, o que, obviamente, enfatiza a criação de um caráter virtuoso em si
mesmo, não apenas o seguimento de regras ou o cálculo de boas consequências. É
preciso criar sentimentos virtuosos ou inclinações interiores e não simplesmente
agir virtuosamente. Macintyre (2001) afirmou ainda que agir virtuosamente não é
agir contra a inclinação (como pensava Kant), mas sim agir a partir de inclinações
que foram formadas através do cultivo das virtudes. A ideia, então, é decidir o que
o ser humano virtuoso e sábio, na prática, faria em qualquer situação envolvendo
a escolha moral, e então fazer o mesmo. Macintyre estaria, portanto, afirmando
que os seres humanos devem saber o que estão fazendo quando julgam ou agem
virtuosamente, e então devem fazer o que é virtuoso apenas porque é assim.

A ética da virtude tenta criar o ser humano bom ou virtuoso, não apenas
bons atos ou regras e não apenas um robô que segue regras pré-estabelecidas
ou uma pessoa que age por capricho ou tenta conseguir boas consequências. Ela
procura inculcar a virtude ao instar os seres humanos a praticar atos virtuosos
a fim de criar a pessoa habitualmente virtuosa ou boa que então continuará a
agir virtuosamente. Muitos eticistas veem isso como constituindo um de nossos
principais problemas hoje: temos regras e leis e sistemas de ética, mas ainda não
temos seres humanos éticos ou virtuosos. Esses eticistas acreditam que até que
criemos pessoas éticas ou virtuosas, nossas chances de criar uma sociedade moral
159
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

permanecerão mínimas. Afinal de contas, temos tido regras, leis e regulamentos


por pelo menos vários milênios e ainda os seguimos tendo, mas ainda a maldade, a
imoralidade, o vício e a crueldade parecem estar piorando em vez de melhorarem.
Neste contexto, vemos que é, geralmente, aceito que as virtudes são benéficas
para os indivíduos e para a comunidade (HOOFT, 2013).

Um exemplo deste debate pode ser extraído da aprovação de leis contra


a discriminação racial. Quando o presidente Harry Truman propôs a integração
racial dos militares dos EUA, alguns argumentaram que não se poderia legislar
a moralidade (SCHLESINGER JR., 1992). Ou seja, poderíamos aprovar leis
que obrigam as pessoas a comportar-se de certas maneiras ou a agir de forma
diferente do que eles querem ou fizeram no passado, mas as leis não podem
mudar a maneira como as pessoas se sentem por dentro. Até não mudarem os
sentimentos, argumenta-se, o indivíduo nunca vai realmente mudar a sua moral.
Esta ideia tem seu ponto argumentativo. Entretanto, as visões morais de muitas
pessoas mudaram quando a integração racial se tornou lei nacional nos EUA.
Os pontos de vista de muitas outras pessoas, é claro, ainda não mudaram, e os
críticos dessa visão poderiam questionar se não é muito idealista pensar que
poderíamos mudar a moralidade das pessoas até o ponto em que todo mundo se
tornaria uma pessoa virtuosa. A questão então fica ainda sem resposta definitiva,
se as regras e as leis ajudam a criar pessoas virtuosas (e em que amplitude), ou
apenas as obriga a agir virtuosamente.

Outro ponto a ser ressaltado aqui é que tanto o não consequencialismo


de ato e as teorias de Kant tentam separar a razão da emoção ou dos sentimentos
(HEGENBERG, 2010b). A ética da virtude, por outro lado, tenta unificá-los
afirmando que as virtudes são disposições não apenas para agir de certas maneiras,
mas também para se sentir de certo modo, virtuosamente em ambos os casos
(HOOFT, 2013). O propósito é usar o raciocínio (sabedoria prática) para fazer com
que as pessoas façam o que é virtuoso e ao mesmo tempo inculcar essa virtude no
interior para que os seres humanos não apenas raciocinem virtuosamente, mas
também comecem e continuem a se sentir virtuosos. Nenhuma das outras teorias
tenta fazer isso.

Kant (2007), deliberadamente, evita o atuar sobre a inclinação quase ao


ponto do absurdo, de modo que a questão crítica a ser proposta contra sua teoria
é: "E se as pessoas estão inclinadas a ser virtuosas? Não deveriam agir de acordo
com essas inclinações? Kant parece dizer que essas pessoas não seriam tão morais
como teriam sido se tivessem agido virtuosamente contra suas más inclinações.
Por outro lado, o não-consequencialista de ato diz que nós devemos agir somente
em uma base da emoção, ou seja, o que sentimos como correto ou virtuoso
em algum momento particular ou em alguma situação particular (RACHELS;
RACHELS, 2014). Aristóteles, tal como Kant, ficaria horrorizado com tal teoria da
moralidade porque acreditava que a atividade por excelência dos seres humanos
era raciocinar bem para alcançar uma vida completa. No entanto, ele tentou,
muito mais do que Kant, integrar a emoção ou os sentimentos com a razão, sem
excluir o primeiro.

160
TÓPICO 3 | A ÉTICA DA VIRTUDE

A ética da virtude, pelo menos a versão de Aristóteles, dá-nos uma


maneira de alcançar a moderação entre o excesso e a deficiência (HOOFT, 2013).
Muitos eticistas acreditam, junto com os gregos, que a moderação em todas as
coisas é o que os seres humanos devem se esforçar para alcançar. Aristóteles
(1984) tenta estabelecer meios para alcançar a moderação, codificando o que
constitui o excesso, o defeito e a mediania entre eles, como descrito na tabela
de Ross mostrada anteriormente. Ele também encoraja a liberdade permitindo
que os indivíduos decidam sobre o meio-termo adequado relativo a si mesmos.
Novamente, ele parece encorajar uma integração entre sentimento e razão,
exortando os indivíduos a usar tanto a razão quanto os sentimentos para decidir
o meio apropriado para eles. Para Confúcio (2012, 2013), as virtudes contribuem
para a harmonia entre a razão e os sentimentos e para a harmonia entre o
indivíduo e a sociedade.

5.2 DESVANTAGENS OU PROBLEMAS


Podemos perguntar, será que os seres humanos têm um fim (telos), um
propósito? Uma das primeiras suposições de Aristóteles (1984) é que todas as coisas
têm um propósito ou um fim ao qual elas visam. Ele prossegue dizendo que o fim
da vida humana é a felicidade, e que todos os seres humanos visam isso. Todavia,
será que é verdade ou provado que todas as coisas têm um fim ou propósito?
Muitas pessoas argumentam que sim, mas muitos também argumentam que
não está claro se isso é correto. Por exemplo, alguns poderiam argumentar que
o mundo e tudo o que há nele ocorreu por acaso ou aleatoriamente e que não é
de todo claro que qualquer coisa em tal universo visa a qualquer fim, exceto para
sua própria morte ou dissolução. Mesmo se assumirmos que tudo tem um fim ao
qual visa, o que prova que o fim da vida humana é a felicidade? Não poderia ser,
por exemplo, o conhecimento, a espiritualidade, a morte, o sofrimento ou outras
coisas? A suposição de Aristóteles é apenas isso, uma suposição. Muitos poderiam
também argumentar que a felicidade não é um fim apropriado para a vida
humana, mas que algo mais "nobre" seria apropriado, como indivíduos religiosos
poderiam argumentar que o fim deveria ser o amor de Deus e a esperança de estar
com Ele. Além disso, poderiam argumentar que o raciocinar bem para alcançar
uma vida completa pode ser a visão de um filósofo sobre a finalidade humana,
mas por que não poderia ser outras coisas também? Mais uma vez, Aristóteles
fez uma suposição, mas os religiosos podem argumentar que ser espiritual é o
objetivo humano, e outros filósofos podem argumentar que os sentimentos ou as
emoções são o objetivo. Muitos defensores contemporâneos da Ética da Virtude
não concordam com Aristóteles que o objetivo final é a felicidade, mas algo mais,
por exemplo, responder bem às exigências do mundo como uma questão de
disposição (HOOFT, 2013). É apropriado questionar o pressuposto de Aristóteles
sobre o fim último dos seres humanos, mas os desafios à visão de Aristóteles não
apresentam uma falha fatal para a Ética da Virtude.

Uma segunda grande suposição de Aristóteles (1984) é que a tendência


à ser moral está, naturalmente, implantada nos seres humanos. Que evidência

161
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

há para apoiar essa afirmação? Muitos poderiam argumentar que a moralidade


não é alguma característica ou ideia inata, mas algo que é ensinado e aprendido
com a experiência. A única tendência que os seres humanos têm é ser capazes de
raciocinar e a razão por si só não implicaria necessariamente moralidade, embora
muitos eticistas, como Kant e inclusive Aristóteles, considerem que a razão é a
sua base. Seria então verdade que os seres humanos têm uma tendência natural,
inata para ser moral? Alguns argumentam que sim e alguns argumentam o
contrário, mas não há evidência ou prova clara de que a suposição de Aristóteles
seja verdadeira. O erudito confuciano Xun Zi, como vimos anteriormente, fez
a suposição oposta como a base de sua explicação da virtude e do autocultivo
moral.

Entretanto, um dos problemas mais significativos dessa teoria gira em


torno das seguintes questões: o que é a virtude, quais são as virtudes e o que é o
ideal, ou quem é o ser humano virtuoso a quem devemos, supostamente, emular
quando escolhemos nossas virtudes? Alguns eticistas, inclusive Aristóteles,
argumentam que tudo o que precisamos saber e fornecer é um relato sobre o
que constitui o florescimento e bem-estar humano. Então as virtudes podem
ser adequadamente caracterizadas como aquelas qualidades necessárias para
promover tal florescimento e bem-estar. De acordo com Macintyre (2001), no
entanto, houve, e ainda há profundos conflitos quanto ao que está envolvido no
florescimento e bem-estar humanos.

O autor supracitado prossegue dizendo que períodos diferentes na


história e figuras históricas desses períodos nos apresentam vários conjuntos de
virtudes (MACINTYRE, 2001):

1. Na Grécia homérica antiga, um homem era o que ele fazia. Ou seja, um homem
e seus atos eram considerados idênticos. A moralidade e a estrutura social eram
uma e a mesma coisa em sociedades heroicas. O homem virtuoso ideal era o
guerreiro e as virtudes eram força e coragem.
2. Para Aristóteles, Tomás de Aquino (1225-1274) e para o Novo Testamento, a
virtude é uma qualidade que permite avançar para a realização de um fim
especificamente humano (natural ou sobrenatural). Para Aristóteles, isso era
racionalidade e o homem virtuoso ideal era o cavalheiro ateniense. Para Tomás
de Aquino e o Novo Testamento, as virtudes são fé, esperança, caridade (ou
amor) e humildade, e o homem virtuoso ideal era o santo.
3. Para Benjamin Franklin (1706-1790), a virtude é uma qualidade que tem
utilidade para alcançar o sucesso terrenal e celestial. Seu conceito de virtude
era teleológico, como o de Aristóteles, mas de caráter utilitário. Para Franklin,
as virtudes eram a limpeza, o silêncio, a diligência e a castidade, entre muitos
outros.

6 QUEM É A PESSOA VIRTUOSA IDEAL?


Finalmente, Aristóteles (1984) afirma que devemos decidir o que é um

162
TÓPICO 3 | A ÉTICA DA VIRTUDE

ato ou pessoa virtuosa modelando-nos segundo a pessoa virtuosa ideal, todavia,


como determinamos quem e o que essa pessoa é? É possível que cada um nomeie
uma pessoa ideal que sentimos que deveríamos emular, mas não chegaríamos
a uma série de diferentes tipos de pessoas diferentes, dependendo de nossos
próprios antecedentes, experiências e desejos? Por exemplo, o ideal homérico
de um ser humano virtuoso seria atraente para algumas pessoas, como seria o
santo humilde para os outros, ou a pessoa intelectual para outros, mas nós não
agiríamos de forma diferente dependendo de quais traços admiramos? Nenhuma
reivindicação é feita de que não pudéssemos concordar com algum tipo de pessoa
virtuosa composta, mas a alegação é que isso não seria fácil. Como poderíamos
dizer que deveríamos agir em conexão com tal ideal quando seria apenas isso:
um ideal abstrato de um ser humano? Além disso, como saberíamos que de fato
conseguimos encontrar a pessoa ideal verdadeiramente virtuosa?

Certamente um dos objetivos do ensino da ética parece ser a criação de


uma pessoa virtuosa ou ética. Entretanto, uma coisa é tentar fazer com que as
pessoas atuem de maneira ética e outra é assumir que farão atos éticos porque
já são virtuosos. Teríamos muita dificuldade de obter sucesso, por exemplo,
em selecionar algumas figuras públicas e dizer: "Aqui está a pessoa virtuosa
ideal, agora atuem como ele ou ela faz". A história mostrou que muitos dos
nossos chamados heróis tinham “pés de argila”, ou pelo menos nem sempre
agiram virtuosamente. Observe o número de estudiosos-oficiais corruptos que
caracterizaram grande parte da longa história da China (BUENO, 2011). Esses
homens receberam treinamento extensivo nos clássicos confucionistas como uma
exigência para o serviço público. Olhe quantos presidentes não foram perfeitos
em suas vidas privadas e públicas. Muitos deles ainda fizeram algum bem para
o país e as pessoas nele, mas eles não necessariamente se encaixam em qualquer
padrão da "pessoa ideal virtuosa".

Alguns teóricos contemporâneos da Ética da Virtude, como Christine


Swanton (2003), argumentam que as exigências para a virtude não são estabelecidas
por um padrão, por exemplo, aquele atingível pelo homem virtuoso e com
sabedoria prática de Aristóteles ou o junzi confucionista. Os padrões de conduta
virtuosa devem refletir a condição humana manchada por problemas variados e
a dificuldade de alcançar a virtude. Sua visão é que a virtude é um conceito que
deve ser sempre compreendido e aplicado contextualmente. "Uma virtude", diz
Swanton, "é uma boa qualidade de caráter, mais especificamente uma disposição
para responder à itens ou reconhecer itens dentro de seu campo ou campos de
uma maneira excelente ou suficientemente boa" (SWANTON, 2003, p. 19). Agora,
a noção de uma "maneira suficientemente boa" é vaga e, portanto, problemática.
Para Swanton, isso significa que a resposta de alguém deve, adequadamente,
atender às demandas do mundo em uma situação particular na qual a virtude se
aplica. Em termos aristotélicos, pode-se dizer que entre os extremos do excesso e
da deficiência há uma gama de possíveis respostas que podem ser consideradas
virtuosas em relação a uma situação particular.

A Ética da Virtude nos ajuda a ver que uma teoria geral da ética deve
fornecer uma compreensão do caráter moral. Claramente, a filosofia moral
163
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

moderna não conseguiu fazer isso e, portanto, é incompleta (SATTLER, 2012).


No entanto, as teorias da Ética da Virtude também são incompletas do modo
oposto porque elas não nos dizem o que devemos fazer em situações específicas.
Ou seja, as virtudes não fornecem diretrizes específicas para a conduta correta.
Além disso, as teorias da Ética da Virtude não nos ajudam a analisar questões
morais ou a nos engajar efetivamente no raciocínio moral. Este último ponto
é, especialmente, importante porque o mundo em que vivemos está tornando-
se cada vez mais não-tradicional. Além disso, o mundo é impulsionado por
mudanças tecnológicas e sociais de alta velocidade que criam questões de crescente
novidade e complexidade. A capacidade de raciocinar bem sobre questões éticas
complicadas e pensar em problemas morais globais e contextos multiculturais
deve ser uma preocupação primordial da educação moral. O que precisamos é de
uma educação moral racional (não doutrinação em um código ético específico)
que permitirá às pessoas aprenderem quais são as questões morais e como lidar
com elas. Com uma educação assim, poderíamos esperar que pelo menos os
indivíduos soubessem como agir com virtude e ética. Prover uma educação assim
é um dos principais objetivos deste livro.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos dizer que o relato de Aristóteles sobre a sabedoria prática nos
fornece uma visão útil do pluralismo ético. A pessoa virtuosa sempre age à
luz de uma concepção geral do florescimento humano. Cada uma das teorias
morais que estudamos nesta Unidade contribui para a nossa compreensão do
florescimento humano, e a pessoa virtuosa de sabedoria prática é capaz de
equilibrar essas teorias concorrentes em situações particulares, discernindo qual
é mais moralmente significativa em um caso específico.

Considere o exemplo de dizer a verdade. O kantiano nos diz que nunca


devemos mentir, pois isso é um ato de profundo desrespeito à autonomia da outra
pessoa. A utilitarista de regras olha para as consequências de todos seguindo
uma regra particular sobre mentir, e o utilitarista de ato nos encoraja a olhar
para as consequências de cada caso antes de decidir se uma mentira é justificada
ou não. Os egoístas éticos, simplesmente, exortam-nos a agir de uma maneira
que maximize o equilíbrio, e não há nada intrinsecamente censurável à mentira
como tal. Todas essas considerações são moralmente iluminadoras, e o desafio
enfrentado por pessoas virtuosas é equilibrá-las em situações particulares. O
objetivo não é provar um conjunto de considerações corretas e todas as outras
erradas. Em vez disso, é admitir que todas são relevantes pelo menos até
certo ponto e, em seguida, buscar o curso de ação que melhor equilibra essas
preocupações concorrentes. Além disso, na visão aristotélica, não é simplesmente
uma questão de dizer a verdade ou a mentira. Também é uma questão de como
a verdade é dita (com cuidado e consideração sobre seu impacto), quando é dito,
e para quem é dito. O indivíduo virtuoso usa teorias morais para iluminar a
paisagem moral e servir de guia para navegar em direção à vida boa.

Agora podemos ver como esse relato de sabedoria prática nos permite
164
TÓPICO 3 | A ÉTICA DA VIRTUDE

responder a alguns críticos de Aristóteles. Uma das principais críticas formuladas


contra a abordagem da ética de Aristóteles é que ela não nos diz como agir. Apesar
de todas as coisas iluminantes que Aristóteles tem a dizer sobre o bom caráter,
ainda somos mantidos sem respostas para as questões morais urgentes do dia
como o aborto, a eutanásia, a pena de morte e a alocação de escassos recursos
médicos.

Há muito mérito nessa crítica, e essa é uma boa razão para dizer que a ética
da virtude está seriamente incompleta sem as tradições morais que consideramos
anteriormente nesta unidade. Não há dúvida de que uma ética do caráter ou da
virtude deve ser completada por uma ética da ação. Podemos cultivar a virtude
da compaixão, por exemplo, mas quando agimos com compaixão, devemos
estar conscientes das preocupações morais levantadas por outras tradições.
Quando atuamos com compaixão em relação a outras pessoas, também devemos
estar cientes de seus direitos, levar em conta as consequências de nossas ações
compassivas e tratar outras pessoas como fins em si mesmas. O bom caráter, em
outras palavras, não evita a necessidade de outros tipos de consideração moral.

No entanto, uma ética da ação necessita, igualmente, de uma ética do


caráter por pelo menos dois motivos. Primeiro, uma das maiores dificuldades
que as filosofias morais orientadas ao ato enfrentam é na aplicação de uma teoria
moral a um caso particular. Um caráter moralmente sensível é mais provável de
garantir que apliquemos um princípio com insight e criatividade. Sem um bom
caráter, só poderemos aplicar, provavelmente, os princípios morais de maneira
mecânica, em grande medida insensível às nuances da situação. Em segundo
lugar, como vimos ao longo desta unidade e neste tópico, existem várias tradições
morais diferentes que são relevantes para nossas considerações de como agir. A
virtude da sabedoria prática consiste, em parte, em equilibrar tais preocupações
potencialmente concorrentes sobre direitos, deveres e consequências. A pessoa
sábia é o indivíduo que é capaz de saber quando as preocupações de uma tradição
têm precedência sobre as preocupações das outras tradições.

UNI

PROBLEMA ÉTICO
BULLYING – O QUE VOCÊ DEVERIA FAZER?
O bullying é uma forma de abuso, emocional, verbal e/ou físico. Sempre envolve um
desequilíbrio de poder com indivíduos ou grupos que impõem sua vontade aos outros. O
bullying e a cyberbullying são prevalentes e são problemas graves na escola e no local de
trabalho.
“Como se já não bastasse os próprios alunos ofenderem outros jovens, em algumas instituições
brasileiras, os próprios “educadores” estimulam a prática do bullying. Em uma escola municipal
na cidade de Osasco, São Paulo, um menino de apenas oito anos foi castigado e agredido
verbalmente por estar acima do peso. O professor queria que ele passasse por uma sessão de
castigos, mas ao se recusar, foi alvo de xingamentos. Além de praticar bullying com o aluno, o
professor incentivou outros estudantes a fazerem o mesmo”
(FONTE: Disponível em: <https://medium.com/educa%C3%A7%C3%A3o-turismo/6-casos-de-
bullying-no-brasil-73ad264a2161>. Acesso em: 13 jul. 2018).

165
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

DICAS

Olhe para essa história e considere outros artigos sobre bullying. Até que ponto o
bullying exibe questões de caráter? Até que ponto vícios como ciúme, inveja e rancor envolvem
tais incidentes? Muitos afirmam que um valentão não tem ou é incapaz de ter empatia com
outros seres humanos. Além disso, as testemunhas de tais atos, muitas vezes, exibem uma falta
de empatia e não se envolvem. Discuta as questões de caráter envolvidas no bullying. O que
pode ser feito para reduzir os atos de bullying e abuso?

LEITURA COMPLEMENTAR

Teorias sobre a ética


Hugh LaFollette

Ao decidir como agir, somos muitas vezes confrontados com incertezas,


confusões ou conflitos entre as nossas inclinações, desejos ou interesses. As
incertezas, confusões e conflitos podem surgir mesmo que a nossa única
preocupação seja promover o nosso interesse próprio. Podemos não saber quais
são os nossos melhores interesses: podemos pura e simplesmente ter adoptado
algumas ideias erradas dos nossos pais, amigos ou cultura. Fossem os nossos
pais nazis, por exemplo, e poderíamos pensar que manter a pureza da raça é o
nosso mais importante objetivo pessoal. Podemos confundir os nossos objetivos
e os nossos interesses: queremos manipular as outras pessoas e inferimos que
as relações pessoais mais chegadas são obstáculos aos nossos interesses. Mesmo
quando conhecemos alguns dos nossos interesses, podemos ser incapazes de
os organizar em termos da sua importância relativa: podemos presumir que a
riqueza é mais importante do que desenvolver o carácter e ter relações pessoais
mais chegadas. Outras vezes podemos saber quais são os nossos interesses, mas
não saber bem como resolver conflitos entre eles: posso precisar de escrever
um ensaio, mas apetecer-me ir passear. Mesmo que eu saiba qual é a melhor
escolha, posso não agir de acordo com ela: posso saber precisamente que é do
meu interesse de longo prazo perder peso e, no entanto, decido comer uma tarte
deliciosa.

Estas complicações mostram por que razão a melhor maneira de


alcançar os meus objetivos é deliberar racionalmente sobre os meus interesses
próprios – ou seja, dar os primeiros passos em direção a uma teoria sobre os
meus interesses próprios. Posso por vezes ter de recuar e pensar de forma mais
abstrata sobre a) o que significa algo ser um interesse (em vez de ser meramente
um desejo), b) para descobrir que objetos e comportamentos ou objetivos mais
provavelmente me permitirão alcançar os meus interesses, c) para compreender
as interconexões entre os meus interesses (por exemplo, o modo como a saúde me
dá mais hipóteses de alcançar outros interesses) d) para encontrar uma maneira

166
TÓPICO 3 | A ÉTICA DA VIRTUDE

de proceder para enfrentar conflitos e para aprender a agir face ao resultado da


deliberação racional. Tal teorização pode guiar a prática: pode ajudar-nos a agir
de modo mais prudente.

Como é evidente, a maior parte das ações – talvez a maioria – não dizem
apenas respeito apenas a nós; dizem respeito também aos outros, e dizem-lhes
respeito de muitíssimos modos diferentes. Algumas das minhas ações podem
beneficiar outras pessoas, ao passo que outras podem prejudicá-las, direta ou
indiretamente, intencionalmente ou não. Posso prejudicar o João diretamente
empurrando-o. Posso empurrá-lo porque estou zangado com ele ou porque quero
ficar com o lugar dele. Ou posso prejudicar o João indiretamente, por exemplo,
obtendo eu a promoção de que ele precisava para financiar cuidados para a sua
mãe, que se encontra às portas da morte. Ou posso ofender o João entregando-me
em privado ao que ele pensa serem práticas sexuais bizarras. Se o fizer, as minhas
práticas privadas afetam-no, apesar de apenas indiretamente, e só por causa das
suas crenças morais. É defensável que é inapropriado dizer que prejudiquei o
João nestes dois últimos casos, ainda que tenha escolhido agir como agi sabendo
que as minhas ações o poderiam afetar (ou afetar outra pessoa) do modo descrito.

Em suma, ao escolher como agir, devo reconhecer que muitas das


minhas ações afetam outras pessoas, ainda que apenas indiretamente. Nestas
circunstâncias, tenho de escolher se quero atender aos meus interesses próprios
ou se devo atender (ou pelo menos não prejudicar) os interesses alheios. Outras
vezes, tenho de escolher agir de modos que podem prejudicar algumas pessoas
apesar de beneficiar outras. Posso ocasionalmente encontrar maneiras de
promover os interesses de toda a gente sem prejudicar ninguém. Ocasionalmente,
mas não sempre. Talvez nem mesmo frequentemente.

Saber isto não resolve o problema de saber como devo agir; limita-se a
determinar o domínio da moralidade. A moralidade, entendida tradicionalmente,
envolve primariamente, e talvez exclusivamente, o comportamento que afeta os
outros. Digo talvez porque algumas pessoas (por exemplo, Kant) pensam que uma
pessoa que se prejudica a si mesma (por exemplo, desperdiçando os seus talentos
ou maltratando o seu corpo) está a fazer algo moralmente errado. Para os nossos
propósitos, contudo, podemos deixar de lado esta interessante e importante
questão. Pois o que toda a gente reconhece é que as ações que claramente afetam
os outros pertencem ao domínio da moralidade.

Podemos discordar sobre como deve o facto de uma ação afetar outras
pessoas negativamente dar forma à nossa decisão sobre como agir. Podemos
também discordar se as ações que afetam os outros apenas indiretamente devem
ser moralmente avaliadas, e até que ponto. Podemos discordar, além disso, sobre
como se distingue o prejuízo direto do indireto. Todavia, se as ações de alguém
afetam outra pessoa direta e substancialmente (beneficiando-a ou prejudicando-a),
então, mesmo que não saibamos ainda se a ação foi correta ou incorreta, podemos
concordar que deve ser avaliada moralmente. Como a devemos avaliar é algo que
discutirei depois.

167
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

Mas primeiro devo sublinhar perigos relacionados, mas opostos que


devemos evitar. O primeiro é que podemos inferir da discussão prévia que a
maior parte das decisões morais são complicadas ou confusas. Isto é um engano.
Pois muitas “decisões” morais são muito fáceis de tomar — tão fáceis que nunca
pensamos acerca delas. Ninguém discute seriamente se uma pessoa deve drogar
um colega para ter relações sexuais com ele, ou se deve roubar dinheiro dos
colegas para financiar uma viagem à Riviera, ou se deve com conhecimento
de causa infectar alguém com o vírus da AIDS. Não é sobre estas coisas que
temos desacordos morais. Sabemos muito bem que as ações desse tipo estão
erradas. Na verdade, atrevo-me a dizer que a maior parte das questões morais
têm uma resposta tão simples que nunca as levantamos. Ao invés de discutir
estas “questões” óbvias, centramos a nossa atenção e pensamos e debatemos
unicamente as que são pouco claras e sobre as quais há desacordos genuínos.

Contudo, cometemos também por vezes o erro de pressupor que uma


decisão é fácil quando, de facto, não é. Este extremo oposto é igualmente um
erro grave (ou talvez mais grave). Podemos não ver os conflitos, confusões ou
incertezas: o que está em causa pode ser tão complicado que deixamos passar,
não percebemos ou não nos damos conta de que as nossas ações afetam os outros
(por vezes profundamente). A preocupação com o nosso interesse próprio pode
impedir-nos de ver que o nosso comportamento afeta significativamente os
outros, ou pode levar-nos a dar um peso inadequado aos interesses alheios. Além
disso, a nossa aceitação acrítica do status quo moral pode levar-nos a não prestar
atenção ao facto de alguns dos nossos comportamentos e instituições estarem
errados. A ampla aceitação de uma prática não garante a sua correção.

A necessidade de teoria

Quando refletimos sobre os nossos pensamentos, ações e escolhas, vemos


que as nossas perspectivas são fortemente influenciadas por outras. Podemos
pensar que uma ação é fortemente imoral, mas não saber exatamente porquê.
Ou podemos pensar que sabemos porquê, descobrindo depois de um exame
cuidado que estamos apenas a papaguear “razões” oferecidas pelos nossos
amigos, professores, pais ou padres. Claro que nada há de errado em ter em
consideração o que os outros pensam e as decisões que tomaram no que respeita
a questões morais análogas. Na verdade, seríamos tolos se não absorvêssemos e
não beneficiássemos da sabedoria alheia. Contudo, qualquer pessoa que tenha
o mais pequeno conhecimento histórico reconhecerá que a sabedoria coletiva,
tal como a sabedoria individual, está por vezes errada. Os nossos antecessores
tinham escravos, negavam o direito de voto às mulheres, praticavam o genocídio
e queimavam bruxas em fogueiras. Suspeito que a maior parte dessas pessoas
eram moralmente decentes e estavam firmemente convencidas que as suas
ações eram morais. Agiram de forma errada porque não foram suficientemente
autocríticas. Não avaliaram as suas próprias crenças; adoptaram sem questionar
a perspectiva dos seus antecessores, líderes políticos, professores, amigos e
comunidade. Quanto a isto, não estão sozinhos. Este é um “pecado” de que todos
somos culpados. A grande lição da história é que temos de escrutinar as nossas

168
TÓPICO 3 | A ÉTICA DA VIRTUDE

crenças, escolhas e ações, para nos assegurarmos de que estamos informados,


somos consistentes, imaginativos, imparciais e de que não estamos a repetir sem
pensar as perspectivas dos outros. Caso contrário, podemos perpetrar males que
poderíamos evitar, males pelos quais as gerações futuras nos condenarão, e com
razão.

Uma maneira importante de avaliar criticamente as nossas perspectivas


é teorizar sobre a ética: pensar sobre questões morais de forma mais abstrata,
mais coerente e mais consistente. Teorizar não é uma coisa divorciada da prática;
é apenas a reflexão cuidada, sistemática e bem pensada sobre a nossa prática.
Teorizar, neste sentido, não irá impedir-nos de errar, mas dá-nos o poder para
abandonar considerações mal concebidas, desinformadas e irrelevantes. Para
explicar o que quero dizer, pensemos por momentos sobre um tema caro à maior
parte dos estudantes: as notas. Quando dou notas aos estudantes, posso errar
pelo menos de três modos:

Posso usar padrões inconsistentes de classificações. Isto é, posso usar


diferentes padrões para classificar estudantes diferentes: a Joana tem 20 porque
tem um sorriso bonito; o Rodolfo porque é muito trabalhador; a Raquel porque o
ensaio dela era excepcional. É claro que saber que devo usar um sistema unificado
de classificação não me diz que padrões devo usar ou que classificação cada
estudante deve ter. Talvez todos merecessem o 20 que receberam. Contudo, não
é suficiente que eu acidentalmente lhes tenha dado a classificação que mereciam.
Eu devia ter-lhes dado 20 porque o mereciam e não por causa de considerações
irrelevantes. Pois se eu usar considerações irrelevantes, darei geralmente
classificações erradas aos estudantes, apesar de, nestes casos específicos, eu poder
fortuitamente ter-lhes dado as classificações apropriadas.

Posso ter padrões de classificação impróprios. Não é suficiente que eu tenha


padrões invariantes. Afinal de contas, posso ter padrões péssimos aos quais adiro
de forma consistente. Por exemplo, posso dar notas mais altas, consistentemente,
aos estudantes de que gosto mais. Se o fizer, classifico os estudantes de forma
inapropriada, ainda que seja consistente.

Posso aplicar os padrões de forma inapropriada. Posso ter padrões


consistentes e apropriados e, no entanto, aplicá-los mal porque sou ignorante ou
tacanho, ou porque estou exausto ou preocupado, ou porque não estou a prestar
atenção.

Podemos cometer “erros” paralelos nas deliberações éticas; por exemplo:

Posso usar princípios éticos inconsistentes.


Posso ter padrões morais inapropriados.
Posso aplicar princípios morais de forma inapropriada.
Vejamos cada erro de deliberação com maior pormenor.

Consistência: Devemos tratar duas criaturas do mesmo modo a não

169
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

ser que tenham diferenças relevantes, isto é, diferenças que justifiquem um


tratamento diferenciado. Tal como os estudantes esperam dos seus professores
classificações consistentes, esperamos de nós mesmos e dos outros que tomem
decisões morais consistentemente. A procura de consistência é omnipresente no
nosso pensamento sobre a ética. Uma estratégia comum para defender pontos de
vista morais é afirmar que são consistentes; uma estratégia comum para criticar
pontos de vista é acusá-los de inconsistência.

O papel argumentativo da consistência é evidente na discussão de todas


as questões morais práticas. Considere-se o papel que desempenha no debate
sobre o aborto. Quem disputa este tema passa grande parte do tempo a defender
que as suas próprias posições são consistentes, ao mesmo tempo que acusam
os seus opositores de ter posições inconsistentes. Cada lado da disputa procura
mostrar por que razão é (ou não é) análogo de forma relevante a casos canónicos
de assassínio. A maior parte das pessoas que pensam que o aborto é imoral (e
muito provavelmente todos os que pensam que deve ser ilegal) afirmam que
o aborto é análogo de forma relevante ao assassínio, ao passo que quem pensa
que o aborto deve ser legal afirmam que o aborto é relevantemente diferente do
assassínio. O que não encontramos é pessoas que pensem que o aborto é um
assassínio e, contudo, totalmente moral.

A consistência desempenha igualmente um papel central nos debates


sobre a liberdade de opinião ou discurso e sobre o paternalismo e o risco. Quem
se opõe à censura argumenta muitas vezes que os livros, quadros, filmes, peças de
teatro ou esculturas que algumas pessoas querem censurar são análogas de forma
relevante a outras manifestações artísticas que a maior parte de nós não queremos
ver censurada. Afirmam ainda que a pornografia é uma forma de discurso e que
se pode ser proibida porque a maioria a acha ofensiva, então a consistência exige
que censuremos qualquer discurso que ofenda a maioria. Conversamente, quem
defende que podemos legitimamente censurar a pornografia procura por todos os
meios explicar por que razão a pornografia é relevantemente diferente de outras
formas de discurso que queremos proteger. Ambos os lados da disputa querem
mostrar que a sua posição é consistente e que a posição contrária é inconsistente.

