Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
EMANCIPADOR
RESUMO
Fundamentado em uma reflexão teórica crítica, mas também a partir de uma práxis em torno
dos direitos humanos, o texto, direcionado aos que já militam em prol dos direitos humanos,
resgata o processo de constituição dos direitos humanos para abordar essa realidade sob uma
nova perspectiva: como um novo projeto de sociedade. Partindo da análise dos limites de
projetos precedentes face aos desafios de nosso tempo, sobretudo o Liberal e o Socialista,
propõe-se, após analisar fatores que reduzem seu potencial emancipatório, repensar os direitos
humanos enquanto um projeto político de sociedade, com todas as suas consequências,
inclusive a necessidade de novas estratégias e de uma ideologia que possa nortear tanto seus
militantes quanto a sociedade em um contexto global.
1
Doutor e Pós-doutor pela Université de Paris X; Professor do Mestrado e da Graduação da Escola Superior
Dom Helder Câmara e Diretor do Instituto DH: Promoção, Pesquisa e Intervenção em Direitos Humanos e
Cidadania.
1 INTRODUÇÃO
2
Seminário ocorrido em 2012 e promovido pelo Instituto Braços Defesa de Direitos.
novo projeto de sociedade, é algo sobre o qual se tem pouca reflexão e, se isto não faz parte
da forma de compreensão tradicional dos direitos humanos, observamos que o desafio do
nosso leitor frente a este texto será, muito provavelmente, o mesmo que diante de todo
processo reflexivo que propõe, e exige para sua assimilação, uma resignificação de
compreensões precedentes sobre uma determinada área do conhecimento, sobretudo se isto
envolve valores e convicções políticas.
3
As observações aqui apresentadas em torno da perspectiva da efetividade do projeto dos direitos humanos têm
como referência inicial a sociedade brasileira, mas pelo que conhecemos de outras realidades pelo mundo e pelos
estudos bibliográficos em torno destas, elas corresponderiam à grande maioria das realidades nacionais pelo
mundo, tendo com isso um caráter de universalidade, apesar das particularidades a serem consideradas.
Desta forma, este cenário de incompreensões em torno dos direitos humanos é reflexo
de realidades distintas. Ele integra, em primeiro lugar, essas compreensões manifestamente
equivocadas, que indicam significações sem uma correspondência mínima com a realidade
ampla dos direitos humanos, sendo, normalmente, concepções que se constroem tomando as
ações de grupos de direitos humanos sem considerá-las em seu conjunto. Ele integra,
igualmente, visões diferenciadas sobre os direitos humanos, privilegiando determinados
direitos em face de outros; o que seria reflexo de valores que integram o conjunto dos direitos
humanos, mas que seriam o resultado de concepções de mundo diferenciadas, ou das
ideologias dos projetos anteriormente analisados como do liberalismo e do socialismo. Neste
caso, não se trata tanto de concepções equivocadas, mas parciais sobre os direitos humanos.
Essas visões parciais, ao focarem sobre determinados direitos e valores, serão igualmente
obstáculos para uma compreensão e assimilação dos direitos humanos em sua integralidade e
complexidade, enquanto um projeto de sociedade amplo.
Apesar das incompreensões e visões parciais em torno dos direitos humanos percebe-
se uma aceitação geral de seus valores norteadores na sociedade hodierna, o que talvez possa
ser compreendido pelas características do projeto apontado acima, em particular por sua
amplitude e pluralidade. Mas quais outros aspectos permitiriam compreender essa vinculação,
apesar da percepção de certa incompreensão?
Um dos fatores para a compreensão dessa aceitação ou vinculação aos direitos
humanos pode ser identificado a partir das reflexões de Marcel Gauchet (2002), apontadas
acima, nas quais o autor ressalta que os direitos humanos passaram a ser um padrão para a
ação pública e uma organização da consciência coletiva. Esse novo padrão para as ações
públicas poderia ser confirmado pela integração dos direitos humanos na grande maioria das
constituições pelo mundo, sendo que no Brasil isso ocorreu de forma sistemática na
Constituição de 1988.
Outro aspecto que parece demonstrar uma vinculação ou aceitação dos direitos
humanos pela maioria da população, e que vamos analisá-lo melhor abaixo, é a quase
ausência de explicitação contrária aos direitos humanos no campo político, sendo que
praticamente todos os programas apresentam um discurso próximo aos direitos humanos ou
pelo menos de omissão sobre o tema em seus programas políticos.
