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O Capitalismo é Individualista?

“O capitalismo é individualista, o socialismo é coletivista.” Essa


frase é dita frequentemente, tanto por defensores do
capitalismo, tanto por pessoas não alinhadas a alguma ideologia
política específica, e até mesmo por alguns defensores do
socialismo. Liberais e conservadores também acusam socialistas
de, ao defender um sistema “coletivista”, defender uma “tirania”
do coletivo sobre o indivíduo.

Se “individualismo” for definido como “egoísmo”, ou indiferença


em relação ao social, pode-se então dizer que o capitalismo é, de
fato, individualista. Se “coletivismo” for definido como algo que
se preocupa com o bem coletivo, então o socialismo seria, de
fato, coletivista. Porém, ao se fazer uma análise mais detalhada,
indo além de conceitos superficiais ou equivocados do
individualismo, a linha entre “individualismo” e “coletivismo”
no socialismo se torna turva, e pode-se perceber que o
socialismo é mais individualista que o capitalismo, e pode-se ver
o capitalismo como sendo, na verdade, um sistema anti-
individualista.

Individualismo como defesa dos direitos/liberdades


individuais

Encontrou-se, em boa política, o segredo de fazer


morrer de fome aqueles que, cultivando a terra,
fazem viver os outros. — Voltaire

Uma primeira definição de individualismo pode ser a de


individualismo como defesa dos direitos e liberdades
individuais.

Muito do discurso pró-capitalista se baseia no que seria a


“liberdade individual” ou “direito natural” à propriedade
privada. Mas, enquanto a propriedade pessoal é realmente um
direito de todo indivíduo, a propriedade privada implica na
restrição das liberdades individuais da maioria da população. A
diferença entre estas duas formas de propriedade pode ser
vista nesse texto.

No capitalismo, há invariavelmente a separação entre aqueles


que possuem a propriedade privada (plantações, fábricas,
escritórios; ou seja, os meios de produção) e aqueles que não a
possuem. Como os meios de produção são essenciais à
sobrevivência, a única opção restante é vender sua força de
trabalho àqueles que possuem a propriedade. Mas o trabalhador
não possui qualquer liberdade individual no local de trabalho.
Todas as regras e decisões são definidas pelo proprietário, ou
por um restrito grupo administrativo no topo da hierarquia
empresarial, sem qualquer envolvimento daqueles que
permitem que a empresa exista em primeiro lugar, os
empregados, pois, como nota Mikhail Bakunin em O Sitema
Capitalista: “O Capital nada é se não for fertilizado pelo
trabalho”. Coloquemos um grupos administrativo em uma
fábrica vazia, e vejamos quanta riqueza gerarão.

É usado pelos defensores do capitalismo o argumento de que,


caso o trabalhador não queira acatar as ordens impostas pelo(s)
proprietário(s) da empresa, ele simplesmente pode deixar a
empresa. Mas deixar seu emprego significa não ter garantia
nenhuma de que irá conseguir outro, e ser privado de seus meios
de sobrevivência. E, mesmo que o indivíduo encontre outro
emprego em outro local, ele será organizado da mesma forma,
com uma hierarquia restrita impondo ordens de cima para
baixo. Dessa forma, a única opção restante é: obedecer as ordens
dos proprietários, ou sofrer por não ter como sobreviver. Como
exatamente um sistema assim preza pelas liberdades
individuais?

É também dito que a propriedade e o poder hierárquico seriam


um “direito” dos capitalistas, por eles terem “investido” e “se
esforçado” para ter a propriedade. Esse argumento cai por terra
já com a constatação de que muito da propriedade e riqueza é
conseguida através de herança, ou então de práticas como a
especulação financeira, algo que passa bem longe da definição
de “trabalho duro”. E, mesmo que alguém vá assumir certo grau
de risco pessoal para exercer poder sobre outros, isso não
justifica o poder. O proprietário pode ter investido seu dinheiro
para conseguir a propriedade, mas isso não altera o fato de os
trabalhadores serem o motor primordial da empresa, que não
existiria se não fosse pelo seu trabalho.

