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Lua Nova: Revista de Cultura e Política Services on Demand

Print version ISSN 0102-6445 Journal

Lua Nova no.28-29 São Paulo Apr. 1993 SciELO Analytics

http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64451993000100016 Google Scholar H5M5 (2017)

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Universidade de Harvard

Em sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes1 Immanuel


Kant sustentou a necessidade de considerar os seres humanos
como fins em si mesmos, e não como meios para outros fins: "age
de tal maneira que uses a humanidade, tanto na sua pessoa como
na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim
e nunca simplesmente como meio". Esse princípio é importante em
muitos contextos — mesmo na análise da pobreza, do progresso e
do planejamento. Os seres humanos são os agentes, beneficiários e
juizes do progresso, mas também são, direta ou indiretamente, os
meios primários de toda produção. Esse duplo papel dos seres
humanos dá origem à confusão entre fins e meios no planejamento
e na elaboração de políticas. De fato, essa confusão pode tomar —
e freqüentemente toma — a forma de uma noção da produção e da
prosperidade como a essência do progresso, considerando-se as
pessoas como os meios pelos quais tal progresso na produção é
obtido (ao invés de considerar a vida das pessoas como a finalidade
última e tratar a produção e a prosperidade como meios, tão
somente, para atingi-la).
Com efeito, a ampla prevalência do aumento da renda real e do
crescimento econômico como critérios do desenvolvimento exitoso
pode ser, precisamente, um aspecto do erro contra o qual Kant nos
chamou a atenção. Esse problema é particularmente importante na
avaliação e no planejamento do desenvolvimento econômico. O
problema não está, é claro, no fato de a busca da prosperidade
econômica ser tipicamente considerada um objetivo central do
planejamento e do processo de formulação de políticas. Isso não é,
por si só, irrazoável. O problema refere-se ao nível no qual esse
objetivo deve ser fixado. Trata-se de um objetivo intermediário,
cuja importância subordina-se ao que favorece em última instância
a vida humana? Ou se trata do objetivo último daquele exercício? É
na aceitação, usualmente implícita, dessa última proposição que a
confusão entre fins e meios torna-se significativa e, mais que isso,
flagrante.
O problema talvez carecesse de interesse prático se a prosperidade
econômica se relacionasse estreitamente — numa correspondência
aproximada de um para um — ao enriquecimento da vida das
pessoas. Se tal fosse o caso, a busca da prosperidade econômica
como um fim em si, embora errada no plano dos princípios, seria
inseparável da busca de prosperidade como meio para o
enriquecimento da vida das pessoas. Mas aquela correspondência
estreita não se verifica. Países com altos PIBs per capita podem
apresentar índices espantosamente baixos de qualidade de vida,
como mortalidade prematura para a maioria da população, alta
morbidade evitável, alta taxa de analfabetismo e assim por diante.
Apenas para ilustrar um aspecto do problema, o quadro 1 apresenta
o PIB per capita de seis países e as respectivas esperanças de vida
no momento do nascimento.

Um país pode ser muito rico em termos econômicos convencionais


(isto é, em termos do valor das mercadorias produzidas per capita)
e, mesmo assim, ser muito pobre na qualidade de vida dos seus
habitantes. A África do Sul, que dispõe de um PIB per capita cinco
ou seis vezes maior que os do Sri Lanka ou da China, tem uma
esperança de vida muito menor, e a mesma observação aplica-se,
de maneiras diversas, ao Brasil, México, Oman e a vários outros
países não incluídos na tabela.
Há portanto duas questões diferentes aqui. Primeira: a
prosperidade econômica é apenas um dos meios para enriquecer a
vida das pessoas. É uma confusão no plano dos princípios atribuir a
ela o estatuto de objetivo a alcançar. Segunda: mesmo como um
meio, o mero aumento da riqueza econômica pode ser ineficaz na
consecução de fins realmente valiosos. Para evitar que o
planejamento do desenvolvimento e o processo de formulação de
políticas em geral sejam afetados por custosas confusões de fins e
meios, teremos de enfrentar a questão da identificação dos fins,
nos termos dos quais a eficácia dos meios possa ser
sistematicamente avaliada.
Este trabalho discute a natureza e as implicações dessa tarefa
geral.