Apesar de a consistência ser geralmente reconhecida como um requisito


da moralidade, em casos específicos é, muitas vezes, difícil detectar se uma
pessoa é (ou foi) consistente ou inconsistente. Uma pessoa pode parecer agir
de forma consistente ou inconsistente unicamente porque não estamos a ver
a complexidade do seu raciocínio moral, ou porque não compreendemos os
pormenores relevantes. Como veremos, determinar o que é moralmente relevante
ou não está, muitas vezes, no centro de muitas discussões morais. Contudo, o que
todos reconhecem é que se uma pessoa for inconsistente, então isso é uma razão
forte para rejeitar a sua posição a não ser que possamos encontrar uma forma de
eliminar essa inconsistência.

Princípios corretos: Não basta ser consistente. Temos também de usar


diretrizes, princípios e padrões apropriados, ou de fazer juízos apropriados.

170
TÓPICO 3 | A ÉTICA DA VIRTUDE

Teorizar sobre a ética é uma boa maneira de discernir os melhores padrões e


diretrizes (os mais defensáveis), de identificar as características moralmente
relevantes das nossas ações, de aumentar a nossa capacidade para fazer bons
juízos. Mais abaixo, irei discutir como se selecionam e defendem esses princípios
– como determinamos o que é moralmente relevante.

“Aplicação” correta: Mesmo que “saibamos” o que é moralmente


relevante, e mesmo que raciocinemos consistentemente, podemos cometer erros.
Considere-se as maneiras como posso aplicar mal as “regras” que proíbem a)
a mentira e b) magoar os outros. Suponha-se que a minha mulher chega a casa
com uma camisola nova muito garrida e quer saber se eu gosto da camisola.
Presumivelmente, não devo nem mentir, nem intencionalmente magoar os outros.
Nestas circunstâncias, o que devo fazer? Há várias maneiras de agir de modo
inapropriado. 1) Posso não ver alternativas viáveis: posso pressupor, por exemplo,
que devo mentir fortemente ou então magoá-la bastante. 2) Posso prestar pouca
atenção às suas necessidades e interesses: posso não dar suficiente atenção ou dar
demasiada atenção à questão de saber quão profundamente magoada ela ficará se
eu for honesto (ou se não for honesto). 3) Posso ser incorretamente influenciado
pelo interesse próprio ou pela parcialidade pessoal: posso mentir não para não
a magoar, mas porque não quero que ela fique zangada comigo. 4) Posso saber
precisamente o que devo fazer, mas não estar suficientemente motivado para o
fazer: Posso mentir porque não quero incómodos. 5) Ou posso estar motivado
para agir como devo agir, mas não ter o talento ou aptidão para o fazer: quero ser
honesto, mas não tenho as aptidões verbais ou pessoais para ser honesto de um
modo que não a magoe.

Em todos estes casos, há erros com significado moral prático. Seria melhor
para todos se tivéssemos as características pessoais que nos permitissem evitar
estes e outros erros morais. Em última análise, devemos aprender a dar mais
atenção aos outros, estar melhor informados e estar melhor motivados. […]

Será tudo uma questão de mera opinião?

Muitas pessoas acham estranho falar de padrões morais e da aplicação


desses padrões. Algumas pessoas pensam que os juízos morais são apenas
“questões de opinião” – e sem dúvida que muitas pessoas falam como se o
pensassem. Todos nós ouvimos pessoas “concluir” um debate sobre uma questão
moral contenciosa dizendo: “Bem, em qualquer caso, é tudo uma questão de
opinião!” Suspeito que a verdadeira função desta afirmação é mostrar que quem
o diz quer, por alguma razão, terminar o debate. Talvez essa pessoa pense que a
outra é irracional e que, por isso, já nada se ganha com o debate. Infelizmente, esta
afirmação parece dar a entender algo mais, pois sugere que, dado que os juízos
morais são apenas opiniões, então todas as opiniões são igualmente boas (ou
igualmente más). Implica que não podemos criticar ou escrutinar racionalmente
os nossos juízos morais (nem os de qualquer outra pessoa). Afinal de contas, não
criticamos racionalmente meras opiniões.

171
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

Será isto defensável? Não vejo como poderá sê-lo. Mesmo que nenhuns
juízos morais (contenciosos) fossem indiscutivelmente corretos, não deveríamos
concluir que todos os juízos morais são igualmente falíveis. Apesar de não termos
uma maneira clara de decidir com toda a certeza que ações são as melhores,
temos maneiras excelentes de mostrar que algumas são deficientes. Sabemos,
por exemplo, que os juízos morais são maus se forem baseados em informação
distorcida, tacanhez, parcialidade, falta de compreensão ou princípios morais
completamente bizarros. Conversamente, os juízos são mais plausíveis, mais
defensáveis, se forem baseados em informação completa, cálculo cuidado,
percepção astuta, e se tiverem sobrevivido com êxito à crítica alheia no mercado
de ideias.

Considere-se a seguinte analogia: nenhuma das regras de gramática ou


de estilo irão determinar, de forma precisa, o modo como devo construir a frase
seguinte. Contudo, não se deve daí concluir que posso usar apropriadamente
qualquer sequência de palavras. Alguns amontoados de palavras não são frases
e algumas frases são uma completa algaraviada. Outras frases podem estar
gramaticalmente corretas – e até ser elegantes – e, no entanto, ser inapropriadas
porque não têm qualquer conexão com as frases anteriores ou seguintes. Todas
essas coleções de palavras são claramente inaceitáveis nestas circunstâncias, mas
noutros contextos as mesmas palavras poderão ser apropriadas. Muitas outras
frases estão gramaticalmente corretas, são relevantes e minimamente claras, e,
contudo, têm outras falhas. Podem ser algo vagas, por exemplo, ou imprecisas.
Outras frases podem ser compreensíveis, relevantes e em geral precisas, mas
ser garridas ou falhas de estilo. Algumas frases alternativas podem ser todas
adequadas, de modo que não haverá qualquer razão forte para preferir umas
às outras. Talvez algumas sejam particularmente brilhantes. Nenhum manual de
gramática nos permitirá fazer todas estas distinções, nem nos dará a capacidade
para identificar claramente as melhores frases. E mesmo que as pessoas em geral
(ou até os melhores escritores) discutissem os méritos e deméritos de cada uma das
frases, seria improvável que se decidisse que só uma delas é a melhor. Todavia,
não temos problemas em distinguir o lixo estilístico ou o inaceitavelmente vago
do sublime linguístico. Em suma, não temos de pensar que uma frase é a única
boa para reconhecer que algumas são melhores e outras piores. O mesmo acontece
em ética. Podemos nem sempre saber como agir; podemos enfrentar desacordos
substanciais sobre algumas questões éticas muito contenciosas. Mas daqui não se
deve inferir que todas as ideias morais são iguais.

Não se deve igualmente ignorar o facto óbvio de que as circunstâncias


exigem muitas vezes a nossa ação, ainda que não existe, ou não consigamos
ver que existe, uma só ação moral apropriada. Contudo, a nossa incerteza não
nos leva a pensar que todas as perspectivas são iguais, nem a agir como se o
fossem. Não mandamos uma moeda ao ar para decidir se devemos desligar a
máquina que mantém os nossos pais vivos, ou para decidir com quem vamos
casar, ou que emprego aceitar ou se uma pessoa acusada de um dado crime é
culpada. Devemos procurar tomar uma decisão informada, baseada nos melhores
indícios, agindo depois de acordo com isso, ainda que os melhores indícios nunca

172
TÓPICO 3 | A ÉTICA DA VIRTUDE

garantam a certeza. Para tomar uma decisão informada, devemos compreender


as questões relevantes, adoptar uma perspectiva de mais longo prazo, pôr de lado
parcialidades irracionais, e inculcar uma vontade de sujeitar as nossas conclusões
hipotéticas à crítica alheia.

Afinal de contas, as nossas ações afetam os outros profundamente, por


vezes, e as circunstâncias podem exigir a nossa ação. Não devemos lamentar a
nossa incapacidade para ter a certeza de que descobrimos aquela ação que é a
melhor; devemos pura e simplesmente fazer a melhor escolha que nos for possível.
Devemos, é claro, reconhecer a nossa incerteza, admitir a nossa falibilidade e estar
preparados para considerar novas ideias, especialmente quando são sustentadas
por argumentos fortes. Contudo, não temos necessidade de abraçar qualquer
forma perniciosa de relativismo. Isso seria não apenas uma confusão. Seria
também um erro moral.

O papel da teoria

Mesmo quando as pessoas concordam que uma questão deve ser avaliada,
pelo menos parcialmente, por critérios de moralidade, discordam muitas vezes
sobre o modo de a avaliar. Ou, para usar a linguagem da secção anterior, as pessoas
discordam sobre os melhores princípios ou juízos, sobre como os interpretar ou
sobre como os devemos aplicar. Em resultado disso, duas pessoas razoáveis e
decentes podem chegar a conclusões completamente diferentes sobre se uma
ação é moralmente apropriada. Eis um caso que claramente exige a avaliação
racional das nossas ações. Devemos examinar, tentar compreender e depois
avaliar as nossas próprias razões e as razões das outras pessoas a favor das nossas
conclusões morais, ou das delas. Afinal de contas, as pessoas têm habitualmente
razões – ou pensam que têm – a favor das suas conclusões.

Por exemplo, as pessoas antiaborto argumentam que o aborto é


injustificado porque o feto tem o mesmo direito à vida que um adulto normal,
ao passo que as pessoas favoráveis ao aborto argumentam que o aborto deve ser
legal porque a mulher tem o direito de decidir o que acontece no seu corpo e ao
seu corpo. Quem apoia a pena de morte argumenta que as execuções dissuadem
o crime, ao passo que os oponentes argumentam que é cruel e desumano. Quem
defende que a pornografia deve ser censurada defende que degrada as mulheres,
ao passo que os seus defensores argumentam que é uma forma de discurso livre
que deve ser protegido por lei.

Ao dar razões a favor dos seus juízos, as pessoas citam habitualmente


algumas características da ação que consideram que explicam ou reforçam essa
avaliação. Esta função das razões não se limita aos desacordos éticos. Posso
justificar a minha afirmação de que Fargo é um bom filme afirmando que
tem personagens bem definidas, um enredo interessante e a tensão dramática
apropriada. Isto é, identifico características do filme que penso que justificam a
minha avaliação. As características que cito, contudo, não são exclusivas deste
filme. Ao dar estas razões estou a dar a entender que ter personagens bem

173
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

definidas ou ter um enredo interessante ou ter a tensão dramática apropriada são


características importantes dos filmes bons, sem mais. Isto não significa que estas
são as únicas ou até as mais importantes características. Nem é ainda uma decisão
quanto ao peso correto a dar a estas características. Contudo, significa que se um
filme tem qualquer destas características, então temos uma razão para pensar que
é um bom filme.

Pode-se pôr em causa a minha avaliação do filme de três modos


diferentes: podemos pôr em causa os meus critérios, o peso que lhes dou ou a
aplicação que faço deles (isto é, a afirmação de que o filme satisfaz os critérios).
Por exemplo, pode-se argumentar que ter personagens bem definidas não é um
critério relevante, que dei demasiado peso a esse critério, ou que Fargo não tem
personagens bem definidas. Em defesa da minha afirmação posso explicar por
que razão penso que é um critério relevante, que lhe dei um peso apropriado e
que as personagens do filme estão bem desenvolvidas. Neste ponto, estamos a
discutir duas questões relacionadas que surgem em “níveis diferentes”. Estamos
a debater como avaliar um filme em particular, e estamos a discutir os méritos
teóricos de diferentes critérios do que é um bom filme.

Analogamente, quando discutimos uma questão ética prática, discutimos


não apenas essa questão particular, mas também, quer nos apercebamos disso ou
não, questões de nível mais elevado sobre as questões teóricas subjacentes. Não
queremos saber apenas se a pena de morte dissuade o crime; queremos igualmente
saber se a dissuasão é moralmente importante e, se o for, quão importante o é.
Quando a teorização chega a um certo nível ou complexidade e sofisticação,
podemos começar a dizer que temos uma teoria. As teorias éticas são apenas
discussões formais e mais sistemáticas destas questões teóricas de segundo nível.
São os esforços dos filósofos para identificar os critérios morais relevantes, o peso
ou significado de cada critério, e para oferecer alguma orientação sobre como
podemos determinar se uma ação satisfaz esses critérios. Na próxima secção, irei
esboçar brevemente algumas das teorias éticas mais comuns.

Antes, contudo, é melhor chamar a atenção para o seguinte: Ao pensar


sobre teorias éticas, podemos ser tentados a pressupor que as pessoas que
defendem a mesma teoria farão os mesmos juízos éticos práticos, e que quem
faz os mesmos juízos éticos práticos aceitam a mesma teoria. Isto não é verdade.
Isso não acontece com quaisquer juízos avaliativos. Por exemplo, duas pessoas
com critérios análogos para bons filmes podem avaliar de forma diferente o filme
Fargo, ao passo que duas pessoas que gostaram de Fargo podem ter critérios
(algo) diferentes para bons filmes. O mesmo acontece em ética. Duas pessoas
com diferentes teorias éticas podem, mesmo assim, concordar que o aborto é
moralmente permissível (ou gravemente imoral), ao passo que dois partidários
da mesma teoria podem avaliar o aborto de formas diferentes. Conhecer os
compromissos teóricos de alguém não nos diz de forma precisa que ações essa
pessoa pensa que são certas ou erradas. Diz-nos apenas de que forma essa pessoa
pensa nas questões morais – que critérios de relevância ela usa e o peso que lhes
dá.

174
TÓPICO 3 | A ÉTICA DA VIRTUDE

Tipos principais de teorias

Há duas grandes classes de teorias éticas – consequencialistas e


deontológicas – que têm dado forma ao entendimento que a maior parte das
pessoas tem da ética. Os consequencialistas defendem que devemos escolher
a ação disponível que têm as melhores consequências globais, ao passo que os
deontologistas defendem que devemos agir de modos circunscritos por regras
e direitos morais e que estas regras ou direitos se definem (pelo menos em
parte) independentemente das consequências. Vejamos cada uma das teorias
separadamente. Estas descrições serão necessariamente ultrassimplificadas e
algo vagas. Ultrassimplificadas porque não temos espaço suficiente para fornecer
uma exposição completa das duas teorias. Vaga porque mesmo quem defende
estas teorias discorda sobre a sua interpretação correta. Contudo, estas descrições
deverão ser suficientes para ajudar o leitor a compreender os aspectos mais gerais
das teorias. […]

Consequencialismo

Os consequencialistas defendem que temos a obrigação de agir de forma


a produzir as melhores consequências. Não é difícil ver por que razão se trata
de uma teoria muito apelativa. Em primeiro lugar, apoia-se no mesmo estilo de
raciocínio que usamos ao tomar decisões puramente prudenciais. Se estamos
a tentar escolher a universidade a que nos vamos candidatar, iremos ter em
consideração as opções disponíveis, iremos prever os resultados prováveis de cada
uma delas e tentaremos determinar o seu valor relativo. Feito isto, escolhemos a
universidade que oferecer o melhor resultado previsto.

O consequencialismo usa o mesmo quadro de referência, mas inclui os


interesses dos outros na “equação”. Quando enfrentamos uma decisão moral,
devemos considerar as ações alternativas disponíveis, traçar as consequências
morais prováveis de cada uma delas, e depois selecionar a alternativa com as
melhores consequências para todos os envolvidos. Quando descrita desta forma
vaga, o consequencialismo é claramente uma teoria apelativa. Afinal de contas,
parece difícil negar que alcançar o melhor resultado possível seria bom. O
problema, claro, é decidir que consequências devemos ter em consideração e o
peso que devemos dar a cada uma delas. Pois sem sabermos isso não podemos
saber como raciocinar sobre a moralidade.

O utilitarismo, a forma mais comum de consequencialismo, tem uma


resposta. Os utilitaristas afirmam que devemos escolher a opção que maximiza
“a maior felicidade para o maior número”. Defendem igualmente a completa
igualdade: “cada qual conta como um e não mais de um”. Claro que podemos
discordar sobre o que significa exatamente a maximização da maior felicidade
do maior número; e podemos ter dúvidas sobre como se alcança tal coisa. Os
utilitaristas dos atos defendem que determinamos a correção de uma ação se
podemos decidir que ação, nessas circunstâncias, teria mais probabilidades de
promover a maior felicidade para o maior número. Os utilitaristas das regras,

175
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

contudo, rejeitam a ideia de que as decisões morais devam ser decididas caso a
caso. Segundo eles, não devemos decidir se é provável que uma ação particular
promova a maior felicidade para o maior número, mas se um tipo particular
de ação iria promover, se fosse seguida pela maior parte das pessoas, a maior
felicidade para o maior número.

Assim, parece que um utilitarista dos atos poderia decidir que uma
mentira, num caso particular, justifica-se porque maximiza a felicidade de todos
os envolvidos, ao passo que o utilitarista das regras poderia defender que, uma
vez que se toda a gente mentisse, isso diminuiria a felicidade, seria melhor adoptar
uma regra forte contra a mentira. Devemos obedecer a esta regra ainda que, num
caso particular, mentir possa parecer promover melhor a maior felicidade do
maior número.

Deontologia

As teorias deontológicas contrastam na sua maior parte com as teorias


consequencialistas. Ao passo que os consequencialistas defendem que devemos
sempre procurar promover as melhores consequências, os deontologistas
defendem que as nossas obrigações morais – sejam elas quais forem – são de algum
modo e em certo grau independentes das consequências. Assim, se eu tenho a
obrigação de não matar, roubar ou mentir, estas obrigações estão justificadas não
apenas porque seguir tais regras produz sempre as melhores consequências.

É por isso que tantas pessoas acham que as teorias deontológicas são
tão atraentes. Por exemplo, a maior parte de nós ficaria ofendida se alguém
nos mentisse, ainda que essa mentira produzisse a maior felicidade para o
maior número. Eu ficaria sem dúvida ofendido se alguém me matasse, ainda
que a minha morte pudesse produzir a maior felicidade para o maior número
(usando os meus rins para salvar a vida de duas pessoas, o meu coração para
salvar uma terceira etc.). Assim, o que há de errado ou certo em mentir ou matar
não pode ser explicado, defendem os deontologistas, unicamente por causa das
suas consequências. Claro que há muito desacordo entre os deontologistas sobre
quais regras são verdadeiras. Também discordam sobre como se determina que
regras são essas. Alguns deontologistas afirmam que a razão abstrata nos mostra
como devemos agir (Kant). Outros (McNaughton) afirmam que as intuições são
o nosso guia. Outros ainda falam de descobrir princípios que se justificam por
um equilíbrio reflexivo (Rawls, por exemplo), ao passo que alguns defendem que
devemos procurar princípios que poderiam ser adoptados por um observador
ideal (Arthur).

Alternativas

Há várias alternativas a estas teorias. Chamar-lhes “alternativas” não


significa que sejam inferiores, mas apenas que não têm desempenhado um papel
tão significativo na formação do pensamento ético contemporâneo. Vale a pena
mencionar em especial duas delas, porque se tornaram muitíssimo influentes nas

176
TÓPICO 3 | A ÉTICA DA VIRTUDE

últimas duas décadas.

Teoria das virtudes: A teoria das virtudes não tem sido tão influente
quanto a deontologia ou o consequencialismo na formação do pensamento ético
moderno. Contudo, é anterior a essas duas teorias, pelo menos enquanto teoria
formal. Foi a teoria dominante dos gregos antigos, alcançando a sua expressão
mais clara na obra de Aristóteles, Ética a Nicômaco. Durante muitos séculos, não
foi nem discutida, nem advogada enquanto alternativa séria. Mas por volta dos
finais da década de 1950 começou a reaparecer na bibliografia filosófica (a história
deste reemergir é apresentada nos ensaios reimpressos em Crisp e Slote, 1997).

Grande parte do apelo da teoria das virtudes deriva das falhas encontradas
nas alternativas canónicas. A deontologia e o consequencialismo, defendem os
partidários da teoria das virtudes, dão uma ênfase desadequada (ou nenhuma)
ao agente – ao que o agente deve ser, aos tipos de carácter que o agente deve
desenvolver. Não dão igualmente um âmbito apropriado ao juízo pessoal e
dão demasiada ênfase à ideia de seguir regras (sejam deontológicas sejam
consequencialistas).

Sem dúvida que, ao ler alguns deontologistas e consequencialistas, dá


ideia que eles pensam que uma decisão moral é a aplicação acéfala de uma regra
moral. A regra diz “Sê honesto”; logo, devemos ser honestos. A regra diz “Age
sempre de modo a promover a maior felicidade para o maior número”; logo,
temos apenas de descobrir que ação tem as consequências mais desejáveis, e
depois fazer isso. Assim, a ética faz lembrar a matemática. Os cálculos podem
exigir paciência e cuidado, mas não depende do juízo.

Muitos partidários das teorias canónicas acham que estas objecções dos
que defendem a teoria das virtudes são significativas e, ao longo das últimas
duas décadas, modificaram as suas teorias para, em parte, as acomodar. O
resultado, afirma Rosalind Hursthouse, é que “as linhas de demarcação entre
estas três abordagens se têm diluído […] A deontologia e o utilitarismo já não
se caracterizam claramente por darem ênfase às regras ou consequências por
oposição ao carácter” (Hursthouse 1999: 4). As duas teorias dão maior ênfase ao
juízo e ao carácter. Por exemplo, Hill, apesar de ser um deontologista, descreve a
atitude apropriada relativamente ao meio ambiente de um modo que dá ênfase
à excelência ou ao carácter, e Strikwerda e May, que de forma geral não aceitam
a teoria das virtudes, dão ênfase à necessidade de os homens sentirem vergonha
pela sua cumplicidade na violação de mulheres. Contudo, apesar de o juízo e o
carácter poderem desempenhar papéis cada vez mais importantes nas versões
contemporâneas da deontologia ou do consequencialismo, nenhum desempenha
o papel central que desempenha na teoria das virtudes. […]

Teoria feminista: Historicamente, a maior parte dos filósofos tem sido


homens com a perspectiva sexista das suas culturas. Assim, não é surpreendente
que os interesses das mulheres, e quaisquer perspectivas que elas possam ter,
não tenham desempenhado qualquer papel real no desenvolvimento das teorias

177
UNIDADE 2 | ÉTICA NORMATIVA

éticas canónicas. A questão é: que nos diz isso sobre tais teorias? Poderemos,
por exemplo, limitar-nos a tirar as partes sexistas da teoria de Aristóteles e ficar
mesmo assim com uma teoria aristotélica que seja adequada para uma época
menos sexista? Podemos eliminar as partes sexistas da ética de Kant e ficar com
uma deontologia não sexista mas viável?

Nos primeiros anos do feminismo, muitos pensadores pareciam pensar


que sim. Afirmavam que a ênfase, nas teorias éticas canónicas, na justiça, igualdade
e equidade poderia dar às mulheres todas as munições de que precisavam para
reivindicar o seu lugar de direito no mundo público.

Outros não estavam assim tão certos disso. Por exemplo, Carol Gilligan
(1982) argumentou que as mulheres têm experiências morais diferentes e um
raciocínio moral diferente, e que estas diferenças devem fazer parte de qualquer
tratamento adequado da moralidade. Subsequentemente, advogou uma “ética do
cuidado”, que ela pensava que exemplificava melhor a experiência e o pensamento
das mulheres.

Muitas feministas posteriores aplaudiram as críticas que a ética do


cuidado dirigiu às teorias éticas mais canónicas, nomeadamente por não
dar atenção, ou ignorar intencionalmente, as experiências e o raciocínio das
mulheres. Contudo, algumas destas feministas pensam que essas teorias mais
tradicionais, especialmente se forem expandidas tendo uma atenção cuidadosa
às questões relacionadas com os sexos e com o desenvolvimento das capacidades
caracteristicamente humanas das pessoas, podem ir longe em direção a uma
teoria ética adequada. No mínimo, contudo, as críticas feministas forçaram os
filósofos a reavaliar as suas teorias, e mesmo a repensar exatamente o que é uma
teoria ética e o que se espera que alcance (Jaggar, 2000).

FONTE: LAFOLLETTE, Hugh (Org.). Ethics in practice. Londres: Blackwell, 2001. Tradução de
Desidério Murcho. Disponível em: <https://criticanarede.com/teoriasetica.html>. Acesso em: 5
jun. 2018.

178
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• A ética da virtude não é uma teoria nova, tendo tido seu começo com os gregos
e, especialmente, com Aristóteles no IV AEC, embora suas origens na filosofia
chinesa sejam ainda mais antigas. Tornou-se significativo para muitos eticistas
contemporâneos.

• A virtude é definida como "excelência moral, justiça, responsabilidade ou


outras qualidades exemplares consideradas meritórias".

• A ênfase está no caráter bom ou virtuoso dos próprios seres humanos, e não
em seus atos, consequências, sentimentos ou regras.

• A Ética a Nicômaco de Aristóteles baseia-se nos seguintes princípios: 1. A


realidade e a vida são teleológicas, apontam para algum fim ou propósito;
2. O fim da vida humana é a felicidade, e a razão é a atividade básica dos
seres humanos, portanto, o objetivo dos seres humanos é raciocinar bem para
alcançar uma vida completa; 3. Aristóteles começa com os juízos morais de
seres humanos razoáveis ​​e virtuosos e, em seguida, formula princípios gerais,
ao contrário dos não consequencialistas – teóricos do Comando Divino, Kant
e Ross - que começam com princípios éticos abstratos; 4. Os seres humanos
têm uma capacidade de bondade. Isto tem que ser desenvolvido pela prática
baseada em uma emulação da tomada de decisão moral do ser humano virtuoso
ideal.

• A virtude é uma mediania, relativo a nós, entre os dois extremos de excesso e


deficiência (ou defeito). No sentimento de confiança, por exemplo, a coragem é
a mediania entre o excesso temerário e o defeito da covardia.

• O Autocultivo da Moral Confucionista. O termo chinês Te, "virtude", é o poder


inerente ou a tendência de afetar os outros de uma maneira positiva, dramática
e poderosa para o bem.

• Em um mundo confucionista, a identidade está sempre ligada ao grupo e aos


relacionamentos dentro da ordem social. As virtudes confucianas são assim
decididamente de natureza social.

• Todas as virtudes confucionistas são realizadas dentro do contexto de cinco


relações cardeais que são todas governadas pela prática de Shu, "reciprocidade".

• Ren, traduzido de várias formas como "bondade humana", "benevolência",


"bondade", ou "humanidade" é a principal virtude confucionista e destaca e

179
realça as relações naturais entre o indivíduo e a comunidade. O ideograma
para Ren é "um-ser-com-outros".

• Li, "propriedade ritual", é a virtude confucionista que deve ser cultivada para
ser um participante pleno na comunidade e torna possível que um indivíduo
apresente uma conduta apropriada em situações específicas.

• Concepções idealistas e realistas do confucionismo. Meng Zi ou "Mencius"


sustentava que os seres humanos têm uma disposição natural em relação ao
bem, e a virtude é cultivada, metaforicamente, como regar "brotos". Xun Zi
ensinou que os seres humanos não são naturalmente dispostos em direção ao
bem, mas a natureza humana é má e deve ser superada da tal como a maneira
que se endireita a madeira torta ou afia o metal em um moedor.

• Ética Confucionista dos Papéis. Xiao, "reverência familiar" ou "sentimento


familiar", é a raiz da conduta consumada.

• A "ética confucionista dos papéis" é um tipo "novo" de teoria ética, juntamente


com as teorias tradicionais de ética consequencialista, não-consequencialista e
da ética da virtude, mas distintas destas.

• Não há uma teoria ética equivalente na tradição ocidental, e assim, a ética


confucionista dos papéis deve ser entendida em seus próprios termos. Na
prática, produz uma ética robusta de responsabilidade para com pessoas
particulares em uma matriz de relacionamentos de papéis com os outros.

• As teorias contemporâneas da Ética das virtudes é, primeiramente, uma reação


contra as teorias morais que tentam encaixar nossa experiência moral em um
sistema a priori das regras ou dos ideais pré-estabalecidos, especificamente o
consequencialismo e o kantianismo.

• A maioria das teorias contemporâneas da Ética da Virtude se origina


pesadamente de Aristóteles, embora não necessariamente aceitem todas as
suas suposições.

• Alasdair MacIntyre fornece uma análise contemporânea da Ética da Virtude:


1. As virtudes são disposições tanto para agir como para sentir-se de maneiras
particulares, e é preciso criar sentimentos virtuosos dentro de si mesmo,
não apenas agir virtuosamente; 2. Deve-se então decidir o que o ser humano
praticamente sábio e virtuoso faria em qualquer situação e então fazer o ato
virtuoso que tal pessoa faria.

• Há várias vantagens para a Ética da Virtude: 1. Ela se esforça para criar o ser
humano bom, não meramente bons atos ou boas regras; 2. Ela tenta unificar
a razão e a emoção; 3. Enfatiza a moderação, uma qualidade reconhecida por
muitos eticistas.

180
• Também tem desvantagens: 1. Os seres humanos têm um fim ou propósito?
Se sim, qual é, e como podemos provar qualquer um destes? 2. A moral
é inata, ou é aprendida através da experiência?; 3. O que é virtude e o que
constitui as virtudes? Parece haver uma grande variedade de opiniões sobre
isso, então como podemos decidir o que é realmente a virtude e quais virtudes
são realmente válidas? 4. Quem é o ser humano virtuoso ideal, e como vamos
determinar ou provar isso?

• Os vícios como covardia, ciúme, inveja, cobiça e a glutonaria são exemplos


de traços de caráter indesejáveis ​​que se encaixam na vida de um indivíduo
por meio da indulgência de apetites degradantes, falta de autodisciplina e
educação e prática habitual de conduta imoral.

• A pessoa viciosa não é governada pela razão, mas pelo impulso e vive uma
vida atormentada pela tensão interior e pelo caos.

• As virtudes são "excelências humanas" e consistem naquelas características de


caráter que devem ser promovidas nos seres humanos, tais como honestidade,
lealdade, coragem, sabedoria, moderação, civilidade, compaixão, tolerância
e reverência. A vida da pessoa virtuosa é caracterizada pela força interior,
contentamento, felicidade e propósito.

181
AUTOATIVIDADE

1 O que é essencialmente a Ética da Virtude e de onde ela se originou?

2 Como ela difere das teorias consequencialistas e não consequencialistas da


ética?

3 Quais são as vantagens da Ética da Virtude?

4 Quais são as desvantagens da Ética da Virtude?

182
UNIDADE 3

ÉTICA APLICADA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

A partir desta unidade você será capaz de:

• introduzir o campo da ética aplicada e suas subdivisões;

• apresentar as várias abordagens da bioética e os seus desafios teóricos e


práticos;

• compreender os temas centrais e os limites da ética ambiental.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade, você en-
contrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – A NATUREZA DA ÉTICA APLICADA

TÓPICO 2 – BIOÉTICA

TÓPICO 3 – ÉTICA AMBIENTAL

183
184
UNIDADE 3
TÓPICO 1

A NATUREZA DA ÉTICA APLICADA

1 INTRODUÇÃO

A ética aplicada é um campo geral de estudo que inclui todos os esforços


sistemáticos para entender e resolver problemas morais que surgem em algum
domínio da vida prática, como na medicina, jornalismo ou negócios, ou em
conexão com alguma questão geral de interesse social, como a equidade no
emprego ou a pena de morte. Existem hoje três grandes subdivisões da ética
aplicada: ética biomédica, preocupada com questões éticas na medicina e
pesquisa biomédica; ética empresarial e profissional, preocupada com questões
que surgem no contexto de negócios, incluindo o de corporações multinacionais;
e a ética ambiental, preocupada com nossas relações e obrigações para com as
gerações futuras, com animais e espécies não humanas, e com os ecossistemas e
a biosfera como um todo.

O interesse em aumentar nossa compreensão das questões éticas relativas


à assistência médica, aos negócios, às profissões e ao meio ambiente vem
crescendo acentuadamente a partir do último quarto do século XX. Ao considerar
as principais forças que dão origem a esse crescente interesse pela ética aplicada,
naturalmente se pensa primeiro na ética biomédica, a mais madura e bem
definida das divisões da ética aplicada. Embora encorajada pelos movimentos de
"libertação" das décadas de 1960 e 1970, a ética biomédica surgiu principalmente
em resposta a várias questões e escolhas criadas por novas tecnologias médicas.
Os valores tradicionais e os princípios éticos da profissão médica passaram a ser
considerados inadequados nessas novas situações, porque muitas vezes pareciam
exigir decisões que pareciam estar claramente erradas. Por exemplo, o princípio
da santidade da vida humana permeou o ethos e a ética da medicina ocidental
durante séculos e encontrou expressão formal na jurisprudência médica. No
entanto, como é bem aceito, um requisito central do princípio da santidade –
de que o médico deve fazer todos os esforços possíveis para preservar a vida
– simplesmente se tornou muito oneroso no contexto médico contemporâneo
para continuar a sustentar um consenso sobre o que é certo em relação à vida e
decisões de morte.

Existem diferenças óbvias e importantes, em geral, entre as principais


divisões da ética aplicada. A ética biomédica é focada em um ambiente

185
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

institucional particular e diz respeito às práticas de um conjunto de profissões


estreitamente associadas. A ética nos negócios é mais ampla no escopo, porque
o campo dos negócios é muito mais diversificado do que o campo da medicina.
A ética ambiental obviamente tem um alcance ainda mais amplo, incluindo as
atitudes e o comportamento de todos nós, particularmente nossos padrões sociais
básicos de uso e consumo de recursos, e nossas atitudes morais fundamentais em
relação a outros animais e ao mundo natural.

Apesar dessas e de outras diferenças, no entanto, a ética nos negócios e a


ética ambiental ainda têm a mesma proveniência básica que a ética biomédica. No
contexto das suposições e valores tradicionais, os processos industriais e tecnológicos
modernos, antes vistos como os próprios motores do progresso, levaram à crise
global. A raison d’étre (razão de ser) da ética ambiental é criticar e melhorar os
valores e princípios em termos dos quais entendemos nossas responsabilidades
para as futuras gerações, nossa relação com animais não humanos e outros seres
vivos e nosso lugar na natureza em geral. Os valores e princípios tradicionais da
prática empresarial ocidental também parecem inadequados para as complexas
realidades do mundo moderno. Isso é particularmente verdadeiro em relação
às responsabilidades sociais dos negócios, especialmente aquelas relacionadas à
saúde pública, segurança e riscos ambientais. Escândalos em Wall Street e afins
podem levar a certos compromissos com a educação ética em escolas de negócios,
mas eles não são filosoficamente significativos o suficiente para explicar o alto
nível de interesse que a ética nos negócios atrai atualmente. Uma explicação mais
provável concentra-se em coisas como a percepção de que a obrigação corporativa
tradicional de maximizar os lucros para os acionistas, dentro dos limites da lei
aplicável, pode levar muito facilmente à exploração, à degradação ambiental e a
outros danos.