No entanto, Marcel Gauchet (2002) observa que um dos elementos de força dos
direitos humanos é sua ambiguidade. Ora, essa ambiguidade será apontada justamente por
comportarem, como ressaltamos acima, tanto valores próximos ao liberalismo, a liberdade
como valor norteador, como valores resultantes do projeto socialista, neste caso, sustentados
pela igualdade. Sendo assim, essa aceitação dos direitos humanos pela sociedade parece ser o
resultado de compreensões ou vinculações parciais dos direitos humanos, e não deste como
um projeto.
Assim, a afirmação da aceitação ou vinculação aos direitos humanos ou aos seus
princípios não indica uma compreensão e assimilação dos direitos humanos pelos poderes
governamentais ou pela população como um projeto de sociedade; ela indica mais
propriamente a aceitação de um conjunto de valores que expressam e integram tanto
perspectivas liberais como sociais ou socialistas, retratando certa ambiguidade.
Com isso, parece que seria possível apresentar a realidade que viemos descrever como
uma aceitação dos direitos humanos, sem vinculação. Isto é, essa aceitação dos direitos
humanos por parte da maioria da população não indicaria um envolvimento efetivo por essa
causa, o que poderia significar a possibilidade de posicionamentos dessa população nada
coerentes com o projeto dos direitos humanos, também em função de uma aceitação sem uma
compreensão ampla desse projeto.
Devemos observar que, as incompreensões ou a falta de uma compreensão ampla dos
direitos humanos não impedem a defesa e afirmação de um projeto dos direitos humanos,
porque, estando situado historicamente, qualquer projeto de sociedade, em seu momento
inicial, se apresenta para o futuro, com base em elementos do passado e do presente. Isso
significa que, no momento em que se constitui enquanto um projeto de sociedade, ele ainda
não é compreendido enquanto tal e é necessário um processo de consolidação, de divulgação e
discussão das potencialidades desse novo projeto. Com isso, não faz sentido exigir que se
tenha uma compreensão adequada do projeto dos direitos humanos para que possamos afirmar
sua existência. O seu reconhecimento ampliado e mais adequado será parte do processo de
consolidação.
Além disso, podemos afirmar que, sem dúvida alguma, temos o mais difícil, que é a
constituição de todos os elementos apontados acima como características do projeto dos
direitos humanos e que faz com que as possíveis incompreensões possam ser suplantadas
através de uma aceitação majoritária, pelo menos de parte do projeto, em âmbito global.
4.3 A utilização estratégica do discurso pelos direitos humanos
A aceitação dos direitos humanos pela maioria da população conduz a outro aspecto da
realidade dos direitos humanos: a utilização estratégica do discurso pelos direitos humanos
por projetos políticos de colorações distintas, sem que isso signifique uma compreensão
ampla dos direitos humanos e, muito menos, uma vinculação a eles. Isto é, podemos encontrar
tanto programas de partidos liberais como socialistas, ou de outras concepções políticas,
manifestarem sua adesão ou defesa dos direitos humanos. O problema que se manifesta aqui é
que, buscando o apoio político da população, é possível explorar a proximidade com alguns
dos princípios ou valores que integram o conjunto dos direitos humanos, sem uma vinculação
efetiva ao conjunto dos direitos humanos.
Essa realidade é possível, graças a um conjunto de princípios, valores e direitos
constituídos a partir de fundamentações e realidades políticas e sócio-históricas distintas, mas
que integrados em um todo, ainda continuaram manifestando divergências e ambiguidades.
Neste sentido, princípios como a indivisibilidade e a interdependência dos direitos humanos,
que poderiam suplantar a dicotomia entre direitos civis e políticos de um lado, e direitos
econômicos, sociais e culturais de outro, continuaram sendo ignorados e, estrategicamente,
continuou-se afirmando a defesa dos direitos humanos, mas de maneira parcial, buscando a
legitimidade a partir desse discurso.
Evidentemente, não se trata da defesa de uma única concepção correta de direitos
humanos, mas de ressaltar que a desconsideração de princípios fundamentais para a
compreensão desses direitos, hoje, leva a visões parciais, sem considerá-los em sua
integralidade.
