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RESTRIÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS 127

ponto central, nessa primeira parte, é a contraposição entre as teorias


interna e externa (tópicos 4.2, 4.2.4, e 4.3 e sub-tópicos). (2) Num se-
gundo momento pretende-se analisar a principal forma de controle às
restrições aos direitos fundamentais: a regra da proporcionalidade
(tópico 4.4 e sub-tópicos).

Capítulo 4 4.2 As teorias externa e interna


RESTRIÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS Intimamente ligado à questão da amplitude do suporte fático dos
direitos fundamentais está o problema da reconstrução da relação
4.1 Introdução. 4.2 As teorias externa e interna: 4.2.1 Teoria interna: entre os direitos e seus limites ou restrições. Nesse âmbito é possível
4.2.1.1 Limites imanentes- 4.2.1.2 Teoria institucional dos direitos distinguir dois enfoques principais, chamados, aqui, de teorias exter-
fundamentais- 4.2.2 Teoria externa: 4.2.2.1 Ponto de partida: a teoria na e interna. Tais teorias não são, contudo, criação da dogmática dos
1
dos princípios como teoria externa: 4.2.2.1.1 Restrições por meio de
regras- 4.2.2.1.2 Restrições baseadas em princípios- 4.2.2.2 Críticas direitos fundamentais, e são conhecidas no âmbito do direito civil há
à teoria externa: 4.2.2.2.1 Contradição lógica- 4.2.2.2.2 Ilusão deso- muito tempo, tendo suscitado intensos debates sobretudo na França,
nesta - 4.2.2.2.3 Racionalidade - 4.2.2.2.4 Segurança jurídica - entre Plaryiol e Ripert? de um lado, e Josserand, 3 de outro. 4
4.2.2.2.5 Inflação judiciária- 4.2.2.2.6 Direitos irreais - 4.2.3 Dife-
rentes teonas e seus efeitos - 4.2.4 Teoria externa e suporte fático:
4.2.4.1 Pieroth!Schlink- 4.2.4.2 Jurisprudência: o caso Osho. 4.3 I. A contraposição entre as teorias interna e externa ainda não foi objeto de
Limites imanentes, direitos prima facie e sopesamento: 4.3.1 Canoti- debates aprofundados no Brasil, pelo menos não na esfera dos direitos fundamentais.
lho e os limites imanentes. 4.4 A regra da proporcionalidade: 4.4.1 Em Portugal, no entanto, tais concepções já são analisadas há algum tempo. Cf., por
Questões terminológicas: princípio, máxima, regra ou postulado - exemplo: José Carlos Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais na Constituição
4.4.2, Adequação- 4.4.3 Necessidade: 4.4.3.1 Necessidade e grau de portuguesa de 1976, 3ª ed., Coimbra: Almedina, 2004 (1" ed., 1976), pp. 287 e ss.;
ejictencw- 4.4.4 Proporcionalidade em sentido estrito: 4.4.4.1 Pro- Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, 3ª ed., vol. IV, Coimbra: Coimbra
porcionalidade em sentido estrito e subjetividade - 4.4.5 Regra da Editora, 2000 (1ª ed., 1988), pp. 336 e ss.; e Jorge Reis Novais, As restrições aos
proporcionalidade e sopesamento - 4.4.6 Proporcionalidade, limites direitos fundamentais não expressamente pela Constituição, Coimbra:
imanentes, restrições e regulamentações- 4.4.7 Proporcionalidade e
Coimbra Editora, 2003, pp. 292 e ss.
conteúdo essencial dos direitos fundamentais. No Brasil é possível encontrar apenas breves menções à contraposição entre as
teorias externa e interna, mas sem conseqüentes aprofundamentos, em Gilmar Fer-
reira Mendes, "Âmbito de proteção dos direitos fundamentais e as possíveis limita-
4.1 Introdução ções", in Gilmar Ferreira Mendes et al., Hermenêutica constitucional e direitos
fundamentais, Brasília: Brasília Jurídica, 2000, pp. 224-225, e, mais recentemente,
Como ficou claro no capítulo anterior, um modelo que amplia a Cláudia Perotto Biagi, A garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais
na jurisprudência constitucional brasileira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,
extensão do âmbito de proteção dos direitos fundamentais e, ao mes-
2005, pp. 59-60.
mo tempo, o conceito de intervenção estatal é um modelo que deve 2. Cf. sobretudo Marcelo Planiol/Georges Ripert, Traité élémentaire de droit
estar pronto para lidar com um problema decorrente dessa expansão: civil, vol. II, lOª ed., Paris: LGDJ, 1926, p. 298.
a c_olisão entre direitos e a necessária restrição deles em algumas situ- 3. Cf. sobretudo Louis Josserand, De l 'esprit des droits et de leur relativité,
açoes. O presente capítulo pretende analisar exatamente esse proble- Paris: Dalloz, 1927.
4. Sobre os efeitos do debate na Alemanha, cf., por todos, Wilhelm Weber, Recht
e. pode ser di vídido em duas grandes partes principais. (1) Na der Schuldverhiiltnisse, 11" ed., Berlin: Schweitzer, 1961, pp. 748 e ss. Para o caso
pnmeua delas serão analisados os dois enfoques principais na recons- austríaco, ainda também no âmbito do direito civil, cf. Peter Mader, Rechtsm(j3brauch
trução da relação entre o direito e suas restrições (ou seus limites)- 0 und unzuli.issige Rechtsausiibung, Wien: Orac, 1994, pp. 113 e ss.
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Como será visto nos próximos tópicos, a simples menção a ter- Se isso é assim- ou seja, se a definição do conteúdo e da exten-
mos e expressões como restrição a direitos fundamentais, sopesamen- são de cada direito não depende de fatores externos e, sobretudo, não
to, ponderação ou proporcionalidade - que, via de regra, sobretudo na sofre influência de possíveis colisões posteriores -, a conclusão a que
jurisprudência, são utilizadas como se estivessem destacadas de qual- se pode chegar, em termos de estrutura normativa, é que direitos defi-
quer pressuposto teórico - exige uma clara compreensão da relação nidos a partir do enfoque da teoria interna têm sempre a estrutura de
entre o direito, de um lado, e seus limites ou restrições, de outro. A regras. 8 Isso porque, se a definição do conteúdo do direito é feita de
precisão terminológica, neste ponto, é inafastável, pois há diversos antemão, isso significa- para usar a expressão de Sieckmann- que a
termos que muitas vezes são usados em conjunto mas que, analitica- norma que o garante tem validade estrita. 9 Segundo ele, validade es-
mente enfocados, são incompatíveis entre si. Idéias como a de limites trita significa que uma norma será com certeza aplicável e produzirá
imanentes, por exemplo, não são passíveis de convivência, em uma todos os seus efeitos sempre que se tratar de uma situação que se en-
mesma teoria, com expressões como restrição a direitos, abuso de quadre na hipótese por ela descrita. 10 Se a norma tem validade estrita,
direito ou sopesamento. Isso porque, entre outros motivos, quando se ela segue o raciocínio "tudo-ou-nada", analisado anteriormente, 11 e
parte de uma teoria interna, que é aquela que sustenta que o direito e não pode ser objeto de sopesamentos.
seus limites são algo uno - ou seja, que os limites são imanentes ao Por conseqüência, se direitos fundamentais e sua extensão são
próprio direito -, isso exclui que outras fatores externos, baseados, definidos a partir da teoria interna e não podem, por conseguinte, par-
por exemplo, na idéia de sopesamento entre princípios, imponham ticipar em um processo de sopesamento, 12 toda vez que alguém exer-
qualquer restrição extra. As fundamentações para ambos os enfoques cita algo garantido por um direito fundamental essa garantia tem que
serão analisadas a seguir. ser definitiva, e não apenas prima facie. 13 A impossível distinção entre
direito prima facie e direito definitivo, no âmbito da teoria interna, é
algo que decorre diretamente de seu pressuposto central, ou seja, da
4.2.1 Teoria interna
unificação da determinação do direito e de seus limites imanentes.
Se fosse necessário resumir a idéia central da chamada teoria in- Nesse sentido, não haveria como imaginar uma situação em que, a
terna, poder-se-ia recorrer à máxima freqüentemente utilizada no di- despeito de haver um direito "em si", não pode ele ser exercitado por
reito francês, sobretudo a partir de Planiol e Ripert, segundo a qual "o haver sido restringido em decorrência da colisão com outros direi-
direito cessa onde o abuso começa". 5 Com isso se quer dizer, a partir
do enfoque da teoria interna- e daí o seu nome -, que o processo de
8. Sobre a definição da estrutura das regras jurídicas e suas diferenças em rela-
definição dos limites de cada direito é algo interno a ele. É sobretudo ção à estrutura dos princípios, cf. tópico 2.2.
nessa perspectiva que se pode falar em limites imanentes. Assim, de 9. Cf. Jan-Reinard Sieckmann, Regelmodelle und Prinzipienmodelle des Re-
acordo com a teoria interna, "existe apenas um objeto, o direito com chtssystems, Baden-Baden: Nomos, 1990, p. 59.
seus limites imanentes". 6 A fixação desses limites, por ser um proces- 10. Ainda que isso pareça, ao mesmo tempo, trivial e circular, uma simples
análise da estrutura dos princípios, sobretudo a partir da perspectiva da teoria externa
so interno, não é definida nem influenciada por aspectos externos, (cf. tópico 4.2.2), mostrará que nem toda norma tem essa característica ("validade
sobretudo não por colisões com outros direitos. 7 estrita", nas palavras de Sieckmann). Os princípios. por exemplo. não a têm (cf. Jan-
Reinard Sieckmann. Rege/modelle und Prinzipienmodelle des Rechtssystems, p. 58:
princípios são "normas sem validade estrita").
5. Mareei Planiol/Georges Ripert, Traité élémentaire de droit civil. voL li. p. I L Cf. tópico 2.2.3. L
298: "le droit cesse oú l'abus commence". 12. Cf: Robert Alexy. "Rechtssystem und praktische Vernunft", in Robert
6. Martin Borowski, Grundrechte als Prin:âpien, p. 99. Alexy, Recht, Vernunft, Diskurs: Studien zur Rechtsphilosophie. pp. 216-217; Martin
7. Cf. mais uma vez Martin Borowski. Grundrechte ais Prinzipien, p. 99: "A Borowski, Grundrechte ais Prinzipien, p. 100.
extensão do direito não é modificada por colisões com outras posições jurídicas, seu 13. Sobre a distinção entre "direitos definitivos" e "direitos prima facie", cf.
conteúdo definitivo é definido de antemão". tópico 2.2.
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tos. 14 Ou há direito subjetivo, ou não há. Se o direito subjetivo existe, das adiante 17 - não somente aceitam como também pressupõem- em
então, pode ele ser naturalmente exercido no âmbito de seus limites. 15 quase todos os casos - a necessidade de restrição a direitos funda-
Em outras palavras: no âmbito da teoria interna não há como falar que mentais, os adeptos de teorias internas utilizam o conceito de limite
determinada ação seja primafacie garantida por uma norma de direi- para rejeitar essa necessidade. A contraposição entre definição de li-
to fundamental mas que, em decorrência das circunstâncias - fáticas mites, de um lado, e imposição de restrições, de outro, explícita as
e jurídicas - do caso concreto, tal ação deixe de ser protegida. Nesses diferenças entre os dois enfoques.
casos, "o direito no qual a ação se baseia não existe, ou pelo menos Assim, para não ter que partir de um pressuposto insustentável de
não na forma como a ele se recorre". 16 direitos absolutos, a teoria interna tende a recorrer à idéia de limites
Da mesma forma que ocorre com as teorias que se baseiam em imanentes. Os direitos fundamentais, nessa perspectiva, não são abso-
um suporte fático restrito para os direitos fundamentais, a teoria inter- lutos, pois têm seus limites definidos, implícita ou explicitamente, pela
na tem o ônus de demonstrar a possibilidade de se fundamentar a li- própria constituição,l 8
mitação de direitos "a partir de dentro", de forma a excluir a neces- Ainda que sem o recurso teórico explícito à idéia de limites ima-
sidade de restrições externas. A principal figura a que se costuma nentes, é possível encontrar manifestações das teses centrais da teoria
recorrer, para esse fim, é aquela conhecida por limites imanentes. Mas interna na jurisprudência do STF. É claro que não é possível falar em
há outras estratégias que, sem recorrer a esse tipo de limite, também uma linha jurisprudencial coerente nesse sentido, até porque o STF
pretendem fundamentar uma visão interna dos limites aos direitos recorre também, em um sem-número de casos, ao sopesamento entre
fundamentais. A principal é, sem dúvida, a teoria institucional dos di- princípios -:: o que, como se verá, não é compatível com a idéia de
reitos fundamentais. Ambas -limites imanentes e teoria institucional limites imanentes. Não obstante essa incompatibilidade, o recurso aos
- serão analisadas a seguir. limites imanentes pode ser encontrado em não poucas decisões.
No caso Ellwanger, por exemplo, ao tratar dos limites do exercí-
cio dos direitos fundamentais, o Min. Maurício Corrêa recorre à se-
4.2.1.1 Limites imanentes guinte idéia: "Como sabido, tais garantias, [liberdade de expressão e
pensamento] como de resto as demais, não são incondicionais, razão
Pela exposição do pressuposto teórico central da teoria interna,
pela qual devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os
feita brevemente no tópico anterior, poder-se-ia imaginar que, ao não
limites traçados pela própria Constituição Federal (CF, art. 5º, § 2º,
admitir restrições a direitos fundamentais, tal teoria parte de uma con-
primeira parte)" .19
cepção absoluta desses direitos. Essa não é, contudo, uma conclusão
necessária e, além disso, dificilmente seria defendida por seus teóri- Em sentido muito semelhante, pela definição dos limites imanen-
cos. À semelhança do que já foi visto no capítulo 3, há uma diferença tes no caso da liberdade de manifestação do pensamento, o Min. Ilmar
terminológica sutil entre a teoria interna e a teoria externa que pode Galvão pronunciou-se na ADI 869: "Ementa:( ... ) Limitações à liber-
dade de manifestação do pensamento, pelas suas variadas formas -
deixar isso mais claro. Essa diferença terminológica não é, com se ve-
Restrição que há de estar explícita ou implicitamente prevista na
rá, mera filigrana jurídica, despida de qualquer efeito prático ou teó-
própria Constituição". 20
rico mais importante. Enquanto as teorias externas que serão analisa-

17. Cf. tópico 4.2.2.


14. Cf. Peter Mader, RechtsmijJbrauch und unzuliissige Rechtsausübung, pp. 18. É claro que se poderia dizer que, dentro dos limites definidos, tais direitos são
114-115. absolutos. Mas isso seria, no mínimo, contra-intuitivo ("absolutos dentro de limites").
15. Idem, p. 115. 19. RTJ 188, 858 (891)- sem grifos no original.
16. Ibidem. 20. ADI 869 (DJU 4.6.2004).
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RESTRIÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS 133

Ao analisar o problema da amplitude do suporte fático dos direi- proibição instituída por alguma restrição àquelas liberdades, mas em
tos fundamentais transcrevi algumas questões - retóricas - formula- proibição por mera não-proteção. E isso é assim não somente nos ca-
das por Vieira de Andrade. 21 Ao afirmar, por exemplo, que sacrifícios sos de interpretação da constituição pelo juiz, mas também nos casos
humanos não são garantidos pela liberdade religiosa, da mesma forma de leis ordinárias. Ou seja, segundo a teoria dos limites imanentes, se
que se pode dizer que a calúnia não é garantida pela liberdade de ex- uma lei vier expressamente a proibir sacrifícios humanos em rituais
pressão, quer-se, com isso, dizer que ambos os direitos - liberdade religiosos, ela não terá constituído restrição alguma à liberdade de
religiosa e liberdade de expressão- encontram seus limites, implícita religião, pelo simples fato de que a regulação legal não teria ultrapas-
ou explicitamente, no texto constitucional. São os limites imanentes. sado os limites dessa liberdade. 24
A opção pelo termo "limite", como se mencionou anteriormente, é
proposital, já que pretende denotar - como salienta o próprio Vieira O grande problema da teoria dos limites imanentes- que é tam-
de Andrade - que, nesses casos, não se deve falar em restrições aos bém, como já foi visto, o grande problema de todas as teorias que
direitos fundamentais ou de colisões entre eles, mas de meros limites pressupõem um suporte fático restrito aos direitos fundamentais -é a
que decorrem da própria constituição. Nesse sentido, é comum dizer definição do que é protegido(= dentro dos limites imanentes) e do que
que tais limites fazem parte da própria essência dos direitos funda- não é protegido. As dificuldades nesse âmbito já foram expostas no
mentais, já que não se pode falar em liberdades ou em direitos ilimi- capítulo 3, quando da análise das diversas formas de definir um supor-
tados e que é tarefa por excelência da interpretação constitucional te fático restrito para os direitos fundamentais. 25 O mais importante,
tornar seus contornos os mais claros possíveis. 22 nesse ponto, é salientar aquilo que se foi delineando ao longo deste
Com isso,·a diferença entre os limites imanentes e as restrições a tópico: a figura dos limites imanentes e o conceito de sopesamento são
direitos fundamentais decorrentes de colisões é facilmente perceptí- mutuamente exclusivos. À fundamentação dessa tese será dedicado
vel, e pode ser traduzida pelo binômio declarar/constituir. Enquanto um tópico específico mais adiante, no qual se demonstrará também
nos casos de colisões se constituem novas restrições a direitos funda- sua importância para a segunda parte deste trabalho. 26
mentais, quando se trata dos limites imanentes o que a interpretação
constitucional faz é apenas declarar limites previamente existentes. 23 4.2.1.2 Teoria institucional dos direitos fundamentais
Assim, para utilizar alguns dos exemplos de Vieira de Andrade, as ve-
dações a sacrifícios humanos ou a andar nu na rua não decorrem de Uma das principais estratégias argumentativas a favor de uma teo-
uma restrição às liberdades de religião e de ir e vir, visto que tais li- ria interna é aquela baseada em uma concepção institucional dos di-
berdades, devido a seus limites imanentes, nem ao menos protegem reitos fundamentais. Com base em uma teoria institucional dos direi-
tais atos. Assim, quando se fala em proibição, não se quer falar em tos, muda-se o paradigma a partir do qual os direitos fundamentais são
concebidos, e a decisão por uma teoria interna é conseqüência sim-
plesmente natural, como será visto a seguir. Como ferramenta de tra-
21. Cf. tópico 3.3.1. Aqui, mais uma vez: "( ... )terá sentido invocar a liberdade
religiosa para efectuar sacrifícios humanos ou, associada ao direito de contrair casa- balho utilizo, aqui, a teoria institucional de Peter Haberle. Isso por
mento, para justificar a poligamia ou a poliandria? Ou invocar a liberdade artística para alguns motivos. Haberle talvez seja o principal autor que, inspirado
legitimar a morte de um actor no palco, para pintar no meio da rua, ou para furtar o sobretudo pelas idéias de Hauriou, 27 desenvolve uma concepção insti-
material necessário à execução de uma obra de arte? (... ). Ou invocar a liberdade de
reunião para utilizar um edifício privado sem autorização, ou a liberdade de circulação
para atravessar a via pública sem vestuário?" (cf. José de Andrade, Os 24. Idem.
direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, p. 294). 25. Cf. sobretudo tópico 3.3.2. I.
22. Cf. Theodor Maunz/Reinhhold Zippelius, Deutsches Staatsrecht, 29ª ed., 26. Cf. tópico 4.3.
München: Beck, 1994, § 20, I, 1, p. 145.
27. Cf., acima de tudo, Maurice Hauriou, "La théorie de l'institution et de la
23. Idem.
fondation", in Paul Archambault et al., La cité moderne et les transformations du
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conceito baseia-se em três elementos principais: (1) uma idéia diretriz


