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Reflexões Sobre a Lei de Alienação Parental

Texto originalmente publicado em meu perfil no Linked In em 2021 e atualizado para o


Jusbrasil (julho/2022)

A Lei de Alienação Parental ( LAP - Lei 12.318/2010) completou dez


anos em 2020 e algumas reflexões se fazem necessárias, em especial, quais
marcas deixou na prática da advocacia familista.

Primeiramente, é importante destacar que o conceito de Alienação


Parental (AP) foi criado na década de 80 pelo psiquiatra norte-americano
Richard Gardner que a define como “ enfermidade mental da criança,
desenvolvida preponderantemente durante o processo de litígio conjugal de
seus genitores, e caracterizada pela rejeição a um deles, como consequência
da manipulação exercida pelo (a) outro (a) genitor (a), chamado de alienador
(a), que motivado pelo desejo de vingança, rancor e mágoa ou em decorrência
de características psicológicas individuais, desqualificaria o (a) outro (a) genitor
(a) e o/a restringiria/impediria de manter contato com a criança/adolescente .”

A primeira crítica que se faz é que este conceito não é embasado em


pesquisas científicas, mas na observação do psiquiatra em seus atendimentos
no consultório. Além disso, a AP nunca foi reconhecida pela comunidade
científica, nunca foi catalogada no DSM-V (Manual de Diagnóstico e Estatística
de Transtornos Mentais da Associação Americana de Psiquiatria) e
possivelmente constará na lista do próximo CID-11 (Código Internacional de
Doenças) da Organização Mundial da Saúde (OMS), que entrará em vigor em
2022, não como doença, mas como um termo de busca encontrado no índice
de pesquisa, relacionado a problemas associados com interações interpessoais
na infância, sendo um dos fatores que podem alterar a saúde.

Outra crítica refere-se à tramitação do Projeto de Lei 4053/2008 que


originou a LAP, apresentado pelo deputado federal Regis de Oliveira (PSC/SP),
que além de ter sido muito célere (menos de dois anos de tramitação), não
contou com a participação do CONANDA (Conselho Nacional da Criança e do
Adolescente). Foi elaborado por grupos de pessoas que viveram situações de
alienação parental e conforme Nota Técnica NUDEM 01/2019, da Defensoria
Pública do Estado de São Paulo, não contou com embasamento técnico-
científico, “não havendo menção, na justificativa do projeto, a qualquer estudo
ou dado, de forma que a proposição legislativa teve como fundamento somente
publicações constantes no site da APASE (Associação de Pais Separados )”,
organização civil sem fins lucrativos, que importou as teorias de Gardner para
o Brasil.

Em agosto de 2018, o CONANDA emitiu Nota Pública sobre a LAP,


em que “manifesta preocupação diante do fato de que o conceito de AP não
está fundamentado em estudos científicos, bem como não há registro de outros
países que tenham e mantenham legislação semelhante sobre o assunto. Ainda,
pondera que tal lei foi aprovada sem uma ampla discussão e escuta dos atores
que estão diretamente envolvidos com o tema, inclusive deste Conselho, (...) e
sugere a revogação do inciso VI do artigo 2º e dos incisos V, VI e VII do
artigo 6º da LAP, sem prejuízo ao aprofundamento do debate acerca da
possibilidade da revogação de outros dispositivos ou de inteiro teor da referida
Lei.”

A ausência da lente de gênero na formulação, aprovação e


implementação da lei é outro aspecto a se destacar, pois “ propicia a associação
da suposta prática de atos de alienação parental à figura feminina (alienadora),
em especial da mãe/mulher vingativa que não aceita o término do
relacionamento e por este motivo faz falsas acusações de violência contra o pai
(alienado), numa tentativa de impedir a convivência dele com o (a) filho (a)” .
Esta visão é sistematicamente reproduzida pelo Poder Judiciário, que reforça os
estereótipos de gênero, propiciando as desigualdades e exacerbando a violência
de gênero, em especial no sistema de justiça. Por isso não é possível tratar
questões de família dissociadas das questões de violência doméstica e familiar,
quando estas existem no mesmo contexto. Neste sentido, a Lei Maria da
Penha previu a criação dos Juizados da Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher (art. 1º) com competência híbrida (cível e criminal), nos termos do
artigo 14.
A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher (CEDAW), ratificada pelo Brasil, estabelece que
“os Estados-parte condenam a discriminação contra a mulher em todas as suas
formas e concordam em seguir, por todos os meios apropriados e sem dilações,
uma política destinada a eliminar a discriminação contra a mulher ” (artigo 2º).
Na Recomendação 33 CEDAW, que trata do acesso à justiça, “ as mulheres
devem poder contar com um sistema de justiça livre de mitos e estereótipos, e
com um judiciário cuja imparcialidade não seja comprometida por pressupostos
tendenciosos. Eliminar estereótipos no sistema de justiça é um passo crucial na
garantia de igualdade e justiça para vítimas e sobreviventes .”

