Você está na página 1de 17

HEGEL E OS MAUS ALUNOS

Desde que entrei na UnB venho ouvindo de alguns professores da computação que seus alunos
estão cada vez menos empenhados em suas disciplinas, que cada vez mais os alunos só se
enteressam em tirar um MM e conseguir os créditos. Ouvi uma história de um professor que se
frustrou de tal forma com a picaretice de seus alunos que não consegue mais olhar nos olhos
dos alunos quando ministra suas aulas, e por ai vai.

Eu como aluno percebo o desinteresse dos colegas em relação a UnB. Esse fato, somado à
frustação dos professores, estão me preocupando, pois parece que esse quadro tende a piorar,
então eu fico me questionando. Será que tal aumento na picaretagem por parte dos alunos só
tem afetado a computação, pois computação é um curso da moda e muitas pessoas que
entram procurando perspectiva profissonal e podem se desiludir ao longo do percurso?
 
Será que isso é um ciclo e dentre em pouco nós os alunos voltaremos a levar a sério a
computação? Será que é só culpa dos alunos ou existe algum fator que vem desestimulando a
grande maioria dos estudantes? Obviamente a respota não é simples, provavelmente será uma
combinação desses fatores somados a outros ainda, mas eu tenho duas teorias ainda não
amadurecidas.

 A primeira se refere a grande pressão que o sistema vem exercendo sobre os alunos de modo
que esses prefiram empenhar-se em arrumar um estágio para, com sua remuneração, atender
ao apelos consumistas cada vez mais fortes, o que os leva a simplesmente tentar conseguir um
MM na UnB pois o estágio exige mais atenção.

A segunda teoria é mais paranoica mas tendo a crer que seja a mais correta. Imagino que exita
um subconsiente coletivo que diz "pra que levar a sério essa UnB se os grandes ícones da
sociedade fazem tudo pela metade, dão um jeitinho pra se dar bem em tudo e f***-se os
outros, roubam na cara dura e saem livres e com toda a moral, pra que eu vou me esforçar se
as intistuições estão falidas, agente tenta, tenta se esforça pra mudar as coisas, deposita nossa
confiança nas pessoas e elas nos traem"...

Pode ser loucura minha, mas acho que existe uma frustação, um falta de fé no sistema como
um todo, o que leva as pessoas a não se empenharem, pois sabem, inconscientemente, que
não vão ter uma contrapartida justa por parte do sistema, ou seja "para q vou contribuir com
uma sociedade que não valoriza o meu esforço?"

Não sei se me fiz entender, o que eu quero é saber quais as causas dessa falta de interesse e
qual a solução, se existir? Obrigado por sua atenção.

PR: Acho que suas duas teorias se aplicam, e que ambas se conectam pelo relativismo moral
hoje imperante. A esse estado de coisas, cada um reage com o que construiu para si desde o
berço. Inclusive e principalmente professores, por tenderem ao idealismo, pela profissão que
escolheram.

Minha reação a esse estado de coisas foi tornar-me ativista (software livre, cidadania na era
digital, etc.). Pode parecer uma atitude farisaica ou pueril para quem já tem emprego fixo, mas
é o que dita a minha consciência. Talvez um dos motivos inconscientes de eu ter escolhido
essa minha profissão, e esse emprego, foi o de poder assim preservá-la.

Doutra feita, racionalizar esse estado de coisas, acomodar-se a ele ou revoltar-se a êsmo seria,
para mim, uma atitude moralmente imatura. Como professor de uma Instituição Pública de
ensino superior sou pago também para pensar. E penso que, enquanto o relativismo moral e a
hipocrisia resultante podem cooptar, podem também servir de combustível para as próximas
lutas sociais. Daí, ao "clamar no deserto" da sala de aula, expondo a dimensão ética nas
atividades profissionais para cuja formação me dedico, estou agindo como um professor que é
também ativista social.

Na intercessão desses dois papéis um dos pais da democracia moderna, um dos homens que
mais contribuiu para o senso de indignação e revolta que fomentou a revolução francesa,
Montesquieu, na sua obra "o Espírito das leis" explicava: Num estado democrático de Direito,
há que haver uma instância a mais, a Virtude.

Independente de leis, não se pode esperar justiça de homens que desprezam a Virtude. A
busca do saber (no sentido de sofia e de episteme, não de doxa) [no nosso caso, saber não
apenas como a criptografia pode ser bem ou mal utilizada, mas principalmente, os próprios
valores morais com os quais se julga o que é bom e o que é mau uso dela] é uma virtude;
subjugar-se ao relativismo moral, correndo o professor atrás só de salário e estabilidade, e o
aluno atrás só de canudo e rodas de pôquer, jogadas no chão dos corredores da escola ou no
cassino da mão-de-obra semi-acabada, não me parece que seja.

Guiar a conduta pela bússola auto-enganosa da estabilidade financeira pode parecer uma
atitude realista, porém, ao mesmo tempo que uma tal estratégia pode ser localmente
vantajosa, ela é também globalmente desastrosa. É uma armadilha de radicalismo ideológico
encetada pelo fundamentalismo neoliberal. Leva a uma forma de conduta competitiva que
hoje parece vencedora, mas que amanhã pode se tornar fardo ou grilhão, em momentos de
ruptura social, ruptura que essa própria exacerbação individual, complacente e hedonista,
cataliza. Platão dizia que a maior força escravizadora é a concupiscência.

E a História isso mostra, ciclicamente validando Platão, sem nenhum indício para crermos que
dessa vez seja diferente. A evolução tecnológica precipita essas rupturas, como com os gregos,
cuja sociedade de início foi a que melhor soube usar a primeira tecnologia revolucionária de TI,
o alfabeto. E sem tampouco indícios para desprezarmos a distância que nos separa da próxima
ruptura. A sociedade grega condenou à morte Sócrates, formalmente pelo crime de
"perversão da juventude", para pouco depois sucumbir ao domínio do jovem Alexandre, que
aprendera arte militar com Aristóteles para se formar herdeiro da Macedônia, nação que os
gregos consideravam "bárbara". 
Assim, cabe refletir: quem é que está cada vez mais aprisionado hoje? Os chefes do PCC,
encarcerados pelo Estado, em presídios de segurança cada vez mais "máxima"? ou quem corre
cada vez mais atrás da sua estabilidade financeira ou do poder, enredados pelo medo, nos
labirintos de incertezas desse caos? No cenário global, troque atores e lugares pelos da hora e
refaça mentalmente a pergunta. Talvez em tempos como esse, a estabilidade financeira não
seja lá nenhum santo graal. Ou, em linguagem mais conhecida de desmotivados consumistas,
nenhuma brastemp.

e-mail 2:

Aluno: Sua respostas foram de grande valia para mim. Ao final de uma releitura, elas me
levaram a um outro questionamento já não tão objetivo, mas que, analogamente aos
anteriores, rondam a minha mente a tempos: O "relativismo moral" e outros tipos de
comportamentos e idéias são provocados, induzidos por alguma minoria?

