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criação do homem
ARTIGO ORIGINAL
Contents
RESUMO
INTRODUÇÃO
O MITO DE PROMETEU E PANDORA E A LITERATURA COMO VEÍCULO IDEOLÓGICO
A “MALDIÇÃO” DO TRABALHO NA GRÉCIA CLÁSSICA
A “MALDIÇÃO” DO TRABALHO NA ROMA CLÁSSICA
A “MALDIÇÃO” DO TRABALHO NO LIVRO BÍBLICO DE GÊNESIS JUDAICO-CRISTÃO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
RESUMO
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O estigma do trabalho nos mitos greco-romano e judaico-cristão de
criação do homem
INTRODUÇÃO
De acordo com o poeta grego Hesíodo (1991) o mito de Prometeu e Pandora descreve a
origem do homem e da primeira mulher (Pandora), o roubo do fogo dos deuses, que foi dado
aos homens, e a gama de males que passou a afligir a humanidade. O roubo do fogo pelo
ardiloso titã Prometeu provocou a ira de Zeus, deus supremo do Olimpo e pai de todos, o
qual pune e condena Prometeu à tortura eterna de ter seu fígado permanentemente
devorado por aves, acorrentado numa rocha; e aos homens, Zeus estende por meio de
Pandora, a condenação eterna ao trabalho e a toda sorte de males:
O mito de Prometeu e Pandora nos remete à semelhança com o livro bíblico do Gênesis, onde
narra-se que Iahweh (Deus), o criador de todas as coisas, pune Adão e Eva – esta, aliás, a
primeira mulher tal como Pandora da mitologia grega, motivo de queda de Adão, o primeiro
homem – por tê-lo desobedecido ao comerem do fruto proibido da árvore do conhecimento
do bem e do mal, posta no meio do jardim do Éden. Por esta razão, foram expulsos do
paraíso e condenados a buscar seu sustento por meio de “trabalhos penosos”:
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[…] Comerás o teu pão com o suor do teu rosto […]’ (Gên, 3:17 e 19).
Diante das duas versões literárias acerca da origem mítica do Homem, o estigma do trabalho
como pena ou condenação parece ser um dos pontos em comum entre ambas. Com efeito,
tal estigma sobre o trabalho tornou-se um elemento cultural dominante nas sociedades
clássicas ocidentais greco-romana e de cultura religiosa judaico-cristã, e que se estendeu
até, mais ou menos, ao final da Idade Média europeia. Isto aconteceu a partir das ações das
classes dominantes sobre as classes subjugadas. O curioso, nesse sentido, é que o teor dos
textos, à época greco-romana, por exemplo, carregava toda uma aura religiosa particular a
esses dois povos, pois, sendo a vontade dos deuses, por isso mesmo, não poderiam ser
contestados sendo, portanto, assimilados como verdades absolutas, as quais – tomando aqui
de empréstimo um conceito da psicologia analítica pra enfatizar a afirmação – se
sedimentavam no fundo do inconsciente coletivo. Contudo, mais tarde, com a consolidação
do cristianismo no mundo Ocidental, a religiosidade da antiguidade clássica é fundida às
raízes judaico-cristãs. Daí em diante, os textos bíblicos tomam o status de verdades
incontestes igualmente sedimentadas no inconsciente coletivo Ocidental em detrimento dos
textos clássicos, que passam a ser considerados pagãos.
