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OS DIREITOS HUMANOS COMO UM PROJETO DE SOCIEDADE

EMANCIPADOR

João Batista Moreira Pinto1

RESUMO
Fundamentado em uma reflexão teórica crítica, mas também a partir de uma práxis em torno
dos direitos humanos, o texto, direcionado aos que já militam em prol dos direitos humanos,
resgata o processo de constituição dos direitos humanos para abordar essa realidade sob uma
nova perspectiva: como um novo projeto de sociedade. Partindo da análise dos limites de
projetos precedentes face aos desafios de nosso tempo, sobretudo o Liberal e o Socialista,
propõe-se, após analisar fatores que reduzem seu potencial emancipatório, repensar os direitos
humanos enquanto um projeto político de sociedade, com todas as suas consequências,
inclusive a necessidade de novas estratégias e de uma ideologia que possa nortear tanto seus
militantes quanto a sociedade em um contexto global.

Palavras-chave: Direitos Humanos; concepções de direitos humanos; projeto de sociedade.

1
Doutor e Pós-doutor pela Université de Paris X; Professor do Mestrado e da Graduação da Escola Superior
Dom Helder Câmara e Diretor do Instituto DH: Promoção, Pesquisa e Intervenção em Direitos Humanos e
Cidadania.
1 INTRODUÇÃO

Os direitos humanos (DH) tornaram-se uma referência fundamental da sociedade


contemporânea. No entanto, a forma de compreensão desses direitos nos diferentes âmbitos
acadêmicos e nos diferentes espaços da sociedade expressa, muitas vezes, divergências que
explicitam a não compreensão da complexidade, da unidade e da potencialidade
transformadora desses direitos.
A desconfiança com relação à utilização dos direitos humanos, por parte de
movimentos sociais que buscavam uma transformação mais radical da sociedade nas décadas
de 70 e 80 do século passado; as compreensões que vinculam os direitos humanos à defesa
exclusiva de setores da sociedade; a frequente vinculação dos direitos humanos ao
pensamento liberal ou ainda, a afirmação de sua universalidade, derivando de direitos naturais
são todos elementos que levam a divergências, o que evidencia a importância em
considerarmos o processo de constituição sócio-histórica dos direitos humanos, como forma
de buscar superá-las.
Neste texto, procuraremos analisar alguns elementos da construção dos direitos
humanos até se constituírem na realidade que estamos denominando “um projeto de
sociedade”; apontar algumas características fundamentais desse projeto; para, finalmente,
destacar seu potencial emancipador. Buscaremos apresentar estes aspectos sem um
aprofundamento maior, visto que esta parte foi melhor desenvolvida em outro artigo que
deverá ser publicado em breve. Assim, nosso objetivo maior neste artigo, considerando que
ele foi elaborado em função de sua apresentação e discussão com um público que já tem
grande proximidade com os direitos humanos, como parte do Seminário Nacional
Democracia, Direitos Humanos e Desenvolvimento2, será avançar sobre alguns desafios e
estratégias para que o próprio movimento dos direitos humanos possa refletir e avançar no
que se refere à implementação de uma práxis que explore e fortaleça suas potencialidades no
processo de emancipação.
Antes disso, cabe uma observação inicial: todos aqueles que têm uma atuação ou
militância em torno dos direitos humanos o fazem já com certa identificação ideológica
precedente com um determinado projeto de sociedade, seja ele liberal, social-democrata ou
socialista, sendo notória a identificação da grande maioria dos envolvidos com este último.
Assim, a proposta que defendemos aqui, de pensar e assumir os direitos humanos como um

2
Seminário ocorrido em 2012 e promovido pelo Instituto Braços Defesa de Direitos.
novo projeto de sociedade, é algo sobre o qual se tem pouca reflexão e, se isto não faz parte
da forma de compreensão tradicional dos direitos humanos, observamos que o desafio do
nosso leitor frente a este texto será, muito provavelmente, o mesmo que diante de todo
processo reflexivo que propõe, e exige para sua assimilação, uma resignificação de
compreensões precedentes sobre uma determinada área do conhecimento, sobretudo se isto
envolve valores e convicções políticas.

2 O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Um aspecto fundamental a ser destacado é a correlação entre a constituição dos


direitos humanos e a realidade sócio-histórica (CASTORIADIS, 1982), algo que buscaremos
fazer em uma breve análise, de forma a trabalharmos com maior profundidade o objeto
principal deste artigo.
Esta correlação é tratada pelos autores sob perspectivas diversas. Assim, Comparato
(2001) em seu livro “A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos” aponta o sentido e a
evolução dos direitos humanos, em correlação com o desenvolvimento da própria concepção
de pessoa humana, o que permite que ele identifique elementos para a reflexão sobre os
direitos humanos já no período axial, entre os séculos VIII e II a.C., sendo marcante em sua
perspectiva a dimensão ética.
Já Bobbio (1992, p. 28) identifica no pensamento de John Locke a fundação da ideia
de que “o homem enquanto tal tem direitos”. Como se sabe, Locke funda os direitos do
indivíduo no estado de natureza, como forma de identificar o direito à vida, à liberdade e à
propriedade como anteriores ao estado civil; o que levaria à exigência de respeito a esses
direitos por parte do soberano. Já tínhamos aqui as bases para o “individualismo liberal” e que
irão nortear o projeto político e econômico liberal, bem como de sua ideologia.
Podemos observar que a liberdade de empreender, advinda desse projeto liberal, dava
mais elementos para o fortalecimento da revolução industrial em curso, primeiramente na
Inglaterra, com a estrutura estatal já assumindo papel determinante para sua imposição e
controle dos trabalhadores.
Para a análise das bases sócio-históricas, para a constituição dos direitos de cunho
mais social, já podemos indicar a relevância das primeiras mobilizações de trabalhadores,
ainda no século XVIII, contra as contradições decorrentes da aplicação dos princípios liberais
durante a primeira Revolução Industrial: implantação de novas formas de controle, longas
jornadas de trabalho, condições insalubres, baixos salários, entre outras. (BEAUD, 2010)
Essas contradições advindas da prática do capitalismo, com forte vinculação ideológica com o
Liberalismo, levaram também às primeiras construções teóricas e mobilizações fundadas na
perspectiva do Socialismo. Este movimento antiliberal, confrontado com a desigualdade
social, propunha desde a década de 1830, reivindicações sociais e políticas concretas, como
“o direito ao trabalho”. Será frente a essa realidade, de “exploração do homem pelo homem”
que Marx propõe a emancipação do proletariado, através do processo revolucionário.
Como se sabe, esse movimento levou a mobilizações mais fortes e mesmo
revolucionárias como a Revolução de 1848 e a Comuna de Paris, de 1871, na França, mas
também à Revolução Russa de 1917. Neste momento, algumas conquistas sociais e políticas
já terão um impacto sobre o jurídico, como a Constituição do México de 1917, também
resultado de um processo revolucionário, e a Constituição da República de Weimer, de 1919.
Frente a esse avanço da perspectiva social, teremos algumas ações que poderiam ser
consideradas sob o objetivo maior de procurar manter os valores liberais: neste caso a própria
criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), reivindicação antiga do movimento
dos trabalhadores, mas que só foi se efetivar nesse momento, percebido como de “perigo”
pelos governos capitalistas. Nesta mesma linha, teremos as discussões de Keynes, em face de
uma crise do sistema na década de 1930, em torno de um Estado do Bem-Estar, defendendo a
intervenção do Estado para garantir necessidades básicas como a proteção social; ou a defesa
do Presidente F. Roosevelt, em 1941, igualmente tentando responder a uma situação de crise
do sistema e, portanto, também social, de uma ação do Estado para garantir as liberdades, a
liberdade de expressão, a liberdade religiosa, e o direito de ser liberado da necessidade e do
medo. (QUINTANA, 1999)
O resultado desse processo, somando-se aos acontecimentos vinculados à II Guerra
Mundial, levou à busca de integração desses direitos vinculados a diferentes projetos de
sociedade em um único documento: a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Bobbio
(1992) percebe neste documento a construção de um consenso. No entanto, há que se ressaltar
que não se conseguiu a construção de um único documento que aportasse instrumentos para a
implementação desses direitos, o que levou à criação dos dois pactos: o Pacto dos Direitos
Civis e Políticos e o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Estes pactos
retratavam divergências na compreensão sobre os direitos humanos, vinculadas às concepções
liberais e socialistas. Assim, em âmbito internacional e institucional, buscou-se a integração
desses diferentes valores e direitos, em princípio incompatíveis, na própria Declaração
Universal de 1948.
Porém, se no âmbito institucional (internacional e nacional), percebe-se uma posição
secundária dos direitos humanos, teremos, no âmbito da sociedade civil de todo o mundo, a
atuação e mobilização de grupos e movimentos organizados pelos direitos humanos, fazendo
com que esses direitos tenham uma posição de destaque no contexto sócio-político e
institucional hodierno.
Dessa forma, podemos apontar na construção dos direitos humanos, atual, uma síntese
dialética, marcada e constituída pelas construções, contradições e superações precedentes,
mas sendo, sobretudo, uma síntese com forte penetração nos movimentos organizados da
sociedade e em suas estruturas institucionais; a ponto de não ser estratégica, mesmo para
setores governamentais ou não-governamentais não alinhados a esse projeto, a manifestação
contrária aos direitos humanos.
Neste sentido, Marcel Gauchet (2002, p. 330) grande historiador das ideias, que em
1980 sustentava que os direitos humanos não eram uma política, afirmou, vinte anos após,
que “Os direitos humanos se tornaram efetivamente, por uma imprevisível evolução de nossas
sociedades, a norma organizadora da consciência coletiva e o padrão da ação pública”.