RAÍZES CONCEITUAIS
A linha de raciocínio desenvolvida aqui baseia-se na avaliação da
mudança social em termos do enriquecimento da vida humana dela
resultante. A qualidade da vida humana, contudo, é em si mesma
uma questão muito complexa. O enfoque utilizado aqui, às vezes
denominado "enfoque da capacidade", concebe a vida humana
como um conjunto de "atividades" e de "modos de ser" que
poderemos denominar "efetivações" (functionings) — e relaciona o
julgamento sobre a qualidade da vida à avaliação da capacidade de
funcionar ou de desempenhar funções. Tentei, em outro trabalho,
explorar esse enfoque em maior detalhe, tanto conceitualmente
como em termos de suas implicações empíricas2. As raízes desse
enfoque estão em Adam Smith e Karl Marx, remontando mesmo a
Aristóteles.
Referindo-se ao problema da "distribuição política", Aristóteles
utilizou extensivamente sua análise do "bem dos seres humanos",
na qual esse bem é ligado ao exame que faz das "funções do
homem" e da "vida no sentido de atividade"3. Certamente a teoria
aristotélica é muito ambiciosa e envolve elementos que ultrapassam
essa questão particular (por exemplo: ela adota uma posição
específica com respeito à natureza humana e a ela associa uma
noção de bem — um bem objetivo). Mas o argumento no sentido de
se conceber a qualidade da vida em termos de atividades
valorizadas e da capacidade de desempenhar essas atividades tem
relevância e aplicação muito mais amplas.
Entre os autores clássicos da economia política, tanto Adam Smith
quanto Karl Marx discutem explicitamente a importância da
efetivação e a capacidade para tanto como determinantes do bem-
estar4. O enfoque de Marx relaciona-se estreitamente à análise
aristotélica (e ao que parece foi diretamente influenciado por ela)5.
Com efeito, uma parte importante do programa marxista de
reformulação dos fundamentos da economia política claramente diz
respeito à concepção do sucesso da vida humana em termos de
cumprimento das atividades humanas necessárias. Nos termos do
próprio Marx: "em lugar da riqueza e da pobreza da economia
política, veremos surgir o rico ser humano e a rica necessidade
humana. O rico ser humano é simultaneamente o ser humano que
necessita de uma totalidade de atividades vitais — o ser humano
em quem a auto-realização existe como necessidade interior"6.

