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26/02/2019 Do caos à criação do Universo: uma narrativa mítica da Mesopotâmia

COSMOS & CONTEXTO A REVISTA EDIÇÕES ARTIGOS CONTATO

Do caos à criação do Universo: uma


narrativa mítica da Mesopotâmia
20 de fevereiro de 2019 / Katia Maria Paim Pozzer

O
s mesopotâmicos foram os responsáveis pela
invenção das cidades, pela agricultura irrigada,
pela escrita, pela astronomia e por mitos de criação. Em
um destes textos, o poema Enûma Eliš, eles narram sua

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aversão ao caos e o longo e conflituoso processo de


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surgimento dos deuses, da natureza e do homem. Era
imperioso ordenar o mundo e, para isso, foi necessário
realizar uma luta sangrenta entre divindades e
estabelecer um vencedor que iria nomear e, assim criar,
o Universo. Propomos analisar este documento
excepcional do mundo oriental e refletir sobre a
cosmovisão de uma das primeiras civilizações da
antiguidade.

Introdução

A Mesopotâmia, localizada no vale fluvial dos rios


Eufrates e Tigre, no atual Iraque, foi o local onde
surgiram as primeiras civilizações urbanas. Esse
território foi palco de importantes culturas na
antiguidade, como a suméria, a babilônica e a assíria, ao
longo de três mil anos de história. Sua estrutura política
foi marcada pela pulverização do poder, onde cada
cidade-estado disputava a hegemonia política sobre uma
região. O politeísmo foi uma das características desta
sociedade, onde cada cidade-estado possuía seu próprio
panteão, criando um verdadeiro mosaico de divindades
e mitologias.

O desenvolvimento da agricultura no Oriente Próximo


foi seguido por uma rápida difusão para a Europa, a
África e a Ásia. A prática da agricultura garantiu bases
alimentares estáveis, favorecendo a expansão
demográfica rápida e permitindo o desenvolvimento de
novas atividades culturais que culminaram com a
revolução urbana. Gradualmente novas formas de
organização social se desenvolveram, com o surgimento

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das cidades, das religiões institucionalizadas e da escrita


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(MARGUERON, 1996).

O início do III milênio AEC foi marcado por disputas


militares entre os vários centros urbanos no sul
mesopotâmico, em luta pela hegemonia política dos
territórios vizinhos. O resultado dessas guerras
transformou o desenvolvimento dessas cidades: as
revoltas no interior do país levaram à uma migração
significativa do campo para a cidade, fazendo com que a
maioria da população se tornasse urbana; maciças
fortificações foram construídas para garantir a segurança
destas cidades, definindo assim a diferença entre o
espaço urbano e o rural e restringindo o acesso às
cidades a determinados pontos que eram os portões das
muralhas. As necessidades de guerra exigiram um maior
desenvolvimento da autoridade política e militar,
fazendo nascer a segunda principal instituição urbana –
o palácio. As cidades mesopotâmicas passaram então, a
contar com dois centros de poder: um político e militar
– o palácio-, e outro econômico e religioso – o templo.
Os templos foram responsáveis pelo desenvolvimento
de vários aspectos da sociedade, como a escrita[1], a
literatura, o Estado, o sistema jurídico, a arte e a
arquitetura, entre outros (POZZER, 2010).

Uma característica da civilização mesopotâmica era a


crença em divindades celestes que seriam responsáveis
pelos acontecimentos na vida dos homens na terra. Para
poder explicar estas relações, escribas e sacerdotes
criaram mitos e narrativas literárias que tratam das mais
variadas questões. Esta documentação inclui desde
mitos cosmogônicos até textos que relatam a fundação

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de cidades, passando por composições mágico-


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medicinais (LÓPEZ, SANMARTÍN, 1993).

Em um destes textos, conhecido como o poema Enûma


Eliš, é narrada a aversão dos mesopotâmicos ao caos e o
longo e conflituoso processo de surgimento dos deuses,
da natureza e do homem.

O Poema da Criação Enûma Eliš

O Poema da Criação ou Enûma Eliš celebra, em 7


tabletes[2] e 1.100 versos, a glória de Marduk e explica
sua ascensão ao trono no panteão babilônico. A
narrativa teria sido escrita no final do século XII AEC,
durante o reinado de Nabucodonossor I (1124-1103),
mas os manuscritos que sobreviveram são mais recentes.
Assim como outros textos clássicos da literatura
mesopotâmica, eles foram recopiados nas escolas de
escribas, fato que permitiu sua preservação (PEINADO,
1994).