3 OS DIREITOS HUMANOS COMO UM PROJETO DE SOCIEDADE

A manifestação corrente, hoje, em torno da falta de um projeto de sociedade que possa


nortear as ações na sociedade, parece indicar que os grandes projetos precedentes, tanto o
liberalismo, em suas diferentes concepções, como o socialismo, também com suas variações,
parecem não mais corresponderem às expectativas e anseios da sociedade com relação a um
norteamento ideológico capaz de transformar as estruturas dominantes da sociedade
contemporânea, instaurando as bases para mudanças econômicas, sociais, políticas, culturais
e, hodiernamente, também ambientais, que levem à possibilidade de participação efetiva de
todos no processo de construção da sociedade.
O que vivenciamos, atualmente, na sociedade global e na grande maioria dos Estados
nação, após a implantação em âmbito mundial de instituições e estruturas neoliberais
dominantes que levaram as sociedades a serem parte de um mercado mundial aberto, é uma
maior concentração da riqueza, com consequente manutenção, senão intensificação, da
desigualdade social nos Estados e pelo mundo; levando à exclusão de parte significativa da
população quanto às possibilidades de vida efetiva, tanto em termos individuais como sociais
e políticos. Desta forma, se os que se vinculam aos projetos liberal e neoliberal não têm como
ocultar suas contradições, sobretudo sociais e ambientais, aqueles vinculados ao projeto
socialista e mesmo à social-democracia, se mostram incapazes de consolidar alternativas
significativas frente ao modelo neoliberal dominante e excludente.
Essas manifestações em torno da falta de um projeto de sociedade indicam, entretanto,
a necessidade, o desejo ou a busca de construção de um novo projeto. Assim, Boaventura de
Sousa Santos (2006, p. 433) observa que, em face ao vazio deixado pelo socialismo e, mais
amplamente, pelos projetos emancipatórios, as forças a eles ligadas se reagruparam em torno
dos direitos humanos, e se pergunta: “Poderão realmente os direitos humanos preencher tal
vazio? [...] Isto só será possível se for adotada uma política de direitos humanos radicalmente
diferente da liberal hegemônica, e se tal política for concebida como parte de uma constelação
mais ampla de lutas pela emancipação social”. Nesta mesma linha, Gustave Massiah (2011)
defende que um novo projeto de emancipação coletivo está na ordem do dia, e que este
projeto teria por base os direitos humanos. (MASSIAH, 2011, p. 145 e 184)
Assim, diante das limitações e contradições dos projetos de sociedade precedentes,
diante da centralidade e da integração que os direitos humanos alcançaram em nossas
sociedades a partir da década de 1990, como referência de organização política, econômica,
social, jurídica e cultural e, por fim, diante da amplitude dos direitos humanos, chegando a
abarcar as diversas dimensões estruturadoras para a organização da sociedade e suas relações
civis, políticas, econômicas, sociais, culturais, ambientais, entre outras, sustento que os
direitos humanos tornaram-se a melhor referência para a construção e consolidação de um
projeto de sociedade emancipador; o que nos permite falar de um projeto de sociedade
fundado nos Direitos Humanos.
Ao defendermos os direitos humanos, como concebidos hoje, como um projeto de
sociedade, ressaltamos a vinculação deste projeto com as lutas e relações políticas que se
estabeleceram sócio-historicamente, até chegarmos à consolidação da concepção atual ampla
de direitos humanos. Isso não significa uma desconsideração da correlação do processo de
construção dos direitos humanos com uma fundamentação ética, alicerçada na dignidade
humana. Isto é, se os direitos humanos têm uma fundamentação ética, eles podem ser
vislumbrados, no entanto, em seu conjunto, como um projeto aportando bases para a
reestruturação da sociedade, sendo um projeto de sociedade e, como tal, um projeto político.
Assumir os direitos humanos, enquanto um projeto político de sociedade, significa ressaltar
seu potencial para a transformação e emancipação política, o que exige que ele seja assumido
como tal e que se estabeleça a possibilidade de uma práxis estruturada a partir de uma
ideologia para os direitos humanos.
3.1 Características e perspectivas fundamentais do projeto dos direitos humanos