PR: O relativismo moral pode, sim, estar ecoando a influência de um dos maiores filósofos
modernos (Georg Hegel, 1770-1841) sobre o pesamento político depois dele. Influência talvez
melhor explicada por outro grande pensador, este mais recente e que se dedicou à filosofia da
linguagem (Ernst Cassirer, 1874-1945). Por outro lado, pode ser também que Hegel apenas
anteviu com mais descortino, e bem enquadrou em seu sistema filosófico, especificamente na
sua filosofia da história, a evolução do processo civilizatório.

Nos últimos capítulos de seu último livro, escrito pouco antes de morrer, Cassirer analisa com
tal brilho, didatismo e argúcia o legado de Hegel que me vejo compelido a parafraseá-lo ou
citá-lo extensamente para, sob proteção do inciso III do art. 46 da Lei de Direitos Autorais,
oferecer-lhe e aos demais leitores em reflexão, já que eu mim não tenho respostas melhores
(além dos comentários, em não-itálico [ou em cinza]), para as perguntas que lhe rondam a
mente.

Respostas, talvez nem ele. Mas, em "O mito do Estado", publicado em 1946, e em português
pela editora Codex em 2003, Ernst Cassirer nos oferece uma interpretação ímpar da crise
intelectual que sucedeu o legado de Hegel, da qual o mundo ainda não conseguiu se libertar.
Como legítimo herdeiro do Iluminismo depois de Hegel, Cassirer depositava, segundo seu
tradutor Álvaro Cabral, grandes esperanças na capacidade de homens e mulheres para
resolver seus problemas através da força do espírito.

Sobre Hegel, diz Cassirer em "o Mito do Estado":

Nenhum outro sistema filosófico exerceu influência tão forte e duradoura na vida política do


que a metafísica de Hegel. Todos os grandes filósofos anteriores propuseram teorias do Estado
que influenciaram o pensamento político, mas desempenharam um papel muito modesto na
vida política. Pertenciam ao mundo das "idéias" ou "ideais", não ao mundo político "real". Os
filosófos lastimam frequentemente esse fato, e Kant chegou a escrever um tratado
especialmente destinado a refutar o slogan "Pode ser bom na teoria, mas não dá resultado na
prática". Contudo, esses esforços foram vãos, porque o abismo entre o pensamento político e a
vida política continuava aberto.

A filosofia de Hegel

Estudando a filosofia de Hegel, deparamo-nos com uma situação completamente diferente. A


sua lógica e a sua metafísica, que foram no início consideradas como pilares do seu sistema
filosófico, eram precisamente a parte desse sistema que estava aberta, tal qual o abismo entre
a vida no tempo deles e o pensamento dos filósofos anteriores. Entretanto, depois de uma
breve disputa filosófica, na qual esses pilares pareceram resistir, com o renascimento do
hegelianismo, ocorrido no pensamento político e portanto, além e acima desses pilares (lógica
e metafísica), poucos sistemas políticos resistiram à sua influência. Todas as modernas
ideologias mostram a força e a durabilidade dos princípios que foram pela primeira vez
apresentados na filosofia do direito e na filosofia da história de Hegel.

Foi, todavia, uma vitória de Pirro. O hegelianismo teve que pagar pelo seu triunfo. Ao dilatar
imensamente a sua esfera de ação, sua unidade e harmonia internas se perderam. Diferentes
escolas e partidos apelam para a autoridade de Hegel, mas com interpretações inteiramente
diferentes -- e incompatíveis -- dos seus princípios fundamentais. 

Para um estudo da filosofia de Hegel, não podemos proceder como com outros filósofos. Com
Platão, podemos almejar uma visão da sua teoria do conhecimento, com Aristóteles, da sua
filosofia natural, ou com Kant, da sua teoria ética, pela simples descrição dos principais
resultados desses filósofos. Com o sistema de Hegel, tal descrição seria totalmente insuficiente,
o que explica as várias e divergentes interpretações do mesmo.

Liberdade

Hegel, entretanto, não temia essas contradições; via nelas a própria vida do pensamento
especulativo e da verdade filosófica. Desafiava, por exemplo, constantemente o famoso
princípio da identidade (A = A) e da contradição (A ou não-A). Não porque seria falso, mas
porque seria meramente formal, abstrato e, além disso, superficial. O que, segundo Hegel, na
realidade sempre se encontra é a identidade de contrários. Mesmo no pensamento político,
cada tese é seguida de uma antítese, cujo entrechoque deve apontar uma síntese, para aquele
que sempre se designou como um filósofo da liberdade.

"Assim como a essência da matéria é a gravidade,... a essência do Espírito é a Liberdade...a


Filosofia ensina que todas as qualidades do Espírito existem somente através da Liberdade" 1

Será? Os inimigos de Hegel afirmam que isso é mais uma caricatura do que uma fiel descrição
da sua doutrina. O filósofo Fries declara que a teoria hegeliana do Estado "não nasceu nos
jardins da ciência, mas nos monturos da servidão". Todos os liberais alemães falavam e
sentiam da mesma forma. Segundo eles, Hegel seria o mais perigoso inimigo de todos os ideais
democráticos. Mas como explicar que só depois da sua morte sua doutrina tenha
passado, subitamente, a ser vista e utilizada desse ângulo? Mestre de Marx e Lênin, o campeão
do "marxismo dialético"? Para Cassirer, Hegel não seria o responsável por essa evolução.