É curiosamente irônico o fato de liberais dizerem que um


sistema com a intervenção ou o planejamento central do Estado
sobre a economia seria uma “tirania” sobre os indivíduos e
infringiria a “liberdade econômica”, mas defendem um sistema
em que as decisões nos locais de trabalho são tomadas
centralmente por um proprietário (ou um pequeno grupo de
proprietários) e impostas sobre todos os outros indivíduos que
compõem aquela empresa. Muitos também exaltam a existência
de um sistema (aparentemente) democrático politicamente, mas
defendem um sistema autoritário nos locais de trabalho.

O socialismo libertário, ao eliminar a propriedade privada sobre


os meios de produção e substituí-la pela autogestão, isto é, a
gestão democrática dos locais de trabalho por aqueles que os
utilizam, fará com que as liberdades individuais sejam
devidamente respeitadas na esfera econômica.

É dito que essa gestão coletiva irá gerar uma “tirania do coletivo
sobre o indivíduo”, onde os 51% dominantes vencerão os outros
49% por pura força da maioria. Bem, mesmo um sistema assim
seria imensamente mais preferível do que o atual sistema, onde
uma minoria hierárquica impõe sua vontade à maioria, mas,
como o youtuber Libertarian Socialist Rants demonstra nesse
vídeo, a democracia direta anarquista é um processo de busca do
maior consenso possível, ao invés de uma simples vitória da
maioria dos votos.

Há também os direitos individuais. Os (neo)liberais se


vangloriam afirmando serem os herdeiros da tradição liberal
iluminista, o chamado liberalismo clássico, mas traem
totalmente os ideais fundadores desta escola de pensamento.

Um dos preceitos mais básicos do iluminismo era o de que os


seres humanos possuem direitos inalienáveis, os chamados
direitos naturais, que deveriam ser garantidos pela sociedade.
Mas, enquanto os liberais atuais prezam incessantemente pelo
direito à propriedade privada, esquecem, e ativamente
desprezam, todos os outros.

Foi na Revolução Francesa, inspirada diretamente pelos ideais


iluministas, que se formulou a ideia de que deveria existir uma
educação gratuita e universal para todos os indivíduos. Mas,
traindo esse princípio, os defensores do capitalismo apoiam
governos que sucateiam não só a educação, mas todo o setor de
serviços públicos, para então depois defenderem a privatização
destes serviços com o argumento de que o Estado seria
“ineficiente” e não conseguiria provê-los.

Mas não só no direito à educação, mas toda vez que vemos os


ditos liberais tentarem justificar o fato de milhões de seres
humanos viverem em condições miseráveis, estamos vendo-os
desprezar explicitamente as liberdades individuais. Ao tentar
justificar o fato de grande parte da população não possuir acesso
a direitos básicos como saúde, moradia de qualidade,
alimentação de qualidade, informação, um trabalho que traga
satisfação pessoal e outras necessidades básicas de todo ser
humano com desculpas patéticas e cínicas como “eles podem
subir socialmente se trabalharem duro”, estamos vendo os que
se auto-denominam defensores do individualismo negando as
liberdades que eles dizem defender a vários e vários indivíduos.

Para o (neo)liberalismo, o “libertarianismo”, e outras vertentes


de direita, todas as liberdades são negativas. Isto é, todas se
baseiam em uma simples não intervenção da sociedade sobre o
indivíduo. Dizer que você possui o Direito à Vida em termos de
liberdades negativas, por exemplo, quer dizer que você tem o
direito de “não ser morto”. Ter um direito à vida seria
simplesmente ter o direito de outros não interferirem em sua
vida (nesse caso, não tirarem sua vida). A questão é: as
liberdades negativas são uma condição necessária, mas não
suficiente para a realização das liberdades individuais. Alguém
que seja deixado para viver em condições miseráveis, mal
conseguindo sobreviver, em termos negativos, não está tendo
seu direito à vida violado. Mas está muito claro que isso é uma
violação do direito à vida.

Para a realização das liberdades individuais, é necessários que


sejam também garantidas as liberdades positivas, ou seja, que os
indivíduos possuam as condições para a plena realização desses
direitos e liberdades. Assim, afirmar que alguém possui o Direito
à Vida é também afirmar que possui o direito a ter as condições
necessárias a sua vida (água, alimentação, moradia etc.)
asseguradas. Mas somente o necessário para a sobrevivência não
realiza plenamente o direito à Vida. É necessário assegurar
também aquilo que é essencial a uma vida humana: Educação,
saúde, informação, e um ambiente social em que a comunidade
respeite o indivíduo, e o indivíduo respeite a comunidade.
Somente em um ambiente social assim os seres humanos podem
gozar plenamente de seus direitos, direitos esses que são
ativamente desprezados no sistema capitalista.