MERCADORIAS E CAPACIDADE
Se se concebe a vida como um conjunto de "atividades e modos de
ser" que são valiosos, a avaliação da qualidade da vida toma a
forma de uma avaliação dessas efetivações e da capacidade de
efetuá-las. Essa avaliação não pode ser feita levando-se em conta
apenas as mercadorias ou rendimentos que auxiliam no
desempenho daquelas atividades e na aquisição daquelas
capacidades, como ocorre na aferição da qualidade de vida baseada
em mercadorias (envolvendo uma confusão de meios e fins). "A
vida dedicada a ganhar dinheiro", disse Aristóteles, "é vivida sob
compulsão, e a riqueza não é evidentemente o que buscamos, pois
a riqueza é meramente útil na consecução de outros bens"7. A
tarefa consiste em avaliar as várias efetivações na vida humana,
superando o que, num contexto diferente, embora relacionado,
Marx denominou "fetichismo da mercadoria"8. As efetivações terão,
elas próprias, de ser examinadas e a capacidade da pessoa de
realizá-las terá de ser apropriadamente avaliada.
No argumento aqui desenvolvido, os elementos constitutivos da
vida são vistos como combinações de várias diferentes efetivações.
Isso equivale a conceber a pessoa como ativa, por assim dizer, e
não passiva (embora nem os vários estados do ser e nem mesmo
as atividades devam necessariamente ser "atléticas"). Pode-se listar
desde efetivações elementares como evitar a morbidade ou a
mortalidade precoce, alimentar-se adequadamente, realizar os
movimentos usuais, etc, até muitas efetivações complexas tais
como desenvolver o auto-respeito, tomar parte da vida da
comunidade e apresentar-se em público sem se envergonhar (essa
última efetivação foi discutida de maneira esclarecedora por Adam
Smith9 como uma conquista valorizada em todas as sociedades,
embora as mercadorias necessárias para a sua consecução
variassem de uma sociedade a outra). O que se sustenta aqui é que
as efetivações são constitutivas do ser de uma pessoa, e que uma
avaliação do bem-estar de uma pessoa tem de tomar a forma de
uma avaliação daqueles elementos constitutivos.
A noção básica nesse enfoque é a de efetivações, concebidas como
elementos constitutivos da vida. Uma efetivação é uma conquista
de uma pessoa: é o que ela consegue fazer ou ser e qualquer
dessas efetivações reflete, por assim dizer, uma parte do estado
dessa pessoa. A capacidade de uma pessoa é uma noção derivada.
Ela reflete as várias combinações de efetivações (atividades e
modos de ser) que uma pessoa pode alcançar10. Isso envolve uma
certa concepção da vida como uma combinação de várias
"atividades e modos de ser". A capacidade reflete a liberdade
pessoal de escolher entre vários modos de viver. A motivação
subjacente — o foco na liberdade — é bem apreendida no
argumento marxista de que o que necessitamos é "substituir o
domínio das circunstâncias e do acaso sobre os indivíduos pelo
domínio dos indivíduos sobre o acaso e as circunstâncias"11.

CÁLCULO VERSUS PRIVAÇÃO


O enfoque da capacidade pode ser contrastado não somente com
sistemas de avaliação baseadas em mercadorias, mas também com
avaliações baseadas num critério de utilidade. A noção utilitarista
de valor, que é invocado explícita ou implicitamente na economia do
bem-estar, percebe o valor, em última análise, somente na utilidade
individual que é definida em termos de uma condição mental tal
como o prazer, a felicidade, a satisfação dos desejos. Essa
perspectiva subjetiva tem sido extensivamente utilizada, mas pode
ser enganosa, pois pode ser incapaz de refletir a real privação de
uma pessoa.
Uma pessoa indigente, levando uma vida muito pobre, poderia não
estar mal em termos de utilidade medida pelo seu estado mental,
caso se verificasse que essa pessoa aceita sua situação com
silenciosa resignação. Em situações de privação por longos
períodos, as vítimas não persistem em queixas contínuas, com
freqüência fazem grandes esforços para tirar prazer das mínimas
coisas e reduzem seus desejos pessoais a proporções muito
modestas, "realistas". A privação da pessoa pode não ser captada
por escalas de prazer, auto-realização, etc., mesmo que ela não
consiga alimentar-se adequadamente, vestir-se decentemente, ser
minimamente educada e assim por diante12.
Ademais de sua relevância no plano dos princípios, essa questão
pode ter um impacto imediato na prática das políticas públicas. A
acomodação resignada à privação continuada e à vulnerabilidade é
freqüentemente apresentada como justificável com base na
ausência de uma forte demanda pública e de um desejo
intensamente manifestado de modificar essa situação13.