tucional dos direitos fundamentais que se ocupa com o problema dos
que se realiza e permanece juridicamente em um meio social; (2) para
limites dos direitos fundamentais e com seu conteúdo essencial,2R
a realização dessa idéia, organiza-se um poder que lhe confere órgãos;
Além disso, Haberle é, sem dúvida alguma, um dos autores institucio-
(3) entre os membros do grupo social interessado na realização dessa
nalistas mais conhecidos na América Latina, sobretudo a partir da tra-
idéia surgem manifestações de comunhão dirigidas pelos órgãos de
dução de sua principal obra para o espanhot29 poder e reguladas por procedimentos. 33 Segundo Hauriou tais elemen-
O ponto de partida para uma breve análise da teoria institucional tos estão sempre presentes naquilo que ele chama de instituição-pes-
de Haberle só pode ser sua rejeição ao conceito de liberdade como soa, cujo principal exemplo seria o próprio Estado. 34 Nesses casos, o
mera esfera de autonomia individual a ser protegida contra a atividade poder organizado e as manifestações de comunhão interiorizam-se no
estataJ.3° Segundo ele, é esse conceito anacrônico de liberdade31 que seio da idéia-diretriz, que, após inicialmente ser objeto da instituição,
gera a imagem do legislador como o inimigo dos direitos fundamen- passa a ser o sujeito da pessoa moraP 5
tais. 32 E é essa dualidade - liberdade individual que deve proteger Mas, além desse conceito - instituição-pessoa -, que é o objeto
contra o legislador inimigo - que está na base da concepção a principal das teorias de Hauriou, refere-se ele também ao conceito de
qual Haberle se insurge. Para tanto, é necessário em instituição-coisa, semelhante à instituição-pessoa, mas na qual o poder
lugar, a contraposição entre liberdade e direito, ou sep, superar organizado e as manifestações de comunhão desempenham um papel
de liberdade como algo natural, pré-jurídico, que apenas é restnng1da secundário, pois não se interiorizam no seio da idéia-diretriz. 36 E esse
pelo direito. Para Haberle parece claro que essa perspectiva. é a res- conceito que Haberle toma de empréstimo para o desenvolvimento de
ponsável pela idéia de que qualquer intervenção estatal na liberdade sua teoria institucional dos direitos fundamentais: direitos fundamen-
individual é necessariamente uma restrição. tais seriam instituições no sentido instituição-coisa e de idéia-diretriz
Para superar esse problema, Haberle recorre ao conceito de insti- presente no meio social. Segundo Haberle, a idéia de direitos funda-
tuição, sobretudo na versão desenvolvida por Maurice Hauriou. Tal mentais - a idéia de personalidade, a idéia de propriedade, a idéia de
família - deve ser considerada como uma idéia-diretriz no sentido
institucional de Hauriou. Essas idéias estão enraizadas em seus res-
droit, Paris: Bloud et Gay, 1925, pp. 2-45; do mesmo autor, Précis droit pectivos meios sociais, nos quais desenvolvem sua realidade social ao
tionnel, 2" ed., Paris: Sirey, 1929, pp. 71 e ss. Cf também Mareei Prelot, lnstltutwns
politiques et droit constitutionnel, 4ª ed., Paris: Dalloz, 1969, 26, pp. 39 e ss. mesmo tempo que também a definemY O mais importante é que o
28. É de Haberle, sem dúvida alguma, o trabalho mais mfluente sobre o tema instituir a idéia de direitos fundamentais no meio social não é obra
na Alemanha, cuja 1ª edição é de 1962: Die Wesensgehaltgarantie des Art. 19 Abs. 2 exclusiva da constituição e de seu complexo normativo, mas sobre-
Grundgesetz: Zugleich ein Beitrag zum institutionellen Verstandnisder Grundrechte
und zum Lehre vom Gesetzesvorbehalt, 3ª ed., Hetdelberg: C. F. Muller, 1983.
29. Cf. Peter Haberle, La garantía deZ contenido esencial de los derechosjunda- 33. Cf. Maurice Hauriou, "La théorie de l'institution et de la fondation", p. 10.
mentale,\' en la Ley Fundamental de Bonn (trad. Joaquín Brage Camazano), Madnd: 34. Cf. Mareei Prélot, Institutions poli tiques et droit constitutionnel, § 26, p. 40:
Dykinson, 2003. Em português há também alguns trabalhos traduzidos, O pnnctpal "( ... )[uma instituição-pessoa] é constituída por uma coletividade humana, unida por
deles é, sem dúvida, Peter Haberle, A sociedade aberta dos intérpretes da ConstztUt- uma ideologia ou uma necessidade comum e submetida a uma autoridade reconheci-
ção, (trad. Gilmar Ferreira Mendes), Porto Alegre: Antomo Fabns, 1997 .. Para da e a regras fixas. Assim, a instituição adquire uma existência própria e transcende
uma breve análise da teoria de Haberle sobre as restnçoes a direitos fundamentais, cf. seus componentes individuais, aos quais ela não pode ser reduzida".
Jorge Reis Novais, As restrições aos direitosfundamentais não expressamente autori- 35. Cf. Maurice Hauriou, "La théorie de l'institution et de la fondation", p. 10.
zadas pela Constituição, pp. 309 e ss. 36. Idem. Cf. também a definição ele Prélot: "(,..) a instituição-coisa não é um
30. Cf. Peter Haberle, Die Wesensgehaltgarantie des Art. 19 Abs. 2 Grundge- complexo humano ( ... ) mas simplesmente um sistema de regras de Direito" (lnstitu-
setz, p. 15 I. . tions politiques et droit constitutionnel, § 26, p. 41 ),
31. Cf, Jorge Reis Novais, As restrições aos direitos fttndamentazs, p. 309. 37. Cf. Peter Haberle, Die Wesensgehaltgarantie des Art, 19 Abs. 2 Grundgesetz,
32. Cf. Peter Haberle, Die Wesensgehaltgarantie des Art. 19 Abs. 2 Grundgesetz, p. 106.
p. 163.
136 DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONTEÚDO ESSENCIAL, RESTRIÇÜES E EFICÁCIA
RESTRIÇÜES A DIREITOS FUNDAMENTAIS 137

tudo da atividade do legislador e também de todos aqueles "que vi-


como conceber, a partir de uma visão institucionalista, a liberdade co-
vem dispersos no meio social", os titulares dos direitos fundamentais.
mo se fosse uma "reserva natural", 47 a partir de uma espécie de "pro-
A realização dos direitos fundamentais no meio social é, nesse senti-
cesso de subtração". 48 É essa concepção de liberdade como aquilo que
do, um processo, 38 para o qual contribuem os titulares dos direitos e
também o legislador. "Os direitos fundamentais, concebidos como sobra após a atividade legislativa que está na base da idéia, já men-
instituição, (... )não são dependentes da vontade subjetiva de determi- cionada, segundo a qual o legislador é encarado como um inimigo da
nados indivíduos"; eles ganham vida na medida em que façam parte liberdade, que restringe os direitos fundamentais.
da consciência de um número indeterminado de indivíduos. A partir Fica claro, a partir da rejeição da dualidade liberdade vs. direito
daí, transformam-se eles em "coisa social objetiva". 39 - ou, em outras palavras, da contraposição liberdade vs. atividade
A partir da perspectiva institucional, direitos fundamentais, dentre estatal -, que a teoria de Hi.iberle necessariamente se enquadra nos
outras conseqüências, deixam de ser apenas direitos individuais de li- termos de uma teoria interna. 49 A atividade legislativa ordinária não é,
berdade. Mais importante que a liberdade do indivíduo é a liberdade de nos termos de sua teoria, uma atividade restritiva da liberdade, pelo
todos. 40 Isso porque liberdade não é algo natural, pré-jurídico ou algo simples fato de que a liberdade não é algo preexistente que possa ser
semelhante. A liberdade, a partir de uma visão institucional, é algo cria- restringido pelo legislador. Por ser algo interno ao direito, a liberdade
do e desenvolvido no âmbito e a partir do direito. 41 Portanto, liberdade como instituto é criada pela atividade estatal, que não a restringe,
é- é só pode ser- liberdade regulada e delimitada pelo direito. 42 apenas delimita 50 seus contornos e a desenvolve e garante. 51
É fácil notar que uma teoria institucional como a de Hi.iberle tem A forma de se encarar a atividade legislativa, a partir dessa visão,
como um de seus postulados básicos a rejeição da idéia de que permi- muda por completo. Em primeiro lugar, ela passa a ser encarada so-
tido é aquilo que não é vedado pelo direito. Haberle investe contra tal bretudo como garantia do desenvolvimento da liberdade: ao delimitar
concepção, que, segundo ele, é comungada tanto por jusnaturalistas
quanto por autores como Jellinek, 43 Schmitt44 e Kelsen. 4546 Não há
47. Idem.
48. Idem, p. 152, nota 168.
38. Idem, p. l 08. 49. Ainda que, às vezes, dadas algumas contradições em sua obra, seja difícil
39. Idem, pp. 106-107. afirmar isso com toda certeza, sobretudo quando Haberle aceita o sopesamento como
40. Idem, p. 108. Cf. também Martin Borowski, Grundrechte ais Prinz.ipien, forma de definição do conteúdo dos direitos fundamentais (Die Wesensgehaltgarantie
p, 209. des Art. /9 Abs. 2 Grundgesetz, pp. t24 e ss.; e, do mesmo autor, "Grundrechte und
41. Cf Peter Haberle, Die Wesensgehaltgarantie des Art. 19 Abs. 2 Grundgesetz, parlamentarische Gesetzgebung im Verfassungsstaat", AoR 114 ( 1989), p. 387). Como
p, 152. já se pôde perceber ao longo deste trabalho, o sopesamento é procedimento típico de
42. Idem. Note-se que não se fala em "restringida" pelo direito, mas, no máxi- uma teoria externa. Sobre essas contradições na obra de Haberle, cf. sobretudo Gertru-
mo, '"regulada" e "delimitada". de Lübbe-Wolff, Grundrechte als Eingriffsabwehrrechte, Baden-Baden: Nomos,
43. Cf. Georg Jellinek, Allgemeine Staatslehre, 3" ed .. Berlin: Springer, 1920, p. 1988, pp. 64 e ss., e Martin Borowski, Grundrechte als Prinzipien, pp. 209 e ss.
419: '.'Aqutlo que, desconsideradas as restrições legais. resta de possibilidade de ação 50. Também na obra de Haberle a distinção entre limites e restrições é bem mar-
md1V1dual aos Cidadãos é a sua esfera de liberdade". cada. como forma de demonstrar, claramente, a rejeição de uma teoria externa. Nesse
44. Cf Carl Schmitt, Verfassungslehre, 8" ed., Berlin: Duncker & Humblot, sentido, cf. Peter Haberle, Die Wesensgehaltgarantie des Art. 19 Abs. 2 Grundgesetz,
1993, pp. 126 e 158: "( ... )a esfera de liberdade do indivíduo é pressuposta como algo p. 179.
antenor ao Estado, e(,,) a liberdade do indivíduo é, em princípio, ilimitada, enquan- 51. A íntima relação entre direito e liberdade pode ser percebida na seguinte
to a competência estatal para intervir nessa liberdade é, em princípio. limitada" ( ari- passagem: "O direito não pode ser contraposto à liberdade de forma tal, que se de-
fos no original). b fina a lei material como uma intervenção na liberdade e na propriedade. Direito e
45. Cf. Hans Kelsen. Allgemeine Staatslehre. Berlin: Springer, 1925, p. !55. liberdade estão relacionados por sua própria natureza. Liberdade e direito não po-
46. Cf. Peter Haberle, Die Wesensgehaltgarantie des Art. /9 Abs. 2 Grundgeset;:, dem ser nem contrapostos nem separados. Liberdade e direito são dois conceitos que
p, 152. se incluem mutuamente" (Peter Haberle, Die Wesensgehaltgarantie des Art. 19 Abs.
2 Grundgesetz, p. 225).
RESTRIÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS 139
138 DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONTEÚDO ESSENCIAL, RESTRIÇÕES E EFICACIA

não-atenção a essa simples distinção pode ser fonte de algumas in-


a própria liberdade, o legislador, segundo Haberle, cria também liber-
compreensões teóricas.
dades que antes não existiam. 52 Além disso - ou, na verdade, exata-
mente por isso -, o legislador passa a ter uma liberdade de ação Nos próximos tópicos, serão analisados, em primeiro lugar, os
muito maior, 53 especialmente se comparada ao que ocorre a partir das problemas decorrentes da teoria interna. Esse é o ponto de partida da
premissas de outras concepções, que encaram o legislador como o análise. Depois, pretendo expor a íntima ligação existente entre a teo-
"interventor a ser controlado". ria externa e o pressuposto teórico deste trabalho, a teoria dos princí-
pios e o modelo de suporte fático amplo. 56 Em seguida serão analisa-
das as principais censuras feitas à teoria externa; e, ao mesmo tempo,
4.2.2 Teoria externa pretende-se refutá-las. A partir daí, fica o caminho livre para o estudo
Ao contrário da teoria interna, que pressupõe a existência de ape- da principal forma de controle das restrições a direitos fundamentais
nas um objeto, o direito e seus limites (imanentes), a teoria externa a partir de uma teoria externa: a regra da proporcionalidade.
divide esse objeto em dois: há, em primeiro lugar, o direito em si, e,
destacadas dele, as suas restrições. 54 Essa diferença, que parece insig-
nificante, uma mera filigrana teórica, tem, no entanto, grandes conse- 4.2.2.1 Ponto de partida:
qüências, práticas e teóricas. Boa parte daquilo que doutrina e jurispru- a teoria dos princípios como teoria externa
dência muitas vezes tomam como dado é, na verdade, produto dessa A relação entre a teoria externa e a teoria dos princípios é a mais
simples divisão teórica entre o direito em si e suas restrições. É prin-
estreita possíveJ.5 7 De forma muito simples, a teoria dos princípios
cipalmente a partir dessa distinção que se pode chegar ao sopesamen-
sustenta que, em geral, direitos fundamentais são garantidos por uma
to como forma de solução das colisões entre direitos fundamentais e,
norma que consagra um direito prima facie. Como visto no capítulo
mais que isso, à regra da proporcionalidade, com suas três sub-regras
anterior, o suporte fático dessa norma - que tem a estrutura de prin-
- adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Isso
porque é somente a partir do paradigma da teoria externa - segundo o cípio58 - é o mais amplo possívet59 Isso implica, entre outras coisas,
qual as restrições, qualquer que seja sua natureza, não têm qualquer que a colisão com outras normas pode exigir uma restrição à realiza-
influência no conteúdo do direito, podendo apenas, no caso concreto, ção desse princípio. Essas normas constituem, portanto, as restrições
restringir seu exercício - que se pode sustentar que, em uma colisão ao direito fundamental garantido pelo princípio em questão. 60 A rela-
entre princípios, o princípio que tem de ceder em favor de outro não
tem afetadas sua validade e, sobretudo, sua extensão primafacie. 55 A
"Zur Struktur der Rechtsprinzipien", in Bemd Schilcher et ai. (orgs.), Regeln, Prinzi-
pien und Elemente im System des Rechts, Wien: Verlag Ósterreich, 2000, p. 37).
56. Cf. Capítulos 2 e 3.
52. Cf. Peter Haberle, Die Wesensgehaltgarantie des Art. 19 Abs. 2 Grundgesetz, 57. Em sentido parcialmente contrário. cf. Jorge Reis Novais, As restriçôes aos
p. 225.
direitos fundamentais, pp. 322 e ss. e 357. Novais defende que a teoria de Alexy é
53. Cf., nesse sentido, Ernst Wolfgang Bockenforde, "Grundrechtstheorie und uma teoria autônoma, que não se enquadra nem nos pressupostos da teoria interna,
Grundrechtsinterpretation", in Ernst Wolfgang Bockenfürde, Staat, Verfassung,
nem nos da teoria externa.
Demokratie, 2ª ed., Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1992, p. 125. 58. Ou seja, é um mandamento de otimização. Cf., sobre esse conceito, tópico
54. Cf. Martin Borowski, Grundrechte ais Prinz.ipien, p. 100; Andreas von
2.2.2.
Arnauld, Die Freiheitsrechte und ihre Schranke, Baden-Baden: Nomos, 1999, pp. 15
59. Cf. tópico 3.3.2.2. 1.
e ss. 60. Cf., neste ponto, por todos: Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, 2" ed.,
55. Como foi visto acima (tópico 2.2.3.2), esse é um pressuposto central da teoria p. 257 [tradução brasileira: pp. 284-285]; Martin Borowski, Grundrechte ais Prinzi-
dos princípios. Expressamente: "Somente a teoria dos princípios consegue deixar clara pien, p. 101; e Wolfram Hofling, "Grundrechtstatbestand- Grundrechtsschranken-
a razão pela qual uma norma que cede a precedência a outra em um sopesamento não Grundrechtsschrankenschranken", Jura 16 (1994), p. 171.
é nem violada nem declarada total ou parcialmente inválida (... )" (cf. Robert Alexy,
140 DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONTEÚDO ESSENCIAL, RESTRIÇÕES E EFICÁCIA RESTRIÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS 141

