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A CIDADANIA NO BRASIL:

CARACTERÍSTICAS,ENTRAVES EEXPECTATIVAS*

Joaquim Leonel de 'lRe:;cendeJt lvim * *

Sumário: Introdução; 1. Quadro conceitual; 2. As es-


pecificidades da cidadania no Brasil; Conclusão; Refe-
rências.

RESUMO
A partir da imbricação entre o Direito, a Sociologia e as demais
Ciências Humanas e Sociais, promove-se uma reflexão de ordem
geral sobre a cidadania no Brasil, transitando por questões estrutu-
rais e conjunturais. Num primeiro momento, é desenvolvido um
quadro teórico e conceitual de compreensão da cidadania no qual
se delimita o objeto de estudo e a maneira como será analisado A
.dadania possui um conceito polissêmico: sujeito a vários sentidos
e a múltiplos usos. O quadro de análise é importante para precisar
a maneira como a cidadania é abordada. No segundo momento,
são desenvolvidas as características da cidadania no Brasil, de-
monstrando-se as especificidades e particularidades com relação
ao quadro conceitual desenvolvido no primeiro momento.

PALAVRAS-CHAVE
Dimensões da cidadania. Exercício de direitos. Cidadania no Brasil.

. o presente artigo retoma uma palestra intitulada "La citoyenneté au Brésil"


apresentada no ERIC (Equipe de Recherche sur l'Identité et Ia Citoyenneté)
CEPEL/Universidade de Montpellier I - França, em 06 de maio de 2004, no
âmbito do Acordo de Cooperação CAPES/COFECUB 469/04 entre a Universidade
Federal Fluminense (UFF) e a citada Universidade de Montpellier L
- Professor Titular em Teoria do Direito da Faculdade de Direito e do Programa de
Pós-graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) da Universidade Federal
Fluminense (UFF), Pós-doutor em Direito Social pela Universidade de Paris X
(Nanterre) - França, Doutor em Ciências Políticas pela Universidade de Montpellier
I - França e Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUCIRJ.
Joaquim Leonel de Rezende Alvim

Introdução

A proposta do presente artigo não está situada em urna área


específica do saber, compartirnentalizada em urna disciplina, mas
estará transitando transversalmente em três áreas das Ciências Hu-
manas e Sociais: Direito, Sociologia e Ciência Política. Nosso ob-
jetivo é apresentar, a partir de imbricações!dessas três áreas, urna
reflexão de ordem geral sobre a cidadania no Brasil transitando por
questões estruturais e conjunturais. Para fazê-lo, estaremos divi-
dindo nosso trabalho em dois momentos.
Em um primeiro momento, estaremos desenvolvendo um
quadro teórico e conceitual de compreensão da cidadania para pre-
cisarmos o objeto de que estamos falando e a maneira corno esta-
mos falando desse objeto. Sabemos bem que a cidadania é um
conceito polissêmico: portanto, sujeito a vários sentidos e sujeito a
múltiplos usos 1. Dessa forma, compreendemos ser importante to-
mar um quadro de análise para precisarmos a maneira corno ire-
mos abordar a cidadania. Em um segundo momento, iremos de-
senvolver as características da cidadania no Brasil de maneira a
mostrar as especificidades e as particularidades de alguns aspectos
dessa cidadania com relação ao quadro conceitual desenvolvido
no primeiro momento do nosso trabalho. Nosso trabalho assume,
dessa forma, o seguinte percurso: na primeira parte estaremos de-
senvolvendo um quadro conceitual. A segunda parte é dedicada ao
desenvolvimento de um quadro estrutural da cidadania no Brasil.

I Para maiores detalhes sobre a cidadania enquanto conceito polissêmico, remetemo-


nos ao nosso trabalho ALVIM, Joaquim Leonel de Rezende. Citoyenneté
européenne: contribution à l'étude d'un lien polycentrique. Lille, France:
Septentrion, 1999; como também ao trabalho de LECA, Jean. Questions on
citizenship. In: MOUFFE, Chantal (Dir.). Dimensions of radical democracy:
pluralism, citizenship, community. London: Verso, 1992.

