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OPINIÃO

Doação de bens e serviços à Administração Pública em ano


eleitoral: pode ou não?
5 de abril de 2022, 12h05

Por Renata Rocha Villela

A possibilidade de particulares fazerem doações à Administração Pública é tema que frequentemente gera
dúvidas, que se tornam ainda mais intensas em ano eleitoral, como é o caso do presente.

Os questionamentos decorrem principalmente da ausência de


normas exaurientes e aplicáveis a todas as esferas da federação.
Com efeito, a Lei de Licitações e Contratos Administrativos rege
apenas as doações de bens públicos, isto é, abrange os casos em que
a Administração Pública figura como doadora e não como
donatária. Além disso, o Decreto federal 9.764/2019, que dispõe
sobre o recebimento de doação de bens móveis e de serviços pelas
entidades da Administração Pública federal direta, autárquica e
fundacional, não é de observância obrigatória por entidades
estaduais e municipais e não abrange a doação de bens imóveis.

A despeito das dúvidas, não há vedação à realização de doações por particulares ao Estado mesmo em anos
de eleição, desde que o ato de liberalidade tenha por objetivo proporcionar benefícios à coletividade, e não a
um determinado agente público. Assim, com a finalidade de colaborar com esclarecimentos sobre o tema e
conferir maior segurança jurídica às doações, no presente artigo serão apresentadas algumas balizas a partir
da análise das normas legais vigentes sobre doações.

Inicialmente, compete esclarecer que a doação de bens e serviços à Administração Pública não se confunde
com doações de campanha a partidos, candidatos e comitês. Estas estão submetidas às previsões da Lei
federal 9.504/1997, que exige, entre outros critérios, que os valores sejam depositados em contas bancárias
específicas para a campanha (artigo 22) e que as doações estimáveis em dinheiro sejam feitas mediante
recibo (artigo 23, § 2º).

Destarte, as pessoas jurídicas não estão impossibilitadas de doar à Administração Pública, dado que tanto a
decisão emanada do Supremo Tribunal Federal na ADI 4.650, que declarou a inconstitucionalidade dos
dispositivos que permitiam as doações eleitorais por pessoas jurídicas, quanto o artigo 31, inciso II, da Lei
federal 9.096/1995, vedam apenas a participação desses entes de caráter ficcional no financiamento de
campanha.

Da mesma forma, não se aplica à Administração donatária o artigo 73, § 10 da Lei federal nº 9.504/1997, que
proíbe, no ano em que se realizar eleições, a "distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da
Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas
sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior". Como fica claro a partir da
leitura do dispositivo, veda-se a distribuição e não o recebimento de bens pela Administração no ano
eleitoral.

Logo, caso o negócio jurídico da doação tenha como beneficiária a Administração Pública (e não candidatos,
comitês e partido), será admitido mesmo em ano eleitoral, bem como terá natureza jurídica de direito privado
e reger-se-á pelo Código Civil, ainda que com derrogações parciais por normas publicísticas.

Com efeito, nos termos do artigo 538 de referido Código, "considera-se doação o contrato em que uma
pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra". Veja-se que é
indiferente ao conceito a qualificação do doador e do donatário, que podem ser pessoas físicas ou jurídicas,
de direito público ou privado.

Como assevera Pablo Stolze Gagliano, a liberalidade é a pedra de toque do contrato de doação, o qual deve
ser necessariamente um negócio jurídico gratuito e unilateral, que exige a inexistência de contrapartida ao
donatário[1].

Importa esclarecer que a gratuidade não pode ser confundida com a falta de interesse do doador. Segundo
Silvio de Salvo Venosa, "sempre haverá um interesse remoto no ato de liberalidade cujo exame, na maioria
das vezes, é despiciendo ao plano jurídico"[2]. O que não se admite é que o doador realize o ato com o
intuito de proporcionar benefícios exclusivos a si ou a um grupo específico.

Ademais, o caráter unilateral decorre do fato de que a doação cria obrigações para apenas uma das partes (o
doador), ainda que seja feita com encargo, o qual não tem caráter de obrigação, mas sim de ônus[3]. Isso não
significa que esteja dispensado o consentimento do donatário, já que a doação requer o acordo ou a
manifestação convergente das vontades das partes contratantes.

No que tange às regras específicas à doação em benefício da Administração, vale mencionar as disposições
contidas no Decreto federal 9.764/2019, ainda que aplicável apenas à esfera federal, como mencionado.

Referido decreto rege as doações com ou sem encargo à Administração Pública federal. No caso das
primeiras (doações sem encargo), seu recebimento deve ser precedido de chamamento público, disciplinado
nos arts. 7º a 15, ou de manifestação de interesse. Já as doações com encargo devem ser sempre antecedidas
de manifestação de interesse, registrada em um sistema de doação do Governo federal (denominado
"Reuse.Gov"), e podem ter por destinatário órgão ou entidade específica da Administração, segundo os arts.
16 a 19-B do Decreto.

Destaca-se, ainda, do decreto federal a previsão de que o poder público não pode receber doações nos casos
arrolados em seu artigo 23, entre os quais consta aqueles em que a doação possa caracterizar conflito de
interesse (inciso III).