ção, aqui, entre o analisado nos capítulos 2 e 3 e o discutido neste ca- Essa restrição a partir de fora, como já foi esboçado no capítulo 2,
pítulo 4 não poderia ser mais clara. pode ocorrer de duas formas principais.
Um princípio, compreendido como mandamento de otimização,
é, prima facie, ilimitado. A própria idéia de mandamento de otimiza-
ção expressa essa tendência expansiva. 61 Contudo, em face da impos- 4.2.2.1.1 Restrições por meio de regras
sibilidade de existência de direitos absolutos, 62 o conceito de manda- Em geral, restrições a direitos fundamentais são levadas a cabo
mento de otimização já prevê que a realização de um princípio pode por meio de regras. 66 Essas regras são encontradas sobretudo na legis-
ser restringida por princípios colidentes. Aí reside a distinção, expos- lação infraconstitucional. Assim, como já foi visto antes, 67 o art. 4º, §
ta anteriormente, entre o direito prima facie e o direito definitivo. 63 1º, da Lei 9.612/1998, que disciplina a atividade de radiodifusão co-
Essa é a distinção que a teoria externa pressupõe. munitária e que proíbe "o proselitismo de qualquer natureza" nessa
O direito definitivo não é - ao contrário do que defende a teoria atividade, é uma regra que restringe a liberdade de expressão e a li-
interna - algo definido internamente e a priori. Somente nos casos berdade de imprensa; o art. 38 da Lei 4.595/1964, que prevê alguns
concretos, 64 após sopesamento ou, se for o caso, aplicação da regra da casos em que o sigilo bancário poderá ser quebrado, é uma regra que
proporcionalidade, 65 é possível definir o que definitivamente vale. A restringe o direito à privacidade. E, como ainda será visto adiante, a
definição do conteúdo definitivo do direito é, portanto, definida a regra contida no art. 31 da Lei de Arbitragem (Lei 9.307/1996) res-
partir de fora, a partir das condições fáticas e jurídicas existentes. tringe a garantia de acesso amplo ao Judiciário, enquanto o sigilo de
correspondência é restringido pelas regras contidas no art. 10 da Lei
6.538/1978.
61. Mandamentos de otimização = normas que exigem que algo seja realizado
na maior medida possível diante das condições fáticas e jurídicas existentes, Todos estes casos, e inúmeros outros, envolvem regras que proí-
62. Na jurisprudência do STF, cf., por todos, RTJ 173, 805 (807-808) (MS bem alguma conduta que é permitida prima facie por algum direito
23.452). Para mais decisões no mesmo sentido, cf. nota de rodapé 63 no Capítulo 6. fundamental, ou autorizam alguma ação estatal cujo efeito é a restri-
63. Cf. tópicos 4.2.2 e 2.2. I. ção da proteção que um direito fundamental prima facie garantia.
64. Em face de algumas possíveis incompreensões, é importante esclarecer o
que significa caso concreto. A expressão "caso concreto" pode significar duas coisas Muitos desses casos são com freqüência entendidos como uma coli-
distintas: ( 1) caso concreto pode significar, na forma como pode ser compreendida são entre um princípio e uma regra. Como já foi dito anteriormente,
também em sua acepção não-técnica, a decisão de um caso específico por parte do apenas em casos excepcionais isso ocorre. 68 Em geral a aparente coli-
Judiciário (o exemplo mais usual é a colisão entre a liberdade de imprensa e o direi- são entre um princípio e uma regra nada mais é que o resultado de um
to à privacidade, honra ou imagem); (2) mas caso concreto pode também significar
algo menos concreto ou, pelo menos, mais distante daquilo que usualmente se costu- processo de restrição ao princípio, cuja expressão é a regra. Um exem-
ma entender por isso, já que aponta, nessa segunda acepção, a uma decisão do legis- plo pode deixar esse raciocínio mais claro: 69 muitos poderiam imagi-
lador acerca da colisão entre direitos fundamentais. Uma tal decisão legislativa, se, nar que existe uma colisão entre o princípio da liberdade de imprensa
por um lado, é mais abstrata que uma decisão judicial, não deixa de ter também sua e a regra do art. 76 do Estatuto da Críança e do Adolescente (Lei
dimensão concreta, já que o legislador não se preocupa, nesses casos, com a impor-
tância geral e abstrata de dois direitos fundamentais, mas sua importância relativa, em 8.069/1990), que exige que as emissoras de TV, no horário recomen-
uma situação hipotética. Exemplo dessa acepção seria, entre outros. a atividade legis- dado para o público infanto-juvenil, exibam apenas programas com
lativa que cria um tipo penal de calúnia (CP, art. 138). O "concreto", nesse ponto, não
é um caso específico que acontece na realidade, mas a situação hipotética, descrita e
"resolvida" pelo legislador em um certo sentido- a favor da honra, em detrimento da 66. Quando aqui se fala em ''regra", o conceito é aquele que foi fixado no
liberdade de expressão -, que pressupõe uma decisão acerca de um direito e de suas Capítulo 2.
restrições. 67. Cf. tópico 3.3.3.
65. Sobre os casos em que se deve recorrer a um (sopesamento) ou ao outro 68. Cf. tópico 2,2.3.3,
(proporcionalidade), cf. tópico 4.4.5. 69. Para outros exemplos, cf. tópico 2.2.3.3.
142 DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONTEÚDO ESSENCIAL, RESTRIÇÕES E EFICÁCIA RESTRIÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS 143

finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas. Tratados pios. Em outras palavras: pode ser que uma dada situação de colisão
isoladamente, com certeza há, aqui, uma colisão. Mas o art. 76 não é ainda não tenha sido objeto de ponderação por parte do legislador. 72
produto de um simples julgamento de conveniência do legislador, mas
Nesses casos, cabe ao juiz, no caso concreto, decidir qual princí-
o resultado de um sopesamento entre princípios (liberdade de impren-
pio deverá prevalecer. Quando isso ocorre, há também uma restrição
sa e proteção da criança e do adolescente). Como, nesse caso, a pro-
ao direito fundamental que é garantido pelo princípio que teve de
teção à criança e ao adolescente prevalece, tem-se a impressão de que
ceder em favor do princípio considerado mais importante. Essa restri-
há um conflito entre a regra que exige uma determinada programação
ção, no entanto, não encontra fundamento em uma regra da legislação
e o princípio que institui a liberdade de imprensa. A relação, contudo,
infraconstitucional, mas apenas na competência do juiz em tomar a
não é essa: a regra impõe uma restrição à liberdade, não colide com
decisão naquele caso concreto. Essas restrições, portanto, são basea-
ela; a colisão ocorre antes, entre os dois princípios mencionados, cuja
das em princípios e realizadas por meio de decisões judiciais.73
solução se expressa na regra. É claro que se poderia, então, dizer que
a restrição não é baseada na regra, mas no princípio da proteção à
criança e ao adolescente. Embora isso não seja incorreto, essa forma 4.2.2.2 Críticas à teoria externa
de reconstruir o problema ignoraria a função que a regra tem no orde-
namento jurídico. 70 Além disso, isso encobriria a diferença que se quer A despeito de ser aceita, no âmbito dos direitos fundamentais, por
marcar entre o analisado neste tópico e o analisado no tópico seguinte. diversos autores/ 4 a teoria externa é alvo de diversas críticas. Algu-
E foi justamente para marcar essa diferença que se chamou a hipótese mas del(ls pretendem abalar os próprios pressupostos dessa forma de
tratada aqui de "restrição por meio de regras", enquanto a hipótese a reconstruir a relação entre o conteúdo dos direitos e suas restrições/ 5
ser analisada no tópico seguinte é denominada "restrições baseadas
em princípios".
72. "Legislador", aqui, é termo empregado em sentido amplo, e envolve qual-
quer forma de produção normativa - incluindo, por exemplo, medidas provisórias e
decretos.
4.2.2.1.2 Restrições baseadas em princípios 73. É claro que aqui também há semelhanças com o que foi analisado no tópico
anterior, já que o resultado do sopesamento entre dois princípios também na sentença
Materialmente falando, as restrições a direitos fundamentais são judicial tem a estrutura de regra. Mas as diferenças entre os dois casos também fica-
sempre baseadas em princípios. 71 Como foi visto acima e já foi diver- ram claras. Como se verá adiante (cf. tópico 4.4.5), essa diferença está na base da
opção entre a aplicação da regra da proporcionalidade ou de simples sopesamento.·
sas vezes repetido neste trabalho, as restrições a direitos fundamentais
74. Cf., por exemplo: Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, pp. 290 e ss.
ocorrem porque dois ou mais princípios - com suporte fático amplo [tradução brasileira: pp. 321 e ss.]; Rolf Eckhoff, Der Grundrechtseingrif.f, pp. 13 e
- se chocam. A solução dessa colisão sempre implica uma restrição a ss.; Martin Borowski, Grundrechte als Prinzipien, pp. 29 e ss. e 99 e ss.; Andreas von
pelo menos um dos princípios envolvidos. Formalmente, no entanto, Arnauld, Die Freiheitsrechte und ihre Schranken, pp. 15 ss. e 48 ss.; Peter Lerche,
"Grundrechtlicher Schutzbereich, Grundrechtspragung und Grundrechtseingriff', in
a restrição poderá ocorrer de formas diversas. Acima já se viu que, em Josef Isensee/Paul Kirchhof (orgs.), Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik
geral, as restrições a direitos fundamentais são expressadas por meio Deutschland, vol. V,§ 121, Heidelberg, C. F. Müller, 1992, n. 8, p. 744.
de regras presentes na legislação infraconstitucional. Mas pode ser Em português, cf. Jorge Reis Novais, As restrições aos direitos fundamentais
não expressamente autorizadas pela constituição, pp. 322 e ss. e 357. Novais é, na
que não haja regra alguma que discipline a colisão entre dois princí-
verdade, partidário de uma teoria "eclética", mas fortemente influenciada pela teoria
dos princípios. A despeito de considerar a teoria de Alexy uma teoria autônoma, que
não se enquadra nem nos pressupostos da teoria interna, nem nos da teoria externa
70. Sobre esse debate, cf., por todos, Martin Borowski, Grundrechte als Prin-
(cf. nota de rodapé 57, acima), no marco teórico deste trabalho, é possível incluir
zipien, pp. 107-108.
Novais entre os defensores da teoria externa.
71. Cf. Martin Borowski, Grundrechte als Prinzipien, p. 107.
75. Cf., por exemplo, tópico 4.2.2.2.1.

l
144 DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONTEÚDO ESSENCIAL, RESTRIÇÕES E EFICÁCIA RESTRIÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS 145

outras visam a atacar algumas de suas conseqüências, seja no plano Como ambos se encontram em níveis diferentes, 83 o argumento da con-
teórico e metodológico, 76 seja no plano prático. 77 tradição lógica não se aplica. A crítica só seria procedente se se tratasse
Como o embate entre as teorias interna e externa ainda é, como de um direito garantido de forma definitiva mas cujo exercício fosse ve-
já mencionado, um debate ainda pouco conhecido na dogmática dos dado. Ou seja: se uma regra garantir um direito, o exercício desse direito
direitos fundamentais no Brasil, nos próximos tópicos pretendo expor não pode ser impedido. No nível das regras - que é o nível da teoria in-
terna por excelência84 - o raciocínio da contradição lógica faz sentido.
essas críticas na forma como desenvolvidas sobretudo na Alemanha78
No âmbito dos princípios- que é não somente o âmbito da teoria externa,
e em Portugal. 79 Como as críticas são de naturezas muito diversas, ao
mas o âmbito dos direitos fundamentais por excelência-, não.
invés de se destinar um único tópico, ao final, para tentar explicitar o
que se considera como seus pontos fracos, parece-me mais recomen-
dável que a "anticrítica" seja exercida junto com a exposição das pró- 4.2.2.2.2 Ilusão desonesta
prias críticas.
Uma das principais críticas feitas à teoria externa- como a teoria
dos princípios, por exemplo - consiste em afirmar que, ao se pressu-
4.2.2.2.1 Contradição lógica por a existência de um direito em si, em geral de contornos amplos,
mas garantido apenas primafacie, tal teoria criaria, na verdade, uma
Sobretudo no âmbito do direito civil, a teoria externa é censurada ilusão desonesta: quase nunca o que é garantido prima fac ie é também
por estar baseada em uma impossibilidade lógica. É impossível, segun- garantido,definitivamente. Tal sentimento de desilusão pode ser veri-
do essa linha crítica, que um direito seja garantido em sua inteireza e, ficado, por exemplo, quando se diz que "a lei constitucional tal como
ao mesmo tempo, seu exercício seja, no todo ou em parte, proibido. 80 interpretada pela doutrina e pela jurisprudência( ... ) coloca-nos diante
Assim, se um direito é exercido, não pode esse exercício ser considera- de miragens: garante-nos direitos constitucionais supremos que, ao
do ilícito. Das duas, uma: ou o exercício do direito em questão consistiu querer tocá-los ... desaparecem". 85
em um "agir sem direito"; 81 ou o exercício não pode ser vedado.
De fato, a distinção entre direitos prima facie e direitos definiti-
A resposta a essa crítica é o próprio pressuposto teórico da teoria vos, associada a um suporte fático amplo para os direitos fundamen-
dos princípios. Há uma diferença entre o direito prima facie, garan- tais, pode, com freqüência, causar a impressão de que se promete mais
tido por um princípio, e o direito definitivo, garantido por uma regra do que se pode cumprir. Se isso for assim, não há dúvida de que esta-
que seja o produto do sopesamento entre dois ou mais princípios. 82 ríamos diante de uma desonestidade baseada em ilusões. Mas não é o
caso. Nesse ponto, talvez por ser bastante incisiva, vale recorrer à tese
76. Cf., por exemplo, tópicos 4.2.2.2.2, 4.2.2.2.3 e 4.2.2.2.6.
de Borowski, segundo o qual aquele que, apenas com base em um
77. Cf., por exemplo, tópicos 4.2.2.2.4 e 4.2.2.2.5. direito prima facie, definido a partir de uma perspectiva da teoria ex-
78. Para uma aprofundada análise crítica dos argumentos contrários à teoria ex-
terna no debate alemão, cf., por todos, Martin Borowski, Grundrechte als Prinzipien,
pp. 190-204. 83. Idem, p. 191.
79. Para o caso português- mas também influenciado pelo debate alemão-, cf., 84. Cf. tópico 4.2.1.
por todos, Jorge Reis Novais, As restrições aos direitos fundamentais não expressa- 85. Mariano F. Grandona, La reglamentación de los derechos constitucionales,
mente autorizadas pela Constituição, pp. 292 e ss. Buenos Aires: Depalma, 1986, p. XI. Não muito diferente era a crítica de Karl Marx
80. Cf. Wilhelm Weber, Recht der Schuldverhâltnisse, p. 750; Wolfgang Siebert. às declarações de direitos das Constituições francesas, sobretudo à de 1848. Segundo
Verwirkung und Unzulüssigkeit der Rechtsausiibung, Marburg: Elwert, 1934, p. 88. ele, essas declarações consistiam no "artifício de prometer liberdade total, de garantir
81. Nesse sentido, cf. Mareei Planiol!Georges Ripert, Traité élémentaire de droit belos princípios e deixar a sua aplicação, os detalhes, para a legislação infraconstitu-
civil, vol. Il, § 871, p. 298. cional" (Di e Konstitution der jranzosischen Republik, MEW 7, Berlin: Dietz, 1973,
82. Nesse sentido, cf. Martin Borowski, Grundrechte als Prinzipien. pp. 190-191. pp. 503-504).
RESTRIÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS 147
146 DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONTEÚDO ESSENCIAL, RESTRIÇÕES E EFICÁCIA

tema, nutre esperanças de um direito definitivo "cria expectativas sem de que não é possível buscar uma racionalidade que exclua, por com-
fundamento". 86 Segundo ele, a decisão acerca do direito definitivo de- pleto, qualquer subjetividade na interpretação e na aplicação do direi-
rivado de um direito prima facie depende sobretudo dos direitos que to. Exigir isso de qualquer teoria é exigir algo impossível. Muitos
com ele colidem e de seu peso relativo no caso concreto. Assim sendo, daqueles que vêem no sopesamento um método irracional e extrema-
um direito prima facie não fundamenta uma pretensão a determinado mente subjetivo de aplicação do direito parecem supor que outros
direito definitivo, mas apenas uma pretensão a um sopesamento entre métodos - sobretudo a subsunção - seriam capazes de conferir uma
princípios. 87 racionalidade quase perfeita. Como será visto a seguir,93 a subsunção,
apesar de ser formalmente uma operação lógica, apresenta problemas
de fundamentação substancial semelhantes aos de qualquer teoria. O
4.2.2.2.3 Racionalidade que está em jogo aqui, portanto, não é simplesmente um método de
Uma das críticas metodológicas mais freqüentes à teoria dos prin- aplicação não-positivista em comparação com métodos positivistas. A
cípios de Alexy - que, por extensão, vale também contra algumas va- análise da racionalidade do sopesamento não pode ser feita nesses
riantes da teoria externa - é aquela relacionada à racionalidade do pro- termos, até porque a interpretação e a aplicação do direito não são
cesso de solução de colisões entre princípios, o sopesamento. Em linhas consideradas, nem mesmo entre positivistas, como um processo estri-
gerais, tal crítica ataca o sopesamento por lhe faltarem critérios racio- tamente racional e objetivo. Basta, neste ponto, a menção ao enfoque
nais de decidibilidade. Segundo essa linha crítica, todo sopesamento kelseniano sobre o assunto. Segundo Kelsen: "( ... )o direito a ser apli-
nada mais é que um decisionismo disfarçado. cado ( ... )apenas uma moldura, dentro da qual existem diver-
sas possibilidades de aplicação, sendo considerado conforme ao direi-
Em trabalho anterior88 empenhei-me em refutar os principais argu-
to todo ato que se mantenha dentro dos limites dessa moldura, isto é,
mentos ligados à racionalidade do sopesamento, sobretudo aqueles
utilizados por Friedrich Müller, 89 Jürgen Habermas,90 Bemhard Schlink91 que preencha a moldura com algum sentido possível". 94
e Emst-Wolfgang Bõckenfõrde. 92 Aqui, pretendo apenas apontar alguns Kelsen é enfático em sublinhar que não se pode falar, no direito,
argumentos. em uma única resposta possível para os problemas interpretativos e de
O ponto de partida para um debate acerca da racionalidade de aplicação. A decisão do juiz não é, portanto, a única, nem a melhor, ..
qualquer forma de interpretação e aplicação do direito é a percepção mas, por razões de competência, aquela que vinculará aqueles ligados
à decisão. 95 Não existe, ainda segundo Kelsen, qualquer método que
permita, diante das possibilidades interpretativas de um dispositivo
86. Martin Borowski, Grundrechte als Prinzipien, p. 197. legal, definir qual delas é a correta. 96 Isso porque a tarefa da interpre-
87. Idem.
88. Cf. Virgílio Afonso da Silva, Grundrechte und gesetzgeberische Spielriiume, tação não é cognitiva- ou seja, não é descobrir um sentido correto de
pp. 89-112. um dispositivo-, mas um ato de vontade, para o qual concorrem ra-
89. Cf. sobretudo Friedrich Müller, Juristische Methodik, 6• ed., Berlin: Duncker zões de natureza moral, de concepções de justiça, de juízos sociais de
& Humblot, 1995, pp. 62 e ss., e, do mesmo autor, Strukturierende Rechtslehre, 2• ed.,
Berlin: Duncker & Humblot, 1994, pp. 207 e ss.
90. Cf. sobretudo Jürgen Habermas, Faktizitiit und Geltung, Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1992, pp. 310 e ss., e, do mesmo autor, Die Einbeziehung des Anderen, 93. Cf. tópico 4.2.2.2.4.
Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1999, p. 368. · 94. Hans Reine Rechtslehre, 2• ed., Berlin: Deuticke, 1960, p. 348 (sem
91. Cf. sobretudo Bemhard Schlink, Abwagung im Verfassungsrecht, Berlin: grifas no original). E necessário salientar, contudo, que a menção a Kelsen e aos po-
Duncker & Humblot, 1976, p. 127 e ss. sitivistas não significa, por razões óbvias, que compartilho de sua postura acerca da
92. Cf. sobretudo Emst-Wolfgang Bêickenfêirde, "Vier Thesen zur Kommunita- interpretação e da argumentação jurídica.
rismus-Debatte", in Peter Siller/Bertram Keller (orgs.), Rechtsphilosophische Kontro- 95. Hans Kelsen, Reine Rechtslehre, p. 349.
versen der Gegenwart, Baden-Baden: Nomos, 1999, pp. 83-86. 96. Idem.
148 DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONTEÚDO ESSENCIAL RESTRIÇÕES E EFICÁCIA RESTRIÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS 149