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A Cidadania no Brasil: Características, Entraves e Expectativas

1 Quadro conceitual

Vamos partir de um quadro teórico-conceitual que, sabemos


bem e o dizemos imediatamente, foi objeto de fortes ataques da
parte da sociologia histórica/. Estaremos aqui utilizando como re-
ferência as análises propostas por Marshall na sua conhecida con-
ferência apresentada em Cambridge no ano de 1949, sob o título de
"Class, citizenship and social developpemenr'ê, Surge então a
pergunta: mas qual o motivo de utilizar um quadro de análise que foi
tão criticado? Estamos aqui tomando tal quadro pois, não obstante
as críticas que podemos fazer sobre a compreensão marshalliana da
cidadania, e nós vamos vê-Ias, existem aspectos que nos interessam
tanto no desenvolvimento deste quadro como nas críticas que so-
mente são compreensíveis a partir dá referência ao quadro.
O quadro de compreensão da cidadania de Marshallé, grosso
modo, o seguinte: analisando a história da cidadania na Inglaterra,
ele propôs um esquema de evolução dessa cidadania a partir da
dissociação de suas dimensões ligada (1) a períodos históricos di-
ferenciados, (2) ao exercício de direitos diferenciados, (3) a espe-
cializações funcionais diferenciadas de estruturas estatais e (4) a
modelos diferenciados de Estado.
Resumidamente, podemos dizer que Marshall começa seu
esquema evolutivo a partir de uma dimensão civil da cidadania que
cobre, grosso modo, o século xvrn. Tal dimensão liga-se ao exercí-

2 Algumas da principais referências desse debate encontram-se em obras como


BENDIX, Reinhard. Nation-building and citizenship. Berkeley: University of
Califomia Press, 1964; EISENSTADT, Shmuel and ROKKAN, Stein. Building
states and nations. Beverley Hills: Sage Publications, 1973, 2 vol. e BADIE,
Bertrand et BIRNBAUM, Pierre. Sociologie de l'Etat. Paris: Pluriel, 1983.
3 MARSHALL, T.H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1967.

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Joaquim Leonel de Rezende Alvim

cio de direitos civis (liberdade de expressão, liberdade de associa-


ção, uso da propriedade privada etc.) que são, por sua vez, ligado
a um locus específico de especialização funcional da estrutura esta-
tal que é o Tribunal e tudo isso se organiza e se estrutura em um
modelo de Estado próprio ao século XVIII que é o Estado liberal.

É em função do exercício desses direitos civis, em função de


reivindicações ligadas exatamente ao exercício e à prática dessa
dimensão civil da cidadania que chegaremos a uma segunda dimen-
são da cidadania que é aquilo que podemos chamar de dimensão
político-democrática. Esta segunda dimensão cobre, de maneira
geral, um outro período histórico: o século XIX. Ela liga-se ao exer-
cício de outros tipos de direito (o direito de todos em participar na
formação político-jurídica de nosso destino enquanto comunidade
de cidadãos", portanto direitos à participação política cujo tipo mais
emblemático é o direito de voto e de elegibilidade) que são vincula-
dos a um outro locus específico da especialização funcional do
Estàdo: o Parlamento. Este conjunto organiza-se e estrutura-se no
modelo de Estado próprio ao século XIX que é o Estado (ao me-
nos formalmente) democrático.

Em seguida, ainda em função do exercício desses direitos,


portanto, em função de reivindicações possibilitadas pelo exercício
e a prática da dimensão político-democrática da cidadania super-
posta a sua dimensão civil, chegamos a uma terceira dimensão da
cidadania que pode ser chamada de social. Esta última cobre um
outro período histórico correspondente ao século XX. Ela liga-se,
por sua vez, ao exercício de outros tipos de direito (grosso modo

4 Para maiores detalhes sobre a noção de comunidade de cidadãos associada à idéia


moderna de nação nos remetemos ao trabalho de SCHNAPPER, Dominique. La
communauté des citoyens: sur l'idée moderne de nation. Paris: Gallimard, 1994.