Vendo a ascensão da ética aplicada geralmente sob esta luz, não é de


surpreender que, à medida que os dilemas morais cresceram, primeiro na bioética
e depois nas outras áreas principais, a esperança de progresso deslocou-se de um
mero remendar de valores tradicionais para uma filosofia moral e teoria ética
fundacional. Ao mesmo tempo, o campo geral da ética aplicada deu origem a
várias subdivisões de um tipo mais concentrado, como ética de gestão, ética de
enfermagem e ética jornalística (incluindo todos os meios de comunicação). Da
mesma forma, o campo se desenvolveu de modo a incluir muita atenção focada
em questões éticas ligadas a uma ampla gama de preocupações sociais, como
discriminação e ação afirmativa, feminismo, fome e pobreza no mundo, guerra e
violência, pena de morte e os direitos das mulheres, gays e lésbicas.

2 TEORIA ÉTICA GERAL E PRINCIPIALISMO


À medida que a ética aplicada se tornou um campo estabelecido de estudo
e prática, surgiram várias questões importantes sobre a natureza do campo
e os problemas nele contidos. Paradoxalmente, talvez, uma das questões mais
fundamentais diz respeito à utilidade da teoria ética (HALDANE, 2002).

186
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA ÉTICA APLICADA

A filosofia moral tradicional identificou virtualmente a possibilidade


de conhecimento moral genuíno com a possibilidade de uma teoria ética
universalmente válida e supôs que todos os padrões morais aceitáveis, de todo
tempo e lugar, podem ser racionalmente ordenados e explicados por referência
a um conjunto de princípios fundamentais. A unidade teórica e a sistematização
"perfeitas" podem ser impossíveis de obter, porque pode haver uma pluralidade
de princípios básicos que resistem à ordenação (NEDEL, 2004). Mas é geralmente
assumido que tais princípios seriam poucos em número, de modo que uma ordem
substancial e abrangente possa ser descoberta. Um corolário dessa concepção
de conhecimento moral é a visão de que o raciocínio e a justificação morais são
essencialmente uma questão de aplicar dedutivamente princípios básicos aos
casos.

No entanto, ao contrário das expectativas criadas por essas premissas


metodológicas, muitos filósofos que se aventuraram em clínicas e cargos de
direção ficaram decepcionados ao descobrir quão pouca utilidade essa abordagem
dedutiva tinha em confronto com problemas morais genuínos (ODERBERG, 2009).
Esforços para resolver problemas morais reais na medicina com alguma versão da
teoria kantiana ou utilitarista, por exemplo, confrontam-se imediatamente com
o problema da abstração e do afastamento dos princípios éticos gerais. É claro
que se deseja melhor servir aos interesses importantes de todos os envolvidos
(utilitarismo) e respeitar os direitos e pessoalidade das partes afetadas (kantismo);
mas para problemas reais de prática, a questão mais importante e difícil é a
melhor forma de entender a situação atual exatamente nesses termos. O que, por
exemplo, significa respeitar adequadamente a personalidade de um potencial
doador de órgão anencefálico?

No campo da bioética, a experiência desse tipo deu origem a uma teoria de


nível médio composta de três princípios fundamentais, a autonomia, a beneficência
(incluindo a não maleficência) e a justiça. Essa teoria foi sistematicamente
desenvolvida por Tom Beauchamp e James Childress (2002) em seu clássico
moderno Princípios da Ética Biomédica. Esta teoria afirma que estes princípios são
fundamentados em nossas tradições mais centrais da teoria ética normativa, ao
mesmo tempo em que oferecem conteúdo suficiente para guiar o juízo moral
prático na medicina. Assim, pretende superar o problema da abstração teórica e
também manter a fé na ideia filosófica básica de que a ética aplicada é contínua
com a teoria ética geral. A ética biomédica, como uma divisão primária da ética
aplicada, não é um tipo especial de ética; não inclui quaisquer princípios ou
métodos especiais específicos do campo da medicina e que não sejam deriváveis​​
de fontes mais gerais. Em vez disso, o campo da medicina é governado, em última
análise, pelos mesmos princípios normativos gerais que são válidos em todas as
outras esferas da vida humana. À medida que essa abordagem passou a dominar
a bioética, ela inspirou formas semelhantes de construção teórica em outras áreas
da ética aplicada, principalmente nos negócios e na ética profissional.

Gradualmente, no entanto, muitos filósofos e outros que trabalharam


extensivamente na ética aplicada mudaram o foco para uma rejeição da ideia

187
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

tradicional de desenvolver e aplicar a teoria normativa geral (FERREIRA, 2010).


Suas experiências no campo os convenceram de que a aparência de universalidade
alcançada pela teoria normativa geral é necessariamente adquirida ao preço
de separar, de maneira muito rígida, o pensamento sobre a moralidade das
realidades, tradições e práticas históricas e sociológicas de culturas particulares.
Um resultado dessa separação, como já mencionado, é um nível de abstração que
torna a teoria ética tradicional virtualmente inútil ao orientar a tomada de decisão
moral sobre problemas reais em contextos sociais específicos.

Além disso, esses críticos veem essencialmente os mesmos problemas do


a-historicismo e da abstração reaparecendo com as teorias normativas padrão
de nível médio, na bioética e em outros lugares. Assim como, parece a muitos
filósofos que trabalham em ética aplicada que a maior parte do trabalho real de
resolução de problemas morais ocorre no nível de interpretação e comparação
de casos (CORTINA, 2003). O recurso a princípios normativos gerais, mesmo os
de nível médio, parece nunca se sobrepor ao juízo considerado orientado por
casos. Pelo contrário, o conflito entre um princípio putativo e a consideração
extensiva de casos parece sempre resultar no refinamento da interpretação de
qualquer princípio geral envolvido. Essa tendência é importante em conexão com
os esforços contemporâneos para refinar o modelo dedutivo da justificação moral
pela incorporação de uma teoria ampla do equilíbrio reflexivo. Pois é crucial para
a teoria do equilíbrio reflexivo e para a defesa do principialismo que os princípios
gerais se sobreponham a juízos considerados, pelo menos a maior parte do tempo.

Preocupações sobre o a-historicismo e a abstração, e os problemas de


aplicação que elas criam, produziram um poderoso ceticismo sobre a própria
possibilidade de construir uma teoria normativa perfeitamente geral (PIZZI,
2006). Até agora, essa antiga busca filosófica parece, para muitos, inconsistente
com a concepção de moralidade mais imediata, natural e defensável. Vista da
perspectiva da história, da sociologia e da antropologia modernas, as moralidades
são vistas como artefatos sociais que surgem como parte dos elementos básicos
de uma cultura – sua religião, suas formas sociais de casamento e família, sua
economia e assim por diante. A moralidade é, assim, um instrumento social em
evolução que serve a uma variedade de fins muito gerais que estão associados
a diferentes domínios da vida social e são perseguidos dentro do contexto da
mudança das circunstâncias históricas e das significativas limitações epistêmicas.
Como tal, uma moralidade pode ser criticada em termos de quão bem ou mal ela
serve a fins sociais identificáveis ​​e dignos. Todavia, da mesma forma, o que é bom
ou certo em algum domínio da vida, dentro de um dado contexto cultural, deve
ser uma função de um conjunto altamente complexo de condições, incluindo
fatores psicológicos e padrões de expectativas que são criados por costumes
sociais e convenção.

À luz das diferentes origens históricas de diversas formas sociais, em


tantas culturas diferentes, parece não haver uma boa razão para supor que todos
os padrões morais defensáveis ​​sejam explicáveis ​​em termos de um relacionamento
dedutivo com algum conjunto mais ou menos unitário de princípios básicos

188
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA ÉTICA APLICADA

com conteúdo normativo mais ou menos determinado (RACHELS; RACHELS,


2014). Embora tal redução ou reconstrução teórica possa ser possível, apesar da
diversidade cultural e apesar do esmagador fracasso de todos os esforços anteriores
em obter aceitação geral de qualquer conjunto de princípios morais fundamentais,
muitos agora consideram este empreendimento como extremamente duvidoso,
até mesmo filosoficamente ingênuo.

3 CONTEXTUALISMO E DESENVOLVIMENTOS RELACIONADOS


O ceticismo sobre a possibilidade da teoria normativa em grande escala
e as crescentes dúvidas sobre a viabilidade de resolver problemas morais,
aplicando dedutivamente princípios gerais, deram origem a uma pluralidade
de abordagens e modos de conceituar problemas dentro do campo da ética
aplicada. Uma abordagem geral para a tomada de decisão moral prática que está
atualmente ganhando força é o contextualismo.

Conforme desenvolvido de forma variada na literatura filosófica atual, o


contextualismo tendeu principalmente a criticar as crenças estabelecidas sobre
a teoria ética, em vez de construir melhores modelos de raciocínio moral, mas a
ênfase agora está mudando para incluir modelos alternativos (SINGER, 2012).
Do ponto de vista dos contextualistas, é desnecessário lutar por uma teoria ética
universalmente válida, uma vez que existem formas mais realistas de explicar a
racionalidade moral e a justificação. No lugar do tradicional modelo de raciocínio
moral e justificação, essencialmente de cima para baixo, o contextualismo
adota a ideia geral de que os problemas morais devem ser resolvidos dentro
das complexidades interpretativas das circunstâncias concretas, recorrendo
a tradições históricas e culturais relevantes, com referência crítica a normas e
virtudes profissionais e institucionais, e confiando principalmente no método de
análise comparativa de casos. De acordo com esse método, nós navegamos em
direção a uma resolução prática pela triangulação discursiva de casos claros e
estabelecidos para casos problemáticos.

Os juízos morais são, assim, provisoriamente justificados ao defender-se


contra objeções e rivais. Assim concebida, a justificação é essencialmente contínua
com um processo indutivo, baseado em casos, de busca pela solução mais razoável
para um problema dentro de um enquadre de valores compartilhados que são
vistos como tendo validade presumida, a menos que considerações racionais os
questionem.

Intimamente associada a questões relativas à utilidade da teoria normativa


geral, está a questão de como devemos conceber o empreendimento de viver e agir
moralmente (RACHELS; RACHELS, 2014). Enquanto os kantianos e utilitaristas
se concentram em seguir regras e princípios apropriados, um crescente número
de filósofos no campo da ética aplicada argumentam que devemos nos concentrar
em adquirir virtudes apropriadas para cumprir nossos papéis em contextos
culturais e institucionais particulares. Essa concepção é consistente com uma

189
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

orientação contextualista geral ao rejeitar o modelo dedutivo de deliberação


moral. Na medida em que os proponentes da ética da virtude estão de alguma
forma preocupados com a teoria ética, ela é uma teoria muito mais orientada
empiricamente do que os filósofos morais tradicionalmente buscam. Tal teoria
busca compreender os efeitos instrumentais de várias maneiras de conceituar e
julgar ação e caráter dentro do contexto dos papéis sociais e institucionais que as
pessoas desempenham. Diferentemente do contextualismo, no entanto, ao invés
de se concentrar diretamente na estrutura do raciocínio moral sobre a ação correta,
a ética da virtude tende a ver a ação correta como indiretamente determinada,
considerando quais ações fluiriam da operação das virtudes relevantes.

Como já enfatizamos, a questão geral que divide os praticantes da


ética aplicada é para a qual deveríamos olhar em nossa busca por padrões de
justificação para juízos morais. Para alguns, o afastamento do modelo dedutivo
de resolução de problemas na ética aplicada estimulou um interesse renovado
nos aspectos processuais da deliberação e decisão morais do grupo. Eles
começaram a considerar muito mais seriamente a questão de quais características
um procedimento de decisão deve ter se suas conclusões devem ser consideradas
moralmente justificadas (NEDEL, 2004). Parece haver apoio considerável para a
visão de que um juízo moral justificado deve representar, em algum sentido, um
consenso livre e informado de todas as partes interessadas. O problema central é
obter uma compreensão mais completa da natureza dos vieses e distorções que
afetam os procedimentos de decisão em contextos sociais e culturais específicos
e, assim, esclarecer as condições sob as quais podemos ter certeza de que pelo
menos aproximamos tal consenso.

Claramente, rejeitar o modelo dedutivo de solução de problemas morais


não implica a rejeição de toda teoria moral. Uma reforma moral significativa na
vida social depende da garantia de algum tipo de importação teórica sobre a
prática estabelecida e os arranjos institucionais. A teoria ética em uma forma que
é suficiente para esse propósito é, portanto, necessária (BRITO, 2007). É necessária
de muitas outras maneiras também. Por exemplo, faz-se necessário o uso de uma
teoria de algum tipo até mesmo para abordar o problema do status moral – o que
é que atribui a alguma coisa uma posição moral de tal forma que seja um objeto
de consideração moral em si mesma? E somente a teoria ética pode esclarecer ou
resolver questões como se a distinção entre matar e "deixar morrer" é moralmente
relevante em si, ou se o consentimento real ou hipotético sob certas condições
ideais é mais importante para justificar certos tipos de instituições e políticas
sociais. Essas perguntas, e inúmeras outras como elas, são simplesmente questões
teóricas que surgem naturalmente e inevitavelmente quando se tenta avançar
moralmente em um mundo complexo e em mudança. Teorias que lidam com
questões como essas, no entanto, não fornecem procedimentos de decisão para
resolver problemas morais. Ao contrário, elas nos ajudam a ampliar e aprofundar
nossa compreensão do conjunto complexo de conceitos morais em termos dos
quais interpretamos nossos problemas e dilemas, e assim apontamos o caminho
para melhorar nossos valores e práticas sociais.

190
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA ÉTICA APLICADA

As construções teóricas mais relevantes e úteis na ética aplicada


provavelmente serão aquelas que são impelidas por uma compreensão
informada dos reais conflitos e dificuldades da vida prática. A história recente das
contribuições da filosofia moral no mundo da prática corrobora isso (CORTINA,
2003). As respostas a questões teóricas específicas decorrentes de problemas como
aborto e eutanásia, ou esforços concentrados em áreas como o ambientalismo e
os direitos dos animais, produziram contribuições mais significativas da filosofia
moral para as importantes questões morais vigentes. Além disso, o melhor
trabalho desse tipo em ética aplicada está atualmente exercendo considerável
influência sobre alguns dos trabalhos mais interessantes sobre teoria ética
(NEVES; ARAÚJO, 2018).

Uma das consequências da virada para o contextualismo e a ética da


virtude tem sido a renovação dos esforços para entender melhor a natureza do
raciocínio moral prático e as normas que o governam. Esse tipo de exploração
atualmente está promovendo uma espécie de metaética reorientada (SINGER,
2012; RACHELS; RACHELS, 2014). Em vez de se concentrar na análise de
conceitos éticos básicos e no significado de proposições morais, o foco está na
estrutura do raciocínio moral real, incluindo comparações com as leis, direito e a
ciência; nas condições de avaliar adequadamente os preceitos e regras morais; e
sobre os limites da decidibilidade racional na moral. A teoria metaética desse tipo,
que pode em última instância se esforçar para iluminar sistematicamente quais
condições abstratas as moralidades sociais, ou suas partes, devem encontrar para
serem razoáveis ​​ou defensáveis, podem ser filosoficamente muito valiosas. Esse
tipo de teoria pode pelo menos servir, se não finalmente preencher, um poderoso
desejo intelectual por compreensão ordenada e sistemática. E poderia ser útil
indiretamente em termos práticos também.

4 QUESTÕES DE CONVENCIONALISMO, EXPERTISE MORAL


E PSICOLOGIA MORAL
A natureza intensamente prática e orientada pelo consenso da ética aplicada
serviria, por si só, para levantar uma questão de seu potencial crítico e reformador,
mas dada a tendência atual de relatos contextuais de raciocínio e justificação
morais contextualizados, essa questão torna-se aguda. De tal perspectiva, como
a ética aplicada pode evitar ser inerentemente convencional e conservadora?
Como, em outras palavras, a ética aplicada pode assegurar uma perspectiva
suficientemente crítica sobre práticas morais e avaliativas convencionais para ser
capaz de uma reforma genuína e, se necessário, radical? A ética ambiental talvez
mereça atenção especial nesse sentido, porque grande parte de seu impulso está
direcionada a reformas profundas e até mesmo revolucionárias em atitudes
morais em relação a outros animais e ao mundo natural.

Certos campos da ética aplicada se desenvolveram para incluir a consulta
profissional e a representação dos chamados "eticistas" dentro dos ambientes

191
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

institucionais, nas comissões e comitês do governo, e na mídia e nos tribunais


(FREY; WELLMAN, 2003). Isso resultou em uma discussão muito recente
sobre toda a questão da expertise moral. Pode haver algo como um especialista
moral ou especialistas nas importantes dimensões éticas de certos domínios
da prática? Naturalmente, se o raciocínio moral e a tomada de decisões eram
principalmente uma questão de defender algum princípio geral e aplicá-lo aos
casos de uma maneira predominantemente analítica, então, presumivelmente, as
habilidades associadas a esse processo constituiriam uma espécie de expertise
moral que poderia estar ligada a certos tipos de treinamento e preparação. Em
particular, o treinamento na história da teoria normativa e da filosofia analítica
pareceria especialmente relevante, até mesmo indispensável. Por outro lado, uma
abordagem mais contextualista do processo de raciocínio moral reconhecerá um
papel central no discurso moral para uma variedade de habilidades e recursos
intelectuais, imaginativos e emocionais além daqueles que são típicos do filósofo
moral. A compreensão psicológica e a sensibilidade serão vistas como cruciais,
assim como o conhecimento sociológico, o conhecimento das religiões e das
realidades jurídicas e políticas, e assim por diante. Esse ponto de vista, portanto,
vê a ética aplicada como inerentemente multidisciplinar, porque é impossível
localizar todas as habilidades e atributos necessários ao progresso da moralidade
social no treinamento e nas habilidades típicas de qualquer profissão.

O interesse na questão do conhecimento e expertise morais não está


relacionado a uma renovação mais geral do interesse pela "psicologia moral",
como a filosofia, em certos períodos, preocupou-se com esse campo. Quais, por
exemplo, são as principais fontes de hipocrisia moral em nossos tempos? Ou
quanto à credibilidade das visões morais de uma pessoa depende de sua base em
certos tipos de experiência relevante? Ou que condições gerais sustentam uma
cultura na qual a ética e os valores morais são levados a sério?

5 DESAFIOS À ÉTICA APLICADA


Há pouco mais de 25 anos, acreditava-se amplamente que a ética filosófica
tinha pouco a contribuir para tais questões práticas. Não se tratava de pensar que
os filósofos abandonassem completamente o estudo da teoria ética. A ideia era
que, embora o refinamento e a elaboração de teorias éticas gerais e o trabalho sobre
problemas metaéticos, como o significado de termos morais, pudessem continuar,
os filósofos não deveriam supor que seus esforços nessas questões tivessem
qualquer valor prático (FERREIRA, 2010). Houve uma mudança dramática.
Grande parte da escrita ética mais empolgante do período interveniente aborda
problemas morais específicos, como aborto e eutanásia, muitas universidades
têm aplicado posições éticas, e filósofos agora, regularmente, são chamados a
'fazer ética' na comunidade – auxiliar em comitês de ética profissional, produzir
relatórios para governos e instituições sobre questões eticamente controversas,
dar entrevistas sobre ética nos negócios, e assim por diante. No entanto, esta
mudança dramática ocorreu em face de numerosos e contínuos desafios. Neste
tópico apresentaremos e avaliaremos os principais desafios à ética aplicada.

192
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA ÉTICA APLICADA

Vale a pena adicionar uma "advertência expansionista" no início. Essa


discussão já enfocou o papel da filosofia e dos filósofos na ética aplicada, e
os desafios à legitimidade do empreendimento tenderam a ser igualmente
direcionados. Todavia, se estiverem corretos, a maioria desses desafios terá
implicações não apenas para os filósofos, mas para qualquer teórico normativo
que busque consequências práticas de seu trabalho: quando envolvidos em
certos projetos, economistas, cientistas sociais e políticos e advogados podem
parecer aos holofotes dos críticos como legitimamente filósofos. Portanto, embora
continuemos a nos concentrar na filosofia, deve-se ter em mente que os filósofos
morais não têm o monopólio da teorização normativa, nem a aspiração de dar
conselhos morais com base em tal teorização, portanto não devem ser os únicos
alvos críticos, ou os únicos beneficiários de uma defesa da ética aplicada.

5.1 O DESAFIO DO RELATIVISMO


Um grupo influente de desafios à ética aplicada surge de visões metaéticas
sobre a possibilidade do conhecimento moral (FREY; WELLMAN, 2003). Muito
grosseiramente, a ideia é que, na ética, existem meras opiniões e, como resultado,
ninguém pode dar conselhos confiáveis ​​sobre o que é certo e o que é errado.
Esse ceticismo geral tem muitas formas. Estamos interessados aqui apenas em
dar uma visão geral e uma breve avaliação de algumas das principais variedades.

Uma variedade influente começa com a observação de que diferentes


culturas parecem ter visões éticas diferentes. Algumas culturas pensam que a
poligamia é imoral, outras que é perfeitamente apropriada. Algumas culturas
acham que é permitido abandonar os idosos para morrer, outros que os idosos
devem ser tratados com respeito e reverência particulares. Essas diferenças
aparentes levaram muitos a rejeitar a ideia da verdade ética universal. A ideia
é que não há nada além de diferentes costumes culturais. Ninguém pode ser
condenado como errado ou honrado como certo, pois não há um "ponto de vista
cultural" a partir do qual essa avaliação universal possa ser feita, ou a partir da
qual conselhos éticos práticos ou aplicados possam prosseguir.

O relativismo cultural atraiu muitas críticas (ODERBERG, 2009). Por


enquanto, basta recitar algumas das dificuldades mais óbvias. Em primeiro lugar,
mesmo admitindo as observações das diferenças éticas entre as culturas, não se
segue que não exista uma verdade moral universal. Não decorre do fato de que
as pessoas não concordam se a poligamia está errada ou não que não há um fato
da questão, tal como não decorreu do fato de que as pessoas discordavam sobre
a forma da terra que não havia fato daquela questão. Em segundo lugar, mesmo
admitindo, novamente, que há divergências éticas bastante dramáticas, ainda
pode haver uma área muito grande de consenso ético. Pode haver algumas regras
morais mantidas por todas as comunidades em todos os momentos. Este ponto
se conecta com um terceiro. Talvez pareça que até mesmo a regra "o assassinato
gratuito é errado" não é realmente universal. Afinal, certas culturas abandonam
seus idosos para morrer. No entanto, a simples observação de tais práticas não

193
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

evidencia diferentes valores éticos. Suponha que tentar manter os idosos vivos em
certos ambientes ameaça toda a comunidade. Em tais circunstâncias, abandonar
os idosos pode não parecer "assassinato gratuito". Aqueles que seguiram a prática
não demonstrariam que tinham valores radicalmente diferentes daquelas culturas
que achavam que os idosos deviam ser tratados com reverência e respeito. De
fato, podemos facilmente imaginar circunstâncias em que a maneira apropriada
de demonstrar reverência e respeito seria abandonar os idosos antes que eles se
tornassem uma ameaça à comunidade que eles mesmos consideravam importante.

5.2 O DESAFIO DO SUBJETIVISMO


Os subjetivistas afirmam que as declarações éticas relatam coisas sobre o
enunciador e não sobre o mundo. Tais declarações são apenas respostas emocionais
(de modo que, na verdade, não são declarações de fato) ou são declarações apenas
sobre as crenças, desejos e atitudes do falante (RACHELS; RACHELS, 2014). Uma
aparente disputa sobre a eutanásia, de acordo com o subjetivista, não é realmente
sobre a eutanásia, mas sobre os sentimentos, atitudes e assim por diante dos
disputantes. Novamente, como um desafio à ética aplicada, o subjetivismo nega
ao eticista uma posição intersubjetiva a partir da qual se possa avaliar ou emitir
conselhos.

Essa visão comum pode ser vista como sendo tanto certa quanto errada.
Podemos ver como é certa contrastando juízos éticos com juízos legais. É parte
integrante do nosso sistema legal que as questões legais podem ser resolvidas
com autoridade por instituições específicas. O papel do tribunal é impor um
julgamento público sobre o que deve ou não ser feito. Não existe uma instituição
ética análoga e, nesse sentido, a visão cética sobre a ética é correta. Se discordarmos
de um assunto ético, posso pensar que você se enganou de uma forma que, após
apelos suficientes, parecerá apenas perverso no caso legal. Meus pontos de
vista morais são alcançados por mim e não há um tribunal ético que possa me
anular. A avaliação de cada pessoa sobre a coisa certa a fazer é, nesse sentido,
pelo menos tão boa quanto a de qualquer outra pessoa. Todavia precisamos ter
cuidado com as implicações disso. A ideia de que a ética é "pessoal" no sentido
de que não possa ser definitivamente sobrepujada por outros em questões éticas
não significa que a ética seja pessoal, pois o gosto é pessoal (HALDANE, 2002).
Assim, o rápido esboço acima torna-se errado. Há várias diferenças relacionadas
que mostram que os casos são significativamente diferentes. Vou simplesmente
delinear as centrais aqui.

Por um lado, se os meus gostos mudarem, não suponho que me tenha


enganado e que cheguei agora à visão correta: agora gosto de azeitonas, embora
não o fizesse uma vez, mas não penso agora que me enganei com o sabor de
azeitonas então. No entanto, isso é exatamente o que provavelmente pensarei
se eu mudar de ideia sobre um assunto moral. Se uma vez eu pensava que o
aborto seria sempre errado e agora penso que pelo menos às vezes está certo,
então provavelmente pensarei agora que estava enganado. A ideia de que juízos

194
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA ÉTICA APLICADA

éticos são apenas questões de gosto não parece capturar essa característica dos
juízos morais.

Por outro lado, a maneira como o gosto é pessoal parece tornar certos tipos
de desacordo sobre questões de gosto impossíveis (NEDEL, 2004). Nós realmente
não discordamos quando um de nós diz que "Azeitonas são saborosas" e a outra
diz que "Azeitonas têm um gosto ruim". Cada um de nós pode afirmar sincera e
corretamente nossa opinião. Expressões de julgamentos éticos não parecem ser
assim. Se fossem, duas pessoas expressando o que normalmente consideramos
ser visões éticas conflitantes não expressariam pontos de vista conflitantes. Eles
seriam como duas pessoas "discordando" do gosto das azeitonas. Podemos pensar
que uma visão de ética que não possa explicar nossa percepção de que há um
desacordo genuíno entre pró e antirracistas não pode ser adequada. Talvez mais
revelador, se os juízos éticos fossem apenas questões de gosto, seria estranho e
fútil tentar convencer alguém de que suas visões morais estavam equivocadas,
assim como é estranho e fútil tentar convencer alguém que obviamente está
apreciando sua azeitona que ele estaria equivocado – que ele não está realmente
gostando de jeito nenhum daquela azeitona. Todavia nossas visões éticas podem
ser mudadas pelo argumento e pela razão. Podemos mudar nossas visões éticas
de forma não arbitrária, em resposta a discussões e argumentos, de uma maneira
que parece bastante misteriosa em questão de gosto. A ética, então, não é apenas
uma questão de gosto. Podemos dar sentido à ideia de desacordo moral genuíno,
parece perfeitamente razoável tentar convencer as pessoas de que estão erradas
sobre questões éticas, e mudarmos de opinião sobre esses assuntos em resposta
ao argumento e à razão.

5.3 ÉTICA E O PAPEL DAS RAZÕES


Essa discussão anterior nos permite rejeitar pelo menos as versões simples
do ceticismo ético e do relativismo e, portanto, responder ao desafio que essas
visões colocam à ética aplicada (FREY; WELLMAN, 2003). Ela faz isso destacando
o papel das razões na ética e, ao fazê-lo, também nos diz algo sobre a natureza
da ética e do conhecimento ético. Quanto à natureza da ética, a concessão de um
papel central para a razão permite-nos dar, pelo menos em linhas gerais, uma
descrição do que deve ser verdadeiro de uma posição, se for contar como uma
posição ética. Se uma posição minha deve contar como uma posição ética, devo
apresentar razões para isso. Isso não quer dizer que devo articular uma teoria
moral complexa ou mesmo declarar um princípio moral que estou seguindo
para que minha posição seja considerada moral. No entanto, na prática, existem
certos tipos de razões ou respostas que não podem ser feitas: porque um mero
preconceito, por exemplo, é precisamente uma crença que não é apoiada por
razões, não posso oferecer meros preconceitos em apoio à minha posição.

Da mesma forma, meras reações emocionais não contam como razões


(BRITO, 2007). Se tudo o que posso dizer em suporte à minha alegação de que
os negócios são maus é que os negócios me deixam doente ou furioso, não estou

195
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

oferecendo uma razão que mostre minha posição como sendo uma posição ética.
Isso não quer dizer que posições éticas devam ser sem emoção ou desapaixonadas.
Pelo contrário, devemos nos preocupar com nossas visões morais. No entanto,
reações emocionais devem ser estimuladas ou baseadas em juízos morais e não
o contrário. E se minha posição é com base em proposições de fatos que não
são apenas falsas, mas tão implausíveis que fracassam até mesmo nos padrões
mínimos de evidência que eu impus aos outros, provavelmente não oferecerei
razões, mas mostrarei que não consigo pensar em razão genuína alguma para
minha posição. Estas não serão os únicos tipos de razões que não funcionam no
discurso moral – apelos cegos à autoridade ou precedentes podem também entrar
na lista – mas serão suficientes para dar uma noção das restrições impostas pelo
requisito por razões. A lista deve ser ilustrativa e não exaustiva.

Uma vez que tenhamos permitido um lugar para razões no discurso


moral, podemos ver que haverá outras restrições mais gerais também. Talvez o
mais importante seja que o papel das razões impõe uma restrição de consistência.
A consistência requer que, se houver exatamente as mesmas razões em suporte
a um curso de ação assim como em suporte a outro, então essas ações serão
igualmente certas ou igualmente erradas – elas serão igualmente bem sustentadas
ou enfraquecidas pelas razões. Se me oponho ao racismo com base no argumento
de que "todas as pessoas são iguais", também devo objetar às manifestações de
outros preconceitos, como o sexismo, que negam esse princípio: se assim não
acontecer, parecerá que em um ou em outro, ou em ambos os casos, não estou
realmente aceitando a proposição "todas as pessoas são iguais" como uma razão.
Minha posição não será de fato baseada na razão ou nas razões que cito.

6 ÉTICA APLICADA E TEORIA ÉTICA


Outro grupo de desafios é mais especificamente dirigido ao papel das
teorias ou princípios éticos na ética aplicada, afirmando, em suma, que não
devemos nos voltar para teorias éticas para orientação prática (PIZZI, 2006).
Precisamos apenas observar a concepção bastante padronizada da ética aplicada
como a aplicação de uma teoria ética a algum problema moral particular ou
conjunto de problemas para ver a força pretendida do desafio. Começaremos
a avaliação deste desafio esboçando seu alvo – a concepção de teoria e prática
moral à qual seus defensores se opõem. Fornecer tal esboço é um negócio um
tanto arriscado, porque os desafiantes estão longe de ser um grupo homogêneo,
embora devamos nos concentrar no núcleo da posição sobre a qual provavelmente
haverá considerável consenso entre os "antiteóricos".

Em primeiro lugar, os teóricos da moral dizem estar preocupados com


regras e princípios altamente abstratos e universais. Annette Baier (2010), por
exemplo, define uma teoria normativa como um sistema de princípios morais
em que aquele princípio menos geral deriva do mais geral e critica o preconceito
dos teóricos morais em favor de regras gerais formuladas. Em segundo lugar, os
antiteóricos retratam a teoria moral como severamente reducionista; insistindo

196
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA ÉTICA APLICADA

que todos os valores morais podem ser reunidos sob um único padrão. Um crítico
incisivo da ética aplicada, Cheryl Noble (1982) sustenta que esse "monismo" é
necessário, dado o desejo dos teóricos de trazer a diversidade aparentemente
infinita de juízos particulares sob um único princípio ou hierarquia de princípios.
Em terceiro lugar, diz-se que os teóricos concebem o raciocínio moral como
essencialmente dedutivo: supondo que para cada problema moral haja uma
decisão correta, que resultará de um procedimento dedutivo que os agentes
morais racionais devem seguir ao decidir o que fazer. Por isso, Bernard Williams
(2017) afirma que o desejo de produzir um procedimento de decisão racionalista
é precisamente o que ocorre na teoria ética. Os antiteóricos rejeitam esse quadro
dedutivo. Os juízos morais são gerados, eles sustentam, pela atenção não aos
princípios gerais, mas às particularidades dos casos e situações reais.

Assim, John McDowell (2005) sustenta que a moralidade é incodificável e


que se sabe o que fazer não aplicando princípios universais, mas sendo um certo
tipo de pessoa: alguém que vê situações de uma certa maneira. Martha Nussbaum
(2009) defende a prioridade da percepção sobre as regras, afirmando que o fato
de nos confinarmos ao universal é uma receita para obtusidade. Pela mesma
razão, os antiteóricos enfatizam a importância do juízo, em oposição à habilidade
dedutiva, pois aquele que utiliza do raciocínio moral de modo competente será a
pessoa que pode resolver conflitos entre valores irredutivelmente concorrentes e
reivindicações insolúveis. Em suma, o alvo mais claro do desafio dirigido ao papel
da teoria na ética aplicada é aquele, segundo o qual, a ética aplicada se preocupa
primeiro com a elaboração de teorias éticas gerais – egoísmo, utilitarismo e
kantismo, por exemplo – cada um dos quais pretende ter descoberto o princípio
último da ética, sendo assim selecionado e aplicado para dar orientação concreta em
situações concretas. Textos de ética aplicada que começam com um levantamento
das opções teóricas usuais, sem dúvida, contribuem para a manutenção desta
concepção.

Há respostas curtas e longas para este desafio. A curta é simplesmente


aceitar a crítica e aplicar a ética sem teoria. Muitos eticistas na ética aplicada
descrevem a si mesmos como fazendo exatamente isso, adotando a visão do
antiteórico mais ou menos entusiasticamente, alguns vendo o convite para se
concentrar menos nos princípios gerais e mais nos detalhes de casos particulares
como sendo exatamente a receita certa para a ética aplicada, e como uma
oportunidade de abandonar uma concepção imperfeita e teórica de ética e
deliberação ética. No restante deste tópico, no entanto, exploremos uma resposta
mais longa ao desafio dos antiteóricos, delineando uma abordagem da teoria
ética e da ética aplicada que aceita certos aspectos do caso dos antiteóricos, mas
que procura manter algum papel para a teoria.