Podemos apontar algumas características fundamentais do projeto de sociedade


vinculado aos direitos humanos.
Primeiro, é um projeto que articula e integra as bases de diferentes projetos de
sociedade que o precederam, sendo, portanto, plural e não unívoco, abrindo-se para a
exigência de integração e articulação das diferenças, superando-as em torno de uma unidade
maior, fundada na dignidade humana.
Segundo, os direitos humanos, enquanto projeto de sociedade, não se limitam a sua
estrutura institucional e internacional, mas estão vinculados às produções sócio-históricas
globais, envolvendo construções locais, nacionais e internacionais dos poderes sociais e dos
estados nacionais.
Terceiro, é um projeto ético e político e, como tal, um projeto de organização da
sociedade, envolvendo todas as dimensões fundamentais do ser humano e de suas relações no
mundo. Ele integra o respeito às dimensões individual e coletiva do ser humano,
estabelecendo referências para suas relações sociais, políticas, econômicas, culturais e com a
natureza e o meio ambiente.
Quarto, apesar de seu aspecto direcional e utópico, ele é um projeto multidimensional
e aberto, que se desenvolve enquanto um processo social-histórico, tendo como elemento
norteador a dignidade humana.
Quinto, o projeto dos direitos humanos é uma síntese dialética, que integra e supera os
projetos de sociedade precedentes.
Sexto, ele tem um forte potencial emancipatório que exige, para sua efetivação,
metodologias e compreensões adequadas dos direitos humanos.
Sétimo, é um projeto com forte envolvimento e identificação da grande maioria dos
grupos e movimentos sociais emancipatórios pelo mundo.
E por fim, apontamos sua adequação às questões fundamentais e aos movimentos
sociais próprios de seu tempo.
O conjunto dessas características permite compreender a melhor adequação do projeto
dos direitos humanos à realidade societal predominante hodiernamente, também com suas
características diferenciadoras.
A reflexão sobre a vivência dos direitos humanos nas três últimas décadas nos levou à
identificação de duas perspectivas essenciais no projeto dos direitos humanos: a primeira, que
podemos nomear de projetiva e a segunda, que vamos denominar perspectiva de efetividade.
Na perspectiva projetiva, temos o lado utópico do projeto, uma vez que ele apresenta
as bases de uma sociedade onde todos poderiam vivenciar sua dignidade humana. Pode ser
identificada igualmente como a base ideológica dos direitos humanos, pois é essa perspectiva
que deve permitir que pessoas e grupos atuem a partir da assimilação dos valores norteadores
do projeto dos direitos humanos.
A perspectiva projetiva será fundamental na disseminação do projeto dos direitos
humanos na sociedade e no estabelecimento de um referencial social amplo vinculado a esse
projeto, que implicará em uma formação mais formal ou informal, desenvolvida pelos
diversos atores desse processo. Será partindo do processo de construção e de conscientização
do projeto dos direitos humanos, diante de sua perspectiva projetiva, que chegaremos à
perspectiva de efetividade do projeto, que se desenvolve igualmente enquanto um processo. A
perspectiva de efetividade está ligada à dimensão sócio-histórica, envolvendo as condições
políticas, econômicas, sociais, jurídicas, culturais e ambientais de cada sociedade, o que
significa que ela é a expressão das realidades concretas e dos limites próprios a cada
sociedade.
Apesar de seu aspecto direcional e utópico, o projeto dos direitos humanos permanece
aberto, como toda construção do humano. Com suas perspectivas projetiva e de efetividade, o
projeto dos direitos humanos ampliou suas dimensões, partindo do político e ético e
alcançando todas as dimensões do humano; o que o fortalece como um projeto de sociedade.
Seu processo de construção supõe, na medida em que se apresenta como contínuo, o
desenvolvimento de suas perspectivas em realidades concretas, o que implicará todas as
dimensões do poder.

4 DESAFIOS E ESTRATÉGIAS PARA A IMPLEMENTAÇÃO DO PROJETO


POLÍTICO DOS DIREITOS HUMANOS

Apesar da vinculação de parcela significativa da população com os direitos humanos,


percebe-se que não há uma consciência desses direitos humanos enquanto um projeto de
sociedade, nem mesmo nas organizações que lutam por sua efetivação. Alguns aspectos da
realidade3 evidenciam esse problema que, como veremos, será um limitador do potencial de
transformação do projeto dos direitos humanos; passemos à explicitação e análise de alguns
desses aspectos.

4.1 Incompreensões em torno dos direitos humanos

Um primeiro problema na perspectiva da efetividade dos direitos humanos é a falta de


uma compreensão ampla e coletiva sobre esses direitos, o que leva, frequentemente, a
manifestações equivocadas e restritas sobre certas ações em prol de sua defesa ou efetivação.
Essas manifestações de críticas pontuais que são generalizadas aos “direitos humanos”, sem
um conhecimento de sua amplitude e de seus princípios, veiculadas através dos meios de
comunicação, especialmente em certos programas de rádio e de televisão, acabam
influenciando uma parcela também significativa da população, que muitas vezes, sem uma
capacidade de reflexão crítica, tende a reproduzir esses discursos equivocados.
No entanto, o problema se agrava ao constatarmos que mesmo entre aqueles que
militam em prol dos DH, através de grupos, entidades ou órgãos diversos, não se percebe uma
compreensão coletiva, ampliada e unificada, do conjunto desses direitos. O que parece poder
ser analisado pela amplitude e complexidade que os direitos humanos adquiriram nesse
processo de construção sócio-histórico, com forte envolvimento da sociedade organizada, mas
que levou à necessidade de atuação por áreas, cada uma com suas especificidades,
aumentando a complexidade dessa realidade.
A falta dessa compreensão ampla e unificada, que indica a não assimilação dos direitos
humanos como um projeto político de sociedade, pode ser evidenciada nos seminários e
conferências de DH em âmbito nacional, estadual e, até mesmo, local. Por outro lado, esses
encontros evidenciam a disseminação das discussões em torno dos direitos humanos no
âmbito regional ou dos municípios, nas últimas décadas, tanto por setores governamentais
como não governamentais, o que tem favorecido a compreensão e a atuação em prol dos
direitos humanos, mesmo sem uma dimensão política integradora, mas de forma ainda parcial
e limitada.

3
As observações aqui apresentadas em torno da perspectiva da efetividade do projeto dos direitos humanos têm
como referência inicial a sociedade brasileira, mas pelo que conhecemos de outras realidades pelo mundo e pelos
estudos bibliográficos em torno destas, elas corresponderiam à grande maioria das realidades nacionais pelo
mundo, tendo com isso um caráter de universalidade, apesar das particularidades a serem consideradas.
Desta forma, este cenário de incompreensões em torno dos direitos humanos é reflexo
de realidades distintas. Ele integra, em primeiro lugar, essas compreensões manifestamente
equivocadas, que indicam significações sem uma correspondência mínima com a realidade
ampla dos direitos humanos, sendo, normalmente, concepções que se constroem tomando as
ações de grupos de direitos humanos sem considerá-las em seu conjunto. Ele integra,
igualmente, visões diferenciadas sobre os direitos humanos, privilegiando determinados
direitos em face de outros; o que seria reflexo de valores que integram o conjunto dos direitos
humanos, mas que seriam o resultado de concepções de mundo diferenciadas, ou das
ideologias dos projetos anteriormente analisados como do liberalismo e do socialismo. Neste
caso, não se trata tanto de concepções equivocadas, mas parciais sobre os direitos humanos.
Essas visões parciais, ao focarem sobre determinados direitos e valores, serão igualmente
obstáculos para uma compreensão e assimilação dos direitos humanos em sua integralidade e
complexidade, enquanto um projeto de sociedade amplo.