Podemos nos perguntar, porque e como projetos liberais e neoliberais continuam se
servindo do referencial dos direitos humanos, uma vez que este parece ter adquirido um
potencial emancipatório que extrapolaria as bases desses projetos? Alguns elementos são
fundamentais para a análise desta questão: primeiro, os direitos humanos passaram a ser não
somente uma referência jurídica e ética, mas política e cultural disseminada na sociedade;
segundo, a percepção da sociedade com relação aos direitos humanos foi ampliada, mesmo
que isso não corresponda a uma compreensão ampla desse projeto. Assim, é comum, pessoas
que não têm uma participação política efetiva através de grupos organizados da sociedade, se
vincularem ou se identificarem com as propostas dos direitos humanos, sem que isso indique
uma vinculação também a projetos políticos. Em decorrência do segundo, temos um terceiro
elemento de análise: o projeto dos direitos humanos adquiriu uma aceitação social e popular
maior que os projetos de sociedade tradicionais, estes fundados na Ideologia Liberal ou do
Socialismo. Dessa forma, a utilização de valores ligados aos direitos humanos, mesmo que
parcial, por setores vinculados a projetos políticos mais próximos à perspectiva liberal e
neoliberal, parece indicar uma inclusão estratégica, não assimilada em sua amplitude.
Ora, essa utilização estratégica do discurso dos direitos humanos por políticos ou
partidos liberais e neoliberais ocorre pela amplitude dos direitos humanos e, como apontado
por alguns teóricos, por sua ambiguidade, ela parece manifestar igualmente um limite político
e ideológico do próprio projeto dos direitos humanos, considerado sob uma perspectiva
emancipatória.
Enfim, ressaltamos que a utilização indiferenciada e estratégica dos direitos humanos,
sem uma vinculação efetiva ou simplesmente parcial, passa a ser um elemento
complexificador dessa realidade, provavelmente ampliando a incompreensão da população
sobre esses direitos e dificultando sua diferenciação entre propostas, relativas aos direitos
humanos, mais amplas ou mais restritas.
O cenário de incompreensões em torno dos DH, vinculado a uma aceitação por parte
da sociedade e à utilização estratégica de discursos de direitos humanos, ambos sem
vinculação, parece ser fator suficiente para compreendermos a manutenção de realidades e
estruturas que levam a não observância do projeto dos direitos humanos pelo mundo e às
consequentes violações a esses direitos.
Assim, uma das contradições e violações mais evidentes com relação ao projeto dos
direitos humanos é a manutenção ou aumento da concentração de renda em um mundo de
economia globalizada, onde os Estados perdem espaço frente a estruturas financeiras
norteadas por políticas e concepções neoliberais, levando à manutenção ou ao agravamento da
miséria de parcela significativa da população mundial. Mas essas contradições têm reflexos
no conjunto desses direitos, como a falta de acesso a direitos sociais básicos como educação,
saúde e outros, levando também a sujeitos, cidadanias e democracias formais fragilizadas pelo
mundo.
Frente a essa realidade de violações aos DH é importante ressaltar a ação dos grupos
e organizações de direitos humanos por todo o mundo, que cumprem um papel fundamental
no processo de implantação parcial desses direitos, o que leva a uma amenização das
contradições. Essas ações são, normalmente, ações políticas, isto é, ações que têm impactos
social e político, sejam em âmbito local, regional, nacional e/ou internacional.
O problema é que em face dessas desigualdades e violações aos direitos humanos,
mesmo aqueles que atuam sob a perspectiva dos direitos humanos, parece continuarem
atuando, em grande parte, sob enfoques particulares, sem uma visão de conjunto, isto é, sem
uma visão política mais ampla do problema. Dessa forma, e com a corroboração das análises
acima, percebe-se que o desenvolvimento dessas ações não está sendo suficiente para a
compreensão dos DH enquanto um projeto diferenciado de sociedade, que poderia superar as
contradições advindas de projetos precedentes.