6.1 TEORIA ÉTICA PARA A ÉTICA APLICADA


Dado que muitos eticistas pelo menos descrevem a si mesmos como
fazendo ética aplicada sem teoria, pode valer a pena começar dizendo brevemente

197
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

porque alguém poderia esperar seguir o outro caminho: Por que tentar manter
um papel para teoria e princípios? Há, possivelmente, várias razões.

Primeiro, os antiteóricos geralmente afirmam que as práticas devem ser


avaliadas do seu interior (FREY; WELLMAN, 2003). Evitando o recurso a critérios
teóricos externos a determinadas práticas, eles enfatizam a importância da atenção
para lealdades, convenções, tradições e explicações históricas e "locais". Todavia,
isso é limitar severamente a possibilidade de críticas às práticas sociais, pois as
normas morais e políticas não podem ser rejeitadas com base em padrões críticos
contrários aos valores e práticas fundamentais da comunidade. Uma razão para
tentar se apegar à teoria é que a crítica eficaz parece pelo menos ocasionalmente,
exigir que nos afastemos das práticas particulares das comunidades com as
quais estamos preocupados, para recorrer a normas gerais ou a princípios de
avaliação. Isso não quer dizer que a crítica ou a avaliação exija pontos teóricos
"arquimedianos". Podemos continuar perguntando como um aspecto de nossa
prática é coerente com os outros, mas mesmo esse tipo de investigação "imanente"
requer que tenhamos algum senso de quais aspectos das práticas são mais
importantes do que outros e por que motivos. Essas são questões teóricas.

Em segundo lugar, os princípios morais gerais podem ser simplesmente


úteis para nós de várias formas (SINGER, 2012). Há vantagens óbvias em ser
capaz de conceber e descrever “minha situação” como um tipo similar a outro
já deliberado: princípios me dão uma maneira de acessar e considerar conflitos
morais relevantes, de descobrir e indicar como tais conflitos foram abordados
anteriormente, e de apreciar e defender alternativas que, de outra forma, poderiam
ser negligenciadas. Subsumir meu caso sob um princípio geral pode me poupar
tempo, esforço e angústia. Eu posso me sentir confortado e apoiado pelo fato
de outros terem estado em um caminho similarmente relevante antes de mim.
Além disso, os princípios podem fornecer-me tanto maiores motivos de confiança
quanto a resposta de outros ao meu caso, e uma maneira pronta de apresentar
minhas reivindicações a eles, porque ao menos estarei menos preocupado que
o resultado de casos particulares dependerá sobre percepções imediatas e novas
deliberações.

As teorias gerais servirão a objetivos semelhantes e, dependendo de


como alguém possa pensar que as teorias morais funcionam na deliberação,
elas podem fazer muito mais que isso. Suponha que alguém pense em teorias
morais não apenas como conjuntos de regras e princípios elegantes e abstratos,
mas como motivado por preocupações e perspectivas morais "reais". A razão
pela qual somos perturbados por confrontos entre preocupações tais como
aquelas destacadas por consequencialistas e deontologistas, em tal relato, não é
porque os autores ou defensores dessas posições fizeram um trabalho tão bom
de construí-los ex nihilo. É antes porque essas teorias nos atraem ou nos lembram
de preocupações morais que temos independentemente das próprias teorias e
porque nos direcionam para perspectivas que reconhecemos como plausíveis.
Aqui, o poder das teorias deve ser explicado pelo fato de que elas são o trabalho
cuidadoso das implicações e aspectos dessa ou daquela preocupação ou ponto de

198
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA ÉTICA APLICADA

vista plausível e antecedente. As teorias serviriam não como premissas principais


autoritativas em algum silogismo dedutivo, mas como ferramentas deliberativas,
chamando a atenção para aspectos do caso ao qual a atenção deveria ser dada
e que, de outra forma, poderiam ser ignoradas ou negligenciadas. A tradição
deontológica chama a atenção para as reivindicações dos indivíduos para um
certo tipo de respeito, o consequencialista para a importância de considerar os
resultados de nossas ações, o comunitário para as reivindicações da comunidade
e assim por diante.

7 COMO DEVEM SER AS TEORIAS?


O que deve ser verdade das teorias éticas e das atitudes dos eticistas da
ética aplicada em relação a elas, se quiserem servir ao tipo de papel esboçado aqui?
A abordagem implica a aceitação de alguma forma de "pluralismo de teorias" –
supõe que a investigação moral adequadamente conduzida levará em conta mais
de uma teoria ou princípio de ação correta e rejeita a ideia de que há uma teoria
ou princípio exclusivamente correta (FREY; WELLMAN, 2003). De fato, alega
que reconhecer a força ou a gravidade de diferentes teorias ou princípios sobre
problemas morais é uma heurística desejável para uma deliberação adequada.
Uma vez que deixamos de lado a busca por uma única teoria ou princípio moral
correto, é provável que encontremos as declarações cuidadosas e abstratas de
preocupação e perspectivas que encontramos na teoria normativa, úteis como um
lembrete precisamente das dimensões complexas dos casos que enfrentamos.

Devemos também deixar de lado o objetivo de desenvolver procedimentos


de decisão moral para todos os fins formalizados (embora seja talvez digno de
nota que é muito difícil encontrar teóricos que tenham de fato perseguido tal
objetivo). A deliberação moral não é a aplicação direta de uma teoria ou princípio
favorecido (SINGER, 2012). Em vez disso, teorias e princípios são usados ​​para
esclarecer, diagnosticar e estruturar a discussão. Eles nos permitem abordar
problemas morais de uma posição tão abrangente quanto podemos administrar.
Nesta história não há aplicação simples de uma teoria ou princípio favorecido
a uma situação na esperança de gerar "a resposta moral correta". Em vez disso,
teorias e princípios são usados ​​como parte de um processo de abordagem
de problemas morais. São ferramentas no raciocínio moral, e não máquinas
independentes, para a geração de respostas morais. A deliberação moral deve
ser concebida não como uma questão de simplesmente aplicar procedimentos
de decisão que consistem em listas de regras fáceis de seguir, mas como uma
questão de abordar casos particulares à luz de teorias e princípios gerais, e talvez
concorrentes, de deliberações anteriores relevantes e de conhecimento adequado
das particularidades do caso.

Os eticistas, na ética aplicada, devem reconhecer a realidade dos problemas


irresolúveis. Perante valores concorrentes, pode não ser possível determinar qual
ato é moralmente correto ou qual pessoa é mais admirável moralmente. A aceitação
da possibilidade de problemas irresolúveis não põe fim à necessidade de ética

199
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

aplicada. Conflitos irresolúveis, no entanto, tendem a tornar as habilidades dos


eticistas da ética aplicada mais importantes ainda, pois escolhas ainda devem ser
feitas em face de tais problemas e estes eticistas podem ajudar de várias maneiras.

Os eticistas da ética aplicada podem, por exemplo, simplesmente alertar


as pessoas sobre conflitos morais. Aqueles envolvidos em deliberações morais
difíceis podem não perceber pontos que, uma vez alertados, eles admitem que
devem ser incluídos em uma avaliação crítica da situação. Eles podem também
ajudar a explicar por que há um conflito moral em uma situação particular,
apontando para os diferentes tipos de valores morais que estão presentes no caso
em questão, mostrando por que eles não podem ser reduzidos a um denominador
comum e por que não há uma única resposta correta neste caso particular. Podem
apontar as vantagens e os riscos de algumas respostas sobre as outras, dados
os compromissos e preocupações das partes. Isso pode ser simplesmente uma
questão de dizer às pessoas o que aconteceu em casos relevantes semelhantes
ou pode ser mais prescritivo. Em ambos os casos, aqueles em situações difíceis
podem ser ajudados pela consideração de como uma variedade de teorias e
valores incidem sobre um caso e como outras pessoas que enfrentam dilemas
semelhantes chegam às decisões, bem como aprendem sobre as consequências
de tais decisões. Problemas irresolúveis, portanto, podem fornecer um terreno
especialmente fértil para as habilidades do expert em ética.

Este pode ser um ponto apropriado para notar um efeito provável


da teoria ou do pluralismo de valores. A aceitação do pluralismo pode ser
importante não apenas porque teorias diferentes pelo menos ocasionalmente
produzem recomendações diferentes no mesmo caso, mas também porque as
teorias rivais podem diferir sobre o que é considerado como um problema moral
no início (ODERBERG, 2009). Situações identificadas como problemas por uma
teoria podem não ser problemas para os defensores de outra teoria: distribuições
particulares de riqueza podem parecer profundamente problemáticas para
(alguns) consequencialistas, mas completamente aceitáveis ​​para os teóricos dos
direitos ou para consequencialistas de uma ramificação ligeiramente diferente.
Não parece haver um modo neutro de estabelecer uma lista de problemas morais,
muito menos resoluções comuns. Para os expoentes de versões radicais dessa
última preocupação, as questões atuais dos especialistas em ética aplicada podem
parecer não mais do que pontos de conflito entre posições éticas que passaram a
dominar o discurso ético público. Por ora, será importante notar que o pluralismo
provavelmente aumentará pelo menos a aparência de conflito irresolúvel.

Uma corrente comum na oposição à teoria moral é a queixa que ignora


as particularidades de casos e práticas, favorecendo universais, ao mesmo
tempo em que desconsidera a multiplicidade e a diversidade dos apegos locais
e históricos que dão sentido à vida de uma pessoa normal (HALDANE, 2002).
Pode parecer que a ética aplicada em si é uma resposta suficiente a essa crítica,
mas, obviamente, concebida como a mera aplicação de princípios gerais a casos
particulares, não consegue acalmar os antiteóricos. Além disso, alguns críticos
duvidaram, efetivamente, da genuinidade do interesse dos filósofos pela ética

200
TÓPICO 1 | A NATUREZA DA ÉTICA APLICADA

aplicada, queixando-se de que, mesmo quando os filósofos abordam problemas


morais particulares, eles tendem a se interessar pela importância do problema
para a teoria e não pelo problema em si.

Às vezes, a reclamação descrita acima parece bem direcionada. Não há


dúvida de que alguns tratamentos filosóficos de problemas específicos têm se
preocupado principalmente em refinar e melhorar as teorias gerais, em vez de
aumentar a compreensão do problema em questão. Algumas discussões sobre o
aborto, por exemplo, parecem menos preocupantes com o aborto per se do que
com o desejo de lançar mais luz sobre as complexidades das teorias de direitos
da obrigação moral. Quando eles abordam problemas morais específicos dessa
maneira, os filósofos dificilmente estão envolvidos na ética aplicada.

É suficiente dizer que os especialistas em ética aplicada devem se


proteger contra um interesse meramente instrumental nos problemas aos quais
suas habilidades são aplicadas. Estes eticistas devem abordar a teoria com a
genuína convicção de que uma ampla variedade de forças históricas, psicológicas
e culturais são claramente relevantes para qualquer compreensão crítica da
moralidade humana e que tais fatores devem ser levados em conta em qualquer
teoria adequada. A ética aplicada deve levar a sério as questões empíricas.
Ninguém que se proponha a fazer um trabalho significativo em ética aplicada ou
profissional pode fazê-lo sem primeiro adquirir amplo conhecimento empírico da
área em estudo. Novamente, estes eticistas requerem um conhecimento extensivo
dos valores, organização e práticas dos grupos ou comunidades em consideração.

8 OUTRAS CONSIDERAÇÕES
Nesta última seção, a preocupação foi de esboçar uma concepção
alternativa da teoria moral com um olho nas exigências da ética aplicada. A
concepção é pluralista, rejeita a esperança de um processo decisório universal e
mecânico, aceita a realidade de conflitos irresolúveis e reconhece a necessidade
de a teoria se basear e responder a um conhecimento empírico sólido. Pretende-se
direcionar a atenção para uma abordagem de deliberação ética e ética aplicada, e
não para qualquer teoria ou princípio normativo específico.

O objetivo aqui tem sido responder a preocupações legítimas sobre


o papel da teoria na ética aplicada de uma forma sugestiva para o papel dos
eticistas neste campo. Essa última esperança poderia ser mais claramente
realizada ligando alguns dos comentários desta última seção ao relato anterior
da expertise ética. A concepção de teoria e prática éticas, esboçada aqui,
retrata a deliberação ética não como uma questão de simplesmente aplicar
procedimentos de decisão que consistem em listas de regras fáceis de seguir,
mas como envolvendo consideração de casos particulares à luz de teorias e
princípios gerais e talvez concorrentes, de deliberações anteriores relevantes e
de conhecimento adequado das particularidades do caso. Retratamos o expert
em ética como uma pessoa qualificada em certa forma de raciocínio, que tem na

201
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

ponta dos dedos um corpo de conhecimento relevante e que está comprometido


em usar essas habilidades e conhecimentos para avaliar os pontos fortes e fracos
de argumentos e posições morais. Sua habilidade, sugerimos, era processual e
não substantiva. Reconhecendo o modo pelo qual as posições morais dependem
do apoio fundamentado, ele é habilidoso na construção e avaliação desse apoio.
Essas habilidades têm a intenção de permitir que o expert em ética responda às
exigências da ética aplicada de uma maneira que faça justiça às nossas convicções
mais firmes, ao que consideramos ser nossas melhores teorias sociais e morais e
ao que sabemos e acreditamos sobre o mundo.

É preciso lembrar que o que buscamos no final da ética aplicada são


“maneiras de continuar”. Todavia, especialmente considerando o significado de
muitas das questões que os eticistas deste campo enfrentam (às vezes, de fato,
serão questões de vida e morte), precisamos de maneiras de continuar com as
quais podemos viver como indivíduos e como comunidades. Tudo indica que
não temos verdades morais intemporais em nossas prateleiras que possam ser
aplicadas mecanicamente a casos particulares. Tampouco estamos completamente
sem recursos para construir posições morais defensáveis ​​coerentes que levem a
sério – que não ignora nem aceita sem críticas – os juízos, princípios e teorias
morais sobre os quais nossas comunidades são fundadas. Quando o fazemos
como eticistas na ética aplicada, podemos dar orientação sobre como devemos
seguir de maneiras que podemos viver como indivíduos e comunidades.

202
RESUMO DO TÓPICO 1

Neste tópico você aprendeu que:

• Existem hoje três grandes subdivisões da ética aplicada: ética biomédica; ética
empresarial e profissional e a ética ambiental.

• A ética biomédica é focada em um ambiente institucional particular e diz


respeito às práticas de um conjunto de profissões estreitamente associadas.

• A ética nos negócios é mais ampla no escopo, porque o campo dos negócios
é muito mais diversificado do que o campo da medicina. A ética ambiental
obviamente tem um alcance ainda mais amplo, incluindo as atitudes e o
comportamento de todos nós.

• A ética nos negócios e a ética ambiental têm a mesma proveniência básica que
a ética biomédica.

• Esforços para resolver problemas morais reais na medicina com alguma versão
da teoria kantiana ou utilitarista, por exemplo, confrontam-se imediatamente
com o problema da abstração e do afastamento dos princípios éticos gerais.

• A ética biomédica não é um tipo especial de ética; não inclui quaisquer
princípios ou métodos especiais específicos do campo da medicina e que não
sejam deriváveis de fontes mais gerais.

• Preocupações sobre o a-historicismo e a abstração, e os problemas de
aplicação que elas criam, produziram um poderoso ceticismo sobre a própria
possibilidade de construir uma teoria normativa perfeitamente geral.

• Uma abordagem geral para a tomada de decisão moral prática que está
atualmente ganhando força é o contextualismo.

• O contextualismo adota a ideia geral de que os problemas morais devem
ser resolvidos dentro das complexidades interpretativas das circunstâncias
concretas.

• Os filósofos morais não têm o monopólio da teorização normativa para
dar conselhos morais, não devem ser os únicos alvos críticos, ou os únicos
beneficiários de uma defesa da ética aplicada.

• Um grupo influente de desafios à ética aplicada surge de visões metaéticas


sobre a possibilidade do conhecimento moral.

203
• O subjetivismo nega ao eticista uma posição intersubjetiva a partir da qual se
possa avaliar ou emitir conselhos.

• Os antiteóricos rejeitam um quadro dedutivo e alegam que os juízos morais
não são gerados pela atenção aos princípios gerais, mas às particularidades
dos casos e situações reais.

• Os antiteóricos geralmente afirmam que as práticas devem ser avaliadas do
seu interior.

• Aceitação de alguma forma de "pluralismo de teorias" supõe que a investigação
moral adequadamente conduzida levará em conta mais de uma teoria ou
princípio de ação correta e rejeita a ideia de que há uma teoria ou princípio
exclusivamente correta.

• A deliberação moral deve ser concebida como uma questão de abordar casos
particulares à luz de teorias e princípios gerais de deliberações anteriores
relevantes e de conhecimento adequado das particularidades do caso.

204
AUTOATIVIDADE

1 Quais são as três grandes subdivisões da ética aplicada e quais são as questões
tratadas por cada uma destas subdivisões?

2 A teoria desenvolvida por Tom Beauchamp e James Childress é composta


por três princípios fundamentais. Quais são estes princípios?

3 Qual é a ideia geral que o contextualismo adota no campo da ética aplicada?

4 Descreva ao menos duas críticas ao relativismo cultural no campo da ética


aplicada.

5 Qual seria a alegação de um subjetivista ético em desafio a ética aplicada?

205
206
UNIDADE 3
TÓPICO 2

BIOÉTICA

1 INTRODUÇÃO

A bioética (como a etimologia de suas raízes gregas implica: bios significa


vida) é o estudo de questões éticas que surgem na prática das disciplinas
biológicas. Estas incluem medicina, enfermagem, outras profissões de saúde,
incluindo medicina veterinária e outras ciências biológicas ou da vida. A bioética
é uma "ética aplicada" no sentido de que é o estudo de questões éticas que surgem
ou que podem surgir, no contexto de atividades reais. Embora a ética médica e
de outras áreas da saúde seja um componente importante da bioética, ela é hoje
amplamente reconhecida – embora não universalmente – como se estendendo
além da ética da saúde, incluindo não só a ética da pesquisa em ciências da vida,
mas também:

• Ética ambiental, abrangendo áreas como poluição ambiental e consideração


das relações adequadas entre humanos, outros animais e o resto da natureza.
• Questões éticas de sexualidade, reprodução, genética e população.
• Várias questões morais sociopolíticas, incluindo os efeitos adversos na saúde
das pessoas em situações de desemprego, pobreza, discriminação (incluindo
sexismo e racismo), crime, guerra e tortura.

Além da amplitude do assunto, a bioética é caracterizada pela ampla


variedade de pessoas e disciplinas ativamente envolvidas. Além dos profissionais
relevantes, como médicos, enfermeiros e cientistas da vida, e seus pacientes e
sujeitos de pesquisa, as disciplinas acadêmicas envolvidas na bioética incluem
a filosofia moral, a teologia moral e o direito (talvez as "três grandes" disciplinas
da bioética); economia; psicologia; sociologia; antropologia e história. E, claro,
o público em geral, tanto como indivíduos quanto vários grupos de interesse,
representantes políticos e a mídia, cada vez mais se interessam diretamente por
questões bioéticas.

2 NOTAS HISTÓRICAS SOBRE BIOÉTICA


O termo "bioética" parece ter sido inventado – ou pelo menos usado pela

207
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

primeira vez – em 1970 por um biólogo americano e pesquisador de câncer, Van


Rensselaer Potter (2016), da Universidade de Wisconsin. No entanto, a palavra
também foi usada, aparentemente de forma independente, pouco depois e num
sentido um pouco diferente, por um fisiologista e obstetra holandês trabalhando
em Washington, DC, Andre Hellegers e outros que com ele fundaram o Instituto
Kennedy de Reprodução Humana e Bioética na Universidade de Georgetown,
em 1971 (GOLDIM, 2006). Van Rensselaer usou o termo para se referir a uma
nova disciplina que combina conhecimento biológico com um conhecimento
de sistemas de valores humanos, que construiria uma ponte entre as ciências
e as humanidades, ajudaria a humanidade a sobreviver e sustentar e melhorar
o mundo civilizado (POTTER, 2016). Hellegers e seu grupo, por outro lado,
usaram o termo mais estreitamente para aplicar à ética da medicina e da pesquisa
biomédica – e, de fato, ao relatar essas duas concepções diferentes, Warren Reich
(1978), editor da massiva Enciclopédia de Bioética, diz para nós que, quando foi
planejada pela primeira vez em 1971, deveria ter sido chamado de Enciclopédia de
Ética Médica.

Essa divisão e debate são instrutivos de várias maneiras sobre a disciplina


da bioética. Em primeiro lugar, recorda que um componente importante do
campo da bioética é a ética médica e outro a ética da saúde. Em segundo lugar,
mostra que há discordância substancial sobre até que ponto na ética aplicada
geral pode ser estendida à disciplina de bioética. Em terceiro lugar, indica os
principais desenvolvimentos dentro do campo mais restrito da ética médica que
estava ocorrendo na década de 1960, na década anterior a esse debate. Antes
da década de 1960, a abordagem tradicional da ética médica, que era então
amplamente limitada a questões éticas surgidas na prática clínica médica, era
para os médicos em treinamento serem informados ou, até mesmo, simplesmente
esperar que captassem do exemplo de seus superiores quais eram as normas
de conduta profissional. Os médicos eram recompensados ​​pela aceitação
profissional se eles se comportassem "apropriadamente" e fossem punidos por
sanções que variavam de desaprovação expressa através de repreensões a, na pior
das hipóteses, expulsão da profissão se transgredissem essas normas (PESSINI;
BARCHIFONTAINE, 2007).

Nos anos 1960, a essa contínua norma de "profissionalização" começaram


a ser adicionados outros componentes. O primeiro foi o envolvimento de
"forasteiros" no mundo anteriormente fechado da medicina, tais como filósofos,
teólogos, advogados, sociólogos e psicólogos que investigam a profissão médica e
oferecem seus conhecimentos e suas opiniões. O segundo, foi o início concomitante
de aceitação dentro da profissão médica de que os insights oferecidos a partir
dessas diferentes perspectivas externas poderiam ser úteis no desenvolvimento
da medicina. O terceiro foi uma crescente percepção de que a ética médica
precisava estender sua esfera de interesse para além do encontro clínico em
questões mais amplas de ética social em contextos como distribuição justa e
benéfica de instalações de saúde dentro das sociedades – áreas de preocupação
direta e necessária em países como o Reino Unido com seus serviços nacionais de
saúde existentes – e de possível preocupação em países como os Estados Unidos,

208
TÓPICO 2 | BIOÉTICA

com sua provisão comparativamente baixa para aqueles que não podiam pagar
pelos serviços de saúde (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2007; DRANE; PESSINI,
2005).

Assim, no final da década de 1960, a própria ética médica começava a


mudar, deixando de estar quase inteiramente preocupada com regras éticas e
códigos de conduta que governam os médicos, incluindo também aspectos
éticos de saúde e doença na sociedade. E também começava a aceitar, ainda que
com cautela e hesitação, que pessoas e disciplinas, além de médicos e medicina,
poderiam ter coisas instrutivas e úteis a dizer sobre a ampla área de assunto da
ética médica. Em outras palavras, a ética médica tradicional estava começando a
abranger os dois aspectos da nova bioética: a abordagem filosófica mais crítica,
analítica e multidisciplinar das questões éticas que surgem na prática clínica da
medicina, e a compreensão de que novos desenvolvimentos dentro da medicina
e das ciências da vida estavam levantando questões éticas para a sociedade como
um todo. Além disso, uma terceira vertente da atividade bioética começava a
ser reconhecida por alguns médicos e outros profissionais de saúde, o senso de
obrigação de se envolver na tentativa de remediar fatores sociais que afetavam
negativamente a saúde das pessoas – seja por meio de fatores de estilo de vida,
como dieta pouco saudável, tabagismo e falta de exercícios; poluição ambiental
e outros riscos ambientais; superpopulação; ou, ainda mais politicamente
contencioso, desemprego, pobreza, crime e guerra em suas várias formas
(LEPARGNEUR, 2004).

Subjacente a todas essas várias vertentes da bioética de suas origens recentes


está uma distinção adicional, às vezes, clara, e, por vezes, difusa. A distinção entre
a bioética definida anteriormente como a atividade intelectual de estudo, reflexão
e investigação sobre uma série de questões éticas e a bioética como uma atividade
de reforma destinada a alcançar reformas morais substantivas, tanto a nível
pessoal como político (exemplos podem ser a exposição pública de práticas de
saúde inaceitáveis, maior fortalecimento dos direitos dos pacientes ou a abolição
de armas nucleares ou minas terrestres). Embora seja provavelmente verdade que
a maioria das pessoas que buscam a bioética contemporânea seja pelo menos em
parte motivada por um desejo de mudar o mundo para melhor, há também uma
divisão bastante clara entre elas. Há aqueles que o fariam pela busca e promoção
de ideias, argumentos e modos de pensar e aqueles que acrescentariam a essas
atividades intelectuais a exortação, a pressão emocional e a atividade política em
vários níveis. Não está claro se o termo "movimento da bioética", que aparece
ocasionalmente na literatura, destina-se a ser aplicado a ambos os grupos de
pessoas ou mais estreitamente ao último grupo de reformadores (HOLLAND,
2008; CLOTET, 2006).

A explosão de interesse em ética médica e bioética na década de 1970 foi


mais marcante nos Estados Unidos, onde, além do Hastings Center (fundado em
1969, originalmente como Instituto de Ética da Sociedade e Ciências da Vida, iniciou o
Hastings Center Report em 1971) e do Instituto Kennedy, fundado na Universidade
de Georgetown, em 1971, muita atividade acadêmica foi desenvolvida em

209
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

universidades e institutos privados (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2007).

No entanto, embora à frente do campo, os Estados Unidos não estavam


sozinhos nesse desenvolvimento, e a atividade crítica de ética médica também
estava começando a ser generalizada na Europa. Em 1963, no Reino Unido, foi
fundada a multidisciplinar London Medical Group e seus sucessores, a Society for
the Study of Medical Ethics e o Institute of Medical Ethics (IME). Começando com
grupos de discussão e grupos de estudo nas faculdades de medicina do Reino
Unido, o IME fundou seu Journal of Medical Ethics em 1975 e seu Boletim de Ética
Médica (posteriormente tornando-se independente do IME) em 1985 (PESSINI;
BARCHIFONTAINE, 2007; DRANE; PESSINI, 2005).

Cursos acadêmicos em ética médica e mais tarde em ética da saúde
começaram em 1978 e começaram a florescer na década de 1980. Desenvolvimentos
similares nos anos 70 ocorreram na Holanda e outros países do Benelux e nos
países nórdicos. O desenvolvimento da ética médica crítica surgiu um pouco
mais tarde na Alemanha, em países do antigo bloco soviético e no sul da Europa.
Em cada um destes três grupos, diferentes explicações são oferecidas para o início
relativamente tardio da bioética moderna. Na Alemanha, as experiências da era
nazista criaram uma relutância generalizada em discutir crítica e abertamente
(e não com oposição simples e firme) algumas das questões abordadas na
"nova" ética médica – como a experimentação em seres humanos; eutanásia;
aborto, especialmente para defeitos genéticos; esterilização, especialmente sem o
consentimento informado do paciente; e a "nova genética" com todos os seus ecos
percebidos da eugenia. De fato, na Alemanha, uma hostilidade positiva cresceu
em direção à nova "bioética” como resultado de protesto e ameaças estridentes
das minorias (CLOTET, 2006).

Nos países católicos romanos, a ética médica crítica também demorou a


decolar. Uma das razões era que a ética médica católica romana já estava bem
estabelecida como um aspecto importante da educação médica em muitas escolas
médicas que estavam dentro da tradição católica. Lá, a ética médica ensinada era
"em grande parte um ramo da teologia moral católica tradicional" (BLOMQUIST,
1978, p. 982), e levou algum tempo para que tal ensinamento se adaptasse ao novo
modo de ética filosoficamente crítica. Ligações semelhantes entre a ética médica
e a cultura religiosa prevalecente existiam onde as escolas médicas estavam
intimamente integradas dentro de outras tradições religiosas.

Assim, os médicos que compartilhavam as tradições religiosas muitas


vezes não sentiam necessidade de acomodar a nova abordagem crítica ao ensino
de ética médica, que poderia ser percebida como ameaçadora, enquanto os
médicos que não compartilhavam a religião muitas vezes se afastaram da ética
médica, percebendo ser um disfarce para a imposição de uma postura religiosa
particular que eles não compartilhavam. Alguns desses médicos foram ainda
mais longe na rejeição da ética médica; participando do espírito penetrante
do positivismo científico do pós-guerra, viam a medicina cada vez mais como
ciência do que como arte, e viam a ciência como um empreendimento livre de

210
TÓPICO 2 | BIOÉTICA

valor. A ética, portanto, não teria nada a ver com a ciência e, de fato, para alguns
dos positivistas mais extremados, a ética era, em todo caso, estritamente absurda
(PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2007).

Finalmente, no que costumavam ser os países da “Cortina de Ferro, o estudo


da nova ética médica crítica também demorou a decolar, sendo desencorajado
primariamente pela ortodoxia predominante do marxismo-leninismo, em que
a prática médica era uma função do Estado no desenvolvimento e manutenção
do comunismo. A oposição clandestina à ideologia marxista por muitos médicos
nesses países que continuaram a aderir ao catolicismo romano ou às crenças
cristãs ortodoxas e suas normas éticas médicas também não foi favorável à nova
ética médica crítica (DRANE; PESSINI, 2005).

Em outras partes do mundo, incluindo a África e a Ásia, a bioética também


demorou a se desenvolver, mas na década de 1990 a nova área multidisciplinar
de pesquisa e estudo tornou-se um fenômeno mundial.

3 QUESTÕES SUBSTANTIVAS EM BIOÉTICA


Como já foi indicado, a gama de questões substantivas agora consideradas
como substratos legítimos para a bioética é vasta. Nesta seção vamos explorar
algumas destas questões para introduzir as tensões elaboradas ao longo dos anos
de pesquisa em bioética.

Em um extremo da escala estão as questões morais decorrentes da relação


entre pacientes e seus médicos, enfermeiros ou outros profissionais de saúde.
Estes incluem o seguinte:

• Questões de paternalismo. É moralmente aceitável que os médicos façam


coisas aos pacientes para tentar beneficiá-los sem obter o consentimento
informado dos pacientes? Quem deve decidir o que é melhor para o paciente
se um paciente e seu médico discordarem? No que diz respeito às decisões
dos pacientes, existe uma diferença moralmente relevante quando um paciente
recusa um tratamento e quando um paciente exige um tratamento?
• Questões de confidencialidade. É moralmente legítimo revelar informações
resultantes da consulta sem o consentimento do paciente? Em caso afirmativo,
em que circunstâncias e por quê?
• Questões de honestidade e engano. Quando e por que, se, de fato, um médico
ou enfermeiro pode mentir ou enganar deliberadamente um paciente?
• Problemas decorrentes da autonomia prejudicada ou inadequada do paciente.
Quando e por que as crianças em vários estágios de desenvolvimento devem
tomar suas próprias decisões sobre saúde? Quando não deveriam, quem
deveria fazê-lo em seu nome, usando que critérios e por quê? Como as decisões
devem ser tomadas em nome de adultos que são mentalmente debilitados
ou transtornados, temporária ou permanentemente, e por quem? Pode um
grande sofrimento prejudicar suficientemente a autonomia de um paciente

211
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

para justificar a recusa de tratamento? Pode a autonomia de pacientes idosos e


vulneráveis ser legitimamente anulada em seus interesses? Em caso afirmativo,
em que circunstâncias, como e por quê?

Outras tensões surgem nas questões de vida e morte. Exemplos de


questões são as seguintes.

Seria o aborto justificado e, em caso afirmativo, em que circunstâncias


e por quê? Como as tensões morais entre os interesses de uma mulher grávida
e as de seu feto – ou filho não nascido – podem ser resolvidas adequadamente
quando surgem? Por quê? O status moral do embrião humano, feto ou recém-
nascido é diferente do status moral dos seres humanos mais desenvolvidos? Por
quê? É moralmente justificado matar pacientes? É sempre moralmente justificado
permitir que eles morram? Existe alguma distinção moralmente relevante a ser
feita entre matar e permitir morrer? Por quê? O que é morrer? Seria a "morte
cerebral", com o resto do corpo aparentemente vivo como resultado de ser
sustentado por um ventilador e outras intervenções, moralmente equivalente à
morte no sentido usual, em que, assim como a morte cerebral, a ação do coração
e a respiração também cessaram? Quais são as obrigações morais do médico
para pacientes diagnosticados como permanentemente inconscientes, mas não
com morte encefálica, por exemplo, pacientes em estado vegetativo persistente
ou "permanente"? Até que ponto os médicos são obrigados a tentar manter os
pacientes vivos quando a probabilidade de recuperação é muito baixa? Por quê?
O que deve contar como "recuperação"? Por quê?

No âmbito das tensões entre os interesses do paciente e os interesses


de outros também emergem questões relevantes para a bioética. Exemplos de
questões são as seguintes.

Os médicos devem sempre dar prioridade moral aos melhores interesses


do paciente individual com quem eles estão interessados, ou os interesses de outros
às vezes podem ter precedência? Em caso afirmativo, em que circunstâncias e por
quê? Exemplos específicos de tais tensões incluem emergências versus consultas
ou operações de rotina, e muitas outras situações em que pessoas de fora têm
necessidades maiores do que o paciente do momento. Pesquisa médica, em que
os interesses de futuros pacientes podem entrar em conflito com os melhores
interesses do paciente do momento. Promoção da saúde e prevenção de doenças,
em que as necessidades daqueles que não estão atualmente doentes podem
entrar em conflito com as necessidades daqueles que estão. E as exigências da
educação médica, tanto de graduação quanto de pós-graduação (por exemplo,
a necessidade de ensinar os alunos a examinar os pacientes e a executar vários
procedimentos, inclusive operações).

Obviamente, as tensões entre os interesses do paciente individual e dos


outros surgem cada vez mais no contexto da disponibilidade inadequada de
recursos para atender às necessidades médicas. Os médicos devem participar do
racionamento de recursos inadequados para seus pacientes individuais? Se sim,

212
TÓPICO 2 | BIOÉTICA

por que e usando quais critérios e processos? Se não, quem deve executar tal
racionamento, por que e usando quais critérios e processos?

Ao fazer perguntas como esta, a necessidade de afastar-se do ambiente


médico-paciente torna-se particularmente óbvia. A distribuição de recursos
escassos é um problema em vários níveis, dos quais apenas um é na interação
médico-paciente (a chamada microalocação de recursos). No outro extremo
do espectro, os governos devem decidir quanto de seus orçamentos nacionais
disponíveis para alocar aos cuidados de saúde, em vez de outros programas de
assistência social, educação, defesa ou artes (macroalocação).