4.2 Apesar das incompreensões, a evidência de uma aceitação ou vinculação coletiva

Apesar das incompreensões e visões parciais em torno dos direitos humanos percebe-
se uma aceitação geral de seus valores norteadores na sociedade hodierna, o que talvez possa
ser compreendido pelas características do projeto apontado acima, em particular por sua
amplitude e pluralidade. Mas quais outros aspectos permitiriam compreender essa vinculação,
apesar da percepção de certa incompreensão?
Um dos fatores para a compreensão dessa aceitação ou vinculação aos direitos
humanos pode ser identificado a partir das reflexões de Marcel Gauchet (2002), apontadas
acima, nas quais o autor ressalta que os direitos humanos passaram a ser um padrão para a
ação pública e uma organização da consciência coletiva. Esse novo padrão para as ações
públicas poderia ser confirmado pela integração dos direitos humanos na grande maioria das
constituições pelo mundo, sendo que no Brasil isso ocorreu de forma sistemática na
Constituição de 1988.
Outro aspecto que parece demonstrar uma vinculação ou aceitação dos direitos
humanos pela maioria da população, e que vamos analisá-lo melhor abaixo, é a quase
ausência de explicitação contrária aos direitos humanos no campo político, sendo que
praticamente todos os programas apresentam um discurso próximo aos direitos humanos ou
pelo menos de omissão sobre o tema em seus programas políticos.
No entanto, Marcel Gauchet (2002) observa que um dos elementos de força dos
direitos humanos é sua ambiguidade. Ora, essa ambiguidade será apontada justamente por
comportarem, como ressaltamos acima, tanto valores próximos ao liberalismo, a liberdade
como valor norteador, como valores resultantes do projeto socialista, neste caso, sustentados
pela igualdade. Sendo assim, essa aceitação dos direitos humanos pela sociedade parece ser o
resultado de compreensões ou vinculações parciais dos direitos humanos, e não deste como
um projeto.
Assim, a afirmação da aceitação ou vinculação aos direitos humanos ou aos seus
princípios não indica uma compreensão e assimilação dos direitos humanos pelos poderes
governamentais ou pela população como um projeto de sociedade; ela indica mais
propriamente a aceitação de um conjunto de valores que expressam e integram tanto
perspectivas liberais como sociais ou socialistas, retratando certa ambiguidade.
Com isso, parece que seria possível apresentar a realidade que viemos descrever como
uma aceitação dos direitos humanos, sem vinculação. Isto é, essa aceitação dos direitos
humanos por parte da maioria da população não indicaria um envolvimento efetivo por essa
causa, o que poderia significar a possibilidade de posicionamentos dessa população nada
coerentes com o projeto dos direitos humanos, também em função de uma aceitação sem uma
compreensão ampla desse projeto.
Devemos observar que, as incompreensões ou a falta de uma compreensão ampla dos
direitos humanos não impedem a defesa e afirmação de um projeto dos direitos humanos,
porque, estando situado historicamente, qualquer projeto de sociedade, em seu momento
inicial, se apresenta para o futuro, com base em elementos do passado e do presente. Isso
significa que, no momento em que se constitui enquanto um projeto de sociedade, ele ainda
não é compreendido enquanto tal e é necessário um processo de consolidação, de divulgação e
discussão das potencialidades desse novo projeto. Com isso, não faz sentido exigir que se
tenha uma compreensão adequada do projeto dos direitos humanos para que possamos afirmar
sua existência. O seu reconhecimento ampliado e mais adequado será parte do processo de
consolidação.
Além disso, podemos afirmar que, sem dúvida alguma, temos o mais difícil, que é a
constituição de todos os elementos apontados acima como características do projeto dos
direitos humanos e que faz com que as possíveis incompreensões possam ser suplantadas
através de uma aceitação majoritária, pelo menos de parte do projeto, em âmbito global.
4.3 A utilização estratégica do discurso pelos direitos humanos

A aceitação dos direitos humanos pela maioria da população conduz a outro aspecto da
realidade dos direitos humanos: a utilização estratégica do discurso pelos direitos humanos
por projetos políticos de colorações distintas, sem que isso signifique uma compreensão
ampla dos direitos humanos e, muito menos, uma vinculação a eles. Isto é, podemos encontrar
tanto programas de partidos liberais como socialistas, ou de outras concepções políticas,
manifestarem sua adesão ou defesa dos direitos humanos. O problema que se manifesta aqui é
que, buscando o apoio político da população, é possível explorar a proximidade com alguns
dos princípios ou valores que integram o conjunto dos direitos humanos, sem uma vinculação
efetiva ao conjunto dos direitos humanos.
Essa realidade é possível, graças a um conjunto de princípios, valores e direitos
constituídos a partir de fundamentações e realidades políticas e sócio-históricas distintas, mas
que integrados em um todo, ainda continuaram manifestando divergências e ambiguidades.
Neste sentido, princípios como a indivisibilidade e a interdependência dos direitos humanos,
que poderiam suplantar a dicotomia entre direitos civis e políticos de um lado, e direitos
econômicos, sociais e culturais de outro, continuaram sendo ignorados e, estrategicamente,
continuou-se afirmando a defesa dos direitos humanos, mas de maneira parcial, buscando a
legitimidade a partir desse discurso.
Evidentemente, não se trata da defesa de uma única concepção correta de direitos
humanos, mas de ressaltar que a desconsideração de princípios fundamentais para a
compreensão desses direitos, hoje, leva a visões parciais, sem considerá-los em sua
integralidade.
Podemos nos perguntar, porque e como projetos liberais e neoliberais continuam se
servindo do referencial dos direitos humanos, uma vez que este parece ter adquirido um
potencial emancipatório que extrapolaria as bases desses projetos? Alguns elementos são
fundamentais para a análise desta questão: primeiro, os direitos humanos passaram a ser não
somente uma referência jurídica e ética, mas política e cultural disseminada na sociedade;
segundo, a percepção da sociedade com relação aos direitos humanos foi ampliada, mesmo
que isso não corresponda a uma compreensão ampla desse projeto. Assim, é comum, pessoas
que não têm uma participação política efetiva através de grupos organizados da sociedade, se
vincularem ou se identificarem com as propostas dos direitos humanos, sem que isso indique
uma vinculação também a projetos políticos. Em decorrência do segundo, temos um terceiro
elemento de análise: o projeto dos direitos humanos adquiriu uma aceitação social e popular
maior que os projetos de sociedade tradicionais, estes fundados na Ideologia Liberal ou do
Socialismo. Dessa forma, a utilização de valores ligados aos direitos humanos, mesmo que
parcial, por setores vinculados a projetos políticos mais próximos à perspectiva liberal e
neoliberal, parece indicar uma inclusão estratégica, não assimilada em sua amplitude.
Ora, essa utilização estratégica do discurso dos direitos humanos por políticos ou
partidos liberais e neoliberais ocorre pela amplitude dos direitos humanos e, como apontado
por alguns teóricos, por sua ambiguidade, ela parece manifestar igualmente um limite político
e ideológico do próprio projeto dos direitos humanos, considerado sob uma perspectiva
emancipatória.
Enfim, ressaltamos que a utilização indiferenciada e estratégica dos direitos humanos,
sem uma vinculação efetiva ou simplesmente parcial, passa a ser um elemento
complexificador dessa realidade, provavelmente ampliando a incompreensão da população
sobre esses direitos e dificultando sua diferenciação entre propostas, relativas aos direitos
humanos, mais amplas ou mais restritas.