Ora, sem essa compreensão dos direitos humanos como um projeto de sociedade,
mesmo as ações em prol desses direitos, aparecem fragmentadas, sem uma vinculação
estratégica e sem a possibilidade de disseminação de algo mais claro em torno da proposta de
sociedade propugnada a partir dos DH. Assim, com ações fragmentadas e sem a possibilidade
de passar à sociedade referências que a permitam contemplar os DH como um projeto
alternativo de sociedade, deixa-se de explorar o potencial emancipatório desse projeto.
E sem a compreensão de um projeto político emancipador, como o dos DH, resta
diminuída a possibilidade de compreensão, de articulação e de mobilização social forte contra
as desigualdades pelo mundo e outras formas de violação aos direitos de todo ser humano,
como a usurpação da natureza, favorecendo a manutenção de estruturas na sociedade que
levam a não observância e não efetivação do projeto ético e político dos DH.
Vimos que os direitos humanos adquiriram uma grande amplitude e que abarcam
diversas dimensões ou realidades vinculadas ao humano e suas relações na sociedade e com o
mundo. Da mesma forma, percebe-se que historicamente tivemos aqueles que privilegiaram
os direitos civis e políticos, em face aos direitos econômicos, sociais e culturais, enquanto
outros adotaram posicionamento contrário.
Assim, a apresentação e consolidação de um novo projeto na sociedade ocorrem em
um processo e em uma realidade sócio-histórica, onde normalmente já se tem outros projetos,
mais próximos ou mais distantes do projeto que se apresenta. Nenhuma constituição política
faz-se sem referência a elementos da realidade sócio-histórica, da mesma forma que todas
priorizam determinados aspectos da realidade. Dessa forma, cada construção política que se
constitui representa um posicionamento frente a uma realidade sociopolítica específica, mas é
também uma confrontação em termos de significação da realidade e de organização da
sociedade, expressando uma determinada compreensão de mundo.
Com isso, temos o problema de diferentes concepções de direitos humanos, que são o
resultado de compreensões políticas, ideológicas, éticas, culturais e outras, que fundam essas
concepções e que poderão ser mais restritas ou mais amplas frente à realidade que elas
contemplam. Fernando Quintana (1999, p. 25-6), analisando os debates na ONU em torno da
declaração de 1948, observa três constelações teóricas fundamentais: uma primeira,
relacionada à relação “indivíduo-Estado”, na qual identifica dois tipos de argumentos ou
ideologias para essa análise: a individualista e a holista, a primeira priorizando o indivíduo e
seus direitos, enquanto a segunda valorizando “a totalidade social, a unidade do Estado”; a
segunda constelação estaria relacionada à extensão do conceito de direitos humanos, e que ele
indica como uma visão restrita, vinculada às liberdades individuais e aos direitos civis e
políticos, e uma visão ampla, contemplando o conjunto dos direitos humanos; por fim, a
constelação teórica relativa à “natureza dos direitos humanos”, sobre a qual identifica a
divergência através de duas concepções: a universalista e a particularista, a primeira partindo
de uma natureza universal da espécie humana, e a segunda ressaltando a contextualização
histórica, local e cultural desses direitos. Ora, as análises de Quintana (1999) têm grande
proximidade com as nossas em torno de diferentes compreensões sobre os direitos humanos, a
partir de um projeto liberal ou do projeto socialista de sociedade.
Entretanto, apesar das diferentes concepções de DH, há um referencial normativo
internacional comum, que sustenta uma base norteadora para os direitos humanos, da mesma
forma que nos permite identificar o grau de adequação ou inadequação de uma determinada
concepção. Isso, porque, apesar desse referencial normativo e institucional comum, as
diferentes concepções se mantêm, retratando divergências e diferenças na sociedade, que
levam a valorações e interpretações diferenciadas com relação a esse conjunto normativo.
Assim, percebe-se que, apesar da Declaração de Viena ter consagrado, em 1993, que “5.
Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados”,
ainda continuamos tendo aqueles que priorizam os direitos individuais, enquanto outros
ressaltam os direitos sociais, o que levará a percepções ou atuações parciais do projeto dos
direitos humanos pelo mundo.
