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Violentadas
FERRAZ, Marina
Graduanda em Segurança Pública na Faculdade de Segurança Pública da Universidade
Federal Fluminense.
RAMALHO, Rian
Graduando em Segurança Pública na Faculdade de Segurança Pública da Universidade
Federal Fluminense.
Resumo
Neste artigo buscamos refletir acerca de violências sofridas por mulheres negras que
exercem, de várias formas, o trabalho doméstico. Para tanto, embasamo-nos em três casos que
receberam grande notoriedade midiática: Mirtes Renata, Madalena Gordiano e Raiana
Ribeiro. No que diz a respeito desses casos, refletimos sobre as maneiras com que a violência
se manifesta, considerando o seu sentido polissêmico. Analisamos como a informalidade e a
precariedade institucional desmerecem econômica e socialmente a categoria profissional.
Desta maneira, apontamos como a falta de acesso a recursos legais acolhedores podem
abrandar as violências e as agressões por elas sofridas. Buscamos identificar e categorizar as
violências e suas consequências nas vidas dessas vítimas, ressaltando o processo individual
que cada uma passou para reivindicar o reconhecimento social e judicial das violências
sofridas. Portanto, neste texto identificamos como a sociedade e as Instituições Judiciárias
estão atreladas a uma perpetuação de estigmas escravocratas às prestadoras de serviços
domésticos.
Introdução
Os três casos
Em 2020, no dia 02 de junho, Mirtes Renata foi surpreendida com o seu filho, Miguel
Otávio, caído no chão do térreo do prédio onde ela prestava serviços domésticos. Ele havia
despencado do 9º andar do edifício de luxo, que fica em Recife, no Estado de Pernambuco,
enquanto Mirtes levava a cadela de sua patroa, Sarí Mariana Gaspar Corte Real, para passear.
Miguel estava há poucos minutos sob a vigilância de Sarí, juntamente com os filhos dela.
Miguel pediu para estar com sua mãe e a patroa o conduziu até o elevador. As imagens da
câmera de segurança do elevador mostram que ela permitiu que o menino utilizasse o
elevador sem qualquer supervisão, o que levou ele ao 9º andar.
Miguel chegou ainda com vida ao hospital, sendo levado pela própria Sarí em seu
carro, junto de Mirtes, já que um vizinho, médico, falou da urgência do socorro que ele
precisava, entretanto o menino não sobreviveu. A patroa chegou a ser presa em flagrante por
homicídio culposo2, mas foi solta ao pagar fiança de R$20 mil. Mirtes relata no programa
Encontro com Fátima Bernardes que “confiou o filho a ela (Sarí) e ela deixou o menino ir
para a morte” (G1, 05/06/2020b). Ocorreram diversas manifestações de apoio à Mirtes, bem
como a demanda por justiça em relação à negligência que resultou na morte de Miguel.
Muitos internautas nas redes sociais apontaram que Sarí, por ser, na época, a primeira-dama
da cidade de Tamandaré, recebeu uma abordagem mais condescendente por parte das
autoridades. Discutiremos mais profundamente como tais posições hierárquicas incidem nos
casos e julgamentos.
Existem algumas observações relativas ao contexto em que Mirtes estava trabalhando
que serão indispensáveis para a compreensão das dinâmicas de violência neste caso. Um
aspecto primordial é que Mirtes Renata estava prestando serviços domésticos em um período
no qual suas ocupações seriam dispensáveis em razão da Pandemia da Covid-19, exatamente
2
“Crime culposo II – culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência
ou imperícia. Art. 121., § 3º” (Código Penal, 2017).
porque o trabalho doméstico não é uma atividade considerada essencial, segundo a Federação
de Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), que destaca como relevantes apenas as cuidadoras
de pessoas idosas ou crianças (PINHEIRO; TOKARSKI; VASCONCELOS, 2020). Mirtes
não era babá, tampouco cuidava de algum idoso, mas precisava comparecer ao trabalho com o
seu filho, já que não havia creche em razão dos decretos de essencialidade. Aspectos do
trabalho em contexto pandêmico serão mais explorados ao longo do texto.
2. Madalena Gordiano
O “Caso Madalena” ficou conhecido no Brasil inteiro logo após uma matéria no
Fantástico, da TV Globo. No dia 27 de novembro de 2020 o Ministério Público do Trabalho,
juntamente com a Polícia Federal, resgatou Madalena Gordiano de situação análoga à
escravidão, em Patos de Minas, Minas Gerais. Os auditores, que fizeram parte do resgate,
detalharam que ela não tinha carteira assinada, salário, férias e tampouco folga semanal. O art.