AMBIGÜIDADES, PRECISÃO E RELEVÂNCIA


Há muitas ambigüidades no quadro conceituai do enfoque da
capacidade. A natureza da vida humana e o conteúdo da liberdade
humana são conceitos problemáticos. Não pretendo varrer essas
dificuldades para debaixo do tapete. Na medida em que há
genuínas ambigüidades nos objetos fundamentais de valor, elas se
refletirão em ambigüidades correspondentes na caracterização da
capacidade. A necessidade disso relaciona-se a um ponto
metodológico, que eu tentei defender em outro trabalho: o de que
se uma idéia básica apresenta uma ambigüidade essencial, uma
formulação precisa dessa idéia deve tentar captar essa ambigüidade
e não tentar desfazer-se dela14. Mesmo que a expressão precisa de
uma ambigüidade revele-se difícil, isso não pode justificar o
esquecimento da natureza complexa do conceito nem servir de
argumento para se buscar em troca uma exatidão espuriamente
estreita. Na pesquisa e mensuração sociais, sem dúvida é mais
importante ser vagamente correto do que precisamente errado15.
Convém notar também que há sempre um elemento de escolha real
na descrição das efetivações, uma vez que o formato das
"atividades" e dos "modos de ser" permite que se definam e
incluam "conquistas" adicionais. Freqüentemente as mesmas
atividades e modos de ser podem ser vistos de diferentes
perspectivas, com variadas ênfases. Da mesma forma, algumas
efetivações são fáceis de descrever, mas sem grande interesse no
contexto relevante (por exemplo, usar um certo sabão em pó na
lavagem de roupas)16. Não se pode escapar do problema da
avaliação quando se define uma classe de efetivações como
importantes e outras como não tão importantes. A avaliação não
pode ser plenamente realizada sem que se enfrentem
explicitamente questões sobre quais sejam as conquistas e
liberdades valiosas e quais não o sejam. O foco escolhido tem de
ter relação com as preocupações e valores sociais subjacentes em
termos dos quais algumas efetivações e capacidades podem ser
importantes e outras triviais e negligenciáveis. A necessidade de
selecionar e discriminar não é um estorvo nem uma dificuldade
peculiar para a conceituação da efetivação e capacidade17.
No contexto de alguns tipos de análise do bem-estar, por exemplo,
ao tratar da pobreza extrema em economias em desenvolvimento, é
possível restringir-se, em boa parte da análise, a um número
relativamente pequeno de efetivações centralmente importantes e
das capacidades correspondentes, tais como a capacidade de se
alimentar e morar bem, a capacidade de não sofrer de morbidade
evitável e de morbidade prematura e assim por diante18. Em outros
contextos, que incluem problemas mais gerais de avaliação do
desenvolvimento econômico e social, a lista será bem mais longa e
mais variada19. Tal especificação de efetivações e capacidades de
realização deve ser relacionada à sua motivação básica, bem como
levar em conta os valores sociais envolvidos.