valor etc. 97 A racionalidade possível, portanto, até mesmo entre posi- gico quase ingênuo. Imaginar que existe alguma possibilidade de apli-
tivistas, não pode ser aquela em que ao juiz reste apenas a tarefa me- cação do direito que esteja protegida contra algum tipo de subjetivismo
cânica de uma operação estritamente lógica. Aquele que crê nessa do intérprete seria uma ingenuidade. Mesmo nos casos de "simples"
última possibilidade tem o ônus da prova para demonstrar sua viabi- subsunção, nos quais muitos imaginam haver uma simples operação
lidade metodológica. lógico-formal, o grau de liberdade do intérprete/aplicador do direito
O que se pode exigir, portanto, de tentativas de elevação da racio- não é necessariamente pequeno. Embora a subsunção seja, de fato, um
nalidade de um procedimento de interpretação e aplicação do direito, método em que a conclusão deve decorrer logicamente das premissas,
como o sopesamento, é a .fixação de alguns parâmetros que possam a própria fundamentação dessas premissas e a interpretação dos ter-
aumentar a possibilidade de diálogo intersuhjetivo, ou seja, de parâ- mos nelas contidos não são um processo lógico. Nesse âmbito, o grau
metros que permitam algum controle da argumentação. 98 É o que se de racionalidade possível não é diferente daquele presente no sopesa-
vem tentando fazer neste trabalho até aqui, e o que se fará até o seu menta ou na fundamentação de qualquer proposição jurídica. 100
final. Exigir mais que isso seria desconhecer as características do pro- Na verdade, o grau possível de segurança jurídica está ligado a
cesso de interpretação e aplicação do direito. circunstâncias às quais os operadores do direito não costumam dar a
devida atenção. Se segurança jurídica puder ser traduzido, entre outras
:i·,
coisas, como um mínimo de previsibilidade na atividade jurisdicional,
4.2.2.2.4 Segurança jurídica a forma mais segura de alcançá-la não passa apenas pela definição de
Uma das principais críticas à forma como algumas variantes da métodos que possibilitem controle intersubjetivo - nesse ponto, tanto
teoria externa propõem que colisões entre direitos fundamentais sejam a subsunção quanto o sopesamento possibilitam tal controle. A verda-
solucionadas- o sopesamento- é aquela que diz respeito a um aumen- deira previsibilidade da atividade jurisdicional se dá a partir de um
to na insegurança jurídica. acompanhamento cotidiano e crítico da própria atividade jurisdicio-
O argumento é simples e está diretamente ligado à crítica acerca nal. Tal acompanhamento é tarefa precípua da doutrina jurídica. É
da racionalidade do sopesamento. Se o sopesamento não é um proce- papel dos juristas exercer um controle social da atividade jurisdicio-
dimento racional para a solução de colisões entre direitos fundamen- nal. É somente a partir da assunção dessa tarefa, na forma de pesqui-
tais, a decisão, em todos os casos que envolvam tais colisões, é algo sas jurisprudenciais sólidas e abrangentes e por meio de comentários ''
que depende, pura e simplesmente, da subjetividade do juiz. Já se ten- a decisões importantes de tribunais como o STF, que o grau de previ-
tou demonstrar acima que o sopesamento não é- ao contrário do que sibilidade de decisões poderá ser aumentado. É a partir da cobrança
alguns críticos tentam fazer crer - um processo necessariamente irra- de consistência e coerência em suas decisões e do conhecimento da
cional e exclusivamente subjetivo. 99 O problema da insegurança jurí- história jurisprudencial do tribunal que cada um de seus membros fi-
dica fica, pelo menos em parte, afastado a partir da possibilidade de cará sempre compelido a ser coerente- e, por conseguinte, mais pre-
algum grau de racionalidade no sopesamento. visível- em suas decisões. 101 Segurança jurídica não é algo que decone
Mas a segurança jurídica não depende apenas do método de apli-
cação do direito e de solução de colisões entre direitos fundamentais. 100. Sobre o problema da fundamentação das premissas em um processo de
Crer que isso seja possível seria partilhar de um otimismo metodoló- subsunção, cf., por todos, Jerzy Wróblewski, "Legal Syllogism and Rationality of
Judicial Decision", Rechtstheorie 5 (1974), pp. 33 e ss., e Robert Alexy, Theorie der
juristischen Argumentation, pp. 373 e ss.
97. Idem, p. 351. 101. Atualmente o grau de remissão a seus próprios precedentes no âmbito do
98. Nesse sentido, cf., por todos, Ana Paula de Barcellos, Ponderação, raciona- STF é baixíssimo. A não ser em casos que se repetem com enorme freqüência, a re-
lidade e atividade jurisdicional, Rio de Janeiro: Renovar, 2005. ferência a precedentes é algo menos freqüente do que poderia ser. Um exemplo disso
99. Cf. tópico 4.2.2.2.3. é a decisão no "caso Ellwanger" (HC 82.424, RTJ 188, 858). A despeito de muitos
150 DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONTEÚDO ESSENCIAL, RESTRIÇÕES E EFICÁCIA
RESTRIÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS 151

pura e simplesmente do método. Se, como foi visto acima, a racionali- Ao fazer uma vinculação direta entre uma questão substancial e
dade no discurso jurídico é, em grande medida, a possibilidade de diá- uma questão processual, tal crítica ignora algumas condicionantes que
logo intersubjetivo, a segurança jurídica também é decorrência desse se inserem entre uma e outra. Embora possa parecer intuitivo que um
diálogo. Mas para existir diálogo é necessário um discurso bidirecio- aumento no âmbito de proteção dos direitos fundamentais e o conse-
nal. Não apenas a comunidade jurídica recebe as decisões do STF (ou qüente aumento no número de colisões entre eles tendam a ser acom-
de outros tribunais), como também tem o dever de reagir a elas e co- panhados de um aumento de pretensões judiciais, há elementos - subs-
brar coerência e consistência quando entender que os tribunais não tanciais, processuais e empíricos - que podem fornecer argumentos no
estejam decidindo de acordo com seus precedentes. 102 Insegurança sentido contrário.
jurídica está intimamente ligada à idéia de decisão ad hoc, algo que Do ponto de vista substancial, pode-se afirmar que o número de
só é possível quando não há controle, independentemente do método situações que poderiam dar ensejo a uma pretensão judicial verdadeira
de interpretação e aplicação do direito e da teoria que subjaz a esse - isto é, com alguma chance de êxito - não tende a ser tão maior no
método. âmbito da teoria externa. Se se compreende que a teoria externa não é
uma teoria normativa, mas uma reconstrução teórica, não se pode ima-
ginar que ela pretenda prescrever o que deve ocorrer - ou seja, por
4.2.2.2.5 Inflação judiciária exemplo, que todo direito prima facie deva ser pleiteado judicialmen-
Aliado às críticas anteriores está o argumento segundo o qual uma te.103 Nesse sentido - e para usar o exemplo de Müller 104 -, a teoria
teoria externa, em conjunto com um suporte fático amplo dos direitos externa não prescreve que o artista que pretende montar seu cavalete
fundamentais, tem conseqüências não apenas materiais, mas também de pinturáno meio de um cruzamento movimentado deva necessaria-
processuais e na organização judiciária. Segundo essa linha, a partir mente ter sua pretensão satisfeita. Embora reconheça que tal ato é um
do momento em que quase toda ação pode ser subsumida a uma nor- exercício da liberdade artística, desse reconhecimento não decorre qual-
ma que garanta, ainda que prima jacie, um direito fundamental, a quer juízo normativo. Nesse sentido, pode-se dizer que as pretensões
quantidade de colisões e, sobretudo, de pretensões ligadas a direitos judiciais com chances de êxito podem ser tão grandes na teoria externa
fundamentais tende a explodir. Com isso, no plano processual - que é quanto no âmbito da teoria interna. 105 Para mencionar apenas um pe-
o que interessa, neste ponto -, a conseqüência seria também uma ex-
plosão no número de ações perante o tribunal competente para julgar 103. A rejeição de um caráter normativo, aqui, deve ser compreendida em cone-
tais colisões - no Brasil, em última instância, o STF. xão com aquilo que já foi exposto anteriormente acerca do enfoque metodológico
deste trabalho (cf. tópico 1.3.3). Já ficou claro, portanto, que o trabalho tem, sim, uma
dimensão normativa. Aqui, contudo, quando se faz a contraposição entre reconstrução
teórica e caráter normativo, e quando se afasta esse último, quer-se apenas ressaltar
Ministros afirmarem ter sido essa uma das decisões mais importantes na história re-
que não é possível definir apenas a partir dos termos da teoria externa quando, em cada
cente do Tribunal, impressiona perceber que não há sequer uma referência a decisões
sJtuação, algo é protegido definitivamente por um direito fundamental. Isso seria tare-
anteriores do mesmo STF nos votos de vários dos Ministros, como se fosse a primei-
fa de uma teoria normativa de cada direito fundamental específico. O caráter normati-
ra vez que o STF estivesse decidindo sobre liberdade de expressão ou racismo.
vo que se aceita neste trabalho é de outra natureza: normativo, aqui, refere-se apenas
102. Aqui não é cabível o argumento simplista segundo o qual no Brasil os
a um modelo, a um procedimento. Assim, o que se pretende prescrever é, por exemplo,
precedentes não têm a mesma força que têm nos países da família da Common Law.
uma forma de compreender as relações entre o suporte fático dos direitos fundamentais
Não se quer, aqui, falar em precedente que vincula estritamente - o que não ocorre
e as restrições a esses direitos.
nem mesmo na Common Law -, mas de precedente que cria ônus argumentativo.
104. Cf. tópico 3.3.1.1.2.
Mudar de posição é sempre possível, e em muitos casos inafastável. Mas isso, no caso
105. É_ claro que seria possível indagar, diante disso, se há alguma diferença
daqueles que exercem o poder jurisdicional, só é possível deforma fundamentada. Se
entre as teonas. Essa mdagação, que também é produto de uma confusão entre teorias
existem precedentes em sentido contrário, surge um ônus argumentativo para deles se
normativas e reconstruções teóricas, será objeto de análise mais adiante (cf. tópico
desvencilhar, que não pode ser ignorado.
4.2.3, abaixo).
RESTRIÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS 153
152 DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONTEÚDO ESSENCIAL, RESTRIÇÕES E EFICÁCIA

queno exemplo, dificilmente alguém concederia alguma chance de êxito teoria normativa, não é possível tirar conclusões no plano processual.
a uma pretensão judicial de um ladrão de banco que, baseado na liber- A quantidade de ações em um determinado âmbito, qualquer que seja,
dade de locomoção, pretendesse ver declarada a inconstitucionalidade não depende, necessária e diretamente, de questões substanciais, mas,
do tipo penal "roubo" porque prescreve pena privativa de liberdade. sobretudo, de questões procedimentais.
Do ponto de vista processual, uma tendência a uma explosão no
número de ações baseadas em direitos prima facie a partir do enfoque 4.2.2.2.6 Direitos irreais
de uma teoria externa seria de se rejeitar, devido à existência de pre-
cedentes judiciais. Ora, se, hipoteticamente, o número de ações pode- A crítica de que se pretende tratar nesse tópico pode ser bem resu-
ria aumentar em um primeiro momento, 106 a existência de precedentes mida com uma pequena transcrição de parte do voto do Min. Maurício
judiciais, em um momento posterior, estabilizaria a quantidade de pre- Corrêa no HC 82.424. Segundo ele: "A previsão de liberdade de ex-
tensões em um patamar condizente com as reais chances de êxito de pressão não assegura o 'direito à incitação ao racismo', até porque um
cada pretensão. Em outras palavras: ainda que fosse possível, em um direito individual não pode servir de salvaguarda de práticas ilícitas,
sem-número de casos, subsumir determinada ação ao exercício de um tal como ocorre, por exemplo, com os delitos contra a honra". 108
direito fundamental- montar o cavalete de pintura no cruzamento mo- É interessante perceber que muitos daqueles que aceitam os pres-
vimentado, por exemplo -, daí dificilmente surgiria uma real ação ju- supostos teóricos da teoria dos princípios, sobretudo na forma desen-
dicial para garantir tal exercício nessas condições. volvida por Alexy - o que significa a aceitação da teoria externa e de
Por fim, do ponto de vista empírico, parece ser difícil no Brasil um suporte fático amplo para os direitos fundamentais-, muitas vezes
fazer uma crítica à teoria externa com base em uma possibilidade de tendem a· não se dar conta de que isso implica aceitar direitos prima
inflação judiciária. Aquele que manifestar uma crítica nesse sentido jacie que muitos não estão dispostos a aceitar. Se se aceita um supor-
estará pressupondo que o número de ações permaneceria controlável te fático amplo, a conseqüência automática é a aceitação de um direi-
se se pressupusesse uma teoria interna e um suporte fático restrito pa- to amplo de liberdade. O que isso significa?
ra os direitos fundamentais. Diante do atual número de recursos extra- Isso significa que em um conceito amplo de liberdade devem ser
ordinários, mandados de segurança e habeas corpus que são julgados incluídas, prima .facie, condutas que eventualmente sejam considera-
anualmente pelo STF, 107 parece ser difícil supor que uma teoria inter- das imorais ou até mesmo ilícitas. Para ficar em um exemplo simples:
na, ao restringir os casos em que se pode falar de exercício de direitos a liberdade expressão protege, por exemplo, um direito à calúnia, à
fundamentais, seja capaz de controlar a quantidade de ações ajuizadas injúria e à difamação. Ainda que possa soar estranho em um primeiro
com base em supostas violações a esses direitos. Com isso fica claro momento, isso é necessário para a coerência da teoria.
que, a partir de uma reconstrução teórica, que não pretende ser uma É óbvio, contudo, que ninguém - nem mesmo os defensores do
suporte fático amplo e da teoria externa- imagina que no direito de-
.finitivo de liberdade estão incluídas ações como furtar; ou que no di-
106. "Primeiro é, aqui, expressão que não tem ligação com um mo- reito definitivo de liberdade de expressão está incluída a possibilidade
mento real qualquer. E apenas uma fórmula argumentativa que pretende apontar para
uma hipotética mudança de pressupostos, como se fosse possível que a doutrina e a
de caluniar à vontade; ou, por fim, que no direito definitivo à liberda-
jurisprudência, em um dado momento, abandonassem uma perspectiva interna e pas- de religiosa está incluída a possibilidade de fazer sacrifícios humanos.
sassem a adotar uma perspectiva externa. Pensar diferente seria, mais uma vez, confundir os planos primafacie
107. Apenas nessas três classes de ações foram julgados, nos últimos três anos, e definitivo, além de imaginar que a teoria externa seja uma teoria
170.460 processos (42.270 em 2005; 49.378 em 2006; e 78.812 em 2007). Se levar-
mos em consideração, ainda, os 190.130 agravos de instrumento julgados no mesmo
período (57.317 em 2005; 57.152 em 2006; e 75.661 em 2007), teríamos, no total,
108. RTJ 188, 858 (891).
360.590 processos julgados, nessas quatro classes de ações, em apenas três anos.
154 DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONTEÚDO ESSENCIAL, RESTRIÇÕES E EFICÁCIA
RESTRIÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS 155