149. do Código Penal Brasileiro explicita os modos que qualificam um trabalho como
condição análoga à de escravo. Condições degradantes, carga horária exaustiva ou jornadas
forçadas, vigilância ostensiva, etc. são algumas das caracterizações no código penal
relativamente à redução da condição análoga à de escravo.
Madalena passou a ser explorada em 1982, ainda quando era criança, tendo 8 anos de
idade. Seu resgate ocorreu quando ela tinha 46. Ela contou para o Fantástico que, na infância,
bateu na porta de uma casa para pedir pão, pois estava com fome. A dona da casa, Maria das
Graças Milagres Rigueira, aceitou dar o alimento apenas se Madalena fosse “morar” com ela,
quando se ofereceu para adotá-la. Com mais oito crianças para cuidar, a mãe de Madalena
permitiu que ela fosse viver com Maria das Graças. Não demorou muito para que a menina
fosse tirada da escola, “porque já ‘tava’ uma mocinha” (FANTÁSTICO, 20/12/2020). Ela
cresceu cuidando da casa e dos filhos de Maria das Graças, a mulher que, supostamente, seria
sua mãe.
Embora Maria das Graças tenha expressado que queria adotá-la, não houve um
processo de adoção formalizado, o que caracteriza um costume em certas esferas da sociedade
brasileira, de cuidar e criar os filhos de outras pessoas (PEREIRA; DE OLIVEIRA, 2016).
Entretanto, o fato de se oferecer para criar o filho de alguém não significa que exista um
sentimento de altruísmo, que é motivado pela vontade de atender às necessidades de outras
pessoas ao invés dos próprios interesses (REPPOLD; HUTZ, 2003). A exploração é um
aspecto que se manifesta em alguns casos de criação de crianças, pois
a presença de expostos em uma família poderia representar um complemento ideal
de mão-de-obra gratuita, considerada mais eficiente que a dos escravos, devido à
liberdade e aos laços de fidelidade, afeição e reconhecimento construídos na
convivência familiar (PEREIRA; DE OLIVEIRA, 2016, p. 11).
Após 24 anos de trabalho escravo, o marido de Maria das Graças passou a rejeitar
Madalena, demonstrando uma intensa irritabilidade com a sua presença. Para resolver a
situação, Madalena foi “dada”, como uma mercadoria ao filho da então patroa, Dalton César
Milagres Rigueira. O contexto de exploração só foi transferido para um novo endereço, pois
as subalternizações não cessaram. Sem contato com vizinhos, sem direitos trabalhistas e até
mesmo cidadãos. Além de ter sido descartada após 24 anos de servidão à Maria das Graças,
Madalena foi coibida a casar-se com o tio da esposa de Dalton, um ex-combatente das forças
armadas que estava doente. Ela nunca morou com ele, pois a finalidade do casamento era reter
a pensão que seria, por direito, da Madalena após a morte de seu marido.
O previsível aconteceu: o ex-combatente morreu, deixando duas pensões que somadas
passam de R$8 mil por mês (FANTÁSTICO, 20/12/2020). Inicialmente, o dinheiro era
administrado por Maria das Graças, que pagava a faculdade de Medicina de sua filha. Depois
de formada, Dalton assumiu o gerenciamento. O máximo que Madalena usufruía desse
dinheiro eram R$200 ou R$300 que recebia ocasionalmente, pois Dalton não permitia que ela
tivesse o valor integral. Mesmo que economicamente estável, já que ele era professor no
Centro Universitário de Patos de Minas, a pensão era utilizada para custear despesas
familiares que não relacionavam-se à Madalena, inclusive para pagar faculdade de medicina
de uma das filhas de Dalton.
A partir de bilhetes deixados pela própria Madalena, distribuídos pela vizinhança
pedindo alguns produtos de higiene pessoal, a auditoria do Ministério Público do Trabalho
teve conhecimento das suspeitas e foram executar o seu resgate.
3. Raiana Ribeiro
“Não dá para descrever o que eu senti, porque na hora você só sente uma angústia de
se livrar, de sair dali” (FANTÁSTICO, 05/09/2021), disse Raiana Ribeiro, de 25 anos
espancada, xingada e mantida em cárcere privado pela sua patroa em Salvador, na Bahia. A
jovem morava no litoral norte baiano, mas soube de uma vaga de emprego como babá na
capital por meio de um site e decidiu se mudar para Salvador, acertando alguns termos de
contratação com a “empregadora” por telefone. Raiana chegou ao apartamento de Melina
Esteves França, a patroa, uma semana antes de pular do terceiro andar do edifício. Na manhã
do dia 24 de agosto, seu sexto dia enquanto babá das trigêmeas, filhas de Melina, a vítima
informou que não poderia permanecer no emprego pois havia encontrado uma oportunidade
de emprego mais adequada. Após esse momento iniciam-se as agressões física, verbal e
psicológica.