4.4 O convívio com realidades de rupturas e violações aos direitos humanos

O cenário de incompreensões em torno dos DH, vinculado a uma aceitação por parte
da sociedade e à utilização estratégica de discursos de direitos humanos, ambos sem
vinculação, parece ser fator suficiente para compreendermos a manutenção de realidades e
estruturas que levam a não observância do projeto dos direitos humanos pelo mundo e às
consequentes violações a esses direitos.
Assim, uma das contradições e violações mais evidentes com relação ao projeto dos
direitos humanos é a manutenção ou aumento da concentração de renda em um mundo de
economia globalizada, onde os Estados perdem espaço frente a estruturas financeiras
norteadas por políticas e concepções neoliberais, levando à manutenção ou ao agravamento da
miséria de parcela significativa da população mundial. Mas essas contradições têm reflexos
no conjunto desses direitos, como a falta de acesso a direitos sociais básicos como educação,
saúde e outros, levando também a sujeitos, cidadanias e democracias formais fragilizadas pelo
mundo.
Frente a essa realidade de violações aos DH é importante ressaltar a ação dos grupos
e organizações de direitos humanos por todo o mundo, que cumprem um papel fundamental
no processo de implantação parcial desses direitos, o que leva a uma amenização das
contradições. Essas ações são, normalmente, ações políticas, isto é, ações que têm impactos
social e político, sejam em âmbito local, regional, nacional e/ou internacional.
O problema é que em face dessas desigualdades e violações aos direitos humanos,
mesmo aqueles que atuam sob a perspectiva dos direitos humanos, parece continuarem
atuando, em grande parte, sob enfoques particulares, sem uma visão de conjunto, isto é, sem
uma visão política mais ampla do problema. Dessa forma, e com a corroboração das análises
acima, percebe-se que o desenvolvimento dessas ações não está sendo suficiente para a
compreensão dos DH enquanto um projeto diferenciado de sociedade, que poderia superar as
contradições advindas de projetos precedentes.
Ora, sem essa compreensão dos direitos humanos como um projeto de sociedade,
mesmo as ações em prol desses direitos, aparecem fragmentadas, sem uma vinculação
estratégica e sem a possibilidade de disseminação de algo mais claro em torno da proposta de
sociedade propugnada a partir dos DH. Assim, com ações fragmentadas e sem a possibilidade
de passar à sociedade referências que a permitam contemplar os DH como um projeto
alternativo de sociedade, deixa-se de explorar o potencial emancipatório desse projeto.
E sem a compreensão de um projeto político emancipador, como o dos DH, resta
diminuída a possibilidade de compreensão, de articulação e de mobilização social forte contra
as desigualdades pelo mundo e outras formas de violação aos direitos de todo ser humano,
como a usurpação da natureza, favorecendo a manutenção de estruturas na sociedade que
levam a não observância e não efetivação do projeto ético e político dos DH.

4.5 Concepções e princípios dos direitos humanos

Vimos que os direitos humanos adquiriram uma grande amplitude e que abarcam
diversas dimensões ou realidades vinculadas ao humano e suas relações na sociedade e com o
mundo. Da mesma forma, percebe-se que historicamente tivemos aqueles que privilegiaram
os direitos civis e políticos, em face aos direitos econômicos, sociais e culturais, enquanto
outros adotaram posicionamento contrário.
Assim, a apresentação e consolidação de um novo projeto na sociedade ocorrem em
um processo e em uma realidade sócio-histórica, onde normalmente já se tem outros projetos,
mais próximos ou mais distantes do projeto que se apresenta. Nenhuma constituição política
faz-se sem referência a elementos da realidade sócio-histórica, da mesma forma que todas
priorizam determinados aspectos da realidade. Dessa forma, cada construção política que se
constitui representa um posicionamento frente a uma realidade sociopolítica específica, mas é
também uma confrontação em termos de significação da realidade e de organização da
sociedade, expressando uma determinada compreensão de mundo.
Com isso, temos o problema de diferentes concepções de direitos humanos, que são o
resultado de compreensões políticas, ideológicas, éticas, culturais e outras, que fundam essas
concepções e que poderão ser mais restritas ou mais amplas frente à realidade que elas
contemplam. Fernando Quintana (1999, p. 25-6), analisando os debates na ONU em torno da
declaração de 1948, observa três constelações teóricas fundamentais: uma primeira,
relacionada à relação “indivíduo-Estado”, na qual identifica dois tipos de argumentos ou
ideologias para essa análise: a individualista e a holista, a primeira priorizando o indivíduo e
seus direitos, enquanto a segunda valorizando “a totalidade social, a unidade do Estado”; a
segunda constelação estaria relacionada à extensão do conceito de direitos humanos, e que ele
indica como uma visão restrita, vinculada às liberdades individuais e aos direitos civis e
políticos, e uma visão ampla, contemplando o conjunto dos direitos humanos; por fim, a
constelação teórica relativa à “natureza dos direitos humanos”, sobre a qual identifica a
divergência através de duas concepções: a universalista e a particularista, a primeira partindo
de uma natureza universal da espécie humana, e a segunda ressaltando a contextualização
histórica, local e cultural desses direitos. Ora, as análises de Quintana (1999) têm grande
proximidade com as nossas em torno de diferentes compreensões sobre os direitos humanos, a
partir de um projeto liberal ou do projeto socialista de sociedade.
Entretanto, apesar das diferentes concepções de DH, há um referencial normativo
internacional comum, que sustenta uma base norteadora para os direitos humanos, da mesma
forma que nos permite identificar o grau de adequação ou inadequação de uma determinada
concepção. Isso, porque, apesar desse referencial normativo e institucional comum, as
diferentes concepções se mantêm, retratando divergências e diferenças na sociedade, que
levam a valorações e interpretações diferenciadas com relação a esse conjunto normativo.
Assim, percebe-se que, apesar da Declaração de Viena ter consagrado, em 1993, que “5.
Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados”,
ainda continuamos tendo aqueles que priorizam os direitos individuais, enquanto outros
ressaltam os direitos sociais, o que levará a percepções ou atuações parciais do projeto dos
direitos humanos pelo mundo.
4.6 A articulação de diferentes valores: o grande desafio