Entre esses dois extremos do espectro de alocação estão as decisões de
distribuição no nível organizacional: entre diferentes tipos de cuidados de saúde
e outras atividades relacionadas à saúde, incluindo ensino e pesquisa; entre
diferentes hospitais ou organizações de atenção primária; e entre diferentes
setores e grupos dentro das organizações. Aqui, a bioética torna-se relevante nos
níveis sociais e organizacionais, e não no nível do encontro clínico. Em todos esses
níveis, no entanto, há necessidade de ferramentas teóricas básicas. No contexto da
distribuição justa de recursos escassos, por exemplo, existe a necessidade de uma
teoria de trabalho aceitável – ou teorias de trabalho – de justiça. Como os agentes
relevantes devem decidir que essa maneira de distribuir recursos escassos é justa
e que outra é injusta?

No desenvolvimento de ferramentas teóricas básicas, a análise conceitual


do significado – ou, mais frequentemente, dos significados – de um conceito
ou conjunto de conceitos é claramente um componente fundamental. Como
exemplos óbvios, o que significam os termos doença, saúde, vida, ser humano,
pessoa, morte, morte cerebral e estado vegetativo? Qual é a diferença, se houver,
entre o significado de "ser humano" e o de "pessoa humana"? O que significa
necessidades, direitos, deveres e obrigações? O que se entende por benefício e
danos nos cuidados de saúde? O que é justiça nos cuidados de saúde? O que é
autonomia e quais são as distinções conceituais entre ela e o respeito à autonomia?
O que se entende por "cuidado" no contexto dos cuidados de saúde? O que
se entende por "virtude" no contexto da teoria da virtude, ou por "natureza" e
"natural" quando o natural é exaltado e o antinatural é contraposto?

Embora a bioética tenha começado com a análise crítica de questões éticas


decorrentes de encontros clínicos, o ímpeto intelectual interno desse esforço
analítico a levou muito além de seus pontos de partida. O mesmo pode ser dito
da análise crítica de questões morais decorrentes da ciência médica. Pelo menos
as questões éticas da medicina no século XIX incluíam questões éticas da ciência
médica, questões fundamentalmente éticas relativas ao tratamento de sujeitos
humanos (e até certo ponto animais) da experimentação (LEPARGNEUR, 2004).

A este aspecto da ética médica foi dado um intenso ímpeto após a


Segunda Guerra Mundial pelas revelações em Nuremberg de atrocidades por
médicos nazistas. Isso rapidamente levou, por meio da recém-criada Associação

213
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

Médica Mundial (AMM), a um acordo internacional conhecido como Declaração


de Helsinque, no qual foram consagrados os princípios de que o consentimento
informado deveria ser obtido dos sujeitos de pesquisa e que os interesses de cada
paciente individual nunca deveriam ser subordinados aos interesses da sociedade
(DRANE; PESSINI, 2005).

Desde então, as explorações cada vez mais surpreendentes da ciência e,


recentemente, especialmente das ciências biológicas no contexto do transplante de
órgãos e engenharia genética, também empurraram as preocupações da bioética
para muito além de seu ponto de partida dentro das ciências médicas.

Independentemente das análises de dano-benefício, respeito às pessoas e


suas escolhas, e justiça no contexto da alocação justa de recursos escassos, respeito
aos direitos das pessoas e respeito pelas leis justas, algumas vertentes da bioética
tornaram-se preocupadas com o natural e não natural. Isto é, com os efeitos da
ciência e da tecnologia no meio ambiente e na biosfera, e com uma avaliação
crítica dessa versão do ethos científico, cujo autoproclamado reducionismo e
liberdade de valores é percebido como mais uma ameaça do que um benefício
para a humanidade.

Tais críticas em bioética incluem preocupações sobre a "nova genética",


transplante de órgãos, especialmente o uso projetado de órgãos animais, e os
esforços cada vez maiores da medicina "high-tech" e dos equipamentos médicos
e indústrias farmacêuticas para desenvolver métodos para prolongar a vida
“natural” dos seres humanos. Às vezes, tais críticas são baseadas em custos
excessivos, às vezes, em sua "artificialidade" e, às vezes, como parte de uma
preocupação mais ampla sobre a sustentabilidade ambiental do crescimento
contemporâneo de intervenções científicas e tecnológicas e seus potenciais danos
à integridade dos ambientes da Terra ou de Gaia (LOVELOCK, 1995).

Surgindo de raízes anteriores, com as do transcendentalismo e idealismo


de Thoreau, Emerson e Aldo Leopold, desenvolveu-se um extenso movimento
contemporâneo de ética ambiental, como vemos em Attfield (1983); Callicott
(1987, 1989, 1990); Hargrove (1989); Johnson (1991); Naess (1989); Taylor (1986).
Grande parte desse movimento de ética ambiental considera-se parte da bioética,
ou, como no caso da Ecologia Profunda (NAESS, 1989) e outras perspectivas
éticas ecocêntricas do meio ambiente, considera a bioética como parte dela.

Não contente com a limitação do alcance de grande parte da preocupação


ética tradicional aos interesses dos agentes morais, potenciais agentes morais ou
seres humanos (antropocentrismo), a ética ambiental busca expandir o escopo
da preocupação ética. O desacordo surge quanto ao que deve ser incluído como
tendo status moral – seriam todos os animais sencientes, todos os animais vivos,
ou todos os seres vivos, incluindo plantas (ética ambiental biocêntrica), ou as
entidades inanimadas também devem ser incluídas no âmbito da preocupação
ética? Por exemplo, a biosfera como um todo, ecossistemas, espécies, terra, água
e ar (ética ambiental ecocêntrica).

214
TÓPICO 2 | BIOÉTICA

Intercaladas com variedades da ética ambiental estão as variedades da


ética ambiental feminista, das quais um grupo – ecofeminismo – afirma que
teorias adequadas tanto para o feminismo quanto para a ética ambiental precisam
entender as conexões entre mulher e natureza e entre a dominação das mulheres
pelos homens e da natureza pelo homem.

Assim, o leque de questões substantivas abrangidas pela bioética é de fato


vasto, e alguns defendem que a área de estudo e a disciplina sejam explicitamente
subdivididas em subdisciplinas relevantes. Uma proposta é a subdivisão da
bioética em bioética teórica, preocupada com os fundamentos intelectuais
da bioética; bioética clínica, preocupada com questões éticas decorrentes
das interações entre pacientes e pessoas que cuidam de sua saúde; bioética
regulatória e política, preocupada com regras, regulamentos e leis no contexto da
bioética; e a bioética cultural, que procura "sistematicamente relacionar a bioética
com o contexto ideológico cultural e social histórico no qual ela é expressa"
(CALLAHAN, 1995, p. 247).

4 ABORDAGENS DISCIPLINARES DA BIOÉTICA


A seguir, algumas generalizações sobre várias abordagens disciplinares à
bioética são feitas sem as qualificações, muitas vezes extensas, que elas merecem.
Esta é uma armadilha intrínseca dentro do empreendimento de apresentar
apenas uma visão panorâmica do tema em um único tópico. As visões gerais
oferecem apenas impressões e convidam à reflexão, juntamente com críticas e
análises, incluindo a necessidade de posteriores pesquisas e estudos de temas
específicos relevantes. As disciplinas delineadas aqui são clínicas, científicas,
religiosas, legais, sociológicas e psicológicas.

4.1 ABORDAGENS CLÍNICAS


Caracterizada pelo imediatismo das questões éticas, um relacionamento
pessoal muitas vezes semelhante à amizade ou mesmo ao amor – um
relacionamento descrito por Campbell (1984) como, na melhor das hipóteses,
"amor moderado" –, abordagens clínicas à bioética tendem a ser altamente
particulares, situacionais, contextual e parcial em ambos os sentidos do termo.
Aspectos positivos das abordagens clínicas à bioética no seu melhor incluem o
compromisso ético típico do clínico com o paciente individual, um compromisso
que idealmente reúne todos os envolvidos na assistência médica do paciente;
consciência detalhada dos problemas e situações individuais do paciente; e
capacidade e prontidão para aproveitar a experiência clínica para fins preditivos
e gerenciais. As abordagens clínicas à bioética são talvez as mais antigas e
firmemente estabelecidas, decorrentes da existência e natureza da própria prática
clínica e das primeiras obrigações deontológico-médico-morais codificadas. De
fato, aspectos do Juramento de Hipócrates da Grécia clássica continuam sendo

215
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

partes integrantes dos códigos internacionais e nacionais contemporâneos da


ética médica, e também no centro da ética clínica contemporânea.

Na pior das hipóteses, abordagens clínicas à bioética podem não ter


fundamentos teóricos, tanto científicos quanto éticos. Elas podem sucumbir
à potencial injustiça inerente à parcialidade excessiva em nome do paciente
individual. Paternalismo excessivo é um risco moral sempre presente, com
pacientes sendo tratados como crianças pequenas e fazendo coisas para eles sem
consulta adequada para o que seus médicos consideram como bem do próprio
paciente. E a ética clínica é vulnerável à inconsistência de abordagem, com a
ação, por vezes, sendo variavelmente determinada pela postura, personalidade,
conhecimento, habilidades e atitudes do clínico individual. As abordagens
clínicas variam não apenas entre clínicos individuais e entre clínicos de diferentes
culturas, mas também entre tipos de clínicos, por exemplo, entre médicos e
enfermeiros. Essas variações e os conflitos que os acompanham podem, quando
mal administrados, causar confusão, angústia e danos ao paciente, mesmo
quando todos os médicos acreditam que estão agindo de acordo com os melhores
interesses do paciente.

4.2 ABORDAGENS CIENTÍFICAS


Tipicamente manifestada por pesquisadores médicos, as abordagens
científicas à bioética objetivam ser tão consistentes quanto possível com evidência
e teoria cientificamente estabelecidas. Na melhor das hipóteses, quando se
concentram no desenvolvimento de novos tratamentos e métodos de diagnóstico e
na avaliação rigorosa da eficácia dos tratamentos e métodos existentes, beneficiam
os pacientes protegendo-os de "remédios" e outras intervenções não comprovadas
e potencialmente perigosas e protegem os pacientes futuros insistindo em sujeitar
possíveis intervenções à avaliação científica (especialmente, no contexto do
desenvolvimento de novos medicamentos, pelo uso do que os cientistas médicos
da segunda metade do século XX consideraram como o “padrão ouro” de tal
avaliação, o estudo clínico randomizado controlado).

Na pior das hipóteses, as abordagens científicas à bioética têm uma série


de falhas, muitas delas decorrentes de um reducionismo pelo qual as pessoas e
suas atividades, pensamentos e sentimentos são reduzidos a combinações mais
ou menos complexas de componentes e processos cientificamente analisados.
Quando os médicos adotam essa abordagem (e muitos médicos contemporâneos
e cada vez mais enfermeiros também são cientistas, engajados em pesquisas
científicas), os pacientes podem ser desagradavelmente confrontados com o que,
no jargão popular, é chamado de "atitude clínica" – legal, imparcial e investigativa,
tratando pacientes como problemas biofísicos a serem resolvidos, e não como
pessoas com problemas a serem resolvidos. Tais abordagens não têm tempo para
remédios não comprovados, mesmo que os pacientes acreditem que sejam úteis,
e frequentemente envolvem rejeição hostil de abordagens de saúde "alternativas",
como acupuntura e osteopatia, na ausência de evidências científicas de eficácia.

216
TÓPICO 2 | BIOÉTICA

Nesse e em outros contextos, abordagens científicas a métodos de avaliação que


não envolvam mensurações científicas – incluindo avaliações religiosas, espirituais
e estéticas – são, na pior das hipóteses, altamente intolerantes e desrespeitosas.

Finalmente, um concomitante não incomum de uma certa abordagem


científica à bioética é a assimilação, e mesmo a identificação, da ética com
interpretações da teoria científica da evolução. A sobrevivência do mais apto, do
"gene egoísta", torna-se não apenas a explicação genética para o desenvolvimento
da ética na humanidade, mas também seu, suposto conteúdo substantivo
reducionista.

4.3 ABORDAGENS RELIGIOSAS


Embora seja ainda mais difícil generalizar sobre as abordagens religiosas
à bioética, alguns pontos positivos e negativos amplos podem ser discernidos. Na
melhor das hipóteses, as religiões oferecem uma base sólida de posturas éticas
gerais positivas firmemente estabelecidas, nas quais as pessoas são educadas para
ter obrigações éticas gerais e específicas, claras e substantivas, cuja realização é
um dever religioso. Obrigações bioéticas estão situadas dentro dessas obrigações
gerais. O respeito moral pela criação de Deus – o universo e tudo o que existe
– é um tema e uma obrigação religiosa comum, e as obrigações bioéticas são
abrangidas por esse respeito, às vezes sob a obrigação específica de mordomia
para essa criação.

A beneficência aos outros é uma obrigação religiosa comum, apoiada pela


obrigação moral de aprender a superar ou moderar o interesse próprio por uma
preocupação em ajudar os outros. A simples distribuição de recursos escassos
que visam ajudar não apenas os parentes e correligionários, mas também todos
os que têm mais necessidade do que o próprio eu, é outra preocupação religiosa
generalizada de óbvia relevância no contexto da bioética. O reconhecimento do
livre-arbítrio como uma característica da humanidade e uma preocupação de nutrir
e respeitar é temperado pela obrigação de amar a Deus, ajudar os necessitados e
tratar todas as pessoas como de igual importância moral – novamente posições
morais substanciais de relevância potencial óbvia para bioética.

Na análise de questões bioéticas particulares, os pensadores religiosos e


suas propostas têm sido altamente influentes não apenas por seus correligionários,
mas também pelos de outras religiões e arreligiosos. Exemplos incluem análises
religiosas de meios ordinários e extraordinários no contexto do prolongamento
da vida; do significado da intenção na análise moral da ação; e da importância
potencial de distinguir entre atos e omissões, especialmente em contextos onde
a ausência de obrigações morais prévias específicas de beneficência não nega as
obrigações morais gerais de não-maleficência.

Além disso, as abordagens religiosas tendem a combinar, dentro da


moralidade prática, a necessidade de princípios morais gerais com a necessidade

217
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

de aplicações específicas desses princípios gerais (casuística); a necessidade de


combiná-los com obrigações de educar o caráter para se comportar bem (ética da
virtude); e a necessidade de fazer julgamentos morais específicos somente após
cuidadosa atenção às histórias das pessoas envolvidas e aos detalhes do contexto
específico (ética narrativa). De fato, os bioeticistas religiosos, de diferentes
religiões, podem suspirar cansados, mesmo com impaciência, ao verem muitas
das rodas da bioética sendo laboriosamente e separadamente reinventadas pelos
pensadores seculares contemporâneos.

Por outro lado, na pior das hipóteses, as abordagens religiosas à bioética


são intolerantes, às vezes até fanaticamente rígidas quanto às doutrinas recebidas
– de qualquer variedade que elas sejam – e incapazes de se ajustarem a novos
desenvolvimentos ou a diferentes perspectivas morais, embora conscientemente
e cuidadosamente mantidos e defendidos, que se opõem aos seus.

4.4 ABORDAGENS LEGAIS


Amplamente reconhecidas (com a exceção de alguns positivistas legais)
de se basearem em obrigações morais, as abordagens legais à bioética tendem a
refletir as normas morais das sociedades envolvidas. Na melhor das hipóteses,
essas abordagens legais estão imbuídas de uma preocupação com o benefício
e a harmonia da sociedade, além de fortes compromissos com a igualdade de
todos perante a lei. Tais abordagens legais consagram os direitos dos fracos
contra serem explorados e prejudicados pelos poderosos, e os direitos do
indivíduo contra serem vitimados, seja por outros indivíduos, por grupos
ou pelo estado. De fato, as contribuições legais contemporâneas à bioética
têm sido fortes no desenvolvimento de teorias da justiça baseadas em direitos
como base para a bioética. Em suas melhores versões, as abordagens jurídicas à
bioética argumentam cuidadosamente os prós e contras das questões bioéticas
contenciosas e as resolvem de maneira a respeitar, na maior medida possível,
as visões morais conflitantes e cuidadosamente ponderadas, representadas nas
sociedades relevantes.

Na pior das hipóteses, abordagens legais à bioética facilitam e aumentam


a opressão do Estado – por exemplo, sob o Nacional-Socialismo Alemão em
relação à eutanásia compulsória e à experimentação humana, e sob o Comunismo
Soviético em relação ao uso indevido de psiquiatria contra dissidentes políticos.

4.5 ABORDAGENS SOCIOLÓGICAS


Vendo-se como cientistas das sociedades, os cientistas sociais (sociólogos)
tendem a tentar abordar a bioética no modo científico descritivo, explicando como
os fatores sociais resultam nas características bioéticas substantivas de diferentes
sociedades e agrupamentos sociais. Na melhor das hipóteses, tais abordagens

218
TÓPICO 2 | BIOÉTICA

ajudam a ampliar o olhar da bioética, de modo a olhar e compreender não apenas


as questões éticas decorrentes das relações pessoais dos indivíduos, mas também
as questões éticas decorrentes das características sociais que causam danos e
doenças.

Na pior das hipóteses, as abordagens sociológicas à bioética podem


subestimar a importância moral dos indivíduos como agentes morais e combinar
uma abordagem descritiva supostamente isenta de valores para o funcionamento
social. Nesta, todas as perspectivas sobre a moralidade são supostamente iguais
ou inexistentes, com uma posição política simultaneamente prescritiva.

4.6 ABORDAGENS PSICOLÓGICAS


Vendo-se, em sua maior parte, como cientistas das psiques individuais,
na melhor das hipóteses os psicólogos em suas abordagens à bioética elucidam-
na mostrando como os indivíduos desenvolvem suas posturas pessoais em
relação às questões morais. Deste modo, eles facilitam o autoentendimento,
bem como a compreensão dos outros, por todos os envolvidos nas questões da
bioética. Especialmente um entendimento de que muito da postura pessoal de
um indivíduo para questões éticas, incluindo bioéticas é uma função emocional
ou outra não intelectual, aspectos de sua psique decorrentes da personalidade e
das influências ambientais, incluindo as da primeira infância. O raciocínio ético é
reconhecido como sendo apenas um componente da postura ética de uma pessoa
– um componente que, se não necessariamente o escravo das paixões, como
alegava Hume, é pelo menos fortemente influenciado por aspectos não racionais
da mente.

Na pior das hipóteses, as abordagens psicológicas à bioética também


podem manifestar uma abordagem relativista e determinista da moralidade. Nesta
perspectiva, o posicionamento moral de qualquer indivíduo é visto inteiramente
como uma função de influências além de seu controle, uma abordagem que tende
a negar qualquer propósito na bioética (ou mesmo em qualquer empreendimento
humano).

5 PRINCÍPIOS ÉTICOS FUNDAMENTAIS EM BIOÉTICA


Além de ser abordada a partir de muitas perspectivas disciplinares
diferentes, a bioética é abordada a partir de uma variedade de princípios teóricos
fundamentais, especialmente pressupostos ético-filosóficos fundamentais.
Tipicamente articulados por filósofos independentemente dos vários fundamentos
religiosos da bioética, tais pressupostos éticos fundamentais oferecem ao "eleitor
flutuante" uma base para a avaliação ética em bioética. Eles também procuram
oferecer àqueles que já estão firmemente baseados em uma fundação teórica
religiosa ou cultural, uma maneira de se comunicar sobre bioética com aqueles que

219
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

não compartilham sua religião, seja porque eles têm crenças religiosas diferentes
ou porque não têm nenhuma. Tais princípios buscam fornecer um conjunto
amplamente aceito de pressupostos teóricos éticos, uma abordagem amplamente
aceitável para a análise ética e, pelo menos, elementos de uma linguagem ética
amplamente aceita, adequada aos contextos multiculturais internacionais em que
a bioética é buscada (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2007; DRANE; PESSINI,
2005).

Mesmo reiterando as preocupações anteriores sobre os perigos da


generalização (e a leitura cuidadosa das fontes relevantes mostrará que as
generalizações que se seguem não são mais do que indicações das ênfases dos
autores relevantes), no entanto, alguns agrupamentos ou “escolas” de bioética
podem ser discernidas com base na importância que atribuem a diferentes
princípios morais para a bioética. Entre as mais importantes dessas escolas estão
aquelas que enfatizam a importância fundamental do respeito pelas pessoas e
sua autonomia; bem-estar ou maximização de outras utilidades; justiça social; os
"quatro princípios"; e uma variedade de abordagens fundamentais que rejeitam
os princípios morais como fundamentais ou os consideram inadequados – estes
incluem a casuística, a ética da virtude, a ética narrativa, várias éticas feministas
e uma crescente variedade de ética "geocultural", das quais apenas três serão
delineadas.

5.1 O PRINCÍPIO DO RESPEITO PELA AUTONOMIA


Entre as primeiras abordagens norte-americanas da bioética, várias deram
ênfase especial à importância moral fundamental do respeito à autonomia. Assim,
Veatch (1981), dentro de sua teoria do contrato social para a ética médica, enfatizava
a prioridade do respeito pela autonomia dos agentes morais. Da mesma forma
(embora por razões muito diferentes), Engelhardt (1998), desenvolvendo uma
teoria para bioética que permitiria àqueles de diferentes origens morais cooperar
em questões de bioética, enfatizava a centralidade fundamental do princípio do
respeito à autonomia (que mais tarde renomeou o princípio da permissão).

Aspectos positivos importantes de tal ênfase são o reconhecimento da
importância moral do respeito pelas pessoas, sejam elas pacientes ou não, como
fins em si mesmas, não para serem tratadas pelos outros instrumentalmente,
meramente como meios para um fim. Problemas com essa ênfase fundamental na
autonomia incluem a tendência de que isso seja interpretado como um incentivo
ao individualismo atomista, egoísta e uma falta de preocupação e cuidado com
os outros.

220
TÓPICO 2 | BIOÉTICA

5.2 O PRINCÍPIO DA MAXIMIZAÇÃO DO BEM-ESTAR


UTILITÁRIO
A maximização do bem-estar social – a obrigação de maximizar os
benefícios e minimizar os danos – é um princípio fundamental na bioética, e
no contexto da ética médica reflete a ampla obrigação percebida dos médicos
e outros profissionais de saúde de produzir o máximo de benefícios de saúde
com o mínimo dano possível. Um dos filósofos utilitaristas mais influentes (e
meticulosos) na área da bioética é R. M. Hare (2003), e pressupostos fundacionais
utilitários subjacentes podem ser encontrados no trabalho de Singer (2012) e
Harris (1985). Uma perspectiva utilitarista também é subjacente e desafiada
pela Parfit (2004). Aspectos positivos do utilitarismo para a bioética incluem sua
exigência de um dever universal de beneficiar os outros e evitar prejudicá-los, e
de fazer o máximo de bem e de menos mal possível.

Entre os problemas com o utilitarismo como fundamento moral da


bioética está a de que a "moralidade comum" geralmente a percebe como lidando
inadequadamente com vários tipos de obrigação moral. Estas incluem obrigações
resultantes de relacionamentos especiais (por exemplo, obrigações dos pais para
com seus filhos e obrigações dos médicos e enfermeiros para com seus pacientes),
como resultado de que algumas pessoas não deveriam ser tratadas meramente
como de igual importância com todos os outros, mas deveria ser dada prioridade
especial por aqueles que têm relações especiais com eles e, portanto, obrigações
especiais para com eles. Da mesma forma, os que têm grande necessidade médica
devem ser considerados prioritários em relação aos que têm menos necessidade
médica, mas a maximização do bem-estar pode estar pronta para ignorar tais
necessidades se mais benefícios forem alcançados (para outros) ao fazê-lo. E o
utilitarismo é amplamente percebido por seus oponentes como estando pronto
demais para subordinar o respeito pela autonomia dos indivíduos e outros
direitos individuais, em que o benefício máximo geral (para os outros) é alcançado
ao fazê-lo.

5.3 O PRINCÍPIO DA JUSTIÇA SOCIAL


Uma terceira base moral oferecida para a bioética é a justiça social. Tal
como acontece com os outros princípios fundamentais, uma ampla variedade de
versões de justiça social tem sido proposta, mas uma particularmente importante
na bioética é a teoria do contrato social ideal de J. Rawls (2000), incorporada por
sua teoria da justiça especificamente orientada para a saúde por Daniels (1985).
Para Rawls (2000), a teoria da justiça que as pessoas racionais chegariam atrás
de um "véu de ignorância" (isto é, imparcialmente por não saber quais seriam
seus próprios papéis ou circunstâncias sociais específicas) seria baseada em dois
princípios morais fundamentais. O primeiro seria uma obrigação de respeitar
a liberdade de todos na medida máxima compatível com o respeito igual pela
liberdade de todos. O segundo seria buscar a igualdade para todos e que as

221
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

desigualdades deliberadamente criadas seriam justas apenas se fossem para o


maior benefício dos menos favorecidos e ligados a cargos e posições abertas a
todos sob condições de igualdade justa de oportunidades (RAWLS, 2000). Daniels
(1985) enfatiza e desenvolve o componente "igualdade justa de oportunidades"
da explicação de Rawls.

As vantagens da abordagem rawlsiana incluem sua combinação de


liberdade e benefício diferencial para os mais desfavorecidos. Os problemas
incluem a rejeição direta nas teorias competitivas de justiça dos próprios princípios
rawlsianos (e sua justificativa teórica) e/ou a "ordem lexical" atribuída a eles por
Rawls (2000), pela qual a liberdade tem prioridade sobre o igualitarismo. As
teorias libertárias da justiça, por exemplo, tendem a rejeitar qualquer obrigação
de obter igualdade ou beneficiar os menos favorecidos – isso seria bom, mas não
obrigatório. As teorias socialistas marxistas da justiça subordinam a liberdade
ao encontro da necessidade e a tentativa de alcançar a igualdade. As teorias
comunitárias de justiça podem rejeitar uma abordagem rawlsiana, alegando
que ela não especifica suficientemente uma concepção positiva do bem ligada às
necessidades e interesses das comunidades humanas ou da comunidade humana.
E as teorias da justiça baseadas nos direitos podem opor-se a uma abordagem
rawlsiana, alegando que ela está inadequadamente fundamentada e apoiada nos
direitos humanos, com variações nessa oposição dependendo de quais direitos
são considerados de particular importância.

Em suma, os princípios para a bioética fundamentados em uma


preocupação moral pela justiça compartilham uma preocupação em tratar as
pessoas com justiça, mas diferem amplamente em relação à teoria substantiva da
justiça que deve ser aplicada.

5.4 UMA ABORDAGEM QUASE-FUNDACIONAL – OS


"QUATRO PRINCÍPIOS"
Uma tentativa de oferecer não uma abordagem fundacional da bioética,
mas uma abordagem que tenta combinar alguns princípios morais fundamentais
ou fundacionais de uma forma que seja compatível com uma variedade de teorias
fundamentais mutuamente incompatíveis é a abordagem dos "quatro princípios"
oferecida e desenvolvida desde a 1970 pelos norte-americanos Beauchamp e
Childress (2002), e entusiasticamente adotados e promovidos na Europa por
Gillon (1986). Desenvolvendo-se sobre uma tríade anterior de três princípios
produzidos como uma estrutura de trabalho para a ética da pesquisa médica por
um grupo de bioeticistas americanos no Relatório Belmont (JONSEN; JAMETON,
1995), eles próprios recorrendo a uma longa tradição da teoria moral pós-
iluminista, a abordagem dos quatro princípios (A4P) parte da alegação de que
a aceitação de quatro princípios morais prima facie é comum a uma ampla gama
de perspectivas teóricas sobre bioética, e também a grande parte da "moralidade
comum".

222
TÓPICO 2 | BIOÉTICA

Assim, a A4P é oferecida como uma abordagem de trabalho comum


à bioética, compatível e neutra entre uma ampla gama de teorias morais
concorrentes. Também é vista, às vezes, como uma abordagem que está entre
o nível de teorias morais relativamente abstratas (e geralmente mutuamente
incompatíveis), por um lado, e situações morais, casos, problemas e julgamentos
altamente específicos, por outro. Os princípios são respeito pela autonomia,
beneficência, não maleficência e justiça. Além disso, Gillon (1986) enfatiza a
importância da consideração do escopo de aplicação de cada um (para quem
ou o que é o dever prima facie devido, e por quê?). Embora haja pouca rejeição
substantiva de qualquer um desses princípios prima facie, a oposição à abordagem,
apelidada pejorativamente de "principialismo" ou "mantra de Georgetown", tem
sido considerável (CLOUSER; GERT, 1994; WULFF, 1994).

Críticas de princípios como fundacionais na bioética emergem de uma


variedade de escolas alternativas da bioética contemporânea. Alguns, como os
já mencionados, não rejeitam princípios, mas argumentam que estes precisam
ser fundamentados em uma teoria da ética. Assim, os utilitaristas fundamentam
seus princípios ou regras dentro do princípio geral de utilidade, ou em uma
análise lógica do significado de termos morais como "deveria" (HARE, 2003). Os
kantianos fundamentam seus princípios, regras ou máximas em uma teoria moral
kantiana. E muitas religiões baseiam seus próprios princípios bioéticos dentro de
sua própria estrutura ética religiosa.

5.5 CASUÍSTICA
A escola da casuística recentemente revivida não apenas aponta que a
confiança em princípios morais potencialmente conflitantes muitas vezes falha
em fornecer um procedimento de decisão para quando esses princípios conflitam
em contextos específicos, mas também acrescenta que os princípios emergem
da consideração de casos, e não o contrário (JUNGES, 2006). Assim, são casos
particulares e decisões sobre casos particulares, em vez de princípios que são
fundamentais para a bioética. A casuística, da qual Jonsen e Toulmin (1988)
lideram os proponentes contemporâneos, é a aplicação de normas morais gerais
a casos específicos em contextos específicos à luz de comparações e contrastes
com casos claros ou "paradigmáticos" previamente determinados.

5.6 ÉTICA DA VIRTUDE


Outra escola da bioética rejeita os princípios morais como fundamentos
para a bioética, alegando que as virtudes, e não os princípios, são a base moral
apropriada para a bioética. Virtudes, ou disposições de caráter para agir ou
responder bem como pessoas, e depois como pessoas de um certo tipo (por exemplo,
médicos, pais, cientistas) são, de acordo com essa abordagem, as preocupações
fundamentais da ética e, portanto, da bioética. Esta foi a abordagem adotada à

223
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

ética por Aristóteles (1984), e a ética da virtude aristotélica está desfrutando de


um renascimento contemporâneo, com o trabalho de MacIntyre (2001) sendo
altamente influente.

Uma variante da ética da virtude, mais uma vez influenciada de forma


importante por MacIntyre (2001) e enfatizando a natureza necessariamente social
embutida e comprometida da virtude, é a ética comunitária. Esta abordagem da
ética é um movimento que no final do segundo milênio estava ganhando ímpeto
nos Estados Unidos talvez em parte em reação ao individualismo libertário
prevalecente daquele país (EMMANUEL, 1991).

5.7 ÉTICA NARRATIVA


Associada à ética da virtude, está outra escola de bioética, a escola da
ética narrativa, que mais uma vez encontra a confiança em princípios morais
como inadequados. Fundamental para a bioética nessa abordagem é a narrativa
ou a história de casos particulares, e a história é altamente específica e altamente
cultural, pois cada cultura também tem sua história. Todos os envolvidos na
história têm interesse em seu resultado e, como diz Brody (1994), o curso correto
de ação para resolver um problema não é necessariamente a ação que se ajusta a
um princípio abstrato. Em vez disso, pode ser a ação que, sem violar quaisquer
princípios morais, navega com sucesso todos os fatores contextuais para mover a
situação em uma direção que melhor atenda aos interesses principais de todas as
partes envolvidas.

5.8 ÉTICA FEMINISTA


Muitas, embora nem todas, correntes dentro da ética feminista
contemporânea também se opõem à confiança nos princípios morais, embora,
dada a grande variedade de abordagens feministas à bioética, as críticas variem.
Críticas feministas comuns são de que o raciocínio moral em termos de princípios
é excessivamente abstrato. Além disso, falha em reconhecer a importância do
particular, do subjetivo e do emocional, da importância moral do cuidado e da
empatia, e das responsabilidades decorrentes dos relacionamentos. Acima de
tudo, falha em reconhecer e corrigir a opressão das mulheres, não menos em seus
cuidados médicos (LEBACQZ, 1995; SHERWIN, 1992).

5.9 BIOÉTICA GEOCULTURAL


Assim como as religiões individuais tendem a ter suas escolas de
bioética, também existem várias regiões geoculturais que estabelecem suas
próprias escolas de bioética. Por exemplo, Gracia (1993) refere-se a um "modelo
latino" de bioética apropriado às nações do sul da Europa e baseado mais em

224
TÓPICO 2 | BIOÉTICA

virtudes do que em princípios. Na medida em que os princípios são vistos como


fundamentos relevantes, eles podem não ser o quarteto de Georgetown. Um outro
quarteto oferecido por Gracia (1993) para a bioética latina compreende o valor
fundamental da vida, integridade terapêutica, liberdade e responsabilidade, e
socialidade e subsidiariedade social (em que os problemas sociais são sempre
melhor abordados através da menor unidade social relevante).

Mais ao norte na Europa, Wulff (1994), embora concordando que os


princípios de Georgetown individualmente "não podem ser contestados", afirma
que na prática eles são usados ​​para apoiar abordagens culturais tipicamente
norte-americanas à bioética que "não estão de acordo com a tradição moral
predominante em outras partes do mundo ocidental, por exemplo os países
nórdicos" (WULFF, 1994, p. 277). Em vez disso, Wulff argumenta que a Regra de
Ouro essencialmente cristã e kantiana é e deve ser a base da bioética nórdica – e
em um trabalho anterior Wulff et al. (1986) também enfatizaram a importância
do filósofo dinamarquês Kierkegaard e mais geralmente da tradição continental
da filosofia com suas preocupações com a fenomenologia, hermenêutica e
existencialismo.

Em um continente diferente, a Associação Bioética Asiática foi criada


em 1995, em parte porque os bioeticistas do Japão e da China sentiam que as
abordagens ocidentais da bioética eram inadequadas como fundamentos morais
para seus próprios países. Neste contexto, normas éticas budistas e confucionistas
fundamentam firmemente a moralidade cotidiana. Até mesmo na China, onde o
marxismo maoísta teve uma influência social tão poderosa.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora os desenvolvimentos futuros na bioética sejam imprevisíveis,
uma previsão pode ser feita com segurança. Quer aceitemos ou não a afirmação
de Gracia à Associação Internacional de Bioética de que "a bioética, creio, será
a ética civil de todas as nossas sociedades" (GRACIA, 1993, p. 97), podemos
confiantemente prever que continuará a fornecer uma série de preocupações
éticas importantes e absorventes para as quais um público de interesse sempre
em expansão pode ser igualmente esperado confiadamente.