Tanto por seu caráter como pelo seu temperamento pessoal, Hegel era avesso a soluções
radicais. Era um conservador, que defendia o poder da tradição. Nos seus primeiros escritos,
glorifica como ideais a Polis grega e a República romana. O costume (sitte) era para ele o
elemento básico da vida política. Sempre conservou e defendeu o mesmo ponto de vista: não
reconhecia nenhuma ética superior àquela que emerge dos costumes 2.

A ética hegeliana é, portanto, relativa aos costumes, o que a distingue fundamentalmente da


ética de Platão, dominante no pensamento ocidental até Hegel. A ética de Platão, cuja
influência assim perdurou através da síntese com a moral cristã, promovida por Santo
Agostinho no século IV e sistematizada por Kant enquanto Hegel crescia, apela para a
responsabilidade individual, preconizada por Sócrates, de quem era discípulo. Para Platão, não
é na tradição ou na rotina que se podem encontrar os princípios de uma verdadeira vida
política. Esses princípios não se assentam na doxa ("justa opinião"), mas
na episteme (conhecimento de natureza científica), a nova forma de racionalidade e de
consciência moral descoberta por Sócrates.

Já para Hegel, nem a Razão, nem sua relação com a Moral, são desse tipo platônico. E Cassirer
pode estar certo sobre não ser Hegel responsável pela evolução do seu conceito de liberdade;
Mas apenas diretamente, já que foi ele (Hegel) quem introduziu a dialética como ferramenta
filosófica global, neste caso aplicada à evolução do pensamento que manifestou sobre a
Liberdade. Premeditada ou não, a dialética da Liberdade a partir de Hegel é exemplo histórico,
talvez o mais contundente, de comportamentos e idéias induzidas por uma minoria. Neste
caso, uma minoria de grandes atores históricos que leram e praticaram suas idéias, inclusive
sobre a relatividade moral.

Aluno: Ou seja, um grupo de pessoas determinam, segundo interesses própios, um


comportamento adequado para a sociedade e usa o seu poder pra "sugerir" o comportameto
certo à sociedade? Ouvi dizer que "o povo é o que a sua classe dominate deseja que seja".

PR: Como sugeri na resposta a seu primeiro email, esse determinismo talvez só seja
perceptível em situações de ruptura, de conflitos éticos. Para entendermos a precariedade
desse eventual determinismo, voltemos nossa atenção para a relação clássica entre Razão e
Moral. Para isso, escolho a descrição que dela faz o prof. Arnaldo Drummond em "Morte do
Mercado" (editora Unisinos, 2004), parafreaseada abaixo:
Na Grécia clássica, no tempo histórico de Sócrates, em decorrência das transformações
econômicas, sociopolíticas e culturais nos séculos VII e VI a.C. nasceu a ética (estudo das leis da
moral) como ciência do ethos (moral, no sentido de critério particular para conduta social
aceitável). Entretanto, esse aparecimento da ética como matéria filosófica não coincidiu com o
início da filosofia científica (episteme), nem com o fim do domínio do pensamento mítico sobre
ela. Para os pré-socráticos, como Anaximandro e Empédocles, o mito engloba a relação entre
ordem cósmica e ethos, por analogia entre a ordem da natureza e o comportamento humano.
Com Heráclito, essa relação passa para o domínio do logos (verbo, palavra inteligível, razão),
sem contudo se desprender do pensamento divino. Apenas com Sócrates se completa a crítica
do ethos segundo a razão, devido a duas pré-condições históricas do pensamento moral: a crise
do ethos tradicional e sua refutação pelos sofistas.

No século V a.C., o ethos tradicional entra em choque com o novo modo de viver emergente
nas cidades-estados. Sobretudo na Jônia (em particular em Esparta), onde o desenvolvimento
técnico, as mudanças por este induzidas na organização social, e os novos bens simbólicos,
quebraram a estrutura da sociedade aristocrática até então prevalecente. Trata-se de um
exemplo modelar de conflito ético: a mudança social não é acompanhada pela mudança de
costume. Por esse descompasso foi que o pensamento sofista, predominante na mentalidade
ateniense, inaugurou o antropocentrismo na filosofia ocidental, antes centrada na ordem e
princípio explicativo da physis (natureza), conforme registrada pelos pré-socráticos. Este
antropocentrismo se centra na singularidade do conceito de natureza humana. Lei humana
como convenção, voltada para a organização da cidade e das práticas sociais, e para a
descoberta e exploração do poder de convencimento do logos [tipo assim, MP 2200-2].

A crítica da Moral

Apesar de combaterem o dogmatismo da moral tradicional, os sofistas não foram capazes de


concluir a crítica da Moral (isto é, dar resposta original à questão do que vem a ser a moral, e
do quê nela é universal) porque negavam a possibilidade de uma teoria moral objetiva.
Herdeiros da razão demonstrativa dos pré-socráticos (logos apodeiktikos), aplicaram-na de
maneira dilatada nas disciplinas da cultura, principalmente na retórica e na lógica. Mas apesar
disso, os sofistas não conseguiram transpor o ethos (moral particular) à ética (moral universal).
A não ser por tentativas de generalização baseadas no discurso da persuação (logos da doxa),
próprio do domínio político das convenções e, portanto, refém de um consenso aleatório entre
subjetividades (liberdades)3.

Enquanto tentavam, a Grécia se aprofundava em crise ética, marcada pela guerra do


Peloponeso (entre Atenas e Esparta) e pela oscilação entre as duas faces do relativismo
moral: o extremo convencionalismo (Esquerda), e o extremo naturalismo (Direita). O primeiro,
através de pactos sociais entre variados costumes e tradições, e o segundo, através da
submissão da natureza humana a desejos e impulsos de poder. Tal acepção naturalista da
natureza humana, longe de constituir critério objetivo de moral, transfere para o objeto
particular do desejo a determinação imediata do agir. [tipo assim, segurança "de dados" ao
invés de segurança na informática, em consonância com a ideologia fundamentalista de
mercado] Resta ao ser humano, transformado por tal acepção em refém das
circunstâncias, refurgiar-se no intersubjetivismo moral como única referência possível de
preservação do convívio em sociedade [tipo assim, "se a maioria dos alunos está insatisfeita
com o professor, ele deve estar errado!"].