O documento revela as origens do Universo, o combate


dos deuses organizadores do mundo contra as forças do
caos, representados pelas águas primordiais – Apsû, as
águas doces, e Tiamat, as águas salgadas, que no início
dos tempos formavam um todo indiferenciado. A
descoberta desta obra foi assinalada por Georges Smith,
epigrafista do Museu Britânico, em um artigo no Daily
Telegraph de 14 de março de 1875.

Existem cerca de 60 cópias conservadas do manuscrito,


sendo provenientes dos sítios arqueológicos de Assur,
Kiš, Nínive e Babilônia, atualmente localizados em
território iraquiano. Todas as cópias possuem a mesma

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ortografia e exatamente o mesmo texto. Diferentemente


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de outras composições literárias, como Atrahâsis ou a
Epopeia de Gilgameš, não existem versões, nem edições
diferentes (POZZER, 2014).

Fig. 1 – Fragmento do Poema Enûma Eliš. Período


Paleobabilônico? Argila (6,3 X 8,9 cm) Foto:
www.britishmuseum.org – Museu Britânico,
Londres.

O documento segue o protótipo sumério do mito de


Enlil, deus supremo da cidade sagrada de Nippur, e faz a
exaltação do deus babilônico Marduk. Sabe-se que era
um texto obrigatório para os aprendizes de escribas e
sacerdotes e seria recitado durante as festas de Akîtu, o
Ano Novo babilônico, festejado no solstício de verão no
hemisfério norte.

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A obra trata de questões fundamentais, como a criação


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do Universo, dos deuses e do Homem, mas também
oferece informações para o estudo de teologia, de
astrologia e de astronomia. Seguindo a característica da
produção literária mesopotâmica, o texto é anônimo e
seu título, adotado pelos estudiosos do século XIX, são
as duas primeiras palavras do poema: Enûma Eliš –
Quando no alto…

A seguir, apresentaremos uma breve descrição de cada


um dos 7 tabletes, assim como proporemos a tradução
de alguns excertos do mesmo, baseados na versão
canônica publicada por Jean Bottéro e Samuel Kramer
(1993, p. 602-679).

1º tablete

O primeiro tablete evoca a origem de tudo, quando o


céu e a terra ainda não tinham nome, isto é, não
existiam. Havia somente um caos aquático com dois
elementos primordiais: Apsû, o abismo oceânico (água
doce), entidade masculina e Tiamat, o mar tumultuado
(água salgada), entidade feminina. Desta mistura surgem
dois deuses principais: Lakmu e Lakhamu que, por sua
vez, dão origem à Anšar (horizonte celeste) e Kišar
(horizonte terrestre), “que lhe eram superiores”,
segundo o texto. Estas divindades engendram vários
outros deuses, sendo o primeiro dentre eles Anu[3] que
procriou Éa[4], “dotado de uma força imensa, muito
mais poderoso que seu pai”. Estes novos deuses, sob o
comando de Éa perturbam a tranquilidade de Apsû e
Tiamat (l. 29-46):

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Então, Apsû, o Produtor dos Grandes Deuses, chamou


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Mummu[5]
[5] e disse-lhe: (…) Vamos encontrar Tiamat! (…)
E, sentados na presença de Tiamat, discursaram e
discutiram. (…) Tendo aberto sua boca, elevou a voz e disse à
Tiamat: “Sua conduta me é desagradável: durante o dia não
me repouso; durante a noite não durmo! Quero exterminá-los
e abolir suas atividades, para que seja restabelecido o silêncio e
que nós possamos dormir!” Tiamat ouvindo isso vociferou
contra seu esposo (…): “Porque, nós mesmos iríamos destruir
o que produzimos? A conduta deles é bastante desagradável?
Tenhamos paciência!”

Éa fica sabendo das intenções de Apsû e, com muita


astúcia, planeja vencê-lo. Éa recita um conjuro que
amortece Apsû e o faz cair em um sono profundo.
Assim, Éa rouba-lhe a coroa, se apossa do seu palácio e,
finalmente, o mata. E será neste mesmo palácio que Éa
e sua esposa Damkina irão conceber e dar à luz a
Marduk. Ao nascer, todos os deuses reconhecem sua
superioridade, sua força e inteligência.

Porém as antigas divindades vêm implorar que Tiamat


se vingue da morte de seu esposo e que, juntamente
com eles, crie as dozes terríveis criaturas para lutar
contra Anu.