4.6 A articulação de diferentes valores: o grande desafio
Pode-se perceber, portanto, que a maior exigência do projeto dos direitos humanos, em
comparação a outros projetos e quanto à sua implementação e efetivação, é a assimilação
4
Esta passou a ser uma das principais bandeiras de luta do Fórum Social Mundial desde suas primeiras edições
de 2001 e 2002.
desses valores, a princípio contraditórios, impostos pelo respeito à diferença, mas sempre
vinculados ao objetivo maior de promoção da dignidade humana em todos os âmbitos (local,
regional, nacional e global). Essa exigência pode ser afirmada também por ser um projeto que
não comporta qualquer parcialidade que não contribua com a dignidade humana e que não se
satisfaz com a afirmação da dignidade humana individual, senão coletiva.
Assim, o projeto dos direitos humanos supera os dois grandes projetos de sociedade
que o precederam, passando a ser a referência política maior para nossos tempos, norteada por
uma dimensão utópica e ideológica, e em sua dimensão da efetividade, sempre alicerçado na
dignidade humana.
4.7 Por uma compreensão dos direitos humanos como um projeto de emancipação
Da mesma forma, parece ser possível indicar que, a aceitação social dos direitos
humanos estaria vinculada a essa perspectiva de integração social, o que, em última instância,
significou a tentativa de minimizar as contradições sociais do capitalismo através de uma
garantia de condições sociais mínimas, mas com a preservação do sistema econômico e,
portanto, da base do sistema global. Ora, essa forma de compreensão dos direitos humanos
reduz sua potencialidade emancipatória, o que permite compreender os elementos apontados
em torno de incompreensões e de compreensões parciais dos direitos humanos e que
permitem igualmente a utilização estratégica do discurso dos direitos humanos, sem um
compromisso efetivo com o conjunto desses direitos. Esses aspectos apontam para uma
fragilidade da atuação, a partir dessa concepção dos direitos humanos enquanto integração
social.
Observa-se que a forma como os direitos humanos têm sido tratados pelos governos,
organismos internacionais e poderes instituídos (incluindo o Judiciário), diferenciando e
priorizando os direitos civis e políticos com relação aos direitos sociais, econômicos,
culturais, ambientais e outros, é de manutenção dessa concepção integradora, que é uma
integração estratégica, para a preservação e predomínio dos valores liberais sobre os valores
construídos a partir das lutas sociais.
Ao defendermos os direitos humanos como projeto político de sociedade, nos
distanciamos dessa concepção que pode levar a ambiguidades, mesmo reconhecendo que é
essa concepção que parece permitir a difusão e aceitação atual dos direitos humanos. A defesa
dos direitos humanos como um projeto de sociedade estaria vinculada mais à perspectiva de
emancipação social, sem que isso implique, no entanto, a estratégia de luta revolucionária. A
questão é: ao assumirmos os direitos humanos em sua integralidade, a partir dos princípios da
indivisibilidade e da interdependência, e considerando que vivemos uma realidade mundial de
forte desigualdade social e onde a dignidade humana para todos está comprometida, não há
como não assumir a luta pela transformação das relações socioeconômicas.
Assumindo os direitos humanos em sua integralidade, os direitos sociais deixam de ser
concessões estratégicas para a manutenção do poder, como consolidados através da política
do Estado do Bem-Estar. Se sob a perspectiva da integração, os direitos sociais foram
integrados em uma proposta de direitos humanos, na perspectiva da emancipação através dos
direitos humanos, são os direitos de liberdade que devem ser integrados, sob a perspectiva de
uma transformação social. Isto é, o ponto de partida para o processo de emancipação é a
afirmação primeira do social, mesmo que contemplando elementos da liberdade. Assim, é o
social que funda a liberdade, não a liberdade que funda o social.
4.8 Potencialidades e exigências do projeto dos direitos humanos em uma realidade
adversa
Ao aceitarmos e assimilarmos o potencial amplo dos DH, como projeto que pode
permitir avanços em termos de reestruturação das relações na sociedade global, criamos
condições para superar as potencialidades reduzidas dos direitos humanos, limitadas pela
perspectiva predominante da integração. Será esta concepção dos direitos humanos como um
projeto amplo e emancipador que poderá transformar a realidade que vivenciamos hoje de
violações aos direitos humanos em praticamente todas as suas dimensões, impedindo a
efetivação da dignidade humana para todos.
A defesa e a assimilação dos direitos humanos como um projeto de sociedade poderá
viabilizar uma maior unidade na práxis em torno dos direitos humanos, criando condições
para ações mais articuladas, que integrem e fortaleçam suas bases enquanto um contra-poder.