E se o indivíduo possui seus direitos mais básicos negados, falar


de todos os outros direitos individuais se torna inútil. Os direitos
só podem ser exercidos plenamente quando os direitos mais
básicos, como a saúde e a moradia, estão sendo respeitados e
garantidos. Sem eles, direitos como a “liberdade de expressão”
se tornam fúteis. Como alguém que está morrendo de fome na
rua pode exercer seu direito de “liberdade de expressão”? O que
os liberais e outros defensores “individualistas” do capitalismo
não percebem é que todos os direitos individuais estão
interligados, o desrespeito a um envolve o desrespeito ao outro.
Ninguém pode ter o direito à vida sem ter o direito à saúde, nem
ter o direito à saúde sem o direito à alimentação, etc. E eles
também estão ligados à sociedade. O indivíduo não existe em
um vácuo alheio à sociedade. Os direitos individuais só podem
ser respeitados se a organização social permitir isso.

Ao afirmar com toda convicção o “direito natural” à propriedade


privada (para uma minoria da população), mas dispensar todos
os outros, os defensores do capitalismo mostram que sua defesa
da propriedade está mais próxima da defesa feudalista do
“direito divino” do poder dos reis do que do humanismo
iluminista.

Individualismo como livre expressão do indivíduo

“Ser você mesmo em um mundo que está


constantemente tentando fazer de você outra coisa
é a maior realização.” — Ralph Waldo Emerson

“Falando de maneira geral, você é livre até seus


cinco anos de idade. Então você vai para a Escola,
e começa a ser demandado e dissolvido. Você perde
toda individualidade que tem. Se você tiver o
suficiente, você pode manter uma parte dela. Mas
a maioria das pessoas não tem o suficiente. Então
elas se tornam espectadores de game shows e
coisas do tipo.” — Charles Bukowski

Outra visão sobre o individualismo pode ser também a visão


dele como defesa da livre expressão da personalidade do
indivíduo. A liberdade de viver sua vida de acordo com suas
convicções e a liberdade de fazer-se a si mesmo, realizando todo
seu potencial individual e humano.

Imediatamente, o que se nota, é que isso é negado à grande


maioria da população. Primeiramente, os mais pobres, ao terem
suas vidas tomadas pela corrente da necessidade, uma
necessidade imposta pela sistema capitalista, que se sustenta em
suas costas e suga os frutos de seu trabalho, são privados de
darem os rumos que querem a sua vida, pois são forçados a viver
em condições de miséria, tendo de lutar para sobreviver,
enquanto algum “individualista” liberal irá dizer que, caso eles
se esforcem um pouco mais (como se todo o esforço diário em
uma rotina extenuante não possuísse valor algum), podem viver
em condições melhores.

Mas mesmo nos indivíduos da chamada “classe média” são


impostas limitações a qualquer forma verdadeira de
individualismo. Primeiro, são forçadas a obedeceram uma
hierarquia restrita e autoritária no trabalho. Todo aspecto de seu
comportamento é regulado pelas regras impostas por aqueles no
topo da hierarquia. Deve-se realizar o trabalho de uma certa
forma, porque impõem isso a você, e, caso você não obedeça,
você perde seu emprego. É uma relação baseada na violência
estrutural. Aquele que realiza o trabalho perde todo controle
individual que poderia ter sobre seu próprio trabalho, em nome
das ordens daqueles que possuem a propriedade privada. Como
era mesmo o discurso daqueles que defendem este sistema
mesmo? Ah, sim, as chamadas “liberdades individuais”. Quão
irônico. Se o indivíduo consegue manter ainda alguma liberdade
criativa sobre seu trabalho, ela é ainda limitada pela vontade
daqueles em postos mais altos na hierarquia.

Muitas vezes também o indivíduo pode buscar um trabalho pelo


qual não possui qualquer afinidade, mas que paga um salário
maior, na esperança de que esse dinheiro lhe traga alguma
forma de realização pessoal. Ou mesmo também pode ter um
emprego que se baseia simplesmente na repetição quasi-
mecânica de tarefas burocráticas. Em ambos os casos, ele fica
preso em uma rotina ensossa que o força a cumprir uma função
apenas por necessidades criadas pelo sistema econômico (como
o salário ou a burocracia interminável das firmas capitalistas. E
se você acha que o setor privado é sempre eficiente e não possui
burocracia, tente fazer qualquer operação em um banco).