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A Cidadania no Brasil: Características, Entraves e Expectativas

os direitos sociais: direito à educação, direito à saúde etc.) que são


relacionados ainda a um outro locus de especialização funcional da
estrutura estatal que é o conjunto daquilo que conhecemos como
Previdência Social. Este quadro estrutura-se num modelo próprio
de Estado do século XX: O Estado Social, Welfare State ou État-
Providence.
Existem características, traços e pistas desse modelo de
Marshall sucintamente desenvolvido que gostaríamos de reter aqui.
Primeiramente, Marshall fez um estudo da cidadania que, de um
certo modo, vincula a análise dos direitos a um processo histórico de
- '\
construção. Com efeito, a cidadania foi durante'muito tempo analisa-
da quase que exclusivamente pelos juristas que tinham uma visão
voltada para seus aspectos estatuários. A cidadania era vista como.
um conjunto de direitos que se caracterizavam como um subconjunto
da nacionalidades. Desse modo, as análises limitavam-se a um estu-
do de direitos vistos a partir do ponto de vista formal. Não é por
acaso que já vemos, no século XIX, a forte crítica de Marx" sobre a
oposição entre cidadão abstrato e homem concreto. Portanto, Mar-
shall teve esse mérito: desenvolver um quadro de análise da cidada-
niainserido num processo histórico de construção.
Dessa maneira, a cidadania não é somente ligada à existência
formal de direitos, mas, para além desta, existe uma dinâmica histó-
rica dada pelo fato que nós exercemos conjuntamente esses direi-
tos. Para efeito do nosso raciocínio, não adquire importância a di-
crença entre direitos individuais e coletivos. O exercício em con-

~ Esta visão jurídica a partir do direito positivo francês pode ser encontrada, por
exemplo, no estudo de BORELLA, François. Nationalité et citoyenneté en droit
français. In: COLAS, Dominique (Dir.), L'État de Droit, Pairs: PUF, 1987.
~, Karl, A propos de Ia questionjuive. Paris: Aubier-Montaigne, 1971.

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Joaquim Leonel de Rezende Alvim

j Ui.iLU pode estar presente na prática de ambos. Isso significa dizer


que quando exercemos um direito individual (liberdade de expres-
são, uso da propriedade privada etc.) reconhecemos no outro um
(formalmente) igual na medida em que ele também exerce tais direi-
tos. Isso significa dizer que, mesmo nos direitos individuais, esta-
mos praticando e exercendo tais direitos ao mesmo tempo que o
outro ou.de um certo ponto de vista, conjuntamente com o outro.
Nós (o conjunto de cidadãos) temos direitos passíveis de apropri-
ação individual, portanto os exercemos (tais direitos) conjuntamen-
te. Tal raciocínio vale também para os direitos coletivos. A pers-
pectiva de análise volta-se, portanto, para a prática do direito e,
feste sentido, encontramos um quadro identitário. Tal quadro vin-
éula-se à identificação ao Estado-nação e a uma comunidade naci-
I -
onal na medida em que um vínculo de pertencimento 7 emerge a
I
partir do exercício desses direitos.

Por ouJo\lado, na medida em que temos um certo percurso


evolutivo na an~se de Marshall, ou seja, um esquema mais simples
1
e menos perfeito caminhando em direção a um esquema mais com-
plexo e mais aperfeiçoado, e este percurso começa por uma di-
mensão de proteção das liberdades individuais (valorizando, por-
tanto, um domínio privado) e acaba em uma dimensão coletiva (com

7 Para maiores detalhes sobre o sentimento de pertencimento vinculado à noção de


cidadania, remetemo-nos aos nossos estudos: ALVIM, Joaquim Leonel de Rezende.
Reorganização de direitos e espaços públicos: o modelo da cidadania européia
como possibilidade de ampliação da cidadania no contexto da globalização. ln:
ALVES, José Augusto Lindgreen; TEUBNER, Gunther; ALVIM, Joaquim Leonel
de Rezende e RÜDlGER, Dorothee Susanne. Direito e cidadania na pós-
modernidade. Piracicaba: Unirnep, 2002 e ALVIM, Joaquim Leonel de Rezende.
Cidadania(s), identidade(s) e integração social: reflexões sobre os modelos
contratualista, naturalista e comunitarista da cidadania. ln: JEAMMAUD, Antoine;
FRAGALE, Roberto eALVIM, Joaquim Leonel de Rezende. Trabalho, cidadania
& magistratura. Rio de Janeiro: Trabalhistas, 2000.

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A Cidadania no Brasil: Características, Entraves e Expectativas

efeito: a dimensão social), podemos sustentar que encontramos no


esquema marshalliano aspectos valorizando o bem coletivo. Neste
sentido, dimensões da cidadania que incorporem o interesse coleti-
vo seriam mais perfeitas e melhores que aquelas limitadas ao inte-
resse individual.