No entanto, não podemos desconsiderar que vivemos em uma sociedade de domínio
capitalista, e que o valor liberdade é hoje considerado como fundamental e integrando as
diversas declarações de direitos humanos, como a Declaração Universal de 1948, fazendo
com que tenhamos uma sociedade estruturada a partir desse valor. Da mesma forma, deve-se
reconhecer que essa articulação dos poderes instituídos em âmbito global não parece poder ser
superada pelas mobilizações políticas e mesmo por ações contrárias ao sistema capitalista e
suas consequências, como as protagonizadas em todo o mundo já há alguns séculos. Essas
ações e mobilizações parecem ser assimiladas pelo sistema, sem que tenhamos mudanças
estruturais nas relações de poder, assim como uma decisão judicial contrária aos poderes
instituídos em uma sociedade tende a ser suplantada por muitas outras, e em grau superior, em
sentido contrário, sobretudo se se tratar de questão estrutural do sistema.
Entretanto, se o projeto dos direitos humanos abre espaço para ambiguidades e
contradições, como a afirmação da função social da propriedade e o direito à participação nos
lucros frente ao direito à propriedade privada, percebe-se que o valor liberdade não é mais
irrestrito, e que outros valores estabelecidos a partir de parâmetros sociais podem impor
limites a esses valores constituídos a partir da ideologia liberal, limites estes que podem e
devem ser melhor explorados na estratégia de implementação dos direitos humanos enquanto
um projeto emancipador.
Mészáros (2004, p. 393) ressalta que para Rosa Luxemburgo o Socialismo não
aconteceria sem o envolvimento das massas. Da mesma forma, e atualizando os termos,
acreditamos que o projeto dos direitos humanos exige a participação efetiva da sociedade, o
que acontece enquanto um processo. Isto é, a implantação do projeto dos direitos humanos já
exige ações que vão fortalecendo e ampliando a assimilação do projeto. Diferentemente do
projeto do Socialismo, que exigiria uma tomada de consciência a partir de sua ideologia, para
a implantação da revolução política, o primeiro passo para o projeto dos direitos humanos não
é esta revolução política, em termos de tomada do poder estatal e central, mas é, a partir de
uma consciência política das possibilidades do projeto dos direitos humanos, a adoção de
práticas socioeconômicas e político-culturais de transformação da realidade.
Assim, assumir os Direitos Humanos como um projeto de sociedade significa assumir
a pluralidade de projetos em uma sociedade e, portanto, seus conflitos e divergências
políticas. Significa também assumir a possibilidade de convivência tanto de ações
integradoras, quando não, ações explícitas de manutenção dos poderes instituídos, como de
ações emancipadoras. Isto é, assumir este novo projeto de sociedade significa elaborar e
implementar, mesmo neste contexto adverso, propostas e experiências inovadoras visando a
emancipação.
Essas propostas inovadoras e de transformação só podem advir de realidades locais,
que poderiam ser vivenciadas de acordo com as condições possíveis em cada realidade local.
Ao assumir essas novas práticas e metodologias em âmbito local pelo mundo, o projeto dos
direitos humanos se fortalece e se potencializa por criar e sedimentar uma nova compreensão
dos direitos humanos, não de integração, não de manutenção de poderes precedentes, mas de
transformação e construção de autonomias, de ampliação e reprodução de experiências que
poderão permitir uma “igualdade substantiva”, fortalecendo o processo de compreensão
política e de participação cidadã, levando à possibilidade de ampliação do projeto também
pela via democrática a médio e longo prazos, o que poderá ampliar as experiências e práxis ao
âmbito de políticas públicas, passando a ser referências em âmbito nacional ou mesmo
internacional.
Essa nova práxis coletiva em torno dos direitos humanos será possível a partir do
momento que essa visão ampliada dos direitos humanos, enquanto um projeto de sociedade
emancipador, possa ser compartilhada e assimilada por parcela significativa daqueles que
atuam mais diretamente na luta por esses direitos e que, a partir dessa nova postura, se
transformaria em uma luta por mudanças cada vez mais estruturais na sociedade. Essa
mudança parece apontar para a necessidade de um referencial norteador para essa práxis, isto
é, para uma ideologia dos direitos humanos.