225
RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• A bioética é o estudo de questões éticas que surgem na prática das disciplinas


biológicas.

• A bioética vai além da ética da saúde, incluindo a ética da pesquisa em ciências


da vida, ética ambiental, questões éticas de sexualidade, reprodução, genética
e população e várias questões morais sociopolíticas.

• Van Rensselaer usou o termo bioética para se referir a uma nova disciplina
que combina conhecimento biológico com um conhecimento de sistemas de
valores humanos.

• Hellegers e seu grupo usaram o termo mais estreitamente para aplicá-lo à
ética da medicina e da pesquisa biomédica.

• Um componente importante do campo da bioética é a ética médica e outro a
ética da saúde.

• Há discordância substancial sobre até que ponto a ética aplicada geral pode
ser estendida à disciplina de bioética.

• Cursos acadêmicos em ética médica e mais tarde em ética da saúde começaram
em 1978 e a florescer na década de 1980.

• O desenvolvimento da ética médica crítica surgiu um pouco mais tarde na
Alemanha, em países do antigo bloco soviético e no sul da Europa.

• Questões morais decorrentes da relação entre pacientes e profissionais de
saúde envolvem: paternalismo, confidencialidade, honestidade e engano,
autonomia prejudicada ou inadequada.

• Questões morais de vida e morte envolvem: justificativa do aborto, status
moral do feto, eutanásia, matar e permitir morrer, entre outros.

• Questões morais de interesses do paciente e os interesses de outros envolve:
dar prioridade moral aos melhores interesses do paciente individual com
quem eles estão interessados, ou os interesses de outros envolvidos.

• Embora a bioética tenha começado com a análise crítica de questões éticas


decorrentes de encontros clínicos, o ímpeto intelectual interno desse esforço
analítico a levou muito além de seus pontos de partida.

226
• Independentemente das análises de dano-benefício, respeito às pessoas e suas
escolhas, e justiça no contexto da alocação justa de recursos escassos, respeito
aos direitos das pessoas e respeito pelas leis justas, algumas vertentes da
bioética tornaram-se preocupadas com o natural e não natural.

• Grande parte do movimento de ética ambiental considera-se parte da bioética,


como no caso da Ecologia Profunda e outras perspectivas éticas, como as
ecocêntricas do meio ambiente, que consideram a bioética como parte dela.

• O leque de questões substantivas abrangidas pela bioética é vasto, e
alguns defendem que a área de estudo e a disciplina sejam explicitamente
subdivididas em subdisciplinas relevantes.

• As abordagens clínicas à bioética tendem a ser altamente particulares,
situacionais, contextual e parcial em ambos os sentidos do termo.

• As abordagens científicas à bioética objetivam ser tão consistentes quanto
possível com evidência e teoria cientificamente estabelecidas.

• As abordagens religiosas à bioética, na melhor das hipóteses, as religiões
oferecem uma base sólida de posturas éticas gerais positivas firmemente
estabelecidas, e na pior das hipóteses, as abordagens religiosas à bioética são
intolerantes, às vezes até fanaticamente rígidas quanto às doutrinas recebidas.

• As abordagens legais à bioética tendem a refletir as normas morais das
sociedades envolvidas.

• As abordagens sociológicas à bioética focam no modo científico descritivo,
explicando como os fatores sociais resultam nas características bioéticas
substantivas de diferentes sociedades e agrupamentos sociais.

• As abordagens psicológicas à bioética, na melhor das hipóteses, elucidam-
na mostrando como os indivíduos desenvolvem suas posturas pessoais em
relação às questões morais.

• Alguns agrupamentos ou “escolas” de bioética podem ser discernidas com


base na importância que atribuem a diferentes princípios morais para a
bioética.

• Há escolas de biótica que enfatizam a importância fundamental do respeito
pelas pessoas e sua autonomia; pelo bem-estar ou maximização de outras
utilidades; pela justiça social; pelos "quatro princípios".

• Há escolas de bioética que rejeitam os princípios morais como fundamentais
ou os consideram inadequados, como a casuística, a ética da virtude, a
ética narrativa, várias éticas feministas e uma crescente variedade de ética
"geocultural".

227
AUTOATIVIDADE

1 Explique a diferença do uso do termo “bioética” por Van Rensselaer Potter e


por Andre Hellegers.

2 No final da década de 1960, a própria ética médica começava a mudar,


deixando de estar quase inteiramente preocupada com regras éticas e códigos
de conduta que governam os médicos. Com essas mudanças, a ética médica
tradicional passou a abranger dois aspectos da nova bioética. Quais são estes
dois aspectos?

3 Cite aos menos duas das questões morais decorrentes da relação entre
pacientes e seus médicos, enfermeiros ou outros profissionais de saúde.

4 Na pior das hipóteses, quais seriam os problemas que surgem nas abordagens
clínicas à bioética?

5 Quais seriam os aspectos positivos e os aspectos negativos da ênfase no


princípio do respeito pela autonomia?

228
UNIDADE 3
TÓPICO 3

ÉTICA AMBIENTAL

1 INTRODUÇÃO

A magnitude e a urgência dos problemas ambientais contemporâneos –


conhecidos coletivamente como a crise ambiental – formam o mandato para a
ética ambiental: um reexame das atitudes e valores humanos que influenciam
o comportamento individual e a política governamental em relação à natureza.
As principais abordagens para a ética ambiental são o "antropocentrismo"
ou a abordagem centrada no ser humano; o “biocentrismo” ou a abordagem
centrada na vida; e o “ecocentrismo”, ou a abordagem centrada no ecossistema.
Relacionados de maneira variada a essas principais correntes de ética ambiental
estão o “ecofeminismo” e a “ecologia profunda”. O pluralismo moral na ética
ambiental sugere que endossemos todas essas abordagens e empreguemos
qualquer uma delas como as circunstâncias exigem.

2 O ANTROPOCENTRISMO
Uma ética ambiental antropocêntrica confere uma posição moral
exclusivamente aos seres humanos e considera as entidades naturais não
humanas e a natureza como um todo apenas um meio para fins humanos. Em
certo sentido, qualquer perspectiva humana é necessariamente antropocêntrica,
uma vez que podemos apreender o mundo apenas através de nossos próprios
sentidos e categorias conceituais. Consequentemente, alguns defensores da ética
ambiental antropocêntrica tentaram antecipar o debate argumentando que uma
ética ambiental não antropocêntrica é, portanto, um oximoro. Todavia, a questão
em discussão não é: “Podemos apreender a natureza de um ponto de vista não
humano?”. Claro que não podemos. A questão é, antes, "Devemos estender a
consideração moral às entidades naturais não-humanas ou à natureza como um
todo?". E essa questão, é claro, é inteiramente aberta.

Na corrente de pensamento dominante da tradição cultural ocidental,


apenas os seres humanos foram tratados moralmente. Assim, pelo menos para
aqueles que trabalham nessa tradição, o antropocentrismo é a abordagem

229
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

mais conservadora da ética ambiental. No entanto, os eticistas ambientais


antropocêntricos tiveram que assumir uma postura mais reativa do que proativa
e dedicar um esforço considerável para defender a filosofia moral ocidental
tradicional contra os apelos de pensadores mais arrojados para ampliar o alcance
da ética para abranger entidades naturais não-humanas e a natureza como um
todo.

John Passmore (1974) e Kristin Shrader-Frechette (1981, 1995) foram os


primeiros a defender uma abordagem estritamente antropocêntrica da ética
ambiental. Shrader-Frechette acha “difícil pensar em uma ação que cause danos
irreparáveis ​​ao meio ambiente ou ao ecossistema, mas que também não ameace o
bem-estar humano” (SHRADER-FRECHETTE, 1981, p. 17). Uma vez que muitas
das éticas antropocêntricas do cânon ocidental censuram comportamentos que
ameaçam o bem-estar humano (utilitarismo, mais diretamente), ela argumenta
que, portanto, não há necessidade de desenvolver uma nova ética ambiental não
antropocêntrica.

Alguns dos danos que as pessoas causaram ao meio ambiente certamente


ameaçam o bem-estar humano. O aquecimento global e o esgotamento da
camada de ozônio são exemplos notórios. Todavia é fácil pensar em outros casos
de vandalismo ambiental que não ameacem materialmente o bem-estar humano.
David Ehrenfeld (1976) nos pede para contemplar a provável morte do ameaçado
sapo de Houston (Anaxyrus houstonensis), uma vítima da expansão urbana,
que “não tem valor de recurso demonstrado ou conjetural para o homem”
(EHRENFELD, 1976, p. 650). Mas, como Ehrenfeld assinala, o sapo de Houston
não é único nessa situação, pois milhares de outras espécies que estão em perigo
são classificadas como "não recursos" indefinidos.

Para censurar moralmente a extinção de tais espécies e outros tipos de


destruição ambiental que não ameaçam materialmente o bem-estar humano,
devemos abandonar o antropocentrismo? Ampliando o trabalho de Mark Sagoff
(1988) e Eugene C. Hargrove (1989), Bryan Norton (1987), o principal apologista
contemporâneo para a ética ambiental antropocêntrica argumenta que devemos
ampliar nossa concepção de bem-estar humano em seu lugar. Além de bens
(energia, alimentos, medicamentos, matérias-primas para manufatura) e serviços
(polinização de cultivos, reabastecimento de oxigênio, purificação da água),
um ambiente natural não degradado contribui para o bem-estar humano de
importantes formas psicológicas, espirituais e científicas. Cenários não marcados
por minas a céu aberto, áreas desflorestadas ou desmatadas, poluídos pelo
ar contaminado são importantes para a satisfação estética humana. Ar e água
limpos, espaços abertos e áreas verdes, paisagens complexas e diversas, parques
nacionais e de recreação em regiões selvagens são importantes “amenidades”
humanas. Experienciar a solitude de regiões selvagens e desertos e a alteridade
da diversidade de vida é um aspecto importante da experiência religiosa
humana. Mesmo que ninguém seja prejudicado materialmente após a extinção
de espécies “não-recursos”, importantes objetos do conhecimento humano puro e
desinteressado serão irremediavelmente perdidos. Norton (1987) também sugere

230
TÓPICO 3 | ÉTICA AMBIENTAL

que o contato e a preservação da integridade do ambiente natural também podem


ser uma experiência "transformadora", pode nos tornar pessoas melhores.

Além disso, Norton (1991) argumenta que devemos, por uma questão de
justiça intergeracional, garantir que os seres humanos futuros possam desfrutar
de abundantes recursos naturais, um ecossistema completo e funcional, toda a
gama de amenidades ambientais e a oportunidade de participar em experiências
psicoespirituais oferecidas pela natureza e explorar intelectualmente a ecologia
e a taxonomia. Se fizermos com que nossa concepção do bem-estar humano seja
ampla e longa, o autor referido acima pensa que podemos fundamentar uma
ética ambiental adequada e eficaz sem navegar para as águas desconhecidas e
traiçoeiras do não-antropocentrismo.

A principal razão pela qual a Norton oferece para preferir uma abordagem
antropocêntrica à ética ambiental é pragmática. O antropocentrismo e o não
antropocentrismo, argumenta ele, apoiam as mesmas políticas ambientais.
Norton (1991) chama essa equivalência prática do antropocentrismo e não
antropocentrismo de “hipótese de convergência”. Por que então advogar o não
antropocentrismo? A maioria das pessoas, incluindo a maioria dos ambientalistas,
afirma ele, aceita a ideia familiar e venerável de que os seres humanos são fins
em si mesmos e que merecem uma posição moral. Por outro lado, a sugestão
de que todos os seres vivos (espécies e ecossistemas) devem receber um status
semelhante não é familiar e é controversa. Se basearmos a ética ambiental em
uma base tão ampla e firme quanto possível, poderemos garantir a sua rápida
implementação. De fato, Norton sugere que o vigoroso esforço filosófico para
desenvolver abordagens não antropocêntricas à ética ambiental realmente fez
um desserviço. O movimento ambiental, como resultado, ficou dividido sobre
questões puramente intelectuais que têm pouca ou nenhuma importância prática.

A afirmação empírica de Norton (1991) de que a maioria das pessoas e


até mesmo a maioria dos ambientalistas são antropocentristas é apoiada apenas
informalmente. As pesquisas de opinião e o resultado de disputas políticas
sugerem que a maioria das pessoas provavelmente tem lealdades mais estreitas –
ao interesse próprio, a interesses institucionais, a interesses de classe ou a interesses
nacionais – do que a interesses humanos coletivos ou gerais presentes e futuros,
muito amplamente interpretados. Por outro lado, uma minoria crescente de
ambientalistas parece duvidar dos fundamentos filosóficos do antropocentrismo.
Os seres humanos são realmente criados à imagem de Deus – a ideia sobre a
qual o antropocentrismo na ética religiosa ocidental é fundamentado? Somos
exclusivamente autoconscientes, racionais, autônomos (alguns dos fundamentos
do antropocentrismo na filosofia moral ocidental)? Todo ser deve possuir tais
características para se qualificar para o tratamento moral? Pode-se concordar com
a hipótese da convergência – que os objetivos ambientais práticos são tão bem
servidos pela ética ambiental antropocêntrica quanto pela não antropocêntrica
–, mas ao mesmo tempo discordar que o antropocentrismo é filosoficamente
defensável. Portanto, a questão dos méritos filosóficos – a verdade, por assim
dizer, do antropocentrismo – permanece em aberto.

231
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

A hipótese da convergência de Norton (1991), além disso, ignora uma


diferença importante entre a maneira como a ética ambiental antropocêntrica e
não antropocêntrica apoia as mesmas políticas ambientais. Suponha, como os
não antropocentristas argumentam, que o meio ambiente é “intrinsecamente”
e também “instrumentalmente” valioso – isto é, que o meio ambiente é valioso
tanto por si quanto por todos os benefícios, tangíveis e intangíveis, que fornece
aos seres humanos. Warwick Fox argumenta decisivamente que tal suposição
mudaria o ônus da prova daqueles que preservariam desinteressadamente o
meio ambiente para aqueles que o destruiriam por ganho pessoal:

Se o mundo não-humano é apenas considerado instrumentalmente


valioso, então as pessoas têm permissão para usá-lo e interferir com
ele por qualquer motivo que desejarem [...]. Se alguém se opuser a
tal interferência, então, dentro deste quadro de referência, o ônus está
claramente sobre pessoa que faz objeções para justificar por que é
mais útil para os humanos deixar esse aspecto do mundo não humano
intocado. Se, no entanto, o mundo não-humano é considerado
intrinsecamente valioso, então o ônus muda para a pessoa que gostaria
de interferir com ele para justificar por que deveria ser permitido
fazê-lo; qualquer pessoa que queira interferir com qualquer entidade
que seja intrinsecamente valiosa é moralmente obrigada a oferecer
justificativa suficiente para suas ações (FOX, 1993, p. 101).

Norton (1991), por exemplo, pode opor-se a empresas madeireiras que


cortam florestas de sequoias porque as florestas de sequoias remanescentes são de
maior benefício para as gerações humanas presentes e futuras como amenidades
do que como matéria-prima para decks e banheiras de hidromassagem. No
entanto, para preservar as florestas de sequoias remanescentes, Norton teria de
persuadir um tribunal a emitir uma liminar proibindo as madeireiras de serrarem
as sequoias, com base na afirmação de que as árvores, embora vivas, são mais
úteis para os seres humanos como recursos psicoespirituais e transformativos
do que cortar e serrar como recursos de consumo. Se, por outro lado, as árvores
fossem consideradas intrinsecamente valiosas, então uma empresa madeireira
teria que argumentar no tribunal que a utilidade das florestas de sequoias como
matéria-prima é tão enorme que justifica sua destruição. Assim, embora Norton
possa estar correto em afirmar que uma longa e ampla ética antropocêntrica do
ambiente sustenta as mesmas políticas que a ética ambiental não antropocêntrica
– no caso em questão, a política de preservação das florestas de sequoias – ele não
pode afirmar corretamente que faria isso com força argumentativa similar.

3 BIOCENTRISMO
No início, as teorias da ética ambiental que emancipavam moralmente
os seres vivos individuais e os conjuntos naturais, como espécies e ecossistemas,
eram chamadas de “biocêntricas”. Então, Paul W. Taylor (1986) requisitou o termo
para caracterizar sua teoria militantemente individualista da ética ambiental. Não
apenas em deferência à influência e autoridade de Taylor, mas em deferência ao
sentido literal do termo ("centrado na vida"), o "biocentrismo", nesta discussão,

232
TÓPICO 3 | ÉTICA AMBIENTAL

refere-se a teorias da ética ambiental que apenas emancipam moralmente os seres


vivos. Como as espécies e os ecossistemas não são, per se, seres vivos, uma teoria
biocêntrica não lhes conferiria qualquer status moral.

Embora a ética do bem-estar animal e a ética ambiental não sejam de


modo algum as mesmas, o biocentrismo é lançado a partir de uma plataforma
fornecida pela ética do bem-estar animal. Ambas tentam estender nossa ética
antropocêntrica básica – que, em geral, proíbe prejudicar os “outros” humanos
ou violar seus direitos – a uma classe de indivíduos mais inclusiva: a ética do
bem-estar animal a vários tipos de animais, a ética ambiental biocêntrica a todos
os seres vivos.

Peter Singer (2004) e Tom Regan (1983), os principais arquitetos da ética


contemporânea em bem-estar animal, expuseram a ética antropocêntrica a um
dilema. Se o critério para o status moral for elevado o suficiente para excluir
todos os seres não humanos, também excluirá alguns seres humanos; mas se for
posto baixo o suficiente para incluir todos os seres humanos, também incluirá um
grupo grande e diverso de animais não humanos.

Um antropocentrista pode seguir tais filósofos como René Descartes e


Immanuel Kant e oferecer alguma capacidade altamente estimada e peculiarmente
humana – como a capacidade de raciocinar, falar ou ser um agente moral – como a
qualificação que um ser deve possuir para merecer consideração ética. No entanto,
se a prática for consistente com a teoria, o antropocentrismo, assim justificado,
deve permitir que pessoas que não possam raciocinar ou falar ou que não sejam
moralmente responsáveis ​​por seu comportamento – bebês humanos, severamente
retardados e abjetamente senis, por exemplo – ser tratado da mesma forma que
permite que os animais sejam tratados: usados ​​como sujeitos experimentais em
pesquisas biomédicas dolorosas, caçados por esporte, abatidos e transformados
em ração para cães, e assim por diante.

Para obviar a essas implicações repugnantes, Singer (2004) sugere que


sigamos Jeremy Bentham, o fundador da ética utilitarista, e estabeleçamos a
senciência, a capacidade de sentir prazer e dor, como uma qualificação menos
hipócrita – e possivelmente mais relevante – para a consideração moral. Esse
padrão garantiria a posição ética dos chamados casos marginais, uma vez que
pessoas irracionais, não inteligentes ou irresponsáveis ​​são todas capazes de sentir
prazer e dor. Todavia também abriria membresia na comunidade moral a todos
os outros seres sencientes. Se, como afirmou Bentham, o prazer é bom e a dor o
mal, e se, como Bentham também afirmou, deveríamos tentar maximizar o outro
e minimizar o outro, independentemente de quem os experimenta, então o prazer
e a dor do animal não humano deveriam contar igualmente com o prazer e a dor
do animal humano em todas as nossas deliberações morais.

Singer (2004) defende vigorosamente o vegetarianismo. Ironicamente,


no entanto, a ética benthâmica de Singer do bem-estar animal é impotente para
censurar a criação de animais com conforto e abatê-los sem dor para satisfazer

233
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

as preferências alimentares humanas. De fato, alguém pode até deduzir das


premissas de Singer que as pessoas têm uma obrigação moral positiva de comer
carne, desde que os animais criados para o consumo humano experimentem
um maior equilíbrio de prazer sobre a dor durante suas curtas vidas. Pois se
todos se tornassem vegetarianos, muito menos vacas, porcos, galinhas e outros
animais domésticos seriam mantidos e, assim, muitos animais a menos teriam a
oportunidade, por um breve período, de buscar a felicidade.

Reconhecendo essas (e outras) inadequações da teoria de Singer (2004)


em relação aos problemas morais do tratamento de animais, Tom Regan (1983)
defende uma “abordagem dos direitos”. Ele argumenta que alguns animais têm
“valor inerente” porque são, como nós mesmos, não apenas sencientes, mas
“sujeitos de uma vida” – seres que são autoconscientes, experimentam desejo
e frustração e antecipam estados futuros de consciência – que, do ponto de
vista deles, pode ser melhor ou pior. O valor inerente, por sua vez, pode ser o
fundamento para os direitos morais básicos.

Nem o protótipo de Singer (2004) nem o de Regan (1983) da ética do bem-


estar dos animais também servirá como ética ambiental. Por um lado, nenhuma
delas fornece uma posição moral para as plantas e todos os muitos animais que
podem não ser nem sencientes nem, ainda mais restritivamente, sujeitos de uma
vida – muito menos para a atmosfera e os oceanos, espécies e ecossistemas. Além
disso, a preocupação com o bem-estar animal, por um lado, e a preocupação
com o ambiente mais amplo, por outro, muitas vezes levam a indicações
contraditórias na prática e na política. Seguem-se os exemplos: os defensores
da libertação e direitos dos animais frequentemente se opõem ao extermínio de
animais selvagens que competem com a fauna nativa e comunidades de plantas
degradantes nas áreas públicas; eles caracteristicamente exigem um fim à caça
e ao aprisionamento, seja ambientalmente benigno ou necessário; e eles podem
preferir deixar espécies de plantas ameaçadas se extinguirem, ao invés de salvá-
las matando pragas de animais sencientes ou sujeitos à vida.

Por outro lado, a ética do bem-estar animal e a ética ambiental levam a


indicações convergentes em outros pontos de prática e política. Ambas devem
se opor resolutamente à “pecuária industrial”: a ética do bem-estar animal
devido à enorme quantidade de sofrimento e morte de animais envolvidos; ética
ambiental devido à enorme quantidade de água utilizada e à erosão do solo na
produção de carne. Ambos devem apoiar firmemente a preservação do habitat da
vida selvagem: a ética do bem-estar animal, porque as reservas naturais fornecem
habitat para indivíduos sencientes; a ética ambiental porque muitas outras formas
de vida, espécies raras e ameaçadas, e a saúde e integridade dos ecossistemas
também são acomodadas.

Apesar das diferenças, a ética do bem-estar animal pode ser considerada


como “a caminho de se tornar” uma ética ambiental completa, de acordo com
Regan (1983, p. 187). Os especialistas em ética do bem-estar animal foram a
primeira etapa da jornada filosófica ao diminuir plausivelmente o atributo de

234
TÓPICO 3 | ÉTICA AMBIENTAL

qualificação para a consideração moral. Albert Schweitzer (1989), Kenneth


Goodpaster (1978), Robin Attfield (1983) e Paul Taylor (1986) sugerem várias
vezes que devemos diminuir ainda mais – de ser senciente para ser vivo.

Schweitzer, escrevendo muito antes da eflorescência da literatura


contemporânea sobre o bem-estar animal e a ética ambiental, parece fundamentar
sua ética de “reverência pela vida” no voluntarismo de Arthur Schopenhauer:

Assim como na minha vontade de viver, há um anseio por mais vida


[...] assim o mesmo acontece em toda a vontade de viver ao meu
redor, igualmente se pode expressar-se à minha compreensão ou se
permanece sem voz. [...] A ética consiste nisso, que eu experiencio a
necessidade de praticar a mesma reverência pela vida em direção a
toda vontade de viver, assim como à minha própria (SCHWEITZER,
1989, p. 32-33).

O biocentrismo contemporâneo parece ter sido inspirado pelas observações


de Joel Feinberg (1974) sobre a importância moral dos interesses e a variedade
de entidades às quais os interesses podem ser atribuídos. O papel fundamental
do conceito de "conação" (um esforço que pode muitas vezes ser inconsciente,
reificado por Schopenhauer como "vontade de viver") na caracterização dos
interesses de Feinberg unifica a ética ambiental biocêntrica contemporânea anglo-
americana com a versão de Schweitzer. Segundo Feinberg (1974, p. 49-50):

Uma mera coisa, por mais valiosa que seja para os outros, não tem
nenhum bem por si própria [...] [porque] meras coisas não têm
vida conativa: não há desejos, almejos e esperanças conscientes; ou
incitações e impulsos; ou pulsões, objetivos e metas inconscientes; ou
tendências latentes, direções de crescimento e realizações naturais.
Os interesses devem ser compostos de alguma forma a partir das
conações; por isso, meras coisas não têm interesses, a fortiori, elas
não têm interesses de serem protegidas por regras legais ou morais.
Sem interesses, uma criatura não pode ter um “bem” próprio, cuja
realização pode ser buscada. Meras coisas não são lugares de valor por
direito próprio, mas seu valor consiste inteiramente em serem objetos
de interesses de outros seres.

A implicação clara dessa passagem é que a “linha insuperável”, como


Bentham chamou a fronteira separando seres que se qualificam para consideração
moral daqueles que não, recai entre seres vivos e coisas não vivas, não entre
animais sencientes e animais e plantas não sencientes. Por quê? Porque até as
plantas têm impulsos, objetivos e metas inconscientes; ou tendências latentes,
direções de crescimento e realizações naturais. Feinberg (1974), no entanto,
continua a negar que as plantas têm interesses próprios. Suas razões para fazê-
lo, no entanto, parecem ser menos claras e decisivas do que sua derivação de
interesses das conações e seu argumento de que os seres que têm interesses
merecem consideração moral.

Kenneth Goodpaster (1978) argumenta que todos os seres vivos, tanto


plantas quanto animais, têm interesses. E ele argumenta, apelando para Feinberg
como uma autoridade, que seres que têm interesses merecem “considerabilidade

235
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

moral” – um termo que Goodpaster usa para indicar precisamente o status ético
de pacientes morais (aqueles na extremidade receptora de uma ação), distinto de
agentes morais (aqueles que cometem um ato). Goodpaster concorda com Singer
que sua senciência é uma condição suficiente para estender a consideração moral
aos animais, mas ele discorda que é necessário, porque a senciência evoluiu para
servir algo mais fundamental – a vida:

Biologicamente, parece que a senciência é uma característica


adaptativa de organismos vivos que lhes proporciona uma
melhor capacidade para antecipar, e assim evitar, ameaças à
vida [...]. As capacidades de sofrer e desfrutar são auxiliares a
algo mais importante, em vez de ingressos para a consideração
por direito próprio” (GOODPASTER, 1978, p. 316).

A ética do princípio da vida de Goodpaster (1978) é modesta. Todos


os seres vivos são moralmente consideráveis, mas nem todos podem ser de
“significância” moral igual. Ele deixa em aberto a questão de quanto peso
devemos dar aos interesses de uma planta quando eles entram em conflito com
uma criatura senciente ou com a nossa. Paul Taylor (1986) assumiu uma postura
muito mais forte e mais ousada e argumentou que todos os seres vivos são de
"valor inerente" igual.

Taylor (1986) baseia o valor inerente de um ser vivo no fato de que ele
tem um bem próprio, bastante independente de nossa avaliação instrumental
antropocêntrica dele e bastante independente de se o organismo é senciente ou
consciente. Luz, calor, água e solo rico são bons para um ramo de hera venenosa,
embora a hera venenosa não seja boa para nós. Ao contrário das máquinas e
outros artefatos intencionais que projetamos para servir aos nossos próprios fins,
os organismos são fins em si mesmos. Geralmente, eles se esforçam para atingir
um estado de maturidade e se reproduzir. Portanto, assim como insistimos em
que os outros não interfiram em nossos próprios esforços e realizações, assim,
Taylor insta, expressamente seguindo seu raciocínio sobre o pensamento de Kant,
devemos respeitar o esforços e realizações de todos os outros “centros teleológicos
da vida”. Kant argumentou que devemos respeitar, como indivíduos-em-si, todos
os seres racionais e autônomos igualmente. E Taylor argumenta que devemos
respeitar igualmente todos os seres vivos, porque eles também são fins em si
mesmos.

Como o biocentrismo se ocupa exclusivamente de indivíduos biológicos,


não de totalidades biológicas, é uma abordagem da ética ambiental que parece
tão restritiva que seria impossível de praticar, e uma abordagem que tem pouca
relevância para o conjunto de problemas que constituem a crise ambiental. Como
podemos fazer alguma coisa se, antes de agirmos, somos obrigados a considerar
os interesses de cada ser vivo que podemos afetar? Por que devemos nos sentir
obrigados a fazê-lo em prol do meio ambiente? A preocupação ambiental
concentra-se principalmente no espasmo da extinção abrupta de espécies
massivas e na perda de biodiversidade em geral, no rápido aquecimento global e
na erosão do ozônio estratosférico, na erosão do solo, na poluição da água e afins;

236
TÓPICO 3 | ÉTICA AMBIENTAL

não sobre o bem-estar de larvas, insetos e arbustos.

Schweitzer e Goodpaster reconhecem francamente a dificuldade em


praticar o biocentrismo. Schweitzer escreve: “Continua sendo um doloroso
enigma como eu devo viver pela regra da reverência pela vida em um mundo
regido pela vontade criativa que é ao mesmo tempo uma vontade destrutiva”
(1989, p. 35). E Goodpaster (1978, p, 310) escreve:

A refutação mais clara e mais decisiva do princípio do respeito pela vida


é que não se pode viver de acordo com ela, nem há qualquer indicação
na natureza de que seriamos intencionados a fazê-lo. Devemos comer,
experimentar para adquirir conhecimento, proteger-nos da predação
[...] Para levar a sério o critério que está sendo defendido, todas essas
coisas devem ser vistas como moralmente erradas.

Ambos sugerem razoavelmente que podemos pelo menos respeitar


os interesses de outros seres vivos quando eles não conflitam com os nossos.
Segundo Goodpaster (1978), o biocentrismo não é suicida. Requer apenas que
usemos os seres vivos consideravelmente e sensivelmente. Schweitzer acredita
que o biocentrismo nos permite ferir ou destruir outras formas de vida, mas
somente quando isso é necessário e inevitável.

O igualitarismo de Taylor (1986) torna virtualmente intransponível


o problema da praticabilidade do biocentrismo. Começando com o direito
de autodefesa de qualquer indivíduo, ele racionaliza a nossa aniquilação de
organismos patogênicos com remédios e continua a partir daí para defender o ato
de matar e comer outros seres vivos para nos alimentarmos. Todavia, a satisfação
de qualquer interesse humano "não básico", segundo Taylor, deve ser ignorada
se violar os interesses básicos de outro centro teleológico da vida. Assim, parece
que a adesão estrita ao igualitarismo biocêntrico exigiria que alguém vivesse uma
vida de sacrifício que tonaria opulenta a vida de um monge.

Escrevendo antes do advento da crise ambiental, Schweitzer (1969) não


pretendia abordar seus problemas. Ele parece genuinamente preocupado, antes,
com o bem-estar dos seres vivos individuais. Assim, seria injusto e anacrônico
criticar sua ética de reverência pela vida por ser largamente irrelevante para
o conjunto de problemas que constituem a crise ambiental. Taylor (1986), por
outro lado, representa sua ética biocêntrica como uma ética ambiental. E ele está
claramente consciente de que as preocupações ambientais contemporâneas se
concentram em coisas como a perda de espécies e a deterioração do ecossistema.
Mas ele continua antagônico à ética ambiental holística criada em resposta a
tais preocupações. Ele prefere pensar na extinção de espécies e na destruição de
ecossistemas em termos antropocêntricos, e não biocêntricos ou ecocêntricos.
Goodpaster (1978), por outro lado, invoca a preocupação sentida pela maioria
das pessoas sobre o meio ambiente como uma razão para tentar estender a
consideração moral a todos os seres vivos. Ele parece, além disso, estar ciente de
que para realmente alcançar a preocupação sentida pela maioria das pessoas sobre
o meio ambiente, o biocentrismo teria que “admitir a aplicação a [...] sistemas de

237
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

entidades antes inimagináveis ​​como requerentes de nossa atenção moral (como


o biossistema em si mesmo)” (GOODPASTER, 1978, p. 310). Tendo mencionado
os sistemas de entidades uma vez, no entanto, Goodpaster (1978) concentra toda
a sua atenção nos seres vivos individuais e não tem nada a dizer sobre como
o biocentrismo pode realmente admitir a aplicação a espécies, ecossistemas e à
biosfera como um todo.

O biocentrismo pode não ser apenas irrelevante para as preocupações


ambientais reais, mas também pode agravá-las. O biocentrismo pode levar seus
proponentes a uma repulsa pela natureza – dando uma reviravolta irônica a obra
de Taylor (1986), Respeito pela Natureza – porque a natureza parece tão indiferente
ao bem-estar dos seres vivos individuais quanto é fecunda. Schweitzer (1969, p.
120), por exemplo, comenta que

A grande luta pela sobrevivência, pela qual a natureza é mantida, é


uma estranha contradição em si mesma. Criaturas vivem à custa de
outras criaturas. A natureza permite as mais horríveis crueldades [...]
A natureza parece linda e maravilhosa quando você a vê do lado de
fora. Mas quando você lê suas páginas como um livro, é horrível).

4 ECOCENTRISMO
Embora o termo “ecocentrismo” seja uma contradição da frase “centrado
no ecossistema”, o ecocentrismo proporcionaria a considerabilidade moral a um
espectro de entidades ambientais não individuais, incluindo a biosfera como
totalidade, espécies, terra, água e ar, bem como ecossistemas. As várias éticas
ambientais holísticas informadas ecologicamente que podem ser apropriadamente
chamadas de ecocêntricas estão menos relacionadas, teoricamente, do que os
conjuntos da ética ambiental antropocêntricas ou biocêntricas.

Lawrence E. Johnson (1991) tentou gerar uma ética ambiental que alcança
espécies e ecossistemas através de uma extensão adicional da abordagem
biocêntrica. Ele faz isso não fazendo o critério de considerabilidade moral mais
inclusivo, mas atribuindo interesses a espécies e ecossistemas. Extensivamente
desenvolvendo a linha de pensamento que Feinberg (1974) provisoriamente e
ambiguamente iniciou, Johnson conclui que deveríamos "dar o devido respeito a
todos os interesses de todos os seres que têm interesses, em proporção aos seus
interesses" (JOHNSON, 1991, p. 118). Como sugere seu princípio moral, Johnson
segue Goodpaster ao permitir que todos os interesses não sejam iguais e, portanto,
que todos os seres interessados, embora moralmente consideráveis, não tenham
igual significância moral. Johnson (1991), no entanto, não fornece princípio ou
método algum para ordenar hierarquicamente os interesses e os seres que os
possuem; ele também não fornece um procedimento ético para julgar conflitos de
interesse entre pessoas, animais e plantas, e, ainda mais difícil, entre todos esses
indivíduos e totalidades ambientais.