Como reformador moral, Sócrates tenta retirar a ética da frágil condição em que a colocara o
relativismo moral proposto pelos sofistas e reagido em dialética (Esquerda-Direita), e o
decorrente ceticismo generalizado na sociedade do seu tempo [a exemplo do ceticismo que,
entre alunos da UnB, motivou esse debate]. Desse modo, ao se defrontar com o mesmo desafio
que a sofística não conseguira resolver, a saber, o de transpor a universalidade da razão para a
particularidade do ethos, Sócrates descobre o significado da natureza humana, baseado numa
nova concepção de psiquê, traduzida precária ou impropriamente por "alma".

O "homem interior"

Esse conceito de  alma, que Platão depois denominou "homem interior" (e que Hegel usa, mas
pouco explora), torna-se a sede do novo sujeito moral, e da sua inteligência, porque distingue o
ser humano de todas as outras coisas, retirando-o do determinismo natural do reino animal
para torná-lo portador de cultura. O novo sujeito moral de Platão tinha o sentido de enkrateia,
síntese dialética entre razão e liberdade (ou, entre razão livre e liberdade racional). A palavra
enkrateia tinha, na época em que Sócrates dedicou-se à crítica da Moral, o sentido
de autodomínio.

Assim Sócrates descobre o porquê do antropocentrismo sofista ter falhado na crítica da Moral.
Falhou, paradoxalmente, por naturalizar o agir moral, escravizando-o aos apetites do desejo.
Humanizar o agir moral significa, ao contrário para Sócrates, torná-lo virtuoso através do
autodomínio, cuja condição autárquica o liberta dos desejos e impulsos. Significa afastar o ser
humano de uma determinação animal da sua natureza, diferenciando-o como ser-de-cultura,
como descrito no portal do templo de Apolo em Delfos: "conheça-te a ti mesmo".

A descoberta socrática do poder libertador do autodomínio (eukrateia) cria um sentido


inteiramente novo para Liberdade (eleutheria), cujo significado moral é o domínio da
racionalidade sobre a animalidade.  Anteriormente, a liberdade era entendida apenas nos
sentidos jurídico e político4. Este novo sentido é que ilumina a contradição performativa do
pensamento sofista, que, por um lado, vê o ser humano como ser-de-cultura, mas, por outro,
naturaliza-o ao considerar o desejo como guia do seu comportamento. Quando orientado pelos
desejos primordiais -- prazer e poder [hoje $-conversíveis] --, o ser humano deixa de ser sujeito
moral (nesse novo sentido) ao transferir sua realização para fora de si, para os objetos de
desejo.

Sócrates descobre, assim, a relação mutuamente estruturante entre


autodomínio [algoritmo] e liberdade [estrutura de dados], o que lhe permite dar o passo
decisivo para a construção da sua ética, a ciência da moral registrada por Platão. [no software
livre, e noutros modos de produção colaborativa de bens simbólicos possibilitados pela
hiperconectividade, transformadora da sociedade contemporânea, esta relação se expressa no
equilbrio entre os direitos que o autor escolhe preservar e ceder, ao licenciar o objeto da sua
obra autoral]

Mas Sócrates só o fez, e o fez ao preço de "ter que provar" seu autodomínio com uma taça de
cicuta, devido ao conflito ético vivido em seu tempo. Talvez o exemplo de Sócrates [junto com
sua antítese em George Bush] esteja sugerindo um ditado alternativo ao que ouvistes, ao
menos para momentos de crise: "o povo vê na sua classe dominante o que deseja ter".

Aluno: Ou, por outro lado, o comportamento e as idéias dominates em uma sociedade são
forjadas no cotidiano por todos, onde a classe dominante seria o reflexo do povo?

PR: As idéias dominantes em uma sociedade seriam, ao menos segundo a filosofia que mais se
reflete -- de uma forma ou de outra -- nas classes dominantes desde então (a filosofia de
Hegel), fojadas no cotidiano; Porém, não por todos. Ou pelo menos, não nos mesmos moldes.
Para entendermos como Hegel via os papéis dos indivíduos no curso da história, e de como
esses papéis se combinam, recorro, novamente, a opiniões mais profícuas e ilustres do que as
que poderia articular sozinho. 

Na introdução da tradução ao inglês de "Lições sobre a filosofia da história", publicação


organizada postumamente pelo filho de Hegel com manuscritos do filósofo e notas de aulas de
seus alunos, Robert Hartman condensa, com erudição e competência filosófica ímpares, traços
gerais dessas lições, sobre o panorama da obra de Hegel, do seu tempo e do seu legado até o
ano do meu nascimento. Da tradução ao português por Beatriz Sidou6, parafraseio ou cito
passagens em busca desse entendimento:

Assim como, na filosofia de Hegel, a "Idéia absoluta" (o poder lógico do divino, no vocabulário
de Hegel) penetra e dirige o cenário da luta histórica através dos mortais, a filosofia de Hegel,
como expressão da "Idéia absoluta", penetrou na história. Assim como a Idéia absoluta
permanece intocada pela luta das paixões humanas, a filosofia de Hegel, como criação
intelectual, continua imperturbada na luta mortífera que foi e vai sendo travada em torno dela.

Na filosofia de Hegel, a Idéia absoluta se desenvolve no espaço e no tempo. Desenvolvendo-se


no espaço, ela é a Natureza; e no tempo, ela é o Espírito. O Espírito no tempo é a História. O
pensamento é o que é ideal no mundo, e o mundo, é o que é concreto na idéia. Eis o processo
dialético, em sua inicialização.

O segredo da influência de Hegel está no seu método dinâmico. Ele não o inventou, suas raízes
alcançam fontes na filosofia grega, em Heráclito. Pode-se, também, traçar toda a linha
percorrida por Hegel através da história da filosofia. Mas ele o alinhavou, e aplicou à
totalidade do mundo o seu consturto, cuja força está em sua aplicabilidade interna e universal.

Religião e História
Os dois centros intelectuais da doutrina hegeliana são o problema da religião e o problema da
história. Estudando os primeiros trabalhos de Hegel, dificilmente se pode separá-los.
Encontram-se fundidos, formando uma unidade dialética inextricável. Cassirer descreve a
tendência fundamental do pensamento de Hegel dizendo que ele falava de religião em termos
de história, e de história em termos de religião. Desse modo, um das mais antigas e difíceis
questões filosóficas toma subitamente uma nova forma.