O grande desafio no processo de elaboração e implementação dos direitos humanos


como um projeto de sociedade é a integração e articulação de valores que, refletindo
diferentes projetos de sociedade, seriam, a princípio, contrapostos.
É essa integração de valores originalmente de projetos políticos e de sociedade
distintos, que leva a afirmações em torno da ambiguidade dos direitos humanos, sobretudo se
os considerarmos como valores “antinômicos”, como propõe Bobbio (1992, p. 44). Mas a
afirmação dos princípios estabelecidos na Declaração de Viena, em especial a indivisibilidade
e a interdependência desses direitos, propugna pela superação dessas divisões. Apesar disso,
ainda continuamos tendo uma sociedade marcada por divisões e aqueles que, vinculados a
concepções distintas, continuam priorizando alguns dos direitos desse projeto frente a outros,
desconsiderando os princípios que exigem a inter-relação desses direitos e valores.
Apontamos acima que uma das características dos direitos humanos como projeto de
sociedade é de ser uma síntese dialética de projetos de sociedade precedentes, uma síntese que
integra e supera referências anteriores. Ora, essa síntese mantém valores do projeto liberal e
assimila valores do projeto socialista de sociedade, mas ao integrá-los o faz sob uma
perspectiva global específica e diferenciada.
Provavelmente, o aspecto mais controverso para a aceitação e assimilação dos direitos
humanos como um projeto de sociedade, sobretudo por parte daqueles que se vinculam ao
Socialismo, é a inclusão nesse projeto do direito à propriedade privada, que é um direito
constituído a partir do projeto liberal moderno. Essa dificuldade está relacionada à crítica
histórica à propriedade privada, sendo esta considerada base da desigualdade social desde
Rousseau, crítica que será melhor estruturada a partir do pensamento marxista. No entanto,
considerando a realidade e os valores dominantes na sociedade hodierna, seria possível a
implementação da proposta de supressão da propriedade privada? Os acontecimentos recentes
em países como Cuba, Venezuela, ou mesmo China e outros, evidenciam a dificuldade, senão
a inviabilidade desse processo em nossas sociedades globalizadas.
Assim, como apontamos, e reforçado por essa última análise, reafirmamos que o
projeto dos direitos humanos, que integra e supera valores fundamentais tanto do projeto
socialista quanto do liberal em uma perspectiva dialética, pode ser apresentado como o
projeto mais adequado à realidade de nosso tempo. Dessa forma, se o projeto do Socialismo,
pelo menos em sua versão original, é incompatível com a propriedade privada, o projeto dos
direitos humanos, pelo menos em sua forma atual, integra esse direito, sem que isso indique
uma vinculação ao projeto liberal, uma vez que não é possível desvincular o projeto dos
direitos humanos à sua base norteadora fundamental que é garantir a dignidade humana a
todos. O que sem dúvida alguma implica em um processo de superação da “desigualdade
substantiva” por um processo de “igualdade substantiva”. (MÉSZÁROS, 2004, p. 41)
Daí, a complexidade e exigência maior na efetivação do projeto dos direitos humanos:
ela exige a integração de valores e de direitos, que seriam integrados e articulados em um
processo de resignificação e construção de uma nova utopia, levando à superação de suas
contradições, uma vez que são indivisíveis e interdependentes. Dessa forma, toda práxis, para
sua adequação ao projeto dos direitos humanos deve contribuir para esse objetivo maior: o
acesso e a vivência efetiva da dignidade humana por todos. Aliás, não nos parece ser outra a
proposta do Fórum Social Mundial quando defende o “acesso a todos os direitos por todos” 4.
Com isso, na concepção ampla do projeto dos direitos humanos, a efetivação do
direito à propriedade privada em uma realidade concreta exige sua contribuição para a
dignidade e o bem estar de todos. Assim, da mesma forma que no Brasil aprovou-se em
âmbito constitucional a “função social da propriedade”, bem como a participação nos lucros
por parte dos trabalhadores como decorrência do “princípio da isonomia”, cada sociedade em
particular deve buscar formas para essa integração na prática. Evidentemente, a garantia legal
é somente parte do processo e não garante sua efetividade, exigindo para isto a compreensão e
assimilação ampla do projeto dos direitos humanos por parte dos grupos organizados e parcela
significativa da população, o que levaria a um maior grau de envolvimento sociopolítico e,
consequentemente, a um maior grau de exigibilidade de todo e qualquer direito que integre
esse projeto.
Porém, o processo de efetivação do projeto pode levar à implantação de experiências
mais avançadas, em face ao objetivo de alcançar a dignidade humana para todos, que poderá
ser traduzida por um processo de “igualdade substantiva” em cada sociedade e na realidade
global, como, por exemplo, práticas de autogestão e de propriedade coletiva. Com isso, sob o
prisma da dimensão socioeconômica, o projeto dos direitos humanos pode contemplar tanto a
liberdade do empreender individual, se este contribui com o processo social e coletivo, como
experiências de propriedade e gestão coletivas.

Pode-se perceber, portanto, que a maior exigência do projeto dos direitos humanos, em
comparação a outros projetos e quanto à sua implementação e efetivação, é a assimilação

4
Esta passou a ser uma das principais bandeiras de luta do Fórum Social Mundial desde suas primeiras edições
de 2001 e 2002.
desses valores, a princípio contraditórios, impostos pelo respeito à diferença, mas sempre
vinculados ao objetivo maior de promoção da dignidade humana em todos os âmbitos (local,
regional, nacional e global). Essa exigência pode ser afirmada também por ser um projeto que
não comporta qualquer parcialidade que não contribua com a dignidade humana e que não se
satisfaz com a afirmação da dignidade humana individual, senão coletiva.
Assim, o projeto dos direitos humanos supera os dois grandes projetos de sociedade
que o precederam, passando a ser a referência política maior para nossos tempos, norteada por
uma dimensão utópica e ideológica, e em sua dimensão da efetividade, sempre alicerçado na
dignidade humana.

4.7 Por uma compreensão dos direitos humanos como um projeto de emancipação

Os aspectos apontados acima evidenciam a falta de uma compreensão ampla, na


sociedade, dos direitos humanos enquanto um projeto de sociedade e de suas potencialidades.
Dentre os que já militam de forma organizada em prol dos direitos humanos, acreditamos que
aqueles que manifestam uma vinculação forte ao Socialismo talvez tenham uma dificuldade
maior para compreender e assimilar os direitos humanos como um projeto de sociedade, uma
vez que este integraria também valores originalmente advindos da ideologia liberal, o que
poderia ser considerado como incompatível com o projeto do Socialismo.
Ora, devemos considerar que o projeto dos direitos humanos, em sua perspectiva
projetiva ou ideológica, resgata igualmente valores estabelecidos sócio-historicamente através
das reivindicações e lutas norteadas pelo ideal e pela ideologia socialista, mas o faz dentro de
um projeto plural, que integra igualmente princípios e valores que confrontam as perspectivas
socialistas.
Ao analisarmos as características deste novo projeto, percebe-se que ele integra os
projetos precedentes, em especial o Liberal e o do Socialismo, em uma síntese dialética,
acima analisada. Esta síntese dialética propicia ao projeto dos direitos humanos uma maior
adequação ao nosso tempo, uma vez que, integrando novas realidades e valores, ele amplia
sua capacidade para incluir as reivindicações e lutas emancipatórias mais recentes e que não
seriam adstritas às lutas históricas do Socialismo ou de outros projetos, como a questão de
gênero, a questão étnico-racial, de crianças e adolescentes, a questão ambiental e outras,
presentes na grande maioria das concepções e projetos políticos contemporâneos, seja por
exigências éticas, políticas ou jurídicas.
Em vistas a essa mudança de estratégia e de concepção sobre os direitos humanos, e
considerando essa vinculação maior dos militantes de direitos humanos aos valores
socialistas, analisemos as duas principais estratégias tradicionais de atuação na esquerda: a
“luta revolucionária” e o “socialismo democrático”, nesta correlação com o projeto dos
direitos humanos. Quanto à primeira, a alternativa revolucionária, não se percebe uma
vinculação forte de parcela significativa da população a essa alternativa. Pelo contrário, as
discussões recentes de um dos últimos polos de resistência armada na América Latina, na
Colômbia, as FARC evidenciam que o processo passa cada vez mais pela via da integração
política, fazendo com que a alternativa da luta armada se torne cada vez mais pontual e
distante, sobretudo em algumas culturas como a brasileira. Por outro lado, a segunda
alternativa, de implantação do socialismo pela via democrática, passando pelas urnas, já
implica na aceitação do estabelecimento do poder a partir do voto individual, o que faz com
que não se possa garantir eventuais conquistas políticas, que ficariam sujeitas a mudanças ou
alternâncias políticas, como o que temos assistido por todo o mundo, prevalecendo políticas e
programas ora mais liberais, ora social-democratas, ora socialistas ou outras. Entretanto, essa
aceitação da estratégia democrática já implica em atuar em um contexto com forte influência
dos poderes instituídos da sociedade, em especial do poder econômico em articulação com
parcela do poder político e com o poder da mídia, o que implicará em tentativas constantes de
contraposição aos projetos e políticas públicas, sobretudo se estas tiverem por objetivo
mudanças mais significativas na estrutura socioeconômica.
Aprofundando a discussão sobre estratégias de atuação, podemos apontar ainda a
análise de Herrera (2010), para quem a questão dos direitos humanos pode ser compreendida
sob duas perspectivas: a de emancipação social, vinculada, sobretudo, aos processos
revolucionários a partir do século XVIII, especialmente através das revoluções francesas de
1789 e de 1848, mas também a partir da Revolução Russa de 1917; e a perspectiva da
integração social, processo vinculado à discussão do Estado do Bem-Estar, tanto a partir das
discussões de Keynes e de Roosevelt, como apontados acima. É notório que a perspectiva que
norteou a elaboração e discussões em torno da Declaração Universal dos Direitos Humanos de
1948, e que tem prevalecido na exegese jurídica internacional, tem sido a de integração social.