De qualquer forma, portanto, o trabalho parece ter sido estigmatizado como um mal ou algo
penoso, que causa sofrimento à humanidade, de forma implícita ou direta, através de textos
literários revestidos de uma aura sagrada, religiosa e, por isso mesmo, resignadamente
incontestável, ideologicamente se assemelhando no conteúdo e no objetivo entre ambos:
relegar tal sofrimento ou pena exclusivamente aos escravos ou servos, pois o trabalho,
sobretudo o manual, se constituía num grande ultraje ou humilhação para qualquer um
membro das elites daquelas sociedades. Todavia, a partir do século XI, com o Renascimento
Comercial e Urbano, a burguesia, que enriquecera trabalhando, se viu diante da necessidade
inadiável de demolir tal imagem negativa associada ao trabalho, porque era o único meio
pelo e sobre o qual possibilitaria enriquecer – explorando o trabalhador assalariado – e
expandir ainda mais os seus negócios. Feito isto, a burguesia passa, então, a “acorrentar” –
tal como o titã Prometeu – a humanidade ao trabalho desumanizante, alienante, visto ou
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Na análise literária do referido mito percebe-se, pois, à primeira vista, questões de ordem
como, por exemplo, as consequências funestas da desobediência e rebeldia diante da
“vontade” dos deuses (punição de Zeus a Prometeu e aos homens), a condição depreciativa
e inferior imposta à mulher (representada por Pandora, a primeira mulher, que encarna a
origem dos males humanos) no âmbito da sociedade patriarcal greco-romana e, para o que
mais interessa neste estudo, o estigma legado ao trabalho na condição de um mal para a
humanidade, como resultado da atitude imprudente de Pandora ao abrir uma caixa ou jarro,
dado a ela intencionalmente por Zeus, cujo interior guardava todos os males que passou a
assolar os homens neste mundo e, dentre eles, o trabalho.
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Segundo o filósofo alemão Friedrich Engels (2004b), as mãos são os órgãos do trabalho e
que, por sua vez, criou o trabalho e o próprio homem. Engels fez esta afirmação ao analisar a
evolução do homem pela ótica do trabalho, quando ele deixa a fase primitiva e adentra na
era da civilização, num texto clássico intitulado Sobre o papel do trabalho na transformação
do macaco em homem, publicado após sua morte, no final do século XIX. Em estudo[5]
anterior, Engels (2005a, p. 25), de maneira clara e objetiva, nos aponta que os homens, em
curso na roda da civilização, começam a se distanciar uns dos outros através do trabalho
intelectual e do manual na medida em que “[…] a cabeça que planejava o trabalho já era
capaz de obrigar mãos alheias a realizar o trabalho projetado por ela”.
Em outras palavras, basicamente “as cabeças” que exerciam funções de maior relevância
nas sociedades comunais – quando estas se desagregaram em razão do grande aumento
populacional num ritmo mais acelerado do que o avanço e o desenvolvimento das técnicas
de produção que, apesar disso, já ensejava maior fartura – criaram a propriedade privada da
terra e a divisão da sociedade em classes antagônicas social e economicamente. Aníbal
Ponce (2005, p. 22), psicólogo, pensador marxista e ensaísta argentino, igualmente aponta
para essa dupla e provável origem do aparecimento das classes sociais antagônicas: “O
escasso rendimento do trabalho humano e a substituição da propriedade comum pela
privada”. Em seguida, Ponce (2005, p. 23) identifica “as cabeças” como sendo “uma espécie
de ‘funcionários’ que receberam a custódia de gerenciar determinados interesses sociais
que, de maneira oportunista, fizeram derivar desses interesses certa exaltação de poderes” –
razão pela qual se tornaram classe dominante. Nesse sentido Ponce esclarece ainda mais,
vejamos:
[…] tem importância ressaltar que as classes sociais, que, posteriormente, chegaram
a ser privilegiadas, desempenhavam, no início, funções úteis. A sua supremacia
inicial foi, a princípio, um fato aceito voluntariamente e, de certo modo, espontâneo.
Qualquer desigualdade de inteligência, de habilidade ou de caráter poderia servir de
base para uma diferença que, com o tempo, poderia engendrar um submetimento
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Nesse sentido, Arnold Hauser, escritor e historiador húngaro, por exemplo, nos dá uma ideia
precisa do alcance tomado pela atribuição negativa do trabalho pelos homens pertencentes
às classes dominantes da Grécia clássica, vejamos:
O baixo apreço por pessoas que têm que trabalhar para viver, o desdém por todo
trabalho remunerado, e até pelo trabalho produtivo em geral, originam-se no fato de
que tais atividades – em contraste com as primevas ocupações aristocráticas de
governo, guerra e esporte – sugerem subordinação e serviço (HAUSER, 2000, p. 115).