4.9 A relevância de uma ideologia dos direitos humanos
Assim, para esse autor, o discurso ideológico não deve ser articulado como
“proposições teóricas abstratas [...] e sim como indicadores práticos bem fundamentados e
estímulos efetivamente mobilizadores, direcionados às ações socialmente viáveis dos sujeitos
coletivos reais” (MÉSZÁROS, 2004, p.66). Note-se, entretanto, a posição de Giuseppe Tosi,
da UFPB, que ressaltou a ideologia em Marx, como um “horizonte conceitual” 5.
Assim, essa ideologia dos direitos humanos seria a forma de se ampliar a compreensão
e assimilação dos direitos humanos enquanto um projeto de sociedade emancipador, tanto
entre os seus militantes como entre aqueles que manifestam uma aceitação dos direitos
humanos sem uma vinculação efetiva, mas também para a sociedade em geral, ampliando seu
grau de consciência sobre as relações e estruturas de poder na sociedade, mas também sobre
as possibilidades de transformação desse processo.
As indicações acima parecem suficientes para que se compreenda a importância da
elaboração e divulgação de uma ideologia do projeto dos direitos humanos, ressaltando suas
bases e potencialidades para uma transformação efetiva das relações na sociedade e levando a
um processo de emancipação e de efetivação de seu objetivo maior: a dignidade humana para
todos. Esta parece ser a melhor estratégia para que o projeto dos direitos humanos amplie seu
potencial emancipatório e constitua-se efetivamente como um contra-poder em nossa
sociedade, superando os limites e obstáculos em que se encontra hoje.
Sendo o projeto dos direitos humanos, plural e aberto, sua ideologia, ao apontar
norteamentos para o futuro e de acordo com as condições e possibilidades de nosso mundo
real, em construção, tem o desafio de incluir concepções, práticas e experiências com um
potencial transformador, sem que isto signifique uma limitação de novas possibilidades neste
processo. Esta ideologia dos direitos humanos deve contribuir para a consolidação da
dignidade de todos, sendo, portanto, viabilizadora de novas subjetividades e autonomia, em
um processo de emancipação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
5
G. TOSI apresentou esta análise durante o Seminário Nacional Democracia, Direitos Humanos e
Desenvolvimento.
possibilidades e contradições do sistema, presentes em cada sociedade. Assim, é um projeto
que deverá ser implementado, enquanto um processo a médio e longo prazos, o que exige
articulações em rede e o estabelecimento de estratégias de ação melhor integradas, bem como
novas metodologias.
A defesa dos direitos humanos como projeto de sociedade emancipador, e respeitando
as diferenças, faz com que tenhamos que atuar, a partir desse novo projeto, mas em confronto
com outros valores e perspectivas políticas divergentes; o que exige que os que defendam os
direitos humanos sob essa nova perspectiva fortaleçam-se em sua cultura política, atuando e
explorando todas as possibilidades e exigências de um projeto político de direitos humanos
que estará sempre em construção, mas também em confronto na sociedade, sobretudo com
aqueles que buscam a manutenção de poderes instituídos. Resgatando Castoriadis, os direitos
humanos como essa nova cultura política, e assumindo-se como um projeto de sociedade,
assumiriam o papel de uma cultura e “poder instituinte” (CASTORIADIS, 1982) em prol da
transformação e da emancipação social e política.
Acreditamos que o aprofundamento dessa discussão nos próprios grupos e
organizações de direitos humanos poderá levar à construção e consolidação das bases
ideológicas necessárias para a superação dos desafios aqui apresentados. Bases estas
constituídas a partir da implementação e reflexão de experiências que possam ser norteadoras
na exploração das contradições dos poderes instituídos, e que permitam avançar no processo
emancipatório de implantação de uma sociedade onde a dignidade humana para todos não seja
somente parte da utopia, mas também da efetividade do projeto dos direitos humanos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. [ L’etá Del Diritti, 1990.] Tradução de Carlos Nelson
Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 2ª ed., São
Paulo: Saraiva, 2001.
MÉSZÁROS, István. O Poder da Ideologia. (1989) Trad. Paulo Cezar Castanheira. São
Paulo: Boitempo Ed., 2004.
SOUSA SANTOS, Boaventura. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São
Paulo, Cortez, 2006.