Da mesma forma, parece ser possível indicar que, a aceitação social dos direitos
humanos estaria vinculada a essa perspectiva de integração social, o que, em última instância,
significou a tentativa de minimizar as contradições sociais do capitalismo através de uma
garantia de condições sociais mínimas, mas com a preservação do sistema econômico e,
portanto, da base do sistema global. Ora, essa forma de compreensão dos direitos humanos
reduz sua potencialidade emancipatória, o que permite compreender os elementos apontados
em torno de incompreensões e de compreensões parciais dos direitos humanos e que
permitem igualmente a utilização estratégica do discurso dos direitos humanos, sem um
compromisso efetivo com o conjunto desses direitos. Esses aspectos apontam para uma
fragilidade da atuação, a partir dessa concepção dos direitos humanos enquanto integração
social.
Observa-se que a forma como os direitos humanos têm sido tratados pelos governos,
organismos internacionais e poderes instituídos (incluindo o Judiciário), diferenciando e
priorizando os direitos civis e políticos com relação aos direitos sociais, econômicos,
culturais, ambientais e outros, é de manutenção dessa concepção integradora, que é uma
integração estratégica, para a preservação e predomínio dos valores liberais sobre os valores
construídos a partir das lutas sociais.
Ao defendermos os direitos humanos como projeto político de sociedade, nos
distanciamos dessa concepção que pode levar a ambiguidades, mesmo reconhecendo que é
essa concepção que parece permitir a difusão e aceitação atual dos direitos humanos. A defesa
dos direitos humanos como um projeto de sociedade estaria vinculada mais à perspectiva de
emancipação social, sem que isso implique, no entanto, a estratégia de luta revolucionária. A
questão é: ao assumirmos os direitos humanos em sua integralidade, a partir dos princípios da
indivisibilidade e da interdependência, e considerando que vivemos uma realidade mundial de
forte desigualdade social e onde a dignidade humana para todos está comprometida, não há
como não assumir a luta pela transformação das relações socioeconômicas.
Assumindo os direitos humanos em sua integralidade, os direitos sociais deixam de ser
concessões estratégicas para a manutenção do poder, como consolidados através da política
do Estado do Bem-Estar. Se sob a perspectiva da integração, os direitos sociais foram
integrados em uma proposta de direitos humanos, na perspectiva da emancipação através dos
direitos humanos, são os direitos de liberdade que devem ser integrados, sob a perspectiva de
uma transformação social. Isto é, o ponto de partida para o processo de emancipação é a
afirmação primeira do social, mesmo que contemplando elementos da liberdade. Assim, é o
social que funda a liberdade, não a liberdade que funda o social.
4.8 Potencialidades e exigências do projeto dos direitos humanos em uma realidade
adversa

Ao aceitarmos e assimilarmos o potencial amplo dos DH, como projeto que pode
permitir avanços em termos de reestruturação das relações na sociedade global, criamos
condições para superar as potencialidades reduzidas dos direitos humanos, limitadas pela
perspectiva predominante da integração. Será esta concepção dos direitos humanos como um
projeto amplo e emancipador que poderá transformar a realidade que vivenciamos hoje de
violações aos direitos humanos em praticamente todas as suas dimensões, impedindo a
efetivação da dignidade humana para todos.
A defesa e a assimilação dos direitos humanos como um projeto de sociedade poderá
viabilizar uma maior unidade na práxis em torno dos direitos humanos, criando condições
para ações mais articuladas, que integrem e fortaleçam suas bases enquanto um contra-poder.
No entanto, não podemos desconsiderar que vivemos em uma sociedade de domínio
capitalista, e que o valor liberdade é hoje considerado como fundamental e integrando as
diversas declarações de direitos humanos, como a Declaração Universal de 1948, fazendo
com que tenhamos uma sociedade estruturada a partir desse valor. Da mesma forma, deve-se
reconhecer que essa articulação dos poderes instituídos em âmbito global não parece poder ser
superada pelas mobilizações políticas e mesmo por ações contrárias ao sistema capitalista e
suas consequências, como as protagonizadas em todo o mundo já há alguns séculos. Essas
ações e mobilizações parecem ser assimiladas pelo sistema, sem que tenhamos mudanças
estruturais nas relações de poder, assim como uma decisão judicial contrária aos poderes
instituídos em uma sociedade tende a ser suplantada por muitas outras, e em grau superior, em
sentido contrário, sobretudo se se tratar de questão estrutural do sistema.
Entretanto, se o projeto dos direitos humanos abre espaço para ambiguidades e
contradições, como a afirmação da função social da propriedade e o direito à participação nos
lucros frente ao direito à propriedade privada, percebe-se que o valor liberdade não é mais
irrestrito, e que outros valores estabelecidos a partir de parâmetros sociais podem impor
limites a esses valores constituídos a partir da ideologia liberal, limites estes que podem e
devem ser melhor explorados na estratégia de implementação dos direitos humanos enquanto
um projeto emancipador.
Mészáros (2004, p. 393) ressalta que para Rosa Luxemburgo o Socialismo não
aconteceria sem o envolvimento das massas. Da mesma forma, e atualizando os termos,
acreditamos que o projeto dos direitos humanos exige a participação efetiva da sociedade, o
que acontece enquanto um processo. Isto é, a implantação do projeto dos direitos humanos já
exige ações que vão fortalecendo e ampliando a assimilação do projeto. Diferentemente do
projeto do Socialismo, que exigiria uma tomada de consciência a partir de sua ideologia, para
a implantação da revolução política, o primeiro passo para o projeto dos direitos humanos não
é esta revolução política, em termos de tomada do poder estatal e central, mas é, a partir de
uma consciência política das possibilidades do projeto dos direitos humanos, a adoção de
práticas socioeconômicas e político-culturais de transformação da realidade.
Assim, assumir os Direitos Humanos como um projeto de sociedade significa assumir
a pluralidade de projetos em uma sociedade e, portanto, seus conflitos e divergências
políticas. Significa também assumir a possibilidade de convivência tanto de ações
integradoras, quando não, ações explícitas de manutenção dos poderes instituídos, como de
ações emancipadoras. Isto é, assumir este novo projeto de sociedade significa elaborar e
implementar, mesmo neste contexto adverso, propostas e experiências inovadoras visando a
emancipação.
Essas propostas inovadoras e de transformação só podem advir de realidades locais,
que poderiam ser vivenciadas de acordo com as condições possíveis em cada realidade local.
Ao assumir essas novas práticas e metodologias em âmbito local pelo mundo, o projeto dos
direitos humanos se fortalece e se potencializa por criar e sedimentar uma nova compreensão
dos direitos humanos, não de integração, não de manutenção de poderes precedentes, mas de
transformação e construção de autonomias, de ampliação e reprodução de experiências que
poderão permitir uma “igualdade substantiva”, fortalecendo o processo de compreensão
política e de participação cidadã, levando à possibilidade de ampliação do projeto também
pela via democrática a médio e longo prazos, o que poderá ampliar as experiências e práxis ao
âmbito de políticas públicas, passando a ser referências em âmbito nacional ou mesmo
internacional.
Essa nova práxis coletiva em torno dos direitos humanos será possível a partir do
momento que essa visão ampliada dos direitos humanos, enquanto um projeto de sociedade
emancipador, possa ser compartilhada e assimilada por parcela significativa daqueles que
atuam mais diretamente na luta por esses direitos e que, a partir dessa nova postura, se
transformaria em uma luta por mudanças cada vez mais estruturais na sociedade. Essa
mudança parece apontar para a necessidade de um referencial norteador para essa práxis, isto
é, para uma ideologia dos direitos humanos.
4.9 A relevância de uma ideologia dos direitos humanos