E também há as duas principais forças que buscam a eliminação


da individualidade: a mídia e a Escola.

A Escola da modernidade estatal-capitalista, com seu sistema


uniformizante, que busca ensinar e testar todos os estudantes de
forma igual, independente dos talentos, aptidões e escolhas
individuais de cada um, com a assimilação passiva de conteúdos
e a mera repetição dele em provas padronizadas, é uma força
que age desde a infância da destruição da individualidade de
seus alunos. O modelo prussiano no qual as escolas modernas
são baseadas foi criado intencionalmente para o propósito de
tornar o estudante passivo e obediente às autoridades. Na
sociedade capitalista, afinal, a Educação não é vista como uma
forma de desenvolver as capacidades intelectuais e o
pensamento crítico do indivíduo (como era vista, por exemplo,
na Antiguidade Clássica e no Renascimento), mas é vista como
um mero meio para conseguir mais espaço no mercado de
trabalho capitalista. A Escola não serve ao propósito de
engrandecer e desenvolver o indivíduo, mas de transformá-lo
em uma mercadoria para ser adquirida pelos detentores da
propriedade.

No caso da mídia, a destruição da individualidade se dá através


da propaganda.

Todas as pessoas são absolutamente bombardeadas por


propagandas a cada minuto do dia, sobretudo na televisão, e
todas elas conhecidamente tentam se usar de artifícios
psicológicos para conseguir um impacto com a audiência. E as
propagandas sempre vendem uma identidade padronizada. Elas
vendem um padrão de beleza e um “corpo ideal” inatingível, e
buscam com que todos tentem se enquadrar nesse padrões. Mas
isso não se resume apenas a um controle da imagem corporal.
As propagandas não vendem simplesmente produtos. Elas
também vendem promessas de satisfação dos desejos humanos
mais básicos. Em sua mensagem geral, além do produto, as
propagandas prometem amor, amizade, realização pessoal, sexo,
felicidade, magnetismo social etc. Na propaganda, um carro não
é apenas um carro. Ele é um símbolo, uma promessa de status
social, a venda de um estilo de vida. É a promessa da expressão
de sua personalidade, de sua individualidade através dos
produtos que você compra. No capitalismo, você é o que você
compra. Mas o que você compra é um produto industrial
produzido em massa, e que busca ser vendido para o máximo de
pessoas possíveis. Assim, ele pressiona todos os indivíduos para
se enquadrarem em um padrão que ele mesmo impõe. Uma
destruição completa da individualidade.
Conclusão

“Se um homem marcha com um passo diferente de


seus companheiros, é porque ouve outro tambor.”
— Henry David Thoreau

“De que adianta ao homem ganhar o mundo


inteiro mas perder sua alma?” — Marcos 8:36

Por trás de todo o discurso ideológico daqueles que buscam


defender o capitalismo se baseando nas chamadas “liberdades
individuais”, na realidade está um discurso vazio, que reconhece
como liberdade individual apenas a propriedade privada, e que
geralmente se baseia simplesmente na defesa de um egoísmo
cego e um desprezo pelo coletivo.

Mas os defensores do socialismo, também, ao aceitarem


acriticamente o rótulo de “coletivistas”, abrem mão de mostrar
como o discurso ideológico dos pró-capitalistas é vazio, e como o
socialismo libertário seria muito mais positivo para a realização
das liberdades individuais. Essa divisão entre “individualista” e
“coletivista”, na realidade, é apenas uma criação ideológica dos
ditos liberais, que busca caracterizar o socialismo como uma
“tirania do coletivo”.

O que cabe buscar, enfim, é uma sociedade baseada na


Liberdade e na Autonomia. Autonomia pessoal, na forma das
liberdades individuais, e autonomia coletiva, na forma da
democracia. Somente assim teremos uma sociedade que preza
tento pela liberdade do indivíduo, pela igualdade, e pelo bem
coletivo, coisas que estão fortemente ligadas entre si.

E o capitalismo, certamente, não é esse sistema.

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