2º tablete

Éa é informado do conflito e tenta, com o auxílio de


Anšar (seu avô), lutar contra Tiamat, mas é derrotado,
assim como Anu. Então, Anšar reúne os deuses em um
conselho e propõe que se nomeie Marduk, filho de Éa,
para lutar contra Tiamat.

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3º tablete
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Os deuses se reúnem e organizam um banquete: falam,


comem e bebem. Depois fixam o destino de Marduk.

4º tablete

Os deuses rendem homenagem à Marduk e lhe


entregam os atributos da realeza. Com eles Marduk
fabrica suas próprias armas (arco, flecha, maça, rede,
armadura, raios, os 4 ventos, carro de guerra) e parte
para o combate contra Tiamat, numa luta corpo-a-
corpo. Marduk vence e mata Tiamat e, com suas partes
dilaceradas, cria o céu e a terra.

“ Ele a cortou em dois, como um peixe seco


e colocou uma metade em forma de
abóboda celeste. (…) Ele edificou o
Grande Templo de Éšarra[6][6], ele
edificou assim o Céu! E fez que Anu,
Enlil e Éa ali ocupassem seus lugares. (l.
137-146).

5º tablete

Depois de ter vencido o caos e de ter criado o cosmos,


Marduk cria as estrelas e o calendário. Também cria a
lua[7] e o sol[8]. Ainda com os restos de Tiamat cria a
névoa, os ventos, a chuva, o frio e a neve. Marduk é
entronado rei dos deuses e decide criar a cidade de
Babilônia.

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Ele ali criou suas estações para os Grandes Deuses; ele ali
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criou, em constelações, as estrelas que são as Imagens deles (os
deuses). Ele definiu o ano (…) e os doze meses. (l. 1-4)

Dentro do próprio fígado de Tiamat ele colocou as altas zonas


celestes. Depois ele fez aparecer Nanna à quem ele confiou a
Noite. (l.11-12)

 E quando Šamaš, do horizonte, se dirigiu na tua direção (da


Lua) (l. 19)

Ele reuniu a baba de Tiamat e Marduk formou a névoa (l.


47-48)

Tendo, então disposto a Cabeça de Tiamat, ele amontoou, por


baixo, uma Montanha, onde ele abriu uma Fonte (na qual)
jorrou um jato. Ele abriu nos seus olhos o Eufrates e o Tigre.
(…) Sobre seus seios, ele amontoou as Montanhas
longínquas, ele ali escavou fontes para correr em cascatas.
(…) Ele dispôs o cume de Tiamat para sustentar o Céu e
forrou (com) sua outra metade para consolidar a Terra. (l.
53-62)

Eu quero construir para mim um Templo que será minha


habitação de escolha, no meio da qual eu implantarei meu
Santuário e eu designarei meus apartamentos para ali
estabelecer meu reino. (l. 122-124)

Quando vocês deixarem o Céu para descer para a


Assembleia, esta será sua etapa, para recebê-los todos juntos!
Eu lhe darei por nome “Babilônia: o Templo dos Grandes
Deuses” e será ali que faremos nossas festas! (l. 127-131)

6º tablete

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Neste tablete temos o discurso de Marduk sobre sua


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decisão de criar o Homem para trabalhar e servir os
deuses e separar as divindades em dois grupos (céus e
terra). Este trecho narra, ainda, a construção de
Babilônia e a nomeação de Marduk como rei dos deuses.

Eu irei condensar o sangue, constituir uma ossatura e suscitar


um protótipo humano, que se chamará “Homem”! Este
protótipo, este Homem, eu irei criá-lo para que lhe sejam
impostas as corveias dos deuses e que estes tenham descanso.
(…) A fim que, mesmo separados em dois grupos (homens e
mulheres), eles sejam identicamente honrados! (l. 5-10)

E, comunicando seu projeto para o repouso dos deuses: “Que


me seja entregue um de seus irmãos: aquele que perecerá, para
que sejam formados os homens! Que os Grandes Deuses se
reúnam a fim de que seja entregue o Culpado, os outros
ficarão sãos e salvos!” (l. 12-17)

Os Igigi, os Grandes Deuses, responderam-lhe (…): “Qingu


sozinho planejou o Combate, levou Tiamat a revoltar-se e
organizou a Batalha!”. Ele foi algemado e levado diante de
Éa. Depois, para infligir seu castigo, ele foi sangrado e, de seu
sangue, Éa produziu a Humanidade. (l. 27-33)

“Façam então Babilônia, uma vez que vocês querem assumir


o trabalho!” (…) E, durante um ano eles moldaram os
tijolos; depois, a partir do segundo ano, de Esagil, réplica de
Apsû, eles construíram a cumeeira. Eles construíram também
[9] deste novo Apsû. E eles ali
a Torre em andares[9]
estabeleceram uma Habitação para Anu, Enlil e Éa.
Então, em majestade, ele veio e tomou o seu lugar diante
destes últimos. Desde o topo de Esarra podia-se contemplar o
pináculo! (…) Convidou os deuses, seus pais, para seu

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banquete. “Vejam (disse-lhes), Babilônia, sua Morada e


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Residência: divirtam-se! Fartem-se de sua alegria!” (l. 57-75)

E os Grandes Deuses, unânimes, exaltaram os destinos de


Marduk e se prostraram diante dele. (…) Eles conferiram-
lhe o exercício da Realeza sobre os deuses, confirmando o
poder absoluto sobre os deuses do Céu e da Terra. (l. 95-100)

7º tablete

No último tablete, as divindades proclamam, pela


segunda vez, os atributos de Marduk recitando 50
nomes. O poema encerra fazendo um apelo à memória,
que se cante as proezas de Marduk para que não se
esqueça.

Algumas reflexões

A partir da leitura do documento fica evidente a


preocupação com a glorificação de Marduk enquanto
deus supremo do Universo e dos homens, graças à sua
intervenção, em um tempo mítico, em um conflito que
dividiu as divindades. A partir desse fato, ele pôde criar e
organizar o mundo e a humanidade. Mas, para poder
edificar sua supremacia perante o conjunto das
divindades, Marduk travou uma luta com os elementos
primordiais, que existiam desde o início dos tempos,
antes mesmo da criação da civilização e do nascimento
dos deuses. E a ação suprema de gênese de um mundo
ordenado foi a fundação da cidade de Babilônia, como
sendo a plenitude do mundo e o centro cósmico do
Universo (tablete VI, l. 57-65).

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Podemos associar a passagem do poema no tablete VI


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com um documento que, indiscutivelmente, possui
grande notoriedade e é conhecido como o “Mappa
Mundi” mesopotâmico.

The Map of the World. Século VI AEC. Argila (12,2 X 8,2 cm)
Foto da autora. Museu Britânico, Londres.

Este manuscrito, atualmente conservado no Museu


Britânico, sob o número de inventário BM 92687, é,
provavelmente, originário do sítio arqueológico de
Babilônia e possui datação em torno de 600 AEC. Neste
documento, Babilônia aparece como o centro do mundo
geográfico e cósmico ao mesmo tempo.

O tablete foi objeto de um estudo exaustivo e completo


realizado por Wayne Horowitz (1998), que decifrou e
traduziu as inscrições, bem como propôs uma
interpretação para o mapa. Para este autor, trata-se do

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único documento mesopotâmico que evidencia a


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superfície da Terra, sob o ângulo de um voo de pássaro.

Cerca de 1/3 do anverso do tablete está ocupado com


um texto mitológico, com 11 linhas, muito fragmentário
e de difícil compreensão, que guarda certa semelhança,
em algumas passagens, como Poema da Criação Enûma
Eliš. No verso do tablete, temos um texto com 29 linhas
e que considera-se que possui uma ligação direta com o
mapa. As últimas linhas do verso descrevem, de forma
sintética, os oito nagû, as regiões ou províncias, como
por exemplo: “Para se chegar na quarta região, tu
efetuarás uma viagem de sete léguas.” (Horowitz, 1998,
p. 25).

Segundo Irving Finkel (2008, p. 309):

“ O mapa em seu sentido normal de leitura,


sua orientação e a repartição dos elementos
que o compõem, não coincidem com um mapa
geográfico moderno (…). Ele se interessa às
terras longínquas, aos eventos e às criaturas
mitológicas, assim como ao mundo situado
além daquele que nos é familiar. A visão do
mundo representada na argila é, pois,
esquemática e pode estar associada à uma
visão aérea.

O elemento central do mapa é composto por dois


círculos concêntricos, com um orifício central,
provavelmente feito pelo compasso utilizado para traçá-
los. No interior do duplo anel temos a inscrição ídmar-ra-

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tum[10]
[10], que na língua acádica significa “oceano”,
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repetida quatro vezes, evidenciando a concepção
mesopotâmica de que o planeta Terra era cercado pelas
águas salgadas.

No interior do círculo estão nomeados diversos lugares


e importantes elementos geográficos da Mesopotâmia,
representados por triângulos, círculos, retângulos e
linhas curvas. Cortando o círculo no sentido leste-oeste,
temos a indicação da cidade de Babilônia, literalmente
representada como centro do mundo. No sentido norte-
sul, exibe-se o rio Eufrates que serpenteava a cidade. O
rio Tigre não é citado neste documento.

Os pequenos círculos apresentam cidades e/ou regiões


conhecidas pelos antigos babilônicos, como Der, Susa,
Urartu, Assíria, etc. Observa-se, ainda, cinco triângulos
que portam inscrições, indicando lugares nomeados
simplesmente por “região” ou “província”.

Podemos destacar, também alguns aspectos literários do


documento, como sua escrita na língua acádica[11], seu
caráter épico, em versos com ritmo e métrica, onde a
cada 5 versos forma-se uma estrofe. De uma perspectiva
moral, o documento evidencia a luta entre o bem e o
mal, onde triunfam a justiça e a verdade. Já sob o prisma
da cosmogonia, podem ser elencados importantes
elementos como a criação do céu, demonstrando
profundo conhecimento de astronomia; a existência de
três elementos comuns nas religiões do mundo semita –
as águas primordiais, as trevas e o espírito da divindade.
O texto apresenta, ainda, uma ideia de evolução na
criação, pois ela termina com o mais perfeito dos seres –
Marduk, o criador do céu e da terra. Outro conceito

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teológico, que será apropriado ao longo da história, é a


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existência da tríade divina, sendo composta por Anu,
Enlil e Éa, todos divindades masculinas. Além disso,
podemos ressaltar alguns aspectos científicos da obra,
como os doze monstros do exército de Tiamat,
identificados com as doze partes do zodíaco, inventado
pelos babilônicos no século XIII AEC.

Finalmente, o documento nos ensina um preceito de


grande atualidade, através do simbolismo da vitória de
Marduk sobre Tiamat: é a vitória da inteligência sobre a
força caótica, desordenada, irracional. A razão é
apresentada como senhora absoluta, capaz de organizar
o cosmos perfeitamente: céu, terra, poderes divinos,
homem, animais e plantas fazem parte de um todo
articulado em perfeito equilíbrio.

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* Doutora em História pela Université de Paris I –


Panthéon-Sorbonne, Professora nos Curso de História da
Arte, de História e do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

[1] Os documentos mais antigos conhecidos na escrita


cuneiforme foram encontrados em um templo, na
cidade de Uruk, com data aproximada de 3.200 AEC.

[2] O tablete de argila foi o principal suporte da escrita


na Mesopotâmia. Possui forma retangular ou quadrada,
podendo variar de 3cm a mais de 50cm de altura.

[3] Anu é a palavra suméria para o céu e só existe no


plural. É também um deus primordial e ocupou o lugar
mais importante dentre as divindades mesopotâmicas.
(Black; Green, 1998, p. 30)

[4] Éa é o nome acádico do deus Enki, em sumério.


Estava associado às águas subterrâneas, a sabedoria e a
magia.

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26/02/2019 Do caos à criação do Universo: uma narrativa mítica da Mesopotâmia

[5] O termo “pagem” escolhido por Bottéro quer indicar


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uma espécie de secretário particular de Apsû.

[6] Éšarra, em sumério significa “Templo Universal”.

[7] Nanna, em sumério é o correspondente para Sîn, em


acádico.

[8] Utu, em sumério é o correspondente para Šamaš, em


acádico.

[9] Torre em andares é a menção ao zigurate de


Babilônia, geralmente conhecido como a Torre de
Babel.

[10] Íd é uma partícula que tem função de determinativo


e antecede os nomes de rios e canais.

[11] O acádico é uma língua semita, juntamente com o


árabe, o hebreu, o aramaico, etc. É uma língua
flexionada, ou seja, as palavras modificam-se e variam
seu sentido com a adição de prefixos, sufixos, infixos e
desinências diversas. O acádico teve três grandes
dialetos: acádico antigo, babilônico e assírio. Durante os
II e I milênios AEC foi a língua diplomática
internacional, sendo utilizada nas cortes de todo o
Oriente Próximo.

a d f v

About Katia Maria Paim Pozzer —


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26/02/2019 Do caos à criação do Universo: uma narrativa mítica da Mesopotâmia

Doutora em História pela Université de Paris I –


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Panthéon-Sorbonne, Professora nos Curso de História
da Arte, de História e do Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul.

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