Com relação às observações feitas sobre as características


do modelo marshalliano da cidadania, podemos aqui resumir três
traços de interesse. Primeiro: relação da existência, mas, sobretu-
do, do exercício de direitos vinculados à noção da cidadania. Se-
gundo: o aspecto identitário do pertencimento ligado à cidadania.
Terceiro: o aspecto que podemos qualificar de republicanismo cívi-
co valorizando o interesse ou bem coletivo vinculado à cidadania.

Como observamos anteriormente, estas características fo-


ram objeto de críticas que serão aqui sistematizadas, com o objeti-
o de servir como pista de análise para a compreensão do quadro
estrutural da cidadania no Brasil, com suas particularidades e espe-
cificidades relacionadas ao modelo de Marshall. Quais são essas
criticas?

Primeiramente, não obstante o fato de Marshall ter proposto


a análise de um quadro concreto de desenvolvimento da cidadania,
a saber, a história da cidadania na Inglaterra, sua análise foi usada
orno modelo universal de compreensão da cidadania exatamente
em função de um encadeamento de dimensões que não é somente
onológico no sentido da observação empírica, mas se exprime
também de uma maneira lógica. Isso significa dizer que é pelo fato
exercermos uma determinada dimensão da cidadania que temos
ogicamente a condição de aceder a uma outra e assim sucessiva-
mente.

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Dessa forma, seu modelo de encadeamento de aspectos ci-
vis, políticos e sociais, fazendo um percurso evolutivo da cidadania,
pode ser considerado mais ou menos válido para a história da In-
glaterra e dos Estados Unidos. Entretanto, ele não funciona para
compreender, por exemplo, a história da Alemanha, na qual os di-
reitos sociais, com as leis bismarckianas que visavam incorporar o
proletariado ao Estado alemão de unificação tardia, antecederam
aos direitos políticos". Encontramos também uma crítica feita por
Pierre Rosanvallon", que mostra que o esquema marshalliano é ex-
cessivamente institucional e não consegue dar conta da existência
de princípios já adquiridos em certos períodos históricos. Se esta-
mos atentos aos princípios e a uma certa visibilidade das idéias
políticas, a perspectiva de Marshall não seria válida para fins de
compreensão geral da história da cidadania na França. Veremos,
mais tarde, que ela também não é globalmente válida para fins de
compreensão da história da cidadania no Brasil.
Ainda dentro de uma perspectiva crítica, podemos observar
também que o encadeamento de dimensões da cidadania supõe a
construção de um bloco monolítico que é a finalização perfeita e
acabada de imbricações dessas dimensões. Podemos tirar daqui
duas conseqüências. Primeiramente, as possíveis idas e vindas, os
possíveis golpes, os possíveis retrocessos, os possíveis recuos das
dimensões e dos seus respectivos direitos são dificilmente pensa-
dos a partir do modelo marshalliano. Em seguida, essas mesmas
imbricações de dimensões da cidadania, na medida em que for-

8 Para maiores detalhes, remetemo-nos ao artigo de HASSENTEUFEL, Patrick.


L'État-Providence ou les métamorphoses de Ia citoyenneté. In: Revue L' Année
Sociologique. Vol. 46/96. Paris: PUF, 1996.
ROSANVALLON, Pierre. Le sacre du citoyen: histoire du suffrage univesel en
France. Paris: Gallimard, 1992.

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A Cidadania no Brasil: Características, Entraves e Expectativas

mam um bloco monolítico, nunca estão vinculadas a qualquer tipo


de contradição no exercício de tipos diferenciados de direitos. Fica,
portanto, a pergunta: entre o exercício cada vez mais aprofundado
de direitos ligados a um sistema jurídico liberal (direitos civis ou
direitos-liberdades ligados à proteção do Estado) e o exercício cada
vez mais aprofundado de direitos ligados a um sistema de presta-
ção (portanto de ação) do Estado social existe somente uma rela-
ção harmoniosa e não contraditória de dimensões da cidadania ou
existem algumas (ou mesmo várias) contradições? 10