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entanto, isto só não explica nem justifica o prestígio desfrutado pelos poetas em relação aos
demais artistas. Para melhor entendermos isso, Hauser explica exatamente como acontecia:
O poeta desfruta, por vezes, uma estima bastante peculiar como vidente e profeta,
outorgador da fama e intérprete de mitos; o artista plástico ou gráfico é e continua
sendo um artesão que, com seu salário, obtém tudo a que tem direito. Vários fatores
explicam essa situação. Em primeiro lugar, o pintor ou escultor trabalha por
remuneração e não tenta ocultar esse fato de ninguém, ao passo que o poeta é
olhado como um hóspede e amigo de seu mecenas, mesmo quando depende dele
completamente. Depois, ocorre também que o escultor e o pintor têm de trabalhar
com ferramentas e materiais que sujam, enquanto o poeta anda sempre com roupas
e mãos limpas – o que tem muito mais importância do que se poderia pensar aos
olhos de uma época não-técnica. O fato mais importante, porém, é que o escultor ou
pintor é obrigado a executar trabalho manual que envolve esforço físico e o
desempenho de muitas tarefas exaustivas, ao passo que o labor do poeta não é
certamente óbvio à vista (HAUSER, 2000, p. 115).
Com efeito, isto sim parece justificar o prestígio gozado pelos poetas na sua proximidade
com a nobreza, pois não necessitavam executar “indignos” e exaustivos trabalhos físicos e
manuais como os pintores e os escultores – no caso destes últimos, suas criações eram
veneradas, mas o criador era desprezado conforme podemos observar nas palavras do
filósofo romano Sêneca, citadas por Hauser: “Oferecemos orações e sacrifícios perante as
estátuas dos deuses, mas desprezamos os escultores que as fazem” (SÊNECA apud, HAUSER,
2000, p. 116). Um pouco mais adiante, Hauser continua a descrever as diferenças, não só
entre os poetas e os demais artistas, mas também de uma forma mais geral, que
compreende o nobre e o trabalhador livre ou escravo:
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O alto apreço pelas ocupações bélicas e pela caça, encarada como esporte, foram mantidas
enquanto a aristocracia guerreira grega manteve-se no poder porque, quando a hegemonia
dessa classe cessou, diz Arnold Hauser (2000, p. 220) que “tornou-se corrente uma outra
concepção muito semelhante de prestígio, derivada agora das competições atléticas”. Depois
disso, certamente, a guerra deixou de ser uma ocupação digna para ser somente uma
obrigação porque, quando as guerras cessavam, a única ocupação digna de um homem
nobre e livre estava ligada aos jogos e às competições esportivas. Além dos mitos, os nobres
também tiveram a contribuição dos filósofos na legitimação do estigma sobre todo e
qualquer tipo de trabalho, inclusive Platão e Aristóteles. Para eles e alguns outros filósofos,
portanto, e, igualmente para as classes dominantes, a ociosidade total era a condição prévia
de tudo o que era bom e belo – era o inestimável bem que, só por si, tornava a vida digna de
ser vivida. “Somente aquele que dispõe de ócio podia alcançar sabedoria e liberdade de
espírito, podia ser senhor da vida e gozá-la plenamente” (HAUSER, 2000, p. 116).