normativa que prescreve tais direitos. O que a teoria externa faz - re- restrita e interna, que festas ao ar livre são exercício do direito de reu-
pita-se - é reconstruir um problema teórico a partir de uma premissa. nião, essa decisão, por ser definitiva, tem que valer inclusive nos casos
Essa premissa é a de que os direitos fundamentais têm suportes fáticos em que tais festas não atrapalhem ninguém e tenham algum interesse
amplos e que as restrições a eles são produtos de um sopesamento com público. A flexibilidade, aqui, tende ao zero e, além disso, qualquer proi-
princípios colidentes. Nesse sentido, seria teoricamente inconsistente bição de reuniões nesses termos passa a não mais depender de funda-
supor, por exemplo, que o direito prima facie à liberdade de expressão mentação constitucional - o que, como já foi ressaltado, tem como
não inclui a possibilidade de caluniar, difamar ou injuriar. Excluir tais efeito uma diminuição na proteção efetiva dos direitos fundamentais.
ações do suporte fático significaria abandonar suas próprias premissas
teóricas. Com isso, ainda que talvez isso não seja para todos percep- E, como já se viu acima, nem sempre é possível - como exige
tível, toda a teoria dos princípios cairia por terra. Isso porque excluir Vieira de Andrade - saber que conteúdos das normas de direitos fun-
tais ações do âmbito de proteção da liberdade de expressão significaria damentais são, de plano, "constitucionalmente inadmissíveis". 110 Se-
pressupor que há expressões que não são protegidas por esse direito, o gundo ele: "Essa delimitação substancial justifica-se, desde logo, pela
que é o pressuposto de um modelo de suporte fático restrito. Além vantagem prática de evitar que venha a considerar-se como uma situa-
disso, isso pressuporia que o legislador ordinário, ao proibir tais con- ção de conflito de direitos aquela em que o conflito é apenas aparente:
dutas, estaria apenas declarando um limite imanente à liberdade de não tem sentido fazer uma ponderação, que pressupõe a consideração
expressão, e não fazendo um sopesamento entre essa liberdade e o di- de dois valores, quando estamos perante um comportamento que não
reito à honra. Tudo isso, como se vê, não é compatível com a teoria dos pode, em caso algum, considerar-se constitucionalmente protegido,
princípios. pois que,pão existindo à partida um dos direitos, a solução só pode
ser a da afirmação total do outro".lll
Por isso, ainda que soe estranho, faz parte da necessidade de coe-
rência teórica aceitar que ações "proibidas" façam parte do âmbito de Quanto ao que ele denomina "vantagem prática"- evitar o aumen-
proteção de direitos fundamentais. Tais ações devem ser consideradas, to nos casos de colisões entre direitos e a conseqüente inflação judiciá-
primafacie, como exercício desses direitos, sob pena de uma ruptura ria-, isso já foi tratado anteriormente. 112 No que diz respeito a conteú-
interna na teoria. dos constitucionalmente inadmissíveis e colisões apenas aparentes,
Além disso, é fácil perceber o quão tênue é a passagem da acei- talvez seja interessante utilizar um exemplo do próprio Vieira de An-
tação de "direitos grotescos" 109 para a aceitação de ações sobre cuja drade e outro de Friedrich Müller. Segundo Vieira de Andrade não há
inclusão no âmbito de proteção de algum direito fundamental não há restrição alguma à liberdade artística se se proíbe um artista de montar
consenso. Para ficar em um exemplo simples: festas ao ar livre, em seu cavalete de pintura em um cruzamento viário. 113 Isso porque tal
local aberto ao público, estão protegidas pela norma que garante o di- ação está excluída "à partida", 114 do âmbito de proteção desse direito
reito de reunião (art. 5º, XVI)? Para a teoria externa e um modelo de fundamental. O mesmo valeria, no exemplo de Friedrich Müller, para
suporte fático amplo a resposta é mais que óbvia: prima facie sim, o caso do trombonista que queira fazer improvisações de trombone
ainda que isso possa ser restringido posteriormente, devido a alguma
eventual colisão com outros direitos fundamentais ou interesses cole- 110. José Carlos Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais na Constituição
tivos. Para aqueles que sustentam um suporte fático restrito e uma portuguesa de 1976, p. 287.
teoria interna a resposta poderá ser não, mas poderá também ser sim. 111. Idem, pp. 287-288.
O problema é que, uma vez que se negue, a partir de uma concepção 112. Cf. tópico 4.2.2.2.5.
113. Cf. José Carlos Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais na Cons-
portuguesa .de !976, p. 294. Como se viu anteriormente, esse exemplo é,
ongmalmente, de Fnednch Müller (cf. tópico 3.3.1.1.2).
109. Cf., nesse sentido, Christian Starck, "Die Grundrechte des Grundgesetzes",
114. José Carlos Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais na Constituição
JuS 21 (1981), p. 245.
portuguesa de 1976, p. 287.
156 DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONTEÚDO ESSENCIAL, RESTRIÇÕES E EFICÁCIA RESTRIÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS !57

durante a madrugada. Para perceber, aqui, o problema dessa exclusão necessariamente, conclusões diferentes. 117 É muito possível, portanto,
"à partida" de determinadas condutas, poder-se-ia, claro, recorrer a que, ainda que os pressupostos e os meios utilizados na análise divirjam,
casos menos artificialmente criados, mas é possível também- e mais os resultados sejam os mesmos. Se isso pode ser assim, é de se pergun-
interessante, para os fins da argumentação - trabalhar com os casos tar se também o seria no caso do objeto de análise deste trabalho.
mencionados. A exclusão de ambas as condutas da proteção de um Segundo Jorge Miranda, a resposta seria afirmativa. 118 Parece-me,
direito fundamental (liberdade artística) tem como conseqüência ina- no entanto, que, mesmo que exista uma grande possibilidade de resul-
fastável a possibilidade- sem qualquer necessidade de fundamentação tados iguais, quer se parta de uma teoria interna, quer se parta de uma
-de retirar- à força, caso necessário - o pintor que pinta seu quadro teoria externa, isso não significa, de um lado, que os resultados serão
em um cruzamento viário bloqueado, ou seja, no qual não circula, por sempre e necessariamente iguais, e, de outro, que, mesmo que se che-
alguma razão, em determinado momento, qualquer automóvel. 115 No gue a resultados iguais, a equivalência e a solidez de ambas as teorias
caso do trombonista, se fazer improvisações de madrugada é algo não possam, por isso, ser igualadas. Para ilustrar esse segundo ponto- ou
protegido, pouco pode importar se o apartamento do artista tem algum seja, a pequena importância que a semelhança de resultados pode ter
tipo de isolação acústica 116 ou se todos os seus vizinhos estejam via- na construção de teorias, modelos e suas respectivas exigências justifi-
jando; ou seja, pouco importa se sua improvisação atrapalha alguém. catórias - é possível retomar um exemplo já analisado anteriormente.
Proibi-la ou reprimi-la, aqui nesse caso também, passa a ser uma ques- No caso da ADI 2566 teria sido possível, a partir de uma teoria
tão de conveniência, e não apenas por parte do legislador em sentido interna e de um suporte fático restrito, chegar à conclusão de que a
estrito, mas, muito provavelmente, até mesmo da autoridade local ou vedação do proselitismo nas emissoras comunitárias é constitucional.
da autoridade policial. Bastaria iiceitar os argumentos da Advocacia-Geral da União: prose-
Em suma: por mais que os exemplos usados pareçam, à primeira litismo não é manifestação da liberdade de expressão, e sua vedação
vista, casos óbvios de não-proteção de condutas por algum direito nas emissoras comunitárias não constitui, portanto, violação alguma a
fundamental, casos de direitos irreais, algumas poucas alterações em esse direito. A partir dos pressupostos da teoria externa e de um mo-
algumas variáveis secundárias podem mostrar que mesmo nesses ca- delo de suporte fático amplo seria possível argumentar que, a despei-
sos só é possível imaginar algum tipo de restrição ao direito em ques- to de o proselitismo ser conduta protegida por um direito fundamental
tão após um sopesamento com eventuais direitos colidentes. (liberdade de expressão) e a despeito de sua proibição significar, por
conseguinte, uma restrição ao exercício desse direito, pelas razões RI,
R2, R3 ... Rn essa restrição deve ser considerada como constitucional-
4.2.3 Diferentes teorias e seus efeitos
Não é novidade alguma o fato de que diferentes teorias ou mode- 117. Cf., por exemplo: Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, p. 483 [tradução
brasileira: pp. 531-532); Christian Starck, "Human Rights and Private Law in Ger-
los para a compreensão de um determinado fenômeno não implicam, man Constitutional Development", in Daniel Friedmann/Daphne Barak-Erez (eds.),
Human Rights in Private Law, Oxford: Hart, 2003, p. 98; Franz Bydlinski, "Be-
rnerkungen über Grundrechte und Privatrecht", 6sterreichische Zeitschrift für offen-
115. Cf., nesse sentido, Jürgen Schwabe, Probleme der Grundrechtsdogmatik, tliches Recht 12 (1962/63), p. 441; Wilson Steinrnetz, A vinculação dos particulares
2ª ed., Hamburg, 1997, p. 160. a direitos fundamentais, São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 265; Virgílio Afon-
116. Idem. Schwabe ainda acrescenta que, a partir da exclusão a priori de con- so da Silva, A constitucionalização do direito, p. 141.
dutas, no caso do trombonista, urna eventual necessidade de recorrer ao seu instru- 118. Cf. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, vol. IV, pp. 336-337:
mento, no meio da madrugada, devido a algum tipo de inspiração momentânea tarn- "Supomos( ... ) que, ao fim e ao resto, os resultados não serão muito diversos, adopte-
terá que ser considerada corno não-protegida. Poder-se-ia dizer: a inspiração se urna [isto é, teoria interna] ou adopte-se outra, [isto é, teoria externa] até porque
art1st1ca acaba f1cando restringida ao horário comercial, quem sabe também apenas nenhum direito e também nenhuma restrição podem ser encarados isoladamente, à
nos dias úteis. margem dos restantes direitos e dos princípios institucionais que lhes subjazem".
RESTRIÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS 159
158 DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONTEÚDO ESSENCIAL. RESTRIÇÕES E EFICÁCIA

to e a restrição é uma relação que segue as premissas da teoria externa.


mente aceita. O teor da decisão, como se percebe, é o mesmo: proibir
(2) Embora o sigilo bancário seja considerado, por autores que restrin-
o proselitismo não é inconstitucional. Mas a forma de se chegar a essa
gem o âmbito de proteção da privacidade, como algo por ela não pro-
mesma conclusão é muito diferente. No primeiro caso é a própria pré-
tegido (suporte fático restrito e exclusão a priori de algumas condutas
compreensão do que significa liberdade de expressão e de seus limites
ou situações jurídicas), é possível, mesmo assim, imaginar que o que
imanentes que define o resultado; no segundo caso a constitucionali-
resta da privacidade - ou seja, aquilo que é protegido por seu âmbito
dade ou inconstitucionalidade da medida não é definida por qualquer
restrito- possa ser, posteriormente, restringido (teoria externa).
pré-compreensão, mas por argumentos que têm de ser elencados às
claras e bem-fundamentados. Com isso fica patente que a mera possi- Essa não-necessária relação entre os diferentes modelos de cons-
trução do suporte fático (amplo e restrito) e as diferentes teorias acerca
bilidade de alcançar resultados idênticos não é suficiente para igualar
da relação entre o direito e suas restrições ou seus limites (teorias in-
ambos os procedimentos.
terna e externa) é algo que se verifica com muita freqüência na expe-
riência daqueles países em que esses problemas são discutidos dessa
4.2 .4 Teoria externa e suporte fático forma. Ou seja: a tendência verificada é muito maior no sentido de se
aceitar uma teoria externa e, ao mesmo tempo, defender um suporte
Do analisado até aqui, é possível que se imagine que não há dife- restrito do que os binômios que poderiam talvez ser considerados como
rença alguma entre a dicotomia suporte fático restrito vs. suporte fá- mais intuitivos -restrito/interna e amplo/externa. Nos dois tópicos a
tico amplo e a contraposição teoria interna vs. teoria externa. Defen- seguir essa tendência será analisada, de forma muito breve e como
der um suporte fático restrito seria, então, a mesma coisa que aceitar mera ilustração, com base no debate doutrinário e jurisprudencial
uma teoria interna, enquanto o suporte fático amplo seria um reflexo travado na Alemanha.
da teoria externa. Essa não é, contudo, uma ligação nem necessária,
nem freqüente.
4.2.4.1 Pieroth/Schlink
Não é uma ligação necessária porque, metodologicamente, falar
em extensão do suporte fático não implica falar na forma de relação Seria possível, aqui, analisar um sem-número de autores que de-
entre o direito e suas restrições. Isso é perceptível com clareza por fendem uma teoria externa e, ao mesmo tempo, um suporte fático res-
meio da possibilidade de se pressupor um suporte fático restrito e, ao trito para os direitos fundamentais. 119 Como ilustração, contudo, tal-
mesmo tempo, aceitar as premissas da teoria externa no que diz res- vez seja mais importante recorrer a apenas dois autores: Bodo Pieroth
peito à relação entre o direito em si e suas restrições. Para usar os dois e Bernhard Schlink. 120 A razão é simples: como salienta B6ckenf6rde,
exemplos analisados no final do capítulo 3, seria metodologicamente
possível imaginar as seguintes situações: (1) O suporte fático da liber-
dade de imprensa deve ser definido de forma restrita: isso significa, 119. Cf., por exemplo: Josef Isensee, "Das Grundrecht als Abwehrrecht und
als staatliche Schutzpflicht", in Josef Isensee/Paul Kirchhof (orgs.), Handbuch des
entre outras coisas, que programas de rádio ou TV que tenham como Staatsrechts der Bundesrepublik Deutsch/and. voi. V, § 111, Heidelberg: C. F. Mül-
único objetivo caluniar alguém ou, ainda, programas de emissoras ler, 1992, pp. 143-241; Klaus Stern, "Die Grundrechte und ihre Schranken", pp. l.
comunitárias que tenham como objetivo o proselitismo religioso não e ss.; Hans D. Jarass, "Grundrechte ais Wertentscheidungen bzw. objektivrechtliche
Prinzipien in der Rechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts•', AüR 11 O
são situações protegidas por esse direito. Isso não significa, contudo,
(1985), pp. 392 e ss.; Wolfgang Hoffmann-Riem, "Enge oder weite Gewahrleistung-
que outras condutas protegidas pela liberdade de imprensa não pos- sgehalte der Grundrechte?", in Michael Bauerle et al. (orgs.), Haben wir wirklich
sam ser eventualmente vedadas em uma dada situação. Como se perce- Recht?, Baden-Baden: Nomos, 2003, p. 71.
be, o suporte fático é definido restritivamente (algumas condutas são 120. Cf. Bodo Pieroth/Bernhard Schlink, Grundrechte- Staatsrecht li, 16ª ed.,
Heidelberg: C. F. Müller, 2000.
excluídas a priori do âmbito de proteção), mas a relação entre o direi-
160 DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONTEÚDO ESSENCIAL, RESTRIÇÕES E EFICÁCIA RESTRIÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS 161

o trabalho de Pieroth e Schlink, nas últimas duas décadas, marcou - e ria uma banalização dos direitos fundamentais e exigiria uma justifi-
continua marcando- gerações de novos operadores do direito, de fun- cação constitucional para qualquer ação estatal, já que qualquer ação
cionários públicos a juízes. 121 É, com certeza, o manual de direitos poderia ser considerada uma intervenção no âmbito de proteção de
fundamentais mais lido na Alemanha. Na esfera da relação entre o di- um direito fundamentaL 125 Por isso, a definição do que é e do que não
reito e suas restrições é, muito provavelmente, um dos trabalhos mais é protegido pelos direitos fundamentais deve ser feita criteriosamente,
citados e tem também grande influência em autores brasileiros. 122 levando em consideração os cânones da interpretação jurídica: inter-
O modelo proposto por Pieroth e Schlink é a mais pura tradução pretação gramatical, histórica, genética e sistemática. 126
da teoria externa. Sua proposta de uma sistemática para a solução de Pieroth e Schlink discordam, nesse ponto, frontalmente da teoria
casos envolvendo direitos fundamentais- ou seja, a verificação acerca do suporte fático amplo e da forma como Alexy reconstrói a questão.
da constitucionalidade de leis que restrinjam direitos fundamentais- é Como já foi visto acima, 127 Alexy defende que toda ação, estado ou
baseada nas seguintes perguntas: (1) As situações/condutas reguladas posição jurídica que tenha alguma característica que, isoladamente
pela lei em questão são protegidas pelo âmbito de proteção de um di- considerada, faça parte do "âmbito temático" de determinado direito
reito fundamental? (2) A regulamentação é uma intervenção nesse fundamental deve ser considerada como abrangida por seu âmbito de
âmbito? (3) Essa intervenção é constitucionalmente justificável? 123 Co- proteção, independentemente da consideração de outras variáveis. 12 R
mo se percebe, primeiro é definido o âmbito de proteção de um direi- Pieroth e Schlink, ao contrário, defendem que a definição do âmbito
to(= o direito em si); depois se questiona se determinada ação estatal de proteção de um direito fundamental não pode ser feita de forma
é uma intervenção nesse âmbito, e se essa intervenção é constitucio- isolada, sém uma análise sistemática de outros direitos fundamentais
nalmente justificáveL Em caso afirmativo, estamos diante de uma res- e de outras disposições constitucionais. 129 A partir dessa análise siste-
trição a um direito fundamental (= o direito definitivo). Ou seja: é mática poderão ser excluídas algumas condutas ou situações jurídicas
possível que uma conduta faça parte do âmbito de proteção de um di- do âmbito de proteção de alguns direitos fundamentais mesmo que,
reito, mas seja vedado posteriormente seu exercício, sem que isso mo-
difique aquele âmbito de proteção. Direito e restrições são coisas distin-
tas, ou seja, as restrições são algo externo ao direito. Essas são as linhas 125. Idem, § 229, p. 56. Segundo os autores, a liberdade de consciência, se se
partir de um suporte amplo, protegeria qualquer ação baseada em um convencimento
básicas da teoria externa, como já foi visto ao longo deste capítulo.
individual de cada cidadão sobre o que é bom e o que é ruim. Diante disso, até mesmo
Pieroth e Schlink rejeitam, no entanto, um modelo baseado em a proibição de cruzar o farol vermelho seria uma restrição à liberdade de consciência,
um suporte fático amplo. Segundo eles, nada há que justifique uma e teria que ser fundamentada constitucionalmente.
126. Nesse sentido - e citando Pieroth/Schlink -, cf. Gilmar Ferreira Mendes,
tendência à ampliação desse suporte. 124 Pelo contrário, isso significa- "Âmbito de proteção de direitos fundamentais e as possíveis limitações", pp. 212-213.
127. Cf. tópico 3.3.2.2.1.
128. Cf. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, p. 291 [tradução brasileira:
12!. Cf. Ernst-Wolfgang Bockenforde, "Schutzbereich, Eingriff, veifassung- pp. 322-323J.
simmanente Schranken: Zur Kritik gegenwartiger Grundrechtsdogmatik", Der Staat 129. Cf. Bodo Pieroth/Bernhard Schlink, Grundrechte- Staatsrecht li, § 233,
42 (2003), p. 166. p. 57. Como visto acima (nota de rodapé 126), Gilmar Mendes sustenta os mesmos
122. Cf., por todos, os trabalhos de Gilmar Ferreira Mendes e Leonardo Martins. pressupostos teóricos que Pieroth e Schlink sobre a definição de âmbito de proteção.
123. Cf. Bodo Pieroth/Bernhard Schlink, Grundrechte- Staatsrecht li, 16" ed., Mas, ao mesmo tempo, defende ele também a concepção de direitos fundamentais
§§ 345 e ss., pp. 77 e ss. Essa última questão é subdividida em 10 outras subquestões. como princípios, nos termos de Robert Alexy (cf. Gilmar Ferreira Mendes. "Âmbito
Não é necessário, aqui, entrar nesses detalhes. Para os objetivos deste tópico as três de proteção de direitos fundamentais e as possíveis limitações", p. 226). Ambas as
questões principais são suficientes. posições (Pieroth/Schlink, de um lado, e Alexy, de outro), no entanto, por divergirem
124. Cf. Bodo Pieroth/Bernhard Schlink, Grundrechte- Staatsrecht li, § 230, em um ponto essencial da definição do âmbito de proteção dos direitos fundamentais
p. 57. (restrito vs. amplo). parecem ser. pelo menos nesse ponto, incompatíveis.
162 DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONTEÚDO ESSENCIAL, RESTRIÇÕES E EFICÁCIA RESTRIÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS 163