Melina não aceitou o fato de Raiana ter encontrado um novo emprego, e afirmou que
ela não sairia do apartamento. A jovem pega o seu celular que estava na mesa da sala e entra
em um cômodo. Logo em seguida a patroa vai atrás dela e exige que o aparelho seja entregue.
Tudo isso é visto por uma câmera de segurança instalada na sala do imóvel que registrou cada
momento. Depois que o celular é confiscado, as agressões se iniciam. Socos, pontapés, tapas e
puxões de cabelo são ataques cometidos constantemente contra Raiana. Ela é chamada de
vagabunda e corre para o banheiro. Depois que sai, continua sendo agredida por Melina.
No dia 25, um dia após o início do espancamento, as câmeras no apartamento
continuam registrando as pancadas. Além da violência física, ela também foi privada de
alimentação, o que colaborou para o seu estado de fraqueza. Raiana apanhou tanto que acabou
desmaiando. Mesmo depois de perder a consciência por alguns instantes, a babá se levanta e
continua sendo brutalmente agredida. Malena, então, lhe tranca no banheiro. A jovem relatou
que decidiu fugir pela basculante do banheiro. “Quando eu vi aquele basculante eu não pensei
duas vezes. A intenção: eu vou sair pelo basculante e ‘pego’ na janela, só que eu não alcancei,
e eu…soltei.” (FANTÁSTICO, 05/09/2021). Com a queda, do terceiro andar, Raiana fraturou
os pés e teve alguns ferimentos pelo corpo, mas não ficou em estado grave.
Imagens de Controle
3
“É aquela em que o juiz procede à instrução do feito, ouvindo as testemunhas, as partes, os peritos, se houver,
examina os documentos apresentados pelas partes, ouve as alegações e os debates destas” (MINGHELLI;
CHISHMAN, 2013 apud NÁUFEL, 2008, p. 135).
exemplo, esse vínculo é perfeitamente notável, sobretudo porque Madalena está enquadrada
na imagem de controle da mammy, uma das principais categorias da Patricia Hill Collins. Essa
imagem diz respeito a uma “trabalhadora doméstica, escravizada ou liberta, obediente e fiel à
família branca à qual serve com amor e zelo. Frequentemente é retratada enquanto uma
mulher negra gorda, de pele retinta, que não tem um companheiro nem ao menos uma
sexualidade” (BUENO, 2020, p. 87-88).
Informalidade
Apoiados nos três casos escolhidos por nós, observamos como a informalidade está
atrelada à exploração, uma vez que as imagens de controle justificam as violências sofridas
por essas mulheres. As trabalhadoras domésticas sofrem “de um sentimento de repugnância
validado socialmente” (FREITAS, 2010, p. 200) justamente pelo caráter degradante de
algumas funções que elas são obrigadas a fazer,
que compõem o que definimos como emprego doméstico em que se faz tudo (por
exemplo: limpar o banheiro, carregar o lixo para a rua, lavar as roupas de outras
pessoas e engomá-las mais do que perfeitamente, lavar as louças e vê-las já sujas
pouco depois, etc.) (FREITAS, 2012, p. 200).
é entendida como uma posição em que sujeitos que ocupam esta posição foram
sistematicamente privilegiados no que diz respeito ao acesso a recursos materiais e
simbólicos, gerados inicialmente pelo colonialismo e pelo imperialismo, e que se
mantém e são preservados na contemporaneidade (SCHUCMAN, 2012, p. 23).
Polissemia
Cada uma das mulheres descritas neste trabalho reivindicaram, de alguma forma, a
partir de suas dores. Desafiaram e romperam com as imagens de controle imputadas a elas,
buscando o reconhecimento de suas dores e suas dignidades enquanto pessoas. Enquanto
mulheres negras, todas as condutas que colaborem para o enfrentamento a um sistema de
opressões significam atos de resistência, visto que é um sistema que opera para preservar os
privilégios da elite. Logo, as lutas enfrentadas por elas serão duras e sofridas (BUENO, 2020).
Foi necessário que elas enfrentassem não apenas os seus patrões, mas também
precisaram lidar com um Estado que regula continuamente os locais de subalternidade (DA
SILVA, GOMES, 2020). Suas lutas não se limitam à justiça e restituição daquilo que lhes foi
tirado. Elas buscam, objetiva ou espontaneamente, justiça por todas as violências sofridas no
decorrer de suas histórias, bem como representam perspectivas de libertação.