O conflito de interesses citado é detalhado no artigo 16 da Instrução Normativa nº 05/2019, da Secretaria


Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, integrante do Ministério da Economia[4].
Segundo o inciso I do artigo citado, as doações geram conflitos de interesse quando visam a promoção de
candidatos, autoridades ou partidos políticos (independentemente de se tratar de ano eleitoral). Mais uma
vez, se vê que a doação em benefício do Estado, e não de autoridades específicas, não encontra vedação na
legislação federal.
A previsão de um rito para o recebimento de doações que garanta a transparência, a publicidade, a
sindicabilidade e a impugnação por qualquer pessoa física e jurídica é de extrema relevância, porque mitiga
questionamentos de que as doações ao Estado teriam caráter inoficioso e visariam a garantir contrapartidas a
favor do particular.

Ainda que o Decreto Federal e a Instrução Normativa não sejam de observância obrigatória para além da
esfera federal, servem de importantes balizas que podem ser voluntariamente seguidas por outros órgãos ou
entidades da Administração enquanto não editadas normas específicas, tudo com o objetivo de conferir maior
segurança aos potenciais doadores.

Veja-se, à guisa de exemplo, que o Estado de São Paulo se valeu das mesmas diretrizes no "Edital de
Procedimento de Manifestação de Interesse da Iniciativa Privada para Doação ao Poder Público nº 01/2021",
lançado pelo Fundo Social de São Paulo para o recebimento de doações de "bens móveis, novos ou
seminovos, em condições adequadas de uso, bem como de serviços, recursos financeiros e/ou direitos para a
realização de ações, programas ou projetos de interesse público à Administração"[5].

Não se olvida que, mesmo nos casos em que os procedimentos são devidamente seguidos, pode-se considerar
que a doação de bens ao Estado voltados à promoção de obras e serviços assistenciais à população
beneficiaria o atual mandatário (principalmente de candidato à reeleição), dada a dificuldade de se dissociar
os feitos da Administração Pública e da pessoa que ocupa o cargo público.

Há, portanto, zonas cinzentas que inegavelmente podem ser utilizadas para burlar a proibição de doações de
campanha por pessoas jurídicas, o que reforça a necessidade de os órgãos ou entidades públicas interessados
em recebê-las promoverem procedimentos transparentes, com possibilidade de ampla participação e
posterior publicação dos resultados na imprensa oficial.

Acima de tudo, essas cautelas não devem ser encaradas como desestímulo à doação por particulares,
especialmente porque elas podem ser essenciais para o enfrentamento de situações críticas (em anos
eleitorais ou não).

O exemplo mais recente da importância das doações ao Estado relaciona-se à emergência de saúde pública
decorrente da Covid-19, que justificou a promoção do chamamento público pela Secretaria de Gestão do
Ministério do Planejamento, por meio do qual diversas pessoas jurídicas doaram quantias em espécie, cestas
básicas, medicamentos e serviços para auxiliar os mais necessitados[6].

Em um período de ressignificação das relações entre entes públicos e privados, os quais, em um modelo
governança colaborativa, podem atuar em conjunto para enfrentar a complexidade da sociedade moderna, é
importante eliminar barreiras desnecessárias à promoção das doações em prol do interesse público.

Logo, ainda que não haja normas com parâmetros exaurientes, aplicáveis a todos os entes federativos e que
abranjam inclusive a doação de bens imóveis, há balizas suficientes para conferir maior segurança jurídica às
doações em geral ao Estado (o que importa principalmente em anos eleitorais), que sempre devem ser
revestidas da maior publicidade e transparência para evitar questionamentos judiciais e dos demais órgãos de
controle.

 
 
[1] GAGLIANO, Pablo Stolze. O contrato de doação. São Paulo: Saraiva, 2021.

[2] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil - Contratos - Vol. 3. São Paulo: Atlas, 2021, p. 348.

[3] As diferenças entre dever, obrigação e ônus são bem explicadas por Eros Roberto Grau no artigo “Notas
sobre a distinção entre obrigação, dever e ônus” In Revista da Faculdade de Direito da Universidade De São
Paulo, nº77, p. 177-183. Disponível em https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/66950. Acesso em
04/04/2022.

[4] Disponível on-line em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-n-5-de-12-de-agosto-de-


2019-210273508. Acesso em 04/04/2022.

[5] O edital encontra-se disponível em https://www.fundosocial.sp.gov.br/wp-


content/uploads/2021/04/edital-01-2021-procedimento-de-manifestacao-de-interesse-da-iniciativa-privada-
para_doacao-ao-poder-publico-2.pdf. Acesso em 04/04/2022.

[6] https://www.gov.br/compras/pt-br/agente-publico/orientacoes-no-combate-a-covid-19/recebimento-de-
doacoes-para-o-enfrentamento-da-pandemia. Acesso em 04/04/2022.

Renata Rocha Villela é advogada na área de regulatório e infraestrutura do escritório Tojal Renault
Advogados Associados e doutora em Direito do Estado pela USP.

Revista Consultor Jurídico, 5 de abril de 2022, 12h05

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