Ao argumentar que as espécies têm interesses, Johnson (1991) explora o

238
TÓPICO 3 | ÉTICA AMBIENTAL

fato de que alguns biólogos e filósofos da biologia consideram as espécies não


como classes de organismos, mas como indivíduos espacial e temporalmente
prolongados. Para plausivelmente atribuir-lhes interesses, em outras palavras,
Johnson assimila as espécies aos organismos individuais. Durante o primeiro
quarto do século XX, os ecossistemas (embora não fossem assim denominados)
estavam representados na ecologia como supraorganismos. Johnson (1991) adota
essa caracterização dos ecossistemas, pois isso permite atribuir interesses aos
ecossistemas, assimilando-os a organismos individuais, assim como no caso das
espécies. Finalmente, Johnson aponta que James Lovelock (1995) sugeriu que a
Terra como um todo é um ser vivo integrado (chamado Gaia); se assim for, também
pode ter interesses e, portanto, pode ser moralmente considerável. A adoção de
modelos científicos não padronizados, obsoletos ou altamente controversos de
espécies, ecossistemas e da biosfera é o preço que Johnson paga para adquirir
a considerabilidade moral para essas totalidades naturais. Sua tentativa de
acrescentar uma dimensão ecocêntrica à sua abordagem essencialmente
biocêntrica da ética ambiental está, assim, seriamente comprometida.

A ética ambiental ecocêntrica de Holmes Rolston, como a da Johnson, é


lançada a partir de uma plataforma biocêntrica. Rolston (1988) endossa o princípio
central do biocentrismo de que cada ser vivo tem um bem próprio e que ter um
bem próprio é a base do valor intrínseco de um ser. E sobre a existência de valor
intrínseco na natureza ele fundamenta nossos deveres para com o mundo natural
em todos os seus aspectos.

O biocentrismo de Rolston (1988), em forte contraste com o de Taylor


(1986), não é igualitário. Rolston encontra mais valor intrínseco em seres que
sentem seu próprio bem, que se sentem magoados quando prejudicados, do que
naqueles que não têm consciência disso. Rolston encontra o valor mais intrínseco
de todos nos seres humanos adultos normais, porque somos racionais e totalmente
autoconscientes, bem como conativos e sencientes.

Rolston (1988) evita a rota cientificamente suspeita que Johnson leva


para emancipar eticamente totalidades ambientais como espécies e ecossistemas.
Rolston argumenta, em vez disso, que, uma vez que o telos mais básico de um
centro teleológico da vida é ser “bom de seu tipo” e reproduzir suas espécies,
então o seu tipo ou a sua espécie é o seu bem primário. As espécies per se não
têm um bem próprio, mas, como o bem mais básico dos seres que possuem um
bem próprio, também pode-se dizer que elas possuem um valor intrínseco. A
miríade de espécies ou espécies naturais, no entanto, evoluiu não isoladamente,
mas em uma complexa matriz de relações – isto é, nos ecossistemas. Assim,
embora também não sejam centros teleológicos da vida, algum valor intrínseco se
difunde nos ecossistemas na teoria da ética ambiental de Rolston. Rolston cunhou
um termo especial, "valor sistêmico", para caracterizar o valor dos ecossistemas.

O valor sistêmico não parece ser inteiramente paralelo, logicamente


ou conceitualmente falando, ao valor intrínseco na teoria da ética ambiental
de Rolston (1988). Pelo contrário, parece que uma condição necessária para

239
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

a existência das coisas que ele acredita terem valor intrínseco – seres com um
bem próprio e os bens (seus tipos ou espécies) que tais seres se esforçam para
realizar e perpetuar – é a existência de seus contextos naturais ou matrizes. Como
a lua que brilha por uma luz emprestada, o valor sistêmico parece ser um tipo de
valor intrínseco refletido. Rolston encontra um tipo similar de valor intrínseco
derivado, "valor projetivo", em processos evolutivos elementares e orgânicos que
remontam ao Big Bang, uma vez que tais processos eventualmente produziram
(ou "projetaram") seres vivos com bens próprios.

A teoria da ética ambiental de Rolston (1988) ordena hierarquicamente


indivíduos intrinsecamente valiosos de uma maneira familiar e convencional. Os
seres humanos estão no auge da hierarquia de valores, seguidos pelos animais
superiores, e assim por diante, como na Grande Cadeia do Ser imaginada por
muitos filósofos ocidentais de outrora. Rolston está preparado para invocar
seu arranjo hierárquico de tipos de seres intrinsecamente valiosos para resolver
enigmas morais biocêntricos. Por exemplo, ele argumenta expressamente que
é moralmente permissível que as pessoas matem e comam animais e que os
animais matem e comam plantas. Embora essa ordenação hierárquica de seres
intrinsecamente valiosos seja compatível com a tradição e o senso comum
inculto, nem sempre ela está em concordância e, portanto, pode não justificar
adequadamente nossas prioridades ambientais consideradas. A maioria dos
ambientalistas, diante da difícil escolha de salvar um cão sensível ou de uma
sequoia inconsciente, meramente conativa, com mil anos de idade, provavelmente
optaria pela árvore – e não apenas porque as sequoias estão se tornando raras.
Pressionado por boas razões para fazer essa escolha, Rolston poderia responder
que um agente ambientalmente ético é perfeitamente livre, ao tomar a decisão
de dar prioridade à sequoia sobre o cão, para adicionar ao seu valor intrínseco
a maneira como as sequoias são valorizadas antropocentricamente e como elas
servem ao valor sistêmico dos ecossistemas. O agente ético pode legitimamente
adicionar ao valor econômico da sequoia o seu valor sistêmico, valor intrínseco,
valor estético ou valor religioso. Como o valor intrínseco das espécies e o valor
sistêmico dos ecossistemas se encaixam na hierarquia de valores de Rolston não
é totalmente claro.

De acordo com Regan (1981), a própria possibilidade de uma ética


ambiental se volta para a construção de uma teoria plausível do valor intrínseco
(ou “inerente”) da natureza. Ele argumenta que a ética ambiental antropocêntrica
é uma "ética gerencial", ética para o "uso" do meio ambiente, e não uma ética
ambiental propriamente dita. Regan estabelece condições claras e rigorosas
para tal valor: primeiro, deve ser estritamente objetivo, independentemente de
qualquer consciência valorativa; segundo, deve atender a alguma propriedade ou
conjunto de propriedades que as entidades naturais possuem; e terceiro, deve ser
normativo, deve exigir o respeito ético ou a considerabilidade moral.

A fundamentação de Rolston (1988) do valor intrínseco de um ser no


fato de ter um bem próprio parece atender às duas primeiras condições, mas
possivelmente não a terceira. Antes que a consciência evoluísse, os seres vivos

240
TÓPICO 3 | ÉTICA AMBIENTAL

tinham seus bens próprios; eles poderiam ser danificados e feridos; eles tinham
interesses, quer eles se importassem ou não. O movimento, no entanto, do
fato dificilmente discutível de que os seres vivos possuem objetivamente bens
próprios para a afirmação de que eles têm um valor intrínseco objetivo pode se
transformar em uma ambiguidade no significado de "bem".

A palavra "bem" tem um sentido teleológico e normativo. Todos os seres


vivos possuem seus próprios bens no sentido teleológico. Eles têm, em outras
palavras, fins que não foram impostos a eles – como os bens ou fins das máquinas
e outros artefatos – por outros seres que não eles mesmos. Todavia ainda é
possível perguntar se tais bens teleológicos geram bens normativos. Neste ponto
do argumento, os vírus da varíola e da AIDS são geralmente invocados como
exemplos de organismos que possuem seus bens próprios no sentido teleológico
do termo, mas organismos que seríamos relutantes em dizer que são bons no
sentido normativo do termo.

Não importando como essa questão conceitual específica possa ser


resolvida, outra questão moral geral lança uma sombra muito grande e escura
sobre a alegação de Rolston (1988) de encontrar valor intrínseco objetivo na
natureza. Embora Rolston tenha muito cuidado para não contrariar as opiniões
científicas prevalecentes sobre o tipo de realidade que as espécies, os ecossistemas
e os processos evolucionários possuem, seu argumento de que o valor intrínseco
existe objetivamente na natureza resiste a uma suposição mais geral da ciência
moderna. Do ponto de vista científico moderno, a natureza é ausente de valores.
Bondade e maldade, como beleza e fealdade, estão nos olhos de quem vê. De
acordo com este dogma entrincheirado da ciência moderna, não pode haver
valores sem avaliadores. Nada sob o sol – nenhuma pessoa autoconsciente
racional, nenhum animal senciente, nenhum vegetal, nenhum mineral – tem
valor de qualquer tipo, seja como meio ou como fim, a menos que seja valorizado
por algum sujeito valorativo.

A clara distinção objetivo/subjetivo da ciência moderna, no entanto, foi


minada pelo Princípio da Incerteza de Heisenberg na física quântica, já que a
observação de entidades subatômicas afeta inevitavelmente seu estado de ser.
Portanto, a cosmovisão científica moderna tornou-se problemática. Aproveitando
essa circunstância, J. Baird Callicott (1989), entre outros, abordou uma teoria
do valor da ética ambiental que não é nem subjetiva nem objetiva. Assim como
físicos experimentais atualizam o potencial de um elétron para estar em um
lugar particular observando-o, assim, sugere Callicott, o valor potencial de uma
entidade, tanto instrumental quanto intrínseco, é atualizado por um avaliador
que a aprecia.

Embora possa eventualmente dar lugar a uma cosmovisão científica pós-


moderna, a cosmovisão científica moderna continua a reinar supremamente. A
“ética da terra” esboçada por Aldo Leopold (1949) tem sido a inspiração moral
da ala não antropocêntrica do movimento ambiental popular contemporâneo, em
parte porque Leopold respeita a subjetividade de valor exigida pela cosmovisão

241
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

moderna sem ao mesmo tempo reduzir a natureza aos recursos naturais.

Callicott (1987) afirma que a ética ambiental ecocêntrica de Leopold pode


ser atribuída à filosofia moral do século XVIII de David Hume e Adam Smith, que
pensavam que os sentimentos estão nas fundações dos juízos de valor. Enquanto
os sentimentos caem no lado subjetivo da grande divisão entre sujeito e objeto,
Hume e Smith também apontam que nossos sentimentos podem ser altruístas ou
orientados a outros, assim como egoístas. Por isso, podemos valorizar os outros
por si mesmos, como fins em si mesmos. Além disso, Hume e Smith observam que,
além da simpatia pelos outros, respectivamente, também experimentamos uma
afeição pública e, consequentemente, valorizamos os interesses da sociedade, até
mesmo por sua conta própria.

Em A origem do homem e a seleção sexual, Charles Darwin (2002 [1871]) adotou


a psicologia moral de Hume e Smith e argumentou que os sentimentos morais
evoluíram entre os seres humanos em conjunto com a evolução da sociedade,
crescendo em bússola e refinamento juntamente com o crescimento e refinamento
das comunidades humanas. Ele também desenvolveu o incipiente holismo de
Hume e Smith, declarando categoricamente que as afeições éticas primordiais se
centravam na tribo e não em seus membros individuais.

Leopold (1949), construindo diretamente sobre a teoria da origem e


evolução da ética de Darwin, aponta que a ecologia representa os seres humanos
como membros não apenas de múltiplas comunidades humanas, mas também da
“comunidade biótica”. Assim, “a ética da terra simplesmente amplia as fronteiras
da comunidade para incluir solos, águas, plantas e animais, ou coletivamente: a
terra [...] Implica respeito por [...] parceiros na membresia e também respeito pela
comunidade como tal” (LEOPOLD, 1949, p. 204).

Os eticistas do bem-estar animal e biocentristas afirmam que o ecocentrismo


de Leopold é equivalente ao “fascismo ambiental”. Leopold escreveu – e seus
expoentes afirmam – que “algo está certo quando tende a preservar a integridade,
estabilidade e beleza da comunidade biótica [e] errado quando tende ao contrário”
(LEOPOLD, 1949, p. 224-225). Se isso for verdade, então não só seria certo matar
veados e queimar arbustos para o bem da comunidade biótica, como também
seria correto tomar medidas draconianas para reduzir a superpopulação humana
– a causa subjacente, de acordo com a sabedoria ambiental convencional, de todos
os males ambientais.

Proporcionar a possibilidade de consideração moral das totalidades, no


entanto, não exclui necessariamente os indivíduos. A ética da terra é holística,
bem como (não em vez de) individualista, embora no caso da comunidade biótica
e de seus membros não humanos as preocupações holísticas possam eclipsar as
individualistas. A ética da terra não substitui ou cancela deveres orientados aos
humanos previamente gerados socialmente – aos membros da família e à família,
aos vizinhos e à vizinhança, a todos os seres humanos e da humanidade. A evolução
social humana consiste em uma série de adições em vez de substituições. A

242
TÓPICO 3 | ÉTICA AMBIENTAL

esfera moral, crescendo em circunferência com cada estágio do desenvolvimento


social, não se expande como um balão – não deixando vestígios de seus limites
anteriores. Em vez disso, acrescenta novos anéis, novos "acréscimos", como
Leopold (1949) chamou cada comunidade social-ética emergente. A descoberta
da comunidade biótica simplesmente acrescenta várias novas órbitas externas
de afiliação e obrigações. Nossos laços sociais mais íntimos e suas obrigações
continuam intactas. Assim, podemos pesar e equilibrar nossos deveres mais
recentemente descobertos para a comunidade biótica e seus membros com
nossas obrigações sociais mais veneráveis ​​e insistentes, de maneiras inteiramente
familiares, razoáveis e​​ humanas.

5 ECOFEMINISMO
O termo “ecofeminismo” é uma contração da expressão “feminismo
ecológico”, que pode ser entendida como uma análise de questões e preocupações
ambientais do ponto de vista feminista e, vice-versa, como um enriquecimento e
complicação do feminismo com insights extraídos da ecologia. O ecofeminismo é
tanto uma abordagem à ética ambiental quanto um feminismo alternativo.

Um axioma do ecofeminismo é que, historicamente e globalmente, os


homens dominaram as mulheres e o “homem” dominou a natureza. Além disso,
muitos textos definidores de cultura centrados no homem, como os épicos de
Homero e Hesíodo, as obras dos antigos filósofos, e assim por diante, associaram
as mulheres à natureza e personificaram a Terra e a natureza em geral como
femininas (GRIFFIN, 1978). A dominação das mulheres e da natureza parece
derivar de uma única fonte: o patriarcado (literalmente, regra do pai). Criticar
e superar o patriarcado, principal força ideológica responsável pela dominação
das mulheres, e ao mesmo tempo criticar e superar a principal força ideológica
responsável pela degradação e destruição da natureza. De acordo com Marti
Kheel, “para os ecologistas profundos, é a cosmovisão antropocêntrica que é
a principal culpada. Os ecofeministas, por outro lado, argumentam que é a
cosmovisão androcêntrica que merece a culpa primária” pela crise ambiental
(KHEEL, 1990, p. 129).

Alguns ambientalistas suspeitam que essa análise seja um estratagema


disfarçado para desviar as energias do movimento ambientalista para o
movimento feminista. O ecologista profundo Warwick Fox (1989), por exemplo,
argumenta que uma ética ambiental feminista focada em abolir o patriarcado
é muito egoísta, simplista e condescendente para ser levada a sério como uma
panaceia para os males ambientais. Outros movimentos, ele aponta, podem fazer,
e fizeram a mesma afirmação implausível: se nós apenas abolirmos a ideologia
do racismo, capitalismo, imperialismo, e assim por diante, então nós iremos
inaugurar novas eras e tudo ficará certo com o mundo, natural e social.

Karen J. Warren (1990) não segue Kheel (1990) em culpar a dominação


e subordinação da natureza pelo “homem” à dominação e subordinação das

243
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

mulheres pelos homens. Em vez disso, ela argumenta, ambas as formas de


“opressão” são expressões “gêmeas” de dualismos de valor hierarquicamente
ordenados, reforçadas com uma “lógica de dominação”. As críticas ao
antropocentrismo e ao androcentrismo são mutuamente esclarecedoras e
complementares. Uma pessoa que se opõe a um deve se opor a outro – porque a
subordinação, a dominação e a opressão estão erradas, seja das mulheres pelos
homens ou da natureza pelo “homem”. Os ambientalistas também devem ser
feministas e feministas, ambientalistas. O ecofeminismo é a união dos dois.

Uma abordagem ecofeminista procura corrigir um alegado “preconceito


masculino” na teoria de ética ambiental – uma seleção de conceitos e metodologia
que ignora, diminui ou denigre os problemas, preocupações e experiências das
mulheres. Alison M. Jaggar (2000) sugeriu que a ética ocidental moderna, a
"teoria moral do Iluminismo", é completamente preconceituosa, pois retrata os
agentes morais como sendo "desencarnados, associais, autônomos, unificados,
racionais e essencialmente similares a todos os outros" agentes (p. 367). Em suma,
abstrai, generaliza, universaliza. Intimamente associado a essa psicologia moral
“cartesiana”, esses lugares comuns da ética ocidental moderna são a aplicação
universal de princípios e regras abstratas, a imparcialidade, a objetividade, os
direitos e a vitória da razão sinótica e desapaixonada sobre os sentimentos míopes
e prejudiciais. Warren (1990, p. 142) argumenta, portanto, que

o ecofeminismo [...] envolve uma mudança de uma concepção da ética


como uma questão primariamente de direitos, regras ou princípios
predeterminados e aplicados em casos específicos a entidades vistas
como concorrentes na disputa de posição moral, para uma concepção
da ética como crescendo a partir de [...] relações definidoras [...] e da
comunidade.

Ela observa ainda que “o ecofeminismo faz um lugar central para [os
valores mais femininos, menos masculinos] de cuidado, amizade, confiança e
reciprocidade apropriada – valores que pressupõem que nossos relacionamentos
com os outros são centrais para nossa compreensão de quem somos” (WARREN,
1990, p. 143).

É surpreendente que os ecofeministas não tenham endossado


calorosamente a ética da terra de Aldo Leopold, que fundamenta a moralidade
em sentimentos como amor, simpatia e sentimento de companheirismo. O
locus classicus para uma ética ambiental que cresce a partir de "relacionamentos
definidores" e "comunidade" é encontrado em Um Almanaque do Condado de Areia
(1949), de Aldo Leopold. Marti Kheel (1990), no entanto, critica a ética da terra
de Leopold, argumentando que ela simboliza o preconceito masculino. Leopold
endossa a caça, historicamente uma atividade predominantemente masculina,
como um meio não só de gestão ecológica, mas também de experienciar nossas
relações definidoras com a natureza e cultivar um amor e respeito por coisas
naturais, selvagens e livres.

244
TÓPICO 3 | ÉTICA AMBIENTAL

6 ECOLOGIA PROFUNDA
Assim como há democratas (com a letra “D” maiúscula, filiados a um
partido político, por exemplo) e democratas (com um “d” minúsculo, pessoas,
independentemente da filiação partidária, que concordam com Winston
Churchill que a democracia é a pior forma de governo, à exceção de todos os
outros), assim também existem Ecologistas Profundos (com um "E" e "P"
maiúsculos) e ecologistas profundos (com um "e" e "p" minúsculos). Os últimos,
como Aldo Leopold (1949), pensam que a ecologia tem profundas implicações
filosóficas que transforma nossa compreensão do mundo em que vivemos e o que
significa ser um ser humano. Ecologistas Profundos, por outro lado, endossam
a “plataforma” de oito pontos da Ecologia Profunda que Arne Naess (1989) tem
co-autoria com George Sessions (DEVALL; SESSIONS, 2004). Além disso, eles
minimizam a importância da ética ambiental e defendem a realização do Self [com
o “S” maiúsculo]. Em suma, a ecologia profunda é uma orientação filosófica, e a
Ecologia Profunda é uma ideologia.

A ética per se, alegam os Ecologistas Profundos, assume o atomismo


social, uma concepção de cada self individual como externamente relacionado
a todos os outros selves e à natureza não autoconsciente (FOX, 1990). Portanto,
os Ecologistas Profundos supõem que um agir ético por parte de um agente
moral atômico envolve relutantemente considerar os interesses de outros seres
moralmente consideráveis ​​com igualdade e imparcialidade com os seus próprios.
Todavia, para as pessoas, de fato e consistentemente, comportar-se eticamente –
como assim se caracteriza – é tão raro quanto nobre. Portanto, mesmo se a ética
ambiental pudesse ser amplamente infundida, a destruição e a degradação do
meio ambiente seriam pouco atenuadas.

No entanto, as implicações metafísicas da ecologia enfraquecem o


atomismo social sobre o qual a ética supostamente está embasada. Nós, seres
humanos, estamos internamente, não externamente, relacionados uns aos outros
e às entidades naturais não-humanas e à natureza como um todo. Os “outros”
não podem ser distinguidos de forma clara e nítida de nós mesmos. Nossos
relacionamentos, naturais e sociais, com "eles" são mutuamente definidores.
Estamos inseridos em comunidades, bióticas e humanas. Se pudéssemos apenas
perceber que o mundo do meio ambiente é indistinguível de nós mesmos,
poderíamos alistar o poderoso e confiável motivo do interesse próprio no esforço
de reverter a degradação e a destruição do meio ambiente (NAESS, 1989).

O processo de autorrealização ecológica profunda é experiencial e também


intelectual. Através da prática, bem como do estudo, devemos cultivar um senso
palpável de identificação com o mundo. O comportamento protetor da natureza
fluirá da identificação experiencial com a natureza. Warwick Fox (1990) sugeriu
que a Ecologia Profunda deveria de fato ser renomeada “ecologia transpessoal”,
uma vez que, como na psicologia transpessoal, o objetivo da Autorrealização –
realização do Self – (com um “A” maiúsculo) envolve a autotranscendência (com
um “A” minúsculo) transcendência.

245
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

As suspeitas da Ecologia Profunda sobre a eficácia da ética ambiental


parecem basear-se numa caracterização estreita da ética que exclui a ética
comunitária baseada no sentimento, como a ética da terra de Leopold (1949) e seus
correspondentes ecofeministas. Ecofeministas também criticaram duramente a
Ecologia Profunda porque parece "totalizar" e "colonizar" o "outro" (CHENEY,
1987; PLUMWOOD, 1993). Com a importante exceção de Naess (1989), os
Ecologistas Profundos afirmam explícita ou implicitamente que a visão de mundo
ecológica integrada e sistêmica é verdadeira e consideram falsas outras formas de
construir a natureza e a relação das pessoas com a natureza. Uma pedra angular
do feminismo é a abertura à experiência das mulheres, uma experiência bastante
variada. A experiência de todos ou mesmo da maioria das mulheres pode não ser
compatível com a Autorrealização Ecológica Profunda. Portanto, as afirmações
doutrinárias dos Ecologistas Profundos sobre como o mundo é realmente e
verdadeiramente organizado e como o devemos experienciar são anátemas para a
maioria dos ecofeministas.

7 PLURALISMO
O termo “pluralismo” na ética caracteriza duas coisas igualmente bem.
A primeira é o que poderíamos chamar de “pluralismo social” é a visão de que
perspectivas éticas diversas e muitas vezes inconsistentes devem ser respeitadas
e que pode não haver nenhum princípio moral ou conjunto de princípios, por
mais básico que seja, que todos os agentes morais devam reconhecer. Os direitos
humanos, por exemplo, podem ser amplamente reconhecidos no Ocidente, mas
não em outras partes do mundo; portanto, do ponto de vista de um pluralista
social, para os governos ocidentais, tentar impor padrões de direitos humanos a
sociedades não ocidentais é inadequado.

A segunda é o pluralismo pessoal, que é a visão de que um único agente
moral pode endossar uma variedade de princípios morais diferentes, alguns
dos quais podem ser mutuamente inconsistentes, e empregar um ou outro em
diferentes situações carregadas moralmente. Por exemplo, ao resolver questões
éticas sobre dieta, um pluralista pessoal pode aplicar o princípio de Singer
(2004) de que não se deve causar sofrimento desnecessário aos seres sencientes
e, portanto, decidir não comer carne industrializada. Ao resolver questões éticas
sobre o aborto, ele ou ela pode aplicar o princípio de Schweitzer, de reverência
para a vida, e votar em um candidato antiaborto para um cargo público. E, ao
resolver questões éticas sobre conservação de espécies, a mesma pessoa pode
adotar o princípio de Leopold (1949) de preservar a integridade, estabilidade e
beleza da comunidade biótica e ajudar a salvar uma espécie de planta endêmica
matando as cabras ou os porcos selvagens que a ameaçam.

O pluralismo social parece atraente porque parece implicar inclusividade


e tolerância. In extremis, no entanto, o pluralismo social é vulnerável ao mesmo
tipo de crítica que o relativismo ético em casos extremos atraiu. Um pluralista
social não reconhece valores ou princípios éticos universais, ele não tem meios

246
TÓPICO 3 | ÉTICA AMBIENTAL

de desafiar eticamente as crenças morais de qualquer outra pessoa. Além disso,


se não há valores ou princípios éticos universais sobre os quais basear o acordo,
então as diferenças radicais e intratáveis ​​da perspectiva moral são irreconciliáveis.
Como então eles podem ser resolvidos exceto por coerção?

O pluralismo pessoal surgiu na ética ambiental porque encontrar um


único princípio moral que pudesse guiar nossas ações em relação a outras pessoas,
animais, plantas, espécies, ecossistemas, a atmosfera, os oceanos e a biosfera se
mostrou difícil (STONE, 1987). Além disso, nossas vidas morais inerentemente
ricas e complicadas podem ser distorcidas se reduzidas a um único princípio mestre
de ação e frequentemente somos enganados se tentarmos seguir rigorosamente
apenas um (BRENNAN, 1992). De acordo com Mary Midgley (2018), podemos
ler a história da teoria ética ocidental, de Platão e Aristóteles a Singer e Leopold,
não como uma série de formulações e justificativas para princípios mestres de
ação concorrentes, mas como uma série de insights esclarecedores da experiência
ética humana que pode aprofundar nossa reflexão moral e nos ajudar a fazer
escolhas práticas sábias.

Proponentes e críticos do pluralismo pessoal notaram alguns problemas


óbvios. Um agente que tenha uma variedade de princípios e suas justificativas
teóricas prontas, sem compromisso fiel com qualquer um deles exigido, pode ser
tentado a escolher o mais conveniente ou egoísta. Mas toda ética, pluralista ou
unitária, assume boa vontade por parte dos agentes morais. Um problema mais
difícil é como selecionar qual princípio aplicar quando mais de um é relevante
em algum momento da decisão, e quando aqueles que são relevantes indicam
ações diferentes e incompatíveis. Todavia, exigir uma solução algorítmica para
esse problema é fazer a pergunta contra o pluralismo pessoal.

Princípios morais, no entanto, não existem em um vácuo intelectual


(CALLICOTT, 1990). Eles são frequentemente derivados de e estão sempre
associados a um complexo de ideias de apoio – geralmente uma teoria ética, que
por sua vez é apoiada por uma filosofia moral. Ao optar por agir de acordo com
um princípio moral, um pluralista moral pessoal também endossa – consciente
ou inconscientemente – a teoria ética e, em última instância, a filosofia moral que
a sustenta. Todavia, as teorias éticas e filosofias morais que sustentam princípios
populares como a regra de ouro cristã, a mediania aristotélica, o imperativo
categórico kantiano, o princípio utilitarista da maior felicidade e assim por diante
oferecem visões radicalmente diferentes da natureza e da natureza humana.
Somos nós, fins-em-nós-mesmos, racionais e moralmente autônomos, para
quem a natureza existe apenas como meio, como argumenta Kant; ou somos
organismos de prazer e dor sendo iguais neste respeito moralmente relevante a
todos os outros animais sencientes, como Singer afirma? Como podemos ser os
dois ao mesmo tempo?

247
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS: O COMUNITARISMO


Uma filosofia moral comunitária poderia fornecer um senso coerente do
self e do mundo sem comprometer a riqueza e a complexidade de nossas vidas
morais, ou tentar derivar todas as ações éticas de um único princípio. Suponha
que a ética, como Darwin (2002) argumentou, seja correlata à sociedade; que,
nesta fase da evolução social humana, somos simultaneamente membros de
muitas comunidades ou sociedades, incluindo famílias, bairros, cidades ou vilas,
estados-nações, a comunidade humana global, a comunidade mista de animais
domésticos e humanos e a comunidade biótica; e que um espectro de deveres
e obrigações diferentes e nem sempre compatíveis se origina de nossas várias
relações sociais – por exemplo, dar amor a nossos filhos, vigiar as casas de
nossos vizinhos quando estão fora de férias, doar roupas velhas ao Exército da
Salvação, pagar nossos impostos, aliviar a fome no mundo, boicotar a produção
agropecuária de carnes industrializadas e ajudar a preservar a biodiversidade.

Comportamentos corretos e equânimes em relação à família e aos


membros da família, à humanidade e aos seres humanos, à comunidade biótica
e aos animais e plantas silvestres surgem dos tipos muito diferentes de relações
comunais que suportamos nesses casos muito diferentes. Portanto, o que está
certo no contexto de um tipo de comunidade (alimentar animais domésticos, que
são membros da “comunidade mista”, por exemplo) pode estar errado em outro
(alimentar animais silvestres, que são membros da comunidade biótica). Uma
multiplicidade de princípios gerados pela comunidade guia nossas ações, mas
essa multiplicidade é unida e coordenada por um único entendimento geral de
como nossos vários deveres surgem e a quem eles se aplicam.

Uma perspectiva moral coerente como essa certamente não determina


automaticamente o melhor curso de ação quando os múltiplos deveres entram
em conflito. No entanto, pode-se, pelo menos esperar racionalmente decidir,
em circunstâncias de difícil escolha, qual das várias funções relevantes, mas
conflitantes, é a mais urgente, porque todas podem ser expressas em termos
comparáveis e​​ comensuráveis.

LEITURA COMPLEMENTAR

A ética empresarial

Robert C. Solomon

1. Introdução

A ética empresarial ocupa uma posição peculiar no campo da ética


“aplicada”. Tal como os seus equivalentes em profissões como a medicina e o
direito, consiste numa aplicação duvidosa de alguns princípios éticos muito gerais
(“dever” ou “utilidade”, por exemplo) a situações e crises bastante específicas e

248
TÓPICO 3 | ÉTICA AMBIENTAL

muitas vezes únicas. Mas, ao contrário destas aplicações, a ética empresarial trata
de uma área do empreendimento humano cujos praticantes, na sua maioria, não
gozam de um estatuto profissional, e de cujos motivos muitas vezes se pensa (e
se diz) serem muito pouco nobres. A cobiça (anteriormente “avareza”) é muitas
vezes citada como o único motor da vida empresarial, e muita da história da ética
empresarial é, consequentemente, pouco lisonjeira para a atividade empresarial.
Num certo sentido, podemos seguir o percurso desta história até à época medieval
e antiga, quando, além dos ataques à atividade empresarial que encontramos
na filosofia e na religião, pensadores tão práticos como Cícero prestaram uma
atenção cuidada à questão da equidade nas transações comerciais correntes. Mas
para muita desta história também, a atenção centrou-se quase totalmente sobre
esse tipo de transações particulares, rodeando este campo de um forte sentido
de ad hoc, uma prática alegadamente não filosófica e afastada a maior parte das
vezes por ser “casuística”.

Assim, a disciplina da ética empresarial tal como é praticada hoje em dia


não tem mais do que uma década. Há apenas dez anos, era ainda uma amálgama
duvidosa de uma revisão rotineira de teorias éticas, algumas considerações
gerais acerca do carácter justo do capitalismo e de uma série de casos tornados
paradigmáticos – a maior parte deles desgraças, escândalos e desastres mostrando
o mundo empresarial no que tem de pior e de mais irresponsável. A ética
empresarial era um tópico sem credenciais na filosofia mais corrente, sem conteúdo
conceptual próprio. Era um assunto demasiado virado para a prática, até para a
“ética aplicada”, e, num mundo filosófico encantado por ideias transcendentes e
mundos apenas “possíveis”, a ética empresarial estava demasiado preocupada
com a vulgar moeda corrente das trocas quotidianas – o dinheiro.

Mas a própria filosofia virou-se outra vez para o “mundo real”, e a ética
empresarial encontrou ou fez o seu lugar na junção entre os dois. Novas aplicações
e uma renovada sofisticação na teoria dos jogos e na teoria da decisão social
permitiram a introdução de análises mais formais na ética empresarial e, o que
é muito mais importante, a interação com, e a imersão dos, praticantes da ética
empresarial no mundo ativo dos executivos das grandes empresas, sindicatos
de trabalhadores e pequenos empresários consolidou aquilo que tinham sido
elementos duvidosamente amalgamados da ética empresarial numa disciplina,
atraiu o interesse e atenção dos líderes empresariais e transformou praticantes
“acadêmicos” em participantes ativos no mundo empresarial. Por vezes, podemos
acrescentar, até lhes dão ouvidos.

2. Uma história concisa da ética empresarial

Num sentido amplo, a atividade empresarial existe pelo menos desde os


antigos sumérios que há cerca de seis mil anos (de acordo com Samuel Noah
Kramer) levavam a cabo uma grande quantidade de trocas comerciais, mantendo
registos. Mas o comércio nem sempre foi visto como uma atividade fundamental
e respeitável, tal como acontece nas sociedades modernas, e a perspectiva ética
sobre o comércio ao longo da maior parte da história tem sido quase totalmente

249
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

negativa. Aristóteles, que merece ser reconhecido como o primeiro economista


(dois mil anos antes de Adam Smith) distinguia dois sentidos diferentes daquilo
a que chamava “economia”; o oikonomikos ou economia doméstica, que ele
aprovava e considerava essencial para o funcionamento de qualquer sociedade
ainda que pouco complexa, e a chrematisike, a troca que tem como objetivo o lucro.
Aristóteles acusou esta atividade de ser completamente destituída de virtude e
chamou “parasitas” àqueles que se entregavam a tais práticas puramente egoístas.
O ataque de Aristóteles à prática repugnante e improdutiva da “usura” manteve
a sua força praticamente até ao século XVII. Apenas os marginais, nas franjas
da sociedade, e não os cidadãos respeitáveis, se dedicavam a tais atividades (O
Shylock de Shakespeare no Mercador de Veneza era um marginal e um usurário.)
Esta é, a traços largos, a história da ética empresarial — o ataque indiscriminado
ao comércio e às suas práticas. Jesus expulsou os vendilhões do templo, e os
moralistas cristãos de S. Paulo a S. Tomás de Aquino e Martinho Lutero seguiram
o seu exemplo, condenando rotundamente a maior parte daquilo a que hoje
prestamos homenagem como “o mundo dos negócios”.