isoladamente consideradas, tais condutas façam parte do "âmbito te- não-coincidência necessária entre uma teoria externa e um modelo
mático" desses direitos. amplo de suporte fático para os direitos fundamentais. Como se po-
A posição de Pieroth e Schlink é bastante representativa do está- derá perceber, a decisão no caso Osho parte de uma teoria externa e,
gio atual da doutrina dos direitos fundamentais na Alemanha: 130 alia- ao mesmo tempo, de um suporte restrito.
se, portanto - ao contrário do que se defende neste trabalho-, a teoria O governo alemão em diversas ocasiões, ao se referir ao movi-
externa com um suporte fático restrito para os direitos fundamentais. mento religioso Osho, utilizou-se de expressões como "seita", "psi-
cosseita", "cultos religiosos destrutivos" e "pseudo-religião". Incon-
formadas com essas denominações, algumas associações ligadas a
4.2.4.2 Jurisprudência: o caso Osho esse movimento religioso ajuizaram ação para impedir que o governo
Algumas decisões recentes do Tribunal Constitucional alemão voltasse a utilizá-las, sob o argumento de que isso feriria a liberdade
também trouxeram à tona a tensão, existente no interior da teoria de religião e de culto, bem como a separação entre Igreja e Estado.
externa, entre os modelos amplo e restrito para o suporte fático dos Após resultados parcialmente vitoriosos em algumas instâncias e
direitos fundamentais. Essas decisões, sobretudo a decisão no caso completamente negativos em outras, o problema chegou ao Tribunal
Osho, 131 foram motivos de fortes debates, envolvendo, inclusive, juí- Constitucional.
zes do Tribunal Constitucional. De um lado, alguns autores criticaram De um lado, no que diz respeito ao controle de algumas expres-
o que consideram um retrocesso na jurisprudência do tribunal em di- sões utilizadas - como "pseudo-religião" e "religião destrutiva" -, o
reção à restrição de seu conceito de suporte fático. 132 De outro, lide- Tribunal aceita os termos da teoria externa. A constatação de que uma
rados sobretudo por Wolfgang Hoffmann-Riem, Juiz do Tribunal ação estatal é uma intervenção em um direito fundamental- liberdade
Constitucional alemão, alguns autores comemoraram a mudança de religiosa - dá início ao controle típico dessa teoria: controlam-se a
orientação. 133 proporcionalidade e a constitucionalidade da intervenção. 134
Este tópico pretende fazer apenas uma "breve notícia" do debate, No caso do uso de outras expressões- como "seita" e "psicossei-
em primeiro lugar por ser um dos mais importantes, atualmente, no ta" - o tribunal negou que implicasse alguma intervenção no âmbito
âmbito dos direitos fundamentais na Alemanha, e em segundo lugar de proteção da liberdade religiosa, por se tratar de manifestações no
por demonstrar a importância de uma precisa distinção de conceitos contexto de uma discussão pública já marcada pelo uso de tais deno-
nessa área; além de, por fim, fechar a questão do tópico 4.2.4, que é a
minações. Com isso, fica claro que o tribunal parte de um suporte
fático restrito, porque exclui algumas condutas, de antemão, do con-
130. Cf., para alguns autores, a nota de rodapé 119, acima. ceito de intervenção em um direito fundamental. 135 Isso ocorre quando
131. BVerfGE 105, 279. se nega que algumas expressões difamatórias, embora proferidas por
132. Cf., sobretudo: Wolfram Hofling, "Kopemikanische Wende rückwarts? Zur agentes estatais, constituam intervenção na liberdade religiosa pelo
neueren Grundrechtsjudikatur des Bundesverfassungsgerichts", in Stefan Muckel
(org.), Kirche und Religion im sozialen Rechtsstaat, Berlin: Duncker & Humblot, 2003; simples fatos de terem sido utilizadas em determinado contexto.
Wolfgang Kahl, "Vom weiten Schutzbereich zum engen Gewahrleistungsgehalt", Der
Staat 43 (2004), pp. 167-202; Wolfram Cremer, "Der Osho-Beschluss des BVerfG",
JuS 43 (2003), pp. 747 e ss. 134. Se se partisse de uma teoria interna, a constatação de uma intervenção seria
133. Cf. sobretudo Wolfgang Hoffmann-Riem, "Grundrechtsanwendung unter sinônimo de violação inconstitucional.
Rationalitatsanspruch: eine Erwiderung auf Kahls Kritik an neueren Ansatzen in der 135. É irrelevante, aqui, discutir se a exclusão se deu a partir do âmbito de
Grundrechtsdogmatik", Der Staat 43 (2004), pp. 203-223; do mesmo autor, "Gesetz proteção ou da qualidade da intervenção. Como se viu anteriormente (cf. tópico
und Gesetzesvorbehalt im Umbruch: Zur Qualitats-Gewahrleistung durch Normen", 3.3.2.2.2), tanto uma quanto a outra estratégia seriam uma forma de restringir o su-
AoR 130 (2005), pp. 5-70. porte fático do direito fundamental.
164 DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONTEÚDO ESSENCIAL, RESTRIÇÕES E EFICÁCIA RESTRIÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS 165

A importância de um caso aparentemente sem valor como o ca- Ao garantir direitos primafacie, que poderão ser restringidos em
so Osho reside, como já se sublinhou, em um possível início de determinadas circunstâncias, os princípios, como mandamentos de oti-
mudança de orientação do Tribunal Constitucional alemão em dire- mização, revelam uma de suas características principais, que é a capa-
ção a um modelo de suporte fático restrito. 136 Com isso, diversas si- cidade de serem sopesados. O sopesamento é exatamente aquilo que
tuações que exigiriam um controle de constitucionalidade mais de- liga- e fundamenta- o caráter inicial e primafacie de cada princípio
talhado passam a ser resolvidas no primeiro passo do controle, que com o dever-ser definitivo nos casos concretos. Ora, é justamente co-
é a definição do suporte fático do direito fundamental em questão. mo alternativa ao sopesamento e à própria idéia de restrição a direitos
Negada a intervenção no âmbito de proteção do direito, a partir de fundamentais que os limites imanentes são concebidos. Além do que
alguma forma de exclusão a priori de condutas, o controle encerra-
já foi visto anteriormente neste trabalho, vale recorrer, neste ponto
se prematuramente.
específico, à definição que Ana Paula de Barcellos dá à idéia de limi-
tes imanentes: "Por ela se sustenta que cada direito apresenta limites
4.3 Limites imanentesy direitos prima fade lógicos, imanentes, oriundos da própria estrutura e natureza do direito
e sopesamento e, portanto, da própria disposição que o prevê. Os limites já estão C(Jn-
tidos no próprio direito, portanto não se cuida de uma restrição im-
À vista do analisado até aqui, é possível tirar algumas conclusões posta a partir do exterior". l 39
importantes acerca da relação de diversos conceitos relacionados às
restrições aos direitos fundamentais. Ao abordar o problema dos limi- Corno se percebe claramente, ao afirmar que os limites já estão
tes imanentes, Suzana de Toledo Barros, após enunciar algumas das contidos no próprio direito, Ana Paula de Barcellos deixa claro que
possíveis estratégias de fundamentação- como a cláusula de não-per- não pode haver, nos casos de teorias que pressupõem a existência de
turbação, por exemplo -, chega à conclusão, citando Alexy, de que: limites imanentes, uma distinção entre o conteúdo prímajacie e o con-
"A existência de limites imanentes decorre, em última análise, do ca- teúdo definitivo de um direito fundamental. Esse é, no entanto, o cer-
ráter de princípio das normas de direitos fundamentais e de seus efei- ne da definição de princípios para Alexy. l 40
tos considerados dentro do sistema jurídico". 137 A partir dessa constatação, fica patente também a incompatibi-
Após a análise feita acima entre os pressupostos das teorias inter- lidade entre a idéia de limites imanentes e a exigência de sopesa-
na e externa, e também em decorrência da distinção entre suporte fáti- menta. Como já ficou claro a partir da análise da teoria interna- que
co amplo e suporte fático restrito, parece-me que não é possível fun- é a teoria dos limites imanentes por excelência -, se os limites de
damentar limites imanentes aos direitos fundamentais a partir de sua cada direito são definidos internamente e se não há a possibilidade
conceituação como princípios, ou seja, como mandamentos de otimiza- de restrição constitutiva externa, é evidente que não há qualquer
ção. Ambos os conceitos são, ao contrário, inconciliáveis, corno já foi possibilidade de sopesamento entre direitos fundamentais. Não
visto acima. 138 apenas isso: não há nem possibilidade, nem necessidade, já que a
limitação interna faz com que as colisões deixem de existir - o que
136. Wolfgang Kahl refere-se a essa mudança como uma "profunda transfor-
mação na dogmática dos direitos fundamentais na Alemanha", que está ainda longe
muito longe de seu desfecho ("Vom weiten Schutzbereich zum engen Gewiihrleistun- Scholz (orgs.), Wege und Verfahren des Verfassungslebens: Festschriftfür Peter Lerche
gsgehalt", p. 175). zum 65. Geburtstag, München: Beck, 1993, p. 268.
137. Suzana de Toledo Barros, O princípio da proporcionalidade e o controle de 139. Ana Paula de Barcellos. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional,
constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, p. 170. p. 59.
138. Em sentido contrário - ou seja, no mesmo sentido de Suzana de Toledo 140. Cf., por todos, Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, pp. 87 e ss. [tradu-
Barros-, cf. Dieter Lorenz, "Wissenschaft dmf nicht alles!", in Peter Badura/Rupert ção brasileira: pp. 103 e ss.].
166 DIREITOS FUNDAMENTAIS CONTEÚDO ESSENCIAL, RESTRIÇÕES E EFICÁCIA
RESTRIÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS 167

afasta, automaticamente, a figura do sopesamento, cuja realização e não apenas declaratória. 144 Assim é que, usando o mesmo exemplo
tem como escopo justamente resolver colisões. Sem colisões não há já mencionado várias vezes acima, afirma ele: "( ... )o pintor que colo-
sopesamento. 141 ca o seu cavalete de pintura num cruzamento de trânsito particular-
mente intenso tem, prima facie, o direito de criação artística, mas, a
posteriori, a ponderação de outros bens, a começar pela vida e inte-
4.3.1 Canotilho e os limites imanentes
gridade física do próprio pintor( ... ) levará a impedir que aquele direi-
Para evitar algumas confusões, é preciso esclarecer, por fim, o to se transforme, naquelas circunstâncias, num direito definitivo". 145
sentido que Canotilho dá ao conceito de limite imanente, visto que é Dessa forma, se houve intervenção externa (a posteriori) ao di-
diferente do sentido apresentados nos tópicos anteriores. Além disso, reito, houve restrição, e não a declaração de limites imanentes.
como Canotilho se refere, ao mesmo tempo, a limites imanentes, a
colisões entre direitos e a restrições externas, 142 uma breve digressão
é necessária, em vista do que foi afirmado no tópico anterior. Não se 4.4 A regra da proporcionalidade
trata, nesse caso, de "mistura do imisturável". O ponto central no
Em vários pontos do trabalho já se falou sobre proporcionalida-
argumento de Canotilho é a utilização da expressão "limites imanen-
de.146 Nos próximos tópicos pretendo analisar sua estrutura, seus pro-
tes" não como limites apriorísticos revelados pelo intérprete, mas
blemas e sua forma de aplicação. Ao longo da análise que se segue, as
como produto de sopesamento entre direitos colidentes. Nas palavras
ligações da regra da proporcionalidade com um modelo de suporte
de Canotilho: "( ... ) os chamados 'limites imanentes' são o resultado
fático amplo e a teoria externa, que em geral não são levadas em con-
de uma ponderação de princípios jurídico-constitucionais conducente sideração nem pela doutrina, nem pela jurisprudência, ficarão cada vez
ao afastamento definitivo, num caso concreto, de uma dimensão que, mais claras. Antes, porém, é necessário que se esclareça o porquê de
prima facie, cabia no âmbito prospectivo de um direito, liberdade e chamar a proporcionalidade, que quase sempre é denominada "princí-
garantia". 143 pio da proporcionalidade", de regra da proporcionalidade. 147
Nesse sentido - e como se verá -, aproxima-se sua posição da
tese aqui defendida. Não me parece aconselhável, contudo, o uso da
expressão "limites imanentes", como já ficou claro no tópico anterior. 144. A utilização da expressão "limites imanentes" na obra de Canotilho parece
ser o resquício de posições anteriormente defendidas pelo autor e que, com o tempo,
Em primeiro lugar porque a expressão já está marcada como conceito foram modificadas. Assim, como Canotilho antes defendia a idéia dos limites ima-
contraposto à idéia de restrição produzida por um sopesamento ou nentes na forma como descrita em tópicos anteriores e, com o passar do tempo, foi
ponderação. Em segundo lugar porque não me parece acertado deno- dela se afastando, parece que houve uma mudança de posição sem a correspondente
minar imanente um limite que não apenas surge somente com o caso mudança terminológica. Cf., para exemplo da posição anterior do autor: J. J. Gomes
Canotilho, Direito constitucional, 3ª ed., Coimbra: Almedina, 1983, p. 468: segundo
concreto, como também dele depende. O próprio Canotilho adverte ele, limites imanentes seriam os limites contidos nas próprias disposições constitucio-
-e aqui fica ainda mais claro o uso diverso que faz da expressão "li- nais, garantidoras de direitos fundamentais. Nesse sentido, quando "o legislador or-
mites imanentes"- que a restrição é a posteriori, ou seja, constitutiva, dinário reproduzir estes limites imanentes, ele não estará a criar novos limites, antes
confirma, de forma declarativa, os limites preexistentes, contidos na Constituição".
Essa é, no entanto, uma posição que ele rejeita, razão pela qual o emprego da expres-
são "limites imanentes" poderia também ser abandonado.
141. Em sentido semelhante, cf. Ana Paula de Barcellos, Ponderação, raciona- 145. J J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituiçiio, p.
lidade e atividade jurisdicional, p. 62. 1, 148 (sem grifos no original).
142. Cf. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituição, 146. Cf., por exemplo, tópicos 2.3.3, 3.3.3,3, 4.2.2 e 4.2.2.1.
p. 1.148.
147. Sobre essa questão terminológica, cf., com mais detalhes, Virgílio Afonso
143. Idem. da Silva, "O proporcional e o razoável", RT 798 (2002), pp, 23-50.
168 DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONTEÚDO ESSENCIAL, RESTRIÇÕES E EFICÁCIA RESTRIÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS 169