QUALIDADE DE VIDA E NECESSIDADES


Há uma ampla literatura sobre o desenvolvimento econômico que
trata da avaliação da qualidade de vida, do atendimento das
necessidades básicas e de temas correlatos20. Essa literatura foi
muito influente nos últimos anos ao chamar a atenção para
aspectos descurados do desenvolvimento econômico e social. É
justo dizer, no entanto, que tais escritos têm sido, típica e
amplamente, ignorados na teoria econômica do bem-estar, que
tende a considerar aquelas contribuições como sugestões ad hoc.
Em parte, esse tratamento reflete a preocupação, por parte dos
teóricos do bem-estar, de que as propostas não se baseiem tão
somente na intuição, mas que sejam estruturadas e
fundamentadas. Ele reflete também o prestígio intelectual que
enfoques tradicionais como a avaliação utilitarista gozam na teoria
do bem-estar, e que bloqueia a aceitação de enfoques alternativos
mesmo quando sejam atraentes. A incapacidade de avaliações
baseadas na utilidade de lidar com a privação persistente foi
discutida anteriormente, mas na literatura da economia do bem-
estar o predomínio dessa tradição tem-se revelado muito resistente
à mudança.
A crítica dirigida à literatura sobre o desenvolvimento, segundo a
qual ela trata de situações pontuais, relaciona-se às diversas
modalidades de argumento utilizadas pela teoria do bem-estar por
um lado, e pela teoria do desenvolvimento, por outro. Do ponto de
vista da estrutura normativa, essa última tende a ser imediata,
valendo-se de fortes intuições que parecem bastante óbvias. A
teoria do bem-estar, de sua parte, tende a tomar uma via mais
indireta, com maior elaboração e sustentação dos fundamentos das
suas proposições. Para fazer a ponte entre elas, temos de comparar
e contrastar as características fundacionais da preocupação com a
qualidade de vida, com as necessidades básicas, etc. com os
fundamentos dos enfoques mais tradicionais próprios da economia
do bem-estar e da filosofia moral, entre os quais o utilitarismo. É
precisamente nesse contexto que as vantagens do enfoque da
capacidade tornaram-se mais claras. A concepção da vida humana,
como combinação de várias efetivações e capacidades de
realização, e a análise da liberdade humana, como característica
central da vida, proporcionam uma via básica diversamente
fundamentada para o exercício da avaliação. Essa fundamentação
contrasta com as bases de avaliação incorporadas aos fundamentos
mais tradicionais utilizados na economia do bem-estar21.
A literatura das "necessidades básicas" tem padecido um pouco das
incertezas a respeito de como se deve especificar essas
necessidades. As formulações originais freqüentemente tomaram a
forma de uma definição das necessidades básicas em termos das
necessidades de certas quantidades mínimas de mercadorias
essenciais como alimentos, roupas e moradias. Se a literatura
utiliza esse tipo de formulação, então ela permanece prisioneira da
avaliação centrada em mercadorias, e pode, de fato, ser acusada de
adotar uma forma de "fetichismo da mercadoria". Os objetos
dotados de valor dificilmente podem ser reduzidos à disponibilidade
de mercadorias. Mesmo considerada sob um ponto de vista
meramente instrumental, a utilidade da perspectiva das
mercadorias é severamente comprometida pela variabilidade da
conversão de mercadorias em capacidade. Por exemplo, os