Todos os ângulos pelos quais os pensadores anteriores tinham enfrentado o problema da


teodicéia (explicar a origem do mal) pareciam superados com Hegel. O dos estóicos, o dos
neoplatônicos e o dos iluministas, este pela refutação de qualquer solução teológica (que
atribua origem divina ao mal). Para Hegel, não é preciso procurar uma "desculpa" ou
justificativa para a existência do mal, físico ou moral. Ele é produto do caráter fundamental da
prórpia definição de realidade. Segundo Hegel, temos que redefinir essa questão, descobrir um
significado filosófico mais profundo sob o significado religioso do mal. Essa é a tarefa que sua
filosofia da história se propõe a realizar.

Assim, Hartman observa, o sistema hegeliano foi interpretado e tocou a todo grande
acontecimento histórico ou espiritual do seu tempo, e a partir dele. O terrorismo em que decaiu
a Revolução Francesa foi interpretado como abstração lógica
descontrolada [como também outros terrorismos de Estado, mais atuais]. Mal-entendidos
semelhantes se associaram à noção do "grande homem", a qual Hegel foi o primeiro a discutir
no plano filosófico. Como o super-homem de Nietzsche, o herói hegeliano foi mal
compreendido, confundido como protótipo do ser subumano do fascismo e do nazismo. Ocorre,
porém, que Hegel deu passagem ou origem a tais ideologias de maneira muito mais sutil.

Naturalmente [pela cronologia] Hegel não influenciou Kant, mas sua influência na filosofia


kantiana foi profunda. Ele rejeita o programa kantiano, de se examinar a faculdade de
compreensão antes de se examinar a natureza das coisas. Hegel compara esse programa ao de
se querer aprender a nadar antes de se entrar na água. Para ele, coisas e pensamentos estão
diretamente inter-relacionados, e o pensamento reconhece as próprias coisas. Não há coisa-
em-si, deixada incógnita fora do pensamento, nem mesmo Deus. Se as leis da lógica e do
pensamento estão juntas, como dois aspectos do mesmo processo, então a lógica também é
uma doutrina da realidade (ontologia).

Dialética universal

Chegado a esse ponto, Hegel precisava dar apenas mais um passo para encarar a própria
realidade como o pensamento de um pensador, e todo o seu sistema do mundo como uma
teologia. Ei-lo:  O inter-relacionamento entre o real e o meramente existente, entre o
necessário e o contingente, vai em frente dialeticamente. Assim, tudo o que é real é racional, e
vice versa. O processo dialético é, ao mesmo tempo, lógico, ontológico e cronológico. Tudo que
é deve ser, e tudo é como deveria ser. E quanto à liberdade?

Como o Espírito é livre por natureza, a História é o progresso da Liberdade [quase o mito


adâmico]. A Liberdade, como o Espírito, é dinamica: progride contra seus próprios obstáculos,
dialeticamente. Ela jamais é dada, deve-se lutar para obtê-la. Cada afrouxamento do Espírito
significa voltar à inércia da Matéria, o que, por sua vez, significa a destruição da liberdade pela
sujeição à mesma, ou pela sujeição a outros [classe dominante] que usam o sujeito frouxo
como objeto.

Essa luta é dada na própria natureza da vontade de Deus, que é a fonte de toda a criação. Mas
é apenas no reino humano que essa luta se desdobra completamente, em autoconsciência. Na
realidade criada, o Espírito aparece como universal e também como particular, num universo
cujas particularidades existem em indivíduos e povos. Na realidade criada, o particular
desaparece constantemente, com a morte reforçando o universal e sua transfiguração. Temos,
aqui, as dialéticas entre indivíduo e Povo, e entre Povo e Espírito do Mundo, em cujo enredo
Hegel insere e interpreta fatos históricos.

O Estado

O Espírito do Mundo, incorporado em um povo concreto, é o Espírito Nacional (Volkgeist). Os


indivíduos, até onde são historicamente ativos, incorporam o Espírito Nacional e, através deste,
o Espírito do Mundo. Os seres em que o Espírito ou a Liberdade se incorpora, imediata e
diretamente, são os povos e as nações da Terra. Por nação, ou Estado, Hegel entende uma
cultura e civlilização, uma organização da liberdade. Segundo ele, a Liberdade (não no sentido
de licença ou permissão, em minúsculo, mas no sentido de essência do Espírito, em maiúsculo)
só é possível nos Estados. Portanto, não há história sem que hajam Estados.

Aqui, Hegel tem sido muito mal interpretado. Se seu conceito de Estado é entendido muito
literalmente, seguem-se tolices que não estão no que ele quis dizer, mesmo que (ou talvez
porque) o nacionalismo estreito lhe tenha sido familiar. Talvez, como sustenta Sabine, o jovem
Hegel tenha mesmo desejado tornar-se um novo Maquiavel, mas o Hegel maduro (e portanto o
mais real, de acordo com a sua própria dialética) superou esse arroubo. Quando falava de
Estado ele falava de um Estado ideal, com forma e conteúdo -- uma civilização e uma cultura
com todas suas instituições, de lei, religião, arte, filosofia, etc. --, e não de um Estado formal --
um poder burocrático sem o conteúdo cívico-cultural -- ou, pior, de um pseudo-Estado, que usa
esse poder formal para destruir seu conteúdo e o desenvolvimento individual dentro dele. De
tais simulacros (anti-Estados), que se opõem dialeticamente ao Estado ideal, não devem restar
senão ruínas, dizia ele, como que premonitoriamente.

Nessa dialética do Estado, o Povo, como concretização do Espírito, encontra consciência de si.
No auge do seu desenvolvimento ele deixa, pela própria dialética do processo, de lutar para
avançar. Volta-se para trás e, por assim dizer, goza o que atingiu. Nesse ponto a realização da
vontade divina, nessa forma e desse modo, enfraquece. O povo realizado gradualmente
desaparece. No que o Espírito Nacional retorna à universalidade, enriquecido pela experiência
recente, preparando-se para a próxima fase, em outro povo. A história é o processo do Espírito
progredindo para o conceito cumulativo de si, de nação para nação, onde o Espírito do Mundo
modela o Povo, através de civilizações e culturas [quase uma doutrina messiânica anti-
judaísta].
Porém, além e acima do Estado está a Idéia absoluta, em cuja esfera o indivíduo se encontra
em sentido superior ao de cidadão.  Ali está o ser humano como criador, o "homem interior" de
Platão. Artista, santo e filósofo. Assim, existe no homem e na mulher uma esfera criadora a que
o Estado não pode tocar. Essa esfera interior do indivíduo, que se opõe à moralidade política,
tem sido negligenciada pelos intérpretes de Hegel, em parte talvez porque ele nunca a tenha
desenvolvido com clareza.