Da mesma forma como fizemos com as características do


modelo marshalliano da cidadania, podemos aqui resumir três tra-

10 Os possíveis problemas na relação entre estes dois sistemas de direitos próprios


ao Estado liberal e ao Estado social são abordados por José Eduardo Faria:
"Elaborados historicamente a partir da discussão e reformulação dos conceitos
jurídicos e categorias normativas surgidos nas áreas do direito do trabalho, dos
acidentes do trabalho e da seguridade social (especialmente no âmbito da
responsabilidade civil), para depois se estenderem a outros ramos do direito
moderno (como o direito ambienta!, o direito das obrigações, o direito do consumidor
e até mesmo o direito administrativo), os direitos sociais agregam ao Estado de
Direito um considerável aumento de complexidade; enquanto o sistema legal de
garantias liberais era altamente seletivo e impermeável a conteúdos materiais, o
modelo jurídico de caráter social do Estado Providência é compensatório de déficits
e desvantagens que o próprio ordenamento provoca; os direitos sociais lidam,
assim, com uma seletividade inclusiva. Ao contrário da maioria dos direitos
individuais e dos direitos fundamentais desenvolvidos com base no positivismo
normativista, cuja eficácia exige apenas que o Estado jamais permita sua violação,
os 'direitos sociais' não podem simplesmente ser 'atribuídos' aos cidadãos, eles
requerem do Estado um amplo e complexo rol de programas de ação e de políticas
públicas dirigidas a segmentos específicos da sociedade - políticas essas cujo
objetivo é fundamentar esses direitos e atender às expectativas por eles geradas
com sua positivação, Os novos códigos baseados nessa perspectiva 'social' não se
limitam, dessa maneira, a estabelecer e/ou delegar competências, a fixar obrigações
e/ou enunciar princípios - função tradicional dos institutos jurídicos do Estado
liberal clássico. Oriundos de fontes materiais diversas, muitas vezes conflitantes
entre si, e editados em tempos distintos, tutelando interesses que nem sempre são
combináveis e conciliáveis, esses códigos se destacam por exigir tratamentos
diferenciados em favor de determinados segmentos sociais, suscitando problemas
inéditos para os operadores do direito". FARIA, José Eduardo. Os novos desafios
da justiça do trabalho. São Paulo: Ltr, 1995.

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Joaquim Leonel de Rezende Alvim

ços das críticas endereçadas ao referido modelo que também são


interessantes para nosso trabalho. Primeiro: as críticas relacionadas
aos aspectos lógicos, no sentido de que estes oferecem as condi-
ções de possibilidade de construção de um modelo universal. Se-
gundo: as críticas relacionadas aos encadeamentos e imbricações
de dimensões fundadoras de um bloco monolítico que dificulta a
incorporação de análises relacionadas às idas/vindas e retrocessos
de direitos. Terceiro: a dificuldade de pensar a noção de contradi-
ção no exercício de tipos de direitos diferenciados.

Para entendermos o quadro estrutural da cidadania no Brasil


estaremos inicialmente aqui dialogando com os três traços que re-
temos do modelo marshalliano: relação da existência, mas, sobre-
tudo, do exercício de direitos vinculados à noção da cidadania, o
exercício da cidadania vinculado ao sentimento de pertencirnento a
uma comunidade nacional e o exercício da cidadania vinculado a
idéia de participação no bem coletivo (republicanismo cívico).

2 As especificidades da cidadania no Brasil

Estaremos nos utilizando aqui de dados de uma pesquisa ci-


tados por José Murilo de Carvalho em uma palestra posteriormen-
te publicada sob a forma de artigo. II Esta pesquisa promovida pelo
CPDOC e pelo ISER tinha a intenção de verificar em que medida
os moradores da região metropolitana do Rio de Janeiro tinham
conhecimento de seus direitos, em que medida eles estavam en-

11 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania, estadania, consumismo: os impasses da


democracia. In: FRIDMAN, Luís Carlos (Org.). Política e cultura: século XXI.
Rio de Janeiro: Relume Dumará & ALERJ, 2002.

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A Cidadania na Brasil: Características, Entraves e Expectativas

gajados em atividades civis e políticas e em que medida eles se


sentiam parte de uma comunidade nacional. 12

Naquilo que diz respeito ao conhecimento de direitos, 58% .


dos moradores não foram capazes de citar ao menos um direito
constitucional dos brasileiros. Aqueles que citaram um ou alguns
direitos estão divididos nos seguintes percentuais: 26% citaram di-
reitos sociais, 12% citaram os direitos civis e 2% os direitos políti-
I3
COS . Faz-se importante lembrar que no Brasil o voto (como vi- .
mos anteriormente, o tipo de direito mais emblemático dos direitos
políticos) é obrigatório. Portanto, ele muito mais facilmente é visto
como uma obrigação e não como um direito.
Nós citamos tais dados somente para ilustrar que, exatamen-
te em função do não conhecimento acompanhado do não exercício
desses direitos tidos como clássicos da cidadania, vamos ter uma
certa dificuldade da parte das Ciências Humanas e Sociais no Bra-
sil em pensar a noção de cidadania associada à expressão de uma
mobilização de indivíduos e grupos visando uma organização polí-
tica e uma reivindicação de direitos. Portanto, a idéia de existência
de direitos e o exercício desses direitos ligados à noção de cidada-
nia, vínculo este que é um dos traços característicos (como vimos
anteriormente) do modelo marshalliano, não se faz evidente na his-
tória brasileira.