4.4.1 Questões terminológicas: nalidade de regra- como propus em outro trabalho 152 - mms •
comp1'1-
princípio, máxima, regra ou postulado caria que esclareceria. 153 Um indício disso seria o fato de que até
mesmo os adeptos da teoria dos princípios, na linha proposta por Ale-
Como se viu no capítulo 2, o conceito de princípio que aqui se
xy, reconhecem que a proporcionalidade seria um tipo de
adota não tem relação com a importância da norma a que tal denomi- regra, e não uma regra comum. 154 Embora o que Borowskl e Sieck-
nação se aplica. Princípio, nos termos deste trabalho, é uma norma mann chamam de "regra de tipo especial" seja o conceito de manda-
que exige que algo seja realizado na maior medida possível diante das
mento de otimização, e não a proporcionalidade, não há dúvidas de que
condições fáticas e jurídicas do caso concreto. 148 A proporcionalidade,
a proporcionalidade não é uma regra de conduta, nem uma regra de
como será visto nos próximos tópicos, não segue esse raciocínio. Ao
atribuição de competências. 155 Ocorre que há diversas outras regras
contrário, tem ela a estrutura de uma regra, porque impõe um dever
que também não se enquadram nessas categorias, não apenas a propor-
definitivo: se for o caso de aplicá-la, essa aplicação não está sujeita a
cionalidade ou a razoabilidade. Para ficar apenas em um exemplo, as
condicionantes fáticas e jurídicas do caso concreto. Sua aplicação é,
três regras de resolução de antinomias - lei posterior derroga lei ante-
portanto, feita no todo. 149
rior, lei superior derroga lei inferior e lei especial derroga (parcialmen-
Excluída a possibilidade de denominá-la "princípio da proporcio- te) lei geral- também são regras sobre aplicações de outras regras.
nalidade" - pelo menos nos termos deste trabalho -, restam algumas
Não me parece ser o caso de tentar demonstrar se há um certo e
alternativas propostas pela doutrina. A primeira delas seria a denomi-
um errado nesse âmbito. Para aqueles que pensam que não chamar
nação "máxima da proporcionalidade", que seria a tradução direta do
uma regra de regra apenas porque ela não é uma regra de conduta ou
termo alemão. O problema dessa denominação reside no fato de que,
de competência pode facilitar a compreensão das coisas, o recurso a
na linguagem jurídica brasileira, "máxima" não é um termo utilizado
outras denominações, como a de "postulado normativo aplicativo",
com freqüência e, mais que isso, pode às vezes dar a de
pode ser uma saída. Desde que se tenha em mente, claro, que também
tratar não de um dever, como é o caso da aplicação da proporciOnali-
esses postulados têm a estrutura de regra.
dade, mas de uma mera recomendação.
Por fim, Humberto Á vila sugere que a proporcionalidade seja No presente trabalho, contudo, por achar que a denominação "pos-
considerada como aquilo que ele denomina de postulado normativo tulado normativo aplicativo" não contribui para um incremento de cla-
aplicativo. 150 linhas gerais, um postulado normativo reza conceitual, dou preferência a chamar a regra da proporcionalidade
seria, segundo A vila, uma norma que estabelece a estrutura de aplica- de "regra", também tendo em mente de que se trata de uma regra espe-
. uma me t anorma. 151
ção de outras normas, ou seJa, cial, ou uma regra de segundo nível ou, por fim, de uma meta-regra.
Embora a proporcionalidade não seja, de fato, uma regra de con-
duta, mas uma regra acerca da aplicação de outras regras, não me 4.4.2 Adequação
parece que recorrer a uma idéia "postulado normativo
vo" tenha alguma razão de ser. A vila alerta que chamar a proporc10- Quando uma medida estatal implica intervenção no âmbito de pro-
teção de um direito fundamental, necessariamente essa medida deve
ter como objetivo um fim constitucionalmente legítimo, que, em geral,
148. Cf., por todos, Robert A1exy, Theorie der Grundrechte, p. 75 [tradução
brasileira: p. 90].
149. Cf. Virgílio Afonso da Silva, "O proporcional e o razoável", p. 26, e 152. Cf. Virgílio Afonso da Silva, "O proporcional e o razoável", p. 26.
Humberto Ávila, "A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de 153. Cf. Humberto Ávila, Teoria dos princípios, p. 135.
proporcionalidade", RDA 215 (1999), p. 169. 154. Idem, p. 136, referindo-se a Martin Borowski e Jan-R. Sieckmann.
150. Cf. Humberto Ávila, Teoria dos princípios, p. 88. 155. Essas seriam, segundo Hart, as duas espécies de regras jurídicas (The Con-
151. Idem, p. 122. cept of Law, Oxford: Clarendon, 1961, pp. 77 e ss.).
170 DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONTEÚDO ESSENCIAL, RESTRIÇÕES E EFICÁCIA RESTRIÇÕES A DIREITOS FUNDAMEN1AIS 171

é a realização de outro direito fundamental. Aplicar a regra da propor- uma situação de necessidade, de urgência ou de que "algo precisa ne-
cionalidade, nesses casos, significa iniciar com uma primeira indaga- cessariamente ser feito". Isso por duas razões. Em primeiro lugar
ção: A medida adotada é adequada para fomentar a realização do ob- porque a adoção da medida - mesmo que eventualmente necessária
jetivo perseguido? Há autores que defendem indagação mais exigente, nos termos da proporcionalidade - pode ser uma questão de oportuni-
no sentido de se analisar se a medida é adequada não apenas para fo- dade e conveniência política. Não há, nesse sentido, relação alguma
mentar, mas para realizar por completo o objetivo perseguido. 156
entre necessidade ou exigibilidade e imposição da conduta. Em se-
A exigência de realização completa do fim perseguido é contra- gundo lugar porque o exame da necessidade de uma medida, nos ter-
producente, já que dificilmente é possível saber com certeza, de ante- mos da regra da proporcionalidade, é um teste comparativo. Isso sig-
mão, se uma medida realizará, de fato, o objetivo a que se propõe. nifica que um ato estatal é necessário quando comparado a outras
Muitas vezes o legislador é obrigado a agir em situações de incertezas alternativas que poderiam ter sido utilizadas para a mesma finalidade.
empíricas, é obrigado a fazer previsões que não sabe se serão realiza-
Assim, um ato estatal que limita direito fundamental "é somente ne-
das ou, por fim, esbarra nos limites da cognição. Nesses casos, qual-
cessário caso a realização do objetivo perseguido não possa ser pro-
quer exigência de plena realização de algo seria uma exigência impos-
movida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite,
sível de ser cumprida. Por isso a preferência pela primeira alternativa,
que, de resto, é também aquela apoiada pela maioria da doutrina. 157 em menor medida, o direito fundamental atingido".I 59
Nesse sentido, vamos supor que o Estado lance mão da medida
M 1, que limita o direito fundamental D mas promove o objetivo O. 160
4.4.3 Necessidade 158 Se houver uma medida M 2 que, tanto quanto M,, seja adequada para
Quando se fala em "necessidade" ou em "exigibilidade", nos promover com igual eficiência o objetivo O, mas limite o direito fun-
termos da regra da proporcionalidade, não se quer fazer menção a damental D em menor intensidade, então, a medida M 1, utilizada pelo
Estado, não é necessária. 161 Fica clara, assim, a diferença entre o exa-
me da necessidade e o da adequação: enquanto o teste da adequação
156. Cf. Gilmar Ferreira Mendes, "O princípio da proporcionalidade na juris- é absoluto e linear, ou seja, refere-se pura e simplesmente a uma rela-
prudência do Supremo Tribunal Federal: novas leituras", Repertório 108 de Jurispru-
dência: Tributário, Constitucional e Administrativo 14 (2000), p. 371.
ção meio e fim entre uma medida e um objetivo, o exame da necessi-
157. Cf., por exemplo: Willis Santiago Guerra Filho, Teoria processual da Cons- dade tem um componente adicional, que é a consideração das medidas
tituição, São Paulo: Celso Bastos Editor, 2000, pp. 84 e 85; Luís Roberto BmToso, "Os alternativas para se obter o mesmo fim. O exame da necessidade é,
princípios da razoabilidade e proporcionalidade no direito constitucional", Cadernos de assim, um exame imprescindivelmente comparativo.
Direito Constitucional e Ciência Política 23 (1998), p. 71; Suzana de Toledo BaJTos, O
princípio da proporcionalidade, p. 78; Wilson Antônio Steinmetz, Colisão de direitos Nessa comparação, como se percebe, duas são as variáveis a se-
fundamentais e princípio da proporcionalidade, Porto Alegre: Livraria do Advogado, rem consideradas: (1) a eficiência das medidas na realização do obje-
2001, p. 150; Lothar Hirschberg, Der Grundsatz der VerhaltnismiijJigkeit, Góttingen:
Schwartz, 1981, pp. 50 e ss.; Martin Borowski, Grundrechte als Prinzipien, p. 116;
tivo proposto; e (2) o grau de restrição ao direito fundamental atingi-
Eberhard Grabitz, "Der Grundsatz der VerhaltnismaBigkeit in der Rechtsprechung des do. É claro que, tratando-se de duas variáveis, é necessário que se
Bundesverfassungsgerichts", AôR 98 (1973), p. 572; Bodo Pieroth/Bemhard Schlink, decida qual é a mais importante. Em geral fala-se na necessidade co-
Grundrechte - Staatsrecht li, § 283, p. 66. Sobre as implicações dessa variação no
conceito de adequação, cf., por todos, Carlos Berna! Pulido, El principio de proporcio-
nalidad y los derechos fundamentales, 2" ed., Madrid: Centro de Estudios Políticos y 159. Virgílio Afonso da Silva, "O proporcional e o razoável", p. 38. Cf. tam-
Constitucionales, 2005, pp. 730 e ss. bém Gilmar Ferreira Mendes, Direitos fundamentais e controle de constitucionali-
158. Boa parte dos desenvolvimentos deste tópico e de seus sub-tópicos é produ- dade, p. 72.
to de reflexões impostas pelos questionamentos incessantes de meus alunos na Facul- 160. O objetivo O é, necessariamente, um objetivo baseado em outro direito
dade de Direito da USP quando de nossos debates sobre proporcionalidade. A eles fundamental ou em um interesse coletivo.
agradeço, aqui, mais uma vez. 161. Virgílio Afonso da Silva, "O proporcional e o razoável", p. 38.
172 DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONTEÚDO ESSENCIAL, RESTRIÇÕES E EFICÁCIA RESTRIÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS 173

mo a busca do "meio menos gravoso", 162 o que pode dar a entender pre melhor que o Estado seja omisso, pois, embora a omissão seja ine-
que se deva dar sempre preferência à medida que restrinja menos di- ficiente para realizar objetivos que necessitem de uma ação estatal, ela
reitos. Mas isso somente é assim caso ambas as medidas sejam igual- será também, em geral, menos gravosa. Em segundo lugar porque a
mente eficientes na realização do objetivo. Nesse casos- e somente escolha pela medida mais eficiente - no caso da linha (2) da tabela -
nesse caso - deve-se dar preferência à medida menos gravosa. Mas há não significa desproteção ao direito restringido em favor de uma efi-
outras configurações possíveis, que são as seguintes (M1 é sempre a ciência a todo custo. Essa proteção é apenas deslocada para o terceiro
medida estatal adotada, e M 2 é uma medida alternativa): exame da proporcionalidade, como será visto em tópico mais abai-
xo. 163 Antes, porém, é necessário, ainda, analisar outros pontos proble-
máticos do exame da necessidade, o primeiro deles ligado à linha (3)
Medida mais eficiente Medida menos gravosa da tabela.
em relação ao objetivo O em relação ao direito D

(1) MJ MJ
4.4.3.1 Necessidade e grau de eficiência
(2) MJ M2
(3) MJ
Da mesma forma que a preferência sempre pela medida menos
M2
gravosa poderia levar a um fomento da omissão estatal, é possível
(4) M2 M2 questionar se uma preferência sempre pela medida mais eficiente não
teria como conseqüência: (1) a inutilidade de se questionar o grau de
restrição ao direito; e (2) o risco de toda medida ser reprovada no
Nos casos (1) e (4) a resposta ao exame da necessidade é simples. teste da necessidade, já que sempre será possível imaginar medidas
Em (1) a medida adotada era necessária, porque não só era mais efi- mais eficientes que a adotada, não importa o quanto ela restrinja direi-
ciente para realizar o objetivo proposto como, também, restringia me- tos. Essas perguntas estão ligadas à linha (3) da tabela exposta no tó-
nos o direito fundamental em jogo. No caso (4) é exatamente o con- pico anterior.
trário: a alternativa M 2 é mais eficiente e menos gravosa; logo, M 1 não
era necessária. Mas qual é a resposta para os casos (2) e (3)? Neles a A resposta às duas questões acima pode ser encontrada na própria
medida mais eficiente é também sempre a mais gravosa, e a medida definição de necessidade exposta anteriormente (M1 é a medida estatal
menos gravosa é, por conseguinte, menos eficiente. Ainda que a intui- adotada): "se houver uma medida M 2 que, tanto quanto M 1 , seja ade-
ção - sobretudo a daqueles preocupados com a proteção dos direitos quada para promover com igual eficiência o objetivo O, mas limite o
fundamentais- tendesse a dar preferência, nesses dois casos, à medi- direito fundamental D em menor intensidade, então, a medida M 1, uti-
da que restrinja menos o direito fundamental, a resposta é justamente lizada pelo Estado, não é necessária". Como se percebe- e isso é fun-
o contrário: decisiva, no exame da necessidade, é a eficiência da me- damental -, o que se compara é M 1 com outras alternativas (Mb M 3 •••
dida. Isso por várias razões. Mn), e não todas as medidas possíveis e imagináveis, entre si. Um dos
lados da comparação é fixo, e ocupado por M 1• Assim, com relação à
Em primeiro lugar porque, se a preferência tivesse que recair na
questão (1), o grau de restrição ao direito não é um critério inútil, por-
medida menos gravosa, ainda que quase nada eficiente, a resposta a
que, sempre que houver medidas tão eficientes quanto M 1 , esse será o
todos os exames de necessidade já teria sido dada de antemão: é sem-
critério decisivo. Além disso, no teste da necessidade não se deve per-
guntar se há medidas mais eficientes que a medida estatal adotada,
162. Cf., por exemplo, Xavier Philippe, Le contrôle de proportionnalité dans
le jurisprudences constitutionnelle et administrative françaises, Aix-en-Marseille:
Econorrtica, 1990,p.44. 163. Cf. tópico 4.4.4.
174 DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONTEÚDO ESSENCIAL, RESTRIÇÕES E EFICÁCIA RESTRIÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS 175

mas apenas se há medid<:s tão eficientes quanto, mas que restrinjam Vamos supor o seguinte exemplo: com o intuito de realizar o di-
menos o direito afetado. E por isso que na linha (3) da tabela exposta reito à privacidade, o legislador aprova um projeto de lei, que é depois
no tópico anterior, ainda que M 2 seja mais eficiente que M 1 , M 1 não sancionado e promulgado, no qual se proíbem: (1) qualquer forma de
será considerada desnecessária. Com isso, poder-se-ia complementar jornalismo investigativo; (2) qualquer divulgação de dados constantes
a tabela anterior nos seguintes termos: em qualquer processo, em qualquer nível; (3) a publicação de qual-
quer foto, de qualquer pessoa, a não ser com autorização expressa do
fotografado; (4) a quebra do sigilo bancário, em toda e qualquer situa-
Medida mais eficiente Medida menos gravosa A medida adotada ção. Esse é um conjunto de medidas que, sem dúvida, é adequado a
em relação ao objetivo O em relação ao direito D (M1 ) é necessária? fomentar o fim que se persegue - a garantia da privacidade. Seria di-
(1) MJ MJ sim fícil, além disso, imaginar um conjunto de medidas que seja assim efi-
caz para a realização desse objetivo e que, ao mesmo tempo, restrinja
(2) MJ Mz sim
menos os direitos fundamentais envolvidos (entre outros, a liberdade
(3) Mz MJ sim de imprensa e a publicidade dos atos processuais).
(4) Mz Mz não A última etapa da proporcionalidade, que consiste em um sope-
samento entre os direitos envolvidos, tem como função principal
(5) M 1 =M2 MJ sim
justamente evitar esse tipo exagero, ou seja, evitar que medidas esta-
(6) M 1 =M2 Mz não tais, embora adequadas e necessárias, restrinjam direitos fundamen-
tais além que a realização do objetivo perseguido seja capaz
de justificar. E claro que não é tarefa simples decidir, na maioria dos
4.4.4 Proporcionalidade em sentido estrito casos importantes, se o grau de realização de um direito D 1 justifica o
grau de restrição a um direito D2 (ou direitos D2o D 3 , D4 , ... Dn). Para
É possível sustentar que uma medida estatal que restrinja direito
essa questão valem as considerações já feitas acerca da racionalidade
fundamental seja constitucionalmente justificável se, além de adequa-
do sopesamento e do processo de aplicação do direito em geral. 166
da para fomentar o objetivo que persegue, não houver medida alterna-
tiva que seja tão eficiente quanto e que restrinja menos o direito atin- Além disso, mais recentemente Alexy vem propondo a utilização
gido. Como será visto em tópico a seguir, há autores que defendem de elementos numéricos para uma maior controlabilidade da argumen-
essa posição. 164 Em geral, no entanto, costuma-se apontar a necessidade tação nos casos de sopesamento. 167 Um exemplo simples de uso de
de um exame final: a proporcionalidade em sentido estrito. 165 A razão de elementos numéricos seria um modelo baseado na diferença do grau
ser desse último teste é facilmente explicável: se fossem suficientes de intensidade na realização de um princípio e o grau de intensidade
apenas os dois primeiros exames - adequação e necessidade -, uma da restrição em outro princípio. Usando como variáveis os princípios
medida que fomentasse um direito fundamental com grande eficiência Pi e Pj, e para os graus de intensidade da realização e da restrição as
mas que restringisse outros vários direitos de forma muito intensa variáveis I; e Ij, teríamos a seguinte fórmula: Gi,j = li - Ij. 168
teria que ser considerada proporcional e, portanto, constitucional. Isso
porque, além de adequada, a medida é necessária. 166. Cf. tópico 4.2.2.2.3.
167. Cf. sobretudo Robert Alexy, "Die Gewichtsformel", in Joachim Jickeli et
al. (orgs.), Gediichtnisschriftfür Jürgen Sonnenschein, Berlin: De Gruyter, 2003, pp.
164. Cf. tópico 4.4.4.1. 771-792; em português, cf. Robert Alexy, "Posfácio", in Robert Alexy, Teoria dos
165. Nesse sentido, por exemplo: cf. Colisão de direitos fundamentais, pp. 152 direitos fundamentais (trad. Virgílio Afonso da Silva), São Paulo: Malheiros Editores,
e ss.; Suzana de Toledo Barros, O princípio da proporcionalidade, pp. 82 e ss.; Paulo 2008, pp. 575-627.
Bonavides, Curso de direito constitucional, 22• ed., São Paulo: Malheiros Editores, 168. Gi,j significa o "peso" concreto do princípio Piem relação ao princípio Pj.
2008, pp. 397-398. Cf. Robert Alexy, "Die Gewichtsformel", p. 784.
176 DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONTEÚDO ESSENCIAL, RESTRIÇÕES E EFICÁCIA RESTRIÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS 177