István Mészáros (2004, p. 327) em seu livro “O poder da ideologia”, ressaltou: “A


reprodução bem-sucedida das condições de dominação não poderia ocorrer sem a participação
ativa de poderosos fatores ideológicos para a manutenção da ordem existente”. Com isso,
observa a atualidade de uma ideologia do pensamento liberal, atualizada em termos
neoliberais, como base para a manutenção da ordem instituída, mas também o aspecto
fundamental de uma ideologia. É certo que, o referido autor, analisa a relevância de se “ativar
o poder da ideologia emancipadora” (MÉSZÁROS, 2004, p. 54) defendendo a reconstituição
do movimento socialista e, portanto, da ideologia socialista. Para nós, como temos apontado,
o projeto dos direitos humanos parece mais adequado hodiernamente para viabilizar um
processo de emancipação, mas concordamos plenamente com Mészáros (2004) sobre a
relevância de uma ideologia para que isso se viabilize.
Apontamos acima que o projeto dos direitos humanos é uma síntese dialética dos
projetos liberal e socialista, e da mesma forma que se construiu uma ideologia liberal e uma
ideologia socialista, bases para a estruturação daqueles projetos, será fundamental, a partir do
momento que buscarmos bases para um projeto de sociedade emancipador, refletirmos e
avançarmos na criação e consolidação de uma ideologia dos direitos humanos que,
evidentemente, deverá atender às características desse novo projeto.
Mészáros (2004, p. 65) concebe a ideologia como “uma forma específica de
consciência social, materialmente ancorada e sustentada”; e partindo das análises de Marx,
observa que:

O que determina a natureza da ideologia, acima de tudo, é o imperativo de se tornar


praticamente consciente do conflito social fundamental [...] [E acrescenta] [...] as
diferentes formas ideológicas de consciência social têm (mesmo se em graus
variáveis, direta ou indiretamente) implicações práticas de longo alcance em todas as
suas variedades, na arte e na literatura, assim como na filosofia e na teoria social,
independentemente de sua vinculação sociopolítica e posições progressistas ou
conservadoras. (MÉSZÁROS, 2004, p. 65-6)

Assim, para esse autor, o discurso ideológico não deve ser articulado como
“proposições teóricas abstratas [...] e sim como indicadores práticos bem fundamentados e
estímulos efetivamente mobilizadores, direcionados às ações socialmente viáveis dos sujeitos
coletivos reais” (MÉSZÁROS, 2004, p.66). Note-se, entretanto, a posição de Giuseppe Tosi,
da UFPB, que ressaltou a ideologia em Marx, como um “horizonte conceitual” 5.
Assim, essa ideologia dos direitos humanos seria a forma de se ampliar a compreensão
e assimilação dos direitos humanos enquanto um projeto de sociedade emancipador, tanto
entre os seus militantes como entre aqueles que manifestam uma aceitação dos direitos
humanos sem uma vinculação efetiva, mas também para a sociedade em geral, ampliando seu
grau de consciência sobre as relações e estruturas de poder na sociedade, mas também sobre
as possibilidades de transformação desse processo.
As indicações acima parecem suficientes para que se compreenda a importância da
elaboração e divulgação de uma ideologia do projeto dos direitos humanos, ressaltando suas
bases e potencialidades para uma transformação efetiva das relações na sociedade e levando a
um processo de emancipação e de efetivação de seu objetivo maior: a dignidade humana para
todos. Esta parece ser a melhor estratégia para que o projeto dos direitos humanos amplie seu
potencial emancipatório e constitua-se efetivamente como um contra-poder em nossa
sociedade, superando os limites e obstáculos em que se encontra hoje.
Sendo o projeto dos direitos humanos, plural e aberto, sua ideologia, ao apontar
norteamentos para o futuro e de acordo com as condições e possibilidades de nosso mundo
real, em construção, tem o desafio de incluir concepções, práticas e experiências com um
potencial transformador, sem que isto signifique uma limitação de novas possibilidades neste
processo. Esta ideologia dos direitos humanos deve contribuir para a consolidação da
dignidade de todos, sendo, portanto, viabilizadora de novas subjetividades e autonomia, em
um processo de emancipação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao ressaltarmos os direitos humanos como um projeto de sociedade, identificamos no


seu reconhecimento e na sua assimilação, como um projeto de referência, uma possibilidade
de transformação ampliada e efetiva das realidades locais, nacionais e internacionais que
passariam a ser analisadas como parte de um processo de superação em vistas à emancipação.
Portanto, o processo de implementação de um novo projeto de sociedade, norteado a
partir dos direitos humanos, deve explorar as ambiguidades do projeto atual, mas também as

5
G. TOSI apresentou esta análise durante o Seminário Nacional Democracia, Direitos Humanos e
Desenvolvimento.
possibilidades e contradições do sistema, presentes em cada sociedade. Assim, é um projeto
que deverá ser implementado, enquanto um processo a médio e longo prazos, o que exige
articulações em rede e o estabelecimento de estratégias de ação melhor integradas, bem como
novas metodologias.
A defesa dos direitos humanos como projeto de sociedade emancipador, e respeitando
as diferenças, faz com que tenhamos que atuar, a partir desse novo projeto, mas em confronto
com outros valores e perspectivas políticas divergentes; o que exige que os que defendam os
direitos humanos sob essa nova perspectiva fortaleçam-se em sua cultura política, atuando e
explorando todas as possibilidades e exigências de um projeto político de direitos humanos
que estará sempre em construção, mas também em confronto na sociedade, sobretudo com
aqueles que buscam a manutenção de poderes instituídos. Resgatando Castoriadis, os direitos
humanos como essa nova cultura política, e assumindo-se como um projeto de sociedade,
assumiriam o papel de uma cultura e “poder instituinte” (CASTORIADIS, 1982) em prol da
transformação e da emancipação social e política.
Acreditamos que o aprofundamento dessa discussão nos próprios grupos e
organizações de direitos humanos poderá levar à construção e consolidação das bases
ideológicas necessárias para a superação dos desafios aqui apresentados. Bases estas
constituídas a partir da implementação e reflexão de experiências que possam ser norteadoras
na exploração das contradições dos poderes instituídos, e que permitam avançar no processo
emancipatório de implantação de uma sociedade onde a dignidade humana para todos não seja
somente parte da utopia, mas também da efetividade do projeto dos direitos humanos.
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