Aos olhos de Platão, por exemplo, “toda especialização, toda profissão rigorosamente
definida, era vulgar” (HAUSER, 2000, p. 116) porque a prerrogativa de todo homem livre era
justamente a “contemplação das ideias” e não preso a atividades físicas penosas; e, de um
modo mais geral, o trabalho, para Platão, “permanecia alheio a qualquer valor humano e em
certos aspectos parecia mesmo a antítese do que fosse essencial ao homem” (ANDERSON,
2000, p. 27). Por sua vez, Aristóteles (2004, p. 150) também dizia que “onde um homem
manda e outro é mandado podia-se dizer que existe um trabalho”. Nesta frase de Aristóteles,
com efeito, encontramos novamente o sentido negativo do trabalho ligado ao caráter de
servidão e pena. Todavia, a palavra trabalho, tal como a entendemos hoje, não existia para
os gregos, pois, segundo os historiadores franceses Jean-PierreVernant e Pierre-Vidal Naquet
(1989, p. 10), os gregos utilizavam um termo específico que era aplicado a todas as
atividades que exigisse esforço penoso; e até para ilustrar isso, eles citam uma passagem da
mitologia na qual o herói Heracles[6] tem de optar entre uma vida de prazer e preguiça a uma
vida voltada a atividades penosas.[7] Era, pois, nesse mesmo sentido que a aristocracia e os
filósofos entendiam qualquer esforço físico que não fosse a guerra, a filosofia ou os jogos
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Entretanto, houve mudanças no conceito aristocrático do que fosse prestígio aos homens
livres, porém nada tão radical em relação à visão negativa do trabalho. Elas foram levadas a
efeito quando a aristocracia guerreira grega se enfraqueceu com a ascensão dos
comerciantes como nova classe social, durante o século IV a.C. e no decorrer da época
helenística. Houve sim mudanças no velho conceito, mas, de acordo com Hauser, o trabalho
como tal continuou longe de ser considerado uma atividade digna de respeito, e nem se
reconhecia nele qualquer valor educativo, como é alegado pela moderna ética burguesa; pois
esta, “representada” pelos comerciantes na Grécia Antiga, “desprezava o trabalho não
menos do que a aristocracia” (HAUSER, 2000, p. 116).
Na Roma Clássica o trabalho era igualmente encarado tal como os gregos – o que não é de
se admirar porque os romanos absorveram toda a cultura grega. Então, embora difira um
pouco na forma e se assemelhe no conceito de prestígio, “a agricultura, a guerra e a política
constituíam o programa que um romano nobre devia realizar” (PONCE, 2005, p. 62). Com
efeito, aos olhos da nobreza romana, Ponce (2005, p. 64) mostra de que forma, além da
influência grega, o trabalho é estigmatizado: “O desprezo pelo trabalho apareceu como uma
ocupação própria de escravos, de modo que em Roma também vamos encontrar, sem
grandes variações, o mesmo antagonismo entre trabalho e ócio na Grécia”.
Portanto, obviamente o ócio também era a prerrogativa de todo romano livre, uma vez que o
trabalho era tido como a “ausência de lazer”, e atribuição natural dos escravos (ARANHA;
MARTINS, 1993). Contudo, tal opinião, acerca do trabalho, ainda era sustentada pelos
romanos mesmo na iminência do fim do Império, cujas consequências abalavam sua principal
coluna de sustentação: a exploração do trabalho escravo, conforme poderemos observar a
seguir nas palavras de Engels (2005a, p. 161): “[…] A escravidão agonizante, contudo, ainda
era suficientemente real para fazer considerar todo trabalho produtivo próprio de escravos e
indigno de um romano livre […]”. Quanto ao trabalho remunerado ou assalariado, do mesmo
modo que na Grécia, “os romanos tomavam o salário como prova de servidão” (PONCE,
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2005, p. 67).
Alguns séculos depois, o Ocidente passa a receber uma influência inevitável e definitiva da
literatura de tradição religiosa judaico-cristã, para a qual a concepção negativa do trabalho
advém do livro bíblico de Gênesis onde o próprio Deus descansa de seu trabalho após ter
terminado sua obra: “Tendo Deus terminado no sétimo dia a obra que tinha feito, descansou
do seu trabalho” (Gên., 2:2). O que se afere desse versículo é de que todo trabalho exige um
esforço penoso, difícil até mesmo para o Deus único – o criador por excelência. Logo, uma
vez que Deus tivera que descansar após seu trabalho de criação, certamente, entende-se
que foi uma atividade muito árdua, penosa. Além disso, no Gênesis também é narrada a
expulsão de Adão e Eva do paraíso por desobedecer a vontade de Deus que, por esta razão,
foram condenados a viver por meio do “trabalho penoso” (Gên., 3:17 e 19).
Adão e Eva comeram o fruto proibido e, por isso, foram condenados a trabalhar.