requisitos de alimentação e nutrientes para a capacidade de bem
alimentar-se varia muito de pessoa a pessoa, dependendo de
características de metabolismo, tamanho do corpo, gênero,
gravidez, idade, condições climáticas, parasitoses e assim por
diante22. A avaliação da posse de mercadorias ou de rendimentos
(com os quais se pode adquirir mercadorias) pode, no máximo, ser
um substituto das coisas que realmente importam;
desafortunadamente, porém, na maioria dos casos não é um
substituto particularmente adequado23.

RAWLS, BENS PRIMÁRIOS E LIBERDADES


O foco nas mercadorias e nos meios de realização pessoal neste
trabalho contrastado ao enfoque da capacidade é também influente
na moderna filosofia moral. Na notável obra de John Rawls sobre a
justiça — que pode ser considerada a mais importante contribuição
à filosofia moral nas últimas décadas — a atenção, no que concerne
às comparações interpessoais, recai nos "bens primários" à
disposição de cada pessoa. Sua teoria da justiça, e em particular o
"princípio da diferença", depende desse procedimento para
comparações interpessoais. Em parte, esse procedimento é baseado
em mercadorias, pois a lista dos "bens primários" inclui
"rendimentos e riqueza", ademais das "liberdades básicas",
"poderes e prerrogativas de cargos e posições de responsabilidade",
as "bases sociais do auto-respeito" e assim por diante24.
Na verdade, a lista completa dos "bens primários", segundo Rawls,
refere-se a meios e não a fins; ela diz respeito a coisas que ajudam
a realizar o que queremos, e não à realização enquanto tal ou a
liberdade de realização. Alimentar-se não consta da lista, mas
dispor de rendimentos para comprar alimentos consta. Da mesma
forma, a lista inclui as bases sociais do auto-respeito, mas não o
auto-respeito enquanto tal.
O fato de que diferentes pessoas têm objetivos diferentes e que as
pessoas devem ser livres para persegui-los não deve ser esquecido,
segundo Rawls, no processo de avaliação. Esse cuidado é realmente
importante, e o enfoque da capacidade também valoriza a liberdade
nesse sentido. Na verdade, pode-se argumentar que o enfoque da
capacidade descreve melhor as liberdades realmente desfrutadas
pelas pessoas que o enfoque da disponibilidade de bens primários.
Os bens primários são meios para as liberdades, ao passo que as
capacidades de realização são expressões das próprias liberdades.
As motivações subjacentes à teoria de Rawls e ao enfoque da
capacidade são similares, mas o tratamento da questão é diferente.
O problema com respeito ao argumento rawlsiano está em que,
mesmo tendo-se em vista os mesmos fins, a capacidade que as
pessoas têm de converter bens primários em realizações é
diferente, de tal maneira que uma comparação interpessoal
baseada na disponibilidade de bens primários em geral não tem
como refletir também as liberdades reais de cada pessoa para
perseguir um dado objetivo, ou objetivos variáveis. A variabilidade
das taxas de conversão segundo as pessoas, para fins dados, é um
problema inscrito no problema mais geral da variabilidade dos bens
primários requeridos por pessoas diferentes buscando seus
respectivos fins25. Segue-se disso que se pode aplicar ao
argumento rawlsiano uma crítica similar à que se faz à pane da
literatura sobre as necessidades básicas, pela ênfase nos meios
(tais como mercadorias) por oposição à ênfase na realização ou na
liberdade de realização.