É exatamente em função dessa dificuldade que vamos en-


contrar algumas variações conceituais e teóricas da parte das Ciên-
cias Humanas e Sociais no Brasil visando uma melhor compreen-
ão da cidadania no nosso contexto. Podemos nos remeter, a título
de exemplo, a duas dessas variações. A primeira diz respeito ao

12 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania, estadania , p. 26.


13 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania, estadania , p. 26.

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Joaquim Leonel de Rezende Alvim

conceito de cidadania regulada desenvolvido por Wanderley Gui-


lherme dos Santos". Este último procura mostrar que somos "mais"
cidadãos quando estamos mais próximos do mundo formal do tra-
balho simbolizado pela Carteira de Trabalho e, contrariamente,
quanto mais afastados estivermos desse mundo formal do trabalho,
menos somos cidadãos. Dessa forma, a regulação da cidadania se
faz via estratificação profissional, na medida em que, para além de
uma cidadania com base na nossa condição de nacional simboliza-
da em uma carteira de identidade, temos uma aproximação/afasta-
mento da cidadania em função de uma carteira de trabalho. 15

A segunda variação diz respeito ao conceito de estadania de-


senvolvido por José Murilo de Carvalho!", visando mostrar que, em
função da dificuldade de incorporação e/ou reconhecimento concre-
to de direitos civis, políticos e sociais na ordem jurídica brasileira,
vamos encontrar uma estratégia própria dos movimentos sociais que
é a busca da aproximação do Estado. Neste sentido, muito mais do
que organizar interesses e reivindicar direitos em direção do Estado,
mas com a sua ação no âmbito de uma sociedade civil, os grupos
sociais buscaram, grosso modo, uma estratégia de organização, par-

14 SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e justiça: a política social na


ordem brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 1979.
15 Para maiores detalhes sobre a relação entre cidadania e formalidade/informalidade
do mercado de trabalho remetemo-nos ao nosso estudo FRAGALE, Roberto e
ALVlM, Joaquim Leonel de Rezende. Trabalho informal e cidadania: uma
proporcionalidade necessariamente inversa? ln: JEAMMAUD, Antoine;
FRAGALE, Roberto eALVIM, Joaquim Leonel de Rezende. Trabalho, cidadania
& magistratura. Rio de Janeiro: Trabalhistas, 2000. ° desenvolvimento de
aspectos mais simbólicos de identificação à Carteira do Trabalho pode ser
encontrado no estudo de FRENCH, John. Afogados em leis: a CLT e a Cultura
Política dos Trabalhadores Brasileiros. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001.
16 CARVALHO, José Murilo de. Os bestialisados. São Paulo: Cia. Das Letras,
1999 e CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

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A Cidadania no Brasil: Características, Ent~es e Expectativas

ticipação e reivindicação de direitos pelo interior do Estado. Existe.,


portanto, uma tradição estatal forte na história brasileira.
Isso não quer dizer que não existe uma história de reivindica-
ções e de lutas de movimentos sociais no Brasil;da mesma forma
como isso não quer dizer que não existe uma história do uso social
das regras jurídicas pelos próprios atores sociais, ou seja, uma histó-
ria de mobilização das normas jurídicas por esses atores. Entretanto,
mesmo dentro dessa história, temos que dar conta dá maneira como
ela tece relações com a presença de um Estado com um papel tutelar
extremamente forte na formação da sociedade brasileira. 17