Consequentemente, tal sentença imprime inevitavelmente um caráter de castigo, de pena,
uma maldição para o trabalho, porque hipoteticamente, antes de serem expulsos do paraíso,
Adão e Eva tinham tudo do que necessitavam, pois não precisavam “trabalhar” para garantir
sua sobrevivência. Depois, quando expulsos do paraíso, Deus os castigam a trabalhar
penosamente com o suor de seus rostos para garantir seu sustento por todos os dias de suas
vidas. Desse modo, para a nobreza feudal que, além de ter herdado o estigma do trabalho
pelas aristocracias greco-romanas, tiveram essa impressão reforçada pela influência religiosa
judaico-cristã; ainda mais pela atuação da Igreja Católica medieval, sobretudo dos sacerdotes
do Alto Clero – diga-se de passagem, oriundos da nobreza – que, tal como os nobres feudais,
viviam luxuosamente às expensas do trabalho servil dos camponeses. Porém, no Baixo Clero,
as coisas não diferiam muito, exceto quanto a ausência de luxo desfrutada pelo Alto Clero.
Dentro dos monastérios, por exemplo, Aníbal Ponce afirma o seguinte: “Tidos por alguns
autores como um modelo de ‘vida perfeita’, a divisão em classes continuava existindo, sem
nenhuma modificação; de um lado, os monges, dedicados ao culto e ao estudo, do outro, os
escravos, os servos e os conversos, destinados ao trabalho” (PONCE, 2005, p. 91).
Ora, tanto os sacerdotes do Alto como do Baixo Clero, não trabalhavam porque os primeiros,
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grosso modo, estavam envolvidos com o luxo e o poder, de um lado, e o segundo com o culto
e o estudo, do outro. Evidentemente, essas classes viviam do trabalho alheio dos poucos
escravos que existiam e, sobretudo, dos servos que compreendiam a maioria da população
medieval. Ainda quanto aos monastérios, Ponce (2005, p. 90) faz críticas às frequentes
afirmações de que neles o trabalho manual tenha tido alguma valorização, pois “tais
afirmações são tão falsas quanto a participação do cristianismo na libertação dos escravos”.
E diz mais: “Não há dúvidas de que se trabalhava nos mosteiros, e de acordo com um plano
preciso. Mas isso não quer dizer que todos trabalhassem, como se se tratasse de uma
comunidade primitiva sem classes, ou de uma igreja dos primeiros tempos do cristianismo”
(PONCE, 2005, p. 90). De fato, sim, existia trabalho nos mosteiros, porém não eram os
sacerdotes quem os realizavam com frequência, mas os servos como já referido antes. Esses
religiosos faziam parte da tripartição da sociedade feudal que consistia em três divisões: “Os
bellatores ou guerreiros, os oratores ou religiosos, e os laboratores ou trabalhadores”
(PONCE, 2005, p. 86). Em outras palavras, enquanto os primeiros guerreavam e os segundos
oravam, os últimos, presos à terra, eram obrigados a sustentar, por meio de seu trabalho
servil, a ociosidade e a vida faustosa dos primeiros. Tal condição social e, junto dela, o
estigma sobre o trabalho perdurou por longo tempo até o declínio e a desagregação total do
sistema feudal, em parte da Europa, pela ascensão da burguesia como nova classe social que
sobrepujou, em pouco tempo, as antigas classes dominantes e o estigma sobre o trabalho.
Antes disso, o trabalho como o entendemos hoje e desde aquela época, como no Mundo
Antigo, ainda não tinha nome. Na Idade Média, nesse sentido, o historiador francês Jean-
Claude Schmitt (1998, p. 86) diz o seguinte: “As palavras que mais se aproximavam dele
(labor, opus) acentuavam, sobretudo a pena física e moral, consequência do Pecado original,
ou na melhor das hipóteses a oferenda feita a Deus de todo o esforço”.