Não obstante, as "Lições sobre filosofia da história" de Hegel nos dão quatro moldes para o ser
humano na história: o de cidadão, o de indivíduo, o de herói e a de vítima, dos quais apenas o
segundo, quiçá mal enquadrado em seu sistema filosófico, não afeta ou não é afetado
necessariamente pela dialética hegeliana do Estado, dialética que concretiza seu conceito de
Povo.

Aluno: Ou, por fim, uma combinação de ambos? (o comportamento e as idéias dominantes


numa sociedade seriam uma combinação entre as "sugeridas" pela classe dominante e as
forjadas por todos). Caso seja uma combinação de ambos, é possivel saber quando estamos
sendo manipulados pelos interesses de uma minoria? Imagino que não, mas gostaria de ter sua
opinião.

PR: Novamente recorro aos textos de Cassirer e Hartman, para intermediar o que eu poderia
lhe oferecer a título de opinião, antes de concluí-la com símbolos da mitologia contemporânea
(cinegrafia de "Matrix"). Em que grau e em que sentidos seria possível saber quando estamos
sendo manipulados por interesses de uma minoria dominante, e como, são questões melhor
iluminadas pela análise que eles fazem dos quatro moldes para o homem histórico na filosofia
hegeliana. Parafraseando ou citando-os: 

O cidadão
 
A racionalidade particular que molda o cidadão é realizada no Estado. Particular e não
universal, porque o Estado em si é apenas uma fase na História, jamais o ponto final do avanço
da consciência na Liberdade, que é a história do mundo. [na esfera dos valores simbólicos
digitalmente realizáveis, a luta pela liberdade avança, além do software livre, nas batalhas por
padrões e formatos abertos, pelo acesso ao conhecimento, etc.].

O Estado é moral apenas até onde a moral é realizada na Terra, naquele momento. Apenas um
Estado em particular realiza, em determinado momento, o Espírito do Mundo. Outros Estados
não o realizam ou porque não atingiram, ou já ultrapassaram, essa fase noutro momento, ou
porque não estão preparados para isso. Seus cidadãos são, presumivelmente, "menos morais"
(no sentido presente) que aqueles do Estado que representa o Espírito do Mundo (no presente).
Em sua filosofia do direito, Hegel afirma:

"O Espírito do Mundo, na sua marcha avante, coloca sobre cada povo a tarefa de fazer
sobressair a sua vocação peculiar. Assim, na história universal, cada nação tem a sua vez de
dominar. Contra esse direito absoluto daquele que tem em si num dado momento a tarefa de
desenvolver o Espírito do Mundo, os espíritos das outras nações estão absolutamente
desprovidos de direitos, e tal como as de épocas passadas, não contam em absoluto para a
história."5

Sobre essa passagem, Cassirer comenta que, até então, nenhum filósofo da categoria de
Hegel tinha falado em termos semelhantes. Quando Hegel a escreveu (nas primeiras décadas
do século XIX), assistia-se ao surgimento e influência crescente de ideais nacionalistas. Mas,
ainda assim, trata-se de um fato novo na história do pensamento político, carregado das mais
temíveis consequências: um sistema de ética e uma filosofia do direito dispostos a defender tais
idéias. Declarando outras nações "absolutamente desprovidas de direitos" contra aquela que,
num determinado momento histórico, deva ser considerada como o único agente do "Espírito
do Mundo" na Terra. Hegel isentava o Estado de todas as obrigações morais, enquanto
relativizava a de cidadãos com respeito a uma tal dominância [atualmente sustentada por
arsenais de destruição em massa], ainda que confinada a seu processo dialético:

 "Um estado está então bem constituído e é inteiramente poderoso quando o interesse privado
dos seus cidadãos tem o mesmo interesse comum com o Estado, e um encontra gratificação no
outro"6

A respeito do molde hegeliano para cidadania, Hartman prossegue: No momento em que o


indivíduo está consciente da sua liberdade, ele é cidadão de um Estado moral [no sentido de
instituição que determina limites para esta liberdade e, portanto, para sua moral individual],
membro de uma comunidade cultural. O Estado, e não o indivíduo mesmo, é o universo de sua
liberdade -- ele em si é apenas um exemplo. No entanto, essa fase de consciência pode ser
transcendida pelo ser humano ético (de moral absoluta, do segundo molde), o "homem
interior" de Platão, e também pelo herói (o ser humano de moral histórica, do terceiro molde).
Como o pensamento de Hegel desloca os sentidos morais do indivíduo para a racionalidade dos
seus coletivos, pois

"As leis da Ética não são acidentais, mas são a própria racionalidade" 6

esse processo abre lugar, também, para o indivíduo que não tem importância moral ou
histórica. A saber, a vítima (do quarto molde).

Essa construção hegeliana era historicamente muito perigosa. Em parte porque Hegel jamais
deixou claro o que ele queria dizer com "Estado", em parte porque seus leitores escolhem o que
querem lembrar do que ele teria dito. Quando se entende Estado por "qualquer Estado", a
posição de Hegel se torna absurda e seu cidadão, uma caricatura da moral.

Há os que comparam Hegel a Hobbes, segundo quem a obediência ao Estado é o maior dever
civil, mas se esquecem de que o Estado hobbesiano não é um Estado moral no sentido
hegeliano, e sim uma instituição pragmática para garantir a lei e a ordem, que não promove
nem responde pelo encontro do Espírito do Mundo com o espírito individual. Outros deliram ao
considerar Hegel um democrata no mesmo sentido de seus contemporâneos das Revoluções
Francesa e Americana, especialmente o poeta Walt Witmann e o filósofo John Dewey, que nele
se inspiraram para promover a segunda, berço primeiro da democracia moderna.