A LAP estabelece no inciso VI do parágrafo 2º que, entre as formas


de alienação parental, encontra-se: “apresentar falsa denúncia contra genitor,
familiares deste ou contra avós para obstar ou dificultar a convivência deles
com a criança”. O que tem ocorrido na prática é que muitos genitores tem
alegado a prática de alienação parental por parte da mãe, que em geral detém
a guarda e o convívio com a criança, como estratégia processual em litígios
conjugais (assédio processual), especialmente em situações que as genitoras
denunciam violências ocorridas contra as crianças por parte do genitor, suposto
agressor. O que torna a situação bastante grave é que casos de violência sexual
geralmente não deixam vestígio e a AP pode ser declarada de ofício pelo juiz,
em qualquer momento processual, ferindo diversos princípios como:
contraditório, devido processo legal, inércia da jurisdição, adstrição ao pedido,
duplo grau de jurisdição, igualdade entre mulheres e homens e imparcialidade
do juízo. Nesse contexto também há um descrédito do relato das crianças que
deixam de ser sujeitos de direito, priorizando o conflito conjugal e ferindo os
princípios da proteção integral e do melhor interesse da criança.

As medidas que podem ser aplicadas pelo juiz, constantes no


artigo 6º da LAP, em especial os incisos: II (ampliação do regime de
convivência familiar em favor do genitor alienado); V (alteração da guarda para
compartilhada ou sua inversão) e VII (declaração de suspensão da autoridade
parental), são desproporcionais pois preveem mecanismos de intervenção já
existentes no ordenamento jurídico e podem colocar a criança em convívio
direto com o suposto abusador, ferindo o princípio da integridade física em
detrimento do princípio da convivência familiar.

Nas palavras do NUDEM/SP, nesses dez anos de vigência da LAP,


“não existem estudos de impacto da legislação que traga dados de quantas
crianças ajudou ou mesmo quantos conflitos evitou ou acentuou ou cronificou.
Percebe-se que a lei tem como mais uma estratégia nos litígios conjugais, fato
que infirma seu caráter de proteção às crianças”.

Em novembro de 2019 foi ajuizada ADI 6273 questionando a


constitucionalidade da LAP, tendo como relatora a Ministra Rosa Weber, na
conclusão desde setembro de 2020.

Esta Lei, portanto, é uma forma de manutenção do privilégio


masculino na medida em que mantém mulheres e crianças como propriedade
do chefe de família, com suas subjetividades minimizadas e até mesmo
anuladas, devendo ser, ao menos, parcialmente revogada.

Material pesquisado:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12318.htm

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4377.htm

https://assets-compromissoeatitude-
ipg.sfo2.digitaloceanspaces.com/2016/02/Recomendacao-Geral-n33-Comite-
CEDAW.pdf

https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/Repositorio/41/Documentos/nota%20
tecnica%20aliena%C3%A7%C3%A3o%20parental.pdf

https://themis.org.br/entenda-porque-revogar-lei-de-alienação-
parentaleimportante-para-mulheresecriancas/

https://www.ibdfam.org.br/artigos/1469/A+lei+de+alienação+parental%3A+
da+promessa+de+proteção+à+banalização+de+sua+aplicação
http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5823813

https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/O-
empenho-da-Justiça-para-evitar-os-danos-da-alienação-parental.aspx

Lilia Gomes - Advogada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie com


Extensão Universitária em Direito Contratual pela PUC/SP e Especialização Lato
Sensu em Direito das Mulheres pela Uni DomBosco. Atuou na defesa de mulheres
encarceradas na Penitenciária Feminina de Sant´Anna em São Paulo e
atualmente é conselheira do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de
Cambuí/MG, advogada em questões de direito público, direito das famílias e
direito das mulheres.

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