Dessa forma, justifica-se uma certa imagem do Estado como


aquele que dá direitos. Nesse contexto, não surpreende que a di-
mensão social e os direitos sociais da cidadania sejam os direitos
,
mais citados como direitos dos brasileiros 18. Tal fenômeno explica-
se pelo fato de eles serem o tipo de direito que se definem e imbri- . "

cam melhor a uma postura patemalista do Estado que dá direitos


como também pelo fato de eles aparecerem quase que em primeiro
lugar no âmbito da construção de uma cidadania no Brasil19, antes
mesmo dos direitos civis e políticos. Com efeito, a história da cida-
dania no Brasil é muito mais próxima de um percurso com idas e
vindas, com avanços e recuos, do que de uma trajetória linear e
etapista de construção de direitos. Vários exemplos poderiam ser

I, Para um aprofundamento desse papel tutelar nos remetemos ao estudo de


FRAGALE, Roberto. A aventura política positivista: um projeto republicano
de tutela. São Paulo: LTr, 1998.
I Lembramos que, a partir dos dados expostos anteriormente, dentre aqueles que
citaram um ou alguns direitos dos brasileiros encontramos os seguintes percentuais:
26% citaram direitos sociais, 12% citaram os direitos civis e 2% os direitos
políticos.
19 Ver o citado trabalho de CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil .•.

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Joaquim Leonel de R!"zende Alvim

aqui dados de períodos com supressão de direitos após períodos


!
de exercício de direitos.ê?
.Estes dados, que explicam uma vida política extremamente
centrada na ação do Estado, podem também explicar um certo
vazio em termos de republicanismo cívico, com a valorização do
bem público corno 'Um bem de todos. O processo de independên-
cia do Brasil, em 1822, não é ligado a um movimento popular. A
proclamação da República em 1899 também não. O Estado é visto
freqüentemente como uma prolongação do interesse privado. Não
"temosúma imagem e uma representação do Estado como constru-
.9ãID pú~lica, A coisa pública (respublica) no Brasil é muitas vezes
viÜa como algo passível de apropriação individual para fms de uso
rarticular.
Conclusao

Tudo isso pode explicar também um certo vazio em termos


de identidade ou de sentimento de pertencimento a uma comunida-
de nacional enquanto comunidade política. A memória coletiva po-
pular é pouco presente naquilo que diz respeito à participação po-
lítica e à ação política. Podemos, a título ilustrativo, citar dois exem-
plos. Tivemos nas décadas de 80/90 do século XX uma grande
participação popular em dois eventos significativos dahistória bra-
sileira: a mobilização pelas eleições diretas em nível presidencial e a
mobilização pelo impeachment do então presidente Femando
Collor de Mello. Não obstante a forte participação popular nesses

20 Por exemplo, naquilo que toca a história do direito do voto, remetemo-nos ao


estudo de NICOLAU, Jairo. História do voto no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar,2002.

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A Cidadania no Brasil: Características, Entraves e Expectativas

dois eventos, os mesmos não aparecem na referida pesquisa citada


por José Murilo de Carvalho-I como motivo de orgulho nacional.
Os motivos desse orgulho são outros: esporte, música etc. Isso
significa dizer que o nosso sentimento de pertencimento se constrói
com referências outras que não propriamente políticas no sentido
estrito. Isso significa dizer que, não obstante uma ativação da cida-
dania em determinados períodos históricos, esta ação não cria um
sentimento de pertencimento a uma comunidade nacional. Desta
forma, esta última não se reconhece enquanto comunidade política
que participa e age no sentido de construir o seu próprio destino, o
seu próprio percurso e a sua própria história.

REFERÊNCIAS

ALVIM, Joaquim Leonel de Rezende. Cidadania (s), identidade


(s) e integração social: reflexões sobre os modelos contratualista,
naturalista e comunitarista da cidadania. In: JEAMMA UD, Antoi-
ne; FRAGALE, Roberto eALVIM, Joaquim Leonel de Rezende.
Trabalho, cidadania & magistratura. Rio de Janeiro: Trabalhis-
tas, 2000.

__ o Citoyenneté européenne: contribution à l' étude d'un lien


polycentrique. Lille, France: Septentrion, 1999.

__ Reorganização de direitos e espaços públicos: o modelo da


o

cidadania européia como possibilidade de ampliação da cidadania


no contexto da globalização. In: AL VES, José Augusto Lindgreen;
TEUBNER, Gunther; ALVIM, Joaquim Leonel de Rezende e
RÜDIGER, Dorothee Susanne. Direito e cidadania na pós-mo-
dernidade. Piracicaba: Unimep, 2002.
BADIE, Bertrand et BIRNBAUM, Pierre. Sociologie de l'Etat.
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