Hegel tem um conceito muito baixo da dignidade e importância da cidadania. Nas suas lições
de filosofia de história, as funções mais vitais da democraria, como as eleições, são como
caricaturas. Ele não vê, como via Kant, incompatibilidade entre a organização militar e a
democrática, e assim usa a militar como único exemplo da necessidade de obediência na
democracia. Ele não vê isso trazer inconsistências ao seu conceito de Estado moral, qualquer
que seja este ou sua definição, já que a organização militar não organiza vontades racionais. A
democracia está suspensa na guerra. Por outro lado, como a guerra é, para ele, uma das
expressões culturais do Estado, ou ainda, um meio de destruir Estados, isso faz da democracia
um empecilho à criação de Estados [como no atual jogo de palavras da realpolitik no Oriente
Médio].

O indivíduo

Para Hegel, a moral do cidadão é apenas moral relativa. Não atinge o foro mais íntimo do
espírito humano, que é o domicílio da moral absoluta, a qual está fora do alcance do Estado.
Lugar da Liberdade absoluta, pela qual o ser humano ético é responsável por si, onde o
autodomínio socrático pode se abrigar para realizar o [que podemos chamar de] indivíduo
interior. Lugar que

"[A]bsolutamente não está subordinado" -- nem à astúcia da Razão, nem mesmo ao curso da
História -- mas que "existe nos indivíduos como inerentemente eterno e divino", e cuja "moral,
ética e religião" jamais é propiciada, garantida ou suplementada pelo Estado 6.

Temos aqui mais um elemento de influência hegeliana, que nos leva ao existencialismo. Como
as lições de filosofia de história não esclarecem bem a diferença entre as duas modalidades da
moral, relativa e absoluta, talvez porque Hegel não estivesse mesmo seguro a respeito, alguns
intérpretes do seu sistema, como Kirkegaard, sustentam que ele interpreta mal o problema do
indivíduo [sobre a sua natureza]. Enquanto outros preferem destacar, em Hegel, o primeiro
filósofo a dar tratamento sistemático ao valor singular do indivíduo, em contraste ao decurso
anterior da filosofia ocidental, de Platão a Kant, que tratava sistematicamente apenas o
universal e o abstrato.

O herói

Entre o ser humano de moral relativa, cidadã(o) de um Estado, e o ser humano ético ou de
moral absoluta, indivíduo interior, está o ser humano de moral histórica -- o herói ou heroína
hegelianos. Como indivíduos, com seus ímpetos e poderes, eles não são nada mais do que
matéria-prima do Espírito do Mundo, que os teria agarrado por alguma avassaladora paixão
histórica. É assim que o Espírito abstrato adquire o poder concreto da realização. O indivíduo
enquanto matéria-prima para a eficácia do Espírito do Mundo se faz força em essência, força
motriz da história, cuja direção é dada pelo Espírito na ação heróica.
Em homens e mulheres históricos, desse tipo, o capricho dos desejos não se funde às leis
objetivas do Estado, como nos cidadãos, mas antes, às demandas do Espírito do Mundo, que,
pela ação deles, produz e transforma essas leis. Heróis e heroínas no sentido hegeliano são, por
assim dizer, a forma ainda fluida de Estados futuros e suas instituições. Sua moral não é a do
Estado, mas a da formação do Estado. O Espírito do Mundo, como diz Hegel, esbarra por meio
deles na superfície da realidade, pronto a rompê-la de dentro, como a uma casca de ovo
chocado. A fonte da força heróica está oculta sob a superfície da realidade, enquanto ela age.
O ser heróico tem acesso privilegiado à realidade da Idéia absoluta, e ela o inspira,
preenchendo-o com uma vontade concentrada e fazendo dele, assim, sujeito da história. Isto é,
sujeito de ações que trazem à luz o que ainda está oculto no ventre do tempo. O herói
hegeliano é, portanto, quem empurra a história adiante.

Entretanto, o herói hegeliano é completamente orientado pelo Espírito do Mundo. O Espírito do


Mundo o utiliza, astutamente, para seus próprios fins. Porém, como no processo dialético o
universal e o particular se medem, o herói deveria contribuir com algo mais do que sua força e
vontade para o curso da história. Afinal, sua moral não se origina apenas do Espírito do
Mundo, podendo também vir da sua ética, do seu absoluto indivíduo interior. Se Hegel tivesse
desenvolvido mais o seu segundo molde, ele poderia ter inserido a espontânea individualidade
no curso da história. Entretanto, ele não o fez. Para Hegel, o curso da história é impessoal. Por
isso, o herói hegeliano pode se tornar (e deve, se sua ação for histórica) impessoal. A ponto de,
inclusive, tiranizar indivíduos "menos históricos". Hegel é atormentado por isso mas está preso,
por seu sistema, à necessidade do desenvolvimento lógico da Idéia Absoluta.

Assim aperece a mais séria deficiência da fundamentação moral do sistema hegeliano. Seu
terceiro ser (herói) traz em si o segundo (indivíduo interior), de cuja dialética universal-
particular emerge o quarto, que é a vítima. A moral é, para Hegel, uma questão mais coletiva
que pessoal, porquanto quem aspira grandeza histórica se torna, quando "necessário", uma
força individualmente imoral. É daqui que podem partir, e partem, os pensadores totalitários
modernos. É aqui que teólogos e libertários, como John Stuart Mills, sentem calafrios e
náuseas. É aqui que Hegel se torna, ele mesmo, herói histórico para totalitaristas de Esquerda e
de Direita, âncora moral de feitos imorais.

A vítima

O herói hegeliano, através de sua percepção e energia privilegiadas, é o sujeito da história, ao


passo que o indivíduo sem esses recursos é o objeto da história, sua vítima. Na lógica
hegeliana, a vítima é culpada, em certa medida, pela sua própria condição. Por não se mostrar
à altura do momento, das possibilidades humanas na conjuntura histórica presente. A moral da
vítima é uma quarta espécie de moral, distinta da primeira (moral do Estado, no cidadão), da
segunda (moral absoluta, no indivíduo interior) e da terceira (moral do Espírito do Mundo, no
herói). Esta quarta moral é aquela circunscrita à situação privada. É a moral do homem ou
mulher comum, que prefere perseguir a felicidade individual à grandeza.