LIBERDADE, CAPACIDADE E INFORMAÇÕES


O conjunto de capacidades representa a liberdade pessoal de
realizar várias combinações de efetivações. Se a liberdade é
intrínsecamente importante, as combinações disponíveis para a
escolha são todas relevantes para se avaliar o que é vantajoso para
uma pessoa, mesmo que ele ou ela escolha apenas uma alternativa.
Nessa perspectiva, a escolha é, em si mesma, uma característica
valiosa da vida de uma pessoa.
Por outro lado, se entendermos que a liberdade é apenas
instrumentalmente importante, o interesse no conjunto de
capacidades resume-se ao fato de que oferece à pessoa
oportunidades para alcançar várias situações desejáveis. Apenas as
situações alcançadas são valiosas em si mesmas, e não as
oportunidades, que são valorizadas apenas como meios com
respeito ao fim de alcançar situações desejáveis.
O contraste entre as concepções que atribuem um valor intrínseco
ou instrumental à liberdade é bastante profundo. Discuti a
importância dessa distinção em outro trabalho26. Ambas as
perspectivas podem ser acomodadas no enfoque da capacidade. Na
concepção instrumental, o conjunto de capacidade de realização é
valorizado apenas pela melhor alternativa disponível para escolha
(ou pela alternativa efetivamente escolhida). Essa maneira de
avaliar um conjunto de capacidades pelo valor de um elemento
particularmente importante nele contido pode ser denominado
"avaliação elementar"27. Se, de outra parte, a liberdade é
valorizada em si mesma, a avaliação elementar será inadequada,
pois a oportunidade de escolher outras alternativas é em si mesma
significativa. Para expressar claramente a distinção, pode-se notar
que se todas as alternativas que não a escolhida não estivessem
disponíveis, haveria uma perda real na perspectiva de liberdade
como valor intrínseco, mas não na perspectiva instrumental, pois a
alternativa escolhida permaneceria disponível.
É muito mais difícil aplicar praticamente a perspectiva do valor
intrínseco que a do valor instrumental, pois nossas observações
diretas dizem respeito ao que foi escolhido e realizado. A
consideração do que poderia ter sido escolhido, por sua própria
natureza, é mais problemática (envolvendo, em particular,
suposições sobre as restrições reais com as quais a pessoa se
defronta). Os limites de cálculos práticos desse tipo são postos pela
limitação de informações, e isso torna particularmente difícil a
representação dos conjuntos completos de capacidades, por
oposição à representação dos conjuntos de capacidades a partir da
realização observada de efetivações.
Não há perda real na utilização do enfoque da capacidade nessa
forma reduzida no caso de se adotar a perspectiva instrumental da
liberdade, mas há perda se se adota a perspectiva do valor
intrínseco. Para esta última, uma representação do conjunto das
capacidades enquanto tal é importante.
Na verdade, nem a perspectiva instrumental nem a intrínseca são
plenamente adequadas. Certamente a liberdade é um meio para a
realização pessoal, seja ou não também instrinsecamente
importante, de tal maneira que a perspectiva instrumental tem de
estar presente, inter alia, em qualquer uso do enfoque da
capacidade. Da mesma forma, mesmo que, de modo geral, se
considere a perspectiva instrumental bastante adequada, haverá
casos em que ela é extremamente limitada. Por exemplo, a pessoa
que jejua, isto é, passa fome por sua própria vontade, não pode ser
considerada carente como uma pessoa cuja única opção é passar
fome devido à pobreza extrema. Ainda que as efetivações
observadas sejam as mesmas, pelo menos em representações
grosseiras delas, as dificuldades em que se encontram não são as
mesmas.
Na prática, mesmo que em geral o enfoque da capacidade seja
utilizada no forma reduzida de concentração determinada de
efetivações, uma complementação sistemática seria necessária para
levar em conta os casos em que a liberdade usufruída pela pessoa é
de um interesse claro e imediato. Em muitos casos pode não haver
grande dificuldade em tal suplementação, desde que o problema
seja posto claramente e que a coleta de informações seja bem
dirigida e precisa. Algumas vezes pode ser útil redefinir as
efetivações de maneira "refinada", para captar algumas das
alternativas disponíveis obviamente relevantes, embora não
escolhidas. Jejuar é um exemplo de uma efetivação "refinada", em
oposição à pouco refinada de "passar fome", que não especifica se
houve ou não uma escolha28. O problema importante aqui não diz
respeito à existência ou não de uma palavra (como jejum) que
expresse a efetivação refinada, pois isso é matéria de invenção
lingüística, mas à avaliação de se tal refinamento seria central ao
exercício em questão e, se for central, trata-se de decidir como isso
poderia ser feito.
Na verdade, a base ¡nformacional das efetivações é não obstante
uma base de avaliação muito mais fina da qualidade de vida e do
progresso econômico que várias alternativas mais comumentes
recomendadas, tais como as utilidades individuais ou a posse de
mercadorias. O fetichismo da mercadoria, neste último caso, e a
métrica subjetivista, no primeiro, fazem dessas alternativas algo
profundamente problemático. Assim, o foco nas efetivações
desempenhadas tem méritos vis-à-vis aos critérios rivais factíveis
(mesmo que possa não se basear em tantas informações quantas
seriam necessárias para atribuir importância intrínseca à liberdade).
E em termos de disponibilidade de dados, manter o registro das
efetivações (incluindo as vitais, como alimentar-se bem e evitar a
morbidade evitável ou a morte prematura) tipicamente não é mais
difícil — pelo contrário, é muitas vezes mais fácil — do que obter
informações a divisões no âmbito da família, para não mencionar as
informações sobre utilidades.
O enfoque da capacidade dessa maneira pode ser utilizado em
vários níveis de sofisticação, e o nível adotado dependerá em
grande pane de considerações práticas sobre que informações se
pode ou não obter. Na medida em que a liberdade é tida como
intrínsecamente importante, a observação do feixe escolhido de
efetivações não pode ser em si mesma um guia adequado para o
exército de avaliação, a despeito da liberdade de escolher um feixe
melhor, ao invés de um pior, poder ser considerado, em certa
medida, uma vantagem mesmo na perspectiva da liberdade29.
Esse ponto pode ser ilustrado por meio de um exemplo. Um
aumento da longevidade é tido, por comum acordo, como uma
melhoria da qualidade de vida (embora, em termos estritos,
possamos considerá-lo como um aumento da quantidade de vida).
Em parte isso ocorre porque viver mais tempo é uma realização
valorizada. Em parte isso ocorre também porque outras realizações,

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