As variáveis li e Ij podem ser substituídas, por exemplo, pelos nú- 4.4.4.1 Proporcionalidade em sentido estrito
meros 1, 2 e 3, conforme se trate de intensidade baixa, média ou alta. e subjetividade
A partir daí, se o resultado da operação for positivo, o princípio Pi
Há autores que defendem que a aplicação da regra da proporciona-
prevalece sobre o princípio Pj. Em caso de resultado negativo a con-
lidade deva se limitar aos dois primeiros exames - adequação e ne-
clusão é oposta. Essa é uma fórmula simples e, segundo Alexy, não dá
cessidade. Isso porque esses seriam os exames para os quais há critérios
conta de todas as possibilidades do sopesamento. Ele propõe, por isso, objetivos, enquanto a proporcionalidade em sentido estrito (= sopesa-
algumas outras fórmulas que levam em consideração outras variáveis menta) seria simplesmente a substituição da subjetividade do legisla-
(como, por exemplo, o peso abstrato dos princípios, entre outras). 169 dor pela subjetividade do juiz. 172 Não é o caso, aqui, de rediscutir a
Não me parece necessário desenvolver o tema, aqui. Até porque, con- possibilidade de objetividade no sopesamento, o que já foi feito ante-
forme já defendi em outra ocasião, "não é possível pretender alcançar, riormente.173 Mais importante talvez seja demonstrar que o grau de
com o procedimento de sopesamento, uma exatidão matemática, nem objetividade nos exames da adequação e, sobretudo, da necessidade
substituir a argumentação jurídica por modelos matemáticos e geomé- não diferem muito daquele criticado- sobretudo por Bernhard Schlink
tricos. Esses modelos podem, quando muito, servir de ilustração, pois e, no Brasil, por Leonardo Martins - no exame da proporcionalidade
a decisão jurídica não é nem uma operação matemática, nem puro em sentido estrito. 174
cálculo". 170 Mais importante que buscar fórmulas matemáticas é a Como se viu anteriormente, o exame da necessidade implica uma
busca de regras de argumentação, critérios de valoração ou a funda- comparação entre a medida estatal adotada para fomentar determina-
mentação de precedências condicionadas. 171 do objetivo O com medidas alternativas. Se houver medidas alternati-
vas que restrinjam menos direitos fundamentais, a medida adotada
não pode ser considerada necessária. O modelo mais simples para
169. Cf. RobertA!exy, "Die Gewichtsformel", p. 784; e, do mesmo autor, ''Pos-
essa análise envolve as seguintes variáveis: M 1 (medida adotada), M 2
fácio", in RobertAlexy, Teoria dos direitosfundamentais, pp. 602 e ss.
170. Virgl1io Afonso da Silva, Grundrechte und gesetzgeberische Spielrdume, (medida alternativa), O (objetivo) e D (direito fundamental restringi-
p. 102. Nesse sentido, cf. também: Daniel Sarmento, "Os princípios constitucionais e do para a realização de 0). Mesmo em um modelo simples como esse,
ponderação de bens", in Ricardo Lobo Torres (org.), Teoria dos direitos fundamen- não há, por razões óbvias, critérios matemáticos que respondam a
tais, 2ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2001, pp. 56-57; Nils Jansen, "Die Abwagung questões como: "Que medida realiza melhor o objetivo?"; ou: "Que
von Grundrechten", Der Staat 36 (1997), p. 53; Kent Greenawalt, Law and Objectivi-
ty, New York: Oxford University Press, 1992, p. 204; Jan-Reinard Sieckmann, "Ri- medida restringe menos o direito afetado?". Perguntas como essas
chtigkeit und Objektivitat im Prinzipienmodell", ARSP 83 ( 1997), p. 29; Karl Larenz, envolvem, necessariamente, uma valoração subjetiva por parte do
"Methodische Aspekte der 'Güterabwagung"', in Fritz Hauss/Reimer Schmidt juiz. Em situações concretas mais complexas o cenário fica ainda mais
(orgs.), Festschrift für Ernst Klingmiiller, Karlsruhe: Verlag Versicherungswirtschaft, difícil de ser dominado. É possível que uma medida M 1 seja mais
1974, pp. 247-248; Gerhard Struck, "Interessenabwagung als Methode", in Roland
Dubischar et al. (orgs.), Dogmatik und Methode: Josef Esser zum 65. Geburtstag,
Kronberg/Ts.: Scriptor, 1975, pp. 172 e ss.; e Ernst-Wolfgang Bockenfi:irde, "Zur 172. Cf., por exemplo, Bernhard Schlink, "Freiheit durch Eingriffsabwehr- Re-
Kritik der Wertbegründung des Rechts", in Recht, Staat, Freiheit: Studien zur Rechts- konstruktion der klassischen Grundrechtsfunktion", EuGRZ 11 (1984), p. 461; e, do
philosophie, Staatstheorie und Verfassungsgeschichte, Frankfurt am Main: Suhrkamp, mesmo autor, Abwügung im Verfassungsrecht, p. 79. Schlink reafirma sua posição em
1991, p. 85. trabalho um pouco mais recente: "Der Grundsatz der VerhaltnismaBigkeit", in Peter
171. Para uma análise de critérios que confiram maior racionalidade no proces- Badura/Horst Dreier (orgs.), Festschrift 50 Jahre Bundesverfassungsgericht, vol. II,
so de sopesamento, cf. Ana Paula de Barcellos, Ponderaçâo, racionalidade e ativi- Tübingen: Mohr, 2001, pp. 458 e ss. No Brasil, em sentido semelhante, cf. Leonardo
dade jurisdicional, Rio de Janeiro: Renovar, 2005. Para um bom exemplo de fixação Martins, "Proporcionalidade como critério do controle de constitucionalidade", Ca-
de precedências condicionadas, cf. Wilson Steinmetz, A vinculação dos particulares dernos de Direito Unimep 3 (2003), pp. 36 e ss.
a direitosfímdamentais, pp. 214 e ss. Cf. também a já mencionada lei de colisão (cf. 173. Cf. tópico 4.2.2.2.3.
tópico 2.2.3.2, nota 30) e seus complementos (cf. tópico 4.2.2.2.3). 174. Para outras referências, cf. notas de rodapé 89, 90 e 92, acima.
178 DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONTEÚDO ESSENCIAL, RESTRIÇÕES E EFICÁCIA RESTRIÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS 179

eficiente na realização de um objetivo O, restrinja o direito D 1 com situação, se vê obrigado a fazer um sopesamento entre dois ou mais
muita intensidade e o direito D 2 de forma não tão intensa; já a medida princípios, cujo resultado, então, é expresso pela regra infraconstitu-
M 2 é um pouco menos eficiente na realização de O, mas não restringe cional. Essa é uma tarefa central da legislação ordinária. Esse resulta-
o direito D 1, restringe com muita intensidade o direito D 2 e, ainda, do do sopesamento do legislador - que pode ser, por exemplo, um
restringe um pouco o direito D 3 ; por fim, uma outra medida alternati- dispositivo de direito civil, de direito penal, de direito tributário ou de
va M 3 tem grau de eficiência intermediário entre M 1 e M 2 na realização direito do trabalho- pode, em um sistema em que há jurisdição cons-
de O, restringe com média intensidade o direito D,, não restringe o titucional, como é o caso do Brasil, ser questionado judicialmente.
direito D 2 e restringe com muita intensidade o direito D;. Saber, em Nesse processo de controle da constitucionalidade da lei, se houver
uma situação hipotética como essa- que, de resto, não parece difícil uma restrição a direito fundamental, deve-se recorrer à regra da pro-
de ser encontrada em exemplos reais-, qual seria a medida necessária porcionalidade, nos moldes analisados anteriormente: ou seja, deve-se
não é algo que possa ser mensurado de forma exata. Nesse sentido- e indagar se a regra infraconstitucional que restringe um direito funda-
isso é o mais importante neste ponto -, há casos em que o exame da mental é adequada para fomentar seus objetivos (fomentar a realiza-
necessidade pode ser muito mais complexo e exigir mais valorações ção de um outro direito fundamental, por exemplo), se não há medida
do juiz que o exame da proporcionalidade em sentido estrito. O ganho
alternativa tão eficiente quanto, mas menos restritiva, e, por fim, se há
em objetividade não se encontra- como já se tentou deixar claro an-
um equilíbrio entre a restrição de um direito e a realização do outro.
teriormente175- na renúncia ao sopesamento, mas na busca de padrões
de diálogo intersubjetivo que permitam um controle social da ativida- Como visto anteriormente, 178 no entanto, há casos em que não há
de jurisdicional. Isso vale não apenas para o sopesamento, mas tam- qualquer regra infraconstitucional que discipline a colisão entre dois
bém para os exames da adequação e da necessidade e também para a princípios. Ou seja, pode ser que dada situação de colisão ainda não
"simples" subsunção. tenha sido objeto de ponderação por parte do legislador. Nesses casos,
isto é, nos casos em que deve haver uma aplicação direta dos princí-
pios constitucionais ao caso concreto - e esses casos são muito mais
4.4.5 Regra da proporcionalidade e sopesamento raros-, deve- aí, sim- haver apenas um sopesamento entre os poten-
ciais princípios aplicáveis na resolução do caso concreto. A razão é
Em algumas passagens deste capítulo já se mencionou que em
muito simples: se a aplicação da regra da proporcionalidade implica
alguns casos se deve recorrer ao sopesamento; em outros, à regra da
três questões- (a) A medida é adequada para fomentar o objetivo fi-
proporcionalidade. 176 Essa é uma distinção importante, e que muitas
xado? (b) A medida é necessária? E (c) a medida é proporcional em
vezes é ignorada. Freqüentemente, em casos que deveriam ser resol-
sentido estrito?-, é mais que óbvio que deve haver uma medida con-
vidos, quando muito, por meio de sopesamento recorre-se à aplicação
creta que será testada. Isso é o que deveria ter ocorrido, por exemplo,
da regra da proporcionalidade.
no caso da ADI/MC 2.566: nas três perguntas acima, bastaria substi-
Neste ponto é necessário recorrer àquilo que foi explicitado nos tuir "medida" por "vedação de proselitismo nas emissões de radiodi-
tópicos 4.2.2.1.1 e 4.2.2.1.2. Há casos - e esses são a maioria - em fusão comunitária". Mas, nos casos em que se deve aplicar princípios
que a restrição a um direito fundamental é veiculada por meio de regra diretamente ao caso concreto,jalta essa variável de referência. Se não
presente em um texto normativo infraconstitucional. Esse tipo de res- há medida adotada, não há possibilidade alguma de se adotar a regra
trição - que foi objeto, por exemplo, da análise de caso acerca da
da proporcionalidade. 179
ADI/MC 2.566 177 - ocorre sempre que o legislador, em determinada

178. Cf. tópico 4.2.2.1.2.


175. Cf. tópico 4.2.2.2.3. 179. A não ser, é claro, que se queira controlar omissões legislativas com a apli-
176. Cf., por exemplo, as notas de rodapé 65 e 73, neste capítulo. cação da proporcionalidade. Essa é, no entanto, uma possibilidade problemática, cuja
177. Cf. tópico 3.3.3.1, acima. análise extrapolaria os limites deste trabalho. Além disso, meu aluno- e depois mom-
180 DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONTEÚDO ESSENCIAL, RESTRIÇÕES E EFICÁCIA RESTRIÇÕES A DIREITOS FUNDAMENTAIS 181

4.4.6 Proporcionalidade, limites imanentes, restrições cional que qualquer intervenção exige. Nesse sentido, dispositivos legais
e regulamentações meramente regulamentadores de direitos fundamentais também esta-
riam isentos da aplicação da regra da proporcionalidade. 181
Neste ponto do trabalho é necessário retomar duas questões que
Nos dois casos - limites imanentes e "mera" regulamentação -,
já foram anteriormente debatidas, para relacioná-las à regra da pro-
ambos ligados a teorias que defendem um suporte fático restrito, per-
porcionalidade: os limites imanentes e a idéia de regulamentação de
cebe-se, sem dificuldades, uma diminuição na capacidade pro-
direitos fundamentais. tetora dos direitos fundamentais, devido à exclusão total e de antemão
O recurso aos limites imanentes serve, como foi visto anterior- de um mecanismo controlador de intervenções estatais no âmbito de
mente, como uma forma de autolimitação dos direitos fundamentais. proteção dos direitos: a regra da proporcionalidade.
Ele pode ser utilizado seja como uma forma de realização dos postu-
lados da teoria interna, seja como uma forma de, no âmbito da teoria
externa, restringir de antemão o suporte fático dos direitos fundamen- 4.4.7 Proporcionalidade
tais. Em ambos os casos há uma diminuição no âmbito de proteção e conteúdo essencial dos direitos fundamentais
desses direitos: menos condutas e menos posições jurídicas são con- Como foi visto no capítulo anterior, quando se parte de um supor-
sideradas como protegidas, ainda que primafacie, pelos direitos fun- te fático amplo para os direitos fundamentais há, automaticamente,
damentais. Essa redução de proteção, no entanto, não é acompanhada um aumento na colisão entre direitos fundamentais, pois, ao aumentar
de uma exigência de fundamentação, visto que feita de antemão. A a quantidade de condutas, situações e posições jurídicas protegidas
partir dessa premissa, não seria necessário fundamentar a vedação ou por direitos fundamentais, há, inevitavelmente, uma maior quantidade
a restrição daquilo que nem ao menos entra no âmbito de proteção de de choques no exercício desses direitos. Além disso, a ampliação do
um direito fundamental. A aplicação da proporcionalidade, nesses conceito de intervenção estatal, em conjunto com a adoção de uma
casos, é excluída também de antemão. teoria externa, tende a ampliar o número de ações estatais que são con-
No caso do recurso à dicotomia restrição/regulamentação, já re- sideradas como restrição a direitos fundamentais. Por fim, sedimen-
jeitada anteriormente, 180 muitos daqueles que recorrem a ela o fazem tou-se a idéia de que tais restrições, para que possam ser consideradas
para sustentar que "meras regulamentações" não constituem interven- restrições constitucionalmente fundamentadas, e não violações a di-
ções no âmbito de proteção dos direitos fundamentais. Aqui, o que se reitos, têm que passar no exame da proporcionalidade. De que forma
restringe não é o âmbito de proteção, mas o conceito de intervenção. o modelo desenvolvido até aqui- que pressupõe, portanto, que restri-
Encaradas dessa forma, as eventuais regulamentações no exercício (for- ção não é sinônimo de violação a direitos fundamentais - se relaciona
ma, local, horário etc.) dos direitos fundamentais, por não serem consi- com a idéia de que tais direitos devam ter um conteúdo mínimo essen-
deradas como intervenção, deixam de exigir a fundamentação constitu- cial inviolável? Para introduzir a resposta a essa pergunta, que será
desenvolvida no próximo capítulo, retomo a primeira citação deste
trabalho, extraída do voto do Min. Celso de Mello no caso Ellwanger
tor - Thomaz Henrique Pereira argumenta que seria possível também imaginar que (HC 82.424): "Entendo que a superação dos antagonismos existentes
pelo menos nas ações decididas em sede de recurso haveria sempre uma medida esta-
tal a ser controlada por meio da aplicação da regra da proporcionalidade. Essa medida
entre princípios constitucionais há de resultar da utilização, pelo STF,
seria a decisão recorrida. Essa não me parece ser uma opção possível, já que o que se de critérios que lhe permitam ponderar e avaliar, hic et nunc, em fun-
controla, nesses casos, não é a "ação" do juiz como uma "ação restritiva de um direito
fundamental", mas, sim, a correção da interpretação e da aplicação do direito que o
juiz realizou na sentença recorrida. Fica aqui, no entanto, o agradecimento por ter me 181. Para uma defesa nesse sentido- ou seja, pela exclusão da análise da pro-
chamado a atenção para esse possível argumento. porcionalidade em casos de simples regulamentação -, cf. Peter Lerche, Überma)3
180. Cf. tópico 3.3.2.1.3. und Verfassungsrecht, pp. 107 e ss. e 140 e ss.
182 DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONTEÚDO ESSENCIAL, RESTRIÇÕES E EFICÁCIA

ção de determinado contexto e sob uma perspectiva axioló?ica con-


creta, qual deva ser o direito a preponderar no caso, considerada a
situação de conflito ocorrente, desde que, no entanto, a utilização ?o
método da ponderação de bens e interesses não importe em esvazia-
mento do conteúdo essencial dos direitos fundamentais, tal como ad-
verte o magistério da doutrina". 182
Como se percebe com clareza, o Min. Celso de Mello faz menção Capítulo 5
a um método (ponderação) de resolução de colisões entre direitos fun-
damentais (princípios) que deva levar em consideração o O CONTEÚDO ESSENCIAL
concreto para se decidir qual o direito que deverá prevalecer. Sena
DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS:
TEORIAS E POSSIBILIDADES
possível acrescentar que em determinados casos será exigível não ape-
nas a ponderação ou sopesamento, mas também a aplicação da regra
da proporcionalidade, como foi visto no tópico anterior. Todos _esses 5.11ntrodução. 5.2 Ponto de partida: possíveis dimensões do proble-
elementos - e outros mais - foram analisados nos capítulos antenores. ma: 5.2.1 Dimensão objetiva- 5.2.2 Dimensão subjetiva. 5.3 Conteú-
do essencial absoluto: 5.3.1 Conteúdo essencial absoluto-dinâmico
Ficou claro, nessa longa análise, que o problema é mais complexo do - 5.3.2 Conteúdo essencial absoluto-estático- 5.3.3 Conteúdo abso-
que a intuição pode querer fazer crer. Os elementos envolvidos podem luto e dignidade. 5.4 Conteúdo essencial relativo: 5.4.1 Conteúdo
ser conjugados de formas tão díspares, que seria possível reescrever a essencial relativo e proporcionalidade - 5.4.2 Conteúdo essencial
passagem transcrita de diversas formas. Da forma com? escrita, relativo e dignidade. 5.5 Sobre o caráter constitutivo ou declaratório
das previsões constitucionais. 5.6 Direitos sociais, conteúdo essen-
necessário indagar o que significa "conteúdo essenc1al dos d1re1tos cial e mínimo existencial. 5.7 Resultado. 5.8 Desenvolvimento.
envolvidos" e, sobretudo, o que significa "esvaziamento" desse con-
teúdo. Em outras palavras: que tipo de restrição atinge e que tipo não
atinge esse conteúdo essencial? Ou, mais importante: é possível que S.llntrodução
uma restrição, a partir de todos os elementos analisados neste traba-
lho, passe no teste da proporcionalidade e mesmo assim seja conside- Como já foi explicitado anteriormente, 1 neste trabalho não se
rada inconstitucional, por esvaziar o conteúdo essencial de um direi- pretende simplesmente fazer uma análise de teorias sobre o conteúdo
to fundamental? À resposta a essas indagações é dedicado o próximo essencial dos direitos fundamentais com o objetivo de, no final, optar
capítulo. por uma delas. Essa estratégia foi considerada como um enfoque em-
pobrecedor. A partir dessa premissa, ficou esclarecido que essa parte
do objeto deste trabalho - o conteúdo essencial dos direitos fundamen-
tais - deve ser encarada como um fenômeno complexo, que envolve
uma série de problemas inter-relacionados. Esses problemas- que são,
na sua complexidade, o objeto do trabalho - já foram analisados até
aqui e são, sobretudo, aqueles ligados: (a) à análise daquilo que é pro-
tegido pelas normas de direitos fundamentais; (b) à relação entre o que
é protegido e suas possíveis restrições; e (c) a como fundamentar tan-
to o que é protegido como as suas restrições. O que se disse anterior-

182. RTJ 188, 858 (912) (sem grifos no original). 1. Cf. tópico 1.1.3.3.

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