Mas se a ética empresarial como condenação foi levada a cabo pela


filosofia e pela religião, o mesmo aconteceu com a dramática viragem em relação
ao comércio que teve lugar no início da idade moderna. Calvino e, em seguida,
os Puritanos Ingleses, pregaram as virtudes da poupança e da iniciativa, e Adam
Smith canonizou a nova fé em 1776 na sua obra-mestra, A Riqueza das Nações. A
nova atitude em relação ao comércio não surgiu, claro está, da noite para o dia; ao
invés, baseou-se em tradições com uma longa história. As guildas medievais, por
exemplo, tinham estabelecido os seus próprios códigos de “ética empresarial”,
específicos para cada ofício, muito antes de o comércio se tornar a instituição
fundamental da sociedade. Mas a aceitação geral do comércio e o reconhecimento
da economia como uma estrutura fundamental da sociedade dependeu de uma
maneira completamente nova de pensar acerca da sociedade que exigiu não
apenas uma mudança na sensibilidade filosófica e religiosa, mas também, e
subjacente a ela, um novo sentido da sociedade e até da natureza humana. Esta
transformação pode ser explicada parcialmente em termos de urbanização, de
sociedades maiores e mais centralizadas, da privatização de grupos familiares
enquanto consumidores, do rápido desenvolvimento tecnológico, do crescimento
da indústria e do concomitante desenvolvimento de estruturas, necessidades
e desejos sociais. Com a obra clássica de Adam Smith, a chrematisike tornou-se
a instituição fundamental e a principal virtude da sociedade moderna. Mas a
versão popular degradada da tese de Smith (a cobiça é boa) não era de molde
a desembocar na disciplina da ética empresarial (não será isto uma contradição
nos termos?), e os discursos moralizadores acerca do comércio mantiveram o seu
preconceito antigo e medieval. Homens de negócios como Mellon e Carnegie
faziam conferências públicas acerca das virtudes do sucesso e da noblesse oblige dos
ricos, mas a ética empresarial enquanto tal foi na sua maior parte desenvolvida
por socialistas, como uma diatribe contínua contra a amoralidade do modo
empresarial de pensar. Só muito recentemente começou a dominar no discurso
acerca do comércio uma perspectiva mais moral e respeitável acerca desta
atividade, o que arrastou consigo a ideia de estudar os valores e ideais subjacentes.

250
TÓPICO 3 | ÉTICA AMBIENTAL

Podemos facilmente compreender como a liberdade do mercado pode sempre ser


uma ameaça aos valores tradicionais e hostil ao controlo governamental, mas já
não concluímos de forma tão sofística que o próprio mercado não tem valores ou
que os governos servem melhor o bem público do que os mercados.

3. O mito do lucro como objetivo

A ética empresarial já não se preocupa apenas ou fundamentalmente com


a crítica do comércio e da sua prática. Os lucros já não são condenados juntamente
com a “avareza” em sermões moralizantes e as grandes empresas já não são
vistas como monólitos sem rosto e sem alma. A nova preocupação diz respeito
a como deve o lucro ser concebido no contexto mais amplo da produtividade
e da responsabilidade social, e como podem as grandes empresas, enquanto
comunidades complexas, servir tanto os seus empregados como a sociedade na
qual se encontram. A ética empresarial evoluiu de um ataque totalmente crítico ao
capitalismo e ao “objetivo do lucro”, para um exame mais produtivo e construtivo
das regras e práticas subjacentes ao comércio. Mas o antigo paradigma — aquilo
a que Richard DeGeorge chamou “o mito dos negócios amorais” — persiste, não
apenas num público desconfiado e em alguns filósofos de pendor socialista, mas
também entre muitas pessoas que se dedicam ao comércio. Posto isto, a primeira
tarefa da ética empresarial é abrir caminho por entre alguns mitos e metáforas
altamente incriminatórios que, mais do que esclarecer, obscurecem o espírito
subjacente que torna a atividade empresarial possível.

Cada disciplina tem o seu próprio vocabulário de autoglorificação. Os


políticos deliciam-se com os conceitos de “serviço público” ao mesmo tempo
que procuram o poder pessoal, os advogados defendem os nossos “direitos” na
base de pagamentos chorudos – e os professores descrevem aquilo que fazem em
termos da nobre linguagem da “verdade e do conhecimento”, enquanto gastam
a maior parte do seu tempo e energia em política de bastidores. Mas, no caso do
comércio, a linguagem de autoglorificação é frequente e particularmente pouco
lisonjeira. Por exemplo, os executivos ainda falam acerca daquilo que fazem em
termos do “lucro como objetivo”, sem se aperceberem de que a expressão foi
inventada pelos socialistas do século XIX como um ataque ao comércio e à sua
busca redutora de dinheiro com exclusão de todas as outras considerações e
obrigações. É verdade que um negócio visa obter lucros, mas só o faz fornecendo
bens e serviços de qualidade, criando empregos e “inserindo-se” na comunidade.
Selecionar os lucros em detrimento da produtividade ou do serviço público como
o objetivo central da atividade empresarial é simplesmente provocatório. Os
lucros não são, em si, o fim ou o objetivo da atividade empresarial: os lucros
são distribuídos e reinvestidos. Os lucros são um meio para montar o negócio
e recompensar os empregados, os executivos e os investidores. Para algumas
pessoas os lucros podem ser um meio de registar os ganhos, mas mesmo nestes
casos o objetivo é o estatuto e a satisfação de “ganhar” e não os lucros em si.

Uma imagem de si que alguns executivos têm, mais sofisticada, mas


não muito diferente, afirma que os gestores empresariais estão acima de tudo

251
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

vinculados a uma e apenas uma obrigação: maximizar os lucros dos seus


acionistas. Mas não é preciso inquirir se este é de facto o objetivo por detrás da
maior parte das decisões de gestão para chamar a atenção para que, ainda que os
gestores reconheçam que os seus próprios papéis nos negócios são definidos mais
por obrigações do que pelo “objetivo do lucro”, esta imagem pouco lisonjeira
foi simplesmente transferida para os acionistas (isto é, para os proprietários).
Será verdade que os investidores/proprietários se preocupam apenas com a
maximização dos seus lucros? Será, afinal, o acionista a encarnação daquele
desumano homo economicus completamente destituído de responsabilidade e
orgulho cívico, sem qualquer preocupação com as virtudes da empresa de que
ele ou ela é proprietário para além das responsabilidades que podem torná-lo
vulnerável a processos judiciais onerosos? E se alguns investidores fortuitos, que
investem apenas por quatro meses, podem realmente não estar senão interessados
em aumentar os seus investimentos em 30 %, como podemos ter tanta certeza de
que os gestores da empresa têm alguma obrigação para com eles além de não
derreter ou esbanjar intencionalmente o seu dinheiro? A procura do lucro não é
o objetivo último e muito menos é o objetivo único dos negócios. É antes um dos
muitos objetivos e ainda assim é- o enquanto um meio e não enquanto um fim
em si.

É assim que compreendemos mal o comércio: adoptamos uma perspectiva


demasiada redutora daquilo que o comércio é, por exemplo, a procura do lucro,
e depois retiramos conclusões antiéticas ou amorais. É este enfoque redutor e
injustificado sobre, por exemplo, os “direitos dos acionistas” que tem sido
usado para defender alguns dos “takeovers hostis”, extremamente destrutivos e
certamente improdutivos, de grandes empresas nos últimos anos. Não estou com
isto a negar os direitos dos acionistas a um retorno justo, nem as “responsabilidades
fiduciárias” dos gestores de uma empresa. Quero apenas dizer que estes direitos
e responsabilidades só têm sentido num contexto social mais vasto e que a
própria ideia do “lucro como objetivo” como um fim em si — em oposição a
uma concepção do lucro como um meio para encorajar e recompensar o trabalho
árduo e o investimento, construindo um negócio melhor e servindo melhor a
sociedade — é um obstáculo sério à compreensão do rico tecido de objetivos e
atividades que compõem o mundo dos negócios.

4. Outros mitos e metáforas dos negócios

Entre os mitos e metáforas mais prejudiciais que encontramos no discurso


acerca dos negócios estão aqueles conceitos “darwinistas” másculos como “a
sobrevivência do mais apto” e “aquilo lá fora é uma selva” (para a origem destes
conceitos, veja-se artigo 44, “O Significado da Evolução”). A ideia subjacente,
claro está, é a de que a vida dos negócios é competitiva, e nem sempre justa.
Mas estas duas observações óbvias são muito diferentes das imagens de “comer
ou ser comido” e “cada um por si” que são vulgares no mundo empresarial. É
verdade que o comércio é e deve ser competitivo, mas não é verdade que seja
uma atividade assassina, canibal, onde “se faz aquilo que for preciso para
sobreviver”. Por mais competitiva que uma dada indústria possa ser, assenta

252
TÓPICO 3 | ÉTICA AMBIENTAL

sempre sobre uma fundação de interesses partilhados e regras de conduta


consensuais, e a competição tem lugar não numa selva, mas numa comunidade,
a qual presumivelmente serve e da qual depende. A vida empresarial é, antes
de mais, fundamentalmente cooperativa. A competição só é possível nos limites
de preocupações que são mutuamente partilhadas. E, contrariamente à metáfora
da selva de “cada animal por si”, o comércio envolve sempre grandes grupos de
cooperação baseados na confiança mútua, não apenas as próprias empresas, mas
também redes de fornecedores, serviços, clientes e investidores. A concorrência é
essencial para o capitalismo, mas confundir isto com concorrência “desenfreada”
é minar a ética e também não compreender a natureza da concorrência (Do mesmo
modo, devemos olhar com desconfiança para a metáfora familiar da “guerra” que
é popular em tantos conselhos de administração e para a corrente metáfora do
“jogo” e a ênfase em “ganhar” que tem tendência para transformar a atividade
séria de “ganhar a vida” em qualquer coisa como um desporto autocontido).

A metáfora mais persistente, que parece resistir apesar da quantidade de


provas acumuladas contra ela, é a do individualismo atomista. A origem da ideia
segundo a qual a vida empresarial consiste simplesmente em transações sobre
as quais há acordo mútuo entre cidadãos individuais (evitando a interferência
do governo) pode ser encontrada em Adam Smith e na filosofia que dominou
a Grã-Bretanha no século XVIII. Mas a maior parte da vida empresarial de hoje
consiste em papéis e responsabilidades em empreendimentos cooperativos, sejam
eles pequenos negócios familiares ou empresas multinacionais gigantescas. O
governo e as empresas são tão frequentemente parceiros quanto opositores (por
mais frustrante que por vezes possa parecer o labirinto da “regulação”), seja por
meio de subsídios, tarifas e incentivos fiscais ou sob a forma de empreendimentos
em estreita cooperação (“Japan, Inc”. e projetos tão grandiosos como o do vaivém
espacial da NASA). Mas o individualismo atomista não é apenas inadequado
perante a complexidade empresarial do mundo dos negócios de hoje; é também
ingénuo ao supor que não há quaisquer regras e práticas institucionais subjacentes
à mais simples promessa, contrato ou troca. O comércio é uma prática social, e
não uma atividade levada a cabo por indivíduos isolados. Só são possíveis porque
têm lugar numa cultura com um conjunto de procedimentos e expectativas
estabelecidos e estes (à exceção de detalhes) não estão abertos à manipulação
individual.

Assim, é um sinal de considerável progresso que um dos modelos


dominantes do pensamento empresarial corrente seja a ideia de uma “cultura
empresarial”. Como em qualquer analogia, não há, claro, uma correspondência
estrita, mas é importante considerar as virtudes desta metáfora. É social, e rejeita
o individualismo atomista. Reconhece que o lugar das pessoas na organização
é a estrutura fundamental da vida empresarial. Aceita abertamente a ideia de
uma ética. Reconhece que os valores partilhados são o que mantém uma cultura
coesa. Ainda deixa lugar para o individualista rebelde, o empreendedor, mas este
ou esta só é possível na medida em que há um papel (e um papel importante)
para a excentricidade e a inovação. Mas o problema da metáfora da “cultura” é
que também ela tende a ser demasiado autocontida. Uma empresa não é como

253
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

uma tribo isolada das Ilhas Trobriand. Uma cultura empresarial é uma parte
inseparável de uma cultura mais vasta, é no máximo uma subcultura (ou uma
sub-sub-cultura), uma unidade funcional especializada que está num órgão que
está num organismo. Aliás, o que caracteriza todos estes mitos e metáforas é a
tendência para ver o comércio como uma atividade isolada e separada, com valores
diferentes dos valores da sociedade circundante. Acabar com esta perspectiva de
isolamento é a primeira tarefa da ética empresarial.

5. Ética micro, macro e molar

Podemos muito bem distinguir três (ou mais) níveis de comércio e


de ética empresarial, desde o micronível – as regras para uma troca justa entre
dois indivíduos, até ao macronível – as regras institucionais ou culturais do
comércio para toda uma sociedade (“o mundo dos negócios”). Devemos também
circunscrever uma área a que podemos chamar o nível molar da ética empresarial,
e que diz respeito à unidade básica do comércio nos nossos dias – a empresa.
A microética nos negócios é, claro, uma parte integrante da ética tradicional –
a natureza das promessas, as consequências e outras implicações das ações de
um indivíduo, o fundamento e a natureza dos diversos direitos individuais. O
que é específico da microética dos negócios é a ideia de troca justa e, juntamente
com ela, a noção de um salário justo, de tratamento justo, do que pode ser
considerado uma “pechincha” e do que, pelo contrário, constitui um “roubo”. A
noção aristotélica de justiça “comutativa” é aqui particularmente útil, e mesmo
os antigos se preocupavam já, de tempos a tempos, com a questão de saber se,
por exemplo, o vendedor de uma casa estava obrigado a informar o potencial
comprador de que o telhado tinha chegado ao seu limite e podia deixar entrar
água às primeiras chuvas fortes.

Por seu lado, a macroética tornou-se uma parte integrante das questões
mais vastas acerca da justiça, da legitimidade e da natureza da sociedade que
constituem a filosofia social e política. Qual é a finalidade do “mercado livre” – ou
é este em algum sentido um bem em si mesmo, com o seu próprio telos? São os
direitos de propriedade privada básicos, precedendo de algum modo a convenção
social (como John Locke ou, mais recentemente, Robert Nozick, defenderam) ou
deve o mercado ser também concebido como uma prática social complexa da qual
os direitos são apenas um ingrediente entre outros? Será o sistema de mercado
livre “justo”? Será a maneira mais eficiente de distribuir bens e serviços numa
sociedade? Prestará suficiente atenção a casos de necessidade desesperada (onde
uma “troca justa” nem sequer está em causa)? Prestará suficiente atenção ao
mérito, nos casos em que não está garantido que haja procura suficiente de virtude
para que esta seja recompensada? Quais são as funções legítimas (e ilegítimas) do
governo na vida dos negócios, e qual é a função da regulação governamental?
Por outras palavras, a macroética é uma tentativa de ter uma imagem global, de
compreender a natureza do mundo dos negócios e das suas funções próprias.

Mas a unidade “molar” definitiva do comércio moderno é a empresa, e


as questões centrais da ética empresarial tendem a dirigir-se declaradamente aos

254
TÓPICO 3 | ÉTICA AMBIENTAL

diretores e empregados daqueles poucos milhares de empresas que determinam a


maior parte da vida comercial mundial. São, especificamente, questões que dizem
respeito ao papel da empresa na sociedade e ao papel do indivíduo na empresa.
Assim, não é de surpreender que os assuntos mais estimulantes se encontrem
nos interstícios dos três níveis de discurso ético, por exemplo, a questão da
responsabilidade social da empresa – o papel da empresa na sociedade mais vasta
–, e questões de responsabilidades definidas pelo cargo – o papel do indivíduo
na empresa.

6. A empresa na sociedade: a ideia de responsabilidade social

O conceito central na maior parte da ética empresarial mais recente é a


ideia de responsabilidade social. É também um conceito que tem irritado muitos
dos entusiastas do mercado livre tradicional e promovido alguns argumentos
incorretos ou enganadores. O mais famoso será talvez a diatribe do prémio
Nobel da Economia Milton Friedman, no New York Times (13 de setembro de
1970), intitulada “A responsabilidade social dos negócios é aumentar os seus
lucros”. Neste artigo, Friedman chamava aos homens de negócios que defendiam
a ideia de responsabilidade social da empresa “fantoches involuntários das
forças intelectuais que estão a minar as bases de uma sociedade livre” e acusava-
os de “pregar um socialismo puro e duro”. O argumento de Friedman consiste
essencialmente em afirmar que os gestores de uma empresa são empregados dos
acionistas e, enquanto tais, têm uma “responsabilidade fiduciária” de maximizar os
seus lucros. Dar dinheiro para caridade ou outras causas sociais (exceto enquanto
atividades de relações públicas visando aumentar os negócios) e envolver-se em
projetos comunitários (que não aumentem os negócios da empresa) é equivalente
a roubar os acionistas. Mais ainda, não há qualquer razão para supor que uma
empresa ou os seus empregados têm alguma competência ou conhecimento
especial no âmbito das políticas públicas, logo, quando se envolvem em atividades
comunitárias (enquanto gestores da empresa, não enquanto cidadãos privados
agindo em seu próprio nome), estão não só a ultrapassar as suas competências,
como também a violar as suas obrigações.

Algumas das falácias presentes neste raciocínio têm a ver com a perspectiva
redutora do comércio como se estivesse orientado para o lucro, e com o retrato
unidimensional e muito pouco lisonjeiro do acionista que foi mencionado
anteriormente; outras (“socialismo puro e duro” e “roubar”) são simplesmente
excessos retóricos. O argumento da “competência” (também defendido por Peter
Drucker no seu influente livro sobre gestão, Management) só faz sentido para
casos em que as empresas levem a cabo projetos de engenharia social que estejam
de facto para além das suas capacidades; mas será que é preciso competências
especiais ou conhecimentos profundos para ter preocupações acerca do emprego
discriminatório, ou das práticas de promoção dentro da empresa, ou dos efeitos
devastadores dos lixos industriais sobre a paisagem envolvente? A resposta geral
a argumentos do tipo do de Friedman que recentemente se tornou popular na
ética empresarial pode ser sintetizada num modesto jogo de palavras: em vez
do “acionista” (stockholder), os beneficiários das responsabilidades sociais da

255
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

empresa são as partes interessadas (stakeholders), de que os acionistas são apenas


uma subclasse. Os stakeholders de uma empresa são todos os que são afetados e
que têm direitos e expectativas legítimos em relação às atividades da empresa,
o que inclui os empregados, os consumidores e os fornecedores, assim como a
comunidade envolvente e a sociedade no seu conjunto. A vantagem deste conceito
é que ele permite expandir muito o enfoque das preocupações empresariais
sem perder de vista as virtudes e capacidades particulares da própria empresa.
Considerada deste modo, a responsabilidade social não é um fardo adicional
sobre a empresa, mas uma parte integrante das suas preocupações essenciais,
servir as necessidades e ser justo não apenas para com os seus investidores ou
proprietários, mas também para com aqueles que trabalham, compram, vendem,
vivem perto ou são de qualquer outro modo afetados pelas atividades que são
exigidas e recompensados pelo sistema de mercado livre.

7. Obrigações para com os stakeholders: consumidores e comunidade

Os gestores das empresas têm obrigações para com os seus acionistas, mas
também têm responsabilidades para com outras partes interessadas (stakeholders).
Em particular, têm obrigações para com os consumidores e também para com a
comunidade circundante, assim como para com os seus próprios funcionários
(ver secção 8). O objetivo da empresa é, afinal de contas, servir o público, seja
fornecendo produtos e serviços desejados e desejáveis, seja não prejudicando a
comunidade e os seus cidadãos. Não se pode dizer, por exemplo, que uma empresa
está a cumprir o seu objetivo público se está a poluir o ar ou as reservas de água,
se está a estrangular o trânsito ou a açambarcar recursos comuns, se está (ainda
que indiretamente) a promover o racismo ou o preconceito, se está a destruir a
beleza natural do ambiente, ou se está a ameaçar o bem-estar financeiro ou social
dos cidadãos locais. Em relação aos consumidores, a empresa tem a obrigação
de fornecer bens e serviços de qualidade. Tem a obrigação de garantir que os
seus produtos e serviços são seguros, através de investigação e de instruções
adequadas, de avisos contra eventuais utilizações incorretas. Os produtores são
e devem ser responsáveis pelos efeitos perigosos e pela má utilização previsível
dos seus produtos, por exemplo, a probabilidade de uma criança engolir uma
peça pequena e facilmente destacável de um brinquedo feito especialmente para
o grupo etário a que ela pertence; e hoje alguns grupos de defesa do consumidor
sugerem que tal responsabilidade não deve ser excessivamente qualificada pela
alegação de que “se trata de adultos que sabiam ou deviam saber os riscos do
que estavam a fazer”. Esta última exigência aponta, no entanto, para uma série
de preocupações problemáticas correntes, especificamente, a presunção geral de
maturidade, inteligência e responsabilidade por parte do consumidor e a questão
dos limites razoáveis da responsabilidade por parte do produtor (É óbvio que às
crianças se aplicam considerações especiais). Em que medida deve o produtor
tomar precauções contra utilizações dos seus produtos que sejam claramente
idiossincráticas ou idiotas? Que restrições devem ser impostas a produtores
que vendem e distribuem produtos comprovadamente perigosos, por exemplo,
cigarros e armas de fogo – ainda que haja uma considerável procura desses
produtos por parte dos consumidores – e deve o produtor ser responsável por

256
TÓPICO 3 | ÉTICA AMBIENTAL

aquilo que é claramente um risco previsível para o consumidor? De facto, cada


vez mais se coloca a questão de saber se e em que medida devemos reinstalar
aquele aviso agora antigo, “Consumidor, tem cuidado”, para contrariar a
tendência descontrolada em direção à irresponsabilidade do consumidor e à
responsabilização empresarial indiscriminada.

A inteligência e a responsabilidade do consumidor estão também em causa


no tópico muito discutido da publicidade, contra a qual algumas das mais sérias
críticas das práticas e negócios correntes têm sido dirigidas. A defesa clássica do
sistema de mercado livre consiste em afirmar que ele satisfaz a procura. Mas se
forem os produtores a criar de facto a procura para os produtos que produzem,
então esta defesa clássica perde o seu fundamento. Efetivamente, afirma-se que
publicidade é em si coerciva, na medida em que interfere com a livre escolha
do consumidor, o qual deixa de estar numa posição em que decide a melhor
maneira de satisfazer as suas necessidades e é em vez disso submetido a um
bombardeamento de influências que podem muito bem ser irrelevantes ou até
contrárias a essas necessidades. E mesmo quando a desejabilidade do produto
não está em causa, há questões muito reais acerca da publicidade de certas
marcas e da criação artificial de “diferenciação de produtos”. E há ainda aquelas
questões já familiares acerca do gosto – na fronteira (e por vezes para além dela)
entre a ética e a estética. Há o uso do sexo – muitas vezes tentador e por vezes
declarado – para aumentar o poder de atração de produtos que vão da pastilha
elástica aos automóveis; há as promessas implícitas, mas obviamente falsas, de
sucesso e aceitação social se comprarmos este sabonete ou aquela pasta de dentes;
e há as representações ofensivas das mulheres ou de minorias e muitas vezes da
natureza humana enquanto tal, apenas para vender produtos que a maior parte
de nós podia perfeitamente dispensar. Mas será que este consumo supérfluo e o
gosto (ou falta dele) que o vende é uma questão ética? Será que se pode realmente
esperar que alguém acredite que a sua vida irá mudar com uma pitadinha de
mentol ou um chão de cozinha que não precisa de ser encerado?

Uma questão muito mais séria é, claro está, a mentira pura e simples em
publicidade. Mas aquilo que constitui uma “mentira” não é de todo evidente
neste mundo da sedução, do kitsch e da hipérbole. Talvez ninguém acredite
realmente que uma certa pasta de dentes ou um par de calças de ganga de marca
possa garantir o seu sucesso com a namorada dos seus sonhos (embora milhões
estejam dispostos a arriscar, porque nunca se sabe), mas quando um produto tem
efeitos que podem muito bem ser fatais, a exatidão da publicidade é considerada
com muito mais cuidado. Quando um produto médico é publicitado com base
em informação técnica enganosa, incompleta ou simplesmente falsa, quando um
“remédio para a constipação” é vendido ao balcão com a promessa, mas sem
qualquer prova concreta, de que pode aliviar os sintomas e evitar complicações,
quando efeitos secundários conhecidos e perigosos são ocultados sob a afirmação
genérica “Como no caso de qualquer outro medicamento, consulte o seu médico”,
então a aparentemente simples “verdade na publicidade” torna-se um imperativo
moral e alguns princípios éticos (se não mesmo a lei) foram violados.

257
UNIDADE 3 | ÉTICA APLICADA

Tem-se argumentado frequentemente que, num mercado livre


funcionando idealmente, a única publicidade que devia ser necessária ou
permitida seria a pura informação relativa à utilidade e qualidade do produto.
Mas, em algumas circunstâncias, o consumidor médio pode não ter nem ser capaz
de compreender a informação relevante acerca do produto em causa. No entanto,
em muitos casos, os consumidores assumem muito pouca responsabilidade pelas
suas próprias decisões e não se pode com justiça culpar a publicidade pela sua
irresponsabilidade ou irracionalidade. As empresas têm responsabilidades para
com os seus clientes, mas os consumidores também têm responsabilidades. A
ética empresarial não é uma questão de responsabilidade empresarial apenas,
mas de um conjunto interligado de responsabilidades mútuas.

8. O indivíduo na empresa: responsabilidades e expectativas

A parte interessada (stakeholder) mais maltratada no padrão das


responsabilidades empresariais será talvez o empregado da empresa. Na teoria
tradicional do mercado livre, o trabalho do empregado é ele próprio mais uma
mercadoria, sujeita às leis da oferta e da procura. Mas enquanto que podemos
vender a preço de saldo alfinetes ou peças de máquina que já não têm procura,
ou simplesmente desfazermo-nos deles, o empregado é um ser humano, com
necessidades e direitos muito reais e distintos do seu papel na produção ou no
mercado. Um espaço de trabalho apertado e desconfortável ou longas e duras
horas de trabalho podem reduzir as despesas ou aumentar a produtividade, e
pagar salários de sobrevivência a empregados que, por uma razão ou outra, não
podem, não se atrevem ou não sabem como queixar-se, pode aumentar os lucros,
mas tais condições e práticas são hoje em dia reconhecidas por todos menos
pelo mais empedernido “darwinista” como altamente antiéticas e legalmente
injustificáveis. Mesmo assim, o modelo do trabalho como “mercadoria” ainda
tem uma forte influência em muito do pensamento empresarial, tanto no que diz
respeito a gestores e executivos como a trabalhadores, tanto especializados como
indiferenciados. É por esta razão que muita da mais recente ética empresarial
centrou a sua atenção em noções como os direitos dos empregados e, a partir
de uma perspectiva bastante diferente, é também por esta razão que a velha
noção de “lealdade à empresa” voltou a merecer atenção. Afinal, se uma empresa
trata os seus empregados como meras peças descartáveis, ninguém pode ficar
surpreendido se os empregados começarem a tratar a empresa com uma mera
fonte transitória de salários e benefícios.

No entanto, a outra face deste quadro perturbador é a também renovada


ênfase dada à noção de papéis e responsabilidades do empregado, uma das quais
é a lealdade à empresa. Nunca é demais sublinhar que “lealdade” aqui é uma
preocupação que funciona nos dois sentidos; o empregado pode, em virtude do seu
emprego, ter obrigações especiais para com a empresa, mas a empresa tem por sua
vez obrigações para com o empregado. Mas é perigoso colocar ênfase em conceitos
como “lealdade” sem esclarecer muito bem que a lealdade está ligada não apenas
ao emprego em geral, mas também ao papel e responsabilidades particulares
de cada um. Um papel, segundo R.S. Downie, é “um aglomerado de deveres e

258
TÓPICO 3 | ÉTICA AMBIENTAL

direitos com algum tipo de função social” – neste caso, uma função na empresa
(Roles and Values, p. 128). Há certos aspectos do papel e das responsabilidades
de cada um que podem ser especificados num contrato de trabalho e na lei, mas
muitos deles – por exemplo, os costumes locais, os padrões de deferência e outros
aspectos daquilo a que há pouco chamámos “cultura empresarial” – só se tornam
evidentes com o tempo e através do contato com outros empregados. Mais ainda,
não se trata simplesmente de “fazer o nosso trabalho”, mas, por razões de ética e
de economia, de fazer o nosso trabalho o melhor possível. A este respeito parece-
me correto o que diz Norman Bowie: “Um trabalho nunca é apenas um trabalho”.
Tem também uma dimensão moral: orgulho no nosso produto, cooperação com os
colegas e preocupação com o bem-estar da empresa. Mas, é claro, estas obrigações
decorrentes do papel têm os seus limites (por mais que certos gestores tentem
negar isto para sua conveniência). O comércio não é um fim em si, está ao invés
inserido e é sustentado por uma sociedade que tem outras e mais importantes
preocupações, normas e expectativas.

Ouvimos muitas vezes empregados (e até mesmo executivos de alto


nível) queixarem-se de que os seus “valores empresariais estão em conflito
com os seus valores pessoais”. O que isto normalmente significa é que, sugiro
eu, certas exigências feitas pelas empresas são antiéticas ou imorais. Aquilo a
que a maior parte das pessoas chama os seus “valores pessoais” são de facto os
valores mais profundos e amplos da sua cultura. E é neste contexto que devemos
compreender a já familiar figura trágica da vida empresarial contemporânea – o
denunciante. Este não é simplesmente um excêntrico que não consegue adaptar-
se à organização que ameaça denunciar. O denunciante reconhece não ser capaz
de tolerar a violação da moral ou da confiança pública e sente-se na obrigação
de fazer alguma coisa. As biografias da maior parte dos denunciantes não são
uma leitura agradável, mas a sua existência e ocasional sucesso testemunham
amplamente as obrigações interligadas das empresas, dos indivíduos e da
sociedade. Aliás, talvez o resultado particular mais importante da emergência
da ética empresarial no espaço público tenha sido chamar a atenção para esses
indivíduos e dar uma nova respeitabilidade àquilo que os seus empregadores
veem incorretamente como nada mais do que falta de lealdade. Mas quando
a exigência de fazer negócio entra em conflito com a moral ou o bem-estar da
sociedade, são os negócios que têm que ceder, o que é, talvez, o fundamental da
ética empresarial.

FONTE: SOLOMON, Robert C. A ética empresarial. Trad. Alexandra Abranches. Críticanarede.


Ética, 8 de agosto de 2004. Disponível em: <https://criticanarede.com/fil_eticaempresarial.
html>. Acesso: 15 out. 2018.

259
RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• As principais abordagens para a ética ambiental são o "antropocentrismo"; o


“biocentrismo”; o “ecocentrismo”, o “ecofeminismo” e a “ecologia profunda”.

• Uma ética ambiental antropocêntrica confere uma posição moral exclusivamente


aos seres humanos e considera as entidades naturais não humanas e a natureza
como um todo apenas um meio para fins humanos.

• Pode-se concordar com a hipótese da convergência – que os objetivos ambientais
práticos são tão bem servidos pela ética ambiental antropocêntrica quanto pela
não antropocêntrica –, mas ao mesmo tempo discordar que o antropocentrismo
é filosoficamente defensável.

• No início, as teorias da ética ambiental que emancipavam moralmente os seres
vivos individuais e os conjuntos naturais, como espécies e ecossistemas, eram
chamadas de “biocêntricas”.

• O "biocentrismo", a partir do uso por Paul W. Taylor, refere-se a teorias da ética
ambiental que apenas emancipam moralmente os seres vivos.

• Embora a ética do bem-estar animal e a ética ambiental não sejam de modo
algum as mesmas, o biocentrismo é lançado a partir de uma plataforma
fornecida pela ética do bem-estar animal.

• Se o critério para o status moral for elevado o suficiente para excluir todos os
seres não humanos, também excluirá alguns seres humanos; mas se for posto
baixo o suficiente para incluir todos os seres humanos, também incluirá um
grupo grande e diverso de animais não humanos.

• Singer sugere que estabeleçamos a senciência, a capacidade de sentir prazer e
dor, como uma qualificação para a consideração moral.

• Tom Regan defende uma “abordagem dos direitos”, de que alguns animais
têm “valor inerente” porque são, como nós mesmos, não apenas sencientes,
mas “sujeitos de uma vida”.

• Nem o protótipo de Singer nem o de Regan da ética do bem-estar dos animais
servirá como ética ambiental.

• A ética do bem-estar animal e a ética ambiental levam a indicações convergentes
em outros pontos de prática e política.

260

• Kenneth Goodpaster argumenta que todos os seres vivos, tanto plantas quanto
animais, têm interesses e merecem “considerabilidade moral”.

• Como o biocentrismo se ocupa exclusivamente de indivíduos biológicos, não
de totalidades biológicas, é uma abordagem da ética ambiental que parece tão
restritiva que seria impossível de praticar, e uma abordagem que tem pouca
relevância para o conjunto de problemas que constituem a crise ambiental.

• O ecocentrismo proporcionaria a considerabilidade moral a um espectro de
entidades ambientais não individuais, incluindo a biosfera como totalidade,
espécies, terra, água e ar, bem como ecossistemas.

• A teoria da ética ambiental de Rolston ordena hierarquicamente indivíduos
intrinsecamente valiosos de uma maneira familiar e convencional.

• Leopold aponta que a ecologia representa os seres humanos como membros
não apenas de múltiplas comunidades humanas, mas também da “comunidade
biótica”.

• O ecofeminismo é uma análise de questões e preocupações ambientais do
ponto de vista feminista e, vice-versa, como um enriquecimento e complicação
do feminismo com insights extraídos da ecologia.

• Ecologistas profundos (com um "e" e "p" minúsculos), pensam que a ecologia
tem profundas implicações filosóficas que transforma nossa compreensão do
mundo em que vivemos e o que significa ser um ser humano.

• Ecologistas Profundos (com um "E" e "P" maiúsculos), endossam a “plataforma”
de oito pontos da Ecologia Profunda e minimizam a importância da ética
ambiental e defendem a realização do Self [com o “S” maiúsculo].

261
AUTOATIVIDADE

1 Explique o que significa ter uma posição antropocêntrica na ética ambiental.



2 Qual é o dilema que Peter Singer e Tom Regan trouxeram à tona referente à
posição antropocêntrica na ética?

3 A ética do bem-estar animal e a ética ambiental possuem indicações


convergentes em pontos de prática e política. Ambas se opõem resolutamente
à pecuária industrial. Explique a razão desta oposição para cada uma das
posições éticas.

4 O que significa o termo considerabilidade moral, cunhado por Kenneth


Goodpaster?

5 O que seria uma posição ecocêntrica na ética ambiental?

262
REFERÊNCIAS
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Castilho Benedetti. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

ACHARYA, Sripad Atulananda; PARAMADVAITI, Swami B. A. (Comp.). O


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