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[…] No leque amplamente aberto dos ofícios urbanos, certas atividades são julgadas
desonestas (mercimonia inhonesta), ainda que, concretamente, elas representem
um papel essencial na economia urbana. São as profissões de açougueiro,
esquartejador de animais, carrasco, que põem em contato com o sangue. […] Os
ofícios relacionados à impureza também conhecem o mesmo descrédito: os
limpadores de fossas e, também, os operários da indústria têxtil, pisoeiros e
tintureiros, parecem maculados por seu trabalho, e o próprio nome de tecelão torna-
se sinônimo de herético. Ofícios suscitados pelo desenvolvimento das trocas, mas
que supõem a manipulação corruptora do dinheiro, também inspiram desconfiança e
reprovação: os comerciantes, sobretudo os prestamistas, todos eles chamados de
‘usurários’. Pesa contra eles outra acusação: eles especulam com o tempo, vendem-
no de certa forma, enquanto o tempo pertence a Deus […] (SCHMITT, 1998, p. 268).
O que podemos observar disso tudo, naquele período, é que a Igreja começava a perceber o
poder se esvaindo de suas mãos. O desespero era evidente. A criação dos tribunais do Santo
Ofício (1215) atesta esse desespero, pois era necessário coibir severamente o
desvirtuamento de seus dogmas. Sabemos que, apesar de todo o rigor, a Igreja não
conseguiu resistir ao conjunto de mudanças que resultou no desmantelamento do sistema
feudal e do seu poder. Consequentemente, reagindo às mudanças na economia medieval,
levadas a efeito pelo renascimento das cidades e pela própria burguesia, esta se viu, pois,
obrigada a criar uma ideologia do trabalho a fim de demolir a sua imagem degradante e
transformá-la em consenso comum.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Hoje, nas sociedades pós-industriais, o estigma relativo ao trabalho, advindo das literaturas
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Portanto, a imagem ou estigma relativo ao trabalho, sem dúvida, foi demolido ou invertida a
sua lógica pela burguesia sem, no entanto, atenuar – senão intensificar – a precariedade
desumana com que o trabalho sempre fora e ainda é realizado pelo homem. Como fato
exemplar, podemos citar, ironicamente, que nos campos de concentração nazistas, durante a
Segunda Guerra Mundial, era comum ver um letreiro ou uma placa acima ou no meio dos
portões de entrada a seguinte frase em alemão: “Arbeitmacht frei” (o trabalho liberta). Esta
frase, basicamente, converteu-se numa espécie de símbolo dos esforços nazistas para
condicionar as vítimas a uma falsa sensação de segurança antes de matá-las lentamente por
meio de trabalhos forçados em condições subumanas as mais diversas. Eis aí, sem dúvida, a
tônica da lógica do capitalismo sobre o trabalhador, independente se este ganha um baixo ou
alto salário, será sempre um explorado – e descartável ao sabor dos interesses do
empresário.
REFERÊNCIAS
A BÍBLIA. Gênesis. Trad. Frei João José de Castro. 28ª ed. São Paulo: Editora Ave Maria, 1980.
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à
filosofia. São Paulo: Moderna, 1993.
CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. In: ____. Textos de intervenção. São
Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2002.
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____. Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem. In: ____. A dialética
do trabalho: escritos de Marx e Engels. São Paulo: Expressão Popular, 2004.
HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo, Martins Fontes, 2001.
HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Trad. Alessandro Rolim de Moura. Curitiba, PR: Segesta,
2012.
____. Os trabalhos e os dias. Trad. de Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo: Iluminuras,
1991.
LAFER, Mary de Camargo Neves. Os mitos: comentários. In: ____. Os trabalhos e os dias. São
Paulo: Iluminuras, 1991.
SCHMITT, Jean-Claude. A história dos marginais. In: ____. A História Nova. Trad. Eduardo
Brandão. 4ª ed. São Paulo, Martins Fontes, 1998.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito capitalismo. Trad. José Marcos Mariani de
Macedo. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.
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criação do homem
2. Grifo meu
4. Idem.
6. LAFER, Mary de Camargo Neves. Os mitos: comentários. In:____. Os trabalhos e os dias – Hesíodo
(1991).
8. A origem da família, da propriedade privada e do Estado.
10. Hércules, para os gregos.
12. Os doze trabalhos de Hércules.
[1]
Graduado em História (Unipec/Uniron, 2007), Pós-graduado (Lato sensu) em História do
Brasil (FIJ – Faculdades Integradas de Jacarepaguá, 2013) e Mestrando em Estudos Literários
(Unir – Universidade Federal de Rondônia, 2017).
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