Mirtes, além de se engajar na luta pelo reconhecimento da dignidade de seu filho,
assim como a culpabilização de Sari Cortez Real, passou a estudar Direito para que pudesse
acompanhar melhor o processo. Não é como uma forma de reparação pela perda do menino
Miguel, mas mostra como ela se manteve e foi capaz de sobreviver, demonstrando a
capacidade de desafiar a forma de dominação que fora atribuída a ela, por um caminho que
questione a estrutura judiciária. Além disso, o Instituto Miguel foi criado, em colaboração
com Mirtes, a fim de promover ações sociais em periferias4.
O processo de reivindicação de Madalena se deu por ela mesma. Mesmo que
indiretamente, embora não soubesse escrever corretamente por ter o seu direito de ir à escola
roubado, os bilhetes deixados por ela nas portas dos vizinhos, solicitando objetos de higiene
pessoal ou pequenas quantias de dinheiro, desencadearam a forma pela qual ela foi liberta da
escravização. Se não fosse a partir dela, não saberíamos como a sua vida estaria. Hoje, a
ex-escravizada vive a sua liberdade como quer e, segundo ela, “tudo que eu não podia fazer
eu tô pretendendo” (UOL, 2021). Apesar do caso ainda estar em andamento judicial,
Madalena é quem controla a sua pensão atualmente e, quando perguntada sobre a retenção de
seu dinheiro por parte da família Rigueira, especialmente Dalton, ela diz que não sabia, mas
demonstra fortemente o anseio de “não sentir nada por eles” (UOL, 2021). Consideramos isso
também como uma forma de reivindicação, pois uma mulher que fora submetida a anos de
privação, tem decidido os rumos que pode seguir em sua vida.
Relativamente a Raiana Ribeiro, a jovem precisou arriscar a sua vida numa única
alternativa de escapatória do cárcere privado executado (ODARA, 2021) por sua patroa
Melina. Não romantizamos esse acontecimento como se fosse um ato de heroísmo ou
simplesmente de coragem da vítima. É preciso enfatizar que ela não visualizou alternativas
porque não existiam mais. Raiana não apenas se livrou dos ataques contínuos de Malena,
4
UFRPE cria Instituto Menino Miguel para cuidado da infância ao envelhecimento. 15 de jun de 2021.
Disponível em: http://institutomeninomiguel.ufrpe.br/?p=446. Acesso em 18 de jan de 2022
tendo também encorajado outras 12 mulheres vítimas da mesma agressora a denunciarem. “E
todo dia eu peço a Deus que ela possa pagar pelo que ela fez comigo, e o que ela fez com essa
senhorinha de 60 anos e o que ela fez com as outras, e que ela não venha a fazer isso com
mais ninguém porque ninguém merece passar pelo o que a gente passou”, (FANTÁSTICO,
05/09/2021) disse Raiana.
Salientamos que todos os processos de reivindicação pelos quais essas mulheres
passaram não foi uma luta de embate ao código penal, apesar de em alguns momentos ser
reflexo deste. Foi um enfrentamento, sobretudo, aos estigmas sociais enraizados provenientes
do racismo estrutural alinhado a uma crise capitalista que é “parte essencial dos processos de
exploração e de opressão de uma sociedade que se quer transformar" (ALMEIDA, 2021, p.
208). E, no que concerne a este aspecto, “é necessário estarmos vigilantes e atuantes para o
enfrentamento de um projeto político de país que quer manter trabalhadoras domésticas num
limbo de precariedade atribuída aos negros e, mais ainda, às mulheres negras” (TEIXEIRA,
2021, p. 225).
Essas mulheres sobreviveram a um sistema de preconceitos, onde as instituições de
regulamentação funcionam tal como um órgão de manutenção de privilégios, que não
atendem às necessidades dessa categoria. Pelo contrário, é ineficiente ao ponto de situações
como essas se desenrolarem no século XXI. Por isso, nós optamos por produzir este trabalho,
pois é preciso dialogar sobre como essas precarizações revogam, ou tentam revogar, as suas
identidades, abrandescendo violências como essas.
Reiteramos que este não é um trabalho romantizador. Não queremos fantasiar suas
histórias de repercussão embasados em uma narrativa de superação. É o completo avesso: nós
as compreendemos enquanto sujeitos vítimas de agressões, vexações, humilhações e diversos
outros modos de se fazer sofrer. Entretanto, redizemos Joice Berth (2019, p. 94): “chama a
atenção para o fato de reivindicar a identidade vitimada como ferramenta de enfrentamento às
opressões”. Assim, encerramos.
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