Hegel não vê grandeza nesse tipo de felicidade, na arte do indivíduo modelar sua vida unindo
com êxito a sucessão de situações que escolhe viver. Essa "ética do sucesso particular" não
existe, para Hegel. Ao isolar-se em circustâncias imediatistas, delimitadas por ambição ou
hedonismo (busca do prazer como bem ou fim em si mesmo), o indivíduo comum se isola do
Espírito do Mundo e de seus processos. A História, em marcha, passa por cima dele. Este é um
dos sentidos em que Hegel diz

"a história do mundo se movimenta em nível mais elevado que o da moral" 6

Um indivíduo pode ser perfeitamente moral, nesse quarto sentido, e obstruir o curso da
história; ou ser imoral nesse sentido, e fazê-la avançar. Para ser historicamente efetivo, e
noutros casos para sobreviver, não basta ser moralmente bom no sentido privado. Deve-se
estar plenamente alerta para a situação histórica e assim poder elevar-se à moralidade do
Espírito, do Espírito do Mundo ou do Espírito abstrato. Não importa se o indivíduo vê ou não, se
quer enxergar ou não a situação histórica, ele é parte dela. O ser humano, como indivíduo, é
sempre ludibriado pelo Espírito do Mundo, seja ele seu agente (herói hegeliano) ou sua vítima
(indivíduo comum).

Nesse duplo engano, o herói é desacreditado, invejado e traído. Seu trabalho é mal
compreendido, por muitas vezes não caber na pequenez das mentes preguiçosas e mesquinhas
de lacaios e parasitas históricos. Quando Hegel diz que a personalidade do herói "tem de pisar
em muita flor inocente", não é Hegel, segundo seu sistema, que deve ser condenado e sim a
História. As flores pisadas são pessoas que não conseguem ler os sinais dos tempos. O que
acontece a elas, é o mesmo que acontece ao pedestre que desconsidera os sinais de
trânsito. [no nosso caso, o mesmo que acontece ao aluno de Segurança de Dados que
desconsidera os sinais de orientação pedagógica, sobre, por exemplo, a importância de
assimilarem o conceito de assinatura digital, preferindo entendê-los como ofensas à sua
condição deficiente em formação acadêmica, equivalentes a provocações para briga].

Conclusão

Se vemos o tanque da história avançar em direção dialeticamente negativa, não temos


necessariamente de segui-la, ou de sermos esmagados por ele. Podemos sair do seu caminho,
como fez a maioria dos emigrantes europeus para as Américas. [ou como faz, no caso de
Segurança de Dados, quem tranca a matrícula por deficiências acadêmicas, ou quem decide
suspender a sua oferta] Se não o fizermos, nossa única alternativa será o papel duplamente
trágico de Cassandra7, de advertir aos cegos em vão e cair com eles. Estaremos, nesse caso,
escolhendo nossa queda com maior clareza do que o herói escolhe sua grandeza, pois o herói
não sabe nem como nem quando vai cair. Assim, a tragédia da História é, em muitos sentidos,
a tragédia da estupidez humana.

O matérial histórico do Espírito, o ser humano, é imperfeito. O propósito da história, segundo


Hegel, é o de aperfeiçoar esse ser. Ao encarar assim a história, o filósofo a vê pelo ângulo
teleológico (que busca propósito nas coisas), excluindo o contingente e traçando apenas o
grandioso esboço do drama cósmico. Drama cujo detalhe humano, em geral, é a tragédia. O
ser humano não é apenas indivíduo privado. Mas ao se ver assim, expõe-se a atropelos, pelo
processo histórico que despreza. Ele é também um indivíduo ético, com direito a entrar em
dissidência com tal processo, tanto menos tragicamente quanto mais racionalmente. Entregue
a paixões, ["Caçador de mim", na canção de Milton Nascimento] o herói hegeliano tende ao
irracional, e portanto, a cair junto com as vítimas. Resta-lhe, porém, a moral intrínseca. Ainda o
"homem interior" de Platão, já que a ênfase de Hegel na Liberdade como essência pura do
Espírito, apesar de concretizável pela Razão absoluta, é traiçoeira, movediça.

A humanidade do ser humano,


centro da religiosidade monoteísta (judaica, cristã e islâmica), é vista por Hegel mais na
liberdade organizacional do Estado do que na intimidade individual da consciência. Dentre as
derivações de sua obra, especialmente através de Karl Marx, produziu-se uma antítese da
Idade Média que busca a eficiência econômica ou social, num entrechoque com a moral cristã.
A tarefa do nosso tempo parece ser a de produzir uma síntese das duas; Ou, a de nos
consumirmos (ou sermos consumidos) por uma, para a qual o imediatismo consumista, avaro-
hedonista é caminho.

De volta à sua última pergunta, na linguagem dos tecno-cinéfilos, a escolha seria entre a pílula
azul ou a vermelha de Matrix, e a resposta seria: "depende".  Só seria possível, saber quando
se está sendo manipulado por interesses duma minoria, para aqueles que tiverem feito a
escolha adequada. Azul ou vermelha8?

revisada em 19.09.06, 24.10.06

Bibliografia

1- Lectures on the Philosophy of History. Trad. ingl. de J. Sibree (Londres, Henry O Bhon, 1857,
p. 18), op. cit. Cassirer, E., "O mito do Estado", (São Paulo, Codex, 2003)

2- The ethics of Hegel; translated selections from his "Rechtsphilosophie", de J. Macbride


Sterrett (Boston, Ginn & Co., 1893), p. 142, op. cit. Cassirer, E., "O mito do Estado", (São Paulo,
Codex, 2003)

3- Escritos de filosofia II; ética e cultura, de Lima Vaz, op. cit. Arnaldo Drummond, "A morte do
Mercado" (São Leopoldo, Unisinos, 2004)
4- Historia da Filosofia antiga, de Reale, op. cit. Arnaldo Drummond, "A morte do Mercado"
(São Leopoldo, Unisinos, 2004)

5- Philosophy of Right, de Hegel, § 340. Tradução de Dyde, op. cit. Cassirer, E., "O mito do
Estado", (São Paulo, Codex, 2003)

6- A Razão na História, de Hegel, trad. Beatriz Sidou, São Paulo, Centauro, 